Catálogo Cinema de Montagem

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CINEMA DE MONTAGEM

06 a 17 de agosto - 2013 CAIXA Cultural Recife Av. Alfredo Lisboa, 505 - Bairro do Recife Tel. (81) 3425-1900 13 a 18 de agosto - 2013 CAIXA Cultural Brasília | Teatro da CAIXA SBS Quadra 04 Lote 3/4 - Edifício Anexo à Matriz da CAIXA Tel. (61) 3206 -9448/ 3206-6456 caixacultural.df@caixa.gov.br www.caixa.gov.br/caixacultural www.3moinhos.com/cinemademontagem



A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, e mantém comitês internos atuantes para promover entre os seus empregados campanhas, programas e ações voltados para disseminar idéias, conhecimentos e atitudes de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, opção sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultural brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em espaços próprios e espaços de terceiros, com ênfase para exposições de artes visuais, peças de teatro, cinema, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. Esta mostra vem suprir a ausência de um espaço de reflexão sobre a arte da montagem. Projeto inédito, a mostra “CINEMA DE MONTAGEM” vem exibir 22 filmes raros, pouco – ou nunca – exibidos no Brasil, cujo suporte criativo é a montagem. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 152 anos de atuação no país, e de efetiva parceira no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL



E a internet mudou tudo

Foi a partir de grupos formados nas redes sociais que, em meados de 2011, os editores e montadores do Rio de Janeiro romperam o isolamento natural do seu ofício. Também foi nas discussões online que ficou claro que era hora de iniciar um movimento inédito que unisse a classe. Veio o primeiro encontro, num bar de Botafogo. A emoção transbordava, todos queriam se apresentar e falar das suas angústias e esperanças. E depois vieram outros encontros. Nessas sucessivas reuniões e com muito papo pelo Facebook, esse povo descobriu que suas dores e delícias eram as mesmas, como se fossem “cortes” distintos de uma mesma história. Entenderam que cinema, TV, web, vídeo institucional, publicidade, videoarte, entre outros, também são jeitos diferentes de uma mesma forma de expressão. Entenderam também que, a partir da consolidação das ferramentas digitais e do fim da película, não havia mais como sustentar a separação dessa profissão com nomes diferentes como editor e montador para, no fim das contas, representar o mesmo ofício.


E, sobretudo, entenderam que era necessária a criação de uma entidade regional para lutar por seus direitos e conquistar melhores condições de trabalho. O próximo passo era preparar a assembleia de fundação da entidade. Todos os itens previstos foram cuidados e elaborados pelo grupo fundador, com destaque para nosso estatuto. Foram arrecadadas contribuições em dinheiro entre os futuros associados, e um advogado foi contratado para dar respaldo jurídico. Formou-se uma valorosa chapa única formada por voluntariado para o exercício do primeiro mandato. A assembleia ocorreu no dia 10 de março de 2012 às 17:30h, no teatro da Escola Edem. O evento excedeu todas as expectativas. Estiveram presentes mais de 150 editores e assistentes de edição, de todas as gerações. Mal couberam no espaço previsto para a assembleia. Entre essa gente marcaram presença, e demonstraram seu apoio, profissionais consagrados tais como Diana Vasconcellos, Eduardo Escorel, João Paulo de Carvalho, Jordana Berg, Karen Harley, Marcelo Moraes, Marta Luz, Ricardo Miranda, Sergio Mekler, entre outros. Dentre as alternativas propostas, a maioria decidiu que o nome da associação seria: edt. – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual. Na sua versão curta, o nome faz uma referência metafórica ao ofício da categoria. É a abreviatura e ao mesmo tempo uma “edição” da palavra editor ou do verbo editar. Como marca é grafado em letras minúsculas e com o ponto no final. No primeiro ano da edt. a diretoria conseguiu organizar um sistema de contribuições trimestrais, pagamentos, legalizou todos os papéis, e realizou um seminário para, principalmente, redigir e aprovar o regimento interno da associação. Além disso, os associados têm direito a assessoria jurídica gratuita uma vez por mês. Foram formadas diversas comissões de trabalho para frentes como: questões trabalhistas, web site, formação, e benefícios. Ainda no primeiro ano, a Comissão Trabalhista redigiu um modelo de contrato de prestação de serviço para editores e assistentes de edição. Para auxiliar os associados a montar o seu próprio contrato, a Comissão produziu uma apostila e um workshop


com a presença do advogado da associação para sanar dúvidas a respeito da implementação do contrato. As coisas foram avançando aos poucos, e 2013 já começava. A diretoria concluiu que deveria se recandidatar para completar sua missão de consolidação da entidade e passou a organizar a assembleia de reeleição, novamente com chapa única. Em 06 de abril de 2013 a diretoria foi reeleita. Hoje já são mais de 170 associados cadastrados, e sempre crescendo. Agora as metas são outras. O web site é o primeiro grande passo desse novo mandato. Será a morada virtual do editor, lugar para os associados se apresentarem ao mercado, para debaterem questões relativas ao ofício de edição e terem acesso a tudo o que a edt. lhes oferece. As Comissões Trabalhista e de Benefícios já mostram um novo horizonte de resultados concretos como a análise do Censo de mapeamento do mercado de trabalho de edição audiovisual no ano de 2012 e descontos em cursos e lojas de equipamentos. A Comissão de Formação também começou os seus trabalhos. Já houve uma palestra da Avid e outras virão. Além do aspecto técnico, há o profundo compromisso com o aperfeiçoamento metodológico, teórico e artístico dos associados que, aliado a planejamento e gestão profissional adequados, os tornarão mais bem preparados para enfrentar os desafios de sua carreira. E ainda um cineclube, voltado especialmente para o debate sobre montagem está em fase de produção. Do seio da edt., imbuída de ideais semelhantes e convergentes, duas associadas tiveram a iniciativa de realizar a mostra Cinema de Montagem. Por essa relação quase umbilical, a edt. se sente uma eterna parceira da mostra, com muito orgulho. Que essa primeira edição da mostra possa perseverar cada vez mais forte, assim como a edt. E que, com o exemplo do Rio de Janeiro, outras entidades, com abrangência regional, quem sabe até nacional, possam surgir para fortalecer e valorizar o trabalho do editor no Brasil.

A Diretoria edt. Fernando Vidor, Pedro Bronz, Gabi Paschoal, Helena Lent, Fernanda Bastos, João Velho, Nina Galanternick, Rodolfo Vaz.



ÍNDICE A Apresentação 13 A cabeça é uma ilha Os Textos 17 9 montadores, 9 estilos, 9 textos 19 Montadora Anônima | Trabalho em progresso 25 Daniel Rezende 28 Diana Vasconcellos 31 Eduardo Escorel | Nem tudo, nem nada 38 Giba Assis Brasil | Montagem e metáforas 44 Idê Lacreta 49 Jordana Berg | A primeira cena a gente nunca esquece 51 Karen Harley 55 Ricardo Miranda | Montagem ou pensando bem, apontamentos sobre a construção de espaços e tempos Os Filmes 63 Октябрь - Десять дней, которые потрясли мир | Outubro 64 Limite 65 ... A Valparaíso 66 Je t’aime, je t’aime | Eu te amo, eu te amo 67 Spalovač mrtvol | O cremador 68 Duel | Encurralado 69 The conversation | A conversação 70 Grey Gardens 71 Idade da Terra 72 Der riese | O gigante 73 The kiss | O beijo 74 Videogramme einer revolution | Videogramas de uma revolução 75 Le Tombeau d’Alexandre | Elegia a Alexandre 76 71 Fragmente einer chronologie des zufalls | 71 Fragmentos de uma cronologia do acaso 77 The film of her | O filme dela 78 Histoire(s) du cinéma | História(s) do cinema 79 Alone.Life wastes Andy Hardy 80 O signo do caos 81 Isto não é um título 82 O dedo 83 Kristall | Cristal 84 Film ist. a girl & a gun | Filme é. uma garota e uma arma 86 Créditos



A APRESENTAÇÃO



A CABEÇA É UMA ILHA

A mostra Cinema de Montagem pretende aprofundar e evidenciar o trabalho de criação na ilha de montagem, seja o realizado de forma solitária (apenas o diretor) ou em colaboração estreita (diretor - montador). Para tal, foram elaboradas duas propostas distintas. Uma circunscrita a um país – nove montadores brasileiros escrevem sobre a sua experiência e/ou perspectiva da montagem e do cinema; outra abrangente – vinte e dois filmes independentes do ano, proveniência, gênero ou duração. Numa mostra deste porte, onde a esfera de possibilidades parece infinita, foram delineados critérios demarcados, tendo em vista a composição de um painel de obras que tenha a montagem - seu trabalho e conceito - visível, de forma transformadora e recriadora. Critérios demarcados mas inequivocamente subjetivos, pois proveem de três curadores imbuídos no seu gosto particular e com uma carga referencial díspar. Nos filmes agendados para exibição é possível deparar-se com vários estilos de abordagem do material bruto (importância histórica ou origem) e de montagem, com uma seleção concentrada nos objetos em si, na relevância que supomos terem em termos de contribuição artística e técnica. A mostra abre com Limite, um filme brasileiro que a partir de quase nada inventa quase tudo. Afoito às convenções narrativas, a sua nervura encontra na montagem o 13


eco de uma visão impressionista, propondo uma viagem perceptiva e imagética. A sua apresentação será acompanhada por música ao vivo, composta especificamente para o evento, num ato único e performático. Ao analisarmos as obras que integram o corpo da mostra, é evidente o número de trabalhos que têm como seu centro a capacidade de invenção ou experimentação (... A Valparaíso; Je t’aime, je t’aime; Spalovač mrtvol; Idade da Terra; 71 fragmente einer chronologie des zufalls; Histoire(s) du cinéma; O signo do caos; Isto não é um título; O dedo), ou a quantidade de trabalhos que emergem de material de arquivo (Der riese; The kiss; Videogramme einer revolution; Le tombeau d’Alexandre; The film of her; Histoire(s) du cinéma; Alone.Life wastes Andy Hardy; Kristall; Film ist), ou a quantidade de trabalhos que têm na força braçal da montagem e na perseverança do visionamento a sua matriz (Октябрь; ... A Valparaíso; Duel; Grey Gardens; Der riese; Videogramme einer revolution; Histoire(s) du cinéma; Kristall; Film ist). Estas linhas gerais correspondem a um interesse particular de montagem, a algumas possibilidades de trabalho sobre a imagem e o som, sendo a sua apresentação mais um passo para a reflexão e discussão deste lugar fundamental que é a ilha e sua cabeça. Deixamos um agradecimento especial a todos os amigos que indicaram filmes, e aos montadores que tão generosamente contribuíram com as suas impressões escritas. A Curadoria

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OS TEXTOS



9 montadores, 9 estilos, 9 textos

Nove montadores brasileiros responderam ao convite da mostra e redigiram textos inéditos sobre a sua relação com a montagem. Provenientes de diferentes escolas e com diferentes estilos de montagem (e de escrita), as suas palavras ampliam o conhecimento e o acesso a esse lugar secreto que é a ilha de montagem, a cabeça do montador. A todos agradecemos a disponibilidade e a dedicação. Para situar cada um dos intervenientes, apresentamos alguns títulos de filmes em que colaboraram e ajudaram a construir. Anônima é montadora. Daniel Rezende é montador. Montou filmes de Fernando Meirelles (Cidade de Deus, 2002; Blindness, 2008), de Walter Salles (Diários de motocicleta, 2004; Água negra, 2005, On the road, 2012), de Cao Hamburguer (O ano em que meus pais saíram de férias, 2006), de José Padilha (Tropa de elite, 2007; Tropa de elite 2, 2010; Robocop, 2013), de Terrence Malick (The tree of life, 2011), entre outros. Diana Vasconcellos é montadora. Montou filmes de José Alvarenga Jr. (Os fantasmas trapalhões, 1987; O casamento dos trapalhões, 1988; Os heróis trapalhões, 1988; Robin Hood trapalhão, 1990), de Tizuka Yamasaki (O noviço rebelde, 1997; Xuxa requebra, 1999; Gaijin – ama-me como sou, 2005), de Hugo Carvana (O homem nu, 1997; Apolônio Brasil – O campeão da alegria, 2003; Casa da mãe Joana, 2008), de Miguel Faria Jr. (O Xangô de Baker Street, 2001; Vinícius, 2005) de Daniel Filho (Primo Basílio, 2007; Tempos de paz, 2009; Chico Xavier, 2010), de Vicente Amorim (Corações sujos, 2011) entre outros. 17


Eduardo Escorel é diretor, crítico, professor e foi montador. Dirigiu, entre outros, Paulo Moura - Alma brasileira, 2013; Montou filmes de Joaquim Pedro de Andrade (Macunaíma, 1969); Glauber Rocha (Terra em transe, 1967); Leon Hirszman (São Bernardo, 1971); Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer, 1984), João Moreira Salles (Santiago, 2007), entre outros Giba Assis Brasil é montador e professor. Montou filmes de Jorge Furtado (Ilha das Flores, 1989; Houve uma vez dois verões, 2002; O Homem que copiava, 2003; Meu tio matou um cara, 2004; Saneamento básico, o filme, 2007), de Carlos Gerbase (Tolerância, 2000; Sal de prata, 2005; 3 Efes, 2007), de Ana Luiza Azevedo (Antes que o mundo acabe, 2009), entre outros. Idê Lacreta é montadora. Montou filmes de Carlos Alberto Prates (Cabaré mineiro, 1980; Noites do sertão, 1982), de Ruy Guerra (Ópera do malandro, 1985 – em parceria com Mair Tavares), de Suzana Amaral (A hora da estrela, 1985; Hotel Atlântico, 2009), de Tata Amaral (Um céu de estrelas, 1996; Através da janela, 1998; Antônia, 2006; Hoje, 2011), de Aluízio Abranches (Um copo de cólera, 1999), de Paulo Sacramento (O prisioneiro da grade de ferro, 2003; Riocorriente, 2013 – ambos em parceria com o diretor), de Joel Pizzini (Glauces - estudos de um rosto, 2002; 500 almas, 2004), entre outros. Jordana Berg é montadora. Montou filmes de Daniela Broitman (Marcelo Yuka no caminho das setas), de Sérgio Bloch (Mini Cine Tupy), de Maria Ribeiro (Domingos), de Ricardo Calil e Renato Terra (Uma noite em 67), de Eduardo Ades (A dama do Estácio), de Eduardo Escorel (O tempo e o lugar), de Renato Terra (Fla x Flu), de Joana Nin (Cativas), e todos os filmes dirigidos por Eduardo Coutinho a partir de 1998. Karen Harley é montadora e diretora de documentários. Montou filmes de Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e urubus, 2005; Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009 – codireção Karim Ainouz; Era uma vez eu, Verônica, 2012), de Cláudio Assis (O baixio das bestas, 2007; A febre do rato, 2011), Murilo Salles (O fim e os meios, 2013), Lina Chamie (Os amigos, 2013), Matheus Nachtergaele (A festa da menina morta, 2008), Mika Kaurismaki (Moro no Brasil, 2002; Brasileirinho, 2005; Miriam Makeba/Mama Africa, 2010), João Jardim (Janela da alma, 2001 – codireção Walter Carvalho), entre outros. Ricardo Miranda é montador, diretor e professor. Montou filmes de Paulo César Saraceni (Amor, carnaval e sonhos, 1972; Anchieta, José do Brasil, 1978; Ao sul do meu corpo, 1982; O gerente, 2011), de Arthur Omar (Triste trópico, 1974; Congo, 1972; O Som - tratado de harmonia, 1985), de Glauber Rocha (A Idade da Terra, 1980), de Ivan Cardoso (O segredo da múmia, 1980), de Joel Pizinni e Paloma Rocha (Anabazys, 2007), de Helena Ignez (A canção de Baal, 2008), entre outros.

