Descolonizando a Habitação no Brasil: uma narrativa ilustrada

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DESCOLONIZANDO A HABITAÇÃO NO BRASIL UMA NARRATIVA ILUSTRADA

a partir das experiências do e

ANDRÉ L. PAIVA

GABRIEL RAMIRO

FICA MTST

THIAGO TARTARINI 1


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DESCOLONIZANDO A HABITAÇÃO NO BRASIL UMA NARRATIVA ILUSTRADA

2021 Orientação: Giovana Cruz Feito no DAU • ESDI • UERJ 3


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Por que descolonizar a habitação no Brasil? Antes da gente responder essa, talvez caiba uma outra pergunta: o que é, e por quê, descolonizar alguma coisa? A ideia da colonialidade é a de que o apagamento de várias formas de ser, pensar e agir perante os outros e o mundo, que marcou o período colonial, é feito até hoje.1 Nesse sentido, descolonizar algo é um esforço de reconhecimento e promoção da diversidade e da autonomia, oferecendo alternativas a práticas hegemônicas que frequentemente se mostram injustas e insustentáveis. Nessas páginas traremos a ideia de que o panorama habitacional e as políticas públicas para enfrentar seus problemas precisam ser descolonizados. Por mais naturais que nos sejam o sonho da casa própria e a construção de novas residências para enfrentar o déficit de moradias, veremos que eles nunca foram e estão longe de ser a única opção, e podem nem ser as mais adequadas. A boa notícia é que a descolonização já começou! Ela vem sendo feita sobretudo por pessoas, unidas, que embora acreditem que o Estado deveria tomar as providências, não se permitem esperar. São exemplos o FICA, que compra imóveis em áreas consolidadas e os oferece pelo aluguel sem fins lucrativos, e o MTST, que ocupa terras e edificações subutilizadas, muitas vezes com dívida de IPTU maior do que seu valor de mercado. Em sua escala possível de atuação, essas iniciativas se mostram muito mais promissoras do que as grandes políticas habitacionais já implementadas no país. Se por um lado experiências como essas são, no Brasil, muitas vezes associadas a um socialismo radical e até o ¹ Boaventura de Souza Santos é um bom cara para nos passar essa ideia. Indicamos um texto dele no final.

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momento estiveram, no imaginário coletivo, “mais à esquerda” do que qualquer presidente ousou estar, veremos que em países de economia liberal elas vêm sendo historicamente adotadas como um meio necessário de manter a sociedade coesa, próspera e sadia.

Como assim “dono da terra”? ...devem ter se perguntado inúmeros povos originários diferentes quando essa ideia desembarcou das naus junto com os colonizadores. Longe de ser um fato natural, ela é uma construção, concebida fora do nosso continente e apresentada aqui de maneira impositiva, ao qual os povos originários demonstravam profunda incompreensão. Apesar da propriedade individual ter sido normatizada na Mesopotâmia, na Roma e na Grécia antiga, as visões de mundo ameríndias encaravam, em boa parte, a moradia como bem comum, e talvez seja até forçar a barra dizer que a terra também era vista como “bem”. Essa era enxergada junto com os astros e seres animados e inanimados por uma lógica de inter-relação, muitas vezes familiar, sagrada, onde a ideia de posse não se encaixaria. Mas mostrar essa virada histórica sobre o chão onde estamos não significa querer extinguir a propriedade do nosso modo de vida e pensar o habitar sem a sua noção. O ponto é que, assim como durante o colonialismo as concepções ameríndias foram suprimidas pela europeia, há hoje formas de se relacionar com a moradia invisibilizadas pela que aprendemos a considerar mais digna e segura: a habitação própria. Um ponto forte da propriedade seria a tranquilidade, de quem a tem, frente às instabilidades econômicas da informalidade, do desemprego, do dificultado

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alcance da aposentadoria2, ou da perda do poder de compra. A casa própria ainda permite que essa tranquilidade seja herdada pela geração seguinte, aliviando das despesas domésticas o gasto com o aluguel. Por outro lado, pesam contra questões mais práticas, sendo as principais: como ficam as pessoas que não conseguem ou não querem acessá-la? Como garantir que elas tenham onde morar? Enquanto no Brasil buscou-se responder essas perguntas sem fugir da lógica de posse e sem muito interferir na dinâmica do mercado imobiliário, veremos que em outros países elas foram respondidas, e de maneira mais eficiente, não pela negação à propriedade, mas pela desnaturalização da ideia da moradia como produto.

