Arrancados (poemas) do fogo

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ARRANCADOS (POEMAS) DO FOGO a.a.m ercador


Belo Horizonte 2015

1. ENTRE ABERTAS PORTAS

Nenhuma palavra tem dono. Nenhum coração é vazio . Todas as portas se abrem (

) para que entrem as ideias.

As palavras sem dono. Sentimentos nascidos do avesso deserto. Aqui estes parêntesis. Abismos de silêncio (

). Portas entreabertas

para o inesperado. Entradas para aqueles que devoram poemas como ostras (

). Bebem música sob a luz da lua.

Enlouquecem com as canções anteriores ao nascimento das estrelas. Para aqueles que enxergam as frágeis ausências ( ) e as inevitáveis falhas do poeta. Aqui estas portas (

): escancaradas (

).


2. AQUARELA

No bar aquarela de Vicente Abreu o mundo viaja de cabeça para baixo. Homens

apaixonados

abandonam

suas

memórias.

Mulheres

escarlates apostam na fatalidade dos lábios. Encharcam de solidão as plumas dos travesseiros. Notícias na mesa.


Silêncio entre taças. Conhaques e olhares. O sol do fim do mundo alonga as sombras até o horizonte. Ocre é a cor da terra. Branca é a flor de sal. Uma e outra paisagem refletida na água brota das lembranças. Tudo escorre pelo chão da aquarela de Vicente Abreu.

3. EGITO

Teu rosto lembra o Egito onde nunca estive. Depois do sorriso vem outro sorriso. Radiante como música absurda. Antigo como quatrocentos séculos.


Invento hist贸rias nas linhas da tua m茫o. Desenho rios e pir芒mides em teus peitos duros. Escalo as suaves miragens do teu corpo. Invado e penetro teus c么ncavos segredos. E o Egito continua sendo teu rosto sob violenta tempestade de areia.


4. REDOMA

Quebrar a redoma que aprisiona os sonhos. Tocar o véu que cobre a alma das coisas. Ver além da aparência da neve que despenca do céu. Escrever insultos na palma da mão. No vidro. Nos olhos. Gritar revelações indecentes. O gozo há de prolongar a noite. Amar a fêmea nua. Possuir a fera na selva do quarto. Escapar da redoma que aprisiona os desejos. Separar meu corpo de tudo que não é meu mundo. Arder em pecado. Encher de prazer a minha estupidez. A minha cegueira. A minha pedra de estimação. Buscar refúgio nos mistérios dos poros acesos. Sobreviver aos gritos e gemidos quando a redoma explodir.


5. MARINHA

Quilha contra ondas. O sol navega rumo ao fim do tempo. O dia voa. O vento ondula as montanhas de espuma e ĂĄgua. Folhas e nuvens pairam em expectativa quando o crepĂşsculo chega. O sal marinho infla as asas do pĂĄssaro de olhos acesos. Estrelas em chamas na noite infinita. Lua imita prata no horizonte.


6. TRÍPTICO

a. A morte é um ser lúgubre. Sob o sol do meio-dia o céu fura os olhos. Insuportável céu, estranho céu sedento de aragens. A morte passeia entre cortinas ressequidas. Janelas semimortas. As ruas flutuam nas águas das últimas chuvas. A lama se cola à alma do corpo. A morte se assemelha ao vento. Enfim a noite chega. Traz uma lua suada de gelo e paixão. A carruagem da dor de duros abandonos. Onde há dor não há música. Apenas ausência sem destino ou despedidas. De nada vale o que se lê no Livro dos Presságios Inesquecíveis. A morte traz consigo o odor de rosas pálidas e becos imprestáveis.


Apaga todo crepúsculo. A morte é a ausência de mundos. A perda de toda liberdade. O fim do amor.

b. Dolorosa doce e bela é a alma que se debruça sobre a música. Música que é majestade e loucura. Esfera dentro de esfera. Chama e dom. Maravilha dos dias que são tesouros. Bálsamo das angústias sem cura. Torvelinhos de mil miragens. Magia que revela o mais remoto sentido do paraíso. Delicioso diálogo entre ternura e instante, medo e eternidade. A música abre as portas da imaginação. Desenha paisagens no ar. Pequenos pássaros equilibrados em linhas frágeis. Voo rasante sobre emoções perdidas em gavetas ocultas. Notas que provocam milagres. Ah! Mundo delicado e incompreensível!

c.


