Revista Avesso: Pensamento, Memória e Sociedade

Page 1

AVESSO

PENSAMENTO, MEMÓRIA E SOCIEDADE

v.1, n.1, 2020


ito A F ma Lá a” Tr to no l i fia e c lid sos ne in A s de na zo té té om L’ Ju lit s au ch gu ou op r r vas nd G os ad r y A fan tud id cio Sa et en os h lia iq da n in a a ic ur r io al m e ac nt ti y en na ns p Ir ex ál al el b vã ol do ia e le o ti li o oli a u an M ue li a d e: t E e wo on V ter a G es ntr nta ia M (C açõ ajos o ogia s p is e ner mo f th dad sm ne tiq n: id ali P o s s j ma giat ince atu réc ays evis tiv ove R) es s do La i co ovo m d Di rta e fa e n cu No ue en ud n. nz ra g ia on ta a d me co oc s e ncl m s i ec rei lity cto aci rdo tas Vin ti A o m i i e j u r n i t o or ciai Syd stu Sa reg e ár cin com co nt o v oec es sió ela díg sõe o e of b rs b nal : re sob cen g s n n ç e s o f r n a e e e sp ani Y ney dy o son t as ma Júl str Tath etor nôm Mar y l ão à nas jud Nar lack hin Ju orm e o iri za as An f t e rad ad , a ia uir ya d i ía a ic rat A d lia ul n i e c n ç j m R t a a i t ua ual ão in ten he f No uzid ace nth eb cen na co as Alej xclu ter co ais iva: mer he Mon açã s e e ac ta o nt ro ou ic Am nc no an s aç ns Y U ic m g o ci ió ã t a m a a i ón So oci Ma r s e p ç a e Se a fia al fu Dir tors sob por s n olo as me ara ntr mei dra n d o e ruç sm a a n w tern at aç o r Cá el nt ão ine ná om al rg ctu G e c lde ei be re He a é gy M nt l to h o it p an ar e a A ão ur ce in re d M li a a m io al alv os ei Lu d ã m A e ind n or oca d ia r rev fu al re di o e s a se n. nd o e o ol co Na t ac Fa d do na ep ol n : u s o e mu ua ful do S og rp rr he io gu e cu S re ut di m Me n n r r rur is O l in d s y j L ur al ed di a ia or at m na nd Ho m ler se io ári a a ri M do org e dis d al : u a o b in co al iva at lis e m en ca nt n i a. n no éx fí an A cu ál e ic si iz co r ed (C m Tr aj cl m ida : U er mo s B er ta e aç n P ro PR a a ue os usi re de m na c el o: ry G ão Ch ed ise Se o: L co aç rp ál A ) ná ba do ón la d a l a ur oc Ev fil ust de ile ro cr rg a e e ão ora ia lm co li ç o a i s s s í . n d h id m a Mo ei m se As s ej y la ão s p nál d i o: r L ên ma vo um Bu Alm tica o Lu itua pir oci ut v da o cr n es e à ov ise nf ef ’h ci ki Ru gê t w eid ac is ci itu al i a o a io em M ve ít ov x o n o n to ic as M clu ter s i do nti rm mo s d ng iz ner her a M erc Oje ón al e e Le in C nt nico r da a ac re aría sió açã ndí s di le m ula sex os p (20 Re o n e to en a d da act So g s n l ç u i 1 s ã a T u h iva te ile Tat ni con erca açõ Ale de o en ena cur ort ão alit rim 9) enh o in ? P icon cé rue al d de “Nã . Bu hya Leg cen da es s jan l ind tre s na sos ality de i é e eiro Ca a d tel iet i L dul ba e nt co o e t w na aci tra cé oci dra io o m co rac of den n Ir s d mi o li igív ro eg a d As e ns la he Am es çã du oe C en u n ia b ti an oc lle vr el Le ac o p a o s á l i d i o rep trui ” ou re t ara of t o fu la d con cer Mé ndo tru is e ack ad : id ume San Th Ol te es o rod de r r o? l he nd o ôm es xic fí çã m A e n en nt t'a e l ive “N f u a c e ro um sen eni ten P A r Tr iár pro ica Me o: sico o d dec me aci tité os nn ook r O ão the in lív el nã gê ta ca ta iet evo opi ia. dut s n rin La e e s isõ ric on et esc a g ia u m a t r c o o o si e r n o n ç l

po


a

e

i

PENSAMENTO, MEMÓRIA E SOCIEDADE Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP

n

o

n

ç

m

c

o

o

REVISTA AVESSO

o

l

r

1

Avesso


2 Comissão Editorial

REVISTA AVESSO

V. 1

PENSAMENTO, MEMÓRIA E SOCIEDADE

N. 1

Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP

2020

Editores Responsáveis Gustavo Ruiz da Silva Universidade de São Paulo, Brasil. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Mariana Slerca Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Editores Adjuntos Adriana Mári Mandacarú Guerra University of Hawaii, Estados Unidos. Júlia Mongiat Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Sofia Samea Sousa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Thomaz Gaspar Moreira Viegas Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

Projeto Gráfico e Diagramação Alexandre Duarte Bassani Escola da Cidade, Brasil. Capa Maria Fernanda Simonsen Escola da Cidade, Brasil.

Avesso


3 Comissão Editorial V. 1 N. 1

Comissão Editorial

2020

Antônio Rago Filho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Carla Cristina Garcia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Maura Pardini Bicudo Véras Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Miguel Wady Chaia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. José Paulo Florenzano Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Yolanda Gloria Gamboa Muñoz Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Comitê Científico Acácio Augusto Jr. Universidade Federal de São Paulo, Brasil. Adilson Semedo Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde. Alessandro de Lima Francisco Universitè Paris VIII: Vincenne–Saint-Denis, França. Alcides Ramos Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde. Chiara Piazzesi Université du Québec à Montréal, Canadá. Christian Laval Universitè Paris X: Paris Ouest - Nanterre-La Défense, França. Cristina Lopes Universidad Nacional de San Matín, Argentina. Diogo Sardinha Collège Internacional de Philosophie, França. Geraldo Adriano de Campos Avesso


4 Comissão Editorial V. 1 N. 1 2020

Avesso

Universidade Federal de Sergipe, Brasil. Gustavo Romero Universidad de Buenos Aires, Argentina. Isabella Oliveira Goulart Faculdades Metropolitanas Unidas, Brasil. Jean Tible Universidade de São Paulo, Brasil. James Green Brown University, Estados Unidos. Joana Coutinho Universidade Federal do Maranhão, Brasil. João Lima Universidade Licungo, Moçambique. Jorge Dávila Universidad de Los Andes, Venezuela. Jorge Varanda Universidade de Coimbra, Portugal. Katarzyna Biernacka-Licznar Uniwersytet Wroclawski, Polônia. Luiza Margareth Rago Universidade de Campinas, Brasil. Maria Xavier de Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Marcelo Raffin Universidad de Buenos Aires, Argentina. Monica Wozniak Università degli Studi di Roma, Itália. Marta Francisca Topel Universidade de São Paulo, Brasil. Rahul Kumar Universidade de Coimbra, Portugal. Ricardo Nascimento Fabbrini Universidade de São Paulo, Brasil. Rodolpho Bernabel


5 Comissão Editorial V. 1 N. 1

Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil. Salma Tannus Muchail Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Silvana de Souza Ramos Universidade de São Paulo, Brasil. Silvio Ruiz Paradiso Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil. Thomás Zicman de Barros Institute d’Études Politiques de Paris, França.

2020

Avesso


6 Sumário V. 1 N. 1 2020

Artigos

Editorial

18

Vincenzo Sansone

22

L’homosexualité en Iran: identité et politique

Julia Mongiat

38

Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação de identidade nacional

Sydney Antener

60

A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

Yasmine Mafulde

74

Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

María Alejandra Cáceres Merino e Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes Avesso

92


7

Sofia Galvão

108

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

Pedro Almeida Meniconi

122

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

Tathyana Amaral

138

Legacies of the Tropicália Movement

Entrevista

Mariana Slerca e Gustavo Ruiz

154

Entrevista com Júlia Rebouças

Ensaios

Pietro Leite

166

A revolution in Chile. But where to? Avesso


8 Sumário V. 1 N. 1 2020

Oliver Olívia Lágua

180

“Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

Tradução

Heitor Fagundes Beloch

192

A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Resenhas

Camille Sant’anna The looking machine: essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (2019)

Avesso

212


9

Avesso


10 Diretrizes

REVISTA AVESSO Pensamento, Memória e Sociedade

V. 1 N. 1

DIRETRIZES PARA AUTORES

2020

A Avesso, Revista de Ciências Sociais da PUC-SP foi criada a partir do desejo discente de promover um estímulo ao artesanato intelectual nas ciências humanas desde a graduação. Encarnando o movimento de revirar, o trazer de dentro para fora e de fora para dentro, a revista expressa seu apreço pelos fios soltos, pelas contingências do caminho, quase sempre travessas e avessas mas necessárias a uma boa formação. O periódico foi ele mesmo pensado como tecido, uma rede interdisciplinar formada pela costura contínua de diferentes pesquisadores vinculados a instituições nacionais e internacionais. Assim, são bem vindos artigos, traduções, resenhas, entrevistas e ensaios, com temas vinculados aos diversos campos das Ciências Humanas (Antropologia, Direito, Filosofia, Geografia, História, Política, Relações Internacionais, Serviço Social e Sociologia) tanto na língua portuguesa como em espanhol, francês e inglês. A política de seleção dos textos a serem publicados na Avesso ocorrerá através do sistema de parecer duplo-cego, sendo examinados por dois pareceristas apropriados dentro de um escopo que abrange pesquisadores das principais áreas abrangidas pela revista. A aprovação do texto ocorrerá após o retorno de ao menos um parecer favorável à publicação. No caso de pareceres contrários, o texto será enviado para análise de um terceiro parecerista. Somente serão aceitos trabalhos inéditos na área de humanidades, que também não tenham sido encaminhados simultaneamente para livros ou outros periódicos do país ou do exterior. Não existe a possibilidade de publicação de artigos de mesma autoria em uma mesma edição. Uma vez enviados, os trabalhos serão previamente acolhidos pelos integrantes da Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora do escopo da revista serão Avesso


11 Avesso V. 1 N. 1 2020

devolvidos aos autores para que os demais sejam encaminhados para seus respectivos pareceristas. Há variação do prazo de resposta, seja de aceitação ou recusa, que dependerá de variáveis nas avaliações e de eventuais modificações sugeridas pelos pareceristas ao autor. As datas de recebimento e aprovação de cada artigo estarão presentes no texto publicado. É a partir de critérios estabelecidos pela Comissão Editorial, a cada número da revista, que será feita a seleção de textos. As normas a seguir são condição para aprovação do texto. O trabalho (Artigo, Resenha, Tradução, Ensaio, Entrevista) submetido deve contemplar uma das áreas de estudos das Ciências Humanas e um vínculo acadêmico do autor com uma instituição é estritamente indispensável. Somente serão aceitos textos digitados em arquivo .doc ou .rtf, com fonte Times New Roman tamanho 12 (para as citações de mais de três linhas tamanho 11 e 10 para as notas de rodapé) e espaçamento entre linhas de 1,5. Além disso, as páginas devem estar numeradas sequencialmente e possuir margem direita e superior de 2cm e esquerda e inferior de 3cm. Na dúvida quanto aos espaços, margens, citações, deve-se consultar as normas da ABNT. Os artigos devem ter o mínimo de 10 páginas e máximo de 20 páginas e devem incluir na primeira página um resumo indicativo (NBR 6028 - ABNT), com no máximo 100 palavras e cinco palavras-chave, separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto no idioma do texto mas também com tradução em inglês na mesma formatação. Para traduções, resenhas e ensaios as regras variam, não sendo necessário resumo/abstract. Sendo o número máximo de páginas para resenhas e ensaios respectivamente 5 e 8. Tabelas, quadros, gráficos e figuras (fotos, desenhos e mapas) devem ser numerados a medida em que aparecem no artigo, sempre referidos no corpo do texto com seu respectivo título e ordenadas ao final nessa Avesso


12 Diretrizes V. 1 N. 1 2020

mesma ordem. As figuras necessitam de respectivas legendas textuais localizadas logo abaixo da imagem. Os mapas devem conter escalas e legendas gráficas. As imagens devem estar digitalizadas em formato JPG com resolução a partir de 300 dpi. As imagens devem ser enviadas separadamente, em seus arquivos originais. Cada arquivo deve ser nomeado correspondentemente ao nome da imagem no artigo (por exemplo: Mapa1). As citações no corpo do texto devem obedecer aos seguintes critérios: citações textuais de até três linhas devem ser incorporadas ao parágrafo, transcritas entre aspas e acompanhadas pelas seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor da citação, ano da publicação e número de páginas; citações textuais de mais de três linhas devem estar em parágrafo isolado, com recuo de 4 cm na margem esquerda, tamanho 11 e sem aspas; caso não haja citação textual, mas apenas referência ao autor, o sobrenome deste deve ser indicado entre parênteses, em caixa alta, junto com o ano da publicação referida. Referências bibliográficas devem seguir a norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem constar na bibliografia, intitulada Referências (ou Bibliografia/ Referências Bibliográficas), em página final do artigo. Ao submeter o trabalho para apreciação da Comissão Editorial, o(a) autor(a) autoriza a Revista Avesso a publicar o respectivo trabalho, concordando em ceder completamente os direitos autores do material enviado, sendo vetada a utilização parcial ou integral, em qualquer outro meio de divulgação, sem a autorização prévia do periódico. Além disso, o(a) autor(a) se responsabiliza totalmente, em seu próprio nome e eventuais coautores, pelo conteúdo do material apresentados.

Avesso


AVESSO JOURNAL

Thought, Memory and Society

13 Guidelines V. 1 N. 1

GUIDELINES FOR AUTHORS

2020

Avesso, The PUC-SP Social Sciences Journal, was created as of student desire to foster the intellectual craft in the humanities as early as undergraduate studies. Embodying the movement of transverting, bringing it from the inside out and from the outside in, the magazine expresses its appreciation for loose strands, and for the contingencies of paths, almost always mischievous and wrong, although necessary steps for a good education. The journal was itself conceived as a fabric, an interdisciplinary network made by the continuous stitching of different researchers linked to national and international institutions. Thus, articles, translations, reviews, interviews and essays are welcome, with subjects related to the various fields of Human Sciences (Anthropology, Law, Philosophy, Geography, History, Politics, International Relations, Social Work and Sociology) in Portuguese, Spanish, French and English. The selection of the texts to be published in Avesso will occur through a double-blind reviews system. Each submission will be examined by two appropriate referees from a spectrum including researchers from the journal focus areas. The submission will be approved after at least one opinion favorable to its publication. In the case of conflicting opinions from the reviewers, the text will be sent to a third part referee. Only unpublished works in the humanities area, which have not been simultaneously sent to books or other periodicals in Brazil or abroad, will be accepted. There is also no possibility of publishing two or more articles of the same authorship in the same issue. Once submitted, the works will be previously filtered by the Editorial Board members. Those that are outside the scope of the journal will be returned to their authors, the remaining being sent to reviewers. Avesso


14 Guidelines V. 1 N. 1 2020

Avesso

Response time varies, for both acceptance and refusal. It will depend on variables in the evaluations and on any modifications suggested by the reviewers to the author. The dates of receipt and approval of each article will be present in the published text. It is based on criteria established by the Editorial Committee, for each issue of the journal, that texts will be selected. The following rules are prerequisites for text approval. The paper (Article, Review, Translation, Essay, Interview) submitted must be in one of Human Sciences areas of studies, and an academic bond of the author with an institution is strictly indispensable. Only texts typed in .doc or .rtf file, Times New Roman font size 12 (for quotes of more than three lines size 11, and size 10 for footnotes) and 1.5 line spacing will be accepted. In addition, the pages must be numbered sequentially, and have a right and top margin of 2cm and left and bottom of 3cm. When in doubt about spaces, margins, quotes etc. consult ABNT standards. Articles must have a minimum of 10 pages and a maximum of 20 pages, and must include on the first page an indicative abstract (NBR 6028 - ABNT), with a maximum of 100 words and five keywords, separated by a period, and also ending by period in the language of the text, and also in the abstract English translation, that shall follow the same format. For translations, reviews and essays the rules vary, and no abstract is required. The maximum number of pages for reviews and essays is respectively 5 and 8. Tables, charts, graphs and illustrations (photos, drawings and maps) should be numbered as they appear in the article, always referred to in the body of the text with their title, and ordered at the end in the same order. The illustrations need their textual captions located just below the image. Maps must contain scales and graphic legends. Images must be scanned in JPG format with a resolution from 300 dpi. Images must be sent separately in their original files. Each file must be named corresponding to


15 Avesso V. 1 N. 1 2020

the name of the image in the article (e.g: Map1). Quotes in the body of the text must meet the following criteria: textual citations of up to three lines should be incorporated into the paragraph, transcribed in quotation marks, and accompanied by the following information in parentheses: quoted author’s last name, year of publication, and number of pages; textual quotes of more than three lines should be in single paragraph, with indent of 4 cm in the left margin, size 11 and without quotation marks; If there is no textual citation, but only reference to the author, the author’s last name should be indicated in parentheses, in upper case, along with the year of publication mentioned. References should follow the technical standard NBR6023, of 08/30/2002, of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only the works cited throughout the text should be included in the bibliography, entitled References, on the article’s final page. By submitting a paper for consideration by the Editorial Board, the author authorizes Avesso to publish the submitted work, as well as is aware of being responsible for the use of the images, if accepted by the electronic publication. In addition, it is fully liable for the material presented.

Avesso


16 Guidelines

EDITORAL

V. 1 N. 1 2020

A chamada inicial que deu origem ao primeiro número da Revista Avesso se desdobrou do desejo de um espaço em que os alunos de graduação pudessem exercitar a escritura acadêmica e tecer redes para além de suas disciplinas. Acreditamos que todos podem produzir saber, independentemente de seu grau de especialização acadêmica, por isso tentamos possibilitar este exercício introdutório de maneira completa, possibilitando a submissão de textos para análise atenta de nosso corpo editorial comprometido com a formação de jovens pesquisadores. Planejávamos, assim, compor a revista com textos que percebessem os diversos interesses contemporâneos dos que ainda se encontram no primeiro ciclo universitário. Uma de nossas escolhas foi, além de primar por um escopo interdisciplinar, interseccionar a produção internacional à brasileira, fazendo com que jovens pesquisadores de outros países publicassem conosco, mesmo que em outras línguas. Nesta edição publicam-se textos em português, mas também em francês, inglês e espanhol, línguas com grande inserção no sistema acadêmico brasileiro – recebemos artigos, resenhas e ensaios do México, Canadá, Estados Unidos e outros estados brasileiros que não São Paulo. É com muita alegria, então, que anunciamos nosso primeiro volume da Revista Avesso! Com a contribuição de várias/os colegas pesquisadoras/es, cumprimos com muita satisfação nossos esforços iniciais. Pesquisando Foucault na Université d’York, no Canadá, Vincenzo Sansone, que é italiano de nascença, nos apresenta uma análise sobre a questão da homossexualidade no Irã, em especial aquilo que consiste às questões da identidade pessoal e nacional, assim como da política iraniana pós-revolução. Em seguida, temos outro estudo sobre o oriente médio. Julia Mongiat, estudante da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, analisa a criação do Partidos dos Trabalhadores do Curdistão, assim como o processo de construção da identidade naAvesso


cional curda a partir do Confederalismo Democrático. No terceiro texto, agora estudando os Estados Unidos da América, Sydney Antener, graduanda do City College of New York, analisa os dados de mortalidade infantil e maternal a partir do recorte de raça, apontando quais são os fatores que circunscrevem a situação das gestantes e recém nascidos negros nos EUA. Seguindo o estudo de questões raciais, Yasmine Mafulde, aluna da Universidade Presbiteriana Mackenzie, faz uma análise dos discursos raciais nas decisões judiciais da Suprema Corte dos EUA, interseccionalizando as noções de Direito e Narrativa a partir dos estudos de Barthes.

17 Avesso V. 1 N. 1 2020

Ainda pensando em questões étnicas, em seguida, trazemos dois artigos sobre a realidade indígena na América Latina. O primeiro deles, de Maria Alejandra Cárceres Merino e Sergio Luis Ojeda Trueba, respectivamente alunos da Universidad Iberoamericana e Universidad Autónoma do México, pondera a questão da exclusão indígena no México a partir das questões linguísticas e educacionais, apontando o reflexo do Estado na vida dos sujeitos em questão. O segundo, de Sofia Galvão, estudante da Universidade de São Paulo, nos apresenta um estudo sobre a corporalidade dos povos indígenas brasileiros a partir de sua cosmovisão, dando ênfase na relação entre seu mundo físico e espiritual. Seguindo a linha dos estudos brasileiros, os últimos artigos se focam em problemáticas aparentemente diferentes, mas de fato muito pouco distantes quando vistas distanciadamente. O penúltimo texto, de Pedro Almeida Meniconi, também da Universidade de São Paulo, nos traz uma análise socioeconômica das relações rurais brasileiras, pensando tal realidade a partir das categorias marxistas, em especial no que concerne às cédulas dos produtores rurais (CRP) enquanto vetores de concentração fundiária no interior do Brasil. O último artigo, contudo, de Tathyana Amaral, da Brown University, também estuda nossa realidade social, porém a partir de sua produção cultural: o cenário musical durante a ditadura militar entre os anos de 1964 e 1968, investigando as tradições artísticas da Bossa Nova e Tropicália relacionadas às concepções de identidade nacional. Partindo para outros gêneros textuais, nós trazemos também uma entrevista com a pesquisadora e curadora independente de arte Júlia Rebouças. Nela traAvesso


18 Guidelines V. 1 N. 1 2020

tamos sobre a situação atual da museologia nacional, formação pessoal e influências da entrevistada, e assuntos correlatos àquilo que circunda os estudos artísticos e curatoriais brasileiros contemporâneos. Dois ensaios também estão sendo publicados. O primeiro deles, de Pietro Leite, graduando da Harvard University, nos aponta certas problemáticas presentes na revolução chilena de 2019 a partir da cobertura da mídia nacional, indicando possíveis causas da citação em questão nos contextos educacionais, de saúde, previdenciários, pobreza e desigualdade. O segundo texto, de Oliver Olívia Lágua, da Universidade de São Paulo, nos introduz a peça “Não ela”, de Lucas Miyazaki, de 2019, para pensar a cis e transgeneridade a partir das categorias analíticas de Judith Butler e Paul B. Preciado. O penúltimo texto já é uma tradução intitulada “A Fauna da Grécia e as áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega”, um texto de Elini Voultsiadou e Apostolos Tatolas, ambos da Universidade Aristóteles de Tessalônica. O exercício de traduzir o estudo da composição faunística da Grécia Antiga ineditamente para o português ficou a cargo de Heitor Fagundes Beloch, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Encerrando essa edição, o texto de Camille San’Anna, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, resenha o livro “The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography)”, de David McDougall, em 2019 – um conjunto de ensaios escritos pelo diretor de cinema e referência dos estudos de antropologia visual no Brasil. Boa leitura a todas/os! Editores deste volume da Revista Avesso: Gustavo Ruiz da Silva Universidade de São Paulo/ Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mariana Slerca Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso


19 Avesso V. 1 N. 1 2020

Avesso


20 Artigos V. 1 N. 1 2020

Mots-Clés Homosexualité Iran Identité Politique

University York

Avesso

Vincenzo Sansone L’homosexualité en Iran: identité et politique Homosexuality in Iran: identity and politics

Puisque à partir de 1979 l’homosexualité a été sévèrement punie par le gouvernement iranien, cet article s’intéresse à tracer un profil historique du désir homosexuel en Iran afin d’en expliquer sa progressive répression. En analysant comment la question homosexuelle illustre la relation et les tensions entre sexualité, société et état en Iran, la recherche vise à appliquer les thèses de Michel Foucault et de Joseph Massad pour examiner le développent de modèles sociaux au sein desquels différentes pratiques ou identités sexuelles sont jugées acceptables ou non. En définitive, ce travail montre comment l’analyse de l’homosexualité en Iran décrit un conflit à la fois identitaire et politique entre les canons de sexualité occidentale et les dynamiques de la société iranienne. Après avoir présenté la notion de Foucault de sexualité et les observations de Massad concernant l’homosexualité dans les pays du Moyen-Orient, l’article offre une perspective historique du contexte iranien aux niveaux socioculturels et juridico-politique par rapport à l’homosexualité. Enfin, une périodisation de l’histoire iranienne est formulée en utilisant l’homosexualité en tant que dispositif historique, mettant donc en contexte les changements des attitudes de la société et de l’état iraniens dans le cadre interprétatif foucaultien. La périodisation proposée confirme que l’évolution de la question homosexuelle en Iran est strictement liée au processus d’influence des pratiques et des idéologies occidentales dans les pays non-occidentaux.


21 Vincenzo Sansone HomosexualitĂŠ en Iran

Since 1979 the Iranian government has severely punishing homosexuality, this article is concerned with drawing a historical profile of homosexual desire in Iran to explain its progressive repression. By analyzing how the homosexual question illustrates the relationship and the tensions between sexuality, society and state in Iran, the research aims to apply the theses of Michel Foucault and Joseph Massad to examine the development of social models within which different practices or sexual identities are deemed acceptable or not. Ultimately, this work shows how the analysis of homosexuality in Iran describes a conflict that is both identity and political between the canons of Western sexuality and the dynamics of Iranian society. After presenting the eddy notion of sexuality and Massad’s observations concerning homosexuality in the countries of the Middle East, the article offers a historical perspective of the Iranian context at the socio-cultural and legal-political levels concerning homosexuality. Finally, a periodization of Iranian history is formulated using homosexuality as a historical device, thus putting into context the changes in attitudes of Iranian society and state in the foucaultian interpretative framework. The proposed periodization confirms that the evolution of the homosexual question in Iran is strictly linked to the process of influence of Western practices and ideologies in non-Western countries.

Keywords Homosexuality Iran Identity Politics

Avesso


22 Artigos V. 1 N. 1 2020

University York

Avesso

INTRODUCTION Depuis la révolution islamique de 1979, une répression systématique de l’homosexualité a été conduite par le gouvernement iranien dans le cadre d’une progressive institutionnalisation du refus des mores occidentaux (Martino et Kjaran 2018, 27). Dans ce contexte, nous trouvons très pertinent de comprendre les mécanismes à travers lesquels la question homosexuelle définit la relation entre société et état, surtout en éclaircissant les tensions qui en découlent. L’objectif de notre recherche est de montrer comment l’analyse de l’homosexualité en Iran décrit un conflit à la fois identitaire et politique entre les canons de sexualité occidentale et les dynamiques sociales iraniennes. Cette étude vise à répondre aux suivantes questions de recherche : (1) quelle est la condition actuelle de l’homosexualité en Iran ? (2) Dans quelle mesure les enseignements théoriques de Michel Foucault et de Joseph Massad peuvent-ils être révélateur des dynamiques culturelles et politiques impliquées dans la construction d’une gestion nationale de catégories identitaires qui ne sont pas conformes aux structures traditionnelles de la société iranienne ? Les réponses que nous aurons obtenues seront révélatrices en dernière analyse des liens entre la sexualité et la mondialisation. Notre étude sera organisée en trois parties. Dans un premier temps, nous étudierons la notion de sexualité selon les enseignements foucaultiens et les observations de Massad concernant l’homosexualité dans les pays du Moyen-Orient (I). Dans un second temps, nous offrirons une perspective historique du contexte iranien aux niveaux socioculturel et juridico-politique par rapport à l’homosexualité (II). Enfin, nous présenterons les intérêts de Foucault sur l’Iran et proposerons une périodisation de l’histoire iranienne en utilisant l’homosexualité comme dispositif historique. Le contexte iranien présenté sera donc mis en contexte dans le cadre interprétatif dans lequel cette recherche s’inscrit (III). Je précise tout d’abord que, dans ce travail, les termes qui décrivent la communauté LGBTQI+ et leurs membres seront utilisés en fonction de la terminologie employée dans la littérature académique qui appuie cette étude.


23

CONTEXTE THÉORIQUE : SEXUALITÉ ET GOUVERNANCE

Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

Foucault : histoire de la sexualité Le premier volume de l’ouvrage Histoire de la sexualité (1976) est l’un des écrits les plus influents de Michel Foucault qui a contribué à l’élaboration de théories sociologiques contemporaines, en particulier de la discipline dédiée aux études de genre et de la sexualité qui, au cours des dernières décennies, a continué à se développer et à acquérir une considérable valeur académique. Les théories et observations postulées dans ce volume sont nombreuses et fascinantes. En ce qui concerne le sujet d’intérêt dans notre analyse, nous ne présenterons qu’aucunes parmi les réflexions de Foucault. Les réflexions foucaultiennes commencent par l’observation de l’hypothèse dite «répressive» selon laquelle la société occidentale contemporaine est encore caractérisée par une répression du désir sexuel dérivant de l’hypocrisie de la bourgeoisie victorienne, qui confinait la sexualité à la sphère conjugale. Par conséquent, toute autre manifestation sexuelle était considérée comme une transgression et, en tant que telle, était réprimée par la morale commune et exercée uniquement dans des contextes de marginalisation sociale, comme les lieux de prostitution ou la psychanalyse (Foucault, 1976, pp. 9-11). Foucault (1976, p. 15) suggère que l’hypothèse répressive attribue une importance révolutionnaire à la sexualité en renforçant l’idée d’un avenir «destiné à dire la vérité sur le sexe » qui se caractérise par une libération de la sexualité. Le philosophe rejette cette hypothèse, illustrant que, depuis le XVIIIe siècle, il y a eu une progressive « explosion de discursivités distinctes» sur le sexe, qui dépasse le contexte religieux et concerne les domaines académiques et politiques, en révélant le lien intrinsèque entre sexualité et savoir (Foucault, 1976, pp. 46). L’incitation au discours sur la sexualité équivaut donc à une volonté de tout savoir sur le sexe et se concrétise avec l’élaboration de la scientia sexualis qui vise à révéler la vérité de la sexualité (Foucault, 1976, pp. 91). Ces études établissent les conditions pour la création d’une gestion de la vie sexuelle : ainsi voit-on naître une «politique du sexe» qui, à partir du XVIIIe siècle, acquiert un caractère régulateur (ce que Foucault appelle biopouvoir) et opère Avesso


24 Artigos V. 1 N. 1 2020

une gestion de la sexualité, qui n’équivaut pas nécessairement à sa répression (Foucault, 1976, pp. 183). Dans la quatrième partie du volume, Foucault (1976) trace une périodisation de l’histoire de la sexualité, en établissant la dernière en tant que dispositif historique, à partir duquel nous pouvons comprendre l’évolution des discours sur le sexe, autant que leurs impacts au niveau du savoir et du pouvoir. En ce qui concerne l’homosexualité, Foucault (1976, p. 59) note qu’au XIXe siècle, l’homosexuel a cessé d’être un simple sujet juridique, impliqué dans un acte considéré illicite (la sodomie), pour devenir un «personnage». Avec ce terme, Foucault (1976) reconnaît la naissance d’une identité créée par rapport à la sexualité en soi. Le philosophe fixe la date de naissance de l’homosexualité en 1870, année de publication de l’article de Westphal sur les «sensations sexuelles contraires» (Foucault, 1976, pp. 60). À partir de cette année, elle deviendra un sujet privilégié de la littérature médicale. L’apparition dans ces études de la catégorie de l’homosexuel comme sujet pervers a permis la naissance d’un « discours en retour » qui a progressivement revendiqué la naturalité de l’homosexualité (Foucault, 1976, pp. 134). Au regard de ces observations et en vertu des réflexions précédentes, je constate que la relation entre homosexualité et savoir a des répercussions évidentes sur le domaine de la gouvernance sexuelle.

University York

En résumé, Michel Foucault (1976, p. 19–21) a défini la sexualité comme le résultat des « discours sur le sexe » produits par la société, en marquant une division entre cette notion et celle de pratiques sexuelles. Il a établi une relation étroite entre la sexualité (en tant que phénomène discursif sur le sexe), le savoir et le pouvoir et considère, en dernière analyse, que la sexualité est un dispositif historique, grand réseau de surface où la stimulation des corps, l’intensification des plaisirs, l’incitation au discours, la formation des connaissances, le renforcement des contrôles et des résistances, s’enchaînent les uns avec les autres, selon quelques grandes stratégies de savoir et de pouvoir (FOUCAULT, 1976, pp. 139-140). Massad: le Gay International Dans son article, Massad (2002) mène une analyse minutieuse d’écrits sur l’homosexualité au Moyen-Orient,

Avesso


en avançant des critiques qui nous semblent suggérer l’existence de trois tendances interprétatives reposantes sur trois erreurs académiques récurrentes. En premier lieu, il accuse la plupart des chercheurs d’avoir réalisé des enquêtes très problématiques en termes historiques. Effectivement, un grand nombre d’études consiste en interpréter la culture sexuelle dans le monde arabe/musulman à partir de textes classiques, sens tenir compte du dynamisme historique et menant donc à des conclusions fallacieuses. En second lieu, en appliquant les théories foucaultiennes, autres experts sont critiqués pour une lecture des sexualités dans le monde arabe/ musulman en tant que catégories identitaires plutôt que pratiques sexuelles. Finalement, plusieurs analyses sont basées sur un modèle orientaliste qui continue à maintenir l’Ouest comme le point de référence pour l’interprétation de phénomènes, de pratiques et d’identités fondamentalement ancrés dans les sociétés non occidentales, qui sont mythifiées ou problématisées plutôt que traitées comme sujets ultimes d’analyses objectives (Massad, 2002, pp. 365-371). Les caractères d’anhistoricisme, d’existentialisme identitaire et d’orientalisme qu’on a identifiés dans les critiques avancées par Massad (2002) nous permettent de conclure que ces visions ont causé la réalisation de plusieurs conceptions mensongères à propos du sujet en question, à cause du fait qu’elles sont basées sur une approche interprétative stéréotypée. En même temps, les observations présentées nous permettent de clarifier que les points de départ des interprétations de Massad sont effectivement l’intérêt à comprendre les changements d’ordre historique, le rejet de l’existentialisme identitaire dans le contexte des sexualités au Moyen-Orient et le replacement des thèses orientalistes avec l’intentiond’étudier les influences des modèles occidentaux en tenant compte des particularités socioculturelles des sociétés de la région en question.

25 Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

La thèse formulée par Massad (2002) concerne l’analyse du processus d’universalisation des droits homosexuels guidé, à partir des années 1990, par les principaux organismes LGBT, engagés à mener un projet d’internationalisation qui promeut la naissance d’un mouvement global pour la reconnaissance, l’égalité et la libération des gens queer. Du fait de cet esprit missionnaire, Massad (2002, p. 362) appelle ces organismes et les discours qu’ils produisent et diffusent sous le nom de Gay International. L’Association Internationale Lesbienne et Gay (ILGA) et la Commission Internationale Avesso


26 Artigos V. 1 N. 1 2020

des Droits de l’Homme pour les Gays et Lesbiennes (IGLHRC) sont mentionnées en tant que les deux majeures associations qui ont entamé des programmes visant la protection et la promotion des droits homosexuels au Moyen-Orient. À propos de ces organismes, l’auteur apporte deux précisions : tout d’abord, le fait qu’il s’agisse de deux associations fondées en Occident et donc porteuses d’un discours idéologique fondé dans un contexte socioculturel spécifique qui ne reflète pas de normes universelles (Massad, 2002, p. 362) ; en outre, ces organismes ont utilisé et continuent d’utiliser, dans le cadre de leurs campagnes de recherche et de promotion, les thèses formulées par la littérature académique présentée précédemment et discréditées par Massad (2002, p. 370). L’auteur, en retenant la distinction proposée par Foucault entre identité sexuelle et pratique sexuelle, soutient que l’homosexualité a été conçue et développée en tant que catégorie identitaire en Occident, selon une notion qui tente de s’imposer dans les pays non occidentaux, où, par contre, il n’existe pas d’identités LGBT (Massad, 2002, p. 363). Il remarque donc que «sur la base de cet axiome prédiscursif, le Gay International se donne pour mission de défendre [les homosexuels] en exigeant que leurs droits en tant qu’homosexuels soient reconnus là où ils sont refusés et respectés là où ils sont violés» (Massad, 2002, p. 364. Traducion notre). Le fait que les désirs sexuels des Arabes et des musulmans ne conviennent pas aux catégories occidentales est perçu par ces associations comme une instabilité sur laquelle il faut agir pour faire en sorte que les désirs orientaux soient réorientés selon l’épistémologie sexuelle occidentale. HOMOSEXUALITÉ EN IRAN : UN SURVOL HISTORIQUE

University York

Avesso

Cette section sera consacrée à offrir une perspective historique de l’étude de cas que ce travail vise à analyser. En passant en revue les études de Janet Afary (2009), nous illustrerons l’évolution de l’homoérotisme et de l’homosexualité en Iran. Il est donc important de préciser que notre discussion prend conscience du dynamisme de l’histoire et se propose de comprendre l’évolution des contextes juridique, politique et socioculturel en Iran. Nous offrirons une perspective historique, largement acceptée par la littérature académique, sur les désirs et les pratiques homoérotiques à partir de l’époque


prémoderne, sans pour autant utiliser les structures sociales anciennes pour justifier les particularités de la période contemporaine.

27 Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

La littérature académique admet unanimement que l’existence de types d’homosexualité entre les musulmans et, en particulier, les Iraniens, est beaucoup plus ancienne à la rencontre avec la modernité occidentale. En effet, de nombreux écrits prémodernes, qui témoignent de pratiques et de relations homoérotiques, offrent des informations importantes pour analyser ces relations (Afary, 2009, p. 107). À partir des recherches prises en considération pour la rédaction de ce travail, nous avons identifié trois différences principales par rapport au concept d’homosexualité accepté aujourd’hui en Occident. La première est que les relations homoérotiques étaient étroitement liées au statut des deux partenaires et définissaient des relations asymétriques, «impliquant des personnes d’âges, de classes ou de positions sociales différentes» (Afary, 2009, p. 79. Traducion notre). De plus, cette asymétrie était respectée dans l’acte de pénétration, durant lequel le rôle actif ou passif était fixé et strictement respecté. Enfin, ces rôles étaient parfois associés à des comportements de genre, respectivement masculins ou féminins. Cependant, de la même manière que les hommes ayant des relations sexuelles avec des femmes n’étaient pas considérés comme hétérosexuels, ceux qui participaient à des relations homoérotiques ne se voyaient pas attribuer une catégorie identitaire correspondant à celle des homosexuels (comprise selon la conception occidentale moderne). La relation homoérotique la plus fréquente impliqait un jeune homme (amrad, adolescent sans barbe) et un homme d’âge mûr. Ce dernier, s’il pratiquait des rapports sexuels avec des femmes, affirmait son hyper-masculinité en participant en même temps comme actif à des relations homoérotiques. Inversement, le désir d’un homme adulte d’être soumis sexuellement était perçu comme une perversion, traitée dans la littérature médicale qui a été conservée à ce jour (Afary, 2009, p. 86). Il est important de souligner que ces relations homoérotiques se caractérisaient par un processus de séduction mené par le partenaire actif, qui, dans de nombreux cas, devenait le protecteur de son amrad et compensait son rôle passif par des cadeaux et des faveurs concernant son avenir. La littérature célèbre ce type de relations entre les souverains et leurs pages, relatant des Avesso


28 Artigos V. 1 N. 1 2020

University York

épisodes de jalousie (Afary, 2009, pp. 89-90; 93-94). Il a été révélé que la sphère de l’amour dans les relations homoérotiques était en effet bien plus forte que l’affection conjugale, car les mariages se combinaient très tôt, tandis que les relations homoérotiques progressaient lentement et suivaient les conventions de la séduction (Afary, 2009, p. 80). Des pratiques similaires ont également existé dans les milieux féminins, dont l’existence est signalée jusqu’au milieu du XIXe siècle (AFARY, 2009, pp. 100-103). En dernière analyse, l’asymétrie propre à ces rapports est l’élément caractéristique des relations homosexuelles masculines et féminines, qui ont maintenu cette logique jusqu’à la fin du XIXe siècle, sous le règne de Naser al-Din Shah et Mozaffar al-Din Shah. Le premier a provoqué un scandale devant les cours européennes, car il y avait des concubins de sexe masculin dans son harem à sa suite (Afary, 2009, p. 106). Il est curieux de constater que dans les traductions anglaises de textes persans classiques, écrits entre le XIVe et le XVIIe siècle, les multiples allusions aux thèmes homoérotiques ont été délibérément omises par des traductions inexactes des genres de pronoms, qui sont neutres en langue perse (Afary, 2009, p. 87). Le monde occidental a longtemps perçu l’Orient comme un lieu de licence sexuelle, selon la perception chrétienne de l’immoralité propre aux communautés islamiques, au point de le définir comme un paradis sexuel pour les voyageurs homosexuels occidentaux (MASSAD, 2002, p. 365). En matière de gouvernance sexuelle, nous avons constaté qu’au cours de l’histoire prémoderne iranienne, il y a eu des tentatives de supprimer les activités homoérotiques dans les lieux publics fréquentés par les classes sociales inférieures. À la fin du XVIIe siècle, avec l’affirmation de l’orthodoxie religieuse, un décret a interdit la prostitution masculine, qui était jusqu’alors organisée dans des établissements régulièrement taxés (Afary, 2009, p. 92). Dans cette période, les contacts homoérotiques continuaient à se manifester dans la sphère privée. De même, au XIXe siècle, l’État jugeait acceptable l’embauche de domestiques de sexe masculin pour satisfaire les besoins sexuels d’un maître appartenant à l’élite sociale (Afary, 2009, p. 104). Suite aux premiers contacts avec le monde occidental, mentionnés ci-dessus, le royaume de la dynastie Pahlavi (1925 – 1979) cristallise finalement une volonté monarchique explicite de moderniser l’État selon

Avesso


les canons caractéristiques des sociétés occidentales. Cette modernisation a eu un impact considérable sur les normes et pratiques sociales existantes, en particulier dans le domaine sexuel. Une gestion étatique des questions relatives aux identités sexuelles et de genre est formulée durant cette période, en commençant par le règne de Reza Shah (1925 – 1941). Soutenu par beaucoup de gens grâce à son succès d’avoir unifié le pays, l’ancien militaire Reza Khan a établi un régime autoritaire, fondé sur une liberté d’expression politique limitée, tout en mettant en œuvre une série de réformes visant à moderniser les pratiques sociales concernant les corps masculins et féminins. Le plus important est le kashf-e hijab, le décret qui a aboli et interdit l’usage du voile aux femmes iraniennes, qui est entré en vigueur en 1936 (Afary, 2009, pp. 142-143; 156). La modernisation et l’unification étaient les principaux objectifs de la politique de Reza Shan. Il s’en est suivi que le régime a entrepris

29 Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

de transformer l’empire multiethnique en un État unifié avec un peuple, une nation, une langue, une culture et une autorité politique, en visant à intégrer les femmes, les minorités ethniques, les musulmans sunnites et les non musulmans dans l’État (AFARY, 2009, p. 145. Traducion notre). Cette révolution culturelle imposée par le haut, cependant, a créé une société progressivement divisée dans deux tendances opposées : la classe bourgeoise supérieure a continué à s’occidentaliser, tandis que la population restante restait attachée aux pratiques et aux idéologies traditionnelles, désormais contestées et interdites par le régime (Afary, 2009, p. 146). Cette division s’est traduite par des réactions concrètes au décret interdisant le voile islamique, qui représentait pour beaucoup de gens une grave transgression des normes morales, religieuses et culturelles et créait de graves tensions au niveau social, en particulier pour la partie la plus pauvre de la population (Afary, 2009, pp. 157-158). L’exposition du corps féminin a eu un fort impact sur les dynamiques homosexuelles analysées ci-dessus. Les femmes étaient maintenant en mesure «de devenir des objets de désir et donc de rivaliser plus facilement pour attirer l’attention des hommes» (Afary, 2009, p. 161. Traducion notre). Parallèlement aux bouleversements sociaux provoqués par le kashf-e hijab, l’État a encouragé l’hétérosexualité avec la révision de 1933 du Code pénal, qui a Avesso


30 Artigos V. 1 N. 1 2020

University York

Avesso

renforcé les lois existantes contre la prostitution masculine et introduit des lois contre la pédérastie. Celles-ci ont déstabilisé les dynamiques des relations homoérotiques entre hommes adultes et jeunes concubins, qui existaient encore à cette époque. Tout au long de la période de la dynastie Pahlavi, nous assistons donc à une restriction progressive des espaces et des occasions pour la manifestation des désirs homosexuels et à un encouragement de l’hétérosexualité normative, selon les canons des États occidentaux modernes. La reconnaissance du crime de sodomie (lavat) cristallise une nouvelle ère en matière d’homosexualité en Iran, en introduisant un refus légitimé au niveau juridique (Afary, 2009, pp. 160161). Il convient de noter que les réformes inspirées par l’esprit de modernisation et d’occidentalisation reflètent un processus intégratif qui définit une phase de mondialisation spécifique au contexte iranien. Ces tendances ont institutionnalisé le caractère de l’hétéronomativité dans les structures étatiques et ont eu des effets déstabilisateurs sur les structures socioculturelles existantes. Passons donc à la période la plus discutée de l’histoire contemporaine iranienne, la révolution islamique de 1979, qui est pertinente à notre analyse car elle marque le début d’une répression très prononcée de l’homosexualité. Malgré les obstacles juridiques et culturels avancés par la dynastie Pahlavi, les relations homoérotiques se sont poursuivies dans la sphère privée. Depuis 1980, la gestion de la sexualité constitue une prérogative du nouveau régime, qui agit désormais selon l’idéologie islamiste et le fait de vouloir explicitement renverser l’orientation moderniste à vocation occidentale des Pahlavi (Afary, 2009, p. 323 ; Afary; Anderson; Foucault, 2005, p. 163). Tout d’abord, à travers la criminalisation sévère de l’homosexualité, la catégorie de l’homosexualité comme sujet moralement dévié est créée et est mise en contexte dans l’idéologie islamiste (Kjaran; Martino; Wayne, 2018, p. 27). La loi applique maintenant une répression très stricte du désir homosexuel, ce qui a pour effet non seulement de supprimer les occasions d’établir relations homoérotiques dans la sphère publique, mais aussi d’intervenir directement dans la vie privée des sujets homosexuels. En ce sens, la sodomie désigne tous les types de relations homosexuelles, y compris celles impliquant des adultes consentants, et elle est désormais punie par la torture et l’exécution. La répression de l’homosexualité est de plus en plus intrusive, en constituant une violation systématique de la vie privée des suspects homosexuels, pratiquée par les forces de police (KJARAN; MARTINO;


WAYNE, 2018, p. 31). Avec l’universalisation progressive des droits homosexuels, dont les principales associations LGBT fondées dans le monde occidental sont devenues missionnaires, la gouvernance des homosexuels en Iran est confrontée avec une nouvelle notion d’homosexualité qui constitue une catégorie identitaire (ce qui ne se retrouve toutefois pas dans les lois nationales, qui punissent les actes homosexuels, plutôt que l’identité). Cette notion, promue par le discours occidental, est véhiculée par le web et a créé des espaces associatifs virtuels pour les homosexuels iraniens (Kjaran; Martino; Wayne, 2018, p. 27–28). Par conséquent, depuis 2005, la guerre contre l’homosexualité s’est intensifiée sous le régime de Mahmoud Ahmadinejad. Les examens anaux forcés sont utilisés comme pratique médicale pour vérifier l’homosexualité des personnes soupçonnées et la torture et l’exécution sont justifiées comme peines pour des crimes alternatifs (comme la pédophilie), pour apaiser l’opinion internationale. En outre, l’intrusion de l’État est attestée par l’utilisation de plateformes et de dispositifs en ligne qui permettent aux agents de l’État de localiser les homosexuels et d’intervenir pour supprimer leurs comportements (AFARY, 2009, pp. 358-359; KJARAN; MARTINO; WAYNE, 2018, pp. 36–37).