Habitação pelo mundo O plesbicito em Berlim Talvez um bom começo para esse nosso tour seja o acontecimento mais recente entre os que separamos: em 26 de setembro de 2021, nas eleições para o parlamento nacional e para o legislativo local, o eleitorado da capital alemã também votou se grandes proprietários imobiliários deveriam ou não ser obrigados a vender ao governo, por um preço bem abaixo do mercado, parte de seus imóveis na cidade. Em um contexto onde empresas concentram, individualmente, milhares de unidades habitacionais em Berlim e por isso têm grande influência sobre o valor crescente dos aluguéis, 56% do total de votantes decidiu que esses imóveis de fato devem ser expropriados. Ainda que a votação não confira poder de lei à medida, ela manifesta o interesse da população frente a uma proposta desenhada para enfrentar um ² Em apenas 9 dos 96 distritos de São Paulo um homem negro alcança a idade mínima para aposentadoria, de 65 anos, sem ter que vencer a expectativa de vida da população negra em seu distrito. Mais sobre isso no artigo do Desigualdades Espaciais indicado no final.

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importante problema cotidiano. O governo então é pressionado a implementá-la, respeitando a decisão popular ante ao interesse de grandes corporações. A proposta votada indica a compra compulsória de imóveis das empresas que possuem mais de 3.000 unidades habitacionais. E se esse número lhe parece muito para uma única dona, não se assuste com as 113.000 residências pertencentes à Deutsche Wohnen. Em um panorama de concentração como esse, a expectativa é que implementar a medida traria às mãos do poder público cerca de 226.000 unidades habitacionais, podendo impedir a expulsão de diversas camadas sociais de uma cidade cada vez mais inacessível, onde 84% da população mora de aluguel. A esperança está no fato de que o governo local enquanto novo proprietário não somente deixaria de usar o conjunto de unidades para especular o valor dos aluguéis, definindo preços altos, como também poderia retirá-los da lógica do mercado e consequentemente acabar influenciando no valor dos imóveis privados, que continuariam inseridos nela. Para entender como isso ocorreria, vamos migrar para o próximo país. Zurique e as cooperativas habitacionais Na capital da Suíça, assim como em muitas outras cidades, a valorização da ideia de se tornar um centro de negócios provocou o interesse na conversão de apartamentos em escritórios, reduzindo a oferta de moradias e consequentemente elevando o preço dos aluguéis. Enquanto isso, a conversão das atividades industriais para as financeiras fazia com que cada vez mais edificações de grande porte fossem esvaziadas e perdessem sua função. A liberação do consumo de drogas em determinados espaços públicos no início da década de 1990, visando retomar o controle sobre

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uma epidemia do uso de heroína, também modificava o espaço e as dinâmicas da cidade. O esvaziamento demográfico alcançou seu clímax na primeira metade da década de 1990, quando a população chegou ao menor nível desde o fim da 2º Guerra Mundial, em 1945. Nesse cenário de degradação e desinvestimento na cidade, surgiram e fortaleceram-se formas cooperativas de habitar e gerir os espaços, que na época se tornaram de fato uma opção para os proprietários e investidores desconsolados. As cooperativas habitacionais passaram a ser as grandes responsáveis pela oferta de aluguéis sem fins lucrativos, em uma cidade onde apenas 9% da população têm moradia própria. Com as experiências pregressas, ficou clara a importância dessa modalidade habitacional. Num referendo em 2011, 75% do eleitorado decidiu que esse tipo de aluguel deveria constituir um terço da oferta no município até 2050. Parece ousado, mas não muito se olharmos como estava há poucos anos: em 2018, cerca de 27% das unidades oferecidas por aluguel não tinham fins lucrativos, sendo 7% ofertadas diretamente pela prefeitura e 20% pelas cooperativas. Apesar de oferecer menos da metade das unidades disponibilizadas pelas cooperativas, a participação do município é mais abrangente do que parece: ele costuma ser o proprietário, fazendo uma concessão de longo prazo (geralmente 60 anos) às cooperativas, cobrando um aluguel anual de 2% do valor da terra. Os contratos de locação das unidades também são usualmente de longo prazo, inclusive no mercado, oferecendo a quem aluga estabilidade e segurança ao limitar as