A língua é erótica. A linguagem é amorosa. A língua é devassa. A linguagem é preciosa. Não é difícil realizar o desejo. Nem é fácil encontrar o amor. O amante deseja. Espera. Sofre. Derrama na cama tudo que chama alma. Se afoga em paixão caudalosa que se ergue do mar de lençóis. O amor agarra a carne. O desejo bebe o sangue. O amor devora as palavras. O desejo engole as dúvidas. Não confessa. Tem fome e precisão. A língua é límpida e é lama. A linguagem é chama e degelo. A língua promete e descumpre. A linguagem incendeia as veias. A língua afunda os navios. A linguagem inunda tudo. Abandona tudo. Misteriosa que é. Abominável e insaciável que é. O amor é desespero e espelho. Espinho e pétala. O desejo é ânsia e rumor. Tumulto e afogamento. A língua é desamparo na bruma. A linguagem é suor e silêncio. O desejo é o túmulo dos solitários. O amor é a condenação do romântico.

Vida e


morte caminhando juntas num fim de tarde.

7. DIĂ RIO

Rabisco encontrado no diĂĄrio esquecido:


“Quero do mundo a alma. Vazia como um aquário. Misteriosa como um fichário. Fechada como um armário. Escura como um cenário.” Diário onde a mão do falsário escreveu mentiras em arranjos florais. Delírios para um amor abandonado à beira da estrada. Desarvorado feito o cão que desconhece o dono. Feito o dia que desmerece o sol e o suor do rosto. Diário onde há vida desesperada em cada palavra. Palavras que falam de feridas em antigas páginas. Há vento nas entrelinhas. Tempestades nos verbos. Chuva ácida em torpes adjetivos. Notícias do diário do fim do mundo.


8. QUEIXAS

A vida passa feito vento. Os dias correm sem gritos. Gelados. Dias sem formas. Datas sem lembranças. Sem sobressaltos. O mundo não lamenta o fim nos olhos das crianças. Os sonhos desvanecem em chamas azuis. Em bombas e inundações e pestes. O homem brota de todas as formas de crimes. Quisera resistir à intolerância e à peste e ao sublime. Quisera entregar minhas mãos ao grande amor que veleja em ondas sem destino. Nos gemidos que teimam em nascer do fundo do coração. Quisera beijos para aquecer meus lábios. Alguém para inventar o sol, a manhã, a rosa amarela, o crepúsculo boreal. Um mundo para merecer a vida.


9. O POÇO

Fui ao fundo do poço buscar o que restou de mim. Ardi em chamas. Somente cinzas sobraram do que eu era. Eu as trouxe comigo. Estão em minhas mãos. Em minhas palavras. Em meus olhos. As cinzas de todos os sentimentos. Das árvores estelares. Dos corpos desalmados. Cinzas das aventuras do homem na terra. Cinzas das ruelas e becos espúrios. Dos altares ressequidos. Das feridas sem sentido. Dos corações afogados em lágrimas.


Cinzas dos amores incompreendidos. Dos assassinos de plantão. Cinzas dos que nasceram das bodas de ódio e mágoa. Aqui estão as cinzas das memórias de fogo. Cinzas dos pobres versos que ardem em minha boca.

10. SEDE E FOME

Os deuses prometeram vinho e eternidade a quem descobrisse o significado da esperança: rio de premonições? Céu de infortúnios? Não sei. Não provei o vinho sagrado.


Não comi o cordeiro inocente. Não conheci a cor da eternidade nem a irmã patética do futuro. Tudo o que eu sabia e não sabia sobre o amor se perdeu pelo caminho. Incinerei os versos construídos no afã de ser literatura. O tempo para isso se esgotou. O cansaço me jogou por terra. Estou coberto de tédio e poeira. A tristeza não é tudo. Pior é a sede e a fome de viver entre os homens. Mesmo quando a vida parece sumir nos bares e nos hospícios.