31 Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

L’évolution la plus récente de la gestion étatique de l’homosexualité définit donc l’étape contemporaine d’un processus historique à longue durée, caractérisé au cours des deux derniers siècles par l’émergence de visions concernant la sexualité par rapport à celles de l’Occident. Pour cette raison, la littérature académique considère la répression menée depuis 1979 comme une réaction conservatrice au projet d’occidentalisation mené par la dynastie Pahlavi (Kjaran; Martino; Wayne, 2018, p. 27). Cette section a cependant montré que les dynamiques qui caractérisent les pratiques et les relations homoérotiques, très spécifiques à la société iranienne, ont subi des changements progressifs quant à leur perception au niveau socioculturel et leur gestion dans le domaine juridico-politique. En autres termes, ces changements révèlent la progression des dynamiques

Avesso


32 Artigos V. 1 N. 1 2020

entre sexualité, savoir et pouvoir. DISCUSSION Les réflexions de Foucault et de Massad, présentées au début de ce travail, sont utiles à notre analyse, car elles nous permettront de regarder l’homosexualité en tant que dispositif historique et force mondialisatrice, selon un modèle de civilisation à l’occidentale. Les thèses présentées par ces auteurs reposent sur les concepts de sexualité, de discours, de savoir et de pouvoir qui nous permettent d’expliquer critiquement les formes homosexuelles dans l’histoire de l’Iran. Foucault et Iran : un lien complexe

University York

Avesso

L’implication de Foucault dans l’analyse du contexte iranien est pertinente pour deux raisons. D’abord, parce que l’auteur s’est beaucoup intéressé à l’Iran et a commenté la révolution de 1979 dans divers journaux européens, fasciné par la figure de l’ayatollah (Afary; Anderson; Foucault, 2005, pp. 4-6). Deuxièmement, étant donné que le concept de l’Orient de Foucault «inclut le monde gréco-romain, le Moyen-Orient et l’Afrique du Nord», les longues digressions historiques foucaultiennes concernant l’homosexualité gréco-romaine apparaissent pertinentes à l’analyse de l’homosexualité en Iran (Afary; Anderson; Foucault, 2005, p. 138). Cette continuité en matière de sexualité entre les sociétés méditerranéennes et celles du Moyen-Orient est soulignée dans plusieurs de ses écrits. En ce qui concerne les discussions explicites de Foucault sur l’homosexualité dans le monde musulman, la critique suggère que l’auteur a été influencé par des visions orientalistes et qu’il se déclarait à faveur d’un retour à la culture traditionnelle, que les Pahlavi avaient progressivement supprimée. Cette position découle de sa préférence pour «la culture traditionnelle islamique/méditerranéenne plutôt que la culture occidentale moderne» (Afary; Anderson; Foucault, 2005, p. 162. Traducion notre). Cependant, Foucault espérait un retour à une forme d’homoérotisme, pratiquée confidentiellement et tolérée au niveau social, plutôt que le «contre- discours étroit sur le corps et la sexualité» opéré par le régime (IBIDEM). Finalement, si nous mettons de côté ses observations spécifiques au contexte du Moyen-Orient, nous considé-


rons que les réflexions foucaultiennes concernant plus généralement la relation entre sexualité, savoir et pouvoir, autant que la vision de la sexualité comme dispositif historique, nous permettent de tirer des conclusions par rapport à notre analyse.

33 Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

Interprétation En appliquant les notions de Foucault et de Massad au profil historique traité dans la deuxième partie de ce travail concernant l’évolution et les changements juridico-politiques et socioculturels de l’homosexualité en Iran, nous proposons une périodisation de l’histoire iranienne, en utilisant l’homosexualité en tant que dispositif historique. Nous identifions trois macro-périodes qui définissent une rencontre progressive entre la culture iranienne et celle occidentale. La périodisation proposée révèle donc que l’analyse des changements de l’homosexualité en Iran permet d’observer les dynamiques d’un processus de mondialisation, comprise comme l’influence des pratiques et des idéologies occidentales dans les pays non-occidentaux. La tolérance dans l’Iran prémoderne: Pendant cette longue époque, des pratiques et des relations homoérotiques existaient et étaient établies sur une asymétrie entre les partenaires sexuels. Les notions d’homosexualité et d’hétérosexualité n’étaient pas développées, mais une «homosexualité traditionnelle couverte a continué d’exister et [était] protégée par des institutions séparées par sexe et par des espaces publics» (Afary; Anderson; Foucault, 2005, p. 162. Traducion notre). Nous concluons qu’au niveau social, le comportement homosexuel était toléré et répandu, alors qu’au niveau juridique il s’est développé une faible gouvernance de l’homosexualité, qui ne donnait pas aux pratiques homoérotiques «une reconnaissance des droits civils et une égalité juridique» (AFARY; ANDERSON; FOUCAULT, 2005, p. 160. Traducion notre). Le tournant hétéronormativiste de la dynastie Pahlavi: Lors de la création des États occidentaux modernes, l’hétéronormativisme est intégré dans les structures étatiques formelles, qui contribuent à une répression de toute forme de transgression (Peterson, 2013, p. 58). Dans cette période, l’homosexualité était discutée en termes médicaux et l’homosexuel était perçu comme un Avesso


34 Artigos V. 1 N. 1 2020

transgresseur et un sujet pervers. L’hétéronormativisme des États occidentaux se retrouve dans les réformes sociales promues par les Pahlavi dans le cadre de la modernisation de l’État. Nous concluons que les réformes inspirées par le monde occidental favorisent une répression formelle de l’homosexualité, bien que les pratiques homoérotiques continuent d’être pratiquées selon les modèles traditionnels prémodernes. La répression accrue dans le régime islamique: Depuis les années 1970, on assiste à une explosion discursive de l’homosexualité en Occident, qui contribue à l’abrogation progressive des législations qui la criminalisent et qui ouvre des espaces de dialogue international sur les droits des homosexuels. Conformément à la tentative de rejeter toute forme d’influence occidentale (qui constitue un contre-discours au discours occidental), le régime islamique, fondé en 1979, réagit avec conservatisme à l’occidentalisation de Pahlavi. Cette réaction s’aggrave de plus en plus en même temps que l’action intrusive des associations LGBT occidentales qui, agissant selon une logique missionnaire, espèrent libérer les homosexuels en Iran (un discours dans lequel les caractéristiques de l’hypothèse répressive, critiquée par Foucault, font écho). Durant cette période, la notion d’identité de l’homosexualité, désormais pleinement acquise en Occident, se heurte aux modèles socioculturels iraniens. Dans une société où la pédérastie et l’homosexualité des adultes étaient depuis longtemps des pratiques répandues, « exiger le respect des identités fondées sur l’homosexualité est totalement inacceptable » (Afary; Anderson; Foucault, 2005, p. 160. Traducion notre). Par conséquent, le contre-discours élaboré par le régime islamique se traduit en une gestion répressive des toutes formes d’homosexualité.

University York

Avesso

En conclusion, nous répondons aux questions de recherche posées au début de cet article de la manière suivante. (1) Sur la base de notre analyse, nous concluons que le statut actuel de l’homosexualité en Iran représente une réaction conservatrice aux influences et aux interférences de l’Ouest sur les dynamiques traditionnelles de cette société du Moyen-Orient. (2) Les enseignements théoriques de Michel Foucault et de Joseph Massad nous ont permis de porter un regard critique sur l’élaboration de l’homosexualité en Iran, aux niveaux juridico-politique et socioculturelle, en employant une perspective historique.


35

BIBLIOGRAPHIE

Vincenzo Sansone Homosexualité en Iran

AFARY, J. Sexual Politics in Modern Iran. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. AFARY ; ANDERSON ; FOUCAULT. Foucault and the Iranian Revolution: Gender and the Seductions of Islamism. Chicago: University of Chicago Press,2005. FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité I : La volonté de savoir. Paris : Gallimard, 1976. KJARAN ; MARTINO ; WAYNE. The Politics of Recognizability: Giving an Account of Iranian Gay Men’s Lives Under Repressive Conditions of Sexuality Governance. International Journal of Middle East Studies, v. 51, n. 1: 21–41, 2018. MASSAD, J. Re-Orienting Desire: The Gay International and the Arab World. Public Culture, v. 14, n. 2 : 361–86, 2002. PETERSON, V. S. The Intended And Unintended Queering of the Nation State. Studies in Ethnicity and Nationalism, v. 13, n. 1: 57–68, 2013.

Avesso


36

Júlia Mongiat Bezerra

Artigos V. 1

Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

N. 1 2020

Notes on Kurdish nationalism: reformulation of national identity

Palavras Chave

O movimento curdo, bem como a identidade nacional curda, se transformou em diversos momentos ao longo do século XX. No final dos anos 70 nasce o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), e este rapidamente se torna a principal organização do movimento curdo. Após um processo de reformulação no final dos anos 90, que foi promovido em grande parte pela maior participação das mulheres curdas, o partido nega suas origens marxistas e passa a adotar um programa anticapitalista e anti-estatal. Sua estratégia política foi denominada Confederalismo Democrático. Assim, a perspectiva do movimento em relação à identidade nacional curda se modificou. A partir deste contexto, o presente artigo tem por objetivo discorrer sobre a identidade nacional curda e sua redefinição pelo PKK.

Nação Nacionalismo Curdos PKK Ö c a

l

a

n

K e y w o r d s Nation Nationalism Kurds PKK Öcalan

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

The Kurdish movement, as well as the Kurdish national identity, has been transformed in several moments throughout the 20th century. In the late 1970s the Kurdistan Workers’ Party (PKK) was born, and it quickly became the main organization of the Kurdish movement. After a reform process in the late 1990’s, which was promoted by the greater participation of Kurdish women, the party denies its marxist origins and starts to adopt an anticapitalist and anti-state program. The political strategy was called Democratic Confederalism. Thus, the movement’s perspective in relation to the national identity was changed. From these transformations, this article aims to discuss the Kurdish national identity and its redefinition by the PKK.


37

INTRODUÇÃO O principal objetivo deste artigo é discorrer sobre a reformulação da identidade nacional curda. A partir da exposição de alguns estudos sobre a questão nacional, se apresentará algumas definições clássicas do conceito de nação e nacionalismo, além de visões mais contemporâneas. Mas, como não é possível prosseguir o estudo da questão nacional de determinado grupo sem a análise histórica específica, o segundo capítulo é dedicado à história do nacionalismo curdo. O nacionalismo curdo nasceu com a modernidade, assim como a questão nacional em si, mas a identidade étnica curda remonta há séculos atrás. Em um primeiro momento, o movimento curdo não se unificava através de um partido ou representante político único. Apenas durante o final dos anos 70, com o surgimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que este cenário se modificou.

Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

A autora está com uma pesquisa de Iniciação Científica em andamento sobre a temática específica das mulheres curdas, e este assunto não será aprofundado aqui.

1

Utilizando-se da luta armada e dos princípios marxistas-leninistas, o PKK se tornou a principal vertente do movimento curdo. Sua reivindicação principal era a independência através de um Estado nacional curdo. Porém, após um período de reformulação ideológica no final do século XX, o partido modifica sua estratégia. As novas ideias têm como horizonte o modelo de organização social denominado “democracia sem Estado”, e o formato político que possibilita esta organização é o “Confederalismo Democrático” (Öcalan, 2016). Estas ideias foram descritas nas obras de Abdullah Öcalan, figura de extrema importância dentro do movimento curdo. Öcalan (2017) também discorre sobre a “nação democrática”. A partir do projeto da modernidade democrática, surge este novo conceito de nação que tem por objetivo modificar a questão nacional curda. Além da reformulação ideológica do partido, que nega a criação de um Estado próprio, a própria construção de nação curda é modificada. Esta não seria mais dependente de características como um passado, língua ou religião comuns, e sim da vontade livre de indivíduos e de instituições autônomas.

Avesso


38

V. 1

Todos os conceitos apresentados acima estão sendo colocados em prática na região de Rojava (Curdistão Sírio), desde 2011.

N. 1

PANORAMA DA QUESTÃO NACIONAL

Artigos

2020

O início deste trabalho tem como objetivo explicitar brevemente algumas abordagens de estudo sobre os temas nação e nacionalismo. Assim como Benedict Anderson (2008) afirma, em sua introdução ao livro “Um mapa da questão nacional”, deste fenômeno político “não há nenhuma definição amplamente aceita. Ninguém foi capaz de mostrar de forma conclusiva sua modernidade ou antiguidade” (Anderson, 2008, p. 7). Porém, o intuito deste primeiro capítulo é o de apresentar um panorama geral das possibilidades de análise existentes da questão nacional para que, posteriormente, a reflexão acerca do povo curdo e suas particularidades se revele de maneira crítica. Deve-se ressaltar que o estudo da questão nacional se ramifica de acordo com as diferentes teorias acerca do tema. Os principais debates sobre o surgimento das nações e do nacionalismo se dividem aproximadamente da seguinte maneira: as nações são um fenômeno atemporal; as nações existem há muito tempo, e adquirem diferentes facetas ao longo da história; a nação é uma construção moderna. A partir do século XX, a maior parte dos autores atribuíram ao nacionalismo a característica de um fenômeno essencialmente moderno, e é este argumento que será utilizado neste artigo em relação ao nacionalismo curdo.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Antes da exposição e análise dos estudos que endossam a argumentação citada acima, se apresentará um autor cujo discurso foi fundamental para estes mesmos estudos. Ernest Renan foi um dos primeiros autores a teorizar sobre o conceito de nação, e seu famoso discurso “What is a nation?” (1990) ainda é citado em diversos textos contemporâneos. Renan afirmou que “A essência da nação é de que todos os indivíduos têm algo em comum, e de que também se esqueceram de muitas coisas” (Renan, 1990, p. 11. Tradução nossa). Esta famosa citação constatou que para a criação e desenvolvimento de uma nação, é necessário inventar mitos de origem e momentos históricos. Foi preciso esconder a violência originária de sua formação e dos povos que foram brutalmente mas-


sacrados, assim como a homogeneização de diferentes culturas, para que a união populacional pudesse ser consagrada. Assim, a nação passa a ter memórias herdadas em comum e o desejo de viver conjuntamente, perpetuando os valores da herança recebida, bem como revivendo glórias passadas e partilhando vontades comuns futuras.

39 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

As observações de Renan se apresentam úteis para uma análise concreta da formação dos Estados-nação, bem como dos sentimentos nacionais que envolveram este processo. O nacionalismo é uma combinação de fatores, e estudar suas particularidades permite o estabelecimento de complexas interrelações, mas alguns fatos são incontestáveis: o surgimento de um Estado-nação é associado às decisões antidemocráticas, discriminação, autoritarismo, homogeneização e repressão das minorias. Um dos primeiros autores a associar o surgimento das nações e do nacionalismo com o advento da modernidade foi Ernest Gellner. Através de uma perspectiva materialista do advento do nacionalismo nos séculos XIX e XX, o autor realiza a análise da sociedade agro-letrada em contraste com a posterior industrial avançada. Com a industrialização da sociedade, a educação especializada e a produção cultural começaram a adquirir maior importância na formação dos trabalhadores. De acordo com o autor, essa nova “cultura superior” (ou cultura nacional) passou a ser padronizada e difundida entre todos os indivíduos que compunham o Estado em formação, de maneira que um fosse essencial ao outro: “Dito de maneira ainda mais sucinta: uma cultura, um Estado; um Estado, uma cultura” (Gellner, 2008, p. 119). Assim, Gellner conclui que as nações foram forjadas, e o nacionalismo pode ser explicado como a “resposta necessária” à transição do feudalismo para o capitalismo. Em contraponto à esta visão, o autor Anthony Smith reconheceu que o nacionalismo é fruto da modernidade, mas caracterizou as nações como fenômenos baseados em grupos culturais antigos, denominados ethnie (grupo étnico). Estes grupos foram construídos a partir de mitos e da memória coletiva, e têm elementos em comum com as nações modernas. O objetivo da análise do autor foi justamente identificar a importância dos mitos de origem e da simbologia para o estudo das nações/ Avesso


40 Artigos V. 1 N. 1 2020

Mesmo que os elementos da etnia sejam “construídos” e ‘reconstruídos’, e às vezes francamente ‘inventados’, o fato de essas atividades terem funcionado por séculos (ou até milênios) e de diversas ethnies, embora alterando seu caráter cultural, haverem não obstante persistido como comunidades identificáveis por longos períodos sugere que é um risco ignorarmos a presença e a influência exercida por tais comunidades na formação das nações modernas (SMITH, 2008, p. 204). O pensamento de Smith demonstrou-se de extrema importância para o estudo de povos cuja identificação étnica remonta há períodos anteriores à Idade Moderna. No caso do povo curdo, que é o objeto de estudo deste artigo, esta observação é necessária para o entendimento de sua história. Apesar de se constituírem enquanto nação apenas durante a modernidade, a identificação de uma comunidade curda já existia entre seus pares há anos, ainda que estes mitos e símbolos tenham se transformado posteriormente.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

De acordo com Benedict Anderson (2008), as nações são comunidades imaginadas. O seu livro “Comunidades Imaginadas”, escrito em 1983, é considerado uma das obras mais importantes e instigantes sobre o estudo das nações e do nacionalismo, até mesmo sobre o estudo da ciência política. Anderson define sua visão sobre a nacionalidade e nacionalismo: são produtos culturais específicos. O autor propõe que esses produtos foram criados a partir de um “cruzamento complexo de diferentes forças históricas”, que posteriormente se tornaram modulares e capazes de serem transportados e reproduzidos por diferentes sociedades (Anderson, 2008). Ao rejeitar a possibilidade de associar o nacionalismo à ideologia ou a um projeto político, o autor parte de uma visão antropológica e define a nação como “uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” (Anderson, 2008, p. 32). A nação se constitui como imaginada pois existe a ideia de uma comunhão entre seus membros, mesmo que estes não se conheçam. É limitada pois sempre possui fronteiras; se distingue da humanidade


enquanto totalidade. E também é soberana, já que proclama a liberdade e o direito à autodeterminação, principalmente através do Estado Soberano. Por fim, a nação é uma comunidade já que sempre haverá uma “camaradagem horizontal” entre todos os seus membros, independente das possíveis desigualdades existentes.

41 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

O autor afirma que o capitalismo criou as condições para a popularização da nação. E a tecnologia de imprensa, conjuntamente, possibilitou a criação de uma unidade linguística. Com a decadência do latim, as línguas impressas começaram a ser disseminadas pelo capitalismo e criaram a base da consciência nacional através de uma vernacularização. Assim, a Europa teria fornecido “formas modulares” para que as classes dominantes de outros países pudessem seguir o formato nacional europeu. Em contraponto, Partha Chatterjee critica o eurocentrismo de Anderson. O autor ressalta que as lutas anticolonialistas dos anos 60 e 70 foram manipuladas e redirecionadas estrategicamente de acordo com poderes exteriores. Porém, a afirmação de que a Europa e a América do Norte foram responsáveis por traçar o roteiro que o mundo pós-colonial seguiria é caracterizar estes povos como receptores, e não sujeitos da história. Ele discorre sobre o fato de que as doutrinas nacionalistas iam além de um movimento das elites, com a participação camponesa e popular presente (CHATTERJEE, 2008). A análise de Chatterjee também é destacada neste artigo, já que pode ser aplicada em relação ao povo curdo. O reconhecimento da participação popular e a rejeição de uma ótica eurocentrada auxiliam na compreensão da formação das nações no Oriente Médio, bem como da situação dos povos reféns do colonialismo. Não é possível compreender a história destes povos senão através de uma perspectiva anticolonial. Em resposta ao imperialismo e à dominação ocidental dos séculos XIX e XX, surgiram movimentos com perspectivas anti-imperialistas, anticoloniais, e, em alguns casos, socialistas no Oriente Médio. Muitos destes rejeitavam a ocidentalização e reivindicavam a valorização de certas tradições culturais. Porém, grande parte dos movimentos foram apropriados pelas elites locais e pelos próprios valores ocidentais de independência através de um Estado-nação. Avesso


42 Artigos V. 1 N. 1 2020

A autora Montserrat Guibernau (2004), em sua obra “Nations without States”, discorre sobre o conceito de “nações sem Estado”. A autora afirma que estas seriam “nações que, apesar de terem seus territórios incluídos dentro das fronteiras de um ou mais Estados, em geral não se identificam com estes” (Guibernau, 2004, p. 1254. Tradução nossa). Seus membros, que têm uma unidade cultural, reivindicam maior autonomia política que pode ser concedida ou conquistada de diferentes maneiras. Guibernau observa que o papel tradicional do Estado está se modificando atualmente. A tecnologia e a globalização atravessam as fronteiras nacionais, e o isolamento cultural já não é mais possível, contribuindo para o crescimento de nacionalismos dentro de instituições já formadas. Estes nacionalismos surgem como formas alternativas de coexistência, além de uma reação à homogeneização cultural contemporânea. As nações sem Estado reivindicam uma representação que difere do modelo tradicional de Estado-nação, que assimila forçadamente seus cidadãos e falha na capacidade de prover as necessidades dos diferentes povos que vivem dentro das suas fronteiras. Portanto, o nacionalismo das nações sem Estado é fruto da globalização e das transformações do Estado-nação na contemporaneidade (GUIBERNAU, 2004). O Estado atualmente sofre pressões externas e internas para modificar seu caráter centralizador e reconhecer as diferentes comunidades culturais que possuem graus variados de consciência nacional e demandas sócio-políticas. A reivindicação das nações sem Estado por uma autonomia política surge após longos períodos de insatisfação, negação e repressão dentro do território em que se encontram. Assim, estas comunidades trazem de volta a diversidade existente antes da formação opressiva dos Estados-nação.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Guibernau analisa diferentes respostas políticas às comunidades que buscam maior autonomia, como o reconhecimento cultural pelo Estado, descentralização através da autonomia política ou uma federação. Independente da forma, a conclusão da autora é que as nações sem Estado devem perseguir alternativas que visem a democracia, coexistência cultural e o reconhecimento das diferenças dentro de um mesmo território.


A autora, no que diz respeito ao povo curdo, reconhece a repressão e a negação que estes enfrentam em todos os diferentes Estados-nação em que se encontram. A violência estatal fez com que o sentimento nacional curdo aumentasse, fruto da solidariedade entre seus membros em períodos de repressão. O fato de que o povo curdo nunca se consolidou enquanto Estado-nação e o projeto político do Confederalismo Democrático (que será exposto mais à frente) que propõe justamente a autonomia através da democracia, são características que dialogam diretamente com a análise de Guibernau e sua perspectiva sobre estes movimentos.

43 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

A sociedade curda é composta por relações complexas que impedem uma análise simplificada de resposta única à sua situação. A identidade curda não é de fácil definição. Eles não compartilham uma língua ou religião únicas. Muitos curdos se recusam a enquadrar-se em uma única identidade étnica, já que a formação social tribal e a estratificação social por muito tempo impediram a composição de uma comunidade curda unificada. Tendo em vista o exposto, a questão do nacionalismo curdo se complexifica. Apesar da diversidade presente nas pesquisas apresentadas, uma das poucas ideias que unem os estudiosos da questão nacional é o fato de que, ao estudar a temática da nação e do nacionalismo, é necessário considerar a especificidade do momento histórico. Alguns autores formulam conceitos gerais, mas destacam previamente que nenhuma classificação pode ser realizada apenas idealmente ou sem qualquer reflexão sobre a conjuntura abordada: “Nacionalismo é um distinto, complexo e significante assunto, e o melhor – talvez o único – meio de entendê-lo é historicamente” (Breuilly, 2013, p. 15. Tradução nossa). Portanto, após esta exposição pontual, o presente artigo irá se deter na história do nacionalismo curdo e, posteriormente, na do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). HISTÓRIA DO NACIONALISMO CURDO No início, como afirma a história curda, eles eram descendentes dos medos, um povo de origem indo-arábica. Comumente se assumia que os curdos eram etnicamente diferentes de seus vizinhos. E desde a expansão do Império Árabe, diversas tribos iranianas e iraquianas foram denominadas curdas. McDowall (2007) relata que Avesso


44 Artigos V. 1 N. 1 2020

o termo curdo, durante o período da expansão do Império Islâmico, significava nômade. Posteriormente, foi relacionado com a ideia de depredação. A maioria dos curdos se recusa a enquadrar-se em uma única identidade étnica. Existem curdos que são simultaneamente judeus, árabes, ou cristãos, por exemplo. “Então quem é o povo curdo? Eles são todos, eu argumentaria, que pela consequência de um ambiente em que vivem, sentem um senso de identidade cultural curda” (MCDOWALL, 1992, p. 9. Tradução nossa). Os curdos se organizavam através de tribos nômades ou seminômades. Cada organização tinha sua estrutura interna própria, bem como a variação no número de membros. Martin van Bruinessen (1978) afirma em sua obra “Agha, Shaikh and State” que as “lealdades primordiais” do povo curdo eram direcionadas essencialmente à tribo e ao chefe tribal (agha), além das respectivas lideranças religiosas (sheiks). Quase todos os conflitos eram representados por grupos, e não indivíduos. Além disso, a lealdade do chefe para com as tribos vizinhas era extremamente dependente dos jogos de poder entre as próprias tribos ou com o governo. Diversos Estados reconheciam parte da autonomia dos chefes tribais curdos, em troca de serviços como fornecimento de tropas guerreiras e o pagamento de tributos (MCDOWALL, 1992).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Os ditadores do Império Otomano e Safávida não se consideravam representantes do povo curdo, já que as relações de soberania eram relegadas aos aghas ou sheiks. O nacionalismo passou a tomar conta do Império Otomano a partir do século XX, quando as nações reivindicavam independência. Esta condição foi resultado da modernização e da ocidentalização do Oriente Médio. No caso do nacionalismo curdo, este foi impulsionado principalmente pelo crescimento da população urbana e da classe intelectual curda. A solidariedade entre os curdos inicialmente é associada à ideia de uma ancestralidade comum que, como a maioria dos mitos nacionais, é fictícia. Porém, nacionalismos requerem subordinação às lealdades entre membros da mesma identidade étnica, e é um sentimento que se apresenta em conflito direto com as organizações tribais e suas lideranças. Assim, apenas durante a modernidade as lealdades de classe e de nação se destacaram e se entrelaçaram às tribais, potencializando-as.


45

A educação e a alfabetização no Império Otomano eram precarizadas. Portanto, a ausência de uma língua única e o surgimento da literatura curda apenas nos anos 20 rebate a teoria de que o desenvolvimento do capitalismo impresso foi o fator decisivo para a criação de uma identidade nacional, assim como afirmou Anderson (2008). Além disso, o conceito de identidade nacional baseado em uma etnia não foi a condição principal para que os movimentos nacionais obtivessem sucesso, já que poucos otomanos se identificavam etnicamente. Seus objetivos eram, na maioria, a separação por demandas religiosas.

Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

O Sheik Sêx Seîd foi o líder de uma revolta em 1925 no Curdistão turco que reivindicava um Curdistão independente de acordo com os princípios islâmicos. Apesar do caráter nacionalista já ter se apresentado em algumas revoltas anteriores, esta se destaca pela organização política que a precedeu, utilizando o carisma do sheik para mobilizar as massas. A rebelião do sheik Said foi religiosa e nacionalista, além de que propunha a restauração do califado. Muitos autores classificam este evento como o marco inicial do nacionalismo curdo. Além disso, destaca a posição de liderança que era relegada aos aghas e sheiks, bem como sua relação íntima com o Estado. O nacionalismo curdo nasce com o advento da modernidade. Porém, a identidade étnica curda remonta há séculos atrás. Os nacionalistas afirmam que a nação curda estava apenas adormecida, e que pode ser identificada através de mitos e símbolos antigos. Um dos registros que ressaltam essa condição é o poema “Mem u Zin” escrito no século XVII pelo poeta Ahmad-i Khani. É considerado um marco da consciência nacional curda. Porém, o próprio poema é um registro das divisões que existiam entre os próprios curdos e a ausência de uma união coletiva (BRUINESSEN, 1978). Não há um censo crível da civilização curda. Contabilizam mais de 30 milhões de indivíduos que se concentram predominantemente nas regiões fronteiriças da Turquia, Iraque, Síria e Irã, compreendendo o Curdistão. “São a maior nação mundial sem um Estado próprio” (Gunter, 2013, p. 159, tradução nossa). O Curdistão compreende quatro países, porém sua população se encontra espalhada e concentrada por diversos locais fora deste território. Avesso


46 Artigos V. 1 N. 1 2020

Os curdos não têm religião única. A maioria é muçulmano sunita. A minoria xiita se concentra no Curdistão do Irã, que é um Estado xiita. Os alevitas, yazidis, shabaks, e em menor número judeus e cristãos, são minorias que também compõem parte das religiões praticadas pelos curdos. Além disso, diversas minorias étnicas convivem nos territórios do Curdistão, como turcomanos, armênios, assírios, etc. Em relação à diversidade linguística dos povos curdos, também é importante ressaltar que esta foi e é constantemente modificada pelas línguas oficiais dos Estados-nação em que os curdos se encontram. Isso se dá pelo fato de que, na maioria destes Estados, qualquer manifestação de expressão cultural ou identitária curda é considerada ilegal. Os curdos são considerados guerreiros das montanhas. Sua localização remota fez destas montanhas fronteiras naturais. David McDowall (2007) recorda que os povos presentes nos desertos e nas montanhas são historicamente mais resistentes às autoridades governamentais, principalmente pela dificuldade do próprio governo em exercer seu domínio em tais áreas. A topografia montanhosa do Curdistão é ideal para a luta armada e os curdos têm lutado contra a colonização e a ocupação por parte de potências estrangeiras desde tempos imemoriais. A resistência tem se transformado parte de sua vida e cultura (ÖCALAN, 2008, p. 6).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Ao longo dos anos, com o desenvolvimento e ascensão do modo de produção feudal, a região passou pelo controle do Império Sassânida, Império Islâmico e Império Otomano. A relação dos chefes tribais e donos de terra com as lideranças estatais se dava de maneira harmoniosa durante este período e, durante 300 anos, as tribos curdas se mantiveram sem muitas perturbações vindas dos Impérios vigentes. O acordo era que policiassem as fronteiras em troca de feudos para os chefes tribais. O acordo permitiu que os impérios mantivessem controle sobre as possíveis insurgências curdas. Porém, a desintegração desta condição se deu pelo “crescimento da ameaça pelos poderes europeus à integridade do Impé-


rio Otomano, e a tentativa deste último de responder ao desafio” (McDowall, 1992, p. 11. Tradução nossa). Assim, o Império rompeu com a possibilidade de autonomia das regiões curdas, já que estendeu maior controle sobre os territórios.

47 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

Com a derrota do Império Otomano no fim da I Guerra Mundial, as forças britânicas e francesas ocuparam e partilharam grande parte do território curdo através de um tratado secreto denominado Sykes-Picot. As novas fronteiras estatais ignoraram as territorialidades das tribos regionais. Assim como afirmou Dilar Dirik, “esse é o colonialismo: a imposição forçada de fronteiras que não refletem as realidades, alianças, ou identidades locais, mas são baseadas solenemente nos interesses ocidentais (ou outros que não os locais)” (DIRIK, 2015, p. 33. Tradução nossa). O Tratado de Sèvres, feito entre os vencedores da I Guerra Mundial, não era às escondidas como o anterior, mas também partilhava o Império Otomano. O Tratado foi assinado em 1920 e previa que a região curda dentro da Turquia adquirisse autonomia através de um Estado próprio. Os artigos 62 e 64 registravam a possibilidade da independência do povo curdo em relação à Turquia. Porém, esta afirmação nunca saiu do papel. Com o fim do Império Otomano e o advento dos Estados-nação, o Curdistão foi repartido em quatro fragmentos: Turquia, Irã, Iraque e Síria. E assim, o desenvolvimento do povo curdo dentro de cada um desses territórios foi diferente. Nunca existiu um Estado independente curdo, apesar da porção do Curdistão iraniano ter certa autonomia. O presente artigo irá se estender brevemente sobre a história da Turquia já que este foi o local onde nasceu o PKK, e também é a região onde há a maior concentração populacional de curdos. Os curdos apoiaram o Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial, bem como Mustafa Kemal Atatürk durante a guerra de independência da Turquia posteriormente. Após o Tratado de Sèvres em 1920, que providenciou uma região autônoma curda, surge o Tratado de Lausanne em 1923, que reconheceu a recém-criado Estado da Turquia, mas descartou qualquer possibilidade de independência do povo curdo. Assim, diversas revoltas seguiram à criação da Turquia como um Estado secular e anti-minorias étnicas. Avesso


48 Artigos V. 1 N. 1 2020

As autoridades turcas passaram a eliminar qualquer traço de identidade curda que pudesse ser identificado, como língua, vestimentas, nomes, manifestações culturais e tradicionais, etc. (Gunter, 2013). O feriado denominado Newroz é a demarcação do ano-novo curdo, e sua celebração foi proibida. Assim, com a fundação do Estado-nação turco, a cidadania plena foi concedida apenas aos turcos. Além disso, a abolição do sultanato e do califado fez com que os aghas e shaiks perdessem a importância de seus papéis. As revoltas curdas que ascenderam posteriormente foram duramente reprimidas pelo novo governo. E a própria natureza fragmentada da sociedade curda, que ainda não se unia através de uma identidade nacional, dificultava a organização e efetividade dos levantes. HISTÓRIA DO PKK Na Turquia, o crescimento econômico aumentou a partir dos anos 20, e a industrialização nos anos 50 permitiu que o país fosse integrado na economia mundial. Porém, as regiões do Curdistão, independentemente do Estado-nação que as restringiam, foram submetidas a um processo de subdesenvolvimento econômico. De acordo com Paul White, “a ‘democratização’ política não foi alcançada pelos curdos” (White, 2015, p. 26). Os curdos não eram considerados cidadãos, e tinham seus direitos restringidos pelo governo turco. Um exemplo marcante é o fato de que eram considerados “turcos da montanha”, e não curdos. Com o desenvolvimento dos sentimentos nacionais e anticoloniais no Oriente Médio, a população curda na Turquia demandava cada vez mais seus direitos e reconhecimento pelo Estado. Em 1978, após diversos conflitos, é fundado o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em Ancara.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

A partir de um grupo de estudantes de esquerda, surge uma organização cuja linha política era marxista-leninista e nacionalista. Os estudantes eram em sua maioria de famílias camponesas e, inicialmente, seteórico e de propaganda, levando seu o programa político para diferentes vilas e cidades. O grupo, essencialmente de formação ideológica, evoluiu para um partido políti-


co (White, 2015). Defendiam o socialismo revolucionário com o objetivo de um Estado nacional curdo. Abdullah Öcallan (Apo) era (e ainda é) considerado o dirigente do PKK. A estrutura era típica de um Partido Comunista, com um comitê central e congressos que definiam as resoluções do partido (AKKAYA; JONGERDEN, 2011).

49 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

Já que o Estado turco tentava destruir qualquer traço de identidade curda, o PKK passou a existir na clandestinidade. O partido tinha a guerrilha como estratégia principal, e ainda é considerado uma organização terrorista em diversos países. Em 1984, embarcou em uma campanha de violência explícita contra curdos associados com o sistema estatal. Como resultado, vários aghas, donos de terras e oficiais vistos pelo PKK como traidores foram assassinados, frequentemente com suas famílias inteiras (MCDOWALL, 1992, p. 16. Tradução nossa).

A luta do PKK contra o Estado turco, e sua consequente repressão brutal pelo mesmo, fez com que muitos curdos se solidarizassem com o partido. O partido foi consolidado como vertente dominante do movimento curdo. A partir de 1980, a participação das mulheres curdas nas mobilizações do movimento aumentou consideravelmente. Apesar destas mulheres estarem presentes desde o período das rebeliões que insurgiram no século XIX, foi apenas no final do século XX que esta participação adquiriu grande expressão. Além da luta armada, elas também se envolveram nas atividades políticas e organizações civis. Com a intensificação da luta do PKK e de sua guerrilha nas montanhas, diversos homens foram presos e, portanto, as mulheres passaram a assumir um papel muito mais ativo. A partir deste momento, e principalmente com a participação destas mulheres no exército, o projeto ideológico do movimento curdo se modificou. As mulheres passar a ser consideradas não mais objetos passivos, mas ativos dentro da luta pela liberdade. A partir destas novas organizações e mobilizações, Avesso


50 Artigos V. 1 N. 1 2020

o discurso e a prática do partido são modificados, como é possível observar na obra “Libertando a vida” de Abdullah Öcalan (2016). O autor afirma que a noção de alteridade entre homem e mulher foi a responsável por todas as relações de poder que surgiram posteriormente. Portanto, qualquer luta que buscasse verdadeiramente a liberdade e igualdade, deveria primeiramente libertar a mulher. Assim, a liberdade da mulher deveria ser a prioridade para aqueles que se interessassem na libertação da sociedade como um todo. Além disso, o autor ressalta a necessidade de uma organização específica das mulheres, dentro de um movimento de democratização: “É preciso que as mulheres determinem o seu próprio objetivo democrático e criem a organização e o trabalho para realizá-lo” (Öcalan, 2016, p. 69). Apenas através da auto-organização das mulheres dentro de um projeto de sociedade democrático que a liberdade e a igualdade seriam alcançadas. Assim, a libertação da mulher passa a ser um dos pilares do movimento curdo. Posteriormente, diversas revoltas eclodiram durante os anos 90, e milhares de civis foram mortos, principalmente os guerrilheiros do PKK. Öcalan passou anos como fugitivo, mas eventualmente foi capturado e preso no Quênia pela polícia turca e pela CIA em 1999. Antes mesmo deste acontecimento, o partido já vinha realizando reflexões sobre a efetividade da luta armada versus o sofrimento da população civil. Neste contexto se iniciou a mudança de paradigma do partido já que, apesar do encarceramento de Öcalan, as atividades do partido continuaram apesar das dificuldades e da perseguição de seus militantes (AKKAYA; JONGERDEN, 2011). Após a captura de Öcallan, outras figuras assumiram certo papel de liderança, como Sakine Cansiz, uma das co-fundadoras do PKK. Ela foi uma das principais figuras na organização do movimento de mulheres curdas. Cansiz foi assassinada em 2013 no centro de informação do Curdistão em Paris, juntamente com outras duas mulheres. Estes assassinatos ocorreram em um momento de negociação da Turquia com Öcalan de dentro da prisão.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Durante os anos de 2003 a 2005, diversos militantes deixaram o partido por conta da captura de seu líder e as consequências resultantes. O cessar-fogo das guerrilhas se mostrava polêmico e inaceitável para alguns. Mas em 2000, após a prisão de Öcalan, no Sétimo Congresso


Extraordinário do Partido, as discussões já apontavam para uma transformação democrática e o cessar-fogo das lutas armadas. As reestruturações foram ideológicas e organizacionais. É durante o Nono Congresso, em 2005, que o PKK se reformula essencialmente. Além disso, apenas no final de 2012 que a Turquia, agora governada por Erdogan, estabelece negociações de paz com o PKK. Estas negociações foram realizadas em segredo com Öcallan ainda na prisão após diversas tentativas de cessar-fogo, principalmente do PKK. Porém, as negociações cessaram a partir de 2015, e em outubro de 2019 o governo turco realizou um ataque agressivo às bases curdas na fronteira da Síria com a Turquia.

51 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

Como é possível observar, Öcalan é peça essencial do partido e as formulações principais giram em torno de suas ideias e obras. Como o PKK representa atualmente a maior expressão do movimento curdo, Öcalan pode ser considerado a grande liderança curda. MUDANÇA DE PARADIGMA DO PKK E A NAÇÃO DEMOCRÁTICA Öcalan estudou autores com outras perspectivas para além do socialismo revolucionário e da reivindicação por um Estado-nação de dentro da prisão, como Murray Bookchin e suas ideias sobre ecologia e municipalismo libertário. Bookchin escreveu em sua obra “Ecologia social e outros ensaios” (2010) sobre possibilidades de organização social sustentáveis. Afirma que qualquer tamanho de Estado, seja ele mínimo ou máximo, ainda mantém a lógica estatal de centralização do poder. Para que um projeto seja realmente descentralizador, deve seguir a direção da “estetização das capacidades produtivas humanas; a abolição da hierarquia e dominação em todas as esferas da vida pessoal e social; a reintegração de todas as comunidades sociais e naturais em um ecossistema comum” (BOOKCHIN, 2010, p. 32). De acordo com Bookchin, o Estado centralizado é sinônimo de Estado nacional. Portanto, os movimentos devem cada vez mais se aproximar de organizações comunitárias e autônomas. O município seria o local onde se aglutinariam as pessoas que, através da democracia e das relações sociais diretas, fariam oposição às instituições políticas. Estes municípios seriam compostos por assembleias populares e com delegados (e não repreAvesso


52 Artigos V. 1 N. 1 2020

sentantes) que realizariam a administração dos interesses comuns de maneira rotativa e limitada às decisões das próprias assembleias populares. Este movimento seria interligado através de uma confederação de municípios (Bookchin, 2010). A partir destas ideias, o movimento curdo muda de direção. Anteriormente, o objetivo do movimento curdo era a criação de um Estado-nação socialista, de acordo com os princípios marxistas-leninistas. Após reflexões sobre autoritarismo e poder, os militantes concluem que o Estado é a monopolização do poder burguês na sociedade capitalista e que perpetua os mecanismos opressivos do nacionalismo, racismo e sexismo para sua consolidação. Öcalan e os militantes do PKK reformularam o paradigma do partido após o reconhecimento do Estado-nação como instituição contraditória aos princípios socialistas e democráticos (ÖCALAN, 2016). Assim, a luta por uma região autônoma que se organizasse através dos princípios do projeto denominado Confederalismo Democrático, como a democracia, ecologia e liberdade de gênero, passa a ser a prioridade do movimento. Este novo projeto, baseado no municipalismo libertário de Bookchin, busca criar uma sociedade ética-política, baseada nos princípios democráticos, anticapitalistas, antipatriarcais e antirracistas, onde as estruturas são organizadas conforme a vontade dos indivíduos (BIEHL, 2013). Atribui-se maior importância ao nível local e às decisões tomadas pelos indivíduos dentro de suas ruas/ vilas. Estas decisões são repassadas às instâncias maiores através de delegados (e não representantes). As decisões tomadas pela participação de toda a sociedade, de maneira considerada verdadeiramente democrática, contrastam com a burocracia estatal e suas decisões arbitrárias. O objetivo é que as confederações se tornem cada vez mais expansivas, não se limitando a determinados territórios.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

A principal característica do Confederalismo Democrático é a luta não apenas contra a homogeneização que é praticada pelos Estados-nação, mas também contra a determinação de que o Estado é uma consequência “natural” ou até mesmo fruto de um “progresso social”. A própria noção de que o Estado é uma instituição necessária é questionada. Através do reconhecimento da


diversidade dos povos, principalmente no Oriente Médio, Öcalan afirma que a auto-administração da sociedade permite a abertura de espaços políticos, integrando diferentes grupos na tomada de decisões a nível local e global.

53 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

Na obra (2016), Öcalan afirma que os Estados-nação do Oriente Médio e seus nacionalismos são os responsáveis por grande parte dos conflitos existentes no Oriente Médio. Anteriormente, o período feudal permitia que os territórios tribais não fossem constituídos por fronteiras firmemente delimitadas, como as fronteiras nacionais. Durante o período dos Impérios, as fronteiras eram alteradas constantemente. A ideologia nacional surgiu no final do séc. XVIII, e a região do Curdistão foi fatiada por fronteiras criadas pelas revoluções nacionais, assim como descrito anteriormente. O nacionalismo é a ideologia que busca aglutinar todos os diferentes grupos étnicos, bem como as tribos e clãs, sob o teto do Estado. O Estado-nação é homogeneizador e realiza a assimilação de todas as culturas em uma única cultura nacional que serve aos interesses da classe dominante. A criação de uma comunidade imaginada resulta na aniquilação de todas as outras que são supostamente diversas à nação. Porém, as características de uma nação a serviço do capital não representam as únicas possibilidades de modelos de nação, de acordo com Öcalan. Em relação ao povo curdo, Öcalan afirma que este apenas existirá de maneira íntegra em uma civilização democrático-socialista. Atualmente, a expressão desta civilização é a modernidade democrática, que é a alternativa descrita pelo autor para a concretização da chamada nação democrática. Através de uma economia não-monopolista e ecológica, com formações políticas diversificadas e o enaltecimento do feminismo, a estrutura da alternativa democrática deve suprir as necessidades da sociedade de acordo com as decisões dos indivíduos. O autor propõe desenvolvimentos nacionais democráticos que sejam mais flexíveis e que não se apoiem na estrutura estatal (ÖCALAN, 2016). O formato político que expressa as bases da modernidade democrática é o Confederalismo Democrático. Este é classificado como a única opção possível para a aplicação de políticas verdadeiramente democráticas. Avesso


54 Artigos V. 1 N. 1 2020

Porém, o autor ressalta que este “método de solução democrática” não é independente do Estado-nação. Ambos podem coexistir como duas autoridades sob o mesmo teto. Portanto, as forças responsáveis pela transformação democrática emanam essencialmente da sociedade, e não de determinados governos os Estados. A convivência entre as instituições deve se dar através do estabelecimento de uma constituição democrática. Em relação ao conceito de nação, Öcalan propõe uma reformulação das definições clássicas. O autor afirma que o projeto democrático que apresenta em sua obra implica na construção de uma nação democrática; ou seja, um não existe sem o outro. A composição da nação democrática se dá através da vontade livre dos indivíduos e do estabelecimento de instituições autônomas. Esta definição envolve apenas um estado de mentalidade compartilhado por uma comunidade e, assim, qualquer outra característica passa a ser não-essencial. Além disso, esta mentalidade é baseada na liberdade e solidariedade, que se concretiza através da autonomia democrática. As instituições autônomas e democráticas definem a nação democrática na prática (ÖCALAN, 2016). Esta definição contrasta com o entendimento da nação como unidade, que é reunida através de características específicas como língua, religião ou história (passado comum). A nação democrática rompe com estas condições que limitam a participação dos indivíduos na comunidade nacional. Uma das características que é ressaltada por Öcalan é a necessidade da diversidade. A união de diversas comunidades, inclusive das entidades tribais, deve se concretizar. É possível ter diferentes línguas etnias e inclusive outras nações dentro deste modelo. Além disso, a prática de autogoverno é essencial para a nação democrática. Sem a garantia do poder na mão dos indivíduos e da participação de todos nas tomadas de decisão, os princípios de liberdade e solidariedade não podem ser concretizados. Assim, a ideia de uma comunidade nacional diversa se constrói juntamente com a prática de autonomia desta mesma comunidade.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Os curdos foram impedidos dessa prática por todos os Estados em que se encontravam. De acordo com o autor, os Estados-nação podem coexistir com o povo curdo e respeitar sua sociedade nacional, bem como sua


autonomia democrática. Isto deve ser garantido através de uma constituição. As três características da nação democrática apresentadas acima, que são respectivamente um estado de mentalidade comum, a necessidade da diversidade e a autonomia democrática, fazem parte do projeto revolucionário que tem por objetivo promover a liberdade dos indivíduos, ao mesmo tempo que os une através das responsabilidades do cotidiano e da construção de uma sociedade livre.

