Revista Fundações & Obras Geotécnicas - Edição 47

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Revista FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS

Agosto de 2014

www.rudders.com.br

Ano 5 Nº 47 R$ 27,00

Ano 5 – Nº 47 – Agosto de 2014

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Edição de Aniversário


opinião

Melchiades Ramalho / Editora Rudder

Engenharia com qualidade, responsabilidade e foco no aprendizado de lições com os acidentes: um desafio para a engenharia de barragem

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Precisamos saber identificar, classificar, lidar e gerir o risco, considerando o axioma de que: “risco zero” ou “segurança absoluta” ou “falha zero” não existem. Em princípio, a gestão de risco implica na adoção de ações de caráter normativo que visam reduzir a probabilidade de ocorrências de incidentes e/ou acidentes, bem como a identificação de vulnerabilidade em projetos e construções; com foco na prevenção ou mitigação dos riscos. Esse é o nosso grande desafio. São muitos os fatores que contribuem para a ocorrência de incidentes e/ou

acidentes em obras de engenharia, dentre os quais reitero o erro humano e aquele de natureza organizacional ou não tecnológico. O erro humano é sintoma de problemas profundos do sistema, este definido como: “conjunto ordenado de meios, de ação ou de ideias, tendente a um resultado, plano e método” (Novo Aurélio, 1976). Seus atores são: o empreendedor ou proprietário, o projetista, o construtor, a consultoria e gestores técnico, administrativo e financeiro do empreendimento. O risco pode ser evitado ou mitigado através de ações de treinamento e/ ou programas de capacitação técnica, que demandam a plena utilização do conhecimento de engenharia, a exemplo dos projetos e obras de barragens. O projeto e a construção dessas estruturas demandam o envolvimento de profissionais qualificados e experientes, no que tange, principalmente, aos condicionantes geotécnicos, visto que 40% dos acidentes são atribuídos a erros de avaliação geológico-geotécnica. Do exposto, é preciso cautela na apuração da relação causa-efeito, atento para o fato de que o erro humano tem uma sólida relação com o erro organizacional, danoso e presente em muitas organizações. Tem sido atribuído ao fator erro humano, a maior parcela de responsabilidade sobre as causas de acidente, erroneamente destacado como o grande vilão. Na investigação dos acidentes há uma tendência para apontar rapidamente os culpados, atribuindo como causa maior o erro humano, sem uma análise exaustiva sobre os fatores de rico e latentes na organização e demais atores envolvidos. O mais relevante e perigoso é o erro organizacional atribuído aos responsáveis pelo empreendimento: os dirigentes, os gestores públicos, agências reguladoras e financiadoras, as empresas projetistas e de consultoria, as construtoras e órgãos de classe, cujas orientações e/ou decisões erradas, intempestivas ou omissões, se propagam em toda a organização com reflexos negativos para a qualidade e seguran-

ça do empreendimento. Os erros organizacionais são complexos e de difícil identificação, uma vez que são difusos entre os diversos atores responsáveis pela consecução do empreendimento. Muitas organizações lidam com informações relevantes à segurança de forma inadequada, negligente ou irresponsável e não condizentes com o exigido no arcabouço técnico normativo e legal vigente. Recomendações de segurança devem ser priorizadas e executadas, com a garantia do uso da boa técnica de engenharia, sem qualquer dependência de procedimentos não técnicos ou burocráticos. Apesar da notória excelência da engenharia brasileira. Acumulamos projetos e obras deficientes, com destaque para falhas construtivas, erros de supervisão, problemas de manutenção, erros em procedimentos de operação, dentre outros, ampliando o nosso passivo. Isso corrobora com a nossa convicção de que os principais fatores de risco são devido a falhas no modelo de gestão do sistema, com destaque para o fluxo decisório e a modalidade de contrato exemplo: EPC (Engineering, Procurement and Construction Contracts) e turnkey, onde o empreendedor projeta e constrói a obra, por preço certo, prazo fixo e “entrega a chave na mão” do contratante. Cabe lembrar uma citação do jurista, que não consigo identificar: “Não é porque alguém assume a responsabilidade de entregar tudo pronto ao poder público, que este não tem o dever de fiscalizar… se houve falha, o fiscalizador (o Estado) não fiscalizou bem”. Precisamos saber interpretar a legislação sobre licitações (Lei nº 8.666) que não impede a adoção de critérios que priorizam a modalidade de contratação por melhor proposta técnica, mais apropriada para obras de barragens. Interessa focar em critérios que pontuem a qualificação técnica profissional rificação de prazos exequíveis e preços compatíveis, com o porte e complexidade do empreendimento. Os gestores e tomadores de decisão FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS • 41