11. VAZIO


As taças estão vazias. Os olhos estão vazios. A alma dos aniquilados, dos ingênuos, dos desaparecidos, dos seviciados, dos explorados está vazia. Os reprimidos e encarcerados, os loucos e desesperançados estão vazios. Vazio está o estômago dos famélicos e o coração dos infelizes. O horizonte escarlate. O poeta. A rua. O mar e a imensidão azul estão vazios. Vazio está o leito dos amantes. O deserto sob o céu imenso. O paraíso e o inferno estão vazios. E a noite que avança está vazia de estrelas.


12. TANGO URUGUAIO

Em Colônia de Sacramento portugueses e espanhóis se mataram. O Rio Prata ainda transborda sangue e gritos: duzentos anos. Cadáveres boiam nas águas povoadas da memória. Becos e ruelas gemem e lamentam. Um odor de tristeza inunda o cais em pedaços. Velhos fantasmas carregam seus olhos nas mãos. Esquálidas mãos com sulcos imensos. Corações enfrentando bacamartes. Corpo a corpo. Mano a mano. Ferraduras arrancam faíscas das pedras machucadas. A morte apodrece as margens do rio. Duzentos anos: o Rio Prata transborda lágrimas e orações.


Delírios de ódio contra ódio. Espadas e crucifixos. E beijos apaixonados em ruelas secretas. Paixões sem futuro em noites barrocas. Não há melhor lugar para matar o amor. Nem lugar melhor para o amor morrer.

13. A TAÇA

Na taça de vinho bebo pesadelos, chumbo derretido, paixões sem piedade, perdão sem esquecimento. Bebo o sim e o não. Na taça de vinho não há lugar para talvez. Nela cabe um poeta chinês, uma lua de viés, uma sombra sem pés.


Uma vida perambula em busca do encontro capaz de incendiar as palavras. Despertar os coraçþes mudos. Arrancar do torpor os versos mais simples.

14. O AMOR E O MUNDO


Quando o mundo amanhece tudo parece perfeito se meu amor está comigo. Quando o mundo entardece tudo parece inefável se meu amor está comigo. Quando o mundo anoitece tudo parece inquieto se meu amor não está comigo. Quando o mundo enlouquece tudo parece impossível se meu amor não está comigo. Quando o mundo desaparece tudo parece absurdo se meu amor não está comigo. Quando o mundo emudece o silêncio parece música se meu amor está comigo.


15. CENÁRIO

Lua entre fantasmas. Pobres velhinhas ricas perdem dedos e joias. Dentes de ouro esgoelam por socorro. O ruído dos gritos débeis abafa o guincho do trânsito. Gatunos pardos se esgueiram pelas sombras. Sombras refletem sombras no cenário de muro e musgo. Lua entre balas e estrelas perdidas. Chamas enfeitam a noite. Ecos de champanhes espocam na velha brisa marinha. Lua sobre a Guanabara. Sobre os esqueletos imperfeitos dos edifícios. Sobre o que restou do amor. Do amor que morre e nasce todos os anos. Das almas que brotam de árvores desvairadas.


Uma vez mais. E outra mais.

15. NOTURNO

O sapato dorme sobre outro sapato. O beijo na boca entre a uva e o vinho. Mais tarde a mão vai navegar em águas que brotam entre coxas. O paraíso sempre surge assim que anoitece. A lua indecente se desvia das nuvens em chamas. Ainda em brasa uma promessa perdida mergulha na ilusão que acalma. Amansa e doma o desejo. O poema arrancado do fogo arde no tapete azul. Palavras queimam o silêncio que envolve os corpos.


16. MANCHETES

O dia desperta com bandidos e celebridades. Glamour que violência e fúria banham de sangue. O mundo é um covil. Os heróis batem em retirada. Cabisbaixos fitam o silêncio crepuscular.


Nenhum deus ou santo ou bêbado ou louco para acalentar nossos sonhos. O céu se ornamenta de raios e pássaros histéricos. Nada a fazer senão lamentar e enterrar os nossos mortos. Embriagada de ilusão ela fecha os olhos e diz que me ama.