55 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

O projeto de uma nação democrática curda está de acordo com a própria história do povo curdo. Desprovidos de algum elemento que trouxesse unidade a este povo, a identificação étnica curda já ocorria através de um estado de mentalidade. Portanto, os curdos facilmente podem pensar sobre esta nova definição de nação já que eles mesmos viviam a união através de elementos subjetivos. Porém, alguns autores, a partir de diferentes abordagens, identificaram algumas críticas que devem ser ressaltadas neste artigo. Uma das primeiras críticas que se pode fazer é em relação à posição de poder que é relegada a Öcalan. Em um partido que propõe a ausência de hierarquia e a participação ativa de todos, esta contradição é inegável. Ele é considerado não apenas um dirigente, mas também teórico, comandante, e se tornou uma figura mítica aos olhos dos que compõem o movimento curdo. A grande maioria das publicações ideológicas do partido giram em torno dos escritos de Öcalan. Alex de Jong (2015) afirma que “Öcalan era mais que um líder notável ou mesmo essencial; ele próprio, sua pessoa, se tornou uma figura indispensável para a libertação do povo curdo” (Jong, 2015, p. 19. Tradução nossa). Para romper com as hierarquias de maneira integral, demonstra-se necessário romper com a figura de uma liderança única e intocável. Uma das características mais marcantes do PKK é a luta pela libertação da mulher através do protagonismo das próprias mulheres. Elas se tornaram o principal pilar do movimento curdo. Porém, apesar da participação das mulheres ter se iniciado com maior intensidade durante os anos 80 conforme descrito acima, as práticas do partido na direção da libertação da mulher só se Avesso


56 Artigos V. 1 N. 1 2020

efetivaram com as análises e discursos de Öcalan. Assim como afirmou Salih Muslim em uma entrevista sobre o papel de Öcalan na organização das mulheres curdas: “Quase tudo o que acabei de dizer sobre como o feminismo deve proceder pode ser encontrado nos escritos de Abdullah Öcalan” (SCHMIDINGER, 2018, p. 213. Tradução nossa)1 Assim, conforme descrito acima, a posição transcendental ocupada por Öcalan, no caso uma figura masculina, cria uma distância notável entre homens e mulheres. Além disso, impede as mulheres de criarem suas próprias narrativas ao monopolizar a construção ideológica do movimento. Após a reformulação do partido, constatações como desigualdade econômica e termos como estrutura de classes ou luta de classes desapareceram. Com o afastamento em relação ao marxismo, a luta dos trabalhadores deixou de ser a prioridade para dar lugar à livre expressão de diferentes identidades étnicas. De acordo com Öcalan, o Estado seria o principal alvo já que é a instituição perpetuadora das divisões de classe. Assim que este fosse extinto, as contradições desapareceriam também. Porém, este detalhe é algo que merece atenção. Esta característica também é presente nas definições clássicas de nação, já que a comunidade nacional ignora possíveis desigualdades. Apesar da população curda ser em sua maioria camponesa e proletária, as divisões de classe ainda são presentes, principalmente em relação aos chefes tribais. O não-reconhecimento das relações de classes e de como estas estão intimamente conectadas com um certo tipo de Estado e de ideologia é funcional para implantação ou reprodução de relações de exploração e de dominação capitalistas encobertas, mesmo que o movimento tenha como objetivo uma “democracia sem Estado”. Portanto, “a não ser que essas estruturas sejam diretamente abordadas, elas tenderão sempre a se afirmarem” (GRAEBER, 2016, p. 19. Tradução nossa).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso


57

CONCLUSÃO Por fim, pode-se concluir que a identidade nacional é algo que está em constante mudança, e não apenas no caso dos curdos. Apesar das contradições apresentadas acima, o discurso da nação democrática de Öcalan foi (e está sendo) colocado em prática na revolução em Rojava. E o próprio caráter da revolução é o de diferentes tentativas e resultados, com o objetivo de garantir a liberdade do povo curdo. Não é possível prever qual direção seria “correta”, já que são diversas forças em jogo.

Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

A prática política se dá no cotidiano de pessoas comuns que se prontificam todos os dias para construir e tomar decisões a respeito dos rumos da sociedade em que vivem. Não é apenas uma maneira de resistir e sobreviver às condições precárias da guerra, mas de construir uma nova realidade. A revolução em Rojava é uma lição para todos os povos que acreditam na liberdade e solidariedade.

Avesso


58 Artigos V. 1 N. 1 2020

BIBLIOGRAFIA AKKAYA, Ahmet Hamdi; JONGERDEN, Joost. “The PKK in the 2000s: Continuity through breaks?”. In: CASIER, MARLIES e JONGERDEN, Joost. Nationalisms and politics in Turkey: political Islam, Kemalism and the Kurdish Issue. New York: Routledge, 2011, p. 143-62. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BALAKRISHNAN, Gopal. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. BOOKCHIN, Murray. Ecologia social e outros ensaios. Rio de Janeiro: Achiamé, 2010. BREUILLY, JOHN. The Oxford Handbook of the History of Nationalism. Oxford: Oxford University Press, 2013. CAGLAYAN, Handan. From Kawa the Blacksmith to Ishtar the Goddess: Gender Constructions in Ideological-Political Discourses of the Kurdish Movement in post1980 Turkey. European Journal of Turkish Studies, p.19-33, 2012. DIRIK, Dilar. Living Without Approval. New World Academy Reader: Stateless Democracy. Amsterdam: BAK, 2015. JONG, Alex de. De apisonadora estalinista a mariposa libertaria? La evolución ideológica del PKK. Viento Sur, n. 140, jun. 2015. GUIBERNAU, Montserrat. Nations Without States: Political Communities in the Global Age. Michigan Journal of International Law, n. 25, 2004. GUNTER, Michael. An Historical Overview to the Kurdish Problem. The Copernicus Journal of Political Studies, n. 2 (5), 2013.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

GUNTER, Michael M. Historical Dictionary of the Kurds: Historical Dictionaries of Peoples and Cultures. 2. ed. Scarecrow Press, 2010. 457 p. Kindle Edition.


KNAPP, Michael; FLACH, Anja; AYBOGA, Ercan. Revolution in Rojava: Democratic Autonomy and Women’s Liberation in Syrian Kurdistan. London: Pluto Press, 2016. KREYENBROEK, Philip; SPERL, Stefan. The Kurds: a contemporary overview. London/New York: Routledge, 1992.

59 Júlia Mongiat Bezerra Notas sobre o nacionalismo curdo: reformulação da identidade nacional

MARCUS, Alisa. Blood and Belief: The PKK and the kurdish fight for independence. New York & London: New York University Press. 2007. MCDOWALL, David. A Modern History of the Kurds. London/New York: I.B. Tauris & Co Ltd, 2007. ÖCALAN, Abdullah. Confederalismo Democrático. Rio de Janeiro: Rizoma, 2016. ÖCALAN, Abdullah. Democratic Nation. Cologne: International Initiative, 2017. ______. Guerra e paz no Curdistão. Cologne: International Initiative, 2008. ______. Libertando a vida: a revolução das mulheres. São Paulo: Fundação Lauro Campos, 2016. RENAN, Ernest. What is a nation?. In: BHABHA, Homi K. Nation and Narration. London/New York: Routledge, 1990. SCHMIDINGER, Thomas. Rojava: Revolution, War, and the Future of Syria’s Kurds. London: Pluto Press, 2018. VAN BRUINESSEN, Martin. Agha, Shaikh, and State: On the Social and Political Organization of Kurdistan. Utrecht: University of Utrecht, 1978. WHITE, Paul. The PKK: Coming Down from the Mountains. London: Zed Books, 2015.

Avesso


60 Artigos

Sydney Antener

V. 1 N. 1 2020

Keywords Black women African American women Doula Midwife Allopathic healthcare Infantile mortality Maternal mortality Pregnancy related death.

City University of New York

Avesso

A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

This paper delves into the factors that contribute to the racial disparity of maternal and infantile mortality rate in the United States. According to a study done by the Center for Disease control, black women in the United States are overall two to three times more likely to die than white women. This paper asks the question “what is causing this disparity and what are the consequences and factors to this increased maternal mortality rate for African American women". This paper uncovers that from the beginning of the creation of allopathic healthcare in the late 1800’s black birthing has become more dangerous for mothers and children. Throughout case studies and interviews, black women feel less respected by health care professionals and are less likely to be listened to. There is also evidence that racial stress of living in a overwhelming racialized white country has decreased the health outlooks for both mother and newborns born in the U.S.


INTRODUCTION I am researching why is there a racial disparity of maternal mortality in the United States between Black women and White women. I have selected this topic because last semester I took a class with Professor Griselda Rodriguez-Solomon, a Doula who works at City College in International Studies. Griselda, as well another doula Emilie Rodriguez, started Ashe Birthing Services. Providing birthing services to mothers in the tri-state area. She sparked my interest in birthing in America and I soon learned about my own birth story as well as the inequality in the United States of White women when compared to Black women. I wanted to study the issue more with this paper. I do not have any previous experience with this topic.

61 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

The methods I used for this paper were News articles on the subject, grad student’s thesis papers, ted talks and documentaries about the subject. I did not encounter many issues concerning the research methods however one issue was that there were many articles about the topic which then entailed sorting through the research to achieve accurate and non-repeating information was slightly problemsome. There is an issue with data collection as well because it is not mandatory for states to maintain cohesive records of maternal deaths and only a few do, the rest of the information was outside. My topic is the racial disparity of maternal care in the United States. The main question I will be attempting to address is why such a disparity between maternal mortality of African American women is there compared to Caucasian women in the United States. TERMS IN USE Pregnancy related death - According to the CDC. Any death during pregnancy or one year after the end of the pregnancy, regardless of the outcome, due to a pregnancy related, or aggravated medical issue. Doula - According to DONA, an internationally recognized Doula training organization “a trained professional who provides continuous physical, emotional and Avesso


62 Artigos V. 1 N. 1 2020

informational support to a mother before, during and shortly after childbirth to help her achieve the healthiest, most satisfying experience possible” American society - Throughout the course of this paper, the term American society refers explicitly to the reality and experiences of Caucasian America, unless otherwise explicitly stated. WHAT IS THE HISTORY OF BIRTHING IN THE UNITED STATES?

City University of New York

Avesso

Birthing in the United States can be traced back to the birthing practices carried over from the main places of immigration. Caucasian birth in America up until the 1760’s was purely a female event, no male being invited in. Women relied on expansive networks of fellow female family and friends to assist in the birth. Caucasian women in the late 18th century began inviting male practicing physicians in the birthing room. This was more common amongst upper class women as men at that time were the superior sex, and the belief was that “women were emotionally and intellectually incapable of learning and applying the new obstetric methods” (Cf. Feldhusen, 2000), families were more willing to pay for a male physician. By the early 1850’s there was beginning to be a shift from traditional midwives who were thought to be “untrained” by American society to male physicians. This shift targeted the “granny midwife” generally an older black midwife in the South and other black women midwives specifically due to derogatory racialized connotations against black women. Granny midwives were persecuted by the white medical community associating her with witchcraft and practicing dangerous and ill-informed techniques for childbirth (Bonaparte, 2007, p. 23-24) and there was the emergence of formal training services for midwives, however the profession was sliding over to male domination. There were also new medical advancements during this time, such as the invention of forceps, the stethoscope, and the emergence of modern gynecology (Cf. Feldhusen, 2000). Dr Marion Sims, born in 1813 is often renowned as the “father of gynecology” for his advancement of surgical repairs of virginal fistulas. He accomplished this through the experimentation on slave women without any anesthesia and continued to do so


throughout the 1830’s. By the 1880’s American society push “for the restoration of medical licensing was sought among all the competing groups” (Cf. Feldhusen, 2000). In 1888 the American College of Obstetricians and Gynecologists was founded. From the end of the 19th century to the end of the 1940’s there was a massive push from American doctors and newly created Medicare to attend hospitals for hospital births. By 1960 97% of all births recorded took place in a hospital.

63 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

During the practice of slavery Black women tended their own births as white doctors were not trusted. In the antebellum period to the 1930’s to 1940’s granny midwives, took care of black and lower income white women throughout all stages of pregnancy before allopathic healthcare took hold complete hold of all pregnancy. Granny Midwives stressed holistic caring wanting the woman to have emotional and mental stability, throughout the pregnancy. Granny Midwives relied on less invasive methods and tried to allow birth to occur naturally. The midwife would then continue to take care of the women for months after the birth, acting as an emotional and informational pillar in the mother’s life. In 1940’s campaigns were started against granny midwives to force the black population in America to turn to hospitals- dramatic decrease in midwives. These campaigns likened these midwives to “witches” and used racist tactics as there was “derision of slave approaches to healing” in the medical community” (Bonaparte, 2007, p. 21). There was also legal changes passed restriction who could practice healthcare in the United States. States, such as South Carolina soon started passing laws on county levels, enforcing obtention of licensing and formal training. This forced midwives who wanted to continue to serve the community train under white men. Effectively losing her autonomy and individual practices (BONAPARTE, 2007). What is the rate of Maternal Mortality in the US? Why is it so high? Maternal mortality saw an improvement throughout the 20th century. According to recent reports of mate and infant mortality from the years 1915 to 1990. In 1960 the United States ranked 12th in infant mortality rates, The USA has now fallen behind and is 32nd out of 35th, of the wealthiest nations (Villarosa, 2018, p. 5). Avesso


64 Artigos V. 1 N. 1 2020

Each year an estimated 700-900 maternal deaths occur in which up to 60% of those deaths are preventable (Cf. Rainford, 2018). According to the CDC there are nearly 50,000 women who experience near-death experiences due to pregnancy complications each year. This number (from 2014, the last available dates) rose nearly 200% from 1993. African American women especially suffer as they are three to four times as likely to die due to pregnancy related causes (Villarosa, 2018, p. 5). Black women in the US have approximately the same maternal mortality rates as Mexico, “where nearly half of the population lives in poverty”. The US also has the highest cost of healthcare of the developed world. These abysmal numbers demonstrate the United States lacking ability to provide quality maternity care, especially to African American women. One reason why the maternal mortality is so high is the large prevalence of C-sections. In New York the rate of C-sections is 33% while the national average is 33%. The recommended number of C-sections that are deemed necessary by the CDC is between 10% and 15%. C-sections can lead to increase risk of disease, scarring, longer recovery times, and lifelong pain such as pelvic and back pain. According to NPR research African Americans have higher rates of C-section and are more than twice as likely to be readmitted to the hospital in the month following the surgery. African American women too suffer from lack of agency when it comes to advocating for themselves in prevention of the surgery. Simone Landrum when talking with her doctor about the scheduled birth of her third child was warned “that he was [...] going out of town and [...] he could deliver the baby by C-section, that day if she wished, six weeks before her early due date” Landrum later stated that it felt an “ultimatum” (Villarosa, 2018, p. 3) African Americans are also more likely to be uneducated about the truths of child birthing and therefore are not fully able to advocate for herself.

City University of New York

Do African American Women feel a lack of agency when giving birth? According to an interview conducted with a trained Doula in New York City, she states that in her experience African American women appeared to get talked “at” more instead of talked “with”. In her experiences with

Avesso


doctors she has seen physicians more willing to have a dialogue and to take into account what the mother wants, if the mother is of Caucasian descent, instead of an African American woman. While she admitted that she does have limited experience with Caucasian women as she mostly tends to Women of Color this conclusion is often verified by other individual stories and experiences of women of color. In America African American women face undue stress due to institutionalized and poignant racism. This results in these women not feeling in control of their situation, as they lack confidence of agency. African American Women have been removed and obstructed from power positions- Granny midwives’ campaigns against them by equating them to “the other”, one outside the realm of power or respect in medical society (Bonaparte, 2007). This racial and sex oriented attack caused the black midwife to lose agency in the field, which is detrimental for black women as they face prejudice and discrimination in the outside American society. One poignant example of a lack of agency experienced is the case of Simone Landrum, who during the spring of 2016 realized she was pregnant with her third child. Landrum twenty-three years old at the time noticed a difference with this pregnancy this time around as she experienced “constant headaches and sensitivity to light” as well as major swelling in her face, hands and feet as her due date neared. When she went to her doctor to tell him of her worries “he brushed aside her complaints” and recommended Tylenol even when it was not working. After Landrum complained again her doctor told her to “lie down and calm down” This casual rebuff encapsulates the lack of dialogue, trust, and respect experienced by African American women with their gynecologists and obstetricians (VILLAROSA, 2018).

65 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

Another example of lack of agency experienced by an African American woman is Shalon Irving. In mid2016 Irving, a highly educated, lieutenant in the US Public Health Service discovered she was pregnant. She was classified as a high-risk pregnancy due to a diagnosis of hypertension and uterine fibroids as well as being slightly older at 36 years. After the delivery of her daughter by c-section, Irving went back to the doctors after a couple of days complaining of feeling ill. The first doctor could not find anything wrong, but a second doctor found a wound due to her c-section. Thinking that was all Irving went home with the proper instructions. However, after not feeling better she then went to two other doctors all Avesso


66 Artigos V. 1 N. 1 2020

who claimed they could do nothing for her. After her last doctors visit, she went home and five hours later ended up in a fatal coma due to hypertension (Cf. Rainford, 2018). This individual instance is reinforced by NPR and ProPublica stories collected in 2017 of over 200 African American mothers where “the feeling of being devalued and disrespected by medical providers was a constant theme” (Cf. Martin; Montagne, 2017). This also demonstrates that black maternal mortality is not relegated towards one economic class. WHAT HEALTH CONDITIONS DISPROPORTIONATELY AFFECT BLACK WOMEN IN THE US? While both White and Black women in the United States suffer from increased chances of dying from pregnancy-related issues “a national study of five medical complications [of] common causes of maternal death and injury” were studied, and it found ‘black women were two to three times more likely to die than white women who had the same condition” (Cf. Martin; Montagne, 2017). There are also medical issues that affect Black American women more than White American women. One being hypertensive, or high blood pressure disorders. These include eclampsia and pre-eclampsia. Pre-eclampsia can only be achieved while pregnant and is characterized by hypertension, water retention and blood in urine. Severe preeclampsia is characterized as increased sensitivity to light, headaches, fatigue, urinating in small amounts, pain in upper right abdomen, bruising easily, and shortness of breath. This can then lead to eclampsia after pregnancy. African American women “have disproportionate rates of hypertensive disorders and peripartum cardiomyopathy (pregnancy-induced heart failure), two leading killers in the days and weeks after delivery” (Cf. MARTIN; MONTAGNE, 2017).

City University of New York

Avesso

It was hypertension that cost Shalon Irving her life, and Simone Landrum her third child. Hypertension especially linked to. the heightened stress levels an African American woman unintentionally feels due to constantly dealing with institutionalized racist practices and ideals. Black women are also twice as likely as white women to have postpartum depression, but “much less likely” to receive treatment for it (Cf. Martin; Montagne, 2017). Often black women will not follow through with the doc-


tor’s appointment either due to feeling mistreated due to her race, or lack of flexible and whole coverage of birthing costs. This is related with increased percentages of Black women being insured or have only later or minimal coverage for prenatal care and almost no care for post partum (Cf. Martin; Montagne, 2017). This signifies that black American women are much more likely to not be as financially self-sufficient as a white American woman.

67 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

WHAT FACTOR DOES RACE PLAY WHEN GIVING BIRTH IN THE US? Race plays a crucial factor while giving birth in the US. African American women die at three to four times the rate more than caucasian women from pregnancy related complications according to the CDC (Cf. Martin; Montagne, 2017). According to other recent studies conducted by the City of New York between the years 2008-2012 college educated black American women who gave birth at local hospitals are “were more likely to suffer severe complications of pregnancy or childbirth than white women who never graduated from high school” (Cf. Martin; Montagne, 2017). Between the years 2006-2010 African American women were twelve times more likely to die than caucasian women giving birth in NYC hospitals. Research has proven that African American women suffer more from pregnancy complications and have a higher rate of maternal mortality and infant mortality due to the “weathering” effect of institutionalized racism on their bodies as quoted by Dr. Arline Geronimus a professor in the Department of health behavior and health education at the University of Michigan School of Public Health. In the New York Times article “Why America’s Black Mothers and Babies are in a Life-Or-Death Crisis” The study “Mortality among Infants of Black as Compared with White College-Educated Parents” from the New England School of Medicine published in 1992 is referenced. The study found that “infants born to college educated black parents were twice as likely to die as infants born to similarly educated white parents” (Villarosa, 2018, p. 5). 72% of the cases recorded of almost one million were found to be due to low birth weight. This can be attributed to the “weathering” experienced by African American women from being in a society that experiences high levels of institutionalized racism ingrained in the Avesso


68 Artigos V. 1 N. 1 2020

very foundations of allopathic healthcare. In the 21st century “African American Women are more likely to experience disparities in access to quality ed, safe housing, health care resources, employment, and live in unsafe environmental conditions� (Cf. Rainford, 2018). This unequally hinders African American women, as before they become pregnant, they are more likely to be less able to provide financially for a child and would experience greater stress levels than white women bringing their baby home. The effects of long-lasting racism and discrimination adds on average seven and a half years to the chronological age of the women (Cf. RAINFORD, 2018). CASE STUDY: AFRICAN WOMEN WHO GAVE BIRTH IN BOSTON COMPARED TO AFRICAN AMERICAN WOMEN

City University of New York

Avesso

The visible effects that ingrained racism can have African American demonstrates itself in multiple health factors that affects the child. In a case study performed in 1990, African American children were born with lower birth weights, smaller head circumference, and were overall shorter in length (Howard Cabral; Freid, 1990, p. 2). This study was performed by comparing African immigrant women and their newborns compared to African American women. The study performed on two-hundred and one foreign born African women and six-hundred and sixteen. In table one below African women have children at an older age and have on average more education than African American women as well. This would demonstrate that although the African immigrants and African Americans are both black and relatively are located within the same income bracket there are still factors that disproportionately affect black Americans (Howard Cabral; Freid, 1990, p. 2). While admitting that the data compiled in this study is not entirely conclusive of exact causes for the disparity in the research findings. These research findings however do conclude that there is a distinct difference in African American infant outcome when compared to African women. This difference could be attributed to the stress of racism of living in America, in a world crafted to disadvantage and abuse Black citizens.


69 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

Tabela 1 Comparison of Foreign-Born US-Born Black Women on Demographic and Selected Obstetric Factors. Taken from: HOWARD CABRAL; FRIED, 1990.

HOW HAS ALLOPATHIC HEALTHCARE SYSTEM AFFECTED AFRICAN AMERICAN WOMEN? Allopathic healthcare with the strong reliance on surgery such as C-Sections, corrective surgeries after life threatening pregnancy complications such as surgery to remove blood clots and use of conventional medication such as epidurals and anesthesia to relieve pain. As black Americans suffer from higher rates C-Section operations they are more likely if they have more than one child, to have longer lasting health consequences from the surgery (Cf. Martin; Montagne, 2017). Back women are also more likely “to be uninsured outside of pregnancy, when Medicaid kicks in, and thus more likely to start prenatal care later and to lose coverage in the postpartum period” (Cf. Martin; Montagne, 2017). This could eradicate a woman’s opportunity to be seen by the doctor if she develops a pregnancy-related concern later. Currently cities are not mandated to maintain detailed records of maternal mortality rates. This makes it extremely easy to keep the truth of giving birth in the United States hidden from the public, as there is no formal cohesive way in which to comply all the information nationally. This assists the continued disenfranchiseAvesso


70 Artigos V. 1 N. 1

ment of black American women, as the concerns that researchers, human rights groups, and select physicians have can never be fully addressed until there is substantial proof of widespread nationally acknowledged proof (Cf. FIELDS, 2017).

2020

CONCLUSION Topic Question: Why is there a racial disparity between the maternal mortality rate of Black woman compared to Caucasian women?

City University of New York

Avesso

After reading and analyzing all of my sources I have concluded that they all agree that the racial disparity experienced by black women in the United States concerning their maternal and infantile mortality is due to the institutionalized racism in hospital visits and the “weathering” experienced by black Women in America. Due to the inherent racialized history and current nature of institutions such as hospitals and doctors, black women are disadvantaged regardless of economic status. Stories as well as statistics support the negative health effects from that process can be viewed in the disparity of birth weights All of the sources agreed that there are large, and disturbing differences between the maternal mortality rates of black Americans, and white Americans. In addition, throughout research multiple sources maintained that this is an issue that has not been getting enough attention by the American public. With 700 to 900 maternal deaths per year in the US and with maternal mortality rising, as well as the racial gap widening with black women as black woman as of recent reports “243 percent more likely to die from pregnancy- or childbirth-related causes” (Cf. Martin; Montagne, 2017), the time to act is now. Racial bias in Pregnancy and post-partum care as well the road to recovery, in creating a more equal and just maternal health care system is a long and arduous one The United States has to embark on to ensure the survival of black mothers and children.


BIBLIOGRAPHY BONAPARTE, A. D. (2007). “The Persecution and Prosecution of Granny Midwives”. In: South Carolina 1900-1940. Nashville: Vanderbilt University. https://etd. library.vanderbilt.edu//available/etd-07252007-122217/ unrestricted/bonapartedissertation2007final.pdf

71 Sydney Antener A study of the factors behind the maternal and infantile mortality of black American woman

FELDHUSEN, A. (2000). “The History of Midwifery and Childbirth in America: A Timeline”. In: Midwifery Today. The United States of America. 2000. https://midwiferytoday.com/web-article/history-midwifery-childbirth-america-time-line/ FIELDS, R. (Nov 15th, 2017). “New York City Launches Committee to Review Maternal Deaths”. In: ProPublica. New York City. https://www.propublica.org/article/ new-york-city-launches-committee-to-review-maternaldeaths HOWARD CABRAL, M. P. H.; FRIED, M. S. P. H; et. all. Foreign-Born and US-Born Black Women: Differences in Health Behaviors and Birth Outcomes. American Journal of Public Health. 1990. https://ajph.aphapublications.org/doi/pdf/10.2105/AJPH.80.1.70 MARTIN, N.; MONTAGNE, R. (Dec 7th, 2017). “Black Mothers Keep Dying After Giving Birth. Shalon Irving’s Story Explains Why” National Public News. Baltimore. https://www.npr.org/2017/12/07/568948782/blackmothers-keep-dying-after-giving-birth-shalon-irvingsstory-explains-why RODRIGUEZ-SOLOMON, Griselda. Interview: Experienced Doula with Black and immigrant women. Co-founder of Ashe birthing services, and professor at City College. Has no less than eight years’ experience. November 8th, 2018. RAINFORD, M. “America’s Maternal Nightmare by Dr. Monique Rainford”. In: TED TALKS (Oct 18th, 2018). Approx. 13 min long. https://www.youtube.com/ watch?v=qzuMxI3-km8&t=476s VILLAROSA, L. (April 11th, 2018). “Why America’s Black Mothers and Babies in a Life-Or- Death Crisis”. In: The New York Times Magazine. New York. https:// www.nytimes.com/2018/04/11/magazine/black-mothAvesso


72 Artigos V. 1 N. 1 2020

City University of New York

Avesso

ers-babies-death-maternalmortality.html?mtrref=www.bing.com&gwh=CFB0048C3DDF5B0BAF80C368D9C76444&gwt=pay.


73

Avesso


74 Artigos

Yasmine Mafulde

V. 1

Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais 1

N. 1 2020

Law and Narrative: An analysis of racial discourses in judicial decisions

Palavras Chave

No presente artigo será trabalhado o conceito de narrativa à luz da teoria do autor Roland Barthes, que serviu de base para que autores da teoria crítica do direito criassem novos modos de interpretação de textos jurídicos de forma a dissolver o sujeito neutro e universal: o homem branco heterossexual. Para fins práticos analisaremos duas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, para ilustrar como a ideia de raça foi sendo construída historicamente nas decisões judiciais e de que maneiras o judiciário utilizou-se do discurso da universalidade, da neutralidade e da imparcialidade para perpetuar a dominação racial.

Roland Barthes Teoria Crítica Direito Narrativa Raça.

K e y w o r d s Roland Barthes Critical Theory Law Narrative Race.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

The present paper will work on the concept of narrative given by Roland Barthes’s theory, which was an important basis for authors of the critical theory of law to create new methods of interpreting judicial texts in a way of dissolving the neutral and universal subject: the white heterosexual man. For practical reasons we will analyze two U.S. Supreme Court decisions to illustrate how the idea of race has been constructed historically in judicial rulings and in which ways the judiciary has been using the discourse of universality, neutrality and impartiality to perpetuate the racial domination.


CONCEITO DE NARRATIVA Segundo Roland Barthes (2001, p. 19), a narrativa é algo que sempre se fez presente em todas as sociedades, sendo criada de diferentes maneiras, seja por uso da linguagem articulada, de imagens, de gestos e movimentos ou todas as opções simultaneamente. A narrativa, portanto, é um fenômeno universal e constante, que é, ao mesmo tempo, produzida de incontáveis formas diferentes. Seria impossível, por conseguinte, conceituar o fenômeno da narrativa por meio do método indutivo, que levaria em consideração todas as narrativas particulares, uma vez que todos os seres humanos narram o tempo todo, de variadas maneiras. O autor em questão, através do método dedutivo, portanto, cria sua teoria no sentido de que a narrativa é o processo de relatar e articular fatos, não de maneira aleatória, mas sim a partir de uma lógica específica. Ao narrar, portanto, o indivíduo atribui sentido a acontecimentos a partir do valor cultural que esses acontecimentos têm para ele. Por esse motivo, a narrativa é uma espécie de produção cultural, uma atividade axiológica, em que os seres humanos – reitero – atribuem sentido aos fatos da vida. Neste mesmo diapasão, explica o autor Adilson Moreira:

75 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

Este artigo se originou do Trabalho de Conclusão de Curso, cuja banca avaliadora atribuiu nota 10. Ele também foi indicado ao Prêmio de Melhor TCC da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sendo orientado pelo Profº. Adilsom Moreira.

1

Segundo Roland Barthes, a ideia de narrativa refere-se às várias formas a partir das quais alguém comunica um relato coerente de eventos e personagens de acordo com um processo seletivo que os organizam em uma ordem temporal. Nesse sentido, a ideia de narrativa remete para as várias maneiras a partir das quais as culturas humanas produzem e transmitem significados sociais (2017, p. 11).

Roland Barthes ainda em seu texto introdutório ao tema, defende que a narrativa possui uma língua própria, que não é “mais do que um dos idiomas oferecidos à linguística do discurso” (2001, p. 24). Em outras palavras, o autor estabelece uma relação homológica entre a frase – que é objeto de estudo da linguística – e o discurso. A frase não é apenas a somatória das palavras que a constitui, mas sim uma “unidade original”, um “enunciado”. Da mesma forma, o discurso não é apenas uma sucessão de frases, mas sim uma grande “frase” que deve ser Avesso


76 Artigos V. 1 N. 1 2020

sujeita à análise de uma segunda linguística, que ele chamará de a “nova linguística do discurso” (que substituiria inclusive os estudos da retórica). Nesse sentido: (...) estruturalmente, a narrativa participa da frase, sem poder jamais se reduzir a uma soma de frases: a narrativa é uma grande frase, como toda frase constatativa de uma certa maneira o esboço de uma pequena narrativa. (...) A homologia que se sugere aqui não tem apenas um valor heurístico: implica uma identidade entre a linguagem e a literatura (enquanto esta for uma espécie de veículo privilegiado da narrativa): (...) a linguagem não cessa de acompanhar o discurso estendendo-lhe o espelho de sua própria estrutura (IBIDEM).

Desta forma, a última instância de análise da narrativa é a sua dimensão discursiva. O discurso é o núcleo indivisível da narrativa. Em outras palavras, ela é traduzível e resumível sem que se perca esse seu núcleo fundamental que é a sua mensagem principal. Entende-se, portanto, que assim como a análise linguística para na frase, a análise da narrativa para no discurso. Cada narrativa, portanto, é uma unidade específica, com suas próprias regras implícitas e sua própria lógica. Dessa maneira, até o tempo da narrativa não é o mesmo que o tempo real, sendo, na verdade, um tempo lógico que liga os acontecimentos da sequência.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Nessa mesma esteira, Barthes vai diferenciar narrador de autor derrubando em seu texto as concepções clássicas de que o doador da narrativa seria uma pessoa real e viva. Em sentido contrário, ele defende que “narrador e personagens são essencialmente ‘seres de papel’”, e que “quem fala (na narrativa) não é quem escreve (na vida) e quem escreve não é quem é” (Barthes, 2001, p. 50). Dessa forma, não se confunde o autor com o narrador, pois este último é imanente à narrativa. O narrador e o próprio texto, portanto, encerram-se em si mesmos: A narração não pode com efeito receber sua significação do mundo que a usa, acima do nível narracional, começa o mundo, isto é, outros sistemas (sociais, econômicos, ideológicos), cujos termos não são mais apenas as narrati-

Avesso


vas, mas elementos de uma outra substância (fatos históricos, determinações, comportamentos, etc.). (...) Pode-se dizer (...) que toda narrativa é tributária de uma “situação de narrativa”, conjunto de protocolos segundo os quais a narrativa é consumida (OP. CIT, p. 54).

77 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

A ideia de colocar a narrativa como imanente a ela mesma, a ponto de “matar” o autor, é interessante no sentido de destruir a ideia de verdade e de realismo. DIREITO, NARRATIVA E IDEOLOGIA Visto que as sociedades são marcadas por divisões sociais e relações hierárquicas de poder, a narrativa é também um instrumento de legitimação e produção ideológica. No item anterior, quando foi dito que o núcleo indivisível da narrativa é o discurso, pretendeu-se dizer que ela utiliza uma série de premissas para sustentar uma ideologia. Os acontecimentos ou fatos são articulados de maneira a dar sustento a uma mensagem ou ideia específica. O autor Thomas Ross (Cf. 1989) irá nos destacar o exemplo das narrativas com discurso moralizante tão presentes em nossa cultura. Diz o autor que é praticamente inevitável o contato com esse tipo de narrativa, pois o discurso moralizante está presente nos mitos, nas narrativas religiosas, nas fábulas e até mesmos nas narrativas que adultos criam para educar crianças sobre fatos simples do cotidiano:

2

“The experience of narrative as moralizing discourse is a recurrent and pervasive, if not inescapable, part of our cultural experience. Each culture has its myths. (...) When I seek to define myself, I tell stories. And in my stories, I reveal my sense of my struggle to say something and to be someone and, at the same time, to attend to the cruelty and humiliation that we inflict on others. All of this is the paradigm of moralizing discourse.”

A experiência da narrativa como um discurso moralizante é uma recorrente e difundida, se não inescapável, parte de nossa experiência cultural. Cada cultura tem seus mitos. Cada religião tem suas narrativas centrais. (...) Quando eu procuro me definir, eu conto histórias. E nas minhas histórias, eu revelo meu senso sobre a minha luta para dizer algo e para ser alguém e, ao mesmo tempo, para observar a crueldade e humilhação que causamos aos outros. Tudo isso é o paradigma do discurso moralizante (ROSS, 1989, p. 384. Trad. nossa).2 Ainda segundo Ross, o direito também produz narrativas com discursos moralizantes a todo tempo. As Avesso


78 Artigos V. 1 N. 1 2020

“Judicial opinions are generally well-controlled pieces of apparently rational discourse. Even in dissent, judges ultimately seem to take on the sense of detachment and cool rationality that is part of the ascribed cultural role of judges. (...) Every judicial opinion is connected to violence. If reading opinions as narratives obscures that point, it is a pernicious endeavor. I hope instead to read opinions as narratives as a way of illuminating the idea of law as composed essentially of choices made for and against people, and imposed through violence”.

3

Universidade Presbiteriana Mackenzie

articulações de fatos e decisões judiciais, assim como a de peças de defesa e acusação, justificam-se a partir de ideias de bem e mal e de outras premissas morais. O direito, nesse sentido, busca o tempo todo dizer o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. Autores da teoria crítica do direito como Ross irão adotar a ideia de que o direito é produtor de narrativas culturais e, portanto, produtor de discursos e ideologias. A afirmação de que decisões judiciais – entre outros textos jurídicos – são narrativas é deveras polêmica. Tal afirmação causa um inicial incômodo, pois confronta a tradição jurídica formalista, que pensa o direito a partir da adoção de orientações epistemológicas constituídas pelas ideias de transparência, neutralidade e imparcialidade. Nesse mesmo sentido, pensa-se o direito como algo pautado na razão universal: Decisões judiciais são geralmente peças aparentemente contendo um discurso controlado e racional. Mesmo em divergência, juízes fundamentalmente parecem adotar um distanciamento e uma fria racionalidade que faz parte do papel cultural atribuído a eles. (...) Toda decisão judicial está conectada à violência. Se ler decisões como narrativas obscurecer esse ponto, será um esforço danoso. Eu desejo, ao contrário, ler decisões como narrativas como uma maneira de iluminar a ideia de que o direito é composto essencialmente de escolhas feitas para e contra pessoas, e impostas através de violência (IBIDEM. Trad. nossa).3 Ao ler decisões judiciais como narrativas, os autores da teoria crítica confrontam as ideias de verdade e neutralidade implícitas nos textos jurídicos. Enxergar uma decisão judicial como portadora de características de narrativa – como uma “estória” – implica em ver a sua construção como um processo subjetivo e, por conseguinte, não-neutro, pois uma história pode ser contada de diferentes maneiras a depender do narrador: A ideia de narrativizar é de expor e, portanto, sujeitar-se a debater os valores escondidos pela forma aparentemente não-narrativa das peças escritas em estilo acadêmico tradicional. (...) Antifundacionalistas

Avesso


defendem que argumentos, legais ou outros, não são feitos no vácuo, mas são construídos dentro de um contexto de inúmeros fatores: crenças políticas, valores morais e princípios filosóficos. (...) Como observado acima, isso não significa que não há verdade ou fatos, ou mesmo que a objetividade não possa ser vista como um ideal. Significa, no entanto, que nosso conhecimento dos fatos ou da verdade está sempre filtrado de alguma maneira (BARRON; EPSTEIN, 1997, p. 173. Trad. nossa).4 Desta maneira, como diz o autor acima citado, o objetivo principal não é negar completamente a existência dos fatos ou abolir a ideia de que devemos buscar pela objetividade e imparcialidade do direito nas decisões judiciais. É importante, no entanto, que possamos enxergar que, na prática, é impossível decidir de maneira completamente neutra. Assim podemos identificar quando o discurso da neutralidade é utilizado de maneira falaciosa para perpetuar a dominação social de grupos historicamente oprimidos. A análise dos textos jurídicos através das teorias literárias, por conseguinte, propõe identificar o discurso por trás das decisões e demonstrar o caráter ideológico do direito. Mesmo as decisões com os mais abstratos dos pressupostos são ideológicas. Os magistrados fazem uma série de escolhas para construir os textos das decisões: utilizar abstrações e regras gerais; ignorar particularidades de um caso concreto; ser omisso ou não a fatos históricos e sociais, entre outras opções. Por conseguinte, é possível dizer que direito produz narrativas, uma vez que relata fatos da vida de forma não aleatória e atribui sentido e valor a eles através do discurso. No subitem a seguir, veremos como as narrativas jurídicas operam no âmbito da questão racial, demonstrando este ponto defendido pela escola da teoria crítica.

79 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

“The point of narrativizing is to expose and thereby subject to debate the values hidden by the apparently nonnarrative format of pieces written in traditional “academic” styles. (...). Antifoundationalists hold that arguments, legal or other, are not made in a vacuum, but are constructed within a context of many factors: political beliefs, moral values and philosophical principles.(...) As noted above, this does not mean that there is no such things as truth or facts, or even that objectivity cannot be seem as an ideal. It does mean, however, that our knowledge of facts or truth is always in some way filtered”. 5 Tradução que se adotou neste trabalho para o termo mixed race, que é utilizado nos Estados Unidos para denominar pessoas que não são geneticamente totalmente caucasianas. 4

DIREITO, NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO RACISMO Um grande exemplo de manifestação do direito como um instrumento ideológico está no âmbito das questões raciais. Ele cria e reproduz narrativas e, portanto, discursos que podem legitimar ou não a preservação do racismo na sociedade. Lendo decisões judiciais Avesso


80 Artigos V. 1 N. 1 2020

a partir das propostas de análise da teoria crítica racial do direito, podemos identificar como as ideias de raça e racismo foram sendo construídas no direito e como esse serviu de instrumento de criação, reprodução e preservação da desigualdade racial. No presente item serão analisadas duas decisões paradigmáticas da Suprema Corte dos Estados Unidos a respeito de questões raciais. Plessy V. Ferguson (1896) O primeiro caso a ser estudado é o Plessy v. Ferguson, de 1896, que se trata de um caso a respeito de uma lei promulgada no estado de Louisiana, sul dos Estados Unidos, em 1890, que determinava que companhias ferroviárias providenciassem acomodações separadas para pessoas brancas e negras, devendo as pessoas ocuparem os vagões reservados a suas respectivas cores/raças, sob pena de multa ou prisão. Homer Plessy, um homem mestiço5 que dizia possuir sete oitavos de sangue caucasiano e um oitavo de sangue africano, comprou uma passagem de primeira classe em um vagão para brancos, sendo preso por violar a mencionada legislação de Louisiana. Plessy, então, ajuizou uma petição perante a Suprema Corte alegando que a lei em questão violava as 13ª e 14ª emendas da Constituição norte-americana.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

A 13ª emenda, que foi aprovada em 1865, diz respeito à abolição da escravidão nos Estados Unidos. Durante a Guerra Civil, o presidente Abraham Lincoln viu na emancipação total dos escravos e servos involuntários uma oportunidade de obter mais popularidade, tendo em vista a crescente pressão nacional e internacional dos abolicionistas, assim como a possibilidade de agilizar o fim da guerra (Karnal, 2017, p. 134). Dessa forma, foi proclamada a Lei de Emancipação dos escravos em 1863, e apenas em 1865 a 13ª emenda constitucional foi promulgada, sendo a primeira das três emendas do período posterior ao fim da Guerra de Secessão, que é chamado de Reconstrução. Um ano depois, o partido Republicano, pensando na possibilidade de aumento de representação com a emancipação dos negros, consegue aprovar a 14ª emenda à Constituição, em 1866, cuja primeira seção estabeleceu que todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos são cidadãos estadunidenses, não podendo nenhum estado legislar no sentido de privá-los do direito à vida, à liberdade, à


propriedade e ao devido processo legal, nem negar igual proteção legal (USA, 1787). Segundo Leandro Karnal (Ibidem), os congressistas republicanos, apesar de terem aprovado a emenda que concedia formalmente direitos básicos iguais a todos enquanto cidadãos, não pensavam que negros e brancos fossem iguais. O que predominava, segundo o autor, era um grande paradoxo em que se aboliu a escravidão ao mesmo tempo em que se pensava em uma suposta inferioridade natural da “raça negra”.

81 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

O voto vencido do Juiz Harlan concordou com o pedido do autor Plessy, pois, segundo sua interpretação da Constituição, a separação arbitrária de pessoas por critério apenas racial é incompatível com os princípios de liberdade e igualdade civil pregados pelo texto constitucional. Fazendo uma interpretação finalística das duas emendas, Harlan entendeu que a 13ª emenda, além de ter abolido a escravidão, tem como finalidade prevenir quaisqueres atos ou imposições que reproduzam o status de escravidão ou servitude, ainda que simbolicamente, estabelecendo liberdade universal nos Estados Unidos. A 14ª emenda, por conseguinte, ampliou a proteção da 13ª ao assegurar direitos civis como liberdade e cidadania a todos aqueles nascidos ou naturalizados no país. Dessa maneira, a segregação racial em vagões de trem e outros espaços públicos seria uma discriminação irrazoável que não é justificável por meios legais. O magistrado ainda entendeu que a ideia de que a lei de Louisiana seria aplicável igualmente a pessoas brancas e negras era falaciosa, pois o objetivo de tal ato legal não é proibir que brancos ocupem os espaços dos negros tanto quanto é proibir os negros de ocuparem os mesmos espaços que brancos. Ainda que socialmente existisse a desigualdade e o pensamento de que a raça negra era inferior, Harlan afirma que a Constituição não poderia ser utilizada para reforçar esse quadro, pois seu texto é cego à cor da pele e estabelece o ideal de liberdade e igualdade para todos os cidadãos americanos. O voto vencedor escrito pelo Juiz Brown, no entanto, utiliza uma interpretação mais literal do texto constitucional, conseguindo justificar a suposta não-violação da lei de Louisiana à Constituição. Ele argumenta que a lei não confrontaria a 13ª emenda, pois esta diria respeito apenas à abolição da escravidão e da servidão involuntáAvesso


82 Artigos V. 1 N. 1 2020

“(...) the Supreme Court decided against Plessy, proclaiming “separate but equal” facilities constitutional and upholding Louisiana’s law. As important as the rulling was the Court’s reasoning: its insistence that racial differences lay outside the law, beyond and before any act of human agency. The law, the Court decided, could only reflect the sense of racial difference that was a part of human nature itself. (...) Reform-minded whites across the nation saw their own fantasies about blackness as biological realities and found no difficulty in justifying their sense of superiority racially and, especially in the South, encoding their racial essentialism in local and state law”.