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MONTADORA ANÔNIMA Trabalho em Progresso

24 de maio Fechei o trabalho! Aceitaram exatamente o cachê que eu pedi, sem nenhuma negociação ou choradeira. Deve ser porque queriam muito que fosse eu a editar esse filme. Não. Burra. Provavelmente aceitaram assim tão rápido porque era muito abaixo do que tinham orçado. Se deram bem. Fecharam rápido antes que eu mudasse de ideia. Podia ter pedido mais. Mas como saber? Vou perguntar ao Felipe quanto ele ganha por semana pra ver se estou cobrando pouco. Ou muito. Pensando bem, claro que o Felipe não vai querer me falar quanto ganha. Ninguém fala. O diretor não pôde ir à reunião porque estava descansando após o stress de filmagem. Mas a produtora me passou tudo. Ou quase tudo. Me perguntei se a produtora não estava cansada também, após a filmagem. Me disseram que eram aproximadamente 70 horas de material bruto. E que eram duas câmeras. 25 a 29 de maio Melhor momento do trabalho. Já fechei. Já tenho um job garantido. Ainda não estou sofrendo por causa disso. É como um candidato após ter ganho a eleição e que só vai ser empossado em janeiro.

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30 de maio Falo com o diretor no telefone. Tem roteiro? Sim. Não acredito! Vai ser o primeiro documentário com roteiro que vou pegar. Ô pessoa de sorte. 70 horas não é tanta coisa assim. Me envia o roteiro por e-mail? Claro. 31 de maio O roteiro, na verdade, é um argumento feito há 2 anos para um edital. “O filme fala da minha vontade de filmar o cotidiano de pessoas anônimas...” Ah entendi. Não sei porque ainda acredito quando dizem que tem roteiro. 03 de junho Chegam os HDs aqui em casa. 4 HDs de 1 tera USB 2.0?! Devolve. Sem condições. Eu sei que era mais barato, mas não vai rolar. A produtora pode usar esses HDs de backup pra alguma coisa. Ok, aceitaram mandar um HD de 4 tera. As decupagens estão chegando. Dou uma olhada e imagino que foram contratadas pessoas cursando o 2º ano do ensino fundamental 1 para esse serviço. Todo tipo de erro, de compreensão, gramática, grafia. O personagem diz Al Pacino, o decupador escreve Au Casino. E coisas piores, impublicáveis. Tudo bem, vou corrigindo pelo caminho, se der tempo. Mas peraí, falaram 70 horas de material. Isso aqui tem 140 horas. O porquê de tantos terabytes. Ah, mas são 70 em cada câmera. E disseram que as câmeras estavam sempre no mesmo evento. Só não disseram que, apesar de estarem no mesmo evento, não estavam filmando a mesma coisa dentro deste mesmo evento. Já ferrou todo o meu orçamento. Começamos mal. 10 de junho Momento da minha assistente começar a se ferrar. Importar, converter, sincar e organizar 140 horas. Ufa, ainda bem que não sou eu. Enquanto ela faz isso, ganho um tempo no outro filme que estou montando. Não dá pra viver com um filme de cada vez. Vamos de dois em dois. E uns comerciaizinhos. E uns trailerzinhos. 26 de junho Começo a ver o material. Caderninho novo, com capa coloridinha. Pedi para organizar por dia de filmagem. Ainda não sei qual seria o melhor critério, então esse, pra começar está bom. Bem, não vai dar tempo de assistir as 140 horas e só depois começar a selecionar. Vou ter que colocar em prática a minha intuição ninja e já assistir fazendo alguma seleção. Depois eu repesco o que tiver ido pro lixo muito cedo. Não posso chamar esse trabalho de “limpar o material”. O Eduardo Escorel proibiu, argumentando que o material não estava sujo. Já vi que foi filmado com aquela câmera de foto que faz filmes de 12 minutos. Que 20


bom, em geral o material dessa câmera vem 30% fora de foco. Já é 30% a menos pra escolher. Começando a ver... hummm. Não sei porque, sempre que estou nessa etapa o tempo não anda. Me disperso a cada 10 minutos. Não é que o material não seja interessante. É que no resto do planeta tem muita coisa acontecendo. Ok, vou desligar o e-mail e o Facebook. E o celular vou colocar na outra sala. Entrevistas. Muitas entrevistas. Milhares de entrevistas. 29 de julho Pronto, tudo visto e reduzido. O Escorel diz que o material não está sujo porque ele não viu esse aqui. Mas tudo bem. Reduzi o que consegui assim numa primeira tacada e vamos ao filme. Filme, qual filme? São muitos filmes. Muitos assuntos, muitos tudos. Não sei pra onde ir. Ligo pro diretor e digo que já vi tudo, que podemos conversar. 01 de agosto Café bonitinho perto de casa. Da casa dele. Muita filosofia. Muitos desejos, muitas coisas que não encontrei no material. Aliás quase nada do que ele falou está lá. Será que faltou material para ser importado? Ou será que isso que ele sentiu na filmagem não está impresso? Ou será que vi material de outro filme e não esse do qual ele está falando? Num segundo momento, tento levar a conversa para um caminho mais objetivo. Vamos começar por onde, contar qual história dentre todas (não, todas não cabem... eu sei que são incríveis, que são personagens maravilhosos...). Não posso falar ainda do que acho que não vai ficar, primeiro porque é muito cedo e posso estar errada, e segundo porque posso já criar uma resistência desnecessária. Vou ouvindo, tentando ver como vou sair desse primeiro momento. Na verdade, o diretor ainda está no momento em que sua vaidade está lhe cegando, sob o impacto da filmagem. Proponho montar algumas sequências do filme e que ele apareça para se integrar a esse processo logo após. Ele acha ótimo porque inclusive precisava fazer um trabalhinho na Conspira rapidinho e esse tempo vai encaixar perfeitamente. 30 de julho Me vejo de novo só com o material e vazia. Com medo. Aquela velha e conhecida sensação de “desta vez não vou conseguir”. Começo a montar as sequências. Começo a inventar o que poderia ser considerado uma sequência. Abandono o Final Cut e vou para a mesa pensar na estrutura disso tudo. Não, volto pras sequências, pois a partir delas vou sentir de verdade o filme. Afinal de contas, só estive com o material uma única vez e no fundo não cheguei a dominar seu conteúdo como deveria. Ok, uma olhadinha no Facebook pra relaxar. Olhou e fez log out.

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19 de agosto Marcamos, o diretor e eu, para vermos algumas sequências montadas e conversarmos um pouco mais. Ele se decepciona com tudo. Mas e aquele plano da senhora fazendo café na cozinha tão poético? Match frame. Vamos no bruto checar. Não existe mesmo. Tem um no final mas o foco está doce, tá fora de foco demais (a câmera de foto...). Será que se perdeu? Não, porque os números dos planos estão seguidos. É, não tem mesmo. Desculpe. Me sinto culpada por isso, mas a culpa não é minha. Esse é um momento sempre difícil. O diretor se depara com o seu material. Com o que considera sua própria incompetência. O material é o que é e não o que ele imaginou. Como se posicionar nesse momento? Nada a fazer. Somos todos assim. Tratar com carinho tudo isso. Não julgar o diretor nem em pensamento. Aliás, passei a falar do filme como nosso. E passou a ser mesmo. 30 de agosto Depois de muitas conversas com o diretor, a teoria tá toda lá. Entendi tudo. Li livros a respeito. Pesquisei na internet, estou expert no assunto. Mas daí até ter uma ideia de que filme é este, vai um longo caminho. Mas não tem jeito, preciso seguir. Pensando, acordando no meio da noite para escrever um pedaço da estrutura. Experimentando coisas que não estão no lugar certo para ter a oportunidade de me surpreender. Assiste, refaz, assiste, refaz. Não posso começar a dublar os personagens. Isso será sinal de que não estou mais vendo de verdade. Só eu que fico perdida assim, ou tem uma fórmula que ensinam na universidade e que eu não aprendi? Minha sensação é que estou sempre começando do zero. Nada do que usei nos filmes anteriores servem de base pra esse. Tenho inveja de uma irmã médica que vê o paciente, pede o exame, descobre a doença e dá o remédio. E, ainda assim, se o paciente morrer, pode não ser culpa dela, afinal todo mundo morre mesmo e as doenças muitas vezes são incuráveis. 5 de setembro Vou indo aos trancos e barrancos, como uma cega bêbada tentando achar alguma parede para se escorar. E de repente temos um copião! Dizem que tem um anão que trabalha à noite nas ilhas de edição, consertando cenas, construindo estruturas. O amigo invisível de adultos editores. Vamos assistir a esse corte. Muito, mas muito problema. Uuuh! Tá longe pacas. Mas pelo menos temos de onde partir as críticas, as possibilidades clareiam. 17 de setembro Mais duas semanas trabalhando e sonhando com o anão. Mais perto, já dá pra mostrar pros amigos mais íntimos. Temos um amigo crítico que vai gostar de ver nesse estágio e pode ajudar. É um risco, porque se ele não gostar, mesmo sendo amigo, pode ficar com má vontade no lançamento, mesmo que o filme mude completamente. Arriscamos pois estamos já bastante desesperados. O crítico gosta. Com ressalvas. Ok, menos mal. Manda suas críticas por e-mail. Três 22


dias depois manda uma mensagem fofa dizendo que o filme não sai da sua cabeça. Acreditamos, que remédio. A autoestima está tão baixa que até acreditamos em críticos. Começamos a fazer pequenas exibições do filme para um amigo aqui, um especialista ligado ao tema acolá, pessoas “de outra classe” para ver se o filme é popular... Existe sempre a fantasia de que o filme vai ser assistido pelas massas. Alguém, quase por acaso, dá uma ideia que destranca o problema de como começar o filme. Pronto, demos um passinho a frente, por favor. E de acaso em acaso, de amigo em amigo, vamos chegando a algo parecido com o que costumamos chamar de filme. 22 de setembro Exibição no Arteplex, num horário de manhã, com aquele clima meio clandestino, não sei porque. As luzes do cinema não acenderam ainda e não tem o ruído do público no hall. Só nós. E convidamos também a advogada do clearance, que nos manda tirar 65% das músicas. Mas o filme sem essas músicas não é nada. Ouve bem. Vamos começar a mendigar a cessão das músicas, oferecer todo tipo de crédito pelo qual ninguém se interessa. 30 de setembro Mais uns ajustes e o filme fica pronto. Faz aí o omf pro som, os quicktimes de referência etc etc. Mas isso não estava incluído no trabalho. A assistente já foi embora. Não vou estragar a relação agora que o filme já deu certo né? Vamolá. Faz o epk? Faz uns teasers rapidinho? Faz uma legendagem desse pedacinho aqui pra mandar prum amigo influente do IDFA? E outro em francês pro Réel... Faz mais um dvd? Um não, cinco. Faz um com marca d’água pro patrocinador? 5 de outubro Finalizador reclamou da timeline, da organização das pistas de áudio. Fez mil perguntas sobre codec que eu não soube responder. Também avisou que não dá estabilizar toda aquela sequência, fundamental pro filme, mas muito tremida. Também disse que aquela imagem escura não tem informação e que vai ter que ficar aquela bosta mesmo. O fotógrafo propõe passar o filme todo para preto e branco e o diretor está quase embarcando nessa ideia. Socorro. 4 de novembro Noite de estreia. Não vou com uma roupa muito glamorosa porque afinal isso é documentário. Não pode. Fica fora do contexto. Um pouco de maquiagem. Bem pouquinho. Penteado com cara de amarrei o cabelo pra cima sem ligar. O filme não é mais meu, mas recebo os convidados como se fosse. Aquele vinho branco na tacinha de plástico que já vem com a azia do dia seguinte. Finger food, última moda. A sala lotada. Voltou gente. Que bom, bombou. Subo no palco com a equipe, num misto de vergonha, timidez e uma sensação real de que aquilo tudo também me concerne. Não a festa, mas o filme. A luz se apaga, fujo da 23


sala. Vou comer um caldo verde num carrinho que vende sopas na rua ao lado. N茫o existe a menor hip贸tese de rever esse filme, nunca mais na minha vida. Volto para o anonimato da minha ilha. Volto para um novo material bruto de 200 horas. Volto pra minha agonia, onde sou feliz.