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Arquivo Pessoal

acessíveis. Este fato se agrava quando a apuração das causas se transforma em ações sub judice, quando os trâmites legais (de longo prazo) contribuem para a blindagem na apuração do evento e inibem toda e qualquer iniciativa de debate e aprendizado sobre as causas do acidente. Prevalece o código do silêncio. Um bom exemplo de lição aprendida encontra-se no relatório sobre o acidente da Barragem de Teton (Estados Unidos), ocorrido em 05 de junho de 1976. O relatório oficial sobre as causas técnicas e apuração de responsabilidades foi emitido em 15 de dezembro de 1976 ou em seis meses. Nossos acidentes, em geral, não são esclarecidos com a mesma agilidade e os relatórios que se aventuram nessa área, ou são indisponíveis ou não conclusivos, a exemplo de Santa Helena (1985), Camará (2004), Algodões (2009), UHE Espora (2008) e Apertadinho (2008). É preciso saber compatibilizar e adequar o projeto às condições do local das obras, na certeza de que cada barragem, tem sua impressão digital, forjada nas condições do sítio geotécnico; com seus defeitos e desafios, que não permitem soluções simplistas; fato que não comporta a concepção de projetos em ritmo de linha de produção. Nesse aspecto o vilão da vez tem sido a PCH (Pequena Central Hidrelétrica) que utiliza modalidades de contratos que induzem a adoção de procedimentos simplistas e com foco prioritário na rentabilidade. Dispomos no Brasil de profissionais altamente qualificados e experientes mas, em numero insuficiente para a demanda de obras e serviços e, consequentemente, para o desempenho de tarefas relevantes de análise e aprovação de projetos e obras de barragens, que exigem expertise em áreas de conhecimento multi e interdisciplinares. A Lei no 12.334/2010 tem contribuído para o ordenamento das ações na área de segurança de barragens, mas, todo esses esforço pode ser comprometido caso as organizações não invistam na capacitação de seus recursos humanos e modernização de seus processos e ferramentas de gestão, para o enfrentamento dos desafios inerentes às complexidades dos projetos e obras de barragens do Século XXI.

Precisamos saber interpretar a legislação sobre licitações (Lei nº 8.666) que não impede a adoção de critérios que priorizam a modalidade de contratação por melhor proposta técnica, mais apropriada para obras de barragens. Interessa focar em critérios que pontuem a qualificação técnica profissional, prazos exequíveis e preços compatíveis, com o porte e complexidade do empreendimento

devem estar preparados para lidar, com presteza, com vulnerabilidades e ameaças que sinalizam situações potenciais de risco. Lidamos com problemas de falta e/ou falha de natureza administrativa e organizacional que comprometem a segurança de muitos empreendimentos, com sérias consequências resultantes de decisões intempestivas, tomadas sem o devido respaldo técnico e por decisões defasadas no tempo. O cumprimento de uma ação com foco na segurança não combina com procedimentos burocráticos, atrasos, falta de recursos humanos e/ou financeiros, problemas gerenciais internos na organização, indecisões administrativas, falta de qualificação técnica e/ou administrativa, dentre outros. O suporte normativo técnico e o arcabouço legal vigente (ex Lei no 12.334/2010 - Política Nacional de Segurança de Barragens) representam uma poderosa linha de defesa à disposição da comunidade técnica, que protege o exercício da boa prática da engenharia. Isso representa a junção harmônica entre a base de conhecimento teórico, com a experiência profissional, aliada ao bom senso, capacidade de análise, interpretação e síntese com objetividade na formulação do problema. Existem procedimentos técnicos consagrados (o que fazer e como fazer já estão escritos) e ferramentas de controle de qualidade, que precisam ser compilados e ajustados em beneficio do exercício da pratica da engenharia com qualidade e segurança. Não precisamos reescrever esse cabedal técnico. Entretanto, é notória a carência de profissionais qualificados e capacitados para o atendimento da demanda imposta pelo mercado, por ignorância ou completo desconhecimento desse acervo técnico. Devemos investir em programas de capacitação e qualificação técnica em engenharia e áreas afins, de forma continuada. Apesar de notório reconhecimento internacional do valor do profissional de engenharia e geologia brasileiro, nosso portfólio de incidentes e acidentes é significativo. São muitas as lições não aprendidas com esses eventos. Os relatórios sobre as causas de incidentes e acidentes, em geral, não existem ou, não são conclusivos, são divergentes e não

Carlos Henrique de A. C. Medeiros é engenheiro civil pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) graduado em 1975, M.Sc. em geotecnia, pela EESC-USP (Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo), Ph.D em Engenharia Geotécnica pela University of Newcastle upon Tyne (Inglaterra), professor titular na área de geotecnia da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e profissional autônomo, membro do CBDB (Comitê Brasileiro de Barragens).


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