6

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

ria em suas concretudes. Ou seja, a 13ª emenda apenas serviria para proibir a posse legal de um ser humano por outro, cumulado com a ausência de direito do escravizado de dispor de sua própria pessoa, de sua propriedade e de serviços. Por o caso em questão não se tratar literalmente de uma situação de escravidão, foi descartada, portanto, a tese de que a lei violaria a 13ª emenda. Com relação à 14ª emenda, o magistrado determinou que também não havia violação porque apenas foi feita uma distinção entre as raças, não afetando a igualdade de condições entre as duas, nem restabelecendo o estado de servidão involuntária. É o tão conhecido princípio do “separado, mas igual” do sistema de segregação racial norte-americano. Além disso, o magistrado também evoca o argumento de que o objetivo do direito é o de manter ordem e a paz social, o que torna a lei de Louisiana razoável, na medida em que existe a desigualdade social entre raças devido à não-afinidade entre elas. Disse em seu voto que a “inferioridade” racial dos negros não existia civilmente ou politicamente – ou seja, na esfera legal –, mas que existia socialmente, não podendo o direito fazer nada a respeito para mudar esse quadro. A autora Grace Elizabeth Hale comenta sobre tal caso paradigmático, extraindo da decisão final seu caráter essencialista, uma vez que para Brown e a maioria dos magistrados, as diferenças entre negros e brancos eram naturais e deveriam ser reconhecidas pelo direito: (...) A Suprema Corte decidiu contra Plessy, proclamando instalações “separadas mas iguais” como constitucionais e defendendo a legislação de Louisiana. Tão importante quanto a decisão foi o raciocínio utilizado pela Corte: sua insistência de que diferenças raciais existem fora do direito, antes e além de qualquer ato de intervenção humana. A lei, a Corte decidiu, poderia apenas refletir o sentido de diferença racial que era parte da natureza humana em si. (...) Brancos de toda nação viram suas próprias fantasias sobre negritude como verdades biológicas, e encontraram nenhuma dificuldade em justificar o seu senso de superioridade racial e, especialmente no Sul, em codificar seu essencialismo racial na legislação local e estadual (HALE, 1998, p. 23. Trad. nossa).6


83

Os dois votos citados trazem narrativas e, portanto, discursos diferentes. O juiz Brown constrói uma narrativa da raça como essência. Seu discurso leva o leitor a entender que raça é algo puramente biológico e inato. Traz a ideia de que uma raça é inferior à outra e que isso nunca será alterado pelo direito, pois é algo natural. Sendo as raças diferentes naturalmente, não haveria, supostamente, nada de errado ou imoral em o direito reconhecer tais distinções. Ao mesmo tempo em que ele diz que a desigualdade social entre as raças era um fato verdadeiro e imutável, paradoxalmente defende que a separação racial por vagão não implicaria dizer que uma raça era inferior à outra. Utiliza-se de interpretação literal da Constituição para afirmar que a cláusula da igual proteção não estava sendo violada, uma vez que negros e brancos continuariam possuindo os mesmos direitos civis e políticos com a segregação racial. Já o juiz Harlan, utiliza-se de outros recursos para construir sua decisão. Seu discurso será construído com o uso de princípios, o que torna sua interpretação da Constituição finalística, ao invés de literal. Sua narrativa é a da “colorblindness”, ou seja, do direito cego à cor dos indivíduos. Também trará em seu discurso a ideia de que não pode existir igualdade sem haver simetria no tratamento dos indivíduos.

Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

City of Richmond vs J. A. Croson CO (1989) O segundo caso que analisaremos ocorreu quase cem anos após o famoso Plessy v. Ferguson, e traz consigo novas narrativas que serão analisadas. A cidade de Richmond, capital do estado de Virgínia, adotou um plano denominado Minority Business Utilization Plan, que determinava que as construtoras contratadas pela cidade para executar obras devessem subcontratar as chamas “empresas minoritárias” para executar pelo menos 30% do valor do contrato, em dólares. As empresas “minoritárias” – minority business enterprise em inglês – seriam aquelas caracterizadas pelo controle de pelo menos 51% do capital da empresa por cidadãos estadunidenses que pertencem a algum grupo racial minoritário (no sentido qualitativo da palavra), como negros, hispânicos, asiáticos, indígenas entre outros. Visto isso, a empresa J. A. Croson Company ajuizou uma ação perante a Suprema Corte alegando que o plano adotado pela cidade violaria a 14ª Emenda da ConsAvesso


84 Artigos V. 1 N. 1 2020

tituição que, como já explicado, estabelece o princípio da igual proteção. O voto majoritário foi da Juíza Sandra O’Connor, favorável a demanda da J. A. Croson Company e, portanto, contra o plano adotado pela cidade de Richmond. Além dele, destacam-se o voto concorrente do Juiz Scalia e o voto dissidente do Juiz Marshall. Analisaremos a seguir os três votos, que possuem linhas de argumentação bem diferentes. O voto vencedor e majoritário da Juíza O’Connor é o mais burocrático e tecnicista entre os três. Uma das principais preocupações em seu voto é discutir se a cidade de Richmond teria a competência legislativa para criar leis de ações afirmativas. Na parte II do voto, concluiu a magistrada que é possível a promulgação de leis para a reparação dos danos coletivos causados por discriminação, mediante comprovação da existência de discriminação na indústria local da cidade de Richmond, conforme os requisitos da 14ª Emenda da Constituição estadunidense. A competência legislativa, portanto, estaria limitada àquela jurisdição municipal e dependeria da prova de que a discriminação na área de construção civil existe, e/ou que a cidade de Richmond tem tido culpa, ainda que por omissão, na perpetuação de um sistema de exclusão racial neste setor específico.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

Na parte III(a), discutiu-se se a legislação em questão passaria pelo filtro mais rigoroso de de controle de constitucionalidade. A magistrada requereu que fosse demonstrado que o baixo número de pessoas não-brancas integrando os quadros societários das empresas de construção civil seria uma consequência direta de discriminação racial no passado. Assim, a cidade de Richmond estaria promovendo uma reparação legislativa por um motivo importante suficiente, utilizando-se de um critério racial de maneira legítima. Também foi justificada a necessidade de utilização deste filtro mais rígido pelos fatos de que pessoas negras são 50% da população da cidade e de que ocupam 5 cadeiras de 9 do Conselho Municipal de Richmond, constituindo, por conseguinte, maioria política (no sentido quantitativo da palavra). No subitem III (b), O’Connor afirma de que não foi comprovado o passado de discriminação que teria dado causa à pouca representatividade de minorias raciais na indústria de construção civil. O fato de que a cidade de Richmond possui aproximadamente 50% da sua população negra, ao mesmo tempo que apenas que menos de 1% dos contratos de execução de obra foram dados a “em-


presas minoritárias”, não se mostrou suficiente para a magistrada, que considerou a comparação equivocada. No subitem IV, a magistrada afirma que uma ação afirmativa que leva em conta critério racial não seria a única e exclusiva maneira de resolver o problema em questão, existindo alternativas legislativas que são neutras racialmente. Na visão dela, cotas raciais não são necessárias neste caso, devendo a cidade de Richmond resolver caso a caso quando houver comprovada discriminação racial. O Juiz Scalia, por sua vez, irá discordar com O’Connor apenas na questão da validade das ações afirmativas. Enquanto a magistrada acredita ser às vezes cabível a adoção de ações afirmativas para reparar danos causados pela discriminação racial, localmente e nacionalmente, Scalia acredita que não é constitucional legislar utilizando critérios raciais, independente do motivo. Ele argumenta que discriminação racial é ilegal, imoral e incompatível com a democracia. Para sustentar essa ideia, ele cita uma passagem do voto do Juiz Harlan no caso Plessy v. Ferguson que diz que a Constituição estadunidense não vê cor, devendo ser aplicada igualmente a pessoas de todas as cores. Isto implica dizer que deve haver uma simetria de tratamento para com todas as raças. Desta forma, discriminar em favor dos negros seria simetricamente inconstitucional e imoral a discriminar em favor dos brancos. Outro argumento é de que não só negros sofreram discriminação, mas que hispânicos e chineses, por exemplo, também. Nesse sentido, escreve o magistrado que “a proposta relevante não é de que negros, judeus ou irlandeses que foram alvo de discriminação, mas que indivíduos, – homens e mulheres – “criados igualmente,” que foram discriminados” (USA, 1989. Trad. nossa).7

85 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

“the relevant proposition is not that it was blacks, or Jews, or Irish who were discriminated against, but that it was individual men and women, ‘created equal,’ who were discriminated against.”.

7

Segundo Ross em seu artigo “The Richmond Narratives” (1989, p. 404), o magistrado Scalia ao falar que a questão da discriminação não é sobre negros, judeus ou irlandeses terem sido vítimas dela, mas sim que indivíduos “criados igualmente” a sofreram, apaga o fator racial da questão, igualando o racismo contra a população negra a outras opressões e preconceitos como intolerância religiosa e xenofobia. Ele apaga não só o sujeito passivo do racismo, como também o sujeito ativo – os brancos. Desta forma, Scalia aponta o perigo de o grupo politicamente dominante determinar a adoção de uma ação Avesso


86 Artigos V. 1 N. 1 2020

afirmativa. Neste caso, ele está se referindo aos próprios negros que ocupavam mais da metade dos assentos do Conselho Municipal da cidade de Richmond. Para Scalia, a discriminação racial imposta pelo plano adotado pela cidade é tão prejudicial, inconstitucional e imoral quanto o regime de segregação racial, objeto do caso Plessy v. Ferguson (ROSS, 1989, p. 404). Finalmente o magistrado Marshall, vai opinar de maneira contrária às posições majoritária e concorrente: para ele, a decisão tomada é um retrocesso na questão de ações afirmativas. A Suprema Corte ignorou a existência de evidência documentada a respeito da discriminação racial no setor de construção civil em âmbito nacional. A cidade de Richmond, segundo Marshall, não é uma exceção a esse padrão nacional reconhecido oficialmente pelo Congresso. Visto que a exclusão racial no setor de construção civil é evidente em razão dos dados estatísticos, o magistrado Marshall prossegue dizendo que o interesse do poder público municipal em erradicar os efeitos do histórico de discriminação racial de Richmond é relevante suficiente para preencher os requisitos de constitucionalidade. Ainda, para suportar sua argumentação, o juiz Marshall fala sobre o passado recente de discriminação racial em Richmond conhecido e experienciado pelos líderes políticos da cidade. Entre outros casos, o magistrado fala da resistência da cidade em cumprir com a dessegregação racial nas escolas imposta pela decisão do famoso caso Brown v. Board of Education, que foi objeto do caso Bradley v. School Board of Richmond de 1974. O uso de fatos históricos é um elemento central do voto de Marshall. A ação afirmativa em questão seria justificável pelo passado histórico de discriminação racial e a continuidade dessa prática e de seus efeitos até a atualidade.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

As narrativas criadas pelos três magistrados nesse caso são bem distintas. O’Connor se apega a argumentos tecnicistas, utilizando uma interpretação mais restrita da Constituição e dos critérios de controle de constitucionalidade para se opor à adoção da ação afirmativa no setor de construção civil. A princípio, sua posição ideológica quanto a questão das ações afirmativas fica pouco evidente, pois não é totalmente contra a adoção de ações afirmativas, dando uma impressão de neutralidade ao leitor. É a narrativa da neutralidade e da imparcialidade do direito sendo reproduzida.


87

O’Connor vai além e justifica a necessidade de um rigor interpretativo em relação aos requisitos de controle de constitucionalidade com o fato de que o Conselho Municipal de Richmond é integrado por uma maioria de pessoas negras. Diz ela que deve ser evitado que o caso vire uma questão de “política racial”, utilizando o termo de maneira negativa. O autor Ross, nesse mesmo sentido, aponta:

A decisão se baseia mais na ideia de “políticas raciais” para justificar uma concepção quase impraticável de rígido escrutínio. O’Connor não só evoca a ideia de políticas raciais, mas também põe em xeque ou ignora a evidência trazida pelo conselho municipal e o seu julgamento. Ela, desta maneira, parece dizer que não se pode confiar nos membros do conselho municipal pois são pessoas negras votando uma lei de ação afirmativa (ROSS, 1989, p. 395. Trad. nossa).8

Ao ler tal argumento na decisão de O’Connor, o leitor consegue extrair a ideia de que raça implica em parcialidade, mas apenas se o sujeito ativo não for branco. O fato de pessoas negras votarem a favor de um projeto de ação afirmativa em benefício de pessoas não-brancas seria motivo de desconfiança, pois não seria uma decisão imparcial. Se o sujeito negro – ou de qualquer outra minoria racial não-branca – é provavelmente parcial e motivado por interesses próprios, por exclusão, o sujeito branco é neutro, universal e supostamente desinteressado em beneficiar-se por ser branco. Este é o discurso que sutilmente dá sentido à decisão da magistrada.

Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

“The opinion relies mostly on the idea of racial politics to justify a nigh impassable conception of strict scrutiny. O’Connor not only invokes the idea of racial politics, but she also discredits or ignores the evidence adduced by the city council and the judgment of the council. She thereby seems to say that the city council members cannot be trusted because they are black people voting on an affirmative action law”.

8

A opinião concorrente do juiz Scalia, por sua vez, é a narrativa da “colorblindness” mencionada já na análise do caso Plessy v. Ferguson. Tal magistrado será contra qualquer política ou decisão racialmente consciente, pois em sua opinião a discriminação racial nunca pode ser algo positivo, sempre ferindo a cláusula da igual proteção. Para sustentar seu voto, utiliza a ideia de igualdade como simetria utilizada no voto do juiz Harlan em Plessy v. Ferguson. No entanto, no caso de 1896, a ideia era demonstrar que o objetivo das leis de segregação eram apenas de proibir os negros de frequentarem o Avesso


88 Artigos V. 1 N. 1 2020

“The abstraction can become vivid for the white reader by imagining the oppression that white people might suffer at the hands of black people. When and where blacks are the dominant racial group, they will oppress whites, unless whites act to stop them. Affirmative action is thus the seed that will destroy whites. It is the means by which whites might be oppressed in those places where whites are racially outnumbered.”. 9

mesmo espaço que brancos e não o contrário, sendo a suposta simetria da lei de segregação falaciosa. Scalia, sem embargo, utiliza do mesmo argumento para se opor a políticas de reparação social à três séculos de exclusão racial. Para ele, não só as situações têm mesmo peso, como também profetiza um cenário de “racismo reverso”, em que negros sendo uma maioria política oprimem pessoas brancas ao votarem arbitrariamente políticas que se utilizam de critérios raciais. Segundo Ross, o leitor branco médio pode interpretar desta maneira dramática e alarmista o texto do juiz Scalia:

A abstração pode se tornar vívida para o leitor branco ao imaginar a opressão que as pessoas brancas podem sofrer nas mãos das pessoas negras. Onde e quando os negros forem um grupo racial dominante, eles irão oprimir os brancos, a não ser que eles façam algo para impedir. Ação afirmativa é, portanto, a semente da destruição dos brancos. É o meio pelo qual brancos podem ser oprimidos naqueles lugares em que brancos estão em menor número (ROSS, 1989, p. 401. Trad. nossa).9

Para evitar que o cenário de discriminação racial continue existindo, ou ainda que se inverta, Scalia defende que jamais se utilize raça como um critério de discriminação por ser ilegal e imoral. O discurso da colorblindness traz a ingênua ideia de que, após a conquista dos direitos civis dos negros na década de 1960, a raça desapareceria naturalmente, não sendo mais um fator relevante para se explicar a situação social das pessoas. Os defensores de políticas color-blind enxergam aqueles a favor de políticas racialmente conscientes como “separatistas que praticam política identitária” (Brown; et. al., 2005, p. 4). Apenas as políticas racialmente neutras seriam capazes de promover a inclusão racial. Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

Esta narrativa da colorblindness, no entanto, vai se sustentar com o desligamento dos fatos históricos à situação social atual da população negra. O fato de ter havido mais de três séculos de escravidão negra e mais outro século de segregação racial não teria nenhuma relação com o fato de que a maioria das pessoas negras pós-1964 possuem menos poder econômico e menos representatividade na política nacional e no mercado.


A construção desta narrativa ignora os fatos históricos anteriores ao Civil Rights Act de 1964, e deposita a culpa pela desigualdade racial nos próprios indivíduos negros. Nesse mesmo sentido, Brown et al. afirmam:

A segunda afirmação dos realistas raciais é de que a persistência de desigualdades raciais em renda, emprego, residência, e representação política não pode ser explicada pelo racismo dos brancos, ainda que uma porcentagem pequena de brancos continue sendo racista intransigente. Como eles vêem, o problema está no letárgico, incorrigível e muitas vezes patológico comportamento de pessoas que falham em ser responsáveis por suas próprias vidas (Op. cit., p. 6. Trad. nossa).10

Os dois votos de O’Connor e Scalia são ótimas demonstrações das novas ideologias que permitem a continuidade da dominação racial. Segundo Moreira, trata-se de “um discurso que mantém a opressão não pela defesa de práticas discriminatórias, mas por meio da abolição de quaisquer tipos de políticas que poderiam reverter as consequências da discriminação racial sistemática” (Moreira, 2017, p. 22), o chamado colorblind racism. Por último, o voto dissidente e vencido do juiz Marshall vai em sentido oposto ao dos outros dois. Ao invés de argumentar somente com princípios abstratos, Marshall faz uso de narrativas históricas para argumentar a favor da ação afirmativa objeto do caso. Há uma possível criação de empatia no leitor ao contar as histórias racistas da cidade de Richmond que possui um passado de alta resistência à dessegregação racial. É um convite para o leitor se colocar no lugar dos sujeitos negros que foram e são vítimas da contínua discriminação racial.

89 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

“The racial realists’ second claim is that persistent racial inequalities in income, employment, residence, and political representation cannot be explained by white racism, even though a small percentage of whites remain intransigent racists. As they see it, the problem is the lethargic, incorrigible, and often pathological behavior of people who fail to take responsibility for their own lives”.

10

As histórias racistas servem como base para a rejeição dos argumentos da simetria, uma vez que políticas públicas racistas e ações afirmativas que buscam reparar os danos causados pelo racismo não devem ser igualadas, e da desconsideração da raça como fator relevante de análise social. Não obstante, Marshall ainda aponta a falácia da neutralidade contida nas decisões dos outros dois magistrados. Ele interpreta os votos de

Avesso


90 Artigos V. 1 N. 1 2020

Scalia e O’Connor como cheios de julgamentos ofensivos para com os membros do Conselho de Richmond, expondo que os juízes também têm ideias e atitudes racistas, mascaradas de princípios neutros e universais (ROSS, 1989, p. 407. Trad. nossa). As Narrativas jurídicas, suas continuidades e descontinuidades As narrativas jurídicas predominantes analisadas, apesar de diferentes, conseguem servir para um mesmo objetivo: a preservação da dominação racial. A autora Siegel (Cf. 2000) identificou quatro tipos diferentes de discurso racial presentes nas narrativas jurídicas. O primeiro tipo de discurso é o (i) status-race, que atribui características específicas a determinados grupos para justificar o status social daqueles que pertencem à raça branca. Normalmente as características atribuídas ao grupo dominante são opostas àquelas do grupo dominado. Dessa forma, a raça é um critério simples e suficiente para organizar as relações sociais e justificá-las (SIEGEL, 2000, p. 90). O segundo tipo de discurso é o (ii) formal-race, que inicialmente tinha como propósito derrubar o discurso da status-race, colocando como inaceitável qualquer tipo de discriminação que utilize o critério racial. A raça, segundo esta ideia discursiva, é um fato biológico que não possui nenhuma relevância social, sendo irracional a sua utilização no direito (IBIDEM).

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

O terceiro tipo é o discurso da (iii) historical-race, que entende a raça como um sistema social construído historicamente, sendo, portanto, uma construção social e não uma essência biológica. O quarto discurso, por último, é o da (iv) culture-race, que irá trabalhar a ideia de etnia. Não se pensa também raça como uma categoria natural, pensando no aspecto cultural proeminente do grupo racial específico (OP. CIT., p. 91). A associação desses tipos criados por Siegel aos discursos jurídicos estudados nos casos Plessy v. Ferguson e City of Richmond v. J. A. Croson Company é clara: O voto vencedor da primeira decisão trabalha com a ideia de status-race, ou seja, com a noção de raça como essência e a ideia de que existe uma hierarquia natural entre brancos e negros; O voto vencedor do segundo caso


traz a ideia de formal-race, o que chamamos de narrativa da colorblindness. A passagem de um discurso para o outro, no entanto, não resultou no fim da desigualdade racial, se mostrando na verdade como um novo empecilho para a transformação social rumo à igualdade. Isso porque se apaga o passado de discriminação e opressão e ignora-se o fato de que isto estabeleceu condições de completa desvantagem à população negra e outros grupos de minorias raciais. Nesse sentido, a autora classifica essa mudança como uma forma de “preservação através da transformação.” (Op. Cit., p. 83). Mantém-se a estrutura social, porém muda-se seu significado através de novas narrativas.

91 Yasmine Mafulde Direito e Narrativa: Uma análise dos discursos raciais em decisões judiciais

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da teoria literária de Roland Barthes e de autores da teoria crítica como Ross e Moreira, conseguimos estudar como o direito funciona como narrativa. Em específico, vimos como são criadas narrativas jurídicas que constroem a ideia de raça e como elas funcionam de modo a reproduzir e preservar a dominação racial. Os estudos de direito como narrativa revelam-se, finalmente, como extremamente relevantes para pensarmos o direito como instrumento ideológico de dominação e/ ou transformação e, assim, possamos pensar novas maneiras de pensar novas maneiras interpretação jurídica que sejam racialmente conscientes e que sirvam como estratégias anti-hegemônicas contra os discursos predominantes que auxiliam a perpetuar a dominação racial.

Avesso


92 Artigos V. 1 N. 1 2020

BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. A aventura semiológica. Tradução: Mário Laranjeira. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BARON, Jane B.; EPSTEIN, Julia. Is Law Narrative? Buffalo Law Review. Vol. 45, 1997. BROWN, Michael K.; CARNOY, Martin; CURRIE, Elliott; DUSTER, Troy; OPPENHEIMER, David B.; SHULTZ, Marjorie M.; WELLMAN, David. White-Washing Race: The Myth of a Color-Blind Society. 1. ed. Berkeley: University of California Press, 2005. HALE, Grace Elizabeth. Making Whiteness: The Culture of Segregation in the South, 1890 - 1940. 1. ed. New York: Pantheon Books, 1998. KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 3. ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2017. MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural. Revista Direito & Práxis, vol. 08, n. 2. 2017. ROSS, Thomas. The Richmond Narratives. Texas Law Review. Vol. 68. n. 381. 1989. SIEGEL, Reva B. Discrimination in the Eyes of the Law: How “Color Blindness” Discourse Disrupts and Rationalizes Social Stratification. California Law Review. Vol. 88, n. 77, pp. 77-122, 2000.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Avesso

USA. Cornell Law School. Legal Information Institute. U.S. Constitution. 1787. Cornell Law School. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/constitution/ index.html>. Acesso em: 21 out. 2019. USA SUPREME COURT. City of Richmond v. J. A. Croson Company. 1989. Disponível em: <https://www. oyez.org/cases/1988/87-998>. Acesso em: 12 out. 2019.


93

Avesso


94 Artigos V. 1 N. 1

María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

2020

The inclusion and exclusion of the Indian in Mexico: The current situation of the Indian under two axes

Palavras Chave Indio Indígena Lengua Educación Discriminación

Keywords Indio Indígena Lengua Educación Discriminación

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

La lengua y la educación son los temas de interés en el presente artículo, ya que las prácticas lingüísticas son eje que permite estudiar de cerca la realidad social que viven los sujetos y las políticas educativas son un reflejo de rol que el Estado busca imponer a la población en los mismos; teniendo en mente que el acceso a una educación de calidad es un medio para impulsar o impedir el desarrollo de un sector social. Por lo tanto, al estudiar estos ámbitos es posible apreciar la situación actual de lo indígena en México desde una perspectiva institucional y social.

Language and education are the main topics of interest in this article. Heretofore linguistic practices are the axis that allows us to closely study the social reality that subjects live. On the other hand, educational policies are a reflection of the role that the State seeks to impose on the population. Since the access to quality education is the mean either to boost or impede the development of a social sector. Therefore, when we study these areas it is possible to appreciate the current situation of the indigenous people in Mexico from an institutional and social perspective.


En el 2018, en México vimos, por primera vez en la historia, a una mujer indígena buscar la candidatura independiente a la presidencia del país. Marichuy, respaldada por el Consejo Indígena de Gobierno, comenzó una campaña, que si bien no conseguiría los requerimientos necesarios para entrar a la contienda electoral, logró el objetivo principal, llamar la atención a una población históricamente marginada. La mínima posibilidad de una mujer indígena gobernará el país sacó a relucir las fibras más racistas y los problemas más profundos de segregación a esta población. Este hito en la política mexicana nos lleva una vez más a plantearnos el rol del indio en la sociedad mexicana. En México, de acuerdo con el CONAPRED, casi ocho de cada diez personas que hablan una lengua indígena (77.6%) se encuentran en situación de pobreza, y la proporción en pobreza extrema es de más de un tercio de población indígena (34.8%). El porcentaje de personas no hablantes de lengua indígena en pobreza extrema es de sólo 5.8%.

María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba

95

La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

El objetivo del presente artículo es hacer una revisión de la situación actual del indígena o también llamado indio en México. Como todo fenómeno social, este cuenta con múltiples artistas, por lo tanto, se busca analizarlo con base a un enfoque multidisciplinario y así tener dos panoramas distintos del mismo fenómeno. La lengua y la educación son los temas de interés en el presente artículo, ya que las prácticas lingüísticas son eje que permite estudiar de cerca la realidad social que viven los sujetos y las políticas educativas son un reflejo de rol que el Estado busca imponer a la población en los mismos; teniendo en mente que el acceso a una educación de calidad es un medio para impulsar o impedir el desarrollo de un sector social. Por lo tanto, al estudiar estos ámbitos es posible apreciar la situación actual de lo indígena en México desde una perspectiva institucional y social. En el presente trabajo llevamos a cabo una revisión de ambos ejes para al final explorar sus conexiones y como de una u otra forma contribuyen a la discriminación estructural del pueblo indígena en México. En la primera parte del trabajo se hará un análisis de las políticas de inclusión educativa más novedosas, las cuales se contrastaron con datos oficiales para establecer un panorama del acceso a la educación en México de los grupos Avesso


96 Artigos V. 1 N. 1 2020

en cuestión. En la siguiente parte del trabajo se explora el uso histórico del término indio en América y el uso de la palabra indio como insulto en la actualidad. Esto mediante un análisis lingüístico que abstraiga el matiz del pensamiento de los hablantes en cuanto a lo indígena en México. En la tercera exploramos las conexiones que existen entre las prácticas lingüísticas y la educación. POLÍTICAS EDUCATIVAS EN MÉXICO Consideraciones generales con respecto al acceso a la educación de los indígenas en México El tercer artículo de la constitución mexicana determina que la educación obligatoria son los niveles de preescolar, primaria, medio y medio superior. Según lo establecido en la normativa mexicana, hay un compromiso al acceso universal a la educación. El Estado está encargado de brindar estos servicios, los cuales deben luchar contra los prejuicios, evitar la formación de estereotipos, la violencia y la discriminación (Alcantara; Navarrete, 2013). Además, México ha ratificado el convenio 196 de la organización internacional del trabajo (OIT), cuyo artículo 26 establece el acceso a la educación de los pueblos indígenas en todos los niveles (Mato, 2015). A pesar que existe una legislación clara sobre cómo los grupos marginados tienen el mismo derecho a cualquier grupo de acceder a una educación de calidad, los datos que se presentan a continuación demuestran, que si bien las accion es de discriminación no están oficializadas, si son parte de una estructura constantemente replicada.

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

El simple hecho de identificarse como parte de una población indígena es un motivo de discriminación en México. Reportes del ONAPRED (El Consejo Nacional para Prevenir La Discriminación) muestran que la población indígena, la cual se integra por el 21.5% de la población total del país, se encuentra en una situación de desventaja en el cumplimiento de derechos fundamentales, como la vivienda, la salud y, el tema central de esta sección, la educación. Mientras que la escolaridad promedio a nivel nacional es de 9.1 años, lo correspondiente a la conclusión del nivel secundario, la escolaridad promedio de los hablantes de una lengua indígena es de 5.1 años, equivalente a una primaria inconclusa (CONAPRED).


Hay que tomar en consideración que sólo el 21.7% de las personas que se identifican como indígenas son hablantes de una lengua nativa (CONAPRED). Por lo tanto, si un ciudadano es indígena y además es hablante de una lengua originaria, éste puede padecer una doble situación de precariedad y marginalidad.

María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba

97

La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

Esto se vuelve evidente al observar las diferencias existentes entre la calidad educativa que hay en el norte y en el sur del país. La zona sur tiene un considerable rezago, situación que está directamente relacionada con la alta densidad poblacional de grupos originarios en los estados de Campeche, Chiapas, Guerrero y Yucatán. Mientras que el Norte del país tiene una población indígena mucho menos considerable, además su cercanía con los Estados Unidos permite una mayor calidad educativa. La UNESCO (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura) determina que los sistemas educativos inclusivos “eliminan los obstáculos a la participación y el rendimiento de todos los educandos, toman en cuenta la diversidad de sus necesidades, capacidades y particularidades, y eliminan todas las formas de discriminación en el ámbito del aprendizaje.” Más allá de los sistemas de inclusión, la UNESCO plantea la importancia en la equidad en la educación. Equidad entendida no solamente cómo el acceso, sino también en la conclusión de los estudios a través de un proceso exitoso. Para hacer una revisión eficaz con respecto a las políticas educativas enfocadas a los pueblos indígenas en México es necesario revisarlas a partir de los siglos que fueron implementadas. En el siglo XX el enfoque estaba en la educación básica y el reconocimiento de las diferencias de estos grupos. El siglo XXI se ha caracterizado por sus políticas de integración del sector indígena a la educación superior. Además, se plantea debates más complejos respecto a las diferencias culturales y el valor agregado que estas pueden llegar a tener en el proceso educativo.

Avesso


98 Artigos V. 1 N. 1 2020

Políticas educativas de inclusión en México en el siglo XX Los inicios del sistema educativo en México, bajo el paraguas de la igualdad de todos los mexicanos debido al mestizaje, consistió en un sistema homologador. Dicho sistema estaba alineado al discurso oficial; no hay diferencia alguna entre la población. Y, por lo tanto, creó un programa de enseñanza en el cual los pueblos indígenas tenían dos opciones: el rezago educativo o la subyugación a la cultura dominante a través de un proceso de asimilación (ZUÑIGA, 2015). Sin embargo, es en los años sesentas cuando el discurso del mestizaje entra en crisis. El aparato gubernamental se ve obligado a crear sistemas especiales que reconocieran las diferencias culturales de ciertos sectores de la población. Si bien, esto puede ser considerado un avance debido al reconocimiento de las diferencias de estos grupos, “la creación de un modelo especial genera dinámicas de exclusión ya que existe una construcción de espacios cerrados en el seno de la comunidad, pero separados de la misma” (CASTELLENS, 2004).

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

Los primeros programas biculturales estaban basados a una lógica de poder; en la que se veía a la sociedad hispanohablante y occidental como una amenaza a la culturalidad del indígena. Asimismo, dichos programas tenían una visión idealizada de lo indígena y una intención de conservar su esencia cultural. Esto llegó casi al punto de descartar enseñanzas que no promovieron lo indígena. Este pensamiento se rompió con la entrada del sistema neoliberal en México, un parteaguas para importantes reformas estructurales en campos como salud, vivienda, programas de seguridad social y educación. Con este cambio del sistema se comenzó a ver a la educación con una visión económica y esta dejó de ser vista como un derecho para empezar a percibirse como un bien adquisitivo. Se implementaron políticas compensatorias y de apoyos económicos. Sin embargo, para el final de los noventas, el 60% de los niños de siete años que hablaban una lengua indígena eran analfabetos. Un 30% de los niños con la misma edad no asistían a la primaria y sólo 24 de cada 100 terminaban este nivel de estudios (ZUÑIGA, 2015).


Es cierto que la segunda mitad del siglo XX las políticas educativas en México tienen la ventaja de haber reconocido la diferencia entre lo que se puede denominar como la cultura dominante y las culturas indígenas. No obstante, hubo una falta de reconocimiento a la diversidad entre las mismas. Por lo que se diseñó un sistema excluyente y homogeneizador, con expectativas que no tomaban en cuenta las particularidades de cada grupo y, más allá de promover la inclusión, contribuyó al aumento de la brecha de desigualdad de la población indígena en México.

María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba

99

La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

Políticas educativas de inclusión en México en el siglo XXI Con el inicio del siglo XXI llegaron importantes cuestionamientos con respecto a la participación de los pueblos indígenas, no sólo en los niveles obligatorios, sino en la educación superior (Navarrete; Alcantara, 2013). Esta tomó mayor relevancia en la época de la globalización, debido a la necesidad de tener trabajadores mucho más capacitados. A pesar de que hubo una masificación del nivel licenciatura, donde una de cada tres personas en zonas urbanas podía acceder a ese nivel educativo, las zonas rurales no fueron partícipes de esta masificación de la educación superior. En consecuencia, las comunidades indígenas tampoco debido a que la mayoría de éstas se ubican en zonas rurales. En esta época hubo importantes movimientos de activismo por parte de las comunidades para exigir una mayor participación en la educación superior entre otros derechos para la comunidad indígena, siendo el ejemplo más conocido el Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). Considerando que al menos 10% de la población total del país es indígena, para el 2000 menos del 1% de las personas que cursaron una licenciatura eran pertenecientes a este grupo. El presidente de ese año, Vicente Fox, planteó como meta triplicar el número de indígenas en el sistema educativo superior, meta que no se ha cumplido en lo absoluto (NAVARRETE; ALCANTARA, 2013). La agenda de inclusión al sistema superior se puede clasificar en dos grandes líneas: políticas de inclusión individual y políticas de inclusión grupal. La primera se Avesso


100 Artigos V. 1 N. 1 2020

compone con programas de apoyos como el Programa Nacional de Becas para la Educación Superior (PRONABES), el Programa de Apoyo a Estudiantes Indígenas en Instituciones de Educación Superior (PAEIIES) y México Nación Multicultural (UNAM). Mientras que la política de integración al grupo fue la creación de las universidades interculturales (NAVARRETE; ;ALCANTARA, 2013). Aunque los programas enfocados a lo individual estaban guiados por el reconocimiento y el mérito a individuos “sobresalientes” de los diferentes pueblos indígenas, estos han llegado a ser criticados por tener un corte asistencialista. También tienen el defecto de no atacar el problema de acceso de forma estructural. Considerando que la escolaridad promedio del sector no completa la educación primaria y que el dominio de la lengua española es un requerimiento para ingresar a los niveles medio y medio superior. La cantidad de indígenas que cumplen los requisito para aplicar a una beca no es significativa, lo que hace al programa poco exitoso en el cumplimiento del objetivo general de la política. Uno de los tres programas mencionados es México Nación Multicultural, el cual busca promover el ingreso de este sector de la población a la UNAM. Programa que ha logrado la titulación de 441 becados indígenas desde el 2005. Para el 2018 había 910 becarios de origen indígena inscritos. Aunque es un aumento significativo en relación a los egresados del programa desde el 2005, en una matrícula de más de 340,000 estudiantes la representación indígena es de apenas un 0.27% (HERNANDEZ, 2018).

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

Las universidades interculturales, como su nombre lo indica, no son exclusivas para grupos indígenas. Sin embargo, están ubicadas estratégicamente en zonas con una mayor densidad de población indígena (Navarrete; Alcantara, 2015) Las Universidades tienen programas flexibles, derivados de las necesidades y particularidades de la comunidad donde se encuentran. Estas instituciones tienen la particularidad de tener procesos de admisión no tradicionales, reconociendo el problema estructural de acceso a la educación básica de los pueblos indígenas (Alcantara, 2013). Para el 2019 existían 11 universidades de este tipo en todo el país con una matrícula de 16,000 estudiantes (Poy, 2019). El programa ha tenido éxito en el aumento de la matrícula, pero este aún se encuentra limitado en recursos para impulsar su consolidación. A pesar de poderse considerar un programa relativamente exitoso. Este tiene retos impor-


tantes, como no generar guetos culturales y promover mayor aislamiento de las comunidades. Además está el problema del mantenimiento de la esencia cultural de los pueblos, no comprometiendo el nivel educativo de las instituciones. En general, las políticas educativas actuales tienen muchos elementos que deben de ser tomados a consideración. En primer lugar, es de gran importancia que se promueva la presencia de pueblos indígenas en el nivel superior; no obstante, no se deben de dejar de trabajar en los programas a niveles básicos. Si no hay un aumento en el nivel de escolaridad de estos grupos, el acceso a la educación superior siempre será escaso. Mientras no haya una condición de equidad entre las culturas indígenas y la cultura dominante, todos los programas de inclusión corren el riesgo de, más allá de promover una interacción constructiva entre ambas, inculcar en los indígenas la asimilación de la cultura dominante.

101 María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

La revisión con respecto a los esfuerzos para implementar políticas inclusivas demuestran la complicada interacción que hay entre la cultura dominante mexicana y la cultura indígena oprimida. La falta de equidad entre estos grupos provoca que no haya intercambios, sino una imposición a la cultura oprimida y el aislamiento de la misma en el entorno social nacional. Este aislamiento sistemático a la población indígena no solamente se ve reflejado en el fracaso de las medidas educativas, sino que también en las prácticas lingüísticas de los hablantes hispánicos y en particular los de México. En el siguiente apartado se explora la palabra indio y su uso en América y México. Además, se revisa la relación que tiene dicha palabra con su similar: indígena. EL USO DE INDIO EN LA LENGUA HISPÁNICA La historia y los corpus hispánicos La historia de cómo esta palabra llegó a América y se convirtió en el gentilicio original de este nuevo continente resulta algo cómica, ya que nace de una inocente confusión de tierras por parte de los primeros exploradores españoles. Como ya se sabe, Cristóbal Colón llegó a América con la impresión de haber arribado a las Indias, tierras orientales como India o China. Por suerte, o por desgracia, las tres naves se desviaron totalmente Avesso


102 Artigos V. 1 N. 1 2020

y terminaron en lo que hoy se conoce como América. Sin embargo, Colón y sus navegantes no tenían ideas de donde estaban y, creyendo que estaban en las Indias, nombraron sin percances a los nativos de aquellas islas como indios. Teniendo en cuenta que el término no surge de una cuestión de discriminación, sino de una confusión, es que decidimos estudiar distintos corpus del español para rastrear la forma en que se ha empleado esta palabra. historia del término. Revisamos tres corpus distintos del español: Corpus Diacrónico del Español (CORDE), Corpus Referencial del Español Actual (CREA) y Corpus Diacrónico y Diatópico del Español de América (CORDIAM) para saber las fechas en que indio apareció por primera vez y la última en los registraron en el continente y así como el significado del lema. En el CORDE fueron encontrado 109 casos de uso de la palabra indio en 20 documentos que la citaban. El más antiguo de ellos data de 1591 y se localiza en Perú, en un documento notarial. Mientras que el último está registrado en el mismo país y es del año 1974, con temática historiográfica. En ninguno de los dos casos indio aparece como palabra ofensiva y en lo que corresponde a México la situación no cambia, inclusive en unos de los registros se usa indio para referirse a la etnia chichimeca. No parece haber uso ofensivo de indio. La estadística muestra que en el año que más se registran casos es en 1626, mucho tiempo después del descubrimiento de América pero aún eran tiempos del virreinato. El país en donde más se registró el uso de esta palabra fue en España, seguida de Guatemala y Perú. Hay que recordar que el CORDE es diacrónico, por lo tanto, no habla de la lengua de la actualidad. Además, sus registros son en su mayoría de documentos legales, históricos y literarios y no del habla del pueblo, donde puede estar más presente el uso de indio como insulto.

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

En el corpus CREA obtuvimos un total 17 resultados en 30 documentos. Al ser un corpus del español actual el más antiguo es de 1985, se encuentra en Perú y es de una obra de teatro. La fecha más reciente es de una noticia de prensa y está registrada en Uruguay en el 2001. En este caso la palabra indio hace referencia a un avión de la India. Al igual que en el CORDE, en ninguno de los dos casos indio es usada como palabra ofensiva, ni en los registros mexicanos, donde las dos notas presentes hablan del Indio Fernández, celebridad de aquel país. En este corpus México obtiene el tercer lugar, sólo por


debajo de Argentina y España. En este caso el CREA tuvo que haber arrojado un aumento del uso de la palabra, sin embargo, fueron muy pocos registros. Probablemente sucede lo mismo que en CORDE; la palabra indio se usa ofensivamente principalmente en el habla cotidiana, registro que este corpus sí contiene, pero no en gran medida.

103 María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

En el CORDIAM el número de resultados es de 253 apariciones en 101 documentos. En esta base de datos, exclusiva de América, la fecha más antigua con registro de la palabra indio se localiza en México y data de 1544, está archivado como una correspondencia privada. Mientras que la más reciente es de 1909 ubicada en Uruguay, con la misma temática de la anterior. Este corpus contiene más casos mexicanos, con 83 en 41 documentos, donde el más cercano es de 1819. En ninguno de los casos de principio y fin indio es usado a modo de ofensa. El CORDIAM principalmente recopila documentos cronísticos, jurídicos, administrativos y (en parte) privados como correspondencias. Lo que puede ser la razón por la que indio no aparece como insulto. Mediante la observación de tres corpus de distintas características quedan al descubierto varios aspectos. Todos los registros del uso del indio aparecen después de la llegada de los españoles a América. Esto quiere decir que ni siquiera en España esta palabra era relevante, tomá importancia a partir del descubrimiento del nuevo mundo. Además, en ninguno de los registros más reciente indio se usa como palabra ofensiva, se puede inferir que esto se debe a que en los corpus lo que predomina son los documentos oficiales o literarios, los testimonios orales y privados son escasos, es en estos donde puede que abunda más el indio ofensivo. Según se muestra en los corpus el uso de indio no está extendido el todo el continente, ya que países como Bolivia y Paraguay no aparecen en los documentos del CORDE y del CREA. Contrario a lo esperado, México no domina en los corpus, sino Argentina y España. Con esta breve revisión en múltiples corpus es posible aproximarse a cómo funcionó el indio en el pasado, que más que ser un insulto, era un término empleado para referirse a los nativos de América o de las Indias. Además, se podría inferir que el uso ofensivo es relativamente reciente, al no aparecer en los registros escritos de los siglos pasados. Avesso


104 Artigos V. 1 N. 1 2020

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

La palabra indio en diccionarios de la actualidad Al observar la falta de indio como término ofensivo es necesario revisar qué es lo que dicen los diccionarios de dicha palabra. Revisamos esto en cuatro diccionarios, dos mexicanos: El diccionario del Español de México (DEM) y el diccionario de Mexicanismo; y dos de ámbito internacional: El diccionario de la Real Academia Española (DRAE) y El diccionario de María Moliner.. Esto es de gran utilidad para observar si este uso ofensivo o despectivo está tipificado como tal en la actualidad, a pesar de aparecer poco en corpus escritos que revisamos con anterioridad. Una vez observadas las definiciones, en diccionarios relativamente importantes de habla hispana, lo que destaca es que en todos los diccionarios indio tiene cierto matiz ofensivo, pero este no siempre aparece en la primera acepción. Ya sea mediante frases hechas o por definición propia. En el primer caso, el DEM sí le otorga este significado despectivo en su tercera definición y da un ejemplo casi perfecto del uso ofensivo en su oración. En el DRAE es hasta la sexta definición que se da cuenta del indio de manera ofensiva donde se lo señala como adjetivo de alguien inculto, posteriormente aparece indio en locuciones verbales, donde la expresión remite a que el indio es el tonto, el fácil de engañar o el revoltoso. En el caso del diccionario de María Moliner es en las frases que indio adquiere su carga negativa, dándole un carácter ofensivo de ingenuidad, torpeza e inclusive de rabia, pero no define al indio como el estúpido o el ignorante. En el Diccionario de Mexicanismo a indio sí se le esboza como algo ofensivo desde la segunda definición, señalándole como alguien con modales poco adecuados. También da ejemplos de sustantivo complejos que se usan para señalar aquel aborigen de zonas rurales, haciendo referencia a los pies del individuo. En conclusión, en los diccionarios de México, en efecto, indio ya tiene este matiz despectivo mucho más consolidado a diferencia de los diccionarios generales, en los cuales el fenómeno se ve reflejado en locuciones o formas complejas, aún así, es claro que está presente de una u otra forma. Sin embargo, en ninguno de los casos la definición despectiva de indio es la primera, lo que significa que en el ámbito académico a la palabra aún se le otorga un significado primordial que es aquel originario de las


Indias americanas. Indio e indígena Aunque indio siga teniendo su significado origen en América, al conllevar también una carga ofensiva es que los hablantes han optado por una forma que es la de indígena. En una rápida investigación comparativa entre indígena e indio se puede inferir que el primero tiende a reemplazar al segundo al momento de hacer referencia a los nativos exclusivamente de América, ya que con los habitantes de la India se les suele llamar erróneamente hindús. Al momento de consultar noticias lo que predomina es el uso de indígena, ya que indio se considera despectivo y erróneo. Es decir, ante este uso ofensivo que se le ha otorgado a indio, se ha visto desplazado y alternado por el término indígena para hacer referencias a los aborígenes de tierras americanas. El Diccionario panhispánicos de dudas sugiere: “Es asimismo frecuente el uso del término indígena, debido en parte al matiz despectivo que ha adquirido la voz indio en algunos países de América” (RAE). Gran parte de la controversia entre estas dos palabras surge en el 2006, cuando el Evo Morales ganó por primera vez las elecciones presidenciales bolivianas (Serrano, 2006). Muchos medios periodísticos al contar la noticia se refirieron a Morales como indio, lo que hizo sentir a varios lectores indignados, ya que indio se usaba de forma despectiva en sus respectivos países. Ante esto la Fundación del Español Urgente alzó la voz para establecer lo siguiente (SERRANO, 2006):

105 María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

Se advierte de la utilización errónea de la palabra indígena como sinónimo de indio. La Fundéu recuerda que indígena es sinónimo de la palabra aborigen (originario del suelo en que vive), por lo que se recomienda que no se hable de indígena cuando se quiera hacer referencia al origen indio de Evo Morales. Dándole las de ganar a indio. Esta situación nos da muestras claras de qué es lo que pasa con indio. Efectivamente tiene connotaciones ofensivas en varios países de habla hispana (al parecer en España no), al grado que se ha tendió que acudir a indígena para señalar aquellos de origen americano. Ante esta problemática el equipo de prensa del El País decidió llevar a cabo una investigación del uso de estos términos en internet desde la elección de Morales como presidente, todo esto para saber hacia cuál uso debía adaptarse. Como resultado obtuvieron Avesso


106 Artigos V. 1 N. 1 2020

que “el término indígena figuraba en 46 de ellos, mientras que indio, una vez excluidos los que hacen referencia a la India, constaba en 17” (Serrano, 2006). En retrospectiva se puede observar que indio sí ha sido desplazado por indígena, gracias a la carga ofensiva que presenta la palabra originaria. Ante este fenómeno es importante observar que indio no es una palabra que tenga un origen ofensivo o que en todos los contextos actuales se use de esta manera, en realidad son los hablantes los que le han dado la particularización de insulto, de ofensa y de desprecio, no el significado origen. CONEXIONES

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso

Inicialmente, no parece haber una conexión entre los dos ejes revisados en el presente trabajo; sin embargo, en ambos casos la raíz del problema es la misma. Se han implantado soluciones que pretenden arreglar el problema de forma superficial y no estructural. Es decir, mientras que en la educación parece solamente haber oportunidades en el nivel superior y no en los básicos, en las prácticas lingüísticas se pretenden invertir términos pero no cambiar los sujetos víctimas de discriminación. Esto no solamente se ha mantenido a la población indígena en una especie de tragicomedia donde son el mayor orgullo del país y la vez son la población más vulnerable; sino que también ha provocado que términos como indio, que en su origen no era despectivo, se convierta en un insulto grave. Por otro lado, dentro del sistema educativo la cultura indígena ha sido un elemento para la generación de la identidad nacional; pero, por mucho tiempo no hubo un reconocimiento de esta como un elemento diferenciador en la población. De alguna forma, más allá de promover esta cultura, el sistema educativo las segregó. A pesar de que en la actualidad hay políticas que intentan recuperar su valor y mejorar las condiciones de sus representantes, la realidad es que hay un atraso significativo. Cuando se generan políticas desde la visión dominante el entendimiento de la otredad indígena es, en el mejor de los casos, insuficiente. En consecuencia, estas permanecen en un nivel superficial. Las diferencias manifestadas en las prácticas lingüísticas y la educación entre estos dos sectores de la población, más allá de romper con los paradigmas racistas y promover la retroalimentación entre ambas culturas, ha promovido la estructura de discriminación existentes.