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DANIEL REZENDE

Se é que milagres existem, pode-se dizer que há vários tipos de pessoas que realizam feitos incríveis que não possuem explicação científica. Curandeiros, feiticeiros e religiosos são apenas alguns deles. A lista é imensa e varia de acordo com a crença de cada um. Mas em nenhuma dessas listas você encontrará montadores. Esses profissionais, que muito provavelmente passaram a infância brincando com blocos de montar, Lego, quebra-cabeça e cubo mágico, são, algumas vezes, confundidos com salvadores que vão encontrar milagrosamente uma narrativa que segure o espectador em uma poltrona por mais ou menos duas horas. A frase “a gente salva na montagem” é comumente pronunciada em muitas produções cinematográficas no país. Se fosse possível resumir o ofício de um montador em apenas uma frase, poderíamos dizer que ele conta uma história usando o que de melhor foi filmado pelo diretor. É ele quem decide, dentre todo o material, o que acabará se tornando parte do filme. Pois o que não foi montado, não é filme! Ainda que tenha sido indispensável no processo de filmagem, tudo o que não entra no corte fica virtualmente em alguma parte da escura sala de montagem. Um filme é construído em três etapas principais: o roteiro, a filmagem e a montagem. Por três vezes, um filme tem a chance de se reinventar para encontrar sua dramaturgia. Isso se dá com muita técnica, esforço, talento e, às vezes, acaso. 25


Eu virei montador por acaso. No final da minha adolescência, pensava em dirigir filmes, o que parecia uma loucura em meados dos anos 90, pois naquela época o cinema nacional estava mais próximo de um sonho distante do que de uma realidade em 24 fotogramas por segundos. Me formei em comunicação social e comecei a trabalhar com comerciais. Fiz câmera em teste de elenco, arquivamento de planilhas de produção, até que comecei a finalizar os comerciais do Fernando Meirelles, que já era um dos diretores mais conceituados do mercado brasileiro. Depois de muitas noites sem dormir, resolvi passar mais uma em claro e editar, mesmo sem saber direito como fazer, um vídeo de “erros de gravação” de um comercial que havia sido filmado com uma grande estrela de Hollywood. O Fernando gostou e me convidou para montar alguns de seus comerciais. Para a minha sorte, ele é um diretor que entende muito de montagem e acabei aprendendo tanto com ele, que essa parceria durou alguns anos, e em 2001 fiz a transição de publicidade para longa-metragem, com Cidade de Deus. Eu, que nunca havia montado nada mais longo do que 30 segundos, tinha nas mãos um longa metragem inteiro, e não fazia a menor ideia do que estava me esperando. Cada montador tem o seu método de trabalho, mas pode-se dizer que os princípios da montagem são os mesmos em todas as diferentes linguagens e em diferentes plataformas de edição. O montador assiste ao material filmado, seleciona o que há de melhor, monta a cena, assiste com o diretor e faz os ajustes necessários. No longa metragem o processo é realizado em duas etapas. A primeira, assim como na publicidade, é exatamente como descrito. A segunda etapa, que não existe na publicidade, é quando todas as cenas são colocadas na ordem do roteiro e o montador e o diretor assistem ao primeiro corte do filme. E é aí que o trabalho do montador realmente começa, no momento em que ele está trabalhando a narrativa, o ritmo e a dramaturgia. Entre as escolhas que o montador deve fazer estão: a decisão do porque uma cena vem depois da outra, porque cada uma delas merece estar no filme, a árdua tarefa de balancear os personagens de acordo com o peso de cada cena e costurar todas as cenas para formar um único filme. Esse é o momento mais bonito do trabalho do montador. É quando o filme começa a existir! A ideia de um filme frenético, com muitos cortes, é geralmente associada a um filme bem montado. Eu acredito que, independente do número de cortes ou se eles são perceptíveis, se você não desviou a atenção da estória, este é um filme bem montado. Se em nenhum momento você olhou para o relógio, ou lembrou da conta que precisa pagar amanhã cedo, ou da comida do seu animal de estimação que você esqueceu de deixar naquela manhã, esse filme tem muitas qualidades, mas seguramente é um filme extremamente bem montado. Mas um filme bem montado não depende apenas da qualidade ou experiência do montador. O cinema é um trabalho em conjunto, influenciado por vários fatores: o porque do filme existir, o que ele quer dizer, porque o diretor se interessou por contar essa história, e como ele vai fazê-lo. É muito difícil um filme ser bom se o roteiro é ruim, o diretor não sabe que história quer contar, os atores não entenderam os personagens, a fotografia é deficiente ou a direção de arte é equivocada. Se todos esses 26


erros anteriores chegarem nas mãos do montador, não lhe sobram muitas alternativas. É claro que existem truques que ele pode utilizar para esclarecer confusões na história ou esconder furos de roteiros, atuações ruins e cenas mal filmadas. Afinal de contas, um montador é basicamente um manipulador e como todo bom manipulador, ele não pode deixar que o ser manipulado perceba suas manobras. Ainda que todos os envolvidos no filme tenham acertado, e o material filmado seja excelente, é essencial que haja uma sintonia muito forte entre o montador e o diretor. O processo de montagem precisa de tempo de reflexão e desconexão com os processos anteriores. Depois de filmado, quem manda no filme é o material. O diretor tem que confiar no seu montador e dizer a ele qual é o filme que gostaria de fazer, o que ele gostaria de dizer com cada cena. O montador deve então traduzir essa sensação e essa vontade do diretor, usando o material filmado. O montador tem que enxergar dentro desse material, o que de melhor existe para construir a história que o diretor quer contar. A relação diretor-montador é muito próxima e delicada. Quando essa relação é boa, o filme ganha com isso. Se eles não concordam ou, principalmente, não se respeitam, o filme acaba sofrendo. O montador deve defender seu ponto de vista e suas colocações para fazer o melhor filme possível, mas sempre respeitando o limite de que quem tem a palavra final é o diretor. Na constante arte da escolha que envolve a realização de suas tarefas, o montador está sempre lutando entre dois caminhos antagônicos: a racionalização e a intuição. Ele vai precisar das duas, mas eu, quando tenho que escolher, uso primeiro a intuição. Ela está ligada à percepção das coisas, algo que às vezes não se consegue explicação lógica, é o que se sente. E não é isso que queremos ao criar uma obra de arte, no caso um filme? Que as pessoas sintam? Ao selecionar o material confio sempre no que sinto, mesmo que não saiba explicar o porquê. Depois penso quantas vezes eu quiser sobre o assunto. Por isso, eu sempre peço ao diretor para assistir ao material e fazer o primeiro corte de cada cena sozinho. Depois assistimos a cena montada e prosseguimos juntos até chegar ao corte final. Acredito que se assistirmos ao material, e fizermos o primeiro corte em conjunto, eu vou fazer logo de saída exatamente o que está na cabeça do diretor. Não que isso seja um problema. Mas, iniciando sozinho, o montador tem a oportunidade de trazer coisas que o diretor talvez não tenha pensado. Assim, o diretor estará livre para apenas sentir e pode tornar-se, nem que seja por uma única vez, um espectador do próprio filme. E, caso a intuição do montador tenha falhado (e falha muitas vezes), os dois podem conversar muito e racionalizar quantas vezes quiserem, chegando ao resultado final. Se estiver no material, o montador e o diretor vão encontrar a maneira de contar aquela história. De fazerem a sua arte. Juntos! Mas só se o filme estiver no material. São muitas as tarefas do montador, mas fazer milagres, não é uma delas.

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DIANA VASCONCELLOS

Cheguei pela primeira vez a um set de filmagem através de amigos da faculdade. O interesse foi imediato. Era 1980, Belo Horizonte, e eu cursava a faculdade de Comunicação Social. Além de não conhecer ninguém que tivesse estudado cinema, eu mesma também não havia considerado essa possibilidade. Entrei pela porta da produção, que acolhia muito bem quem tivesse a paixão, energia e disposição. Eu estava com 20 anos, e tinha tudo isso de sobra. Conheci a sala de montagem dois anos depois, já no Rio de Janeiro. Por falta de um profissional disponível eu precisei organizar o material do filme no qual estava trabalhando: Noites do Sertão, de Carlos Alberto Prates. Na faculdade cheguei a editar um pequeno filme publicitário numa moviola 16mm, o que me deu confiança suficiente para a tarefa que eu tinha que cumprir por urgência da produção. A sala era muito pequena, nada confortável, cheia de latas de filme com cheiro forte, mas vi que tinha chegado onde todo o trabalho da filmagem fazia sentido. Tive contato com montadores e assistentes e vi outras salas onde outros filmes estavam sendo montados. O maior de todos os encantos que o cinema me proporcionou foi o que eu imaginei antes de conhecer: como acontecia a montagem do filme. Decidi ficar. 28


Não foi difícil fazer a curva, havia poucos assistentes de montagem no mercado. Trabalhei muito, não só como assistente de montagem mas também de edição de som. Foi uma época intensa. Além de fazer vários filmes seguidos, decidi tirar o atraso por ter frequentado pouco os cineclubes. Fui atrás dos clássicos e lia tudo que conseguia encontrar. Queria aprender mais e por isso me preparei, e fiz uma volta ao set, dessa vez como continuísta. O filme era Banana split, de Paulo Sérgio Almeida, e foi o primeiro convite que recebi para montar. Muitas coisas se transformaram desde que comecei a fazer filmes e sei que continuarão a mudar, mas outras tantas permanecem e reafirmam o sentido essencial do trabalho de montagem. As transformações são complexas, na mesma medida em que a nossa relação com imagens, sons e conteúdo estão sofrendo grandes mudanças e alterando a capacidade de atenção e aprofundamento, mas não acredito que a necessidade desse aprofundamento tenha diminuído. O processo de captação e finalização digital abriu e vem ampliando sem parar as possibilidades de intervenção na imagem, impensáveis nos tempos do negativo. Não me refiro a efeitos mirabolantes claramente identificáveis, mas a intervenções que o espectador nem percebe. A simples alteração de um enquadramento, a colocação ou eliminação de elementos em cena, composição de uma imagem usando duas ou três, tudo isso, que encontra solução simples com os recursos digitais, não para de alterar o olhar do montador, que avalia, escolhe, descarta e pode recriar uma imagem. Penso nisso apenas como mudanças, sabendo que estamos perdendo e ganhando o tempo todo. Contar histórias continua sendo a nossa função. Trabalhar com o tempo que pode ou não ser medido é o maior desafio da montagem. Quanto dura o dia, a noite, os anos, os minutos, um sonho, o susto, a dor, a espera, o medo, o amor? No cinema tudo isso é unidade de tempo inventada. Sempre foi. É fonte inesgotável. Refletir sobre montagem é refletir sobre a percepção do tempo. Ao longo dos anos vi diminuir a presença do diretor na sala de montagem. O processo da película permitia que se acompanhasse passo a passo o trabalho do montador, fosse marcando um corte, buscando material nas sobras ou projetando um rolo. Nos computadores é impossível, senão irritante, acompanhar a sucessão de imagens pulando na tela aparentemente de forma aleatória. Aqui também vejo perdas e ganhos. Precisei me acostumar a ficar grande parte do tempo sozinha e a tomar mais decisões. Fui descobrindo processos de elaboração diferentes, solitários e algumas vezes mais livres. Montagem é um laboratório permanente, um trabalho de garimpo e também de construção. Enfrentar a sala de montagem é estar disposto a experimentar, ousar, duvidar, mudar de ideia várias vezes por dia e investir fundo na opção mais sedutora e convincente, sem nenhuma garantia de que irá funcionar. O trabalho é duro e exigente. O nosso 29


próprio limite é posto à prova com muita frequência. A boa relação diretor/montador é determinante. É uma associação, acolhimento mútuo. A parceria criativa só se realiza plenamente com confiança e liberdade para correr riscos. As minhas experiências mais gratificantes foram aquelas em que conquistei maior cumplicidade com os diretores. Tenho grande admiração por eles. Gosto muito de lembrar do meu começo quando, assistente iniciante, passei longas jornadas de trabalho com uma montadora com quem o diálogo era rico e fluía com facilidade. Um dia, fui surpreendida com uma interrupção quase abrupta. Ela parou a moviola, virou-se pro fundo da sala onde eu estava organizando sobras de copião, e me falou com severidade: “Não sei se você sabe, mas o que se fala na sala de montagem não pode sair daqui.” Entre assustada e divertida com a atitude dela, assenti, e até hoje obedeço.

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Eduardo Escorel Nem tudo, nem nada1

Os meios disponíveis para montar e finalizar um filme mudaram muito ao longo da história do cinema, tendo sofrido alterações marcantes nos últimos 50 anos. Os recursos técnicos atualmente disponíveis eram inimagináveis até cerca de trinta anos atrás, tendo levado, inclusive, ao surgimento de um novo especialista – o finalizador –, até então inexistente, ao menos com esse nome. Além dos meios, com o surgimento do registro digital, a própria natureza da imagem cinematográfica, como também o que foi chamado de “experiência fílmica”2, passaram por mudanças profundas. Mas, por maior que tenha sido essa alteração dos recursos técnicos, da natureza da imagem e da “experiência fílmica”, até que ponto esse processo levou, de fato, a uma alteração dos procedimentos expressivos e afetou a linguagem do cinema em si mesma? Houve uma ruptura instaurando uma nova linguagem como consequência dessas inovações? Em outros termos, as novas ferramentas disponíveis afetaram a subjetividade do realizador?3 A diferença entre o analógico e o digital, e a progressiva 31


substituição de um pelo outro, provocou alguma “perda”4, afetando a noção de tempo, de duração, de ritmo, de andamento, conforme a diretora e fotógrafa Babette Mangolte5 afirmou há uns dez anos atrás? Há outras “perdas” a computar diante da substituição da base de prata pelo pixel, e do desaparecimento do obturador? • O que teria mudado do começo do cinema - quando Frank Capra6 começou a aprender, em 1920, a ferramenta que ele chamou, nas palavras dele, de “fundamental, a montagem cinematográfica”, “(…)uma arte tão nova quanto o próprio cinema”7 – até os dias atuais? É verdade que dificilmente alguém terá de novo a mesma experiência de Capra ao chegar à sala de montagem: “Lá estava o diretor”, Capra escreveu em sua autobiografia, “a camisa empapada de suor, película enrolada no pescoço e debaixo dos pés, blasfemando e pisoteando os pedais da coladeira.”8 De lá para cá, a montagem deixou de ser, de fato, um artesanato pesado e desgastante, para se tornar uma atividade predominantemente intelectual, lúdica e prazerosa, tendo como suporte softwares sofisticados, e sendo exercida em salas com ar condicionado – não por respeito aos profissionais mas por exigência dos equipamentos. Com o surgimento da computação gráfica e o desenvolvimento das técnicas digitais, a imagem, por sua vez, além da mudança de suas características físicas e químicas, perdeu sua natureza de testemunho. À medida que os filmes abstratos da década de 1920 ficaram em segundo plano, prevalecia a noção de que a imagem cinematográfica era o testemunho de eventos reais ou imaginários. O cinema nascente chegara a ser anunciado e acolhido como uma testemunha irrefutável. “Pode-se dizer que a fotografia animada tem um caráter de autenticidade, de exatidão, de precisão que somente ela possui. Ela é por excelência a testemunha ocular verídica e infalível,”9 escreveu Boleslas Matuszewski ainda no final do século XIX. Em retrospecto, salta aos olhos a ingenuidade dessa afirmação, e é difícil não sorrir ao menos diante de tamanha credulidade quanto ao dogma da imagem cinematográfica ser considerada uma representação fiel do que a câmera observa. Entre tantos exemplos possíveis, para comprovar a ampliação do campo de 32


possibilidades do cinema, e relativizar a noção da imagem como testemunho, bastaria lembrar do chamado documentário de animação Valsa com Bashir10, de 2008. Mas será que ainda assim essa mudança de natureza da imagem se reflete nos procedimentos expressivos específicos da linguagem cinematográfica? O aumento das possibilidades criativas - proporcionado pela expansão dos recursos técnicos propicia uma inovação de linguagem? Das três mudanças mencionadas – a dos meios, a da natureza da imagem e a da “experiência fílmica” – essa última parece ser a que vem tendo maiores implicações, embora ainda mal assimiladas e processadas. A multiplicação de mídias afeta tanto a forma do filme quanto a maneira do espectador de ter a “experiência fílmica”11. Composição do frame, decupagem e ritmo da montagem dependem do tamanho da tela e das condições em que o filme será visto. Isso para não mencionar as possibilidades de interação que surgiram entre filme e espectador. • Apesar de ter havido períodos da história do cinema em que “a montagem foi proclamada como sendo ‘tudo’”12, montadores costumam sofrer de um certo complexo de inferioridade. Talvez isso se deva, em parte, aos períodos “em que a montagem tem sido considerada como sendo ‘nada’”13. Deixando de lado as raízes psicanalíticas desse sentimento que persiste em nossos dias, o bom senso recomenda considerar que “a montagem nem é ‘nada’, nem é ‘tudo’”, e como Eisenstein escreveu é “necessário lembrar que a montagem é um componente tão essencial da realização de filmes quanto todos os outros elementos eficazes da cinematografia.”14 Durante muito tempo, os historiadores do cinema ignoraram a contribuição dos montadores15. Isso teria ocorrido por que “mesmo quando bem sucedido, [o trabalho do montador] é imperceptível”, escreveu Kevin Brownlow. Não terá sido à toa que o livro dedicado ao editor britânico Stewart McAllister recebeu o título de Retrato de um homem invisível16. Daí ao complexo de inferioridade é um pulo. Três reflexos desse complexo são mais frequentes: a crença de que montagem é toda poderosa; a tendência dos montadores a serem críticos em relação aos diretores; a aspiração dos montadores a serem reconhecidos como autores do roteiro nos casos 33