17. SOZINHO


Só e mudo vejo o delírio diminuir. A esperança de aventura desaparecer. Viver sozinho é não dividir a alma. É andar na corda bamba em um mundo obscuro. Buscar sem rumo a fonte do prazer. Fazer do inesperado uma forma de resistir ao tédio. Ir além da morte dos sonhos. Só e mal acompanhado os verbos exigem sangue nas veias. Isso é tudo que a coragem do infinitivo pode oferecer. Vou dormir fora de mim. Apesar de mudo tudo em mim ainda é tumulto. Grito. Espanto. Alucinação.


18. O FÁCIL E O DIFÍCIL

Tudo é fácil: viver, comer, amar, mentir, roubar, foder. Difícil é fingir, fugir, matar, sorrir, morrer. Fácil é mentir em verso e prosa. Difícil é fingir litanias e equações precisas e preciosas. Fácil é viver em estado de sabedoria e aquarela. Difícil é matar com estilo e epifanias. Fácil é foder com luxuriosas estocadas de punhais e línguas. Difícil é morrer com a boca sem pudor. Tudo é fácil. Tudo é difícil. Como ser clarão no meio da escuridão.


19. MARIANAS a. O casario dorme. Luzes falam em voz baixa sob um céu escuro e largo. Brilham escassas estrelas no fundo dos olhos. Na taça de vinho brotam alguns espinhos. Do coração nasce a nostalgia de um tempo futuro que é preciso esquecer. Janelas se fecham. O

vento

frio

sopra

noticias

inesperadas

nesta

varanda


antiquíssima. Não é a solidão que me assusta. É o vazio ao meu redor.

b. Paredes descascadas. Colorações de um tempo longínquo e pardo. Uma escada conduz a vida para lugar nenhum. Folhagens resistem ao abandono. Panos soltos.

Ferramentas.

Ferrugens roem a alma das coisas. Silêncio cheio de milagres habita o meu redor. Imóvel o tempo mofa no calendário. Espaço congelado em dúbia imagem . Só as palavras e as ruas estreitas existem agora.

c. Ao longe o observador perscruta a chuva que virá. Prenúncio de lua e nuvens pesadas sobre santos barrocos. A paisagem voa como pássaros de pedra sabão. Lenta paisagem com asas encharcadas de velhos sonhos.


Becos antiquĂ­ssimos sem fim.. O observador sacode a poeira dos ombros. Entre escombros e assombros lĂŞ o que estĂĄ escrito na poeira do tempo. E chora.


20. GEMA DE SAQUAREMA

É lua no céu. É lua no mar. É lua nos olhos de Ismália a louca. É lua nos peitos de Amélia a nua. Animália no cio em ondas de delírio. Cavala soltando espuma pelas ventas. A noite é azul com cimitarras de prata. Deito sobre meu amor e murmuro indecências e impudências. Em minha pele a pele de Amélia treme. Seus pequenos gemidos morrem entre pequenos dentes. A lua se esvai no céu e no mar e nos olhos de Ismália . A lua se deita e se põe no sexo e nos peitos de Amélia. Nas infinitas noites do poeta.


21. ENQUANTO ERA SONHO

Noite longa e demorada. A lua invade meu quarto. Ironia e sorriso em suas crateras enigmáticas. O vento murmura: “nunca use a poesia em proveito próprio. Ela não é a salvação do poeta. Ela é apenas a condenação ou a redenção das palavras”. Acordo com o sol do espanto queimando meu rosto.


22. ESCRITÓRIO DE BEETHOVEN

Na fotografia a mesa depois da sua morte. Memória surda do que restou da vida. A desilusão do baile entre loucos clarins e címbalos. Óculos. Tinteiro. Duas canetas misturadas ao tropel de cascos. Momento de intimidade conservado em museu.


O silêncio pleno de música. Tubas derretendo distâncias. A surdez da pauta. Notas desenhadas na alma. A lembrança do som no descompassado coração. Desespero em sinfonias inesquecíveis.

23. ENTREVIDA


Entre sol e som. Entre céu e chão paira meu amor: luz na lâmina azul. Entre véu e alma. Entre ouro e lama paira meu olhar: voo cego da paixão. E oscila e devassa e desbrava o ar com a chama da promessa . Inquietardes.