BIBLIOGRAFIA ACADEMIA MEXICANA DE LA LENGUA. Corpus diacrónico y diatópico del español de América. Disponible en: < http://www.cordiam.org/0029.version/left. php# >. Acceso en: 17 jun. 2016.

107 María Alejandra Cáceres Merino Sergio Luis Ojeda Trueba La inclusión y la exclusión del indio en México: La situación actual del indio bajos dos ejes

__________. Diccionario de Mexicanismos. 2010. Disponible en: < http://www.academia.org.mx/DiccionarioDeMexicanismos> . Acceso en: 17 jun. 2016. ALCANTARA, A. Educación Superior e Inclusión Social en México: algunas experiencias recientes. Universidades, Distrito Federal, p. 17-28, julio-septiembre 2013. __________.; NAVARRETE, C. Inclusión, equidad y cohesión social en las políticas de educación superior en México. Revista mexicana de investigación educativa, México, p.213-239, Marzo 2015. CASTELLS, M. La era de la información. Vol II: El poder de la identidad. México: Siglo XXI Editores, 2004. COLEGIO DE MÉXICO. Diccionario del español de México. 2016. Disponible en: <http://dem.colmex.mx/ Default.aspx>. Acceso en: 17 jun 2016. FICHA TEMÁTICA DE PUEBLOS Y COMUNIDADES INDÍGENAS. In: FICHAS TEMÁTICAS. México: CONAPRED, s/f. Disponible <https://www.conapred.org.mx/userfiles/ files/ Ficha%20Pindigenas.pdf > acceso 10 de enero de 2020. HERNÁNDEZ, M. Hay más de 900 becarios indígenas. Gaceta UNAM, octubre 2018. Disponible < https:// www.gaceta.unam.mx/hay-mas-de-900-becarios-indigenas/> Acceso 10 de enero de 2020. MATO, D. “Educación Superior, Estados y Pueblos Indígenas en América Latina. Contextos, Experiencias, Conflictos y Desafíos”. In: Educación Superior y Pueblos Indígenas. Contextos y Experiencias. Argentina: Universidad Nacional Tres de Febrero, 2005. 19-44. MOLINER, M. Diccionario del uso del español. Madrid: Gredos, 2007. Avesso


108 Artigos V. 1 N. 1 2020

__________. Gramática básica del español. Madrid: Gredos, 2013. NAVARRETE, Z.; ALCANTARA, A. Universidades Interculturales e Indígenas en México: desafíos académicos e institucionales. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, p. 145-160, 2015. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua española. 2015. Disponible en: <junio 2016. http:// dle.rae.es/> Acceso en: 17 jun. 2016. __________. Diccionario panhispánico de dudas. Disponible en: < http://corpus.rae.es/creanet.html>. Acceso en: 17 junio 2016. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Corpus Diacrónico del Español. Disponible en: <http://corpus.rae.es/cordenet.html>. Acceso en: 17 jun. 2016. __________. Corpus de Referencia del Español Actual. Disponible en: < http://corpus.rae.es/creanet.html>. Acceso en: 17 junio 2016. SERRANO, S. “Indio o indígena”. El País, Madrid. 22 de enero 2006. Disponible en: <http://elpais.com/diario/2006/01/22/opinion/1137884409_850215.html>. Acceso en: 12 ene. 2019. ZÚÑIGA, C. Reforma Educativa, Discriminación y Pueblos Indígenas. Barcelona: Universidad Autónoma de Barcelona, 2015.

Universidad Iberoamericana Universidad Nacional Autónoma de México

Avesso


109

Avesso


110 Artigos V. 1 N. 1 2020

Palavras Chave Corporalidade Cosmologia Rituais xamânicos Sociabilidade Povos Ameríndios.

Keywords Corporality Cosmology Shamanic rituals Sociability Amerindian Peoples.

Universidade de São Paulo (USP)

Avesso

Sofia Galvão A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual The corporality of indigenous peoples in the construction of their social organization and cosmology in relation to the interaction between the physical and spiritual world Esse artigo procura desenvolver uma revisão bibliográfica a partir da contribuição dos povos ameríndios para o estudo antropológico: a corporalidade. Dessa maneira, será construída a partir da hipótese de que a corporalidade indígena é parte essencial da cosmologia dos diferentes povos, partindo do pressuposto de que a relação com o corpo desencadeia uma interação entre o mundo físico e espiritual nas diferentes formas de construção da corporalidade, sejam pinturas e ornamentos, como é o caso dos Piaroa e dos Cubeo, a partir do canto, no caso dos Guajá ou da transformação do corpo no xamanismo yanomami.

This article seeks to develop a bibliographic review based on the contribution of Amerindian peoples to the anthropological study: corporeality. In this way, it will be built from the hypothesis that indigenous corporality is an essential part of the cosmology of different peoples, based on the assumption that the relationship with the body triggers an interaction between the physical and spiritual world in the different forms of corporeal construction, be it paintings and ornaments, as is the case of the Piaroa and Cubeo, from singing, in the case of the Guajá or the transformation of the body into Yanomami shamanism.


Sofia Galvão

111

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

A teoria antropológica se desenvolve a partir de contribuições de diversas regiões estudadas, trazendo à tona questões características de cada escola em cada período. Porém, questões da América do Sul foram trazidas tardiamente, contribuindo à etnografia somente recentemente. De acordo com Seeger, da Matta e Viveiros de Castro (1987), tais contribuições marcam o surgimento da noção de corporalidade como fundamental na organização social dos povos dessa região. Assim, a partir das etnografias, podemos perceber, a importância dada ao corpo como organizador social de diversas formas entre os povos que serão tratados: os Piaroa e os Cubeo, por meio da análise de Joanna Overing (1991); os Guajá, através da etnografia de Uirá Garcia (2018); e os Yanomami e suas transformações xamânicas descritas por Davi Kopenawa a partir do pacto etnográfico estabelecido com Bruce Albert (2015). Dessa maneira, o artigo será construído a partir da hipótese de que a corporalidade indígena é parte essencial da cosmologia dos diferentes povos, partindo do pressuposto de que a relação com o corpo desencadeia uma interação entre o mundo físico e espiritual nas diferentes formas de construção da corporalidade, sejam pinturas e ornamentos, como é o caso dos Piaroa e dos Cubeo; a partir do canto, no caso dos Guajá ou a partir das transformações corporais para tornar-se um xamã, como é o caso dos Yanomami. Assim, a estrutura social desses povos se baseia em elementos demonstrados ou transformados em seus corpos e, por isso, essa questão se faz central na cosmologia dos povos ameríndios. Para tal, procurou-se realizar uma revisão bibliográfica de autores que defendem a ideia de que a contribuição dos povos ameríndios à antropologia está relacionada a corporalidade, a partir de Seeger, da Matta e Viveiros de Castro (1987) e de autores de etnografias, que foram selecionadas, sobre povos ameríndios de maneira a estabelecer uma relação entre as formas de organização social dos povos citados acima e sua produção corporal. Os autores Seeger, da Matta e Viveiros de CasAvesso


112 Artigos V. 1 N. 1 2020

Universidade de São Paulo (USP)

tro consideram as contribuições dos povos brasileiros à antropologia, a partir do surgimento da “noção de pessoa”, com referência especial à corporalidade enquanto “idioma simbólico focal” (1987, p.3), sendo essencial na compreensão da organização social e cosmologia dos povos ameríndios. Em segundo lugar, defendem que as problemáticas referentes a mitologia, esboçadas por Lévi-Strauss, indicam uma relação profunda com a natureza das sociedades indígenas brasileiras, porém tal problemática corresponde a organização social das tribos, para além de apenas mitos, ilusões e ideologias. A fim de defender suas teses os autores trazem diversos temas que aparecem entre as tribos brasileiras, utilizando-se de obras de Lévi-Strauss, Robert Lowie e C. Nimundju, teorias a respeito da concepção da criança, sobre a doença, lugar dos fluídos corporais, proibições alimentares, ornamentação corporal, abrindo um leque extenso de questões, que envolvem o corpo perfurado, tatuado, produzido, devorado e produzido culturalmente de forma constante. Diante disso, observam-se diferentes projetos estéticos, mesmo que em tribos vizinhas, como será demonstrado aqui entre os povos Cubeo, Piaroa, Guajá e Yanomami. Os autores iniciam anunciando a noção de pessoa, construída a partir do indivíduo tomado pelo seu coletivo “como instrumento de uma relação complementar com a realidade social” (Seeger; Da Matta; Viveiros de Castro, 1987, p. 4). Assim, consideram a noção de pessoa, sua construção e fabricação dos corpos, como um idioma simbólico definidor da organização social, para além do que já foi analisado sobre sociedades africanas, melanésias ou mediterrâneas indígenas, como grupos de parentesco e alianças. A pretensão dos autores durante todo texto é demonstrar como essas categorias, criadas anteriormente, não são adequadas na identificação da estrutura social das realidades indígenas sul-americanas, tais quais trazem novos modelos analíticos. Esses modelos se baseiam na importância do símbolo corporal para a definição da estrutura social. Por isso sugerem que [...] deveríamos voltar nossa atenção para aquilo que é característico das sociedades indígenas sul-americanas. Sugerimos aqui que as noções ligadas à corporalidade e construção da pessoa são algo básico (SEEGER; DA MATA; VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 10),

na organização social e do pensamento dos povos. Os Avesso


autores exemplificam utilizado os Jê do Brasil Central, que se utilizam da corporalidade na relação entre o mundo físico, esfera doméstica, e a esfera público-cerimonial, trazendo um dualismo da identidade humana, tal qual aparece em várias sociedades [...] associado a polaridade homens/ mulheres, vivos/mortos, crianças/ adultos é, em sua versão mais simples, reduzido a um feixe de oposições cuja matriz é: individual (sangue, periferia das aldeias, mundo cotidiano) versus coletivo ou social (alma, nome, centro, vida ritual). O ponto a ser enfatizado é que o corpo é o locus privilegiado pelas sociedades tribais da América do Sul, como arena ou ponto de convergência dessa oposição (SEEGER; DA MATA; VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 13).

Sofia Galvão

113

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

Tal denominação é dada pelos Yanomami aos espíritos auxiliares, de modo que será tratado com mais profundidade posteriormente. 1

Essas oposições irão aparecer também na produção dos corpos Cubeo, Piaroa e Guajá como ponte entre o seu mundo físico e espiritual, e, portanto, na estruturação de suas vidas sociais. No caso dos Yanomami, Viveiros de Castro concebe os xapiri1 yanomami como uma identidade que envolve aspectos de humanidade e de animalidade, estando, portanto, entre o humano e o não-humano (p. 321, 2006), oposição que é explicitada nas formas corporais dos espíritos, que são animais, pois surgem a partir de ancestrais animais, ao mesmo tempo que humanóides. Por fim, é nessa relação de corporalidade que se encontram xamãs, chefes e cantadores, já que o que interessa na sociabilidade desses grupos é a pessoa, que nesses papéis sociais, surge como indivíduo de fora do grupo que pensa sobre ele e pode modificá-lo. A partir disso o povo, como coletividade, pode dialogar com esses papéis sociais de líder, xamã e cantadores “em condições altamente dramáticas e criativas” (Seeger; Da Matta; Viveiros de Castro, 1987, p. 15), como veremos que acontece nos rituais xamânicos Guajá e Yanomami. Analisando agora como essa noção de pessoa aparece nos povos nos debruçamos sobre Joanna Overing (1991) em sua análise sobre os Piaroa e os Cubeo. A autora pretende compreender a organização social a partir do “senso de comunidade” se utilizando da estética como categoria moral desses povos. A premissa de Overing é a falta de estruturas de coerção, dominância Avesso


114 Artigos V. 1 N. 1 2020

Universidade de São Paulo (USP)

e hierarquia na formação “social” desses povos sul-americanos, enfatizando a discrepância da ideia de sociabilidade em relação aos povos africanos, por exemplo. Assim, a noção de ”senso de comunidade” aparecerá de forma central em sua análise, baseando-se no julgamento estético com participação da moral, segundo Overing deve-se entender a estética não como “[...] categoria autônoma que é hoje, mas, ao contrário, uma categoria moral e política” (1991, p. 8). A partir disso, a beleza para esses povos é tratada como noção moral, ligada ao controle e domesticação das forças produtivas, contidas nos homens, sendo contrários ao excesso. A beleza entre esses povos tem valor moral e, diante disso, Overing propõe que a organização coletiva dos povos sul-americanos está baseada no controle de suas forças. No caso Cubeo esse “senso de comunidade” é formulado a partir da espontaneidade emocional, da autonomia e do coletivismo, no qual “[...] somente por meio da autonomia pessoal, o social pode ser obtido” (Overing, 1991, p. 12), negando qualquer forma de subordinação, ordens ou comandos, consideradas formas a-sociais. Isso se afirmava na medida em que cada um tinha soberania sobre o seu trabalho. Assim, a comunidade, em sua forma coletiva, se formava a partir do moral alto, o qual pressupunha uma atmosfera de sentimentos e emoções específicas, alimentando o ânimo de cada um diante do trabalho, baseado na harmonia e cooperação. Seu senso estético estava no fato de que “A beleza de uma pessoa falava da beleza de suas capacidades criadoras e de sua perícia no trabalho, abrigadas dentro de si, que permitiam a autonomia pessoal” (Overing, 1991, p. 16). Tais belas habilidades possibilitam a produção e reprodução da comunidade diante das relações pessoais agradáveis, sendo possíveis apenas no contexto social. O caso Piaroa, estabelece muitos pontos de convergência com o modo de viver dos Cubeo. Assim, a criação de ação da comunidade se dava através da estética, tal qual estava ligada com as capacidades criativas de produção e a capacidade de se estabelecer relações tranquilas com os que viviam e trabalhavam. “A beleza exterior, na estética Piaroa, é uma manifestação da beleza de habilidades produtivas e capacidades morais que estão alojadas dentro da pessoa” (Overing, 1991, p. 20). Assim, a estética corporal Piaroa se manifestava nas ornamentações e pinturas feitas no corpo, tais quais representavam as habilidades de cada um.

Avesso


Essas marcas faciais e corporais de homens e mulheres eram representações pictóricas específicas das forças transformacionais ou capacidades criadoras contidas em seus corpos, que lhes serviam de roupagem interior (OVERING, 1991, p. 20),

Sofia Galvão

115

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

sendo assim, as marcas corporais exteriorizam habilidades internas dos Piaroa em relação a capacidade reprodutiva da mulher e das habilidades produtivas dos homens. Os líderes espirituais traziam essas forças produtivas em contas de vida que compunham os ornamentos, assim, as quantidades de contas contidas nos colares de cada um indicavam seu grau de capacidade reprodutiva e produtiva. Portanto, a beleza era considerada a partir da quantidade de contas. Em contraposição a essa abundância de contas, o que também era considerado belo era a moderação no uso das capacidades criadoras, de modo que anteriormente o uso abusivo dessas capacidades foi vinculado a origens venenosas e selvagens, consideradas feias e a-sociais. Diante disso, o conhecimento produtivo está vinculado ao belo e o feio e, portanto, se coloca diante deles como moralidade e política. A noção de controle de forças produtivas está fortemente vinculada à ideia de comunidade, já que a vida coletiva somente é possível se os homens controlarem suas forças por meio do pensamento. [...] os Piaroa insistiam na aquisição limitada e gradual de poderes produtivos dos deuses. E, por que, o acesso a esses poderes criadores lhes era limitado, os Piaroa podiam, no tempo presente, criar e manter a comunidade social [...] (OVERING, 1991, p. 24).

Será analisado agora os Awá-Guajá, que habitam parte do Maranhão e do Pará a partir da análise de Uirá Felipe Garcia (2018). O foco da análise desse povo para o autor é a relação chamada de riku e a caça, ambos são parte fundamental na determinação de sua cosmologia e sociabilidade, a partir da relação estabelecida entre humanos, animais e plantas. De uma maneira geral, muitos animais caçados pelos humanos são aniAvesso


116 Artigos V. 1 N. 1 2020

Universidade de São Paulo (USP)

mais de criação de outros animais. Em todos esses casos encontramos a mesma relação, jara (criador) → riku (a relação) → nima (cria), em que riku é o vetor desses polos (GARCIA, 2018, p. 322).

a partir disso, o autor defende que é essa relação riku umas das formas de parentesco Guajá, porém não a única. Essa análise se constrói a partir do nima associado ao jara, numa relação do tipo riku, a fim de explicar esse tipo de relação, o autor apresenta uma dificuldade de conceituação, já que o significado dado a nima e jara é de dono e sua cria, porém na linguagem Guajá essa ideia de possessão atribuída a palavra dono, não existe. Assim, a noção de dono para os Guajá é entendida como criadores, cuidadores, domesticadores ligada a atenção e cuidado. O autor apresenta diversos tipos de relações desse tipo, como por exemplo a domesticação de animais capturados na floresta, esses seres são nima dos quais os humanos são jara, com os quais estabelecem uma relação riku (Garcia, 2018, p. 323). Outro exemplo é a relação conjugal que também é definida como riku, assim as relações riku são tanto ligadas ao parentesco como a relações de casamento “[... ] a própria relação de casamento é concebida como de ‘criação’ e, de muitas maneiras, homóloga a outras relações no mundo” (Garcia, 2018, p. 326). Ao mesmo tempo animais podem ser nima de outros seres, sejam outros animais ou humanos. Tal relação é estabelecida com tamanha profundidade entre os Guajá que a existência dos animais se dá somente quando relações desse tipo são estabelecidas. Outro exemplo é a existência de frutos e insetos numa mesma época, determinando uma relação riku entre os frutos e suas épocas correspondentes. A relação definida dessa forma é assimétrica, já que um nima em relação a um animal pode ser jara em uma outra relação, Garcia define [...] o sistema como uma multiplicidade de jara e nima, variando de acordo com as relações entre os seres uma linguagem que concebe múltiplos pontos de vista, com ênfase no aspecto relacional que aqui aparece intensamente (2018, p. 339).

Avesso


Sofia Galvão

Tal relação se estabelece também entre os seres terrestres e celestes na forma de duplos, como versões celestes de seres da Terra, assim cada um da tribo possui um equivalente celeste. Nesse tipo de riku os nima são os duplos celestes, enquanto os jara são seu equivalente na terra. Considerados jara também

117

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

[...] seres ex-humanos, espíritos de inimigos e animais, os karawara, em linhas gerais, são potências animais e vegetais que são pessoas no patamar celeste - “Guajá celestes”, como dizem - e quase todos seriam jara (duplos) de pequenos animais, insetos, plantas e alguns objetos (GARCIA, 2018, p. 358).

Assim como acontece entre os Piaroa, esses seres celestes são mais bonitos, habitam um local mais limpo e agradável, mantendo uma relação com a terra apenas nas caçadas, para buscar água e mel, eles são considerados pelos Guajá como exímios caçadores. Além disso, “O mais importante dos karawara são seus cantos, curas e capacidades cinegéticas” (Garcia, 2018, p. 548). O contato com esses seres celestes acontece nos rituais, que pressupõe a construção de uma tocaia onde os seres celestes se instalam na visitação da terra, seja para cantar, curar, dançar ou se alimentar. Todo ritual é baseado no canto e na dança, assim quando o homem entra na tocaia (chamada de takaja) inicia a cantoria até que se ouve o barulho de que o homem foi para o céu, nesse mesmo momento uma mulher próxima do viajante inicia um canto para que o homem saiba o caminho de volta para casa, já que essa é a única conexão que pode ser estabelecida entre o céu e a terra, depois de sua chegada ao plano dos karawara. “A conjugalidade pontua todo esse processo, pois são as esposas celestes que cantam ‘lá em cima’, o canto das esposas terrenas [...] e informam o caminho de volta aos Guajá que estão no céu [...]” (Garcia, 2018, p. 602). Assim, “A visita dos humanos ao iwa, durante a takaja, é (lá nos patamares superiores) marcada por canto, dança e comensalidade. É disso que se tratam os encontros celestes, uma vez que caçar (e comer) e cantar é o que marca boa parte da vida humana” (Garcia, 2018, p. 604). Além da subida dos homens, os karawara também descem para cantar e dançar. Dessa forma, o canto é a parte principal nesse processo, já que Avesso


118 Artigos V. 1 N. 1 2020

“É pelo canto que os homens se comunicam com os karawara que lhes auxiliam nas curas. O canto é quase um bem material, algo externo produzido pelos karawara e utilizado pelos humanos” (Garcia, 2018, p. 609). Esses rituais permitem a vida boa dos Guajá, se utilizando da cantoria como forma de diminuir a distância entre o céu e a terra. Assim, a relação entre os Guajá e os karawara é imprescindível, fazendo parte importante de sua cosmologia, já que são considerados donos da humanidade. A importância desses seres na vida na terra se dá de diversas formas, ajudando nas curas, na definição dos nomes das crianças que nascem, nas caçadas e definindo as relações riku que determinam toda sociabilidade Guajá. Na caça tem influência na maneira com que esses seres o fazem, inspirando as caçadas Guajá, já que os karawara são melhores caçadores conseguindo sempre o que desejam. A relação riku é estabelecida em uma linha de continuidade onde uns são criadores de outros, e na qual os seres celestes concebem o topo, diante do qual todas as outras relações riku se desdobram. Assim o riku “[...] não é meramente um discurso abstrato sobre o mundo, mas implica diretamente a vida das pessoas, sobretudo no que concerne a caça” (Garcia, 2018, p. 338). Além disso, a linguagem do canto, aprendida como os karawara tem participação importante na caça, que é determinada por meio da dimensão acústica na imitação dos animais que pretendem caçar e, ainda, possibilitam a relação com a divindade.

Universidade de São Paulo (USP)

Avesso

Por fim, os Yanomami serão analisados através das descrições de Davi Kopenawa, um xamã yanomami, a partir do pacto etnográfico estabelecido com Bruce Albert, antropólogo francês, em que é desenvolvido um relato da sua vida, ao mesmo tempo que um manifesto cosmopolítico sobre a relação dos Yanomami com os brancos. A experiência de Kopenawa tem raízes na iniciação xamânica pela qual passou com a ajuda de seu sogro e com sua vivência ao trabalhar para os brancos, além da revolta e angústia de Davi Kopenawa diante do extermínio de seu povo pelos garimpeiros (Kopenawa & Albert, 2015, p. 49). Kopenawa, estabelece, assim, um contraste dos brancos com os yanomami, fazendo do homem branco um componente constitutivo de Kopenawa, devido as suas experiências de trabalho entre os brancos. Por outro lado, Bruce Albert pretende estabelecer uma nova relação com a etnografia dando voz total à Davi Kopenawa, permitindo assim, fazer justiça à ima-


ginação conceitual do outro e levar em conta o contexto sócio-político dos yanomami, a partir de um olhar crítico sobre a etnografia colocada de cima para baixo, tal como era desenvolvida até o momento entre os franceses e americanos. Davi Kopenawa inicia seu relato com a chegada dos brancos e as consequências desse processo na vida dos yanomami. Nesse contexto, Kopenawa pontua que sempre procura ser o oposto dos brancos, assim, conta que se os brancos não tivessem chegado, ele teria se tornado caçador e, consequentemente, matado alguns yanomami por vingança, porém querendo sempre fazer o oposto dos brancos, nunca matou nenhum deles, também, por preferir concentrar toda sua raiva aos brancos. Outra contraposição que estabelece com os brancos é a escrita, de modo que afirma que os yanomami não precisam escrever o que sabem para impedir que se perca, tudo fica guardado dentro deles que tem memória longa e forte. Assim, aprendem a pensar observando o que acontece de verdade, não precisando de peles de imagens para isso.

Sofia Galvão

119

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

Kopenawa conta da existência do mundo a partir do demiurgo Omama, que fez e nomeou tudo que existe, inclusive os espíritos, chamados por eles de xapiri, a fim de possibilitar a vingança das doenças e proteção da morte. Seu processo de iniciação xamânica se inicia desde de cedo quando Kopenawa sonhava com os espíritos, mas ainda não era capaz de reconhecê-los, já que para vê-los claramente são necessários muitos anos de consumo do pó de yãkoana. Na adolescência decidiu focar em ser um bom caçador, para que pudesse virar xamã posteriormente. Desta forma, Davi Kopenawa afirma “Pouco a pouco fui me transformando para virar xamã” (Kopenawa & Albert, 2015, p.108). Com essa afirmação do autor percebemos a corporalidade e a mente, em transformação, necessária para tornar-se xamã, posição imprescindível para a vida de toda coletividade na proteção do povo, na cura de doenças e nos rituais, através da relação que estabelecem com os xapiri, denominada a partir da expressão “fazer os xapiri dançar”, por meio da ingestão do pó yãkoana. Kopenawa afirma que Omama criou os xapiri para que os Yanomami pudessem se vingar das doenças e serem protegidos da morte, criada por seu irmão mau. (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 84). Depois desse início, Kopenawa passa a explicar o Avesso


120 Artigos V. 1 N. 1 2020

que são os xapiris e suas transformações. Em suas palavras, “Os xapiris são as imagens dos ancestrais animais yarori que se transformaram no primeiro tempo” (Kopenawa & Albert, 2015, p. 111), ou seja, imagens dos pais dos animais caçados atualmente pelos yanomamis. A explicação dada pelo yanomami é que todos os seres da floresta têm uma imagem, que compõe o verdadeiro interior dos animais que são caçados, essa imagem é chamada por eles de utupë, que ao tornarem-se xapiri descem e executam suas danças (Kopenawa & Albert, 2015, p. 116). Esses seres espíritos ao mesmo tempo que protegem os yanomami, podem ser agressivos e matá-los caso se comportem mal, são numerosos, assim como seus cantos, e brilhantes, descendo até a terra através de caminhos resplandecentes de luz em uma multidão de imagens semelhantes que se deslocam por meio de espelhos. Assim, os xamãs fazem descer à terra imagens de todos os seres que a povoavam ou povoam, como as árvores, por exemplo. Ao tornar-se xamã, torna-se pai dos xapiri, pois permanece junto deles e alimentando-os com pó yãkoana. A transformação de corpo e mente pela qual Kopenawa passa é a iniciação xamânica através da ingestão do pó de yãkoana, que tem poder forte e duradouro. “É a yãkoana que nos permite, guiados pelos xamãs mais experientes, ver os caminhos dos espíritos e dos seres maléficos. Sem ela seríamos ignorantes” (Kopenawa & Albert, 2015, p.137). O processo de virar outro, em que o corpo é parte essencial, faz parte da iniciação, na qual o xamã mais velho deve limpá-lo, livrando-o de todos os restos de caça, cheiro de carne, cheiro de pênis, para isso passa-se um período de muita fome e sede, porém os xapiri somente aparecem quando o iniciado não está sujo e fedorento e consegue alimentá-los com o que apreciam, pó de yãkoana. Esse processo funciona como uma forma de endireitar o pensamento do iniciado para que consiga receber os espíritos.

Universidade de São Paulo (USP)

Avesso

Quando o pai de minha esposa me fez virar outro, tudo ocorreu como acabo de descrever. Com a yãkoana, ele primeiro tirou de mim todo vigor. O seu espírito, que chamamos Yâkoanari, foi comendo minha carne aos poucos. Fiquei tão fraco que dava dó! Os xapiris então lavaram do meu peito todo cheiro ácido e salgado. Limparam também minhas entranhas de todos os restos de carne putrefata. Fizeram-me per-


der toda força e voltar a ser um bebê (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p.143).

Portanto, é preciso consumir durante muitas noites o pó e ficar muito fraco para que os xapiri se manifestem. “Só irá mesmo vê-los quando ficar muito fraco e tiver mesmo virado outro” (Kopenawa & Albert, 2015, p. 147). Para que esse processo seja possível, o corpo é sujeitado à transformações, sendo parte principal para tornar-se xamã, já que um outro processo importante é a entrada dos xapiri em seu corpo feita através dos braços e pernas do iniciado, para que consigam chegar à seu peito, para isso, necessitam machucar a cortar todo o corpo, as pernas, o tronco, o pescoço e a língua, substituem toda parte podre do corpo, contaminada pela carne, pela imagem de suas próprias línguas, dentes e vísceras (Kopenawa & Albert, 2015, p.153). Posteriormente, quando já transformado em xamã, se fazem descer os espíritos para curar, eles descem com toda valentia para atacar os espíritos maléficos. Depois desse processo, é necessário construir uma casa para que os xapiris se instalem. Assim, quanto mais o xamã bebe yãkoana, e vai virando outro, sua língua ficando mais firme, os espíritos se revelam a ele.

Sofia Galvão

121

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

Sendo assim, Kopenawa destaca diversas vezes a importância da corporalidade em transformação no processo xamânico, seja na iniciação ou nos rituais em que os xamãs entram em contato com os espíritos, em um processo de tornar-se outro, permitindo a ligação entre o mundo físico e espiritual, que se torna ainda mais clara nas transformações de corpo e mente necessárias na iniciação descrita pelo xamã yanomami. Nesse processo, os seres míticos se diferenciam já que são colocados nos mitos justamente para se transformarem e serem outros, sendo assim a transformação se dá no âmbito da corporalidade e da mente, de modo que acontece não somente com os xamãs, mas entre os xapiri também. É assim, portanto, que os Yanomami consideram os seres, transformados de diversas formas, a partir do fato de que seus antepassados eram humanos com nomes de animais que, nos dias atuais, tiveram suas peles transformadas em animais, que são caçados, e suas imagens em espíritos auxiliares. Definindo, para além disso, que morrer também é ter o corpo transformado em animal, como vemos acontecendo com os antepassados yanomami. Avesso


122 Artigos V. 1 N. 1

Se faz importante também destacar a pluralidade dos povos ameríndios, para que não sejam generalizados e tratados de maneira superficial, apenas a partir de suas semelhanças. Além disso, segundo Pedro Cesarino,

2020 O uso tradutivo e diplomático das tradições xamanísticas é, portanto, algo bastante distinto do imaginário moderno, que cola à imagem da natureza inerte a figura do índio genérico e simplório, a ser confinado em retalhos de floresta ou então absorvido como subalterno nos processos de produção (CESARINO, 2010, p. 276).

Portanto, mesmo que possamos estabelecer relações entre eles em alguns termos, é necessário se atentar ao que produz suas cosmologias, já que se caracterizam “[...] por processos de relação com multiplicidades de povos que se dão desde os tempos míticos e que, justamente por isso, envolvem a ideia de ‘contato’ em sua definição” (Cesarino, 2010, p. 272), destacando-se o contato necessários com a multiplicidade de diferentes povos na formação de cada um desses modos de organização social.

Universidade de São Paulo (USP)

Avesso

A partir das análises desses quatro povos, Cubeo, Piaroa, Guajá e Yanomami podemos perceber como a noção de corporalidade se concebe como parte fundamental da cosmologia e sociabilidade dos povos brasileiros, como propunham Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1987), na obra citada acima, além de serem fundamentais na ligação entre o mundo físico e espiritual. No caso Piaroa, as pinturas nos corpos e os ornamentos definem suas capacidades produtivas de forma harmoniosa permitindo que a vida coletiva seja possível; a participação do mundo celeste, que permite a interação entre o mundo físico e espiritual, também se dá nesses termos, já que as forças produtivas em sua forma venenosa, em excesso, são dadas pelos seres celestes que também possibilitam meios de limpar e controlar essas forças. Já no caso Guajá, a corporalidade aparece na importância dada ao canto, indispensável na formação da vida da tribo, na medida em que define sua conexão com os seres celestes, responsáveis pela cura, pela definição de nomes Guajá, emprestados desses seres e pela determinação de sua relação riku, construindo todos os tipos de relação entre humanos e não-humanos entre outras


já citadas. No caso dos Yanomami, a necessidade de transformar o corpo e mente para que seja possível tornar-se xamã se faz imprescindível e permite a interação deles com o mundo celeste através dos xapiri, fazendo parte da organização social do povo já que os xamãs são responsáveis por manter os Yanomami curados de doenças e protegidos da morte, justamente por meio dessa interação.

Sofia Galvão

123

A corporalidade dos povos indígenas na construção de sua organização social e cosmologia com relação à interação entre o mundo físico e espiritual

Assim, utilizando-se da “noção de pessoa” desenvolvida por Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1987), a qual pressupõe a construção dos corpos como idioma simbólico definidor na organização social desses grupos, percebemos os Piaroa que, por meio da ornamentação e da pintura dos corpos demonstram suas capacidades de controle das forças produtivas, os Guajá, que por meio do canto promovem a conexão com os seres celestes e os Yanomami, nos quais a transformação do corpo permite tornar-se xamã, posição de extrema importância para a sua sobrevivência, como exemplos nítidos do que os autores pretendiam demonstrar, trazendo à antropologia conceitos que pretendem contribuir para sua consolidação, baseando-se em termos oferecidos pelos povos sul-americanos, para além do que já foi desenvolvido acerca dos povos africanos, melanésios e norte-americanos.

Avesso


124 Artigos V. 1 N. 1 2020

BIBLIOGRAFIA CESARIMO, Pedro. Culturas múltiplas versus monocultura. Revista Lugar Comum. Rio de Janeiro. Nº2526, pp. 271 - 280, dez, 2010. Disponível em: <http://uninomade.net/wp-content/files_mf/112303120543Lugar%20 Comum_25-26_completo.pdf> GARCIA, Uirá Felipe. “Riku”. In: ______. Awá-Guajá. Crônicas de Caça e criação. Editora Hedra; Edição: 1, pp. 321-462, 2018. ______. “Andar junto”e “Karawara”. In: ______. Awá-Guajá. Crônicas de Caça e criação. Editora Hedra; Edição: 1, pp. 537-620, 2018. KOPEMAWA, Davi. “Prólogo”. In: ______. & ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 43-53, 2015. ______. “Devir outro – Os ancestrais animais”. In: ______. & ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 110-220, 2015. ______. “Post scriptum”. In: ______. & ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 512-549, 2015. OVERING, Joanna. “A estética da produção: o senso da comunidade entre os Cubeo e os Piaroa”, Revista de Antropologia. São Paulo, USP, n.34, p.7-33, 1991. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/ view/111249/109516>.

Universidade de São Paulo (USP)

Avesso

SEEGER, A.; Da Matta, Roberto; Viveiros de Castro, E. 1987. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. In: Oliveira Filho, João Pacheco de (org.). Sociedades indígenas e indigenismo brasileiro, p. 1130. Rio de Janeiro: UFRJ, Editora Marco Zero. VIVEIROS DE CASTRO, E. 2006. A floresta de cristal. Notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos, Cadernos de Campo. São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/ article/view/50120/55708>.


125

Avesso


126 Artigos

Pedro Almeida Meniconi

V. 1 N. 1 2020

Palavras Chave Cédula do Produtor Rural (CPR) Derivativos Crédito Rural Concentração Fundiária.

Universidade de São Paulo

Avesso

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária1 New socioeconomic relations in rural areas: a critical analysis of the rural producer card (RPC) as a vector of land concentration

Este artigo consiste numa interpretação da realidade rural brasileira a partir do escasseamento do crédito rural oficial – dada a partir da crise fiscal dos anos 1980 - e sua substituição pelos novos instrumentos privados de financiamento rural. Identificam-se e se relacionam nessa dinâmica: o deslocamento da função do Estado e a reestruturação produtiva e fundiária ocorrida no Brasil nas últimas duas décadas. Destacase nessa dinâmica a reorganização do espaço rural brasileiro, avançando espacialmente a produção de culturas voltadas ao mercado externo, em detrimento dos produtos que atendem ao mercado interno e se intensifica a concentração fundiária no país. Este período é marcado pela formação dos derivativos do agronegócio, em especial a cédula do produtor rural (CPR).


Pedro Almeida Meniconi

127

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

This paper is an interpretation of Brazil’s new rural dynamic, from the scarcity of public credit offer – caused by the financial crises of the 1980’s – and its replacement by the new private rural financing instruments. It’s identifiable as related forms in this development: the displacement of the state function such as the products chosen by the producers and the land distribution in the last two decades. It’s highlighted here the advance of export commodity planted areas in spite of products aimed to the domestic market, and the acceleration of land concentration in Brazil since the 2000’s – when agribusiness derivates, specially the rural producer banknote (CPR), have consolidated the national secondary financial market.

Keywords Rural Producer Banknote (CPR) Derivatives. Rural Credit. Land Concentration.

Pesquisa de iniciação científica realizada entre agosto de 2018 e julho de 2019, orientada pelo Prof. Dr. Alexandre Maccione Saes na Faculdade de Economia, Administração e contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), com bolsa auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O trabalho fora apresentado na fase internacional do 27º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da Universidade de São Paulo (27º SIICUSP) em 5 de novembro de 2019, recebendo menção honrosa da Pró-reitoria de pesquisa da Universidade de São Paulo.

1

Avesso


128 Artigos V. 1 N. 1 2020

RURAL COMO ILUSTRAÇÃO DE UMA NOVA RACIONALIDADE IANNI, Octavio. Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo SP. Brasiliense. (2004). 3 Na obra Poder e contrapoder na américa latina, o professor Florestan Fernandes – a mais importância referência teórica do presente trabalho – relata a importância no acesso ao crédito privado como uma baliza fundamental no sucesso das células produtivas coloniais. Ver: FERNANDES, Florestan. Poder e contrapoder na América latina. São Paulo. Expressão popular. 2015. 4 DEAN, Warren. The industrialization of São Paulo. The University of Texas Press. 1969. <?> Neste trabalho nos apoiamos na interpretação da realidade brasileira fornecida em Sociedade de classes e subdesenvolvimento pelo pro2

Universidade de São Paulo

Avesso

“é possível dizer que todos os momentos mais notáveis da história da sociedade brasileira estão influenciados pela questão agrária” (Octavio Ianni, 1984)2

O desenvolvimento do agronegócio está intimamente ligado ao acesso à crédito por parte dos produtores. Desde o século XVI, a montagem do complexo colonial dependeu de fornecimento creditício flamenco3. Passando mais tarde à dependência de exportadores luso-portugueses (séculos XVIII e XIX)4, do fomento Estatal (início do século XX até a década de 1980) e atualmente ao jugo do mercado privado de crédito, a questão agrária brasileira tem como um de seus determinantes fundamentais atores externalizados à esfera rural5. Sendo atividades de retornos não imediatos e sujeitos a riscos diversos – intempéries climáticas, variação dos preços sujeitos a oferta e a demanda internacional, relações trabalhistas conturbadas etc.- a racionalidade econômica que se emprega nesta busca vital para a organização do espaço, da produção, da oferta de trabalho e mesmo do gênero que será cultivado torna-se desequilibrada de acordo com a capacidade do produtor em fornecer garantias aos ofertantes de crédito.

O século XX é marcado por intenso desenvolvimento econômico no Brasil. Apesar da queda de importância relativa do Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio no período – fruto do intenso processo de industrialização – o aumento de produtividade e do saldo do setor primário foi impressionante. Este desenvolvimento foi fundamental para sustentar a rápida expansão industrial que se daria no país a partir dos anos 30, em especial a partir da segunda metade da década de 19506. Este período de pujança econômica foi fruto do projeto desenvolvimentista colocado em prática pelo governo Federal do Brasil a partir da Era Vargas, passando pela segunda


república e pelos governos militares, tendo fim em meados dos anos 1980.7 O desenvolvimentismo, entretanto, é tratado pela literatura econômica como exclusivamente comprometido com a esfera industrial, ao passo que a produção dos insumos industriais, a liberação da mão de obra, a produção de alimentos e o fornecimento de energia para que fosse possível o amadurecimento da indústria dependia do desenvolvimento do setor primário. O Governo Federal irá realizar, portanto, a partir dos anos 1960, intensa política de fomento ao agronegócio. Esta política, seguindo o modelo de atuação do governo militar, consistirá em amplas aberturas de linhas de crédito a juros baixos, que na prática funcionavam como subsídios indiretos8 por parte do governo federal aos produtores rurais. Teoricamente, estas linhas creditícias eram abertas a todos os produtores rurais, na prática, por volta de 90% do volume financeiro empregado pelo Tesouro Nacional fora canalizado para fomentar atividade de grandes produtores9. Com a crise fiscal enfrentada pelo Estado Brasileiro na década de 198010 a administração federal realizará o deslocamento do papel do Estado, tem-se início o período de neoliberalização. O crédito fornecido pelo governo federal, proveniente do tesouro e emissões de moeda minguará. Em seu lugar, o Estado brasileiro passará a desenvolver instrumentos de financiamento privado para viabilizar o agronegócio. De indutor da economia, o Estado se empenhará agora em viabilizar acordos privados de crédito rural a partir da institucionalização de derivativos rurais, formação de regras para a formação deste tipo de contrato e de órgãos garantidores destes novos vínculos contratuais. Este deslocamento corresponde aos anseios de uma nova forma de racionalidade, em que se atribui ao “mercado” a alocação de recursos, acreditando-se que as relações entre privados trarão maior competitividade aos agentes econômicos e assim os recursos escassos da economia serão alocados de forma mais eficiente11. Neste contexto nasce a Cédula do Produtor Rural, correspondendo à essa nova racionalidade.

Pedro Almeida Meniconi

129

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

fessor Florestan Fernandes, em que existiria no país uma esfera moderna de sociabilidade e desenvolvimento, e outra tradicional. Estas esferas não existiriam independentes – como fora proposto pela interpretação dualista de Jacques Lambert em Os dois Brasis – mas se interpenetrando, sendo as técnicas modernas inseridas na realidade tradicional e a reforçando, e não a suprimindo. Ver: FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo. Global. 2008. 5 Neste trabalho nos apoiamos na interpretação da realidade brasileira fornecida em Sociedade de classes e subdesenvolvimento pelo professor Florestan Fernandes, em que existiria no país uma esfera moderna de sociabilidade e desenvolvimento, e outra tradicional. Estas esferas não existiriam independentes – como fora proposto pela interpretação dualista de Jacques Lambert em Os dois Brasis – mas se interpenetrando, sendo as técnicas modernas inseridas na realidade tradicional e a reforçando, e não a suprimindo. Ver: FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo. Global. 2008. Avesso


130 Artigos V. 1 N. 1 2020

BACHA, José Caetano. Economia e política agrícola no Brasil. Campinas. Alínea. 2018. 7 É extensa a bibliografia econômica que trata do período e que analisa a intervenção do Estado brasileiro na economia durante o século XX. 8 Subsídios indiretos são créditos fornecidos com juros abaixo da inflação. 9 BACHA, José Caetano. Panorama da agricultura brasileira. Campinas. Alínea. 2018. 10 A crise fiscal da década de 1980 foi um fenômeno ocasionado principalmente pela alta de juros internacionais forçada principalmente pela forte alta dos juros americanos e ingleses em 1979. Esse fenômeno levou ao descontrole da dívida externa de todos os países da América Latina e foi amplamente 6

Universidade de São Paulo

Avesso

Gráfico 1: Dados Obtidos em: BACHA, José Caetano. Economia e política agrícola no Brasil. Campinas. Alínea. 2018. – confecção própria. Como se pode observar no gráfico 1, tem-se uma rápida queda do crédito rural oficial (crédito público) a partir de 1987. Não à toa, a CPR, o primeiro derivativo do agronegócio, é instituída pela lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994 e consistirá em um contrato a termo, mediante o qual o produtor rural e suas associações (emitentes) vendem antecipadamente sua safra e entregam o produto no prazo, quantidade e qualidade determinadas em contrato.11 Estes contratos caracterizam uma operação de crédito, uma vez que existe lapso temporal entre o recebimento do recurso financeiro e a liquidação do contrato, tal qual a instituição de juros. Após a emissão do documento de CPR – que já especifica a quantidade, o local e maneira de armazenamento e a qualidade do produto – esta pode ser registrada em cartório, em uma central de custódia e liquidação de títulos e valores (clearinghouses), ou mesmo guardada pelo comprador como um contrato privado. A emissão do título é realizada a partir de leilões eletrônicos, onde os bancos atuam apenas como avalistas, uma vez que a liquidação do contrato se daria a partir da entrega física dos produtos. O salto jurídico que garantiu liquidez às CPRs, entretanto, ocorreu em 14 de fevereiro de 2001, quando a lei nº 10.200 abriu a possibilidade de liquidação dos contratos de forma financeira (não mais em produtos agrícolas), aumentando o interesse de especuladores no mercado secundário; e transformando a CPR em um contrato futuro12– CPR financeira. Esta lei também foi responsável por instituir novos derivativos do agronegócio, lastreados em letras de crédito agrícola – CPRs


– como as Letras de crédito do Agronegócio (LCA), Certificado de Depósito de Agronegócio (CDA), Warrent do Agronegócio (WA) e o Certificado dos Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), sendo todos esses derivativos lastreados em CPRs, em sua maioria financeiras. O deslocamento da principal fonte de financiamento rural (do crédito oficial – público – para o crédito privado) foi acompanhado por forte aumento das taxas de juros empregadas nas atividades rurais, e o desequilíbrio competitivo entre os produtores. Além das taxas de juros subitamente elevadas, os produtores menores enfrentam dificuldades em fornecer garantias às instituições fornecedoras de crédito. Sem produção padronizada, excesso de terras ou mesmo outras possíveis produções para servirem de garantias, ocasionando forte canalização dos recursos aos grandes proprietários/ produtores. Tabela 1:

Fonte: BACHA, José Caetano. Em: Economia e politica agrícola no Brasil. pág. 98. Confecção própria.