em que o filme é estruturado na montagem. Mesmo sendo etapa decisiva da feitura de um filme, é ilusório considerar a montagem como toda poderosa. A principal tarefa da montagem é decifrar significações já contidas nas imagens e nos sons, conforme Andrei Tarkovsky preconizou. Ele discordava dos que “pretendem que a montagem seja o elemento determinante de um filme. Dito de outra forma, que o filme seja criado na mesa de montagem.”17 Para Tarkovsky, “a montagem não é, afinal de contas, senão a variante ideal de uma colagem de planos contida a priori no material filmado”. Montar um filme de maneira justa, correta, significa, para ele, “não romper a ligação orgânica entre certos planos e certas sequências, como se a montagem já estivesse contida nelas antecipadamente, como se uma lei interior regesse essas ligações, e em função da qual nós tivessemos que cortar e colar.”18 Ser crítico em relação ao diretor, por sua vez, vai contra algo essencial da criação cinematográfica – o fato de ser feita em colaboração. Mesmo que um dê a palavra final, normalmente o diretor, isso não diminui em nada a importância da contribuição do montador. Quanto aos montadores pretenderem ser creditados como roteiristas, em especial no caso de documentários, a reivindicação remete a um personagem imaginário de Woody Allen, obsessivo a ponto de fazer o roteiro das suas viagens depois de ter voltado para casa. Roteiro e montagem, sendo igualmente importantes, têm pressupostos diferentes. O roteiro supõe algo que ainda vai acontecer, ou a possibilidade de que algo aconteça – é uma hipótese, enquanto a montagem é feita a partir de registros visuais e sonoros pré-existentes que já trazem em si mesmos uma significação – é um trabalho analítico. • Quanto aos diretores, nenhum é digno do cargo se deixar de ser responsável pela montagem do filme que dirigiu. Diretores omissos, que deixam a montagem a cargo do montador, passam um atestado de incompetência para si mesmos. • Pensando nos decretos apocalípticos que acompanham a história do cinema, e que põe em dúvida, periodicamente, seu futuro – cinema sonoro, televisão, videocassete, imagem digital, para citar apenas algumas dessas sentenças fatais – vale lembrar de 34


Quarto 666, de Wim Wenders, filmado durante o Festival de Cannes de 1982. Antes dos depoimentos de vários cineastas comentando a crise do cinema e suas possibilidades de sobrevivência, Wenders nos oferece o plano geral de um majestoso cedro do Líbano que fica entre os trilhos do trem e a estrada, na entrada para o aeroporto de Orly, em Paris. O cedro “deve ter ao menos 150 anos”, diz Wenders em voz off. E completa: “Ele [o cedro] tinha visto o início da fotografia e toda a história do cinema, ao qual poderá muito bem sobreviver.” Assinalava, dessa maneira, o valor do que se preserva e permanece em face das novidades, muitas vezes efêmeras. Mas aos entrevistados, entre outras questões, Wenders pergunta: o cinema “em breve será uma forma de arte defunta?”. • Para o primeiro entrevistado, Jean-Luc Godard, “morrer não é mau. É um momento. Eu vou morrer. Será que minha arte vai morrer? […] É preciso partir. Isso é bom. Tanto melhor”, diz ele, lacônico e objetivo, como de costume. Mas talvez seja o jovem Michelangelo Antonioni19, aos 70 anos na época, quem dê a resposta mais lúcida e pragmática à questão de Wenders, dizendo ser “[…] verdade que o cinema corre perigo de morrer, mas é preciso considerar outras coisas. […] Nós devemos procurar nos adaptar àquela que será a exigência do espetáculo do futuro […] Provavelmente, todas essas transformações ocorrerão e não nos restará nada a fazer senão nos adaptarmos.[…] Eu creio que […] não será, afinal, tão difícil nos transformarmos em homens novos mais bem adaptados às novas tecnologias. É isso tudo que eu tinha a dizer.”20 Vinte e cinco anos depois, graças a Gustavo Spolidoro21, no documentário De volta ao quarto 666, o próprio Wim Wenders reavaliou seu pessimismo e reafirmou sua crença no valor do que permanece: “[…] o cinema sobrevive a nós. O filme [Quarto 666] sobreviveu ao Michelangelo, e agora este filme aqui vai sobreviver a mim. […] Na época em que Quarto 666 foi feito [1982] éramos todos pessimistas. O futuro do cinema não nos parecia bom. […] De fato, é incrível, quando eu penso o quão pessimista era nossa previsão em 1982, é incrível que o cinema se manteve tão bem. Ele não só ultrapassou nossas mais altas expectativas no período posterior, nos anos de 1990 e hoje no século 21, mas saiu sozinho do buraco em que se encontrava. O cinema está mais vivo do que nunca. […] Quanto ao futuro do cinema, eu não tenho medo algum, muito pelo contrário. Eu invejo os jovens que hoje podem 35


começar a fazer filmes, sua liberdade, suas possibilidades ainda não descobertas, advindas da tecnologia. Acredito que nós apenas arranhamos todo o potencial da tecnologia digital. […] Eu me alegro com todos os filmes que me demonstram que o cinema pode ser completamente redescoberto, e sempre pode haver descobertas e re-descobertas. Naquela época, nós pensamos que o vídeo, a televisão, iriam destruir a linguagem do cinema. Aconteceu exatamente o contrário. […] O cinema está novo, como sempre foi, pois as pessoas precisam do cinema.” Sem ser tão otimista, não deixa de ser um consolo saber que há quem pense assim. • 22 Em um livro publicado em 1956 , Roman Jakobson se refere ao cinema como tendo desenvolvido, “a partir das produções de D.W.Griffith”, sua capacidade “de variar o ângulo, a perspectiva e o foco das tomadas”, empregando uma gama sem precedentes de grandes planos sinedóquicos e de montagens metonímicas em geral, procedimentos que vieram a ser “suplantados por um novo tipo metafórico de montagem,[…]”. O desenvolvimento técnico do cinema – a informatização, o digital e a terceira dimensão – cria novas possibilidades estéticas, sem dúvida. Minha hipótese é que a linguagem do cinema permanece fundamentalmente a mesma de sempre. Quero crer que o cedro do Líbano centenário filmado por Wim Wenders, em 1982, continua lá, na entrada para o aeroporto de Paris, com sua folhagem perene e suas raízes profundas. A espécie é de grande longevidade, podendo viver durante séculos. • A pergunta final que se impõe é se devemos aceitar o desaparecimento da película como uma fatalidade. Há quem resista a isso. Para a artista britânica Tacita Dean, autora da instalação Film23, feita com filme 35mm, “proteger a película tornou-se uma plataforma [de luta]. Serei acusada de ser nostálgica por não gostar do digital”, ela diz. “Não há nada de nostálgico [nisso], [...] O que estou dizendo é que a película é uma mídia linda, uma mídia diferente, e devemos preservá-la.”

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1| Versão resumida da palestra de abertura do simpósio “A pós produção criativa”, realizado na Cinemateca Brasileira, São Paulo, em 9 de novembro de 2011. 2| Francesco Casetti, The filmic experience: an introduction. Paper resultante do seminário “Experience and reflexivity,” ocorrido em Yale, no semestre da primavera, em 2007. 3| Babette Mangolte, “Analog versus digital, the perennial question of shifting technology and its implications for an experimental filmmaker’s odyssey”, em Camera obscura camera lucida essays in honor of Annette Michelson, Richard Allen, Malcolm Turvey (ed.). Amsterdam: Amsterdam University Press, 2003. pp.261-74. 4| Babette Mangolte, Idem, p. 262 e seg. 5| Babette Mangolte é realizadora e diretora de fotografia experimental, nascida na França, residente em Nova Iorque. 6| Frank Capra (1897-1991), diretor, entre outros de Aconteceu naquela noite (1934), O galante Mr. Deeds (1936), Do mundo nada se leva (1938), A mulher faz o homem (1939), Adorável vagabundo (1941), A felicidade não se compra (1946). 7| Frank Capra, The name above the title. New York: Bantam Book, 1972. p.33-34 [Primeira edição: New York, Macmillan, 1971]. 8| Frank Capra, Idem, p.36. 9| Boleslas Matuszewski, Écrits cinématographiques. Paris, Association française de recherche sur l’histoire di cinéma • La Cinémathèque française, 2006. Une nouvelle source de l’histoire (1898), p. 9. 10| Ari Folman, 2008. Recorrendo a técnica de animação, Valsa com Bashir trata da guerra do Líbano, em 1982. 11| Francesco Casetti, The filmic experience: an introduction. p.4. 12| Eisenstein, volume 2, Towards a theory of montage. “Montage 1938” [publicado com o título “Word and image” em Film Sense]. Michael Glenny e Richard Taylor (ed.). London: British Film Institute,1991. p.296 13| Eisenstein, “Montage 1938”, idem. 14| Eisenstein, “Montage 1938”, idem. 15| Kevin Brownlow, The parade’s gone by… .Berkeley: University of California Press, 1968. p. 286 16| Dai Vaughan, Portrait of an invisible man – the working life of Stewart McAllister. London: British Film Institute, 1983. 17| Andrei Tarkovski, Le temps scelée, Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma, 1989. p.109; 18| Andrei Tarkovski, Le temps scelée, idem nota 21. 19| Michelangelo Antonioni, 29 setembro 1912 – 30 julho 2007. 20 | Menos de dois anos depois, Antonioni sofreu um derrame e perdeu a fala, tendo conseguido fazer ainda dois filmes, antes de morrer aos 95 anos. “É preciso partir”, como disse Godard. 21| De volta ao quarto 666 (15’, 2008), direção de Gustavo Spolidoro, concepção de Gustavo Spolidoro, Vicente Moreno e Alfredo Barros. 22| Roman Osipovich Jakobson, Essais de linguistique générale. Paris: Les Éditions de Minuit, 1963. Capítulo II – “Deux aspects du langage et deux types d’áphasies. Segundo capítulo de Fundamentals of language (La Haye,1956). Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 2007.p.58 23| The Unilever Series: Tacita Dean, Tate Modern, Turbine Hall, Londres, 11 outubro 2011–11 março 2012. “FILM is an 11-minute silent 35mm film projected onto a gigantic white monolith standing 13 metres tall at the end of a darkened Turbine Hall. It is the first work in The Unilever Series devoted to the moving image, and celebrates the masterful techniques of analogue film-making as opposed to digital.” [do site Tate Modern]. 37


Giba Assis Brasil Montagem e metáforas

Pouco tempo atrás, numa lista de discussão de um programa de montagem digital, eu li uma mensagem que era mais ou menos assim: “Alô, pessoal, preciso de ajuda. Acabei de instalar o programa [Final Cut] e já entendi como fazer para abrir o que eu filmei. Agora só falta aprender a tirar fora o que não interessa.” A tecnologia digital, embora não tenha alterado os princípios ou a lógica da montagem, revolucionou os processos pelos quais a montagem acontece, democratizando e simplificando imensamente o seu uso. Tanto que é possível formular uma ideia como esta: montar não é mais do que ter acesso ao que foi filmado e eliminar o que não for necessário. Mesmo sem concordar com a ideia, eu não tenho nenhuma saudade da moviola. Walter Murch, no livro Num piscar de olhos1, relata seu espanto ao ter sido confrontado pela primeira vez com um raciocínio semelhante, de um ex-colega de sua esposa, décadas atrás. Na época, Murch disse que estava estudando montagem de cinema e o tal colega comentou: “Sei. Montagem é quando se tiram as partes ruins do filme.” Murch conta que protestou, enfurecido, que montagem seria “muito mais do que isso: a estrutura, a cor, a dinâmica, a manipulação do tempo”. Hoje, 25 anos depois, ele diz que passou a respeitar essa “ingênua sabedoria”. De certa forma, montar é tirar as partes ruins; o problema é definir o que são estas partes ou - nos termos do meu jovem colega de lista de discussão - “o que não interessa”. 38