24. CANTILENA


Aridez, coração, deserto. O sol, o som, a solidão sem fim . Sonho e desolação ao longe brotando da terra seca. Palmeira, vento, areia. Deserto em meu coração. O céu, a dor, uma canção sem fim inundando a terra ao longe. Vento, aridez, palmeira. O som a terra meu coração ao longe . Sonho e desolação inundando o céu deserto. Areia, coração, deserto. O sol, o sonho, a desolação sem fim . O céu, o som, terra seca brotando ao longe da solidão .


25. NÃO HÁ VAGAS

Não há mais lugar para Deus no planeta azul. Nem literatura que possa redimir a humanidade . A poesia é a mãe do mundo. Abandonada canta uma canção abominável. Uma canção que fala da fúria de toda a ignorância . De vozes contaminando o espaço. De ritmos toscos que reviram do avesso a solidão cósmica. A mãe do mundo enterra sua canção em túmulo de indigente. Não somos o jogador, somos a carta. Fizeram do inferno a nossa casa.


Fomos arrancados do fogo. Atirados ao gelo . Ao mar do acaso que inunda o coração dos homens.

26. ELA, O POETA E O SANTO

Ela pediu um poeta pro santo. O santo foi e deu. Era um poeta cheio de ginga, cheio de manha, cheio de rima. Tirava palavras da manga, versos que ninguém imagina. Via o avesso da alma. Adivinhava o escuro da noite. Quebrava o mistério da calma com seu jeito de bater as asas.


Foi com ela que ele entendeu que feminino de amor é amar. Foi com ela que ele aprendeu que feminino de dor é dar.

O que ela fez com o poeta ninguém sabe, ninguém viu. Não adianta perguntar para o santo. Não adianta perguntar para Deus. Ninguém sabe o que aconteceu.

O poeta pediu uma deusa pro santo. O santo foi e deu.

27. QUASE UMA CANÇÃO


Aonde a voz que canta? Essa voz que atiça a chama. Que revira os ventos da minha cama. Que desperta e queima as manhãs da minha vida? Aonde a voz que estanca e ferve o sangue em minhas veias quando diz que não vem mais. E não vem porque não me quer mais? Aonde a voz que tece a teia que me enreda nesse labirinto onde o amor quase padece. Onde o amor é quase lindo. E quase bicho. Aonde a voz que espanta os males sem perdão de um coração com fome de pão, de som, de mel. De sim e não. Aonde essa voz que escapa da garganta só para dizer que mesmo assim me ama. Assim desajeitado, assim espinhoso, assim profundo. Amor que vem de onde habita o fogo . Essa é a alma da voz que devora e canta cada palavra. Que levanta voo e espanta o dia.


28. AUSÊNCIA

Há em ti tamanha ausência, assustadora ausência, que nem a sombra da minha presença ou a presença da sombra de Deus preenchem o que em ti não. Não é falta. Não é vazio nem é oco e nem avesso. É mais um espelho onde nada se reflete. Onde o silêncio se realiza. Onde os sonhos se dissolvem e nenhum pensamento sobrevive. Onde perco meu corpo, meu osso, minha alma.


29. PRESENÇA

Tua presença em mim é tanta, assombrosa presença que nem sombra, nem ausência, nem espelho, nem silêncio podem dissolver tua pele ou tua alma.


Nem o oco do vazio. Nem a solidez do ar. Nada retira de mim a tua essĂŞncia, o teu cheiro agridoce, o fogo do teu bĂĄlsamo onde meu corpo se realiza.

30. CARNE DA ALMA

A carne da alma se incendeia ao simples tato.


Úmidas lambidas. Beijo fervente. Membro turgescente. Pequenas alfinetadas no cérebro. A carne da alma se incendeia ao ouvir palavras indecentes. Raro e louco amor que grita, geme, bate, rasga as entranhas. Carne e alma que se abrem de par em par como janelas para o oceano. Eis a carne da alma feita de puro sexo. Desejo infinito. Desespero e ânsia. Alma só fogo, só chama, incêndio nas nuvens. Pedras incandescentes. Dai nascem os mais gloriosos filhos da humanidade: da foda mais gloriosa.