Pedro Almeida Meniconi

131

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

estudada por François Chesnais. Para mais, ver: CHESNAIS, François. La Finance Mondialisée. Paris Éditions la découverte. 2004; CHESNAIS, François. Les dettes illégitimes. Paris. Raisons d’agir Éditions. 2011; CHESNAIS, François. La mondialisation financière. Genèse, coût et enjeu. Paris. Syros. 1996. 11 Este trabalho utiliza o conceito de neoliberalismo trabalhado por Pierre Dardot e Christian Laval em La nouvelle raison du monde, onde o neoliberalismo é visto como mais do que uma forma de política econômica de “diminuição do tamanho do estado” ou ausência de intervenções anticíclicas por parte do governo na economia, mas como uma nova racionalidade que irá gerir as relações sociais contemporâneas. Esta nova racionalidade consiste na formação de uma crença comum de eficiência via mercado – mercado como uma instituição antropomorfizada, assemelhando-se à uma entidade divina – na qual as próprias relações humanas passam a ser pautadas por formalismos e regras semi-contratuais, perdendo intensidade os sentimentos, a espontaneidade e a ética. Para mais Avesso


132 Artigos V. 1 N. 1 2020

ver: DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. La nouvelle raison du monde essai sur la société néolibérale. Paris. Éditions La Découverte. 2010. 12 Ver: GONZALES, Bernardo César; MARQUES, Pedro Valentim. A cédula do produtor rural – CPR e seus ambientes contratual e operacional. São Paulo. Est. Econ. Jan – Março. 1999. 13 Contrato futuro é um tipo de venda a prazo em que se ajustam os preços entre o comprador e o vendedor diariamente. Esta flutuação também traz interesse aos especuladores do mercado secundário, uma vez que se abre a possibilidade de ganhos com a flutuação diária dos preços dos produtos agrícolas nas praças espe-

Universidade de São Paulo

Avesso

Gráfico 2: Dados públicos fornecidos pela CETIP. Confecção própria14.

Gráfico 3: Dados públicos fornecidos pela CETIP: Confecção própria15. A tabela 1, apesar de tratar de um curto período, ilustra a grande diferença entre as taxas de juros do crédito oficial e do mercado privado, oferecido via contratação de CPRs. Já os gráficos 2 e 3 demonstram que a partir da instituição da CPR financeira ocorreu a formação de uma grande quantidade deste tipo de contrato, sendo notável a ocorrência do que chamaremos de ciclos contratuais. O primeiro16 ciclo contratual ocorre entre 2006 e 2010. Deve-se observar que os contratos de CPR tem, por lei, duração máxima de 5 anos. A partir de 2010 – período de finalização dos contratos realizados em 2006 – ocorre um segundo ciclo contratual, este já bem mais modesto em número de contratos, entretanto, com valor financeiro contratado maior que o primeiro ciclo contratual – gráfico 2; por fim, de 2016 a 2019 o terceiro ciclo contratual já é quase inexistente, enquanto seu fluxo fi-


133

nanceiro se mantém aumentando.

Pedro Almeida Meniconi

Conclui-se a partir do exposto que ocorreu a canalização do crédito rural via CPRs para poucos proprietários. Poucos contratos foram capazes de gerar volumes financeiros crescentes, apesar da queda do número de contratos realizados no Brasil. Suponhamos que dada a dificuldade de concorrência, os médios e pequenos produtores que realizaram contratos de crédito privado via CPR, não voltaram a recontratar esse tipo de crédito por sua inviabilidade e desequilíbrio competitivo. Por outro lado, a grande capacidade de gerar garantias e de mobilizar crédito de grandes produtores, elevou em cada ciclo contratual financeiramente.

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

Os impactos das cprs na realidade rural A inequidade de acesso à crédito na nova forma de governança do Estado brasileiro levou a movimentos importantes tanto na base produtiva do país, quanto em sua estrutura fundiária17. Foram observados a partir dos dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEADATA) que concomitante ao estabelecimento do crédito privado como principal fonte de financiamento à produção rural, ocorreu o decréscimo da área plantada de produtos fundamentais para a nutrição do brasileiro médio – arroz e feijão - ao passo que a área plantada de produtos voltados à exportação teve comportamento contrário, aumentando sua área total de produção no território nacional – soja e cana de açúcar18.

Gráfico 4:Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos através do site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEADATA).19 – Produção Própria.

cíficas de vendas do produto. 14 Ver a tabela de origem do gráfico no site: http://estatisticas.cetip.com.br/astec/ series_v05/paginas/web_ v04_10_03_consulta.asp 15 Ver a tabela de origem do gráfico no site: http://estatisticas.cetip.com.br/astec/ series_v05/paginas/web_ v04_10_03_consulta.asp 16 Apesar das CPRs financeiras serem institucionalizadas em 2001, podemos identificar apenas o primeiro ciclo contratual em 2006 uma vez que a CETIP – casa de registro destes contratos e fonte primária desses dados – não fornece dados de número de contratos e valores contratados antes de 2004, forçando-nos a iniciar nossa série temporal nesta data. 17 Provavelmente surgiram também impactos no regime de trabalho rural, entretanto, essa parte fundamental da questão agrária brasileira não foi trabalhada nesta pesquisa e por isso não constará neste artigo observações a esse respeito. 18 Foram considerados na pesquisa as culturas de arroz, feijão e mandioca para ilustrar a produção rural orientada ao mercado interno, embora neste artigo só Avesso


134 Artigos V. 1 N. 1 2020

estejam ilustrados os comportamentos das áreas plantadas de arroz e feijão. Estes foram os produtos escolhidos como forma de análise da relação de produção rural visando atender o mercado interno, primeiro pela irrelevância de suas exportações, e por histórica e culturalmente serem produtos básicos na manutenção da dieta do brasileiro. Já as culturas de exportação foram ilustradas pela soja, boi gordo e cana de açúcar na pesquisa completa, embora nesse artigo representemos a alocação de culturas voltadas para exportações apenas a partir da soja e da cana de açúcar. A escolha desses produtos refere-se à grande representatividade destes na balança comercial brasileira segundo dados fornecidos pelo ministério

Universidade de São Paulo

Avesso

Gráfico 5: Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos através do site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEADATA).20 – Produção própria.

Gráfico 6: Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos através do site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEADATA).


Gráfico 7: Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos através do site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEADATA). A similaridade do comportamento entre as culturas representativas do mercado interno e do mercado externo demonstram que o comportamento apresentado é fruto de influências materiais objetivas e estruturais e esses mercados, e não representam um movimento de apenas um produto específico. É notável que ao passo que o crédito público se expande – chega a representar mais de 90% do crédito rural total em toda a década de 1970, sendo atualmente menos de 15% do crédito total tomado pelo setor21- ocorreu também a expansão da área plantada dos produtos para o mercado interno, e cresce também a área plantada de bens voltados ao mercado externo. A partir da formação da crise fiscal dos anos 1980, e o escasseamento do crédito rural oficial, é notável a concomitante expansão das lavouras de exportação em detrimento das culturas que atendem ao mercado interno. Sabendo que o mercado interno é principalmente atendido por médios e pequenos proprietários, e o externo em sua maioria por grandes proprietários, os dados obtidos corroboram com a tese de que a inadimplência ou simplesmente incapacidade de contratação creditícia por parte dos pequenos ou médios proprietários22 impulsionou a absorção dessas células produtivas pelos grandes proprietários concorrentes, deslocando suas produções para produtos de maior rentabilidade. De fato, a área plantada não é um indicativo suficientemente seguro para concluir se a população brasileira teve seu acesso diminuído à produtos básicos. Para verificar o impacto desse deslocamento geográfico e produtivo, realizamos um índice de produção per capita de arroz, feijão e mandioca – aqui presentes os índices de arroz e feijão – pela quantidade produzida de cada produto (fornecido pelo IPEADATA) dividido pela população brasileira registrada anualmente pelo IBGE. É notável que a partir da formação dos derivativos financeiros, mais do que a diminuição da área empenhada em atender o mercado interno, ocorreu intensa diminuição da produção per capita de arroz e feijão – ver gráficos 8 e 9, que seguem.

Pedro Almeida Meniconi

135

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

da economia acerca da balança comercial brasileira no ano de 2019. 19 Site: http://www.ipeadata. gov.br/Default.aspx;. 20 Site: http://www.ipeadata. gov.br/Default.aspx;. 21 Dados retirados de: BACHA, José Caetano. Panorama da agricultura brasileira. Campinas. Alínea. 2018. 22 Na pesquisa completa encontramos dados referentes a estrutura fundiária brasileira, fornecidos pelo Instituto de Pesquisa e Estatística (IBGE) que demonstram que os principais afetados pela inadimplência e desigualdade competitiva são os médios proprietários. Provavelmente pela ação do governo nos últimos anos a partir da expansão do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF).

Avesso


136 Artigos V. 1 N. 1 2020

pria.

pria.

Universidade de São Paulo

Avesso

Gráfico 8: Dados fornecidos pelo IPEADATA. Confecção pró-

Gráfico 9: Dados fornecidos pelo IPEADATA. Confecção pró-

Não obstante ao empobrecimento material causado pela canalização dos recursos nacionais para atenderem a demanda internacional, é possível observar os efeitos da competição de mercado mais ampla no meio rural a partir, também, dos censos agropecuários do IBGE. A tabela 2 demonstra como a tendência de desconcentração fundiária, marcada pelos censos de 1985 para 1995 e o deste para 2005 foi quebrado com a diminuição no número de estabelecimentos rurais, apesar do aumento na àrea total produzida.


Tabela 2:

Pedro Almeida Meniconi

137

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

Termo utilizado por Milton Friedman para defender metodologicamente a economia como uma ciência abstrata. Segundo o autor de origem ortodoxa, a ciência seria qualificada de acordo com a capacidade de previsão, sendo de menor importância a teoria na qual essa se embasa. Daí o termo “as if” como uma forma de justificar que embora uma teoria mostre-se inconsistente, caso sua capacidade de previsão seja boa, é “como se” a sociedade fosse de acordo com o descrito na teoria. Ver: FRIEDMAN, Milton. A metodologia da economia positiva. Edições Multiplic. 1981. 23 Em História econômica do Brasil, Caio Prado Jr argumenta que o desenvolvimento econômico brasileiro dependeria da superação do complexo colonial. O complexo colonial seria a grande propriedade monocultora, a dependência em relação ao mercado externo e o trabalho escravo. Essas estruturas não seriam desfeitas de forma subida e a partir de decisões jurídicas, como fim da escravidão formal, mas representariam forma de sociabilidade e de produção que devem ser dissolvidas a partir do desenvolvimento 23

Censos Agropecuários IBGE – Produção própria.

CONCLUSÃO A partir do exposto, nota-se que passamos por um momento de reestruturação fundiária e produtiva no meio rural. Esta reestruturação está intensamente ligada à nova racionalidade que orienta e erige uma realidade abstrata e suas próprias leis de funcionamento, segundo a qual acredita-se ser possível agir sobre a realidade material e encontrar resultados já esperado, “as if”23 essa realidade abstrata fosse objetivamente verdadeira. Percebemos que a expansão da lavoura de exportação, tal qual da desigualdade fundiária – orientadas pelas novas formas de contratação de crédito rural – fortalecem o complexo colonial que trata Caio Prado Jr24. Evidencia-se que os recursos nacionais estão cada vez mais intensamente ligados aos interesses (“demanda”) externa, chegando ao extremo da diminuição da produção per capita dos produtos mais básicos para a reprodução do trabalhador brasileiro em favor de commodities de exportação de baixo valor agregado. A neoliberalização da economia brasileira subverteu a tendência de diminuição da importância relativa do PIB agropecuário em relação ao produto total da economia. O gráfico 10 demonstra o avanço não apenas do volume total negociado para exportação de soja, mas o preocupante aumento relativo deste produto agropecuário na balança comercial brasileira. Evidencia a partir desse dado, o processo de desindustrialização do brasil, e reforçamento do complexo colonial que, segundo a tese de Caio Prado Jr, nos

Avesso


138 Artigos V. 1 N. 1 2020

do capitalismo nacional, via amadurecimento e consolidação do mercado interno e independência em relação ao mercado internacional. Ver: PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo. Companhia das Letras. 2011; PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil. Rio de Janeiro. Brasiliense. 1988. 25 Desde os anos 1980, a teoria econômica vive uma espécie de uníssono. A ortodoxia, identificada pela microfundamentação econômica não é contestada nos meios acadêmicos e políticos, levando a uma forma discursiva em que se considera os modelos econômicos como portadores de verdades, resultados incontestáveis, além de ideologicamente neutros e irresistivelmente eficientes. Na obra Brasil Delivery, a pro-

Universidade de São Paulo

prende ao subdesenvolvimento. Gráfico 10: Dados fornecidos pelo Ministério da Economia. Confecção própria.

O que mais chama a atenção nos dados obtidos – conforme o demonstrado – e no processo recente de “reprimarização” da economia brasileira, a partir da reintensificação de estruturas sociais e produtivas indesejáveis, é este movimento ser intensificado por instrumentos modernos de financiamento, tal qual políticas econômicas de ponta e de reconhecimento atual da comunidade intelectual25. Este fato aparentemente insólito é esclarecido pela interpretação do desenvolvimento brasileiro fornecida por Florestan Fernandes em sociedade de classes e subdesenvolvimento26. Na obra é proposto que o existem duas esferas sociais no brasil – o que se reflete em duas esferas produtivas, culturais, simbólicas etc. – uma moderna e outra arcaica. Essas esferas não seriam conflitantes. Tampouco a robustez da esfera moderna dependeria da diluição da esfera tradicional. Pelo contrário, a estrutura socioeconômica brasileira, o complexo colonial de Caio Prado Jr, teria desenvolvido uma forma produtiva e uma estrutura específica na américa latina, em que a modernidade é utilizada como forma de reenquadramento de diferenças sociais que reforçam as mesmas esferas tradicionais. Não à toa, a absorção dos derivativos como instrumento financeiro ocorre de acordo com a capacidade do sistema financeiro canalizar recursos para o agronegócio – a eles excedentes e não essenciais para a movimentação de seu core business – ao passo que os grandes proprietários se adaptem a essa nova forma jurídica. A utilização da forma jurídica e a proteção a propriedade

Avesso


privada é o instrumento mais eficiente na américa latina para garantir a exclusão e renovar a forma discursiva racional em que a desigualdade se assenta. A utilização dos derivativos e a intensificação da concentração fundiária, tal qual da reorganização produtiva com renovação da dependência nacional ao mercado externo é um novo capítulo do desenvolvimento brasileiro em que a esfera moderna se insere em uma realidade na qual não fora a realidade que inspirou sua criação, ou seja, se importam tecnologias, formas discursivas, formas de legitimação de poder e força-se o enquadramento da realidade objetiva brasileira dentro dessa nova forma jurídica, política e econômica. O mesmo processo aconteceu com a instituição de governos gerais, com a formação da monarquia parlamentar nacional, com a instituição da república no brasil e etc.

Pedro Almeida Meniconi

139

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

fessora Leda Paulani discute como ocorreu essa formação de discurso único que molda nossa sociabilidade a partir de um verniz de eficiência e neutralidade que não correspondem a realidade objetiva. O discurso homogeneizado também é tema amplamente trabalhado por Milton Santos em Por uma outra globalização. Ver: PAULANI, Leda. Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo SP. Boitempo editorial. 2008; SANTOS, Milton. Por uma nova globalização. São Paulo. Record. 2017. 26 FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo. Global. 2008.

Avesso


140 Artigos V. 1 N. 1 2020

BIBLIOGRAFIA BACHA, José Caetano. Panorama da agricultura brasileira. Campinas. Alínea. 2018. CHESNAIS, François. La Finance Mondialisée. Paris Éditions la découverte. 2004. ________. Les dettes illégitimes. Paris. Raisons d’agir Éditions. 2011. ________. La mondialisation financière. Genèse, coût et enjeu. Paris. Syros. 1996. DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. La nouvelle raison du monde essai sur la société néolibérale. Paris. Éditions La Découverte. 2010. DEAN, Warren. The industrialization of São Paulo. The University of Texas Press. 1969. FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo. Global. 2008. ________. Poder e contrapoder na América latina. São Paulo. Expressão popular. 2015. FRIEDMAN, Milton. A metodologia da economia positiva. Edições Multiplic. 1981. GONZALES, Bernardo César; MARQUES, Pedro Valentim. A cédula do produtor rural – CPR e seus ambientes contratual e operacional. São Paulo. Est. Econ. Jan – Março. 1999. IANNI, Otavio. Origens agrarias do Estado brasileiro. São Paulo SP. Brasiliense, 2004.

Universidade de São Paulo

PAULANI, Leda. Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo SP. Boitempo editorial. 2008. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo. Companhia das Letras. 2011. PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil. Rio de Janeiro. Brasiliense. 1988.

Avesso


SANTOS, Milton. Por uma nova globalização. São Paulo. Record. 2017.

Pedro Almeida Meniconi

141

As novas relações socioeconômicas no meio rural: uma análise crítica acerca da cédula do produtor rural (CPR) como vetor da concentração fundiária

Avesso


142 Artigos

Tathyana Mello Amaral1

V. 1 N. 1

A Popular Brazilian Music?

2020

Keywords Music Culture Brazil MPB Tropicália.

Brown University

Avesso

This article considers how four different authors remember the cultural movement of the 1960s. More specifically, it delves into the musical landscape in Brazil during the military dictatorship from 1964 to 1968. From Bossa Nova, to Tropicalia, to a so called “música popular Brasileira (MPB)”, a number of academics have investigated how these musical traditions are related to diverse conceptions of national identity. Assessing the works of Roberto Schwarz, David Treece, Christopher Dunn and Sean Stroud, this article demonstrates an unanimous agreement about the lasting effects of the Tropicalia movement of 1968 on the national consciousness. While Trecee argues it demonstrates the disillusionment of leftist artists, Schwarz poses that the movement sought to highlight contradictions of this time. Moreover, Dunn and Stroud argue that the musical movements of 1968 are intricately related to the rise of both a single national music — MPB — as well as that of a vibrant counterculture.


143 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

INTRODUCTION The year 1968 in Brazil marks the beginning of the “anos de chumbo”. When President Artur da Costa e Silva signed the Fifth Institutional Act on December 13th, colloquially known as AI-5, one of the obvious targets were artists. Following years of intense cultural production inspired by the national political climate and disseminated by modern technologies such as the radio and television, the authoritarian state lost its tolerance for the political activism that prevailed among cultural and intellectual circles. Concurrently, 1968 also marks the beginning of what Zuenir Ventura called a “vazio cultural” (cultural void) in Brazil — a perceived drop in creative production following the great artistic expressions of the 1960s. It is interesting to consider the “sixties” as a cultural period in Brazil which ends in 1968 with the demise of the prominence of Bossa Nova among the urban youth, the failure of the politicized “Canção de Protesto” movement to garner support from the peasant and working classes, and the short-lived but legendary experience of the Tropicália movement. Moreover, after decades of intellectual debate about the existence of a unique Brazilian national culture, a musical genre called música popular brasileira (MPB) gains prominence after 1968.

B.A Honour Candidate in International Relations. 1

This article will analyze how four different authors interpret the “sixties” as a cultural period which ended in 1968. It will consider Roberto Schwarz’s classic 1970 essay on “Culture and Politics, 1964 - 1969” — one of the first critiques of the Tropicalist movement — to discuss immediate reactions to the cultural changes that occurred in 1968. It will then turn to the work of David Treece, who assesses the tensions musicians who attempted to create a popular music of protest in the sixties faced in their articulations of an “authentic” Brazilian people in his essay “Guns and Roses”. Next, Christopher Dunn’s book, Brutality Garden : Tropicália and the Emergence of a Brazilian Counterculture, will be used to understand Tropicália as a movement which challenged Avesso


144 Artigos V. 1 N. 1 2020

dominant constructions of national culture. Lastly, this essay will consider Sean Stroud’s The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music: Politics, Culture and the Creation of Musica Popular Brasileira, an ambitious book which demonstrates the construction of MPB as an authentic and legitimate musical tradition after 1968. Since these readings cover a broad range of topics and discussions that influenced the musical history of Brazil around 1968, the essay will be limited in scope so as to offer a critical analysis of current historiography. This essay will attempt to understand how these authors remember the tropicalist movement of 1968 and its relationship to conceptions of national identity. It will consider each author individually and assess the strengths and limitations of both their arguments and methodologies. When appropriate, commonalities and differences will be drawn between the pieces to comment on broader trends in the scholarship on the topic over time. 1968

Brown University

EARLY INTERPRETATIONS OF TROPICÁLIA AND

Roberto Schwarz’s essay “Culture and Politics, 1964 - 1969” was included in this literature review because of its historical value as an early interpretation of the defining music of 1968: Tropicália. Since Schwarz does not offer a succinct definition of the movement — as it was still in its embryonic stages — I will use Christopher Dunn’s definition throughout the essay. According to Dunn, Tropicália or tropicalismo was a cultural movement that coalesced in 1968 as a result of collaborations between musicians from Bahia such as Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto, José Carlos Capinan and vanguard artists from industrial São Paulo. While the movement gained visibility in late 1967 in the famous song festivals, the most formal articulation of the movement was provided by the 1968 concept album Tropicalia ou circus et pannis. As this movement directly challenged dominant conceptions of national identity and “dismantled binaries that maintained neat distinctions between high and low, traditional and modern, national and international cultural production” it faced criticism from both the conservative, patriotic regime and anti-imperialist left (Dunn, 2009,

Avesso


p. 3). Roberto Schwarz is a Marxist literary critic. As a member of the leftist Brazilian intellectual circle, he wrote this essay between 1969 and 1970 while in exile. Including a literature critique who was formally part of the discussions surrounding anti-imperialism and classstructure during the period offers a unique opportunity to comment on the legacy of 1968. This text is also an example of leftist self-critiques which dominated cultural and intellectual production in and about Brazil. The piece included a disclaimer in which Schwarz acknowledges the presence of “passages that have been proven false by time and events” but believes those mistakes “must be allowed to speak for themselves” (SCHWARTZ, 1992, p. 1).

145 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

Some of his greatest contributions to intellectual discourse include asserting the “cultural hegemony of the left” in Brazil. Schwarz specifies that this dominance “appears to be concentrated in the groups which are directly involved in ideological production, such as students, artists, journalists, some sociologists and economists” and that “the only truly radical material produced by this group is for its own consumption – which is in itself a substantial market” (Schwarz, 1992, pp. 8-9). All other authors considered in this essay also refer to Schwarz in their pieces, often to limit the scope of their discussions on the “popular” appeal of music during the sixties to the middle class. This is an interesting limitation that permeates most scholarship about popular music during the military dictatorship: historians continue to focus on the middle class while failing to compile sources which accurately account for the tastes of other social classes. Schwarz was the first to analyze the powerful use of allegories by artists in the tropicalist movement. By juxtaposing images of the archaic cultural emblems to expressions of urban modernity, tropicalists, Schwarz conceded, were able to “capture the hardest and most difficult contradictions of the present intellectual production” (Schwarz, 1992, p. 25). However, the author Avesso


146 Artigos V. 1 N. 1 2020

feared that the use of the tropicalist allegory would represent Brazil as an absurdity and construct an “atemporal idea of Brazil” in which the nation’s historical contradictions became symbols of its national identity. This prescription, made merely a few years after the demise of the formal tropicalist movement, seems inadequate when considering the important influence this new musical style would have on future generations and their own articulations of protest and dissent (this point is particularly driven forward by Dunn as will later be explored). As Christopher Dunn analyses in his book Brutality Garden, there are some inconsistencies with Schwarz’s argument especially in regards to the role of artists during the 1960s. In setting up his argument, Schwarz draws a parallel between the educational programs of Paulo Freire (who practices his proposed libertarian theology through literacy efforts in the Northeast of Brazil). Dunn writes that “This comparison seems to overlook the differences between work of activists engaged in popular education and artists elaborating projects of aesthetic renovation and cultural critique within the realm of mass media” (Dunn, 2009, p. 99). That Schwarz conflated the role of the two is not surprising when contextualizing the tropicalist movement in a time where the revolutionary power of culture was taken at face value by leftist circles. The next author further assesses the impetus of the cultural left to mobilize the Brazilian people. BOSSA NOVA AND POLITICAL DISILLUSIONMENT

Brown University

Avesso

David Treece’s article “Guns and Roses: Bossa Nova and Brazil’s Music of Popular Protest, 1958 - 1968” aims to assess how music played an “an active role in expressing the interests and aspirations of the movement for social and political change” (Treece, 1997, p. 2). Treece outlines the musical history of bossa nova, a dissonant avant-garde musical tradition that grew out of the Zona Sul in Rio de Janeiro during the 1950s. This musical style, created by Vinicius de Moraes and Tom Jobim was popular both domestically and internationally, coming to be portrayed as a symbol of Brazilian identity since it combines “modern” jazz with “traditional” Afro-Brazilian samba. He engages with this musical tradition to assess how the leftist intelligentsia sought to create a protest song movement that generated a politically conscious


“imagined popular audience” in the early sixties. (Treece, 1997, p. 4). Treece ultimately concludes that

147 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

In the absence of any politically articulated community of interests, that is to say, in the absence of a viable popular movement with its own coherent alternative to the regime’s strategy of state capitalist modernization, the traditional left could express little more than its own frustrated idealism and that of its middle-class audience (TREECE, 1997, p. 28). The article’s class-based critique thus marks 1968 as the final year of the failed experiment of the protest song movement and draws a direct link between Tropicália and the revolutionary efforts of the left. The most significant contribution of this article is the in-depth analysis of how artists like Carlos Lyra, Sergio Ricardo, Geraldo Vandré, Baden Powell, Vinicius de Moraes, and Edu Lobo reconstituted the bossa nova musical tradition during the early sixties. Shifting away from the “ecological rationality” and “domestic intimacy” of classic bolsa nova, which Treece argued was “an expression of the cozy bourgeois complacency of post-War Rio’s residential beach quarters and apartment blocks”, these artists were influenced by the political polarization of Joao Jango Goulart’s administration. (Treece, 1997, p. 11) Treece discusses the creation of the Popular Culture Center (CPC), and their mobilization of cultural forces to create a “revolutionary, popular art [which] might transform the political consciousness of its audience so as to challenge the prevailing ideas” (Treece, 1997, p. 13). CPC’s “formula” for a national protest music sought to bridge the social distance between the artistic vanguard and the “popular” masses (working class and peasant communities) by integrating traditional form with revolutionary content. In Treece’s analysis of how artists like Carlos Lyra and Sergio Ricardo integrated traditions like samba de morro (that is, samba originated in the favelas), he critically assesses how the artist’s socioeconomic status limited their work’s appeal to audiences outside their Avesso


148 Artigos V. 1 N. 1 2020

social circles (the middle class). He writes that Like the ‘poor little rich girl’ of the Lyra/Moraes composition, ‘Pobre menina rica’, the radicalised bourgeois intellectual-artist was trapped inside an inescapable social identity of illusory wealth and privilege, which were, of course, not illusory at all, but constituted real obstacles in the way of a genuinely classless, ‘popular’ solidarity (TREECE, 1997, p. 16). The author thus recognizes the contradictions in this new musical style which sought to bridge “the city and the favela” in fact highlighted the social distance between the two groups. He contextualizes this growing alienation in an increasingly industrialized and commercial society experiencing the stark growth of urban populations and the expansion of mass media. This analysis thus offers a great critical assessment of how class structure affects the protest song movement and, more importantly, it demonstrates one of the causes of the disillusionment that brought Tropicália to fame in 1968.

Brown University

Trecee does not directly engage with the Tropicália movement in this essay. As he writes, “a more detailed analysis of the Tropicalists’ work falls outside the scope of this article, other than to give an indication of the impact of their performances on the sectarian atmosphere of the 1968 Globo festival” (Treece, 1997, p. 26). However, the author seems to identify in 1968 a fertile ground for a musical style able to articulate the inherent tensions the traditional left faced in during this early period of artistic resistance. It seems that Tracee believes that it is precisely because Tropicalists identify “the complexities and contradictions of the new cultural climate of the ‘Economic Miracle’, and its combination of repression and massification”, that they were able to influence the next generation of protest music (TREECE, 1997, p. 26). It is surprising that Treece’s analysis lacks any discussion about the role of race in the musical developments of the sixties — especially since the “popular masses” the left intelligentsia sought to recruit

Avesso


were black or mixed race. The author understands the choice of artists like Baden Powell, Vinicius de Moraes, and Edu Lobo to incorporate Afro-Brazilian musical traditions like the samba de roda, candomble, and berimbau as a tool to invoke “a sense of collective identity in the communion of prayer, and also to mobilize its initiates for the struggles of life” (Treece, 1997, p. 21). However, he does not recognize the possible negative reactions black or mixed race audiences may have towards the appropriation of their traditional music. As the article was published in 1997, it is possible that issues around cultural appropriation were not part of his analysis because it was not an integral part of the intellectual debate of the time. On the other hand, this choice may also indicate a reflection of the cultural sensibilities of the sixties: while criticisms around class were prominent, the ethnoracial field in the 60s was still dominated by the myth of the Brazilian “racial democracy” (elaborated by sociologist Gilberto Freyre). Regardless of the motivation behind the author’s choice, the lack of a racial analysis of the protest song movement limits the author’s understanding of the popular appeal of artists engaged in a political form of cultural production.

149 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

TROPICÁLIA AND RISING RACIAL CONSCIOUSNESS In Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of a Brazilian Counterculture, Christopher Dunn delves into the rise and demise of the Tropicalist movement. In doing so, the author contextualizes the rise of tropicalismo in 1968 alongside prominent debates around modernity, nationality, and internationalism in Brazilian cultural and intellectual circles. Because of the broader scope of his analysis, he can integrate the main arguments of both Schwarz and Trecee in his book. For example, Dunn writes that With the growth of urban populations and the expansion of mass media, it became difficult to reconcile the popular with traditional associations with rural folklore. Nor could the “popular” be defined solely by the imperatives of political consciousness-raising as the CPC had proposed (DUNN, 2001, p. 68). This point is particularly clear after reading Treece, who outlines the incompatibilities of traditional interpretations of “popular.” Additionally, as both Treece and — to some extent — Schwarz articulate, Dunn understands the “cultural manifestations associated with Avesso


150 Artigos V. 1 N. 1 2020

Tropicália … [as] an expression of crisis among artists and intellectuals” (DUNN, 2001, p. 74). However, Dunn differs from both of these authors because he pays close attention to the effects of Tropicalia on the cultural production of the 1970s and 1980s. He writes that “In retrospect, the promulgation of AI-5 and the subsequent denouncement of the tropicalist movement seemed to have marked the end of the “sixties” as a cultural period in Brazil” (Dunn, 2001, p. 149). However, he is highly perceptive to how the structure and ethos of these artists continued to permeate in the next two decades. In the second portion of his book, the author draws a bridge between this movement and the emergence of an urban counter-culture after 1968. The key aspect of this counter-culture, known colloquially as the “desbunde,” is that it questioned the very notion of a unifying “national culture” through its aesthetics. In my opinion, the most important contribution of Brutality Garden lies in its considerations of race throughout the book. Though somewhat lacking in the first half of the book (though the section The Mestico Paradigm offered strong context), racial analyses are pertinent in the second half of the book as the author attempts to understand why questions of race became pertinent in middle-class circles in the 1970s and 1980s. It is important to emphasize once again that the discussion here continues to refer to a young and urban middle class. Dunn (2001, p. 155) recognizes that “the radical social and cultural movements of the early 1960s had attempted to introduce a classbased critique but were limited by paternalistic, and at times, ethnocentric populism”

Brown University

(keep in mind this further contextualizes the lack of discussion on racial issue in Schwarz’s ‘Culture and Politics’). To understand the shift in ideological preoccupations, Dunn employs an interesting analytical tool: outlining the dominant intellectual currents in both national and international political fields. This is particularly poignant when considering sociologist Tianna Paschel’s argument that the alignment

Avesso


of a fractured national ethnoracial field and a consolidated global ethnoracial field allowed for the success of black struggles in Brazil during the 1970s (Paschel, 2018). As described by Treece, the dominant discourse around “popular culture” during the sixties was in crisis following the failure of the protest song movement and the institution of AI-5. In the 1970s, however,

151 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

Dunn shows how “Young AfroBrazilians appropriated these cultural products [from African-Americans and African diasporas] and icons to challenge the nationalist ethos of brasilidade, which tended to obfuscate racial discrimination and inequality by exalting the mestico ethos” (Dunn, 2001, 178). The influence of this intellectual movement on tropicalist artists — notably on Gilberto Gil and Milton Nascimento — conditioned musicians to more readily engage with issues related to not only race but gender and sexual orientation as well. Identifying the prominence of racial discourse in music post-1968, Dunn would likely agree with Tianna Paschel’s sociological framework. Dunn also explores, like most academics on this topic, the connection between the events of 1968 and the youth’s conception of “national identity.” As he outlines in the first part of the book, the idea of a unitary national culture was challenged by the changing dynamics of the 1960s. The very notion of a unitary “Brazilian culture” became untenable due, in part, to the tropicalist intervention. By undermining prevailing notions of authenticity, it opened up new directions in popular music and ushered in diverse countercultural practices that were in dialogue with the related phenomena in the international sphere (DUNN, 2001, p. 214). Avesso


152 Artigos V. 1 N. 1 2020

The ability of hybrid-style of tropicalist movement to engage with transnational cultural flows which denounced racial inequality and articulated a black collective identity in the 1970s led to the rise of an urban counterculture that tended to identify more with racial minorities than with the previously abstract conception of a Brazilian “povo.” Though outside the scope of this essay, Dunn further explores the connections between this emerging Brazilian counterculture and the social and political movements of the late 1970s in his most recent book Contracultura: Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil. THE MIDDLE CLASS AND THE PERPETUATION OF AN AUTHENTIC MPB In The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music: Politics, Culture and the Creation of Música Popular Brasileira, Sean Stroud explores the symbolic role of MPB in contemporary Brazil. Like Dunn, Stroud is interested in the effects of 1968 on national culture throughout the 1970s and 1980s. His analysis, however, pays close attention to the consolidation of música popular Brasileira (MPB) as an authentic and legitimate expression of national culture. MPB is a genre of music that emerged in the late 1960s through the televised music contests. While it includes a number of tropicalist artists like Gilberto Gil, Caetano Veloso, and Gal Costa, it also made up of other like Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Maria Bethânia, João Bosco, Jorge Ben, Geraldo Azevedo, Ivan Lins, Alceu Valença and Simone. Its chameleon-like ability was highly influenced by Tropicália’s challenge posed to traditional conceptions of popular music in Brazil. As Stroud writes:

Brown University

Avesso

The impact of the revolutionary performances by Gilberto Gil and Caetano Veloso at the televised 1967 TV Record song festival ensured that MPB would never be the same: elements of Tropicalist experimentalism and a rock sensibility were gradually incorporated into MPB, even as


Tropicália itself withered (STROUD, 2018, ch. 1).

away

153 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

While one must be careful not to conflate the two movements, there is a clear connection in this new national consciousness between tropicalismo and MPB after 1968. The author describes how the Tropicália “rapidly came to be viewed retrospectively rather nostalgically as a reference point for innovation and audacity” (Stroud, 2008, ch. 1). The memory of 1968 is particularly interesting to the author who constructs his argument around the legitimation of this new musical genre in post-1968 Brazil. Because the author was less concerned with changing musical structures, his methodology differs significantly from that of Roberto Schwarz. Even though both authors are highly interested in the role of the middle class and the music industry on the development of an authentic national culture, they look 1968 from different perspectives. While Schwarz understands it as the end of the revolutionary experiment of the left to create a protest song music, Stroud looks at 1968 as the starting point of a period of “intense cultural activity” that was mediated by a growing industry. The scope and medium of their research further conditions their methodologies: it sometimes seems unfair to compare articles to books since they are much more limited by size. However, it is clear that Schwarz was more interested in the manipulations of musical structures and styles by politicized musicians hungry for revolution. Thus, it is unsurprising that his essay largely incorporates musical analysis to exemplify this evolution. Since Dunn dedicates a large portion of his book to the changing musical traditions that conflated in the Tropicália movement, his analysis also includes formal analysis of songs. He focused much more on the lyrical developments of tropicalismo while Schwarz emphasized changes to the musical form. All of these authors, however, include considerations of classic critiques from Mario de Andrade, Roberto Schwarz, and other pertinent cultural critics. Notably, Stroud looks at these works with a highly critical view. Since “particular emphasis was placed on the several interlocking roles of actors such as the press, the record industry, television networks, researchers and the state”, his work was more nuanced in that it sought to demonstrate Avesso


154 Artigos V. 1 N. 1 2020

how these forces consolidated música popular Brasileira as a legitimate representation of “national culture” after 1968. As he writes: That MPB has been assigned this role is due to several interconnected factors; the most important of which are the support and investment given to MPB by the record industry and the press, and the fact that for many years MPB was a cultural form that embodied political, artistic and social values that encapsulated for many the essence of the national (STROUD, 2008). Stroud thus demonstrates how this musical tradition was a result of its alliance with the record industry and the press: that is, the upper and middle class (Stroud, 2008). As a result of his insightful exploration of the music industry and its growing relationship with television, Stroud affirms that “the middle-class identity of MPB is the key to its hegemonic status” (Stroud, 2008): I have argued that MPB represents the concerted effort of a specific class within Brazilian society to define and express itself. That MPB was profoundly bound up with the history of the Brazilian middle class from the mid 1960s onwards is evident from its consumer profile, its political and ideological importance (during the period of the military dictatorship), and the various persistent interventions in support of MPB by actors such as the ‘musical class’, researchers and critics.

Brown University

Avesso

Stroud thus identifies the essential support of this ‘musical class’ — the gatekeepers of national culture representing dominant market and state forces — to the creation of MPB’s symbolic meaning as the true emblem of national culture in the remaining years of the military regime. Stroud’s interpretation of the legacy of 1968 on conceptions of national identity and culture is quite different than that of Dunn’s. While Brutality Garden and Contracultura understand 1968 as the beginning of the racially conscious urban counterculture in Brazil, with the Tropicalist proclamation of a ‘universal sound,’ Stroud sees it as the beginning of a new nationalist project ultimately led by the middle class.


155

CONCLUSION The Tropicália movement of 1968 has lasting effects on the national consciousness. The disillusionment of leftist artists during the changing sixties was captured by David Treece’s “Guns and Roses”. In the midst of rapid urban migration, industrialization, and commercialization, the Tropicália movement articulated the constant contradictions of this time through its use of allegory, first analyzed by Roberto Schwarz. In their books, Christopher Dunn and Sean Stroud consider the legacies of 1968 in relation to the development of a vibrant urban counterculture and the construction of a legitimized representation of national culture: MPB. In his conclusion, Sean Stroud (2008) writes:

Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

At the same time it is important to note the contradiction between the historical, ideological function of MPB as a ‘national treasure’ and the fact that not only is there a striking lack of support for Brazilian popular music at the state, institutional and academic levels but also that beyond the confines of the middle class the wider Brazilian public now appear to have minimal interest in the importance of MPB as a symbol of national identity. The author’s prediction that MPB would be rejected as a legitimate expression of a “popular” culture begs for more research. As such, further exploration of this topic should assess how MPB is seen by contemporary Brazilians, especially in the context of the recent 2018 presidential elections. As the country is currently experiencing a political crisis of comparable intensity to that of the sixties, the dominant conceptions of national identity today are once again being challenged.

Avesso


156 Artigos V. 1 N. 1 2020

TIMELINE 1930 - 1945: Getúlio Vargas’ regime, populist representations of samba-exaltação dominate national and international conceptions of Brazilian identity. 1950s: Rise of Bossa Nova, an Avante-garde movement created by Tom Jobim, Vinicius de Moraes, and Joao Gilberto Gilberto in the Zona Sul of Rio, it combined samba with foreign jazz influences; television introduced to Brazil. 1958: Manifesto of São Paulo’s concrete poets published. 1960 August: appearance of first Brazilian rock magazine, marks formal consolidation of U.S. rock’n’roll in the Brazilian market. 1962: Centro Popular de Cultura (CPC), a leftwing cultural organization, created by leaders of União Nacional de Estudantes (UNE) alongside left-wing artists, writers, and musicians to produce and disseminate “popular revolutionary art”; November 21, Bossa Nova concert in New York’s Carnegie Hall. 1962 - 1963: CPC takes cultural productions on tour through remote areas of the country. 1964 April 1st: Coup d’Etat removes President Joao ‘Jango’ Goulart from power and institutes a military regime. 1964: Show Opinião launched at the beginning of military dictatorship, articulates dissenting opinions and celebrations of folk music.

Brown University

1965: TV Globo, a new station, emerges with financial and technical support from military regime and American Time-Life media conglomerate; rise of televised song contests on TV Excelsior, TV Record and TV Globo. 1965 - 1968: TV Record releases television programme, O Fino da Bossa, with Elis Regina and Jair Rodriguez. 1967 March: Artur da Costa e Silva and hard-liners

Avesso


in military assume control, intensification of armed opposition. 1967 July 17: March Against the Electric Guitar led by musicians of Música Popular Brasileira (MPB).

157 Tathyana Mello Amaral A Popular Brazilian Music?

1968 March 28: military police shot Edison Luis in Rio de Janeiro during mass student demonstrations. 1968 June: Passeata dos Cem Mil brings many sectors of civil society including leading MPB artists to the streets of downtown Rio de Janeiro. 1968 July: Tropicália Ou Panis et Circenses released by a coalition of vanguard artists 1968 September: Finals of Third International Song Festival, “Caminhando” by Geraldo Vandre commands an audience of 30,000 but is denied the first prize. 1968 December 13: President de Silva e Costa institutes institutional Act 5 in response to further polarization, marks the beginning of the “anos de chumbo”. 1968 December: Gilberto Gil and Caetano Veloso are exiled marking the formal end of the Tropicália movement. 1968 - 1973: ‘Economic Miracle’ under military dictatorship, technologies like television and radio become widely available. 1970s: growth of MPB market and rise of a counterculture in Rio de Janeiro and São Paulo.

Avesso


158 Artigos V. 1 N. 1 2020

BIBLIOGRAPHY AVELER, Idelber. “Farewell to MPB”. In: _______. Brazilian Popular Music and Citizenship. Durham, NC: Duke University Press, 2011. DUNN, Christopher. Brutality Garden : Tropicália and the Emergence of a Brazilian Counterculture. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2001. _______. Contracultura: Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2016. Elis. Directed by Prata Hugo. Brazil: Downtown Filmes, 2016. DVD. LANGLAND, Victoria. Speaking of Flowers: Student Movements and the Making and Remembering of 1968 in Military Brazil. Durham: Duke University Press, 2013. PASCHEL, Tianna S. Becoming Black Political Subjects: Movements and Ethno-Racial Rights in Colombia and Brazil. PRINCETON; OXFORD: Princeton University Press, 2016. SCHWARZ, Roberto. “Culture and Politics, 1964 1969”. In:_______. Misplaced Ideas: Essay on Brazilian Culture. Edited by John Gledson. New York: Verso, 1992: 7-46. STROUD, Sean. The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music : Politics, Culture and the Creation of Música Popular Brasileira. Ashgate Popular and Folk Music Series. Aldershot, England: Routledge, 2008.

Brown University

TREECE, David. “Guns and Roses: Bossa Nova and Brazil’s Music of Popular Protest, 1958-68”. Popular Music, 16, no. 1 (1997): 1-29. “Panorama De Arte E Cultura”. Memórias Da Ditadura. December 13, 2017. http:// memoriasdaditadura.org.br/

Avesso


159

Avesso


160 Entrevista

Mariana Slerca 1 Gustavo Ruiz da Silva 2

V. 1 N. 1 2020

Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças 60’s echoes: Macro-structural impossibility, microstructural possibilities. With Júlia M. Rebouças

Graduanda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2 Graduando em Filosofia pela Universidade São Paulo e em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também é membro do Grupo de Estudos Michel Foucault da PUC-SP/CNPq. 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

Júlia Rebouças é curadora, pesquisadora e crítica de arte. Integrou a curadoria (2007 - 2015) no Instituto Inhotim. Foi membro do comitê curatorial do 18º e 19º Festival Internacional Sesc_Videobrasil (2012-2015). Foi curadora associada da 9ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (2013). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi curadora da exposição Entrevendo no SESC Pompéia (2019), maior antologia já exposta na América Latina sobre a obra de Cildo Meireles.