As formulações simplistas do espectador inglês dos anos 1970 e do aspirante a montador digital brasileiro recente não são muito diferentes de uma conhecida anedota, provavelmente apócrifa, relativa a um ilustre personagem do século XVI: segundo uma infinidade de fontes pouco confiáveis, ao ser perguntado como conseguia transformar um bloco de mármore na estátua de um cavalo (ou de um anjo), Michelangelo teria respondido algo como “fácil, só tirar do mármore tudo que não for cavalo”. Uma boa frase de efeito para fugir de uma pergunta sem muito sentido, mas que também revela uma concepção platônica da obra de arte. O cavalo, o anjo, Davi, Moisés, a Pietá, já estariam presentes, potencialmente, no bloco de mármore. Ao artista caberia apenas usar seus instrumentos para revelá-los aos nossos olhos. É claro que saber utilizar um martelo e um cinzel não é o suficiente para um escultor ser Michelangelo, assim como aprender a cortar, esticar, encolher e deslocar pedaços virtuais de filme numa linha de tempo não transforma qualquer operador de Final Cut num montador como Walter Murch. O limite desta comparação não está no talento, na experiência, na pré-visualização, no detalhismo - capacidades necessárias em ambos os casos - mas no fato de que o material filmado, por mais caótico que seja, sempre contém em si uma quantidade enorme de decisões humanas tomadas antes e durante a filmagem, muito diferente de um bloco de mármore. Ainda assim: a montagem pode ser pensada como um processo semelhante ao de esculpir em mármore? Acredito que sim, em alguns casos. Em vídeos de casamento, de aniversário, de formatura, certamente. Em reportagens, quase sempre. Muitas vezes também em documentários, quando o objeto principal é um evento com duração determinada - uma competição esportiva, um ritual religioso, um dia na vida de alguém. Do ponto de vista da montagem, direct cinema ou cinéma vérité são um pouco como mármore: a principal tarefa do montador é enxergar o cavalo que está no material filmado e eliminar o que não interessa, o que não é cavalo. Em outros casos, montar pode se parecer mais com uma técnica de escultura bem mais antiga do que o mármore: a argila, o barro. Aqui não se trata tanto de tirar, mas de moldar, juntar, justapor. Documentários que seguem um único personagem em situações diferentes, ou vários personagens numa situação única, ou uma série de depoimentos sobre um tema, ou tudo isso combinado em diversas proporções, são argila: a montagem parece mais “manual” do que “por instrumentos”, os blocos de sentido vão se formando aos poucos, a estrutura final é mais inventada do que descoberta, a pré-visualização do todo não é tão importante quanto o processo quase infinito de tentativa e erro na combinação das partes. Se somam a este caso, filmes de compilação ou filmes que usam muito material de arquivo, misturado às imagens produzidas pela equipe. Filmes experimentais, 39


por definição (embora, no universo do audiovisual, haja poucas coisas mais difíceis de definir do que um filme experimental). Filmes que trabalham com atores improvisando falas e situações são, talvez, argila grossa, menos moldável, mas ainda assim argila. Filmes de animação podem parecer argila, mas são montados quase sempre como mármore. Videoclipes (se é que vale a pena levar esta metáfora tão longe) são argila modelada no torno: a mão do montador conduz o material, mas é a música, girando, que lhe dá forma. Já filmes de ficção, na maioria dos casos e na maior parte do tempo, não são argila nem mármore: são Lego. Ou, mudando o ponto de aplicação da metáfora anterior: o processo de moldagem da argila (a criação da história original) ou de entalhe do mármore (a ficção baseada em fatos reais, a adaptação literária) se dá fundamentalmente na etapa de roteiro, e a maior parte do material chega ao montador como um conjunto de placas pré-moldadas, com formatos e encaixes previstos. Peças diferentes entre si, com infinitas possibilidades de combinação, mas cada uma delas já com uma forma pré-definida, ou talvez com uma gama de formas possíveis, limitada pelas decisões tomadas na filmagem ou antes. Cada uma das peças, um pequeno bloco de mármore, talvez. Não que o trabalho do montador seja ou “artístico” ou uma simples “brincadeira de criança”, dependendo do tipo de produto audiovisual envolvido. Mas é evidente que a tese do “filme construído na mesa de montagem”, já foi há décadas colocada no seu devido lugar, ao menos para quem faz ou entende como se faz filmes e programas de televisão: ninguém monta o que não foi filmado, embora o tempo todo se filme o que não estava planejado. Muitas vezes sem seguir o roteiro, montar um filme é descobrir o que realmente está no material filmado, aquilo que o diretor ou a equipe talvez não tenham enxergado, por continuarem acreditando que haviam apenas filmado o previsto. Cenas de diálogo, cômicas ou dramáticas, são, quase sempre, jogos de Lego extremamente complexos, em que o ajuste fino de cada peça (de imagem, de som) gera ou coloca em xeque aquilo que Murch reclamava como os componentes da montagem: a estrutura, a cor, a dinâmica, a manipulação do tempo. Ou, na formulação clássica de Reisz e Millar: a ordenação dos planos (a narrativa do filme), a escolha dos planos (a ênfase do filme), a duração dos planos (o ritmo do filme), o raccord entre os planos (a fluência do filme)2. Cenas de diálogo filmadas com mais de uma câmera e montadas simultaneamente numa mesa de corte – o caso de telenovelas, programas de entrevistas e muitos sitcoms - são jogos de Lego acrescidos da pressão do tempo - ou seja: são Tetris. Como no jogo de encaixar (de acordo com uma piada popular na internet), os problemas vão se acumulando e os eventuais acertos simplesmente desaparecem. 40


Cenas de ação, por não serem conduzidas pelo diálogo, dão ao montador ainda mais opções a cada instante - as peças do Lego são menores, mais maleáveis, quase podem ser moldadas, como argila. Cenas de luta, tiroteios, cenas de sexo etc, são formas específicas de cenas de ação. Sequências de perseguição são cenas de ação com seu cenário expandido. Suspense, como ensinou Hitchcock3, consiste apenas em criar uma expectativa de ação e adiar ao máximo o momento em que ela acontece. Vale o mesmo raciocínio para todos os outros casos. (Antes da invenção do som sincronizado, todas as cenas eram de ação. O conceito eisensteiniano de montagem, pensado basicamente para o cinema mudo, era pura argila. Para Eisenstein, a montagem começava antes da filmagem.) Um extremo da montagem de ficção se dá no caso da cena de um plano só: seja ele um plano fixo ou um verdadeiro plano-sequência4, o trabalho do montador passa a ser apenas cortar as pontas de uma única peça de Lego, definindo seu ritmo e fluência pela relação com as cenas anterior e posterior. Ou, mais ainda, no filme de um plano só (A arca russa, de Aleksandr Sokurov, 2002; Ainda orangotangos, de Gustavo Spolidoro, 2007; etc), a montagem se reduz ao seu “grau zero” - se não incluirmos no conceito de montagem algumas trucagens, manipulações de cor e todo o trabalho com o som. O extremo oposto seria o da montage sequence, termo anglo-saxão para definir um estilo específico de montagem, diferente do editing hollywodiano e aparentado à montage francesa - originalmente soviética: “uma sucessão rápida de imagens independentes umas das outras [...] utilizada para sugerir a passagem do tempo, mudança de local da ação ou qualquer outro tipo de transição”5. No caso, argila. Barry Malkin, montador de vários filmes de Coppola e Arthur Penn, chama atenção que “É muito mais fácil montar cenas de ação, quando você pode ir de qualquer lugar para qualquer outro lugar, e as opções são muito mais numerosas a cada momento, do que uma cena de diálogo com quatro ou cinco personagens sentados em volta de uma mesa.” Mas, apesar disso, “as cenas de ação são as que normalmente ganham prêmios”. “Eu mesmo”, admite Malkin, “sempre que fui nomeado para algum prêmio [duas vezes no Oscar e uma no BAFTA], foi por cenas de ação, pela coisa rápida.”6 Há muitos filmes sobre cinema, mas não tantos em que apareça o processo da montagem. Em Verdades e mentiras (1973), é o próprio Orson Welles quem opera a moviola, cortando e colando pedaços de seu filme. Em A noite americana (François Truffaut, 1973) e All that jazz (Bob Fosse, 1979), os montadores Martine Barraqué e Alan Heim desempenham seus próprios papéis, contudo parecem meros operadores do equipamento: quem pensa a montagem são apenas os diretores Ferrand (o próprio Truffaut) e Gideon (Roy Scheider). O último magnata (Elia Kazan, 1976) é um dos raros filmes em que o montador aparece como personagem, ainda que por poucos segundos, e de uma forma muito particular. Após a projeção de um copião problemático, acendem-se as 41


luzes e o produtor Brady (Robert Mitchum), já saindo da sala, diz que realmente é preciso cortar 20 minutos do filme. Como o montador não responde, ele comenta: “Que droga de filme! Até o montador pegou no sono.” Só então vemos o montador Eddie (ator não creditado), ainda sentado em sua poltrona, os olhos fixos na tela, morto. “Como assim, morto?”, reclama o produtor. “Eu não ouvi nada.” E seu assistente explica: “Acho que ele não quis atrapalhar a projeção.” No documentário norte-americano The cutting edge: the magic of film editing (Wendy Apple, 2004), o montador Richard Marks aponta esta cena de O último magnata, que ele próprio havia montado, como “uma maravilhosa metáfora para o processo de montagem: silencioso e anônimo”. Mas talvez o cinema europeu recente tenha criado uma metáfora ainda melhor. Em Abraços partidos (Pedro Almodóvar, 2009), a trama que inicia a fábula, mas que só é revelada bem adiante no filme, envolve um triângulo amoroso cinematográfico, digamos, clássico: o diretor Mateo Blanco (Lluìs Homar) abandona o filme que acabou de rodar para fugir com a atriz Lena (Penélope Cruz), que era casada com o produtor Ernesto Martel (José Luis Gómez). Quinze anos depois, já cego, Mateo descobre por que sua obra, afinal, foi um fracasso: para se vingar da dupla traição, Martel instruiu o montador a montar o filme inteiro usando sempre a pior tomada de cada plano. A metáfora aqui é dupla: sobre a importância da montagem, que arruinou um filme e uma carreira; e sobre a irrelevância do montador, que fez apenas o que lhe ordenaram. (aviso de incorreção política) Pior que isso só a piada da ambiciosa e inescrupulosa atriz portuguesa, que queria ganhar um papel e deu para o montador. (fim do trecho politicamente incorreto) “Montadores são pessoas socialmente desabilitadas”, diz o polonês Michal Leszczylowski, que montou para Tarkovski e Lukas Moodysson7. “Não é normal passar muito tempo sozinho em uma sala, com pessoas que parecem estar vivas, mas que na verdade não estão. […] uma disfunção que os montadores têm: eles conseguem se relacionar com pessoas que não são realmente pessoas.” É possível que a montadora Thelma Schoonmaker, nascida na Argélia e parceira de Martin Scorsese em mais de 15 filmes, concorde com seu colega polonês. De todas as formas, ela extende a discussão: “Eu tenho a impressão de que a montagem é uma das melhores ocupações do mundo. Nós recebemos um material que foi elaborado por muitas pessoas, a partir de muito trabalho duro e criativo. Nós tomamos centenas de decisões por dia para transformar este material em um filme que vai ser visto por milhares de pessoas. A responsabilidade é enorme, mas a recompensa é ainda maior. Não há nada melhor do que sentar em uma sala de cinema e observar o público reagindo ao filme que a gente ajudou a colocar na tela.”8

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1| MURCH, Walter: Num piscar de olhos, ed. Zahar, 2004, p. 22. 2| REISZ, Kerel & MILLAR, Gavin: A técnica da montagem cinematográfica, ed. Civilização Brasileira, 1978, pp. 37-40 3| HITCHCOCK, Alfred & TRUFFAUT, François: Entrevistas, ed. Brasiliense, 1986, p. 47. 4| AUMONT, Jacques & MARIE, Michel: Dicionário teórico e crítico de cinema, ed. Papirus, 2003, p. 231. 5| REISZ, Kerel & MILLAR, Gavin: op. cit., p. 109. 6| MALKIN, Barry (entrevista), in: OLDHAM, Gabriela: First cut: conversations with film editors, University of California Press, 1992, pp. 330-331. 7| LESZCZYLOWSKI, Michal (entrevista), in: CRITTENDEN, Roger: Fine cuts: the art of european film editing, Focal Press, 2006, p. 201. 8| SCHOONMAKER, Thelma (entrevista), in: The art and craft of film editing: a critical symposium, edição especial da revista Cineaste, abril de 2009.

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Idê Lacreta

Como vim parar nessa vida de montadora O primeiro contato que tive com a montagem foi num projeto pessoal destinado a crianças cursando o primeiro grau. Na época, eu buscava novas formas de abordagem para as aulas que dava numa escola de arte. Eu havia acabado de me formar em Ciências Sociais, mas o contato com a arte sempre foi presente na família e despertava nessa época todo o meu interesse. Uma de minhas irmãs morava no Rio de Janeiro e trabalhava com cinema. Resolvi me mudar para lá e começar a fazer pesquisas – de conteúdo e de realização – para um curta metragem piloto que serviria para os meus trabalhos. Reuni irmãs, amigos e filhos de amigos para me ajudarem a realizá-lo. Tudo corria bem, até que o amigo que me ajudaria a editá-lo precisou viajar e, pior, sem data de retorno. Fiquei apenas eu, com vários pequenos rolos de filme super 8mm, o equipamento para montá-los e uma enorme vontade de ir adiante e terminar o processo. Foi a minha sorte. Depois de dias trancada num quarto com um pequeno editor, cuja velocidade era dada manualmente, uma coladeira e vários pedacinhos de durex já perfurados, alcanço o produto final. Descubro o que é a montagem e fico tão fascinada pelo processo que decido neste momento não fazer outra coisa. 44


Fui atrás de conhecimento. Assim, tive o privilégio de trabalhar com montadores excelentes, entre eles Eduardo Escorel, que – ao meu ver – desenvolveu um método de organização do material e de técnica de montagem muito lógico e funcional. Como trabalhávamos em moviolas Steenbecks, que eram mesas de trabalho horizontais, a reprodução em rolos distintos de som e imagem exigia todo um cuidado para que o sincronismo fosse mantido ao longo da edição. Era finalzinho dos anos 1970, e as máquinas de pietagem ainda não haviam chegado no Brasil. O que me fascina Construir uma história a partir de fragmentos de imagens e sons que - num jogo contínuo de combinações – vão ganhando ritmo, unidade e clareza. O que fica? O que sai? Quais as escolhas que favorecem a construção da narrativa? Quais as escolhas que favorecem a construção de um personagem, que expressam melhor suas intenções, suas emoções? Tudo entra nessa avaliação: a fotografia com sua luz e posicionamento de câmera, a qualidade da captação de som, a interpretação dos atores, a cenografia. Sendo assim, a montagem é o momento em que – junto com o diretor – pensa-se novamente o filme por inteiro. Claro que dependemos do que foi elaborado antes, mas mesmo em filmes com decupagens mais fechadas, não é raro descobrir novos significados e articulações; decidir a duração dos planos, sua justaposição, a supressão ou acréscimo de falas, a inclusão de música ou novos sons. Tudo isso acaba por revelar aspectos da história e da construção dos personagens que muitas vezes não foram previstos. É o momento de se verificar o acerto de determinadas escolhas, minimizar eventuais falhas - do roteiro ou de filmagem. Ainda que não haja uma autonomia completa, é o momento em que existe de fato a possibilidade de se reescrever o roteiro. Lembro que quando montei o filme Um céu de estrelas, dirigido por Tata Amaral, a preocupação inicial era encontrar as nuances de interpretação que pudessem dar conta do perfil dos seus personagens centrais, Vitor e Dalva. A ideia era equilibrar e fortalecer as atuações: valorizar as reações, as mudanças repentinas de comportamento, fossem os desequilíbrios de Vitor, ou o escapismo de Dalva, e, a partir disso, ir encontrando o tempo necessário para que a tensão entre os personagens crescesse até atingir o seu clímax. O roteiro já previa toda uma construção sonora extracampo para narrar, principalmente, o cerco policial. A câmera permaneceria dentro da casa, junto aos dois personagens, e, a partir do som, se perceberia a ação dos policiais desde sua chegada até a invasão final. 45


Aqui, a montagem deveria encontrar e estabelecer o tempo necessário para o futuro (e excepcional) trabalho de edição de som. No entanto, a construção sonora da saída de uma vizinha que nunca chegamos a conhecer, foi uma decisão tomada durante o trabalho de montagem: um carro se aproxima, buzina, ouve-se uma porta abrindo e fechando, uma menina se despede e o mesmo carro parte. Isto para citar apenas um exemplo. Já no Antônia, filme também dirigido por Tata Amaral, as questões principais eram de outra ordem. O filme se passa na periferia de São Paulo e mostra o cotidiano de quatro amigas que querem viver do rap. O desejo de imprimir verdade e naturalismo ao filme leva Tata a escolher um elenco de atores não profissionais, oriundos deste universo, e isto determina toda a forma de realização. Ao invés do roteiro clássico, havia o que Tata chamou de “uma partitura de ações cotidianas”, que ela foi retrabalhando ao longo de vários ensaios. Com a ideia de deixar os atores o mais à vontade possível, não havia marcações rígidas, nem diálogos definidos. A câmera e o som deveriam ir atrás dos atores e não o inverso. Por conta dessa abordagem, rodados com a câmera na mão, os planos duravam mais, e conjugavam várias ações e diálogos que, na maior parte das vezes, variavam de lugar nas diferentes tomadas. Além disso, quase todas as cenas continham início, meio e fim, resultando num vasto material que deveria ser novamente decupado no espaço da montagem. Muitas cenas caíram, outras foram criadas, outras ainda viraram flashback, e a voz over não estava prevista desde o início. O trabalho de edição, que num primeiro momento foi simultâneo às filmagens, pôde inclusive intervir na forma de captação: alguns planos com câmera fixa, mais curtos e com ângulo mais fechado, surgiram por conta desse processo. O que me incomoda Os novos formatos de produção, salvo raras exceções, destinam pouco tempo para a realização de um bom trabalho de montagem. Hoje em dia, na maioria das vezes, os filmes chegam com excesso de material e carentes de elementos necessários para o desenvolvimento da narrativa. Se falarmos em documentário então, a falta de tempo se torna ainda mais grave. Sabemos que sua narrativa e sua linguagem se constituem, quase sempre, no espaço de montagem. O que fazer então se temos um excesso de material e não há tempo suficiente para sequer conhecê-lo, que dirá para refletir sobre ele e explorá-lo? É certo que a tecnologia facilitou o acesso e manipulação do material, mas o tempo de construção da narrativa permanece o mesmo e depende de muitos fatores que vão além da habilidade ou agilidade do montador. Hoje em dia, mal temos tempo de ver projetado o resultado final de uma montagem, menos ainda para aperfeiçoá-la!