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possibilidades de rompimento por parte do locador e também o aumento. Esse modelo jurídico reduz a capacidade especulativa de quem quer investir no mercado imobiliário, do mesmo modo que a oferta de aluguéis sem fins lucrativos, por compor mais de ¼ do total e estar distribuída pela cidade, presente em 9 dos 12 distritos,3 compete com a oferta do mercado e pode evitar o encarecimento e a gentrificação de regiões. As cooperativas habitacionais podem se organizar de uma maneira bem similar a uma empresa, a exemplo da Kalkbreite, que gere um edifício híbrido construído sobre uma garagem de bondes. Nela os membros pagam uma taxa de adesão e compram uma participação, ambas reembolsáveis, para então estarem elegíveis ao aluguel. Pagas as despesas, o “lucro” é convertido na redução dos aluguéis, que levam em conta a área de cada unidade. Há ainda um processo participativo de gestão do espaço e das atividades, bem como da tomada de decisões. Hong Kong e o contraponto à posse pública Já que o esforço descolonial nos empenha a desnaturalizar narrativas, não seria adequado se a partir desses exemplos acabássemos assumindo a ideia de que a propriedade ser pública, em si, garante moradias acessíveis. O estado pode ser também um agente especulador do mercado imobiliário. Um exemplo oposto aos que vimos é Hong Kong. O minidocumentário Inside Hong Kong Cage Homes, do canal Vox, mostra algumas das dezenas de milhares de pessoas que habitam em quartos de 7m², em apartamentos parcelados e compartilhados por diferentes famílias. Apesar do altíssimo custo da moradia ter relação com o fato de uma ilha um pouco menor que a cidade do Rio de Janeiro abrigar quase 7,5 milhões de pessoas enquanto só

³ Dados de 2010 presentes no relatório Essencial Zurich 2013, do governo de Zurique. 10


24,4% do seu território é edificável, o modo como o governo gere a terra, que é inteiramente de sua propriedade, exceto por uma igreja, tem bastante impacto no mercado imobiliário mais inacessível do mundo. Para início de conversa, somente em 3,7% da ilha é permitido o uso residencial urbano, intensificando a escassez da oferta de moradia. As terras são cedidas, assim como na Suíça, por contratos de longa duração (usualmente 50 anos), mas de modo diferente: a concessão é leiloada a quem oferecer o maior lance. Normalmente ganham os leilões grandes companhias de investimento imobiliário. Em outras palavras, o governo, através das leis de uso e ocupação do solo, decide por manter restrita a área disponível à habitação, aumentando seu valor. Depois a concede a quem pagar mais, que só o faz por saber que será um negócio lucrativo. Talvez condenar boa parte da população ao ônus excessivo com a moradia e à precariedade habitacional tenha sido o meio que Hong Kong encontrou para se sustentar enquanto governo e ser capaz de promover uma economia extremamente livre, com mínimos impostos. Durante 25 anos Hong Kong esteve no topo do Índice de Liberdade Econômica da Fundação Heritage, a bússola do liberalismo. Após 2019 foi removido porque, segundo os editores, apesar de ser uma região administrativa especial, suas políticas têm sido ultimamente controladas pela China.