161 Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

Revista Avesso: Júlia como você começou a se interessar por arte e como foi a sua entrada no mundo da arte? Júlia Rebouças: Eu sou de Aracaju e estava estudando em Recife fazendo faculdade de Jornalismo e não tinha tido contato com artes plásticas ou visuais… Não tinha tido contato de modo geral, porque em Sergipe, até aquele momento, não tinha museu funcionando… Hoje tem um museu de cultura sergipana, museu histórico, enfim… Então, eu não tinha contato com artes plásticas e foi no Recife que fui pela primeira vez para uma exposição de arte contemporânea: foi uma exposição no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no começo de 2002. Era uma exposição da Rivane Neuenschwander3, curada pelo Moacir dos Anjos4, para mim, muito reveladora, forte, instigante… Eu não entendi exatamente o que eu estava vendo a princípio: “Por que isso está aqui?”, “Por que isso é dessa forma?”. A despeito de não conhecer artistas, de nunca ter tido essa experiência, eu fiquei muito tocada pelo que eu vivi ali. Então acho que foi a partir daí que eu comecei a me interessar mesmo: comecei a voltar várias vezes naquele museu, ia a todas as exposições, fui bater na porta do curador do Moacir perguntar: “O que você faz exatamente?”. Depois comecei a colaborar com um jornal escrevendo sobre arte contemporânea como estagiária ainda… Mas, naquela altura a Cristiana Tejo5 estava no Recife e trabalhava na Fundação Joaquim Nabuco e eu comecei a estagiar lá com assistência curatorial. Nesse sentido, o Moacir e a Cristiana foram pessoas maravilhosas, foram de alguma maneira me recebendo, desde me emprestar catálogos à conversar horas comigo… Eu começo aí, muito por esse afeto da experiência com exposição e do desejo de me relacionar com isso. Depois eu fiquei escrevendo muito tempo, na faculdade, junto a outras pessoas: Ana Maria Maia6 e eu éramos colegas de turma, então a gente montou um portal sobre arte contemporânea. O Jonathas de Andrade7, que é artista, fazia as fotos; a gente escrevia; um outro amigo Alberto Minhos fazia o design... Ali um grupo de amigos se reuniu para escrever. Na época era

Rivane Neuenschwander é uma artista plástica brasileira. Desde 1990, mantém regularidade em eventos de grande repercussão. Em 2004, foi a vencedora do prêmio Hugo Boss, da Fundação Guggenheim de Nova York. 4 Moacir dos Anjos é curador da Fundação Joaquim Nabuco. Foi curador do pavilhão brasileiro (Artur Barrio) na 54ª Bienal de Veneza, curador da 29ª Bienal de São Paulo, curador do 30º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna e co-curador da 6ª Bienal do Mercosul. 5 Cristiana Santiago Tejo é um dos nomes mais atuantes na cena curatorial do Nordeste. Dentre seus projetos, destacam-se a curadoria da Sala Paulo Bruscky na X Bienal de Havana e a curadoria do 32º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Atualmente é pesquisadora do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa. 6 Ana Maria Maia é curadora adjunta do Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo e faz parte do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake. 7 Jonathas de Andrade expôs em mais de 12 países, como: 3

Avesso


162 Entrevista V. 1 N. 1 2020

França, Coréia, Jordânia, Estados Unidos, Reino Unido etc. Foi ganhador dos Prix de la Francophonie, da 12ª Bienal de Lyon e do Future Generation Art Prize - Special Prize Winner, da Ucrânia. 8 O Instituto Inhotim (Brumadinho, MG) é a sede de um dos mais importantes acervos de arte contemporânea do Brasil e considerado o maior museu a céu aberto do mundo. 9 Suely Rolnik fundou o Núcleo de Estudos da Subjetividade no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP em 1979. Foi professora convidada (2007 - 2015) do Programa de Estudos Independentes do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Com Félix Guattari, é co-autora de Micropolítica: Cartografias do desejo. 10 Jochen Volz é Diretor Geral da Pinacoteca de São Paulo.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

o máximo fazer um portal, um site. [risos] E, me formando, eu já fui convidada para fazer residência em Inhotim8 como curadora. Me formei no final de 2006 e no começo de 2007 eu já estava me mudando para Belo Horizonte. A princípio eu ia ficar seis meses e acabei ficando oito anos [risos]. A residência virou um convite para entrar na equipe permanente. RA: E, a partir de Inhotim, você pode contar um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional? JR: Eu fiz mestrado e doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e nesse momento eu já tinha começado uma pesquisa relacionada à atuação dos artistas durante os períodos de repressão política: eu estava pesquisando os anos 60 e 70 no Brasil, durante a ditadura. Meu mestrado é sobre a prática do Artur Barrio nesse período, nessas duas décadas; um artista muito atuante e importante nesse momento, com uma prática muito experimental e política. Eu também, desde 2007, me aproximei da Suely Rolnik9, que foi uma espécie de mentora de pesquisa importante para entender um pouco as transformações de ordem poética, política e subjetiva que acontecem no momento em que alguém gera uma produção artística, um acontecimento de ordem poética em um ambiente de repressão política. Enfim, eu cheguei em Inhotim em um momento em que a instituição tinha acabado de ser aberta ao público. Foi um enorme privilégio poder pensar em um projeto institucional quase do zero, com o Jochen Volz10, Rodrigo Moura11, Allan Schwartzman12 e a Inês Grosso13. Era um grupo muito pequeno de pessoas e a gente tinha tudo para fazer: pensar coleção, exposições, projeto editorial educativo, captação de recursos, programas públicos e relação com a comunidade. Então foi um local onde eu pude também experimentar todas as facetas do trabalho curatorial, desde gestão até uma coisa de pesquisa profunda, de contato com os artistas… A gente tinha a oportunidade de trabalhar quatro, cinco ou seis anos com um mesmo artista desenvolvendo um único projeto - um tempo alongado que é muito difícil ter em outros contextos e projetos. Geralmente você tem uns seis meses para fazer uma exposição, você trabalha rapidinho com o artista… Então, Inhotim para mim foi a escola de tudo: pensar a arte na instituição em contex-


tos específicos, pensar o trabalho com o material, como ele pode se desenvolver… Tinha muito a ver com erros e acertos: houve experiências que não deram certo, experiências que foram mais bem sucedidas… E a instituição também era muito aberta, muito generosa no sentido de entender que a gente precisava fazer outros circuitos e outros trânsitos. Por exemplo, eu fiz a Bienal do Mercosul de 201314 em que eu fui curadora adjunta, fiz a 18ª e 19ª edição do Videobrasil15, comecei o mestrado e fiz algumas colaborações com a Suely… Foram projetos formadores: [isso] tem a ver com este percurso acadêmico e com este percurso institucional também que não se restringiu àquela instituição, mas que pôde transitar por outros espaços. RA: A sua tese de doutorado é sobre o Frederico Morais16 e no final dela você diz que o conjunto de atividades do Frederico são exemplos de um projeto crítico de descolonização do pensamento que tem na prática crítica curatorial e artística seu campo de exercício. Você poderia falar um pouco sobre ele e sua atuação? JR: O Frederico é esse sujeito que nunca estava se sentindo pacificado no papel que estava exercendo. Então, quando ele estava sendo crítico, ele estava de alguma maneira inquieto com sua posição, ele não aceitava o lugar do crítico hierarquicamente superior, a posição de um juiz, que tem que estar distante do meio artístico e não se relaciona com a comunidade... O que era, digamos, um jeito de pensar a crítica naquele momento, muitos dos pares dele atuavam desta maneira. Ele não, ele estava muito interessado no vivo contato, na relação com as pessoas, estar dentro do atelier dos artistas… E isso faz com que ações como “A Nova Crítica” sejam possíveis, quando ele vai pensar em um jeito de fazer crítica de arte não com texto, mas com outras obras: como elas podem ser uma crítica de arte. Isso não faz dele um artista, mas faz dele um crítico que atua a partir de outras linguagens. Ou então quando ele vai propor um trabalho como artista em uma exposição em que ele é curador - a própria prática de curadoria naquele momento não se chamava “curadoria” no Brasil: eram os anos 60, 70, era “organização de exposição.” Não tinha essa figura do curador, que só aparece nos anos 80. O Zanini17 que se auto-intitula pela primeira vez, assina como curador. Mas o Frederico, a posteriori, estava atuando como cura-

163 Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

Já foi Diretor de Programação da Serpentine Gallery em Londres e curador do Portikus, em Frankfurt, Alemanha. Foi também Curador-Chefe da 32ª Bienal de São Paulo, co-curador da 53ª Bienal de Veneza e da 1ª Aichi Triennial (Nagoya - Japão). 11 Rodrigo Moura (-1975) é ex-curador do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e atualmente é curador-chefe do El Museo del Barrio, em Nova Iorque. 12 Allan Schwartzman é fundador e diretor do Art Agency Partners e presidente da Divisão de Belas Artes de Sotheby. Atualmente é Diretor do Instituto Inhotim. 13 Inês Grosso (Lisboa, 1982) atualmente é curadora no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa. 14 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre: Se o clima for favorável. 15 18º e 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_videobrasil - Panoramas do Sul 16 “Frederico Morais ... está relacionado a … exposição Vanguarda brasileira (1966), o projeto Arte no Aterro (1968), a manifestação Do corpo à terra (1970), a exposição da Nova crítica Agnus Dei (1970), o projeto Domingos da criação (1971) são apenas exemAvesso


164 Entrevista V. 1 N. 1 2020

plos pontuais da atuação inventiva, crítica e desafiadora [ele] estabeleceu com seus contemporâneos, sobretudo artistas, uma relação de amizade e companheirismo que por vezes o distanciou de seus colegas críticos.” (REBOUÇAS, 2017, passim). 17 Walter Zanini (1925-2013) foi historiador, crítico de arte e curador. Foi um dos fundadores da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA). Foi nomeado Professor Titular Emérito do Departamento de Artes Plásticas da ECA/USP.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

dor: ele estava organizando exposições, fazendo curadoria de uma maneira muito experimental, muito rica, trazendo uma série de coisas que, se a gente comparar com os contemporâneos dele… Uma exposição que ele faz em 66, por exemplo, na reitoria da UFMG, que se chamava “Vanguarda Brasileira”, estava lidando com um conjunto de conceitos que a gente vai ver ao mesmo tempo, ou um pouco depois, em exposições muito importantes que acontecem na Alemanha e Estados Unidos…Ele estava de fato, de uma maneira pioneira e inédita, criando um ambiente possível para os artistas se desafiarem em termos de linguagem e conceito, para exercitarem outras formas de se manifestar. Até quando ele foi organizar um setor de cursos, imagina: ele fecha as salas e faz um conjunto de ações no Aterro do Flamengo, onde não usa a sala de exposição nem se propõem organizar uma, ele faz um happening no lado de fora. Ele convoca os artistas para fazer coisas que não são necessariamente arte, ampliando de uma maneira muito inventiva o que é possível fazer. Ele é um sujeito que vai incorporar a cidade à experiência artística. Pensar que todo mundo deve e pode se relacionar com arte de diversas maneiras, que não é um conteúdo elitizado, que não necessariamente precisa de um lastro; que todo mundo deve estar aberto para ter uma experiência estética, que todo mundo precisa. Então, se a gente pensar nessas coisas que hoje, podem parecer consensos... Imagina ele pensando e exercitando essas coisas em 60, é muito desafiador. Nos anos 70 ele fez uma viagem longuíssima pela América Latina para identificar quais são os artistas que estão produzindo; os pesquisadores, os críticos, os curadores… Estabelecer redes de um pensamento latino-americano e pensar suas especificidades. Quanto a própria ideia de arte conceitual, como se arte conceitual latino-americana fosse meramente uma versão local de uma coisa que foi criada nos Estados Unidos, ele vai mostrar que os tempos são outros: o que importa é pensar em uma outra rede de pensamento que não é um desdobramento local desta rede hegemônica. Neste sentido, eu acho que é um jeito de descolonizar a forma de entender, a forma de pensar nossas referências: como ele vai introduzir a importância das culturas indígenas e do pensamento afro-ameríndio na constituição de uma identidade brasileira. Até por isso, ficou meio sem lugar no campo, porque não estava reproduzindo o que se esperava…


165

RA: E como foi lidar com a construção de uma narrativa histórica de algo produzido e documentado de maneiras tão variadas e adversas, em um contexto tão brutal de violência? Como foi lidar com essa memória que ainda não estava bem elaborada?18 JR: Tem uma lacuna de entendimento sobre a história do Brasil de modo geral, poucas coisas que foram de fato estudadas e documentadas e isso está sendo feito um pouco agora. O arquivo da Aracy Amaral19 está sendo trabalhado agora, tem algumas série de publicações recentes sobre o Roberto Pontual, o Zanini… Isso tudo é um movimento recente, digamos… Mas eu tive um pouco de sorte, porque o Frederico é um cara que se auto-documentou muito: desde projetos, esboços, atas, cartas, fotos… Ainda que ele ainda não tenha sido documentado, estudado, como crítico, como curador, etc., tem agora um conjunto de trabalhos mais recentes sobre ele. [Apesar de] ele não ter sido documentado em seu tempo, ele escrevia no jornal, então há milhares de textos publicados do Frederico: ele publicou vinte e oito livros. Tem uma produção enorme para ser analisada, decupada, entendida, relida, re-acessada. De fato, contei muito com a memória prodigiosa dele: eu estava precisando de datas, depois fazia checagem de fontes no jornal, perguntava para outras pessoas, e tudo batia. [Por exemplo,] a ata do salão de Brasília: ele tem lá no arquivo o esboço manuscrito desta ata, depois ela passada a limpo, uma cópia mimeografada, a ata final assinada e depois as matérias de jornal derivadas daquele salão - ele recortava tudo e colocava na mesma pastinha. Como pesquisadora, eu encontrei um tesouro: um arquivo que estou digitalizando inteiro, então em breve a gente vai conseguir pesquisar por um banco de dados. Eu o convenci da importância [disso], que ele tem um tesouro mesmo da história da arte brasileira ali.

Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

Como explica Ana Maria Maia (2016): “Desmanchar a rigidez da estrutura material da obra e concebê-la como algo perecível e passageiro ... apresentava-se como estratégia para driblar a censura … A “desmaterialização da arte” era tática de guerrilha para artistas dessa geração, como Artur Barrio nas Trouxas Ensanguentadas (1969) ou Cildo Meireles nas Inserções em Circuitos Ideológicos (1970)”. 19 Aracy Abreu Amaral, nascida em 1930, é crítica e curadora de arte atualmente professora-titular de História da Arte pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Também foi diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. É membro do Comitê Internacional de Premiação do Prince Claus Fund (Haia - Holanda). 18

RA: Você hoje é uma “curadora independente”. Ainda assim, possui vínculos com instituições de arte e necessariamente está inserida em um sistema artístico. O que significa o termo “curadora independente” e qual a singularidade desta atuação no mundo da arte?

Avesso


166 Entrevista V. 1 N. 1 2020

JR: Eu não entendo muito o que é ser uma curadora independente, porque eu não sei que independência é essa [risos]. Este “independente” talvez se refira a não estar ligada a uma instituição. Mas ainda que seja em uma escala super alternativa você vai precisar de uma rede de relações e de apoio de toda ordem sempre... Acho que é um pouco com quem você quer falar e a partir de qual estrutura você quer trabalhar. Dependendo destas escolhas você escolhe quem são seus aliados, mais do que de quem você é dependente. A gente tem muitas escolhas a serem feitas o tempo todo. RA: Como você acha que uma instituição pode lidar com a dicotomia da arte como entretenimento e arte como experimentação política, estética, intelectual? E qual é o papel do curador nessas instituições?

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

JR: São coisas de naturezas muito distintas. A atividade artística faz parte da criação de uma cultura, faz parte de uma prática cultural, mas ela é diferente da experiência do entretenimento. Quando você faz entretenimento, normalmente você visa bilheteria, você visa marketing… Que são coisas importantes para a vida artística cultural também, mas você não necessariamente deve visar somente isso quando você está fazendo uma exposição de arte. Seria também bobo dizer que isso não é importante para a instituição de arte. Agora, há todo um trabalho, porque a arte está agenciando coisas muito mais complexas: muitas vezes o impacto de uma ação artística não pode ser medido por esses indicadores de público, repercussão midiática ou mídia espontânea… O curador precisa entender primeiro o que ele quer com o que está propondo. Nem todo mundo quer fazer experimentação. Tem muito curador que vai fazer só reiteração de cânones, que vai só replicar pesquisas, recontar histórias que já foram muitas vezes contadas mas que nem por isso é mero entretenimento. São conceitos e são coisas que não são necessariamente sinônimos: arte e experimentação, ou não-arte e entretenimento. Acho que são escolhas conceituais, é [questão de com] quais valores você quer se relacionar naquele projeto. É papel central da curadoria fazer, por exemplo, com que seu projeto experimental não seja alienado ou esvaziado por um desejo, às vezes, de um patrocinador, uma instituição, ou de outro curador de transformar aquilo em um evento de entretenimento. Tem muita gente que faz excelentes


curadorias para trazer as pessoas para as instituições e que mudam as dinâmicas. Mas é ruim quando só tem espaço para entretenimento e a gente para de ter espaço para, por exemplo, algumas coisas mais experimentais, porque elas não dão filas na porta. Quando se começa a condicionar as coisas à partir de uma única régua é ruim. Muitas vezes produções mais fáceis, que o público já conhece, coisas que já são consagradas, são muito importantes para atrair investimentos para uma instituição que depois vai usar esses recursos para fazer um projeto mais experimental que por si só não teria como se financiar. Acho que é papel do curador fazer todo esse jogo, que não é necessariamente “Ah, se vendeu, fez entretenimento barato”, ou “Que difícil, que sofisticado”.

167 Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

RA: Você poderia nos contar uma experiência sua na curadoria que evidencia o cruzamento entre a prática curatorial e uma possibilidade de construção ou transformação do discurso histórico? JR: Tem muitos jeitos de se pensar nisso. Não sei em que medida eu sou capaz de medir efetivamente a transformação. Eu sou contemporânea às minhas práticas, né? [risos]. Acho que todos artistas estão criando, de alguma maneira, narrativas críticas, e possibilitar que esses discursos sejam ouvidos por si só já é gerar uma fissura em uma narrativa histórica. Um exemplo recente: nunca tinha tido uma artista travesti, trans, não-binária expondo em uma lista oficial de artistas do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que tem 70 anos. No [36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão] tinham 2 artistas travestis, ainda que isso não signifique que as instituições incorporaram essas práticas, que há um lugar equilibrado… Ainda é um lugar completamente desequilibrado, as forças ainda são totalmente distorcidas. Mas eu acho que há sim uma ruptura que permita que outras práticas como essa possam existir em um ambiente como aquele. É um jeito de uma re-escritura histórica que começa a acontecer ali. Meu papel é muito mais criar os espaços para os artistas ocuparem, criar os espaços para as pessoas virem com as suas produções e acionarem esses mecanismos de transformação, mais do que como eu, ou meu texto… Eu sou uma facilitadora, agenciadora e intermediária.

Avesso


168 Entrevista V. 1 N. 1 2020

Mário Pedrosa escritor, jornalista, crítico de arte e ativista político brasileiro. Nos anos 40 foi pioneiro na crítica de arte moderna brasileira.

20

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

RA: As práticas conceituais são bastante úteis para se pensar a crítica institucional. Sei que não se pode pensar nas instituições de arte de maneira generalizada, mas gostaria de saber quais as funções que elas possuem hoje no Brasil ao seu ver. JR: As instituições de arte já passaram por muitos momentos. É curioso pensar que no começo da arte conceitual como crítica institucional. Por exemplo, nos Estados Unidos, o que as instituições representavam para os artistas nos anos 60 era completamente diferente do que as instituições representavam para os artistas brasileiros. Aqui não existia um mercado consistente de arte, uma prática de colecionismo azeitada, então as instituições - os salões, os editais, os prêmios - eram o meio dos artistas produzirem e financiarem suas obras. Então dizer “fora a instituição” não fazia muito sentido. Tínhamos figuras como o Mário Pedrosa20, Frederico Morais, Aracy Amaral, Zanini no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo… Eles eram agentes de instituições que estavam junto com os artistas. Por outro lado, a institucionalidade também significava um estado autoritário. Então existiam os agentes que viam o museu como lugar de experimentação, mas a ideia de uma instituição oficial naquele momento também era de um estado ditatorial, censor. Acho que a gente vê isso hoje de novo. Claro que há muitos problemas nas práticas institucionais, como o lugar de poder que as instituições exercem, quem as ocupa, que tipo de produção é gerado naquela instituição… A gente poderia discutir tudo isso, se tudo isso não estivesse sendo atacado. Pode ser melhor, mais bem estruturada, mais descentralizada, outros agentes deveriam compartilhar os meios de produção, mas quando a cultura está sendo posta em questão, acho que é função e obrigação de todos nós defendermos a existência desses lugares onde a criação é o motor. Acho que uma instituição de arte é isso: ela acredita que não há nenhum tipo de constrangimento que possa ameaçar o trabalho dos artistas. Então, para mim, as instituições voltam a ser o repositório do pensamento crítico. Elas são esse lugar onde a gente vai pensar outras formas de existir.


RA: Você coloca no final da sua pesquisa a importância de questionar em que medida impasses e questões colocadas nos anos 60 continuam ecoando na arte e na cultura brasileira e latino-americana. Queria que você falasse sobre esses ecos hoje. JR: Acho que a produção dos anos 50 e 60 repercutem diretamente na nossa atuação hoje, no nosso legado. É um dos tantos pontos de partida dos quais saímos. E eu acho que é um momento de muita abertura, era quase uma impossibilidade macroestrutural e uma possibilidade total microestrutural. Então é o momento da arte que você pode tudo, mas ao mesmo tempo, o contexto político brasileiro lhe permitia muito pouco. Diante de um impasse desse, há uma afirmação da liberdade, uma afirmação da diversidade, uma afirmação das múltiplas possibilidades de existência que tão ali nos anos 60 e 70 e que são fundamentais para existirmos hoje. Não só por termos chegado onde chegamos, mas para nos valermos dessa experiência, desse legado. Por exemplo, os Domingos da Criação21, eu fico imaginando quais instituições o fariam hoje. E ao mesmo tempo é fundamental a gente retomar práticas como essa. Não replicar esse exemplo, mas se imaginar em um lugar fora da norma e entender inclusive o que é que nos cerceia hoje. Para além de um estado proto-fascista, neo-autoritário no qual a gente está vivendo, o que nos cerceia? Como que é a construção de identidades? Como que a sociabilidade, os afetos operam hoje? Como que a gente imagina o futuro? É possível imaginar futuro? Não sei… Acho útil a gente recorrer a como essas gerações lidaram com suas dúvidas e questões não somente para conhecermos a nossa história, mas para a gente poder construir alguma coisa para amanhã.

169 Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

Para ver mais: GOGAN, Jessica (Org.); MORAIS, Frederico. Domingos da Criação: uma coleção poética do experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto MESA, 2017. 21

RA: O que volta ao nome da bienal que você foi curadora, sobre a incerteza… Incerteza Viva. JR: E essa incerteza é exatamente isso, ela não é simplesmente o medo… Esse medo que nos deixa estagnado, mas como a gente, à partir desse não saber, à partir desse desconhecimento, cria alguma coisa. RA: No MASP, você disse que fazia parte de uma rede de Avesso


170 Entrevista V. 1 N. 1 2020

Jorge Aníbal Romero Brest (1905-1989) foi um crítico de arte argentino influente e polêmico, vinculado à promoção de escolas de vanguarda entre as décadas de 1960 e 1970 na América Latina. Dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes e o Centro de Artes Visuais do Instituto Di Tella, em Buenos Aires. 23 Catimbau [Parque Nacional] (Pernambuco), considerado o segundo maior do Brasil, conta com diversos sítios arqueológicos, grutas, cemitérios pré-históricos e pinturas rupestres com mais de seis mil anos. 22

conceitualismo do Sul... JR: Sim, essa era uma rede que eu acompanhava o trabalho desde 2007. É, por exemplo, uma rede que está basicamente reestruturando esses fluxos. Estão dizendo: “olha, esse conceitualismo do Sul não necessariamente é um eco de um conceitualismo norte-americano e europeu”. Ele se estrutura de outra maneira. Os pares e as alianças são outros… Eu não tenho que passar pelos autores norte-americanos para chegar no Brasil. A sequência não é essa necessariamente. A sequência é outra. Não faz o menor sentido, na hora de estudar a obra do Frederico, pensar na obra dos curadores ou críticos norte-americanos. Para o Frederico, isso não era importante. Importante era o Mário Pedrosa, era a Aracy, colega dele, o Roberto Pontual, importante era o Zanini. O mestre dele era o Mário Pedrosa. Importante era o Romero Brest22, na Argentina. Por que que eu tenho que na minha revisão teórica, citar quatro ou cinco nomes norte-americanos para depois chegar nele? Não! Não vou citar. Porque essa rede é menos importante nesse contexto. Ela acontece em paralelo. RA: Quais pensadores e obras que mais lhe influenciaram e o que orientou e ainda orienta o seu pensamento curatorial, se assim se pode dizer.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de São Paulo 2

Avesso

JR: Se eu for citar agora vai ser restrito e eu vou ficar me arrependendo [risos]. A coisa que para mim é mais importante é estar com a arte, estar em contato e aberta para a experiência, seja do filme, livro ou música. Talvez a coisa mais importante na minha vida seja minha relação com música [risos]. Talvez eu tenha mais a ver com música do que com artes plásticas. Desde criança ouvindo música o tempo todo em casa, todo mundo gosta de cantar no final de semana, de se reunir para ler muita literatura brasileira e [ouvir] muita música brasileira. Acho que são essas experiências de cultura popular, de festas populares que eu sempre convivi muito. Do artista incrível que está no Vale do Catimbau23, que a gente para para conhecer, a produção do Cariri, do contador de história que você escuta na rua, do filme que você assiste… do Caetano Veloso que toca uma vez por dia na minha casa [risos]... É um amálgama de tudo isso… Não consigo escolher, mas acho que é fundamental estar imersa


nisso, dou absoluto valor ao entendimento de que todos esses circuitos são igualmente importantes. Nada se sobrepõe hierarquicamente ao outro. Enfim, acho que estar aberta a isso tudo. RA: Bem, acho que é isso... Muito obrigada pela entrevista.

171 Mariana Slerca Gustavo Ruiz da Silva Ecos de 60: Impossibilidade macroestrutural, possibilidades microestruturais. Com Júlia M. Rebouças

Avesso


172 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Harvard University

Avesso

Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

The following essay is an attempt to unify and contextualize much of the media coverage on Chile's protest waves throughout the end of 2019. Information was drawn from Chilean, Brazilian, and international English-speaking publications. After establishing a coherent timeline and narrative to the protests, I set out to understand the composition and dynamics of the protests. Finally, I explore possible causes and precedents to the Chilean crisis in education, healthcare, pensions, poverty and inequality.


173 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

This October was marked by protests all over Latin America. In countries such as Bolivia and Ecuador, they did not come as a surprise. After President Evo Morales` decision to run for a fourth term as president, many observers reported apprehension regarding Bolivia’s stability. Indeed, Morales won, and the Bolivian middle class went to the streets, gaining support from both the opposition and, crucially, the armed forces. Morales’ subsequent resignation triggered a massive wave of riots by indigenous groups and workers’ unions associated with his Movement Towards Socialism (MAS). This was quite a similar scenario to the protests in Ecuador, where President Lenin Moreno tried to implement an IMF-recommended budget cut. In both cases, protesters used violent means and had concrete demands: in Ecuador, they pleaded for the return of diesel subsidy, while in Bolivia they sought to return Evo Morales to office. In Ecuador, when President Moreno gave in to their demands, protests ended. In Bolivia a call for fresh elections in exchange for concessions to Morales supporters managed to appease both sides as well. This was not the case in Chile. From the very start the protests in Chile surprised observers with their huge size and often violent tactics. Despite a solid economic performance (above average in Latin America) and declining income inequality, a moderate increase in metro fares was able to unleash a profound social convulsion. For weeks high school students in Santiago had staged smaller, peaceful protests to little government response. Students would concentrate at the entrance of metro stations, right in front of the turnstiles, and then try to get into the train without paying the fare. Subway security eventually closed down multiple stations, forcing protesters out into the streets. As protesters took to the streets, bystanders started joining in. In response, Piñera released the army to contain the protests, which led to a major escalation of conflict. As some protests turned violent, President Sebastian Piñera followed Moreno’s example in Ecuador Avesso


174 Ensaio V. 1 N. 1 2020

and announced a reversal of the metro fare increase. However, he persisted with his law and order rhetoric and went on to declare “war” on violent protesters. All over Chile, ‘cacerolazos’ (Latin-American pan-banging protests) spread in support of the protesters. On the following day, protests intensified. Realizing the gravity of the situation, Piñera conceded once more to protesters by proposing a series of measures to expand public spending and increase pensions. He also came out to apologize on national television. In response, Chileans staged the largest protest in the country’s democratic history and the violence continued on both sides of police and protesters. At this point, there were 19 dead by police brutality and hundreds permanently blinded by ‘rubber bullets’ which were later found to contain lead. The crisis had become bigger than Piñera’s government. To no avail, the president tried to control damage by replacing his entire minister cabinet and cancelling the state of emergency (which likely served as pretext for police violence). Hated by the public and investigated by public prosecutors, the Armed Forces abandoned their mission to contain the protests. Gradually, chaos became the norm in Chile. A RETROSPECTIVE OF THE CRISIS October 18th. First series of violent protests - 11 people dead and more than 1500 arrested. Piñera is spotted casually eating pizza with his family in Santiago. October 19th. Piñera suspends the fare increase and declares a state of emergency. Protesters burn buses and metro stations. ‘Cacerolazos’ (pan protests) take place all over the country.

Harvard University

October 20th. Piñera’s declaration against the protests: “We are at war against a powerful enemy, implacable, who does not respect anyone or anything (...).” October 23th. Protests complete their sixth day with an additional 4 dead and thousands under police custody. Piñera “asks for forgiveness” and announces new proposals to address protesters demands. October 25th. Eighth day of protest reaches a

Avesso


climax with 1,2 million people in marching in Santiago`s Plaza Italia. Four more people die, and thousands are arrested. The OAS (Organization of American States) attributes violent actions to groups financed by Venezuelan president Nicolas Maduro.

175 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

October 27th. Piñera’s approval rate drops to a historic low of 12%. October 28th. In response to protests, Piñera announces a complete cabinet shift and declares the end of the state of emergency. The military refuses to further intervene in protests. October 30th. Chilean government cancels two international conferences, the APEC summit and COP-25. November 5th. Piñera gives an interview to the BBC, criticizing his own handling of the crisis and announcing the possibility for constitutional reform. November 7th. Protests continue in Chile. Piñera announces new laws against violent protests. November 11th. Piñera officially announces his intention to summon a constituent assembly. November 12th. Unions stage a major strike which affects most cities in Chile. November 15th. Congress officially announces a referendum on a new constitution December 4th. For the first time, Piñera admits ‘carabineros’ (national police) committed acts of unnecessary violence. Feminists stage their first large protest to the sound of “El Violador Eres Tú”, a provocative hymn against sexual violence. There was a clear pattern to the demonstrations: after each concession, Chileans returned to the streets asking for more. Finally, Piñera proposed a referendum on a new constitution and protests stabilized - but did not end. Piñera’s call for a new constitution was not just another concession by a beleaguered government. In fact, it marked a paradigm shift in their understanding of the crisis: it was not a political or economic crisis Avesso


176 Ensaio V. 1 N. 1 2020

anymore, but a crisis of democracy itself. As protesters chanted, it was not “for 30 cents, but for 30 years” of a democracy constrained by the country’s dictatorial past. Chile’s constitution dates back to 1990, when General Augusto Pinochet single-handedly approved it and handed back control of the state to civilians. Under constant threat of democratic breakdown and “market pressures”, Chileans had no choice for years but to accept a constitution approved by Pinochet despite its many failures and excesses. To cite a famous example: during the late 90s Pinochet himself had a permanent seat on the Senate. The state has undertaken piecemeal reforms in recent years, but protesters consider it “too little, too late”. Protests were organized by independent movements composed of students, pensioners, workers, as well as a bulk of non-affiliated individuals who joined in later. However, once protests took hold many of these political movements decided to compose a united front to negotiate with the government – called Mesa de Unidad Social (MUS). This body now represents hundreds of unions, pensioners’ groups, student and professor unions, and collectives but there are those on the streets who criticize its legitimacy. Among independent groups, there are several indigenous groups and anarchist collectives. The protests’ front line was led by the aptly-named Primera Linea, a masked leaderless collective that employs violent tactics in the face of police repression (much like the ‘yellow-coats’ in France, or Black Bloc groups elsewhere). However, much of the violence directed at storefronts was led by alleged criminal gangs which infiltrated the protests to loot.

Harvard University

Avesso

Even now new forms of political mobilization are giving rise to a radical democratic experiment. All over Chile neighbors are organizing ‘asambleas populares’ (popular assemblies) where they voice the concerns, hopes and ideas for the country and the new constitution. Large-scale unions and political movements have issued manuals on how to organize these discussions, but the organization of ‘asambleas’ is led mostly by independent citizens. In less mobilized areas, the city councils and universities have taken matters into their own hands by establishing ‘cabildos’. These are a forum for discussion


between citizens and public officials, a remnant of Chile’s colonial political structure which has been radically resignified in recent years. Chilean opinion polls registered most of protesters’ concerns. In a poll from October ran by Activa Research, for example, citizens mention “workers’ salaries”, “the price of basic services”, “economic inequality” as their main reasons for protesting. A poll run by Ipsos in the same month features two additional factors: “quality of healthcare” and “pension funds”. In summary, there are four central concerns: poverty and inequality, the pension system, education, and healthcare.

177 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

POVERTY AND INEQUALITY According to some sources, poverty and inequality are in decline in Chile. However, its rate of decline is hardly any different from the rest of Latin America where the 2000s commodities boom led to increased social spending across the continent. Researchers point to the recent reversal of commodity prices as well as international interest rates as a potential cause of upheaval across region (Castiglioni & Zucco 2016). This is allegedly the same tendency which led Latin America to democratic breakdowns in the late 1960s and redemocratization processes in the late 1980s. The question of whether Chile is particularly unequal (in comparison to Latin America) is also murky: some indicators rate Chile in the continent’s mid-tier (GINI Index), while other measures point to it as one of the most unequal countries in the region. The latter indicator (World Inequality Database) points to wage stagnation and a (controversial) rise in inequality in recent years as a possible explanation to the crisis. Additionally, racial perception still plays a big role in the daily life of Chileans. People with indigenous background still lag far behind in wages and suffer considerable prejudice in the region (PNUD). This might contribute to the growing sense of unfairness and inequality in Chile. EDUCATION Under Pinochet’s constitution, private enterprise substituted the state in most functions. To this day, all basic services (including water supply) are privately owned. Public education is very limited to poorer areas. Avesso


178 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Large swathes of middle-class families rely on a voucher system which allows students to choose between private schools. Meanwhile, the rich afford their own education as elsewhere. The quality gap between these three tiers of education is notoriously huge. While non-subsidized private schools rank among Finland and South Korea in PISA assessments, subsidized and public schools in Chile lag far behind among developing countries in Africa and Central America. On the university level, there are also serious obstacles. Low-income students from public high schools almost certainly cannot cut the grade to enter Chile’s high-quality public universities. In fact, about 80% of undergraduate students in Chile study in private institutions. These lesser-known private universities are often for-profit, a model which forces students to accrue incredible amounts of debt. These were the students at the frontline of protests in 2011 - dubbed back then as the ‘largest wave of protests in democratic Chile’ - with similar demands to today: affirming the universal right to education and rejecting its privatization. The roots of Chile’s strong student movement go far back to before the military dictatorship, when student leaders featured among the core of Allende supporters. After the 1973 coup, student unions were banned in Chile and its leaders persecuted or driven into exile. It took more than a decade of transition to democracy for student movements to remobilize. The first widespread protest to take an ideological stance against Chile’s neoliberal model of education was the 2006 “Penguin Revolution”, named after the blackand-white uniform worn by high schoolers who staged it. This was the clear precursor of the student protests against metro fares which sparked today’s social unrest. PENSIONS

Harvard University

Avesso

In the 1980s Chilean Junta brought liberal USAmerican economists (so-called ‘Chicago Boys’, due to their alma mater) to reshape the Chilean state in what turned out to be an ambitious political experiment*. Many of the ideas implemented were posited just years prior by liberal economist Milton Friedman. A national pension system based on capitalized private investment was a complete novelty but given the Pinochet’s


liberal economic leanings iron hand over the state, the government was able to implement it successfully. At the time, it was expected that future pensioners would receive at least 70% of their median earnings as workers. The private nature of investment would relieve the state of a huge economic burden, opening avenues for discretionary spending.

179 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

However, 30 years later many Chileans claim the system has not yielded the promised results. Indeed, recent estimates show that 50% of Chileans who retired in 2018 receive up to 48.000 pesos (64 dollars) which is far less than the minimum wage in Chile. Among all Chilean pensioners, that figure goes up to 151000 pesos (201 dollars – still about half of minimum wage). As a result, no province in Chile offers a median pension above the poverty line. As of 2019, 8 out of every 10 new pensioners will receive an amount below the poverty line. It is worth noting that in similar countries where the state supplements private contributions, such as Brazil and Argentina, the median pensioner receives a comparable amount. Admittedly, these states are also in much more debt than Chile and have implemented pension reforms in recent years. Another uncomfortable aspect of this system: it was imposed under military rule, but the military itself does not partake in it. Instead their pensions function under an entirely different system, with army officials earning a median monthly pension of 2 million pesos (2660 dollars). Even ordinary soldiers earn far above the general average at 806.000 pesos (1067 dollars) a month. HEALTHCARE In the current Chilean constitution there is no “right to healthcare� as in most other Latin-American countries. Instead, citizens have the right to choose between private and public insurance. In a similar way as the pension system, Chileans must dedicate at least 7% of their income on insurance. In Chile there are mostly ancillary public healthcare providers, namely urgent care and preventive health centers. There are also public hospitals, but they are responsible for only a third of the total medical hours in Chile, despite serving about 80% of the population. Avesso


180 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Its services are far from perfect: many Chileans suffer with long waiting lists for routine procedures, as well as absenteeism by doctors and staff. CONCLUSION Chileans have plenty of reason to be upset despite the country`s apparent stability and economic growth. However, the protests have taken a significant toll on the economy and the state. In many cities most public services have been stopped and public infrastructure has been damaged. In Santiago, for example, traffic lights are currently turned off, while metro stations are closed for repair. As result of months of protests and violence, international investors are seeking more secure markets elsewhere. There are also political risks. Chile’s attempt to rebuild the constitution and renew its political class imply big risks for its democracy in a world where authoritarian populism is spreading fast. Some commentators fear that continued radical demonstrations in Chile might open the way for leaders on the political extremes to successfully run for president.

Harvard University

Avesso

In Latin America there are precedents for upheavals shifting voters to both sides of the political spectrum. In Brazil, a wave of protests in 2013, which were triggered by a rise in metro fares, were the catalyst for center-left Dilma Rousseff`s ouster and the subsequent electoral win by far-right president Jair Bolsonaro. In Venezuela, intense grassroots mobilization contributed to the 2002 “Bolivarian” constitution which paved the way for far-left Hugo Chavez’ rise to political hegemony. Chavez’ heir, President Nicolás Maduro, has imposed a quasi-dictatorship in the country. Severe human rights violations, complete mismanagement of the economy, a break with democratic order rank among the incumbent’s achievements. Yet it is too early to say which path, if any, Chile will follow.


181

BIBLIOGRAPHY: Bolivian Army chief urges Morales to step down, BBC, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// www.bbc.com/news/world-latin-america-50369591

Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

RAMOS, Daniel, U.N. warns Bolivia crisis could 'spin out of control' as death toll mounts, Reuters, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.reuters. com/article/us-bolivia-election/u-n-warns-boliviacrisis-could-spin-out-of-control-as-death-toll-mountsidUSKBN1XQ0HY RAMOS, Daniel. Bolivian leader agrees to withdraw military in deal to 'pacify' country, Reuters, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://in.reuters.com/ article/bolivia-politics-idINKBN1XY0H7 GDP Growth – Chile, World Bank, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP. KD.ZG?end=2018&locations=CL&start=1986 GINI Index (World Bank estimate), World Bank, 2019, Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://data. worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?locations=CL BAEZA, Angélica, Evasión masiva de alumnos del Instituto Nacional en el Metro termina con denuncia en Fiscalía y medidas de contención, La Tercera, 2019. Visto em 16/02/2020 Disponível em: https://www.latercera. com/nacional/noticia/evasion-masiva-alumnos-delinstituto-nacional-metro-termina-denuncia-fiscaliamedidas-contencion/857409/ Interview with Chilean student protesters Pablo Celis, Ana Gallegos, and José Flores. Após protestos violentos, Piñera cancela aumento na tarifa do metrô, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/mundo/2019/10/apos-protestos-violentos-pineracancela-aumento-na-tarifa-do-metro-em-santiago.shtml SILVA, Daniela, Se reportan cacerolazos en distintos puntos de Santiago y protestas se extienden Avesso


182 Ensaio V. 1 N. 1 2020

a regiones, La Tercera, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.latercera.com/nacional/ noticia/se-reportan-cacerolazos-distintos-puntossantiago/868763/ Revelan alta concentración de plomo en perdigones de Carabineros de Chile, Telesur TV, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.telesurtv. net/news/estudio-plomo-perdigones-carabineroschile-20191122-0002.html Em resposta a manifestantes, Piñera troca núcleo de seu governo, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/mundo/2019/10/em-resposta-a-manifestantespinera-troca-nucleo-de-seu-governo.shtml Fiscalía chilena investiga 840 denuncias por violaciones a los derechos humanos, Deutsche Welle, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. dw.com/es/fiscalía-chilena-investiga-840-denuncias-porviolaciones-a-los-derechos-humanos/a-51060748 Em resposta a manifestantes, Piñera troca núcleo de seu governo, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/mundo/2019/10/em-resposta-a-manifestantespinera-troca-nucleo-de-seu-governo.shtml 'Não estou em guerra com ninguém', diz chefe da defesa no Chile; mortes chegam a 11, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/10/nao-estouem-guerra-com-ninguem-diz-chefe-da-defesa-no-chilemortes-sobem-a-11.shtml

Harvard University

Presidente do Chile vai a pizzaria durante protestos e foto viraliza, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ internacional/ultimas-noticias/2019/10/20/presidentedo-chile-vai-a-pizzaria-durante-protestos-e-foto-viraliza. htm Após protestos violentos, Piñera cancela aumento na tarifa do metrô, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/mundo/2019/10/apos-protestos-violentos-pineracancela-aumento-na-tarifa-do-metro-em-santiago.shtml

Avesso


Manifestantes queimam ônibus em Santiago após Chile declarar estado de emergência, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1. folha.uol.com.br/mundo/2019/10/chile-decreta-estadode-emergencia-apos-protestos-em-santiago.shtml

183 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

SILVA, Daniela. Se reportan cacerolazos en distintos puntos de Santiago y protestas extienden a regiones, La Tercera, 2019. Disponível em: https://www.latercera. com/nacional/noticia/se-reportan-cacerolazos-distintospuntos-santiago/868763/ Sexto dia de protestos no Chile, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/ galerias/1648216142231630-sexto-dia-de-protestos-nochile#foto-1648216142351976 Protestos no Chile somam 15 mortos, e Piñera se desculpa pela crise, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/mundo/2019/10/numero-de-mortos-devido-aprotestos-no-chile-chega-a-15.shtml Piñera pide perdón y anuncia un paquete de medidas para enfrentar la crisis chilena, El País, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://elpais.com/ internacional/2019/10/23/america/1571801980_305291. html Grande marcha toma Santiago em 8º dia de protestos no Chile, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/mundo/2019/10/congresso-no-chile-e-esvaziado-emmeio-a-manifestacoes.shtml Encuesta Criteria: Rechazo a Presidente Piñera llega a 84 por ciento, Cooperativa, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.cooperativa. cl/noticias/pais/politica/encuestas/encuestacriteria-rechazo-a-presidente-pinera-llega-a-84-porciento/2019-11-27/195018.html Em resposta a manifestantes, Piñera troca núcleo de seu governo, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/mundo/2019/10/em-resposta-a-manifestantespinera-troca-nucleo-de-seu-governo.shtml Avesso


184 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Chile cancela realização de duas reuniões internacionais devido a protestos, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/10/chile-cancelarealizacao-de-duas-reunioes-internacionais-devido-aprotestos.shtml WATSON, Katy; Raúl, Fernanda, Entrevista a Sebastián Piñera: "Estamos dispuestos a conversarlo todo, incluyendo una reforma a la Constitución", BBC, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. bbc.com/mundo/noticias-america-latina-50298552 Chile tem novo de dia de atos antigoverno; confira fotos de hoje, Folha de São Paulo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://fotografia. folha.uol.com.br/galerias/1649520414674934india-tem-1-neve-da-temporada-veja-fotos-dehojw#foto-1649579807045638 Sebastián Piñera anunció un paquete de medidas contra las manifestaciones violentas y los saqueos en Chile, Infobae, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.infobae.com/america/ america-latina/2019/11/07/sebastian-pinera-anuncioun-paquete-de-medidas-contra-las-manifestacionesviolentas-y-los-saqueos-en-chile/ IGLESIAS, Margarita; VALDÉS, Ximena, Calle, Asambleas y Cabildos, Le Monde Diplomatique, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. lemondediplomatique.cl/2019/12/calle-asambleas-ycabildos.html Pulso Ciudadano: Crisis en Chile, Activa Research, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// www.activaresearch.cl/es/news/estudio-especial-pulsociudadano-crisis-en-chile-octubre-2019

Harvard University

Movilizaciones sociales de Octubre 2019, Ipsos, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https:// www.iab.cl/2019/10/24/informe-ipsos-movilizacionessociales-octubre-2019/ Social Panorama of Latin America 2018, CEPAL, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. cepal.org/en/publications/44396-social-panorama-latin-

Avesso


america-2018 CAMPELLO, Daniela; ZUCCO, Cesar, O peso de choques externos na democracia na América Latina, NEXO Jornal, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2019/10/22/ O-peso-de-choques-externos-na-democracia-naAm%C3%A9rica-Latina

185 Pietro Leite A revolution in Chile. But where is it headed?

GINI index (World Bank estimate) - Chile, Argentina, Brazil, Uruguay, Bolivia, World Bank, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://data.worldbank.org/ indicator/SI.POV.GINI?locations=CL-AR-BR-UY-BO Chile protests: Is inequality becoming worse?, BBC, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. bbc.com/news/world-latin-america-50123494 Income inequality, Chile, 1964-2015, World Inequality Index, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://wid.world/country/chile/ PNUD (2017). Desiguales. Orígenes, cambios y desafíos de la brecha social en Chile, Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.undp.org/ content/dam/chile/docs/pobreza/undp_cl_pobrezaLibro-DESIGUALES-final.pdf CASTILLO, Dante; TORRES, Mario, Me gustan los estudiantes, Le Monde Diplomatique, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. lemondediplomatique.cl/2019/12/me-gustan-losestudiantes.html FREIXAS, Meritxell, El sistema de pensiones chileno enriquece a las grandes empresas a costa de los jubilados, Público, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.publico.es/economia/pensioneschile-sistema-pensiones-chileno-enriquece-grandesempresas-costa-jubilados.html Pensiones bajo el mínimo, Fundación Sol, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: http://www. fundacionsol.cl/estudios/pensiones-bajo-el-minimo/ CASTRO, José Roberto, É justo (e viável) uma Previdência por capitalização?, Nexo Jornal, 2019. Avesso


186 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www. nexojornal.com.br/expresso/2019/05/10/%C3%89justo-e-vi%C3%A1vel-uma-Previd%C3%AAncia-porcapitaliza%C3%A7%C3%A3o Pensiones por la Fuerza, Fundación Sol, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: http://www.fundacionsol. cl/estudios/pensiones-por-la-fuerza-2019/ Cómo funciona el Sistema de Salud en Chile, Superintendencia de Salud, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: http://www.supersalud.gob.cl/ difusion/665/w3-article-17328.html#accordion_0 LARRAÍN, Alberto. 13 cosas de la crisis de salud pública en Chile que probablemente usted (ni el ministro Manalich) no conoce, El Quinto Poder, 2014. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.elquintopoder. cl/salud/13-cosas-de-la-crisis-de-la-salud-publicaen-chile-que-probablemente-usted-ni-el-ministromanalich-conocen/ PAÚL, Fernanda, Protestas en Chile: las 6 grandes deudas sociales por las que muchos chilenos dicen sentirse "abusados", BBC Mundo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/ mundo/noticias-america-latina-50124583 Metrô de Santiago fecha após tumulto em protesto contra aumento nos preços das passagens no Chile, G1 Globo, 2019. Visto em 16/02/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/10/18/ metro-de-santiago-fecha-em-meio-a-protestos-contraaumento-no-preco-de-passagens-no-chile.ghtml

Harvard University

Avesso


187

Avesso


188 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível “Not her” or the attempt to construct the representation of an unintelligible genre

BUTLER, Judith. “Problemas de gênero”, 2019, p. 43.