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Outra coisa que me incomoda é a impossibilidade de termos o diretor mais presente durante a montagem; não o tempo todo, evidentemente, eu adoro trabalhar sozinha; fico mais à vontade nas minhas tentativas e experimentações, mas sinto falta da sua contribuição para além das indicações de suas intenções. É como um jogo de complementações, onde um dos jogadores lança uma ideia, que desperta no outro outra ideia e assim sucessivamente, até que o melhor resultado se apresente, principalmente em se tratando de documentário. Outro contrassenso, para mim, diz respeito à finalização: trabalhamos o corte final, com a precisão de um fotograma, e nossa edição offline segue para uma casa de finalização onde toda uma equipe vai reeditá-la através de várias indexações que, muitas vezes, trazem pequenas diferenças de corte; é verdade que as finalizadoras têm evoluído enormemente, mas ainda encontro diferenças e cada vez menos espaço para checá-las e corrigi-las, se necessário. O meu processo de criação Eu gosto de trabalhar explorando ao máximo o material existente. Extrair o melhor do que foi filmado é, para mim, a função principal da montagem; por essa razão, preciso de tempo para conhecer o material, para entendê-lo, para explorar suas possibilidades. Num primeiro momento selecionar o que vai ser usado é o meu foco principal. Escolher os planos fortes em relação ao enquadramento, à luz, à composição dos elementos dentro do quadro; me preocupo muito com a interpretação dos atores, seus ângulos, sua continuidade dramática. Depois, encontrar a melhor estrutura dentro de cada cena e das cenas na estrutura geral. Primeiro seguindo a ordem indicada pelo roteiro, para depois questioná-la, confirmá-la ou propor alterações. Claro que com a tecnologia disponível os tempos mortos já vão sendo eliminados, os diálogos vão sendo ajustados, mas a tendência é primeiro definir o desenho da narrativa antes de buscar o ritmo ideal. Se é uma cena com estrutura dramática, eu prefiro inicialmente trabalhá-la apoiada apenas nos diálogos e na mise-en-scène, porque sinto que a música pode disfarçar pontos fracos, esconder falhas e deficiências de construção, seja pelo ritmo que se ganha, ou pelos climas e sentimentos que ela intensifica ou desperta. Evito trabalhar com músicas de referência, porque sempre me frustro com o resultado final. A intuição é o que me guia desde o início, e depois a reflexão, a razão. Acredito que um diálogo vai se estabelecendo entre o filme e o montador, onde o filme vai se revelando, indicando caminhos, e, nessa medida, o distanciamento é sempre benéfico, para validar o que vai sendo construído.

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Também, para mim, é importante criar algum grau de convivência com o diretor, sentir sua confiança, conhecer suas preferências, seus sentimentos em relação ao filme, para ir ajustando-os aos meus; é como se uma terceira pessoa surgisse, fruto da nossa identificação em relação ao material. Claro que nem tudo é assim fluido nessa relação; por vezes acontecem brigas, discussões, negociações, mas sendo a montagem o espaço onde novamente se pensa o filme por inteiro, é o filme que fala mais alto, ou ao menos, que deveria falar!

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Jordana Berg

A primeira cena a gente nunca esquece

Hoje editei minha primeira cena de sexo. Cenas de sexo, em geral, pertencem à ficção, mas essa era uma cena de um documentário. Cenas de sexo em documentários são roubadas ou então são ficção. Esta era uma cena de amor num lugar inóspito. Árido, frio, barulhento, incômodo. Este lugar é uma cadeia. Esta cena não existia no material bruto, a princípio. Nasceu das conversas com a diretora durante a edição. Um filme que fala do amor e de como vivenciá-lo em situações limite. Em determinado momento do filme se entende que os casais tem direito a um encontro reservado, em quartos numa ala da cadeia chamada de “motel”. Nesse motel não há câmeras de vigilância e as portas têm chave. Mas como o barulho é insuportável, não se esquece onde se está. A visita íntima é uma etapa da visita que as mulheres fazem aos seus maridos, presos nas penitenciárias, e que dura algumas poucas horas. Em geral, ela ocorre no final. Após esse momento, os casais ficam mais 40 minutos juntos, aproximadamente, e as mulheres vão embora para só voltar daqui a uma semana. A proposta de filmar esse momento íntimo foi feita a um casal (ele preso) e aceita. Não foi roubada. E é feita de insinuações. Não existe um desejo de maximizar a cena ao nível do obsceno. Não se busca a pornografia, e não se chega nisso. Nem na filmagem, nem na edição. A cena é consentida, mas isso não impediu que se desse de verdade. O casal foi esquecendo a filmagem lentamente, a medida em que a temperatura do romance foi subindo e o desejo foi ficando incontrolável. Mas a câmera não esqueceu 49


seu limite. Permaneceu sóbria e dentro do que foi combinado. As partes dos corpos que seriam mostradas, por exemplo. Então era preciso ter esses dois elementos na cena: o amor e o desconforto. O tesão e a pressão. A intimidade e a distância. Optei por colocar o amor na imagem e o desconforto no som. Nesse lugar o casal só tem direito a 30 minutos de privacidade. Portanto não é uma relação sexual normal. As preliminares são rápidas e eficientes, às vezes já aconteceram nos abraços e segredinhos trocados no pátio da penitenciária, onde ocorre o resto da visita, ou, às vezes, até inexistentes. O possível prazer que emana dessa cena vem carregado de desconforto. O ruído externo se faz presente e incomoda. Desfaz até certo ponto o clima romântico que o casal luta para manter. Optamos por não colocar nenhuma música, pois nesse lugar ela é proibida, e também porque decidimos não potencializar nada com artifícios externos à cena, que tem seus próprios elementos sonoros muito fortes. Monto a cena começando com as preliminares e deixo que a cena vá “esquentando” lentamente com o tempo. Porém, me dou conta de que a montagem, mais do que nunca, tem que reproduzir o tempo real em escala reduzida, neste caso, sendo importante manter a proporcionalidade de cada momento em relação ao todo: preliminares rápidas e o ato em si ocupando a maior parte do tempo. A cena é curta e parece incompleta, inacabada. A cena inteira acaba se passando praticamente durante o momento do clímax. Após a filmagem com a câmera, a diretora se retira do aposento para que a intimidade finalmente reencontre seu lugar, e propõe deixar o gravador de som gravando sozinho dentro do espaço. O casal aceita. Esse som foi usado na cena. O ato foi mais ou menos dublado com esse som, que era “roubado”. A cena é basicamente montada com insinuações, onde o espectador tem que completá-la sozinho, na imaginação, se puder. Ao mesmo tempo em que se sente a opressão do lugar, a falta de tempo para que as coisas se dessem naturalmente, era preciso tentar fazer com que o espectador, no meio do caos, entre sons de gritos de presos de outras alas, portas de ferro batendo, sons típicos de walkie talkie de cadeia, e também de outros casais nos quartos ao lado, pudesse abstrair, como fazem os casais nessas situações. Porém, não havia recursos explícitos para tal empreitada. Sem música e um barulho estridente e desagradável. Os corpos imperfeitos. A luz possível. O espaço mínimo. O ruidoso silêncio dessa cena vai se encarregar das explicações. Nesse momento em que escrevo, o filme está em montagem e nem sei se a cena permanecerá no corte final.

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KAREN HARLEY

Me tornei montadora por acaso e aos poucos. Tinha um desejo de ser fotógrafa e uma paixão por cinema. Morava em Olinda, numa época em que os filmes de arte passavam sábado de manhã num cinema no centro do Recife, o Trianon. Nos outros dias da semana era um cinema pornô. Foi lá que assisti pela primeira vez os filmes de Fellini, Kurosawa, Truffaut, Pasolini. Fiquei com gosto de quero mais. Vim morar no Rio de Janeiro, virei cineclubista na faculdade de jornalismo da Puc e rata de outros cineclubes da cidade. Comprei uma câmera VHS e fui trabalhar na Magnetoscópio, produtora e sala de exibição de videoarte e performance. Na Magneto, fazia desde programação da sala de vídeo a carregar cabo de micro câmera em externa de gravação. Foi a minha escola. Lembro-me da sensação de espanto que tive ao entrar numa ilha de edição pela primeira vez. Uma ilha U-matic, linear, imprecisa, escura e gelada. Mas que dava sentido e vida a um material caótico que eu mesma tinha gravado. O meu primeiro trabalho num set de filmagem foi como fotógrafa still num documentário ficcional sobre Arthur Bispo do Rosário. Rubens Correia era o Bispo. João Paulo de Carvalho, o montador. Fui ser assistente de João Paulo. Foi aí que comecei a entender o que era de fato montagem ou edição. Achei dificílimo! Como nunca fui de gostar de coisas fáceis, me apaixonei. Passava madrugadas assistindo João Paulo, que me ensinou a ver, a descobrir a potência de uma imagem e juntá-la com outra. E a ouvir. João Paulo dizia que edição é som. Depois trabalhei com Mair 51


Tavares em longas de ficção. Mair me ensinou a ver o ator, prestar atenção em seus olhos e em sua voz, encontrar o seu ritmo. Aos poucos, fui me dando conta que era numa sala escura e fechada que iria passar grande parte da minha vida. Sempre que começo a montar um filme me dá um certo pânico se realmente vou conseguir fazê-lo da melhor forma possível. A isso soma-se uma incerteza se vou me entender bem com o diretor, quando é alguém com quem eu nunca trabalhei. A relação diretor/montador é determinante para o trabalho de montagem. É uma relação longa, talvez o montador seja a pessoa da equipe com quem o diretor passe mais tempo junto, e uma relação onde deve haver confiança e cumplicidade. Eu preciso me sentir livre quando estou montando. Livre para escolher, propor e criar, e preciso que o diretor me dê esse espaço. Não consigo me concentrar, nem sentir o ritmo de uma cena, quando tem alguém ao meu lado me dizendo o tempo todo o que fazer. Preciso de um tempo sozinha na ilha de edição para poder criar intimidade com o material, ouvir os atores e os silêncios, sentir o ritmo que o filme pede. Com cada diretor que trabalho existe uma dinâmica diferente. Uns gostam de ficar na ilha, sentados no sofá observando ou trabalhando em seu laptop, disponíveis para qualquer ajuda que eu possa precisar. Com outros, assistimos o material juntos, conversamos sobre o seu potencial, daí me deixam trabalhar e voltam um tempo depois. Alguns só entram na ilha depois de um primeiro corte feito. Já montei filmes com o diretor morando em outro país, onde tinha um assistente que lincava o corte que eu enviava por email, e conversávamos por Skype. Às vezes, me sinto como uma psicanalista ouvindo relatos de frustração, dificuldade ou êxtase. Às vezes, sou diplomata para poder falar sobre o material sem constrangimentos e gerenciar crises. Às vezes, advogada do diabo. Às vezes sou xingada, às vezes amada. Mas sempre aprendo com todos os diretores, e tenho consciência de que estou ali para ajudar o diretor a fazer o melhor para o filme. A última decisão é sempre do diretor. Para isso é preciso ter a capacidade de ser flexível e poder ver as coisas de outra perspectiva. Tenho a sorte de trabalhar com diretores que pensam o cinema de forma mais autoral. E todos bastante diferentes entre si. Quando comecei a trabalhar com Cláudio Assis, o primeiro desafio era conquistar uma cumplicidade, falar a mesma língua, já que os nossos encontros anteriores tinham sempre um certo atrito. Depois de algumas semanas juntos, trabalhando na montagem do Baixio das bestas, ele fala: esse filme agora é teu. Tome e receba! Claudão faz isso com toda a equipe. Traz as pessoas ao filme de forma visceral e, mesmo sabendo exatamente o que quer, faz questão de ouvir e de entender o que o outro tem para propor. Durante a filmagem do Febre do rato, Cláudio criou 34 novas cenas (além das que estavam no roteiro) que eram nomeadas de “Epiderme” na claquete e não tinham lugar determinado na estrutura narrativa. Todas as cenas eram epidermes profundas, lindas e tinham que entrar no filme. O comentário de Cláudio: pensei em você durante a filmagem e não quis facilitar. Achou que ia ser fácil? Te vira! E ria. Cinema, Aspirinas e urubus foi o primeiro filme que recebi o roteiro em processo e tive que comentar e escrever sobre ele. Foi muito bom poder refletir sobre o filme antes 52