Habitação pelo Brasil Os maiores programas habitacionais brasileiros consistiram na construção de conjuntos residenciais e no financiamento com condições especiais para aquisição de residências, mas houveram também outros, com abordagens e escalas diferentes. Antes de falar deles, é importante nos fazermos

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uma pergunta: quem são as pessoas que precisam de moradia no Brasil? Em uma resposta espontânea a nós mesmos, talvez diríamos que são aquelas que não possuem um teto, ou seja, que estão em situação de rua. Mas na verdade, não são só elas que têm essa necessidade. Talvez você já tenha ouvido falar no déficit habitacional, um conceito sempre presente e muito importante nesse tema. O déficit é o número de unidades habitacionais necessárias para serem ocupadas, cada uma, por uma núcleo familiar. Ele é composto da seguinte maneira: habitação precária, compreendendo os domicílios improvisados (tendas, viadutos, marquises) e residências que não possuem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada; coabitação familiar, sendo o compartilhamento de uma residência por núcleos familiares distintos; e ônus excessivo com aluguel, que é o comprometimento de mais de 30% de uma renda familiar de até 3 salários mínimos com aluguel.4 Os estudos sobre o déficit no Brasil são feitos pela Fundação João Pinheiro. Enquanto há críticas sobre o termo ampliar demais a compreensão de carência, que comumente é mal interpretada apenas como a falta, nada impede que um conceito mais amplo, a partir do momento que for bem compreendido, seja esmiuçado e defina-se a prioridade de um componente sobre o outro. A questão sobre a abrangência do termo também tem a ver com a maneira que queremos compreender o direito à moradia, incluído em 2000 no rol dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988: será ele apenas quantitativo, ou terá aspectos qualitativos? Segundo o último relatório, o déficit habitacional brasileiro em 2019 foi estimado em 5,876 milhões de unidades. O ônus

⁴ Conceitos explicados na cartilha Déficit Habitacional e inadequação de Moradias no 12

Brasil, listada no final.


excessivo foi responsável por 51,7%, as habitações precárias por 25,2% e a coabitação por 23,1%. As famílias chefiadas por mulheres compõem 62,2% do déficit. Quanto à renda, 42% é composto por famílias com menos de 1 salário mínimo, 33% por famílias com mais de 1 até 2 salários, 14% por famílias com mais de 2 até 3 e 12% por famílias com rendimento acima de 3 salários.5 Entendendo o déficit, conseguimos saber se as políticas habitacionais são e foram boas ou não, e como melhorá-las. Se a maior parte dele é composta pelo ônus excessivo com o aluguel, vale aprofundarmos a reflexão se os preços no mercado precisam ser regulados ou se precisamos oferecer formas de aluguel paralelas a ele. Se esse componente é relevante para constar no déficit, deve ser também para combatê-lo. Se as famílias chefiadas por mulheres são maioria, foi acertada a decisão da lei 11.977 de 2009 de manter ou transferir para o nome da mulher o imóvel do Minha Casa Minha Vida em caso de separação.6 Quanto aos grandes programas, o Banco Nacional de Habitação e o Minha Casa Minha Vida, como dito antes, visaram, dentro da lógica do mercado, construir moradias e oferecer crédito para sua aquisição. Se o BNH, criado durante a ditadura, pretendia dar à população empobrecida uma casa própria, o objetivo passou longe de ser alcançado ao não prover quase nenhum subsídio ao beneficiário durante a compra, o que junto com as condições do financiamento resultavam em prestações elevadas. Como consequência, 88% dos recursos e 75% do total de habitações do programa foram destinados a famílias com renda mensal a partir de 5 salários mínimos. O BNH funcionou até 1986, ano em que foi à falência. 7 Já o Minha Casa Minha Vida, criado 23 anos após o fim do

⁵ Dados do relatório Déficit Habitacional no Brasil 2016-2019, listado no final. ⁶ Do artigo de Arthur Paiva no site Jusbrasil, listado no final. ⁷ Do livro Por que Ocupamos?, de Guilherme Boulos.