31. ALMA DA CARNE

A alma da carne se deita em camas de dormir . Jamais se rebela nem se debate em dúvidas de amor cruel. Assim é a alma da carne. Sublime e dócil como ovelhas nevadas . Amor fraterno. Ingênuo. Sem pecado ou desejo ou insônia ou rebeldia. Coisas que Ovídio olvidaria por conta das marcas do seu amor secreto. Assim é a alma da carne. Amor que nem aos frades interessaria. Alma tão pura que persegue a divindade . Tão etérea que se perde entre orações. Volátil e volúvel . Incapaz de perdurar por ser singela. Sem Deus. Sem dúvidas. Sem alma ao ponto do abandono e desistência.


Sem amor ou flagelo. Alma assim não há quem queira.

32. O MITO

Ele nos fez do barro imagem e semelhança dos deuses. Buscou o néctar e encheu de espírito o barro feito carne. Ele nos deu a fidelidade do cavalo. A força do touro. A esperteza da raposa. A avidez do lobo. Com a chama da inteligência soprou em nós a liberdade. A criação e o amor à vida. Ele nos ensinou a plantar o trigo para colher o pão. Nos ensinou a escrita e as palavras para chamar as coisas por seus nomes.


Ele fez de nós uma estirpe que sofre e chora e goza e se regozija. Fez de nós osso e carne e alma que não temem a chibata nem o grilhão nem a desesperança. Ele desobedeceu ao pai e roubou o fogo sagrado para aquecer a humanidade. Seu castigo foi ser devorado por abutres dia após dia durante 11 milhões de dias. Somos filhos de Prometeu e netos de todos os deuses.

33. SOFIA

Cioran desnudou os frangalhos do ser humano. Os retratos da desumanidade. As sombras de todas as dores. A decomposição da alma sob as luzes dos salões exaustos.


Não há mistério em seu coração. Nenhum segredo no arcabouço do pensamento. Nesse calabouço a que chamam vida. Ele mostrou como dizer adeus ao conformismo. Ao muro das lamentações. À covardia de uma vida sem brilho. Ele nos ensinou como construir um novo homem dos esqueletos calcinados. Desafiou os velhos argumentos com o punhal do enigma de Sofia. Viu homens subindo a colina e tocando o céu com as mãos. Suas ideias semimortas chafurdando na lama dos ossos. Rios de lágrimas em corredeiras para o mar. Não emitiu um só lamento. Afugentou os sacerdotes do cinismo com palavras ávidas. Chicoteou os vendedores da hipocrisia com palavras vívidas. Esbofeteou os místicos da nova era com palavras nuas. E fez da minha vida uma outra vida.


34. ZOO

Tarde e tÊdio. Vento feroz. Inquieta ramagem. Triste surpresa no zoo: a garça morta em uma das alamedas.


35. FANATISMO

O realismo fanático não é estilo nem escola. Não é uma maçã verde na tela surreal. É um rouxinol pousado em pau-de-arara. Cantando na cara do torturador. É um caçador de borboletas de pedra em túneis de néon. Sem mapa e sem papa. Sem guru e sem perdão. Prefere o pesadelo à ilusão. Cultiva tempestades em largas taças de vinho. O fanático não perdoa a insipidez humana. Não dá a mínima para a bondade ou a covardia. Nem para as vacas de cimento e brocados. Nem para as árvores de borracha. Gritam: a beleza é a prova de que o diabo existe. Beleza que seduz e enriquece a galeria dos crimes-de-arte.


Arte é circunstância. O realismo fanático é um prato feito para os famintos de vida e de Deus. Para os bêbados é o último degrau antes do abismo. Para os santos, é revelação e miragem. A música das esferas e o bonde do destino são fanáticos. A única realidade é nossa dupla alma. Fanática.

36. IMITAÇÃO DE NERUDA

Ele poderia escrever os versos mais loucos esta noite mas estava triste. Escrever por exemplo que os becos escondem confissões sublimes


e confessar na cama que jamais amou alguĂŠm como a si mesmo. Ele poderia escrever os versos mais tristes esta noite mas preferiu morrer.

37. NOTICIĂ RIO

Sargento esquartejou a esposa.


Jogou as entranhas na privada. Escondeu cabeça e membros dentro de maletas e foi descoberto porque não soube o que fazer do tronco, ventre, peitos e coxas que um dia ele jurou que amava.