de ser rodado e começar a criar uma intimidade com ele antes mesmo de ver qualquer imagem concreta. Durante a filmagem, Marcelo Gomes me chamou para a locação, no interior do sertão paraibano, me trancou num quarto de hotel e me fez assistir 28 horas de material bruto. Depois de algumas horas, nas quais eu só tinha visto cenas de interior do caminhão, ele queria saber se o filme montava. Fiquei insegura, mas disse que sim, o filme montava. Algum jeito havia de ter. Lembro que, na ilha de edição, ficamos procurando o início do filme durante muito tempo. Experimentamos várias coisas. Quando o início finalmente apareceu, junto com a música, a impressão era de que ele sempre esteve ali, que não podia ser de outra forma, era parte orgânica do filme. Mas, por algumas semanas, o plano inicial tinha sido descartado e o filme o chamou de volta. Viajo porque preciso, volto porque te amo, filme dirigido por Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, tem uma particularidade em relação a outros filmes que montei. Ele foi filmado para ser um documentário. Acabou virando uma ficção por meio do relato em primeira pessoa de um personagem que nunca vemos, só ouvimos. O relato em off foi escrito em cima das imagens captadas dez anos antes e se transformava, era reescrito, ao longo da montagem. O filme tem uma relação de extensão do diário de viagem do personagem Zé Renato. Era como se ele próprio tivesse captado aquelas imagens. Nosso trabalho foi imaginar como seria o filme montado por Zé Renato. Não deveria ser uma montagem precisa, e sim uma investigação vinda do sentimento e precariedade do personagem. Um filme que se constituísse também de erros e imprecisões. Em Era uma vez eu, Verônica, também dirigido por Marcelo Gomes, a preocupação foi estar sempre próximo da personagem, Verônica, contrabalançando sua intimidade com sua vida pública, seus pensamentos em off com o que é dito explicitamente. Uma outra camada é a que o espectador preenche nos momentos de silêncio da personagem, construindo significado e emoção através do não dito. Tínhamos que construir o equilíbrio emocional entre as múltiplas linhas narrativas centradas em torno da personagem. O filme tem também um forte tom de crônica e, assim, foi possível trabalhar a ordem dos acontecimentos numa linha narrativa de sensações, nos libertando assim de uma estrutura preestabelecida no roteiro. A montagem é a terceira e última escritura de um filme, sendo a primeira o roteiro e a segunda a filmagem. Montar é muito mais trabalhar o filme em sua estrutura geral do que o corte de planos em si. Às vezes, as cenas estão ótimas separadas mas não funcionam juntas, ordenadas como um todo. Nem sempre o que era eficiente no roteiro funciona na montagem. Eu leio o roteiro, de preferência antes da filmagem, mas na hora de montar eu o esqueço. O que me conduz é o material que foi filmado e, principalmente, os atores. Gosto de prestar atenção aos detalhes e sutilezas da interpretação dos atores, e tento fazer com que a narrativa do filme venha mais por meio da emoção do que por informações concretas. O ritmo dos atores e das imagens, os ruídos e os silêncios vão determinar a cadência do filme. Gosto muito de trabalhar 53


com música e, em geral, as coloco depois das cenas montadas. Dependendo da cena, monto já com a música ou referência para a trilha sonora. Mas não são todos os filmes que pedem música. Não acho que tudo deva ser explicado para o espectador, ele deve poder dar sentido às entrelinhas da narrativa. O filme deve se sustentar numa lógica emocional: tento desconstruir cenas que teriam originalmente uma função meramente burocrática. Isto serve para documentários também. Os personagens mais interessantes têm camadas e conflitos que muitas vezes se percebem mais no silêncio e nos “erros” do que em seu discurso objetivo. Em geral, os documentários demandam mais tempo de imersão no material bruto para poder se achar a estrutura. O filme é, de fato, escrito na montagem, já que o roteiro é uma indicação do que poderá acontecer na filmagem e que nem sempre acontece, para o bem e para o mal. Lembro-me do que Murch, montador, descreveu ao assistir a enorme quantidade de material bruto (230 horas) de Apocalipse now. Transitar por um universo enorme de material é como avançar lentamente por uma floresta tropical, encontrar algumas clareiras, parar, e entrar novamente na mata fechada. A essa imagem eu acrescentaria o facão na mão para abrir as picadas que poderiam, com muita sorte, levar a um rio que ajudasse a conduzir o documentário. Quando me perguntam qual o meu estilo, eu não sei responder. Acho que não tenho estilo. Tenho preferências. Cada filme tem algo de novo e diferente do anterior e procuro sempre estar em sintonia com ele. Preciso criar intimidade com o filme para me sentir parceira. Preciso mergulhar e investigar o material bruto para descobrir a singularidade daquele filme e perceber o seu ritmo. É um processo intuitivo. Penso em Tarkovsky quando ele diz que a duração dos planos e o ritmo do filme já estão contidos no material filmado. Cabe ao montador achar esse tempo intrínseco ao filme e permitir que os planos se juntem espontaneamente.

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RICARDO MIRANDA

Montagem ou pensando bem, apontamentos sobre a construção de espaços e tempos.

“A história não é somente uma ciência, mas também uma forma de memória”

Walter Benjamin

Matinal momento da escrita. A Montagem, um caso para se pensar, depois de 40 anos nesta atividade de construir filmes. Pensar a forma. Experimentar o inesperado e vomitar ideias, que procurem a transgressão desta forma. De dentro do pequeno carro, observo o passar da história pelas circunvoluções da Serra de Conservatória, Serra da Beleza, Quilombo Santa Izabel, Valença. Vou para fazer um pequeno filme. Vou como um Still, um observador fotográfico, um apontador de urgências, acompanho a equipe que ali vai realizar um filme sobre o Quilombo, a terra e a cultura, com direção de Clarissa Ramalho. Maio. Faz frio, chuva fina e tenho que pensar num artigo, crônica, texto acadêmico ou teórico sobre montagem. O carro avança e a experiência sensorial imagética destes dias me fez rever um pouco esta ideia de falar puro e simplesmente de CINEMA. Faço cinema, penso cinema, mas penso e faço cinema quando penso a História. 55


Ao viajar por curvas sinuosas, radicais, na contemplação das casas de fazenda, dos pátios de café, das capelas com seus santos barrocos, perdidos pelos altares, das senzalas da casa, dos ambientes de estar e receber, e dos mercados, deparo-me com representações dos nossos dias. Fico com uma ideia muito clara de como o passado interfere no nosso agora, e de como a história irá possibilitar a compreensão do que faço agora e do meu entorno. Vamos remexer o passado, o presente, a pontualidade significativa do ato de trabalhar o cinema por olhares diversos e da criação. Do trabalhar com as realidades, com o pensamento, com a história, estórias e personagens do real. Personagens da mentira. Nos locomover no tempo e nos encontrar na Estação da Ciotat ou na saída da Fábrica Lumière em Lyon, ou com algum esquimó perdido no gelo singular do extremo da Terra. Rever a Baía da Guanabara, pelo olhar de Afonso Segreto, em 1898. Ver a lua ferida por Méliès. Observar a realidade, ver o movimento das coisas, dos animais e dos homens. “Sociologizar” ou não. Pegar de cada momento o seu mais sutil ou diabólico instante e fabricar, transpassado de seu olhar, a sua observação do mundo: “cinematizar” as ideias. O céu negro. A terra roxa. Um carro que explode, ou uma mulher sendo sufocada por policiais, ou ainda o remexer no espaço do toque de um tambor de maracatu. O montador, emocionado, não grita em nenhum momento... ele corta. Esta visualidade, este trabalhar a arte de conjugar conflitos, ideogramas, organizando pensamentos ou o desejo de transmitir emoção, raiva, alegria e consciência, para quem vê o mundo. A montagem no cinema, na TV, da película para o digital, da moviola para o computador, apreende realidades, verdades e mentiras, axiomas e dores da vida. Nestes dias, entre viagens, filmagens, filmes e textos, encontro uma observação de Glauber sobre Engenhos e usinas de Humberto Mauro, em artigo de Umbelino Brasil. Nesse documentário, o cineasta pioneiro do cinema brasileiro estabelece uma relação orgânica entre a evolução econômica e industrial das usinas em comparação com os engenhos de cana-de-açúcar, usando a narrativa dramática dos poemas de Ascenso Ferreira. O filme penetra nos problemas sociais, tentando evidenciar as causas da tensão na relação homem-máquina, motivando Glauber Rocha a fazer a seguinte análise: “Este seria um documentário de três planos, inclusive, caso Mauro quisesse: após a força do plano inicial, tendo montado uma roda de engenho e logo uma turbina de usina, toda a história da economia açucareira do Brasil, que marcou a agricultura no primeiro período colonial, estaria levantada. Aí nesse plano inicial está a raiz do enquadramento do filme brasileiro...” Voltando, percebo nesta afirmação de Glauber, uma intenção perdida no tempo, já que agora não sinto na maioria dos documentários ou mesmo em filmes não documentais, tentativas de que com um plano, uma sequência ou até mesmo um filme inteiro, se chegue a História, se chegue a uma estética, a uma ideia de um cinema brasileiro, de uma cinematografia nacional.

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Observo um mesmo procedimento quanto a montagem. Muitos poucos montadores/diretores procuram e chegam através do corte, da observação do plano, da observação plena do fotograma a cortar, dando articulação aos planos, uma proposta real, para que o espectador seja levado a consciência total do filme que está assistindo e de sua potência estética, sua potência de ideias, como parte de um pensamento único de cinematografia nacional. Claro que devemos recordar sempre que ainda existem diretores, montadores, que pensam o cinema e a montagem como os que teceram as teorias primeiras para as articulações entre planos, pensaram o cinema e as estruturas fundamentais do inconsciente, da história e do pensamento. Minha trajetória começa no mar de Icaraí, Niterói nos anos 1960, mais precisamente 1968. Ali estava eu, de 17 para 18 anos. Tinha descoberto o cinema assistindo O corvo, de Roger Corman, alguns anos antes. De lá pra cá, foram pulos em tempos negros do espaço. Melancolias e descobertas. Amigos – Marco Bottino, Arthur Omar, Tunico Amâncio, Sérgio Vilela, Imara Reis, Antonio Luiz Mendes, Cacá Diniz, Luiz Alberto Sanz, Eduardo Imbassay, João Luiz Vieira, Glaucia Camargo, Fabio Inneco, Manfredo Caldas, Ronaldo Miranda, Sérgio Santos, Ana Caillaux, Alex Varela, Tonico Pereira, Ivo Campos, Marcio Medalha, Cristina Flores e muitos outros que me guiaram amorosamente no afeto, nos desejos, nas vontades, desesperos, e tudo mais que completa a vida. Nestes tempos primeiros aprendi a ideia do fazer CINEMA e, neste momento, iniciei a ideia de que queria construir filmes. Montar. Conjugar planos e vontades. No segundo momento, penso ter resolvido me aproximar de um cinema que falasse com meus desejos de trabalhar com esta arte como arte... e, de lá em diante, preguei ser um montador-autor. Descobri cinemas: Godard, Straub, Antonioni, Pasolini, Rossellini, Ford, Kobayashi, Oshima, Marguerite Duras, Resnais... E ao estar envolvido emocionalmente, fisicamente, amorosamente a um cinema da invenção, do risco, vou apostando no trabalho de montador e monto filmes para Arthur Omar; Omar, que com suas ideias e seu trabalho varre o espaço/tempo fílmico como um Anúbis implodindo as telas dos anos 1970, com Triste Trópico, que, no dizer de Ismail Xavier “Configura-se aí uma nova variante do cinema brasileiro em seu esforço de pensar o todo a partir da atenção às questões ardilosas, como os fenômenos de consciência e o estatuto das formações imaginárias no tecido social. Combinando o tema da viagem, o senso rigoroso da experimentação e a rara capacidade de articular um imaginário de ramificações seculares, Triste Trópico é um dos filmes mais instigantes que emergiram do cinema brasileiro moderno.” Arthur Omar e eu somos amigos e iniciamos praticamente juntos no cinema. Sendo provocadores e nos provocando. Estamos juntos no trabalho e na vida, desenvolvendo ideias distintas mas, ao mesmo tempo, tendo estado juntos em dezenas de filmes, eu como montador: Congo, Triste Trópico, Tesouro da juventude, Música barroca mineira, O som, e tantos 57


outros; e ele, como ator e músico, em experimentos fílmicos meus. Paulo César Saraceni, com carreira marcada pela singularidade e a invenção, possuidor de uma filmografia de exuberante autoria - O desafio ou Amor, carnaval e sonho - os quais Saraceni, possuído da coragem da experimentação, afronta o tempo. Ou de filmes fundamentais como O viajante. Um cinema ungido de significados, para se pensar, estudar, ver e rever. Apreender. Ou lembrando Glauber em Revolução do Cinema Novo: “Aprendi de tudo com meus amigos, mas Saraceni me conduziu ao fogo do Cinema e do Amor”. Com Sarra desenvolvi amizade. Fomos confidentes das mazelas do mundo, da vida, do trabalho, da merda. Fui seu assistente de direção e montador em Anchieta, José do Brasil. Montei também Amor, carnaval e sonho; O cinema; Encontro das águas; Quadro a quadro, Newton Cavalcanti; Ao sul do meu corpo; O gerente - em parceria total e afetiva com Joana Collier - e Casimiro - com Litza Godoy - filme do Sarra e do Mário Carneiro. Sobre o Paulo realizei um filme, um longa documental: A etnografia da amizade. Com Luiz Rosemberg Filho, que do seu lugar na história, vergasta com a invenção o cinema pobre que rodeia nós todos. Autor de filmes belíssimos, extraordinários, austeros, como Assuntina das Américas, Crônica de um industrial, Jardim de espumas e vídeos didáticos na tradução das relações do Capital, do Homem e da imagem. Rosemberg não desanima na sua luta diária pelo cinema. Resiste. Ou relendo Jairo Ferreira, “Luiz/luz gênio muito especial: generoso na definição godardiana da cinevida. Antes de amar o cinema, o cinema o adora!”. Somos amigos e montei Crônica de um industrial, foi meu ator por duas vezes e realizei um filme sobre ele e o seu cinema, Bricolage. Fui um dos montadores do Idade da Terra do Glauber, trabalho fundamental para quem lá esteve. Mudou meu pensamento de montagem. Mudou meu pensamento sobre cinema, modo de produção. Filme extraordinário que lançou novos olhares sobre o mundo, e quem lá esteve nunca mais olhou o cinema da mesma maneira. Experiência fundamental aos meu 27 anos. Montei ainda filmes de Ivan Cardoso e, entre eles, o fundamental HO sobre o Helio Oiticica. Com Helena Ignez trabalhos inspiradores, como a coordenação da montagem de Feio eu?, seu último filme, e A Canção de Baal - montagem em parceria criativa com a Julia Martins com quem também trabalhei em Romance do vaqueiro voador - do Manfredo Caldas, e que me permitiu experimentações na ordem da imagem e do som em um documentário contundente e possante. A partir de documentários sobre os filmes do Glauber para a edição em DVD, montamos o fundamental Anabazys, de Paloma Rocha e Joel Pizzini. O filme expõe uma história, uma vida, um pensamento e onde pude me deixar ser guiado na montagem pelo fluxo do inconsciente em companhia de Marina Meliande e 58


Alexandre Gwaz. No Anabazys ainda tive como parceiro Carlos Cox, e sua edição de som construtiva e autoral, e a constatação final de como andamos em muitas coisas, mas na hora de mixar os que deveriam arrematar criativamente o filme são primários ainda na ideia de autoria, invenção no trato final do som. Uma luta campal para fazermos filmes com a invenção sonora dentro de parâmetros técnicos corretos. Nos anos que morei em São Paulo, um amigo, irmão, Goffredo Telles. Um experimentar diário de ideias, visualidades, pensamentos e rompimentos radicais com o óbvio do cinema. Experiências sem limites na busca de um transpassar constante das emoções e dos princípios teóricos da montagem, nos deram vários trabalhos juntos, como Narrarte, Samboxum - edição em parceria com Samantha Ribeiro e Walter Rogério -, Sambaxé, Brasilíndia, Mautner/Rimbaud, Mautner/Gonçalves Dias e um filme em codireção de Saraceni, Goffredo Telles e eu – O Presidente do mundo sobre Almeida Sales. E com muitos outros trabalhei: David Neves, Vladimir Carvalho, Mário Carneiro, Walter Carvalho, Ana Maria Magalhães, João Carlos Horta, Breno Kuperman, Toca Seabra, Tizuka Yamasaki, Edgar Moura, Norma Bengell, José Walter Lima, Teresa Trautman, Olney São Paulo, Antônio Manuel, José Mariani, Cacá Diniz, Roberto Mader, Neville d’Almeida, Paula Azugaray, Ricardo Van Stein... muitos outros. Minha viagem acabou desembocando na escola, nas propostas de formação de novos autores-montadores. Com esta ideia trabalho há oito anos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, que me provoca interiormente para sempre estar provocando o aluno. De Méliès até final dos anos 1930, descobrindo os russos, franceses, Vanguardas Históricas com suas experimentações e novos desenhos teóricos da montagem... e dos “modernos”, desconhecidos dos alunos. Das turmas vejo sempre muitos se formarem para a aventura do fazer . Nesta trajetória de diretores, amigos com quem trabalhei, pensando com eles a forma autoral e as montagens de seus filmes - já que considero o MONTADOR um autor - reflito e vejo o cinema do Brasil, atualmente, como um cinema pequeno, com um grande desamor para com os inventores. Donos de uma força monumental, de uma vontade de jogar para as plateias filmes de significação, aposta, sentido, emoção, beleza, audácia, coragem e generosidade. Cineastas de gerações diversas, que procuram manter, através de vários modos de produção, as ideias vivas e circulantes, envolventes e redondas. Cinema deve ser sempre um provocador, instigador de plateias, cunha perfurante para cérebros mortos. Cinema não é negócio.