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BNH, nasceu com um objetivo difícil. Lançado logo após a crise financeira de 2008, o programa visava não só enfrentar a falta de moradia, mas também afastar os efeitos da crise no Brasil, injetando recursos em uma indústria que oferece um grande número de empregos e movimenta um capital relevante na economia nacional. Como disse o presidente Lula na época, o Programa reconciliaria o trabalho e o capital, atendendo tanto os interesses do povo, quanto dos construtores. Mas no que era pra ser um ganha-ganha, a vontade dos empreiteiros pesou mais, e cerca de 75% dos recursos e 60% das unidades foram destinados a famílias com renda a partir de 3 salários mínimos.8 E como se pode imaginar, a estrutura atual do déficit, onde os mais empobrecidos são maioria, é nesse sentido bem semelhante à do período do Programa. Mas há e houveram também ótimas e importantes iniciativas nas políticas públicas voltadas à habitação no Brasil. Podemos citar a urbanização da favela de Brás de Pina no Rio de Janeiro ao fim da década de 1960, documentada brilhantemente por Carlos Nelson Ferreira dos Santos, a prática dos escritórios de assessoria técnica implantados em diferentes comunidades do Distrito Federal pela CODHABDF e as experiências do Minha Casa Minha Vida Entidades, parte minoritária do programa que concentrou os melhores resultados. Por último, mas nem de longe menos importante, no âmbito do planejamento podemos citar o Estatuto da Cidade, de 2001, mais especificamente seus dispositivos para garantir o cumprimento da função social da propriedade, prevista na Constituição. Ele define que edificações inutilizadas sejam notificadas pelas prefeituras, e caso um ano após permaneçam no mesmo estado, a cidade poderá aplicar o IPTU progressivo, aumentando a alíquota anualmente em até o dobro do ano anterior, respeitando um teto de

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⁸ Idem.


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15%. Permanecendo inutilizada, o governo pode aplicar a desapropriação sanção, pagando ao proprietário o valor venal do imóvel em título de dívida pública.9

FICA O alto custo da moradia em uma área servida de infraestrutura, com concentração de comércios, serviços e ofertas de emprego é realidade em São Paulo e em muitas outras cidades. Sendo grande a demanda pelo fato dessas regiões possibilitarem uma vivência cotidiana mais eficiente e proveitosa e estando a oferta de imóveis reduzida pela quantidade de unidades vazias, abandonadas, ou destinadas ao aluguel por temporada (como Airbnb), podemos imaginar que ao sabor das leis do mercado essa condição se torna de fato algo natural. Mas se parece faltar interesse de governantes para conter esse processo, por exemplo pondo em prática aqueles instrumentos do Estatuto da Cidade para coibir a vacância, o que é possível fazermos? Em 2015, um grupo reunido pela plataforma Lanchonete.org pensava algo um pouco nessa linha: como efetivar projetos culturais no território sem promover a gentrificação? O grupo focava em manter as atividades comerciais dos lugares, mas parte do pessoal envolvido se interessou em como combatê-la também na habitação. A partir dessas discussões foi sendo desenhado o Fundo Imobiliário Comunitário para Aluguel (FICA), criado como uma associação sem fins lucrativos com a missão de adquirir e retirar do mercado imóveis em regiões centrais e oferecê-los por aluguel acessível. O FICA foi se consolidando internamente, e lançou-se à sociedade em 2017. Na época, a expectativa era que levaria uns 5 anos para angariar o suficiente para a compra do