38. MAR AUSENTE

a. Duas luzes iluminam o caminho até a pequena igreja envolta em névoa e nuvem no alto da encosta. Apenas duas luzes mantém aceso o sendeiro da fé que some-e-surgesome-e-surge sob a dança fria da neblina. Apenas duas luzes desenham no ar o contorno azul da antiga igreja. A fé dos homens flutua em meio à densa névoa. Mar não há.

b. O mar sumiu. O som das ondas denuncia presença na ausência. Mar submerso no vazio como o próprio verso e seu reverso. O céu está tão baixo que se pode tocar. Nuvens. Névoa. Seivas do paraíso.


Mar não há. Nem barco. Nem tênue linha do horizonte longínquo. Não há para onde remar se mar não há. Nem para onde ir se o mar fugir. E levar para não sei o seu líquido remanso.

c. Mar não há. Tampouco areia e suas pegadas. Nem versos para os deuses. Deusas não há em pele e bronze. Nem pequenas conchas. Pérolas ou madrepérolas. Nem gaivotas equilibradas no vento que vem do sul. Nem peixes com asas nem garrafas com mensagens de amor e socorro. Miragens também não há. Apenas a música que desenha a ausência do mar. Oceano de desejos. Maramargos. Maremotos. Maravilhas. Mar-a-mar.


39. VELHOANONOVO

Eis a vida circular: um ano termina outro comeรงa. Mas nada finda e nรฃo hรก nada que meรงa o verbo futuro sua luz seu tamanho. Eis a vida circular: em ondas sem mar. Em rios sem fim. Em largos


remansos que nunca estanca. Nunca é o nome do sonho. Eis a vida circular: espiral sempre nova, Sempre surpresa num vai e vem pendular. Traz de volta as manhãs e a paixão se renova.

40. NOITE

Luzes lentas. Luzes perdidas. Luzes vazias entre mesas e garrafas .


Uma homem grita: Meu Deus! O vento frio levanta as toalhas. Vem tempestade depois da bonança. Ele beija a boca da mulher ao lado. Reacende paixões embriagantes. Ergue bem alto a taça de vinho. E deixa cair sobre sua cabeça o tinto bálsamo. Rua. Vozes. Almas solitárias renascidas de pequenas lembranças. Amores delirantes em guardanapos amassados. Versos sem pé nem cabeça. Desejos que ardem sob a pele. O pobre homem grita: Meu Deus! Os olhos cheios de perguntas. As mãos cheias de respostas e espanto. Poesia e fé queimam seus lábios. O silêncio chega avassalador. Oco silêncio onde não cabe nenhuma noite. Infinda.


41. TRILOGIA DO ABISMO

a. À minha volta o horizonte (infinito) Dentro de mim o horrendo (vazio) A transparência do dia ( indefinido) corrompe a noite feia que (definha) Meu peito ruge de dor (indefinida) Meu coração lamenta o céu (infinito) Pássaros se lançam na amplidão (vazia) A vida passa indefinida e (dura)

b. Todas as canções (

) que canto soam velhas

Eu as odeio com amor (

) infiel mas duradouro

Sou perverso com o mundo ( Nenhum verso é (

) mas não com a vida

) maior do que o poema


Somente os que revelam ( Me interessam a (

) beleza e desespero

) morte e suas perdizes

c. (As delícias que jamais vivi ) me enlouquecem (Estou sozinho com minha) coroa de espinhos (Não há perdão para mim) o condenado (Apenas o dilúvio em meu) feroz abismo


42. A RUA

A rua é tudo o que se deseja. Tudo que se despreza. A rua é veia aberta que jorra sangue e lágrimas. Fonte inesgotável de gritos e sussurros e estrelas incendiárias. A rua é tudo: cloaca e rio. Redemoinho e caminho. Tempestade e


revolta Na rua cabe corações abertos. Olhos dilacerados. Almas em ponto de bala. Almas alegres como bolas de néon. A rua é rumo e rito. Possessão e exorcismo. Paixão e fúria A rua é mágica. A rua é trágica. Flor e bomba explodindo no asfalto. Primavera em pleno outono. Nuvens de fumaça e dor nos olhos famintos. Nas mãos em chamas. Estilhaços de sonhos e anjos sem asas atirados de viadutos. Na rua tudo cabe. Mas é além da rua que está a esperança. A canção do futuro A paz que transforma está além da rua.


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