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OS FILMES



1928 Октябрь - Десять дней, которые потрясли мир 142’ Outubro

diretor Sergei Eisenstein, Grigori Aleksandrov montador Esfir Tobak Sinopse Versão metafórica, simbólica e comemorativa dos dez dias da Revolução Soviética de 1917. “Os montadores atravessaram com os olhos uma estrada de 49 quilômetros de imagens” Sergei Eisenstein

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1931

Limite 120’

diretor, montador Mário Peixoto Sinopse Duas mulheres e um homem relembram os acontecimentos que os levaram ao barco perdido na imensidão do mar. “Um esboço aproveitado assim de uma espécie de visão, de inspiração [...] uma coisa não provocada que aconteceu. [...] Foi instantâneo. Limite, o título [...] só podia ser Limite.” Mário Peixoto

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1963 ... A Valparaíso 27’

diretor Joris Ivens montador Jean Ravel Sinopse Retrato da cidade chilena Valparaíso. Texto de Chris Marker. “Nós devemos estar focados em nosso tempo, no presente, para poder revelar o futuro.” Joris Ivens

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1968 Je t’aime, je t’aime 89’ Eu te amo, eu te amo

diretor Alain Resnais montador Albert Jurgenson, Colette Leloup Sinopse Durante uma experiência científica, apenas testada em ratos, um suicida fracassado revive o seu passado de forma paranoica e desordenada. “Dizem que um diretor sempre faz o mesmo filme. Eu tento – como François Truffaut dizia – fazer sempre o próximo filme em oposição ao anterior.” Alain Resnais

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1969 Spalovač mrtvol 95’ O cremador

diretor Juraj Herz montador Jaromír Janáček Sinopse Um cremador na Tchecoslováquia, no final dos anos 1930, é gradualmente convencido de que deveria privilegiar as suas origens germânicas para ter mais êxito em sua vida e trabalho. “Em Praga as pessoas ficavam deprimidas; na Eslováquia, elas riam; na Holanda, era uma comédia do início ao fim; na Itália, os espectadores iam direto do cinema para o bar porque a cremação era simplesmente impossível, horrível e inaceitável no seu país.” Juraj Herz

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1971 Duel 90’ Encurralado

diretor Steven Spielberg montador Frank Morriss Sinopse “Aquele caminhoneiro está maluco, está tentando me matar, eu juro!” “Bom, senhor, se eu tivesse que escolher quem está louco aqui, eu apostaria no senhor.” “O que aprendi com Hitchcock é nunca deixar o público relaxar. Tome seu tempo e prolongue o suspense o máximo possível.” Steven Spielberg

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1974 The conversation 113’ A conversação

diretor Francis Ford Coppola montador Richard Chew, Walter Murch Sinopse Um solitário e paranoico especialista em vigilância, torna-se vítima da mesma moderna tecnologia que usa para destruir os outros. “Eu queria ser aquele cara que fazia filmes como ‘The rain People’ e ‘The Conversation’. Eu não queria ser um grande diretor de Hollywood.” Francis Ford Coppola

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1975 Grey Gardens 95’

diretor Albert Maysles, David Maysles, Ellen Hovde, Muffie Meyer montador Ellen Hovde, Muffie Meyer, Susan Froemke Sinopse Mãe e filha vivem há vinte anos em condições insalubres numa mansão decadente. “Estão em paz com a vida e com a morte, com a juventude e a idade. Elas são destemidas, porque sentem que não têm nada para esconder. Ambas defendem o filme, que elas veem como sua própria obra de arte.” Albert Maysles

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1980 Idade da Terra 160’

diretor Glauber Rocha montador Carlos Cox, Raul Soares, Ricardo Miranda Sinopse “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo, recontando o mito através dos quatro Evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João, cuja identidade é revelada no filme quase como se fosse um Terceiro Testamento.” Glauber Rocha “É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. É um filme que fala das tentativas do Terceiro Mundo... fala do mundo... fala do mundo em que vivemos. Não é para ser contado, só dá para ser visto.” Glauber Rocha

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1983 Der riese 82’ O gigante

diretor, montador Michael Klier Sinopse Videoensaio sinfônico composto por imagens captadas por câmeras de vigilância. “Além da questão do controle, estava interessado nas imagens das câmeras de vigilância pelo seu obstinado poder de expressão, tão semelhantes às visões da ficção científica, ou às imagens do início do cinema.” Michael Klier

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1985 The kiss 6’ O beijo

diretor, montador Raphael Montañez Ortiz Sinopse Um beijo de sete segundos é reconstruído, por desconstrução, num processo de atração e repulsa durante seis minutos. “Destruição não tem lugar na sociedade – ela pertence aos nossos sonhos, ela pertence à arte.” Raphael Montañez Ortiz

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1992 Videogramme einer revolution 106’ Videogramas de uma revolução

diretor Harun Farocki, Andrei Ujica montador Egon Bunne Sinopse Revisão historiográfica da revolução Romena em 1989, construída a partir dos arquivos da televisão local e de imagens amadoras. “Se durante a eclosão do levante apenas uma câmera ousou gravar, centenas de outras estavam em operação no dia seguinte.” Harun Farocki

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1992 Le tombeau d’Alexandre 120’ Elegia a Alexandre

diretor, montador Chris Marker Sinopse O tributo pessoal ao cineasta soviético Alexander Medvedkin é o ponto de partida para uma meditação sobre a história da extinta União Soviética. “Sua energia, coragem, ilusões, desilusões, comprometimentos, as brigas com os burocratas, as iluminações proféticas, a cegueira, voluntária ou não, o humor inabalável e a luz devastadora que a ruína da URSS lança retrospectivamente sobre toda a sua vida são as mesmas de toda uma geração, e foi o retrato dessa geração que tentei pintar através do retrato de um amigo.” Chris Marker

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1994 71 fragmente einer chronologie des zufalls 95’ 71 fragmentos de uma cronologia do acaso

diretor Michael Haneke montador Marie Homolkova Sinopse Na noite de Natal de 1993, um estudante de 19 anos, sem motivo aparente, mata várias pessoas. “Os meus filmes não seriam possíveis ou mesmo necessários se o cinema atual fosse diferente. Todos os meus filmes são uma reação ao cinema que conhecemos.” Michael Haneke

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1996 The film of her 12’ O filme dela

diretor, montador Bill Morrison Sinopse Um funcionário da Biblioteca do Congresso, em busca da imagem de uma mulher que viu num filme pornô, salva da incineração documentos vitais dos primórdios do cinema. “As imagens devem funcionar independentes da banda sonora. A combinação dos dois é obviamente o que faz o filme, mas cada uma tem, espero, a sua própria integridade estrutural.” Bill Morrison

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1988-1998 Histoire(s) du cinéma 264’ História(s) do cinema

diretor, montador Jean-Luc Godard Sinopse Realizado entre 1988 e 1998, e dividido em quatro partes, cada uma composta por dois episódios, as História(s) são um ensaio pessoal e épico sobre o Cinema feito com os meios do Cinema, a sua História e interpretação, sua elegia e crítica. “Acho que a melhor forma de olhar para estes programas é entrar na imagem sem um único nome ou referência na cabeça. Quanto menos você souber, melhor.” Jean-Luc Godard

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1998 Alone.Life wastes Andy Hardy 14’

diretor, montador Martin Arnold Sinopse Andy Hardy, o ensolarado garoto all-American dos anos 1930 e 1940, regressa como um edipiano clone adolescente para ser libertado do seu sofrimento pela voz e beijos de Betsy. “Existe sempre alguma coisa por trás do que está sendo representado, que não foi representado. E é exatamente isso que é mais interessante considerar.” Martin Arnold

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2005 O signo do caos 80’

diretor Rogério Sganzerla montador Sylvio Renoldi e Rogério Sganzerla Sinopse Chega na alfândega do Rio de Janeiro uma carga cinematográfica, que precisa ser analisada pelo serviço de censura do governo. O responsável pela análise é o Dr. Amnésio, que impõe sua falta de ideias aos funcionários do local, que se divertem mutilando um material considerado realista demais. “O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência nas ideias, porque, diante desta realidade insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos.” Rogério Sganzerla

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2005 Isto não é um título 6’

diretor, montador Christian Caselli Sinopse Isto não é um filme. Isto não é uma sinopse. Isto não são letras. Isto não é português. Isto não sou eu. Isto não é você. Isto não é isto. Isto não é uma explicação. “Você pode transformar o defeito em efeito. Em vez de te castrar, a limitação ajuda na sua criação; você pode fazer daquilo uma informação interessante. A produção do seu filme determina o produto final.” Christian Caselli

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2005 O dedo 6’

diretor, montador Luís Miguel Correia Sinopse Na ilha de montagem, a montadora apropria-se do filme. O diretor, destituído do filme, quer um fragmento da montadora. “Porquê o dedo mindinho? É o mais bonito e também o mais exterior no sentido do corpo para fora: ele (diretor) pode aproximar-se à volta, quase sem incomodá-la. Mas há aqui também uma dimensão absurda: o dedo mindinho, em montagem, nem sequer serve para trabalhar.” Luís Miguel Correia

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2006 Kristall 14’ Cristal

diretor, montador Matthias Müller, Christoph Girardet Sinopse “Cristal cria um melodrama dentro de ambientes espelhados e claustrofóbicos. Como um espectador anônimo, o espelho observa cenas de intimidade. Ele cria uma imagem dentro da imagem, fornecendo um quadro para os personagens. Ao mesmo tempo, faz com que apareçam desconexos e fragmentados. Este instrumento de auto-confiança e apresentação narcisista torna-se um poderoso adversário, aumentando a sensação de fragilidade, dúvida e perda.” Matthias Müller, Christoph Girardet “Ao trabalhar neste filme, observamos que maior parte das vezes em que uma mulher surge diante de um espelho no cinema mainstream, o seu reflexo evidencia o fato de que está faltando alguém. Nas narrativas convencionais, usualmente falta a figura masculina inerente à protagonista feminina. A representação das personagens masculinas que enfrentam um espelho é completamente diferente: aí, alguém está enfrentando o seu eu psicológico, o seu temor de desaparecimento, a sua mortalidade.” Christoph Girardet

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2009 Film ist. a girl & a gun 93’ Filme é. uma garota e uma arma

diretor, montador Gustav Deutsch Sinopse Fragmentos de filmes, da primeira metade da história do cinema, foram pesquisados e reagrupados em sequências de imagens e estórias para ressignificar o seu conteúdo original. “Comecei o Projeto Film Ist em 1995, quando o mundo celebrava 100 anos de cinema, e eu pensei em desenvolver um projeto que falasse do filme a partir dos seu próprio material, sem mais explicações, subtítulos ou vozes, deixando o material falar de si próprio.” Gustav Deutsch

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Presidenta da República Dilma Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega Presidente da CAIXA Jorge Fontes Hereda

Produção 3 Moinhos Produções

Organização do catálogo, edição e tradução de textos Eva Randolph Karen Akerman Miguel Seabra Lopes

Apoio Institucional edt. – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual

Revisão de textos Douglas Soares Eva Randolph Karen Akerman Miguel Seabra Lopes

Curadoria e Concepção Eva Randolph Karen Akerman Miguel Seabra Lopes

Textos Daniel Rezende Diana Vasconcellos Diretoria edt. Eduardo Escorel Eva Randolph Giba Assis Brasil Idê Lacreta Jordana Berg Karen Akerman Karen Harley Miguel Seabra Lopes Ricardo Miranda

Produção Executiva Ana Alice de Morais Coordenação de Produção Pedro Nogueira Raquel Rocha Produção Local – Recife Júlia Machado Assistência de Produção – Recife Gabriela Albuquerque Produção Local – Brasília Daniela Marinho

Debatedores Idê Lacreta Karen Harley

Assistência de Produção – Brasília Maíra Valério 86


Identidade Visual Douglas Soares Miguel Seabra Lopes Designer e Web designer Douglas Soares Vinhetas Arthur Frazão Christian Caselli Impressão Gráfica Grupo Gráfico Stamppa www.stamppa.com.br Fotografias Divulgação

Agradecimentos Alessandra Castañeda, Allan Ribeiro, André Dias, Ava Rocha, Diretoria edt. (Fernanda

Bastos, Fernando Vidor, Gabi Paschoal, Helena Lent, João Velho, Nina Galanternick, Pedro Bronz, Rodolfo Vaz), Fernando Coimbra, Francisco Algarín Navarro(Paco), Gonçalo

Alegria, Gonzalo de Lucas, Gloria Vilches, Ilana Feldman, Ives Rosenfeld, Nuno Lisboa, Renato Cafuzo, Rodrigo Maia, Tatiana Altberg, Tatiana Tabak, Vania Debs.

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Este livro foi composto com as famílias tipográficas Avenir e Arno Pro. Capa em papel Supremo LD 300 g/m2 e miolo em Pólen Bold LD 70 g/m2. Impresso na Gráfica Stamppa Rio de Janeiro - agosto de 2013




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