⁹ Da entrevista cedida pelo Guilherme Boulos ao Flow Podcast. 16


primeiro apartamento, e com o tempo a iniciativa se expandiria. Mas ainda nesse ano um casal de apoiadores compra um apartamento e o oferece por 8 anos em regime de comodato, isso é, um empréstimo gratuito. Depois desse tempo, avaliarão a possibilidade de doá-lo definitivamente. A etapa seguinte foi a definição do cálculo do aluguel. Decidiu-se manter uma base que levasse em conta apenas os custos de manutenção do apartamento e do Fundo, desvinculando-se totalmente do valor cobrado pelo mercado e de suas oscilações. A título de comparação, o primeiro aluguel foi definido em 633 reais, quando ao mesmo tempo um apartamento no mesmo edifício era alugado por cerca de 1200. Essa base permitiu que o FICA reconhecesse suas possibilidades enquanto uma iniciativa da sociedade civil e definisse a faixa de renda mensal do seu público alvo, estipulada entre dois e três salários mínimos. O valor da habitação não poderá ocupar mais que 30% do orçamento familiar. Outro detalhe é que, por ser um valor a partir do custo, comprar apartamentos onde o condomínio e o IPTU são mais baratos permite oferecê-los por um preço menor. A partir de uma dinâmica participativa entre as pessoas associadas, os critérios de seleção para o apartamento foram definidos, sendo família chefiada por mulher, com qualquer composição, que trabalhe na região central e tenha uma criança. O contrato, ao contrário dos comumente firmados, não exige fiador. Vale dizer que não só o valor dos aluguéis, mas exigências contratuais como fiador, comprovação de renda, depósito caução ou outras abusivas, mais de cunho moral do relativas à preservação do patrimônio ou ao resguardo financeiro, inviabilizam o acesso ao mercado imobiliário a muitas famílias, promovendo a gentrificação de diversas áreas. Nessa situação, muitas e muitos se submetem a moradias com péssimas condições de

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habitabilidade, instabilidade no valor cobrado e exigências descabidas dos locadores, como ocorre em cortiços. Em setembro de 2021, com o segundo apartamento comprado e quase 96.000 reais em caixa, valor crescente devido às mais de 200 contribuições mensais das 83 pessoas associadas (doadoras mensais e participantes da Associação) e 135 apoiadoras (apenas doadoras mensais), o FICA é uma grande referência. Não apenas pela potência de sua proposta, mas também pela experiência de implantá-la e geri-la de maneira bastante eficiente e benéfica. Uma nova frente chamada Compartilha foi lançada recentemente, visando captar investimentos para adquirir e gerir edificações que foram ou correm risco de se tornarem cortiços, qualificando-as e transformando-as em moradias coletivas, oferecidas por um preço 30% menor que no mercado de cortiços e com a estabilidade e segurança jurídica que eles não oferecem, além de um retorno de 4% ao ano a quem investir. No entanto, por mais promissora que a prática do FICA possa parecer enquanto política habitacional a ser apoiada ou incorporada por governos (a exemplo de lugares como Zurique), sem essa aliança ela pode permanecer restrita a um grupo específico de beneficiárias: famílias com renda mensal de 2 a 3 salários mínimos. Enquanto as políticas públicas habitacionais no nosso país não almejam melindrar o mercado imobiliário, que sorte que existe nosso próximo movimento!

MTST Sorte porque, com os preços e os contratos de acesso à moradia guiados pelo mercado imobiliário, sem a pretensão dos governos municipais de notificar, aplicar o IPTU

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progessivo e promover a desapropriação sanção nos muitos imóveis e lotes que permanecem abandonados, e com os grandes programas habitacionais que não se direcionam à população com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos (representante da maior parcela do déficit e a mais fragilizada com a financeirização da habitação), não haveria como não ocorrer um crescente processo de periferização, de construção em áreas de preservação, de favelização, de adensamento das favelas existentes e de permanência ou aumento de uma população em situação de rua. Inclusive, se essa condição é tão clara ao olhar nosso histórico habitacional, tão fruto da gestão das nossas cidades e tão inescapável para tantas pessoas no Brasil, por que a gente ainda se refere a essas formas de vivência como informais? Elas são produto daquilo que naturalizamos como a formalidade. Não queremos dizer que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) soluciona as nossas falhas estruturais e garante uma moradia digna a todas e todos que precisam. Mas a sua atuação e a de muitos outros movimentos como ele atacam diretamente essas falhas, escancaram-nas a quem se permite conhecê-los, e sobretudo oferecem nos lugares onde se inserem, muitas vezes em regiões infraestruturadas, repletas de serviços, comércios e próximas ao trabalho, um teto a quem não conseguiria tê-lo ali pelo mercado, ou mesmo pelo preço que proprietários sociais como o FICA, sem subsídio governamental, poderiam oferecer. Além de um teto, inseridos na luta, essas pessoas ganham perspectiva de receber sua própria unidade através da desapropriação e da regularização fundiária de ocupações. Está bem, ficamos tão empolgados com a potência do Movimento que esquecemos de começar contando como exatamente é a sua atuação: o MTST mapeia imóveis em

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situação ilegal, sem cumprir sua função social e os ocupa a partir da organização e da mobilização coletiva, importante tanto na chegada quanto na reprodução da vida no lugar ocupado, e também na reivindicação e na resistência. Não há na estruturação das ocupações a cobrança de aluguéis, mas ocupantes compartilham entre si tarefas importantes para a moradia e para o movimento. Se por um lado a experiência comunitária e solidária numa ocupação já pode significar um alento e uma melhora na qualidade de vida de pessoas que estão ali, o objetivo é a conquista dessa propriedade. Mas nem sempre isso ocorre, e o outro acontecimento possível é o despejo. Esse processo costuma ser marcado por embates, judiciais e inclusive físicos, ora com desocupações marcadas pelo uso excessivo da força policial. O MTST ilustra em sua prática o fato de que não é preciso nem coerente priorizar a construção de conjuntos habitacionais para prover moradia (especialmente em terrenos distantes e com a péssima qualidade, características do Minha Casa Minha Vida) quando o número de imóveis vazios no país é tão próximo ao número de unidades do déficit habitacional: 6 milhões e 6,9 milhões.10 Como a dinâmica de um indivíduo ou uma família que carece de uma habitação não ocorre em escala nacional, essa comparação seria pouco ilustrativa se a relação não se repetisse internamente em regiões e cidades. Segundo o IBGE, havia 651.701 imóveis vagos na região metropolitana de São Paulo em 2010, enquanto o déficit estimado pela Fundação João Pinheiro nesse mesmo ano correspondia a 91,4% deles.11 Segundo Guilherme Boulos, coordenador do MTST, há 40.000 imóveis vazios apenas no centro expandido da cidade de São Paulo12, enquanto o número de pessoas em situação de rua segundo o último senso municipal feito em 2019 é de 24,3 mil.13 10 Segundo reportagem da BBC, listada no final. 11 Segundo Vanessa Nadalin, no Caos Planejado. 12 Dito na entrevista ao Flow Podcast. 13 Segundo reportagem da Prefeitura de São Paulo, listada no final.

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No entanto, não é factível pensar que se pode ocupar 100% dos imóveis vagos de uma cidade, já que sempre haverá aqueles de onde as pessoas estão saindo e outros anunciados que em breve serão ocupados novamente. Estudiosos que analisaram diferentes cidades estimam que uma vacância em torno de 5% do total de imóveis é referente a esse processo, e taxas mais baixas podem significar a falta de oferta de moradias para compra ou aluguel e levar à alta dos valores.14 Ao mesmo tempo que não devemos pressupor que todos os imóveis vagos estão em situação duradoura de abandono, a própria experiência das ocupações do MTST, passeios atentos em regiões centrais e o fato das taxas em cidades brasileiras estarem comumente superiores a 5% reforçam o discurso do Movimento e a potência das ocupações. Deixam também latente a importância dos governos municipais buscarem ativamente reconhecer as propriedades abandonadas e nelas aplicar as medidas para o cumprimento da função social. A parceria entre o MTST e o poder público não só é possível como foi muito positiva nos projetos do Minha Casa Minha Vida Entidades. Sendo o movimento o gestor dos recursos e não a empreiteira, o resultado foram conjuntos projetados com área de lazer, elevadores e apartamentos maiores do que os do segmento tradicional do programa, desenvolvidos com os futuros moradores de maneira participativa. São exemplos o conjunto Dandara em São Matheus, o Condomínio João Cândido em Taboão da Serra e o Conjunto Novo Pinheirinho em Santo André.

14 Segundo artigo de Anthony Ling, no Caos Planejado.

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