1

Trecho da dramaturgia “Não ela”, de Lucas Miyazaki, 2019.

2

Dentro desse texto, serão utilizadas várias nomenclaturas para designar a identidade de gênero dos corpos em jogo, a fim de situar de que perspectiva se tem determinadas construções e discursos. Dito isso, uma pessxoa transgênera é qualquer pessoa que não se identifica com o gênero designado por sua genitália: uma pessoa com falo que não se identifica enquanto homem ou uma pessoa com vulva que não se identifica enquanto mulher. A partir desse campo de experiência denominado “trans”, existem as pessoas trans binárias, isto é, que correspondem em suas identidades ao escopo dual “homem”

3

Universidade de São Paulo

Avesso

“Em sendo a ‘identidade’ assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de ‘pessoa’ se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é ‘incoerente’ ou ‘descontínuo’, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas”1. “Eu não sei muito bem o que é esse título e nem como ele se encarna no mundo. Porque esse título não sou eu. Esse título me escapa por completo. E é para uma pessoa que ele faz referência. (...) ‘Não ela’. Isso pode causar um rombo também. Dependendo da forma com que for posto no mundo. Olha bem: Um ELA, que vem como um soco. O ELA desse título. Essa pessoa, com útero, apesar de não ser ela. Essa pessoa, apesar de eu chamar de amor e estar casada comigo“2.

Em outubro de 2019, me deparei com um desafio que me pareceu suficientemente trabalhoso e instigante: criar um experimento teatral em que eu, uma pessoa trans não binária3, estivesse em cena sem me colocar eu mesmo em relação a mim, mas sendo sempre situado por um outro; uma dramaturgia que não fosse minha, mas da perspectiva singular de um homem cisgênero4, heterossexual e, ademais, meu então marido; um jogo de ponto de vista, um embaralhamento de lugares de


fala, de perspectivas. Assim, a pesquisa se desenrolou da seguinte maneira: eu, como uma espécie de direção, fazendo perguntas e provocações para ele em relação à maneira como ele me percebia, nos percebia, percebia meu corpo, minha identidade de gênero, nossa articulação afetiva. Ele, então, enquanto dramaturgo, produzindo textos que se transformariam em um monólogo dele, mas que seria dito em cena exclusivamente por mim. Esse monólogo seria gravado por ele, eu ouviria a gravação ao vivo em cena e declamaria em tempo real para o público o monólogo que eu estava ouvindo5. À frente do palco, haveria outro fone, com o áudio em execução sincronizado ao meu, para que o público pudesse ouvir a voz dele, e entender que aquelas palavras eram dele, apesar de estarem sendo encenadas e materializadas para o público por mim. Isso de fato foi experimentado e levado a público duas vezes: na mostra “Dramas paralelos”, dentro do festival Satyrianas (2019), e na abertura de processo do laboratório de criação (2019) orientado pela diretora, dramaturga e atriz Janaína Leite. Ambas as vezes tinham mais o propósito de testar o material – entender a partir do contato com o público como as imagens-texto e imagens-corpo estavam se articulando e se tensionando – do que se constituir como uma apresentação propriamente, no sentido de algo convencionalmente pronto para ser exibido. Isso porque entendíamos que estávamos no percurso de entendimento do que significava essa sobreposição de perspectivas, essa tensão entre esse corpo-vivo-dramatúrgico-objeto-escultura transgênero e essa imagem-voz-monólogo cisgênera: quais efeitos estéticos, perceptivos, discursivos estavam sendo gerados ali, e que tipo de construção daquele corpo em cena estava sendo feita para o público naquela articulação. Este breve ensaio tem o intuito de refletir acerca das problemáticas que entram em jogo quando se tem em questão a presença de um corpo com um gênero desviante, que extrapola o escopo normatizado de percepção de gênero. Uma vez que esse corpo existe, ele se insere no campo de percepção intersubjetivo de seu entorno – sua qualidade de estar presente constitui sua possibilidade de ser percebido. Entretanto, por se tratar de uma configuração performativa que não encontra um padrão correspondente de inteligibilidade de gênero passível de ser reconhecida como tal, o que se instaura é um abismo entre o ser presente no mundo e sua pró-

189 Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

ou “mulher”, estando aqui as mulheres trans e os homens trans; existem também as pessoas trans não binárias, cuja identidade de gênero não corresponde à designada por sua genitália, mas tampouco encontra um correspondente em uma construção binária homem/ mulher. Alguns exemplos de gêneros que pertencem ao espectro não binário são o gênero neutro, o gênero fluido, o bigênero, entre outros. É importante ressaltar que identidade de gênero não tem uma relação direta com identidade sexual, sendo um a maneira como uma pessoa se situa em relação ao seu gênero, enquanto o outro, o modo como alguém se relaciona afetivamente e sexualmente com outras pessoas. Denreta com identidade sexual, sendo um a maneira como uma pessoa se situa em relação ao seu gênero, enquanto o outro, o modo como alguém se relaciona afetivamente e sexualmente com outras pessoas. O termo cisgênero é utilizado para designar uma pessoa que não é transgênera, ou seja, uma pessoa cuja identidade de gênero é análoga às construções culturais normativas e espera-

4

Avesso


190 Ensaio V. 1 N. 1 2020

das de gênero: uma pessoa com vulva que se identifica enquanto mulher e uma pessoa com falo que se identifica enquanto homem. A importância do uso do termo cisgênero para designar uma pessoa reside no modo como sua presença evidencia a cisgeneridade como um atributo pessoal tanto quanto a transgeneridade: não se trata de um padrão, mas de um tipo de identidade de gênero, que denota experiencias e construções diferentes em relação às das pessoas que se identificam enquanto trangêneras. No teatro, a essa técnica em que um áudio ouvido ao vivo é usado como texto pelo ator é dado o nome de “verbatim”.

5

Universidade de São Paulo

pria realidade, por essa não encontrar respaldo interperceptivo: por não ser reconhecido como reconhece a si, ele é, no limite, real apenas para si. Assim, o como elaborar um corpo cuja legitimidade de realidade não encontra alicerces suficientes para se estabelecer dentro de uma rede interperceptiva tornou-se uma questão a priori da experiência dessa peça e extremamente vital para sua pesquisa: como representar esse corpo em cena? Como materializá-lo, atestá-lo? Quais os recursos estéticos e discursivos? Essa questão, oriunda de uma espécie de necessidade pessoal misturada com um interesse de investigação cênica, é o que pretendo esboçar aqui, intercruzando minha experiência pessoal, o processo de pesquisa desse trabalho, e um material teórico que dialoga com as questões levantadas. Entendo progressivamente que o trabalho de pesquisa cênica denominado “Não ela” consistia em uma construção de um corpo não inteligível a partir da perspectiva do outro. Em primeiro lugar, é necessário se perguntar sobre as razões pelas quais as dinâmicas de reconhecimento se tornam turvas quando se entra em jogo um corpo trans não binário. Pode-se dizer que para que o indivíduo seja reconhecido enquanto si é necessário que ele seja também reconhecível, isto é, que seus arranjos perceptíveis realmente o sejam, que ele possa ser lido pelo outro que o percebe. Dessa maneira, faz-se necessário desenhar qual o sentido intersubjetivo de um gênero: que tipo de articulações estéticas – arranjos visuais, gestuais, comportamentais – se concatenam e de que modo devem fazê-lo para que exista um juízo comum e regular de que se trata de um homem, ou uma mulher, ou uma outra coisa. Essa noção de gênero aponta para um escopo intersubjetivo que funciona primordialmente em um regime performativo: não se trata de uma existência a priori de um gênero, este como um atributo essencial do ser, mas ele aqui se dá enquanto comportamento delimitado e performado para um outro. O gênero, então, se constrói a partir da relação entre o modo como o ser se manifesta performativamente e a maneira como o outro reconhece e se relaciona com o que percebe: à risca, o gênero é constituído efetivamente por sua performatividade, por sua realidade intersubjetiva. A consequência radical dessa exposição, em que se tem o gênero como única e exclusivamente a sua performatividade, é a sujeição da realidade objetiva do ser ao reconhecimento por parte do outro: se o outro não

Avesso


o reconhecer enquanto o gênero que ele se identifica, sua realidade é exclusivamente autônoma e, portanto, sem estatuto objetivo, o que a torna não muito diferente de um delírio. Acredito que a angústia de não ter uma realidade objetiva incontestável e contínua dentro do cenário cultural e relacional em que me insiro foi o que me moveu a pesquisar essa então peça de teatro que passamos a chamar de “Não ela”: se o teatro é o lugar que possibilita a elaboração estética para que haja algum tipo de modulação da vivência e da percepção, para que a minha experiência pudesse se manifestar coletivamente enquanto realidade era necessário que ela se expandisse para além do alcance da minha perspectiva e do meu lugar de fala pontual. Dessa maneira, a premissa do trabalho – ser um corpo trans sendo narrado e percebido por um outro corpo não trans – me instigou como hipótese de um mecanismo necessário para que uma existência não normatizada pudesse ser desenhada para um outro: revelar o modo como o outro me percebe – revelar, portanto, essa relação – me pareceu uma maneira possível e interessante de construir fenomenologicamente esse corpo. No ponto em que esse outro que me lê é uma pessoa muito próxima afetivamente de mim – meu marido – essa exposição do olhar do outro é ampliada em suas camadas de complexidade: de que maneira o que ele sabe sobre mim, sobre a minha identidade de gênero, sobre como eu me percebo, colide e se atrita com a maneira como ele me percebe em um plano pré-discursivo. De certo modo, estávamos colocando à prova o quanto a minha performatividade como pessoa trans não binária de fato funciona para um outro, isto é, para esse campo intersubjetivo capaz de legitimar objetivamente minha identidade de gênero: quase uma exposição-diagnóstico que revela o quanto eu me faço perceptível enquanto pessoa trans, e, ao mesmo tempo, de que maneira o imaginário coletivo cis binário normativo opera em nossos níveis perceptivos imagéticos pré-discursivos, de modo a me reconhecer como um corpo trans ou não.

191 Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

Assim, o primeiro ato dessa peça em processo então acontece dessa maneira: são projetadas regras, em que se lê que o que x performer dirá foi escrito inteiramente pelo dramaturgo; x performer então se apresenta, se presentifica para o público, numa espécie de mistura de signos – roupas “masculinas”, um corpo “feminino”, cabelo curto, uma voz “feminina” que diz as palavras, um discurso em que se atesta sua transgeneridade, seu Avesso


192 Ensaio V. 1 N. 1

descolamento de uma auto percepção enquanto mulher cisgênera. O dramaturgo, sentado na plateia, assiste à cena.

2020

Aqui acontece uma tensão de três qualidades: entre o corpo e a apresentação desse corpo dx performer – como ele aparece, se revela para o público; entre essa imagem e o texto que é dito; entre o lugar de fala dx performer e do dramaturgo. Essas tensões construídas encontram seu ponto nevrálgico, como já antes insinuado, na noção que Judith Butler traça acerca da performatividade de gênero. Ora, se os gêneros se dão através de uma relação entre construção, apresentação, percepção e reconhecimento, é justamente as descontinuidades na apreensão das imagens – visuais e textuais – que se desvelam para a plateia que o espectador se depara com a problemática posta sobre sua própria percepção em relação a identidades de gênero.

Universidade de São Paulo

Avesso

Sobre o que concerne a construção do corpo apresentada para o público – suas roupas, sua voz, seu corpo, seus gestos – se tem uma imagem que remete, dentro desse universo histórico-cultural perceptivo, a uma mulher, ao passo que as escolhas visuais tensionam uma construção inteligível do que é uma mulher: o sexo biológico, um corpo com vulva, o que historicamente se ambienta enquanto indícios perceptivos de um corpo feminino; a camiseta e a calça “masculinas”, o cabelo curto, a falta de maquiagem, os tênis, a gestualidade precisa e pontual, marcas de um gênero culturalmente construído atrelado ao masculino. O que reside dessa combinação


enquanto efeito? A percepção de um aparente feminino não convencional – ou ao menos distanciado do referencial imediato estabelecido de um feminino – é possível justamente por conta do diálogo instaurado entre a provocação visual que o corpo dx performer explora em sua exibição e o repertório histórico cultural de expectativa e apreensão de um feminino consolidado. Esse jogo entre a matriz cultural de percepção de gênero homogênea e o embaralhamento entre elementos visuais dx e nx performer pode ser entendido como um primeiro e imediato recurso cênico e performativo que se dá em vista do reconhecimento desse corpo como um não mulher, ou ao menos um não-mulher-como-se-historicamente-consolidou-o-espaço-inteligível-“mulher”.

193 Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

Trecho da dramaturgia “Não ela”, de Lucas Miyazaki, 2019.

6

Talvez isso bastasse para delimitar esteticamente um corpo que é um não-mulher. Entretanto, vivemos em um mundo em que, felizmente, a percepção acerca do que é uma mulher se ampliou: se analisarmos a progressão representativa do movimento lésbico, exemplo em que essa diversificação do referencial do feminino se deu de maneira mais acentuada, podemos ver que ganhou espaço no imaginário coletivo uma série de representações de mulheres que se utilizam de recursos performativos que remetem ao masculino – o cabelo curto, as roupas largas – sem deixarem de serem lidas, auto identificadas e coletivamente reconhecidas enquanto mulheres. Assim, por mais que essa diversificação da imagem cultural do escopo “mulher” seja, ao meu ver, extremamente positiva, a missão de fazer ser um corpo trans com vulva – para que ele seja de fato lido como não mulher – requer um esforço maior do que o imediato recurso do embaralhamento visual de signos convencionalmente masculinos a um corpo convencionalmente feminino.

Avesso


194 Ensaio V. 1 N. 1 2020

O que nos leva para a segunda qualidade de tensão presente nessa elaboração cênica: a imagem que se apresenta dx performer e o texto que é dito por ele. O texto é construído de maneira que progressivamente são lançadas pistas de que se trata de um corpo transgênero – mecanismo esse que o dramaturgo explora a partir da tentativa declaradamente intelectual e discursiva de diferenciar esse “não ela” de outros “elas”, do “ela” que habita seu imaginário, inclusive em relação ax performer – por mais que, discursivamente, saiba que não se trata de um “ela” – na tentativa de construir para si mesmo esse espaço de percepção de um não-ela. Universidade de São Paulo

Avesso

Você me sugeriu começar por uma despossessão geral para pensar a arte, e tudo o que eu consigo pensar é um grande ELA, que certamente você não é. Uma das minhas elas. Você é diferente! Você é trans. Você é o meu amor. E isso foi uma tentativa de explicar o título, talvez, sim. Merda. Está vendo como eu sou um teórico?6


O uso imperativo do adjetivo “trans” presente no texto para designar o corpo que a plateia contempla é quase radical na estratégia de não deixar dúvidas de que se trata de um corpo não-mulher. Essa frase – “Você é trans.” – surge como um atestado objetivo, por parte de um outro, um outro que ocupa o mesmo espaço de percepção da plateia, de que se trata de fato de um corpo trans. Entretanto, seria ingênuo alegar que tal frase se bastaria como um estatuto real sobre esse corpo: se trata mais de uma informação discursiva que a plateia, assim como o dramaturgo, apreendem e elaboram, do que algo que já estava acontecendo na experiência perceptiva. Desse modo, se a imagem construída pelo corpo dx performer em conjunção com o texto em que se afirma uma transgeneridade não são concretamente suficientes para que o público assimile instantaneamente um corpo transgênero, qual é o efeito real que essa concatenação de elementos produz?

195 Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

Trecho da dramaturgia “Não ela”, de Lucas Miyazaki, 2019.

7

É interessante aqui ressaltar que o processo do dramaturgo de criação do texto – processo esse provocado e dirigido por mim – se construiu justamente nessa tensão: um impacto de inteligibilidade possível entre o que eu digo sobre mim, isto é, me digo trans, e o que se lê, se percebe em relação a mim, isto é, que eu não pareço ser trans, uma vez que eu não correspondo às representações socialmente coletivas atuais de uma pessoa transgênera. Talvez precisamente nessa chave resida a potência dessa pesquisa e do texto construído Avesso


196 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Universidade de São Paulo

Avesso

pelo dramaturgo: eles residem no ponto de fricção em que o observador se encontra entre a identidade que eu autodeclaro e a identidade que é apreendida fenomenologicamente sobre mim. Aqui não existem respostas: a esse meu corpo – pelo menos nesse momento histórico linguístico em que nos encontramos – não basta a afirmação visual ou informacional para que ele seja percebido como um corpo trans. Isso nos encaminha para a terceira qualidade de tensão presente nessa elaboração cênica: entre o lugar de fala dx performer e do dramaturgo. Se a maneira como meu corpo – eu – performa sua transgeneridade não se basta para que o escopo interperceptivo a reconheça e, desse modo, a valide enquanto real, por não encontrar um correspondente inteligível no imaginário histórico presente de percepção de gênero, então talvez seria necessário operar em uma negatividade. Assim se deram meus esforços enquanto provocador e diretor dessa pesquisa: uma série de perguntas tecidas por mim que impulsionassem o dramaturgo a expor a maneira como ele não me percebe de fato enquanto pessoa trans, por mais que ele me ame, me respeite e saiba que é assim que eu me percebo. Isso justamente porque ele apenas dizer que legitima minha identidade não a tornaria de fato real – nem para ele, e nem para um público – em um campo pré-linguístico. Em última instância, ele apenas estaria dizendo o que eu gostaria de ouvir. Desse modo, me interessou mais a exposição da maneira como ele de fato me percebe, de como seu imaginário histórico se relaciona com a minha presença. E pra começar, porque agora acho que já dá pra começar de verdade, depois do preâmbulo artístico deste teórico, uma vez que temos definido tempo e espaço, agora eu digo ELA. Vamos esquecer o NÃO do título; eu sou o dramaturgo da peça e o esposo disso aqui. E eu quero pronunciar completa e perfeitamente a sonoridade produzida pela abertura vocálica desse único pronome: ELA. E me refiro novamente a essa pessoa. Esse corpo, e digo, apontando: ELA. Abrindo a boca com as duas vogais mais abertas do alfabeto: A e É; intermediadas pela consoan-


197 Oliver Olívia Lágua

te que coloca a ponta da língua lá no céu da boca. Uma palavra alta e sublime. E assim eu delimito isso aqui. Esse corpo. E assim eu começo a dizer as coisas da peça. Eu digo ELA pois é um corpo com buceta; eu digo ELA porque isso tem cabelos longos e loiros ou ao menos tinha eu digo ela porque isso é um pele macia e lisa e com finas camadas de penugem eu falo esse som aberto porque tem cílios compridos e uma estatura mediana, de 1m60 que eu não estranho e nem contesto; porque isso aqui se encaixa bem nos meus braços e se enrosca no meu peito; Eu digo ELA porque isso tem coxas e uma bunda que pode muito bem ser apalpada como uma bunda, pela sua propriedade de bunda. ELA porque isso tem pés ossudos e suaves que tocam o pau quando fica duro. ELA que tem peitos enormes, peitos fartos que dariam muito leite a uma cria. ELA que produz algo que sempre me ocorre quando eu fico de baixos das tetas enormes que me colocam em seu colo e depois derramam a sua voz sobre o que eu já nem sei o que seja. Essa voz de uma ELA que não é. Sobre mim, posso quase dizer, menino dentro desse buraco, dentro desse grande ELA quando eu, solto nessa coisinha de nada, com o resto, o princípio antes do tempo. Esse grande ela que depois me inunda com seus peitos e voz. Esse ELA que agora eu ouso dizer: a minha esposa. Sim, vamos ser claros: a minha esposa. Você funciona como uma esposa querida7.

“Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

Falo em negatividade pois aqui reside o recurso cênico desse texto estar sendo dito pelo meu corpo em cena, e, desse modo, os pontos de vista se embaralham: é na exposição radical da percepção concreta que uma Avesso


198 Ensaio V. 1 N. 1 2020

Universidade de São Paulo

Avesso

pessoa muito próxima de mim tem de fato sobre mim, em fricção com a minha presença perante o público, que talvez um vislumbre de uma potência perceptiva transgênera em relação a mim seja possível. Meu corpo – até então – nunca poderia ser um “não ela” sem antes ser um “não ela”. É necessário o ela escancarado, o imaginário histórico inteligível e possível de um gênero consolidado em um campo perceptivo, para que se habite enquanto ruído na encenação um não ela e, a partir desses ruídos, talvez, possa ser aberto um campo para que de fato seja percebida e reconhecida essa outra coisa: essa outra identidade que no momento presente é inteligível perceptivamente, porém, não obstante, não menos real. A negatividade me parece a melhor tentativa no agora para criar aberturas de percepções de existências plurais que transcendam o escopo binário, e que lugar melhor para se expandir o imaginário através da modulação estética da experiência do que o teatro? Talvez algum dia não precisaremos do “não” do título.


BIBLIOGRAFIA BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e a subversão da identidade. 18ª. ed. Rio de Janeiro RJ: Civilização brasileira, 2019. BOSCO, Francisco. Violência e sociedade do espetáculo. In: NOVAES, Adauto. Fontes passionais da violência. 1ª. ed. São Paulo SP: Edições SESC, 2015. cap. 3, p. 35-57.

199 Oliver Olívia Lágua “Não ela” ou a tentativa de construir cenicamente a representação de um gênero não inteligível

FÉRAL, Josette. Além dos limites: Teoria e prática do teatro. 1ª. ed. São Paulo SP: Perspectiva, 2015. PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. 1ª. ed. São Paulo SP: N-1 edições, 2017. MIYAZAKI, Lucas. Não ela, dramaturgia, 2019.

Avesso


200 Tradução V. 1

Heitor Fagundes Beloch3 Eleni Voultsiadou e Apostolos Tatolas2

N. 1 2020

A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega1

Palavras Chave

Estudar a composição faunística da Grécia e áreas adjacentes por volta de 3000 anos atrás baseando-se no conhecimento do homem homérico sobre o reino animal. Local: Grécia e áreas adjacentes.Método: Análise de informações derivadas de um estudo meticuloso dos primeiros documentos escritos da literatura grega, os épicos atribuídos a Homero e Hesíodo.Resultados: Encontraram-se 2442 registros, que correspondem a 71 diferentes nomes de animais. Todos nomes de animais foram atribuídos a táxons recentes, em diferentes níveis de categoria; a maioria (65%) foi atribuído a táxons no nível específico e o restante a táxons supra específicos. A maior parte dos nomes de animais registrados nos épicos foram mantidos como palavras inteiras ou como raízes no grego moderno, e foram usados na formação dos táxons científicos em latim. Cinco filos de animais aparecem nos textos: (1) cordados (majoritariamente aves e mamíferos), (2) artrópodes, (3) moluscos, (4) poríferos, e (5) anelídeos. Os épicos também incluem informações sobre a morfologia, biologia, ecologia (habitats e relações predador-presa), e comportamentos dos animais. A presença de várias espécies na área nesse período é documentada por registros arqueológicos e/ou paleontológicos em várias localidades gregas. Principais conclusões: O conhecimento do homem homérico sobre os animais, como refletido nos épicos, parece ter se concentrando principalmente, mas não exclusivamente, em animais envolvidos em atividades humanas. As populações de algumas espécies de animais comuns em áreas de cultura grega na época homérica se tornaram extintas ou reduzidas no tempo presente. Por outro lado, alguns animais comuns atualmente não aparecem nos épicos, já que foram introduzidos posteriormente. Informações zoológicas úteis podem derivar do estudo de textos clássicos, o que pode servir aos biogeógrafos históricos como um suplemento à arqueologia e à arte, na reconstrução das faunas de períodos antigos.

Época homérica Distribuição faunística Animais na antiguidade Extinção Período geométrico Grécia Zoogeografia histórica.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Avesso


201

INTRODUÇÃO Cientistas têm buscado evidências paleofaunísticas e paleoambientais na tentativa de melhor entender a vida animal e o meio-ambiente do passado, as intervenções humanas e o impacto subsequente em faunas regionais. Paleontólogos estudaram materiais osteológicos encontrados em sítios arqueológicos gregos durante escavações. Baseando-se nesses achados, eles chegaram a conclusões interessantes sobre a relação entre o homem e os animais em épocas passadas, como no Pleistoceno (Jarman, 1996) ou no início do período histórico; por exemplo no período Geométrico (Tsoukala & Hatzi-Valianou, 1996; Wilkens, 1996). Outro ângulo de abordagem é pelo estudo da arte. Fontes iconográficas frequentemente fornecem evidências úteis aos zoólogos. Por exemplo, vários autores tentam reconhecer e registrar os animais retratados nas pinturas, vasos e estatuetas minoicas (VANSCHOONWINKEL, 1996). Além da arqueologia e da arte, também pode-se extrair informações úteis dos documentos escritos pelas civilizações antigas. A época de Homero foi um momento crítico da história grega. Ela é o período Geométrico tardio, cobrindo os séculos VIII e VII a.C. Nela houve o desenvolvimento do alfabeto grego e a aparição dos primeiros documentos da literatura grega, os épicos, em duas formas principais: o épico heroico representado por Homero e o épico didático representado por Hesíodo. Os épicos, apesar de questionáveis como documentos históricos, constituem fontes úteis para historiadores e arqueólogos em suas tentativas de entender a cultura das primeiras comunidades históricas. A “comunidade homérica” reflete três períodos cronológicos diferentes (Latacz, 1997; Mazarakis Ainian, 2000): (1) préhistórico (principalmente micênico), (2) intermediário (correspondendo à Idade das Trevas, cobrindo os séculos XI à IX a.C), e (3) o século VIII a.C (o período em que viveu Homero). Os dois últimos formam o dito “período geométrico”. Uma quarta camada, que é mítica, parece ter sido uma invenção da imaginação do poeta. Langdon (1993) considera que a relação dinâmica entre a arte e a poesia assinala tanto o clímax quanto o fim da época de Homero. A presença de animais se faz conspícua tanto na arte quanto nos épicos do final do período Geométrico. Esses primeiros documentos

Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Agradecemos a T. Sofianidou e V. Goutner por sua ajuda com o reconhecimento de espécies de animais, além de S. Gkelis e D. Vafides pelo encorajamento e pela melhoria do texto e dos diagramas. Devemos gratidão a S. Kokkini, N. Krigas e A. Dardioti por inspirar o primeiro autor pela busca de informações biológicas em textos clássicos. 2 Eleni Voultsiadou é Professora Assistente do Departamento de Zoologia da Universidade Aristóteles de Tessalônica, tendo também obtido graduação na Faculdade de Filosofia da mesma universidade. Ela ensina Zoologia e Biologia Marinha e seu campo de estudo é a taxonomia e a zoogeografia, com foco em invertebrados marinhos, especialmente esponjas. Recentemente interessou-se pelo estudo de textos e arte clássicos como fontes de informações zoológicas e biogeográficas das faunas de períodos antigos. Apostolos Tatolas é um aluno de pós-graduação na Escola de Biologia, tendo o mesmo interesse pela vida animal na antiguidade. 3 Artigo originalmente publicado no Periódico de Biogeografia (J. Biogeogr.) (2005) 32, 1875–1882. 4 Optou-se por manter o texto e formato original do resumo, 1

Avesso


202 Tradução V. 1 N. 1 2020

tal com publicado pelo autor. Manteve-se também a forma original das referências no texto.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

escritos na língua grega contêm informações valiosas sobre as relações do homem homérico com os animais. Além do mais, o resultado de seu estudo ajudará zoólogos e zoogeógrafos históricos a reconstruir a fauna da época. Esse ensaio apresenta uma lista comentada de todos os animais que aparecem nos épicos, e tenta atribuir os nomes clássicos desses animais a táxons recentes e comparar a fauna representada nos textos com a do tempo presente. NOMES CLÁSSICOS E TÁXONS RECENTES Como mencionado acima, primeiramente fez-se uma tentativa de registrar todos os animais que aparecem nos textos da época de Homero e correlaciona-los com táxons recentes. Para obter tal resultado, de acordo com a documentação histórica da literatura grega clássica do período (Lesky, 1971; Easterling & Knox, 1985), os seguintes textos foram estudados: Ilíada (I) e Odisseia (O) de Homero, Teogonia (T), Os trabalhos e os dias (D), Escudo de Héracles (E) e Catálogo de mulheres (C) de Hesíodo, e os Hinos homéricos (H) escritos após a morte de Homero. As edições padrão dos Oxford classical texts foram usadas junto a traduções válidas em grego moderno como as de Doukas (2000), Lecatsas (1941, Zacharopoulos Press, Atenas), e Papaditsas e Ladia (1997, Estia Bookstore Press, Atenas). Primeiro, checou-se todos os versos em busca de registros de animais. A correlação de nomes de animais a táxons recentes foi possibilitada pela combinação de informações incorporadas em nomes de animais (a maioria dos quais foram mantidos no grego moderno) com descrições morfológicas e/ou informações sobre a ecologia, biologia e comportamento apresentados nos textos. Onde possível, isso foi sustentado por evidências arqueológicas ou paleontológicas. Todos os dados acima foram avaliados com uma variedade de livros e ensaios zoológicos (Nowak, 1991; Handrinos & Akriotis, 1997), além de enciclopédias e léxicos gerais ou especializados (Encyclopedia Papyros Larousse Britannica; Liddell e Scott: Great dictionary of the Greek language; Kofiniotis: Homeric Lexicon). As obras de Aristóteles (i.e. História dos animais) também foram consultadas. Além desse material, consultou-se vários especialistas em diferentes grupos taxonômicos. Teve-se cuidado em ser o mais preciso possível

Avesso


ao atribuir nomes clássicos a táxons modernos. Como resultado, em vários casos em que havia a ausência de evidências claras nos textos, preferimos sugerir um táxon superior ao invés de um gênero ou espécie específico. O fato de o grego moderno ter retido um nome clássico não foi em si suficiente para identificar uma espécie, como demonstrado pelos exemplos abaixo. Devemos entretanto, acentuar a continuidade da língua grega, desde os poemas homéricos ao presente, fato relatado por vários autores (Browning, 1983; Babiniotis, 2000; Doukas, 2000). É notável que a maioria das palavras homéricas seja usada da mesma forma e muitas com o mesmo sentido no grego moderno. Adicionalmente, em vários casos a etimologia provou ser essencial para reconhecer os animais. Alguns exemplos são: κυνοραϊστήζ (κύων = cão + ραίω = destruir), ήμίονος (ήμι = metade + όνος = asno), παρδαλις (παρδαλός = pintado), πολύποες (πολύς = muitas + πού = pernas).

203 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Não considerou-se necessárias justificativas detalhadas para os nomes de animais domésticos bem conhecidos como o cavalo, a vaca, a cabra, a ovelha, o asno, o porco; além do leão, do lobo, da abelha-melífera, do urso-pardo ou da foca-monge. Entretanto, em alguns casos o nome científico recente de um animal não foi tão evidente, ou os autores tiveram de decidir entre várias espécies relacionadas. Os diversos exemplos dados abaixo demonstram como identificou-se certos animais com evidências dadas pelos textos. O nome ήμίονος άγρότερος (Ilíada, II.852) foi atribuído à espécie Equus onager (asno selvagem) devido ao adjetivo άγρότερος (selvagem) e a informação dada sobre sua área de origem, algum lugar no norte da Ásia Menor. A distribuição conhecida dessa espécie cobre a área ao redor do Cáucaso, Mar Negro, Anatólia e Irã, apesar de suas populações estarem muito restritas atualmente devido à caça e destruição de habitats. Esse animal foi diferenciado de ήμιονος (mula) que é frequentemente relatado nos épicos e foi reconhecido como o híbrido de Equus asinus e Equus caballus. O animal chamado de έρωδιός (garça) (Ilíada, XI.274) foi identificado como o socó-dorminhoco, ou goraz, Nycticorax nycticorax já que é descrito como ativo durante a noite. Μυία (mosca) foi reconhecido como uma espécie da família Calliphoridae devido ao fato de botar seus ovos em ferimentos ou corpos em decomposição. Αϊζ άγρίη foi atribuído à cabra-selvagem, Capra aegagrus Avesso


204 Tradução V. 1 N. 1 2020

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

por conta da descrição de seu habitat (Odisséia, IX.118– 124) e o comprimento de seus chifres (Ilíada, IV.105). O nome δελφίς (golfinho) provavelmente corresponde à espécie mais comum, Tursiops truncatus devido à sua cor prateada e ao fato de aparecer em bandos muito próximo da costa (Escudo de Héracles, 207–212; Ilíada XX.122). Ιψ (broca-da-madeira), apesar de ter sido usado na construção do nome do gênero Ips da família Scolytidae (cujos membros vivem na madeira), foi atribuído a um membro da família Dermestidae, já que relata-se que se alimenta de objetos feitos de partes de animais, como o arco de Odisseu. A espécie Falco peregrinus (falcãoperegrino) foi associada ao nome κίρκος (um tipo de ave de rapina) pois é descrita como sendo muito veloz, tendo o hábito de nidificar em penhascos rochosos em montanhas e em predar pombos selvagens. Cuculus canorus (cuco) foi reconhecido sob o nome κόκκυζ por seu canto característico mencionado por Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 486). Cygnus cygnus (cisne-bravo) é a espécie por trás do nome κύκνος (cisne), devido ao seu chamado penetrante (Hinos homéricos, XXI.1). Πολύπους (possuindo muitas pernas) provavelmente se refere a espécie Octopus vulgaris (polvo-comum); sua distribuição em águas rasas facilita a observação de seu tálamo (Hinos homéricos, III.77). O nome τήθεον, apesar de ser referido em alguns léxicos como “um tipo de bivalve”, foi reconhecido como uma ascídea (classe Ascidiacea), já que uma descrição detalhada desses animais é feita por Aristóteles sob o nome τήθυα (História dos animais, 531a9–31). A esponja comercial comum Hippospongia communis, que tem o maior número de grandes canais, possivelmente se esconde por trás do nome σπόγγος (esponja) (Odisseia, I.111, XXII.439), enquanto χέλυς é a tartaruga Testudo marginata, uma espécie endêmica da Grécia com uma grande casca que teria sido usada por Hermes para fazer sua lira (Hinos homéricos, IV.24– 48). Finalmente, χελιδών (andorinha) deve ser atribuído à andorinha-das-chaminés, Hirundo rustica, que é observada mesmo dentro de construções (Odisseia, XXII.239) e foi representada em pinturas em paredes de Tera (MASSETI, 1997). Ao todo 2442 registros de animais, correspondendo a 71 diferentes nomes foram revelados após um estudo meticuloso dos épicos homéricos e hesiódicos. Todos os nomes de animais foram correlacionados a táxons atuais (tabela 1) em diferentes níveis de categoria; a maioria (65%) foi assinalada a espécies e o remanescente

Avesso


a táxons supra específicos. Do total de 2442 registros de animais mencionados, 1283 foram encontrados na Ilíada, 783 na Odisseia, 178 nos Hinos homéricos e 195 nas obras hesiódicas. Somente três dos animais registrados, a formiga, o cuco, e o corvo, foram encontrados exclusivamente em Hesíodo, enquanto muitos animais encontrados nos épicos homéricos não aparecem no primeiro. A tartaruga aparece exclusivamente no quarto hino homérico.

205 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Adicionalmente, cerca de 100 registros que não foram incluídos nos cálculos acima eram nomes comuns de grupos de animais como ίχθύς (peixe) e ορνις (ave), ou termos zoológicos descrevendo partes de corpos de animais, e.x. κέρας (chifre), λοφίη (crina), ούθαρ (úbere), μηρίον (coxa) e γαμφηλή (maxilar). Como visto na tabela 1, 56 dos 71 nomes de animais em grego clássico (79%) encontrados nos épicos aparecem no grego moderno, de acordo com o Léxico da língua grega moderna (Babiniotis, 2000). Em alguns casos eles não têm exatamente a mesma forma do grego clássico, entretanto ainda retêm o tema principal. Além do mais, 61 deles (86%) foram usados na formação de nomes científicos latinos. Essas estimativas foram baseadas nos catálogos de espécies de certas publicações, como Honacki et al. (1982) e Howard & Moore (1991). O amplo uso de palavras gregas na nomenclatura zoológica é refletido pela série de regras presentes no Código internacional de nomenclatura zoológica (Ride et al., 1985) governando sua transliteração e latinização. A contribuição de elementos gregos à nomenclatura e terminologia de alguns grupos de animais chega a 80% (VOULTSIADOU & GKELIS, 2005). O HOMEM HOMÉRICO E SEU CONHECIMENTO SOBRE O REINO ANIMAL Os dados apresentados na tabela 1 evidenciam que, baseando-se nos épicos, o conhecimento do homem homérico sobre os animais envolve 5 filos. Dos táxons de animais relatados nos textos examinados, cerca de 81% eram cordados, 14% artrópodes, 1.5% moluscos, 1.5% poríferos, e 1.5% anelídeos (fig. 1). Dentro dos cordados, houve a prevalência de aves e mamíferos, representando respectivamente, 48% e 41% do total de cordados Avesso


206 Tradução V. 1 N. 1 2020

registrados. Tunicados, peixes e répteis apareceram com porcentagens baixas (2%, 4% e 5%, respectivamente). Mamíferos e aves, além de serem facilmente reconhecíveis, eram mais familiares ao homem da época devido ao seu envolvimento em atividades humanas: trabalho agrícola e transporte (gado, cavalo e mula), caça (javali, cervo, lebre, leão), alimentos e vestimentas (cabra, ovelha, porco), construção de artefatos domésticos e bélicos (gado, cão, cabra), oferendas aos deuses (gado, ovelha), e simbolismo (e.x. leão, coruja, grou). Isso é evidenciado pelo número de registros de cada animal nos textos estudados. Os animais mais frequentes são: o cavalo (com 30% dos registros totais), o gado-bovino (14%), o porco (8%), o cão (7%), a cabra (7%) e a ovelha (7%). Esses seis animais constituem 73% do total de registros. Alguns animais aparecem frequentemente em metáforas usadas para descrever o comportamento ou a aparência humana. A coruja, por exemplo, é mencionada nos textos somente pelo adjetivo γλαυκώπις que significa ‘tendo olhos brilhantes’ ou ‘com olhos cinzentos’. Obviamente, a proeminência desses animais nos textos não significa necessariamente que grandes densidades ou populações de corujas existiam naquela época. Invertebrados e pequenos vertebrados não parecem ter sido de grande interesse ao homem da época, com a exceção de algumas espécies de interesse econômico (úteis ou danosas às pessoas ou seus animais domésticos). Exemplos são a abelha-melífera, a esponja-comum, a ascídea, a mutuca, e o carrapato. O conhecimento da fauna marinha também parece limitado. Os únicos animais marinhos mencionados são a foca-monge, uma espécie de cação, a enguia-europeia, o golfinho-roaz, o polvo-comum, e uma espécie de ascídea comestível. Peixes são relatados de maneira geral como ίχθύες e o mar é frequentemente chamado de ίχθύες πόντος que significa “mar repleto de peixes”.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Avesso

Os textos demonstram o conhecimento do homem homérico sobre a ecologia e comportamento dos animais. Na maioria das vezes, as informações dadas são sobre o habitat e relações predador-presa. Comportamento, dieta e migração também são discutidos em diversos casos. Treze táxons são relatados mais do que três vezes em relação às suas ecologias e comportamentos: o cão é o mais frequente (17%) devido ao seu envolvimento na caça e na proteção de animais domésticos. Alguns


animais (lobo, chacal, falcão-peregrino, leão, leopardo) são relatados como sendo predadores ativos, outros são relatados como presas (cervo-vermelho, corça, cabra-selvagem, lebre-comum, gado doméstico, ovelha e porco), caçados tanto por humanos quanto por animais. Nessa segunda categoria encontramos várias espécies de aves, como a gralha, o pombo-dasrochas, o pardal-doméstico, o pombo-torcaz, o gansocomum e o estorninho. Relações parasíticas também são mencionadas, como as dos besouros dermestídeos, e dos carrapatos. Informações interessantes sobre o os habitats de vários animais aparecem nos textos, às vezes ajudando na sua identificação. Gansos, cisnesbravos e grous são mencionados vivendo em grupos na beira de rios, focas-monges em cavernas marinhas na costa, polvos em seus tálamos, falcões-peregrinos em íngremes penhascos nas montanhas, mochos em áreas cobertas de ciprestes e choupos. Em alguns casos os comportamentos dos animais são ilustrados em metáforas: pessoas tagarelando como cigarras, persistentemente protegendo suas terras como abelhas ou vespas, sendo covardes como pombas ou corajosas como leões ou javalis, engaioladas como tordos, sendo teimosas e persistentes como mulas, e assim por diante. O homem da época tinha interesse na vida e nos hábitos de animais que assinalavam atividades agrícolas. A chegada das andorinhas era o sinal para a poda das videiras (Os trabalhos e os dias, 568), enquanto o grulhar dos grous assinalava o início da lavragem da terra (Os trabalhos e os dias, 448). Em geral, as informações sobre a ecologia e comportamento dos animais transmitidas nos épicos não parecem contradizer o conhecimento atual.

207 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Para alguns animais, tanto a forma domesticada quanto a selvagem aparecem com o mesmo nome, como no caso do ganso (χήν). Em outras, as duas formas são encontradas com nomes diferentes, como no caso do javali (κάπρος) e do porco doméstico (χοίρος); a relação próxima entre as duas formas era obviamente conhecida, já que usava-se um terceiro nome (συς) para descrever ambas. Apesar de nesse ensaio ter se tentado fazer um estudo completo dos animais relatados nos primeiros documentos escritos da Civilização Ocidental, não devese considerá-lo um retrato abrangente da fauna da Grécia Antiga. Na realidade, coletamos e decodificamos Avesso


208 Tradução V. 1 N. 1 2020

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Avesso

as informações dos textos sobre a vida animal de um ponto de vista biológico em uma tentativa de mostrar o conhecimento humano sobre o tema. Embora os poemas heróicos homéricos não sejam documentos históricos (já que refletem períodos históricos diferentes), eles continuam sendo ricas fontes de conhecimento sobre as vidas e interesses humanos há uns 3000 anos. Os trabalhos e os dias de Hesíodo é há muito considerado um valioso documento sobre a vida agrícola da época (Mireau, 1954). É bastante possível entretanto, que o homem homérico tivesse familiaridade com muito mais espécies de animais do que as relatadas nos épicos. Isso se sustenta pelo fato de que quatro séculos depois, Aristóteles escreva um catálogo de cerca de 500 espécies de animais, com cerca de 160 sendo de peixes e invertebrados marinhos que escassamente aparecem nos textos do século VIII A.C (E. VOULTSIADOU E S. KIOUSIS, dados não publicados).


209 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Avesso


210 Tradução V. 1 N. 1 2020

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Avesso


211 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

* Palavras aparecendo como raízes ou palavras integrais em nomes em grego moderno são dadas entre parênteses. # Palavras usadas como palavras integrais, prefixos, bases ou sufixos, na formação de nomes de táxons latinos (exemplos são dados separadamente) $ I, Ilíada; O, Odisseia; T, Teogonia; D, Os trabalhos e os dias; E, Escudo de Héracles; C, Catálogo de mulheres; e H, Hinos homéricos. 5

Tabela 1: Lista de nomes de táxons atribuídos a nomes de animais em grego clássico registrados nos épicos. Nomes comuns em português, registros totais encontrados e um exemplo de registro para cada item, também são dados1. PASSADO E PRESENTE: COMENTÁRIOS SOBRE A COMPOSIÇÃO FAUNÍSTICA Algumas das espécies que aparecem nos textos estudados e que constituíam elementos faunísticos básicos do período geométrico tardio, estão atualmente extintos na Grécia e em áreas adjacentes. Como relatado em vários textos clássicos (Xenofonte, A caça IX.1; Heródoto, Histórias, VII.126; Aristóteles, História dos animais, 6.579b), leões tinham uma ampla distribuição no norte da Grécia. Nowak (1991) alegou que os leões desapareceram da Península Balcânica por volta de 2000 anos atrás. Leões habitavam a Europa na antiguidade mas desapareceram no primeiro século A.C, possivelmente devido ao desmatamento (Hughes, 2003). Leopardos e outros animais selvagens, como leões, linces e ursos são mencionados por Xenofonte (A caça, IX.1) como habitantes de várias áreas no norte da Grécia (e.x. Montes Pangaião e Pindos). Populações da subespécie ameaçada tulliana do Leopardo ainda existem no oeste da Turquia (Hughes, 2003). Ossos, tanto de leopardos quanto de leões, do Pleistoceno, foram encontrados em vários sítios gregos (Tsoukala, 1989; Guest- Papamanoli, 1996). Contudo, enquanto ossos de leões foram encontrados

Avesso


212 Tradução V. 1 N. 1 2020

em sítios arqueológicos no sul da Grécia, a presença do leopardo na Península Balcânica em tempos históricos não foi confirmada. Após 1965, o grou-comum, Grus grus, que aparece tanto em textos homéricos quanto hesiódicos e é relatado por Aristóteles em Da história dos animais (e.x. 597a4), deixou de visitar a Grécia durante sua migração (HANDRINOS, 1992). As populações de várias espécies conhecidas na época de Homero estão reduzidas no tempo presente e restritas a certas áreas. Exemplos são as populações do lince, urso-pardo, cervo-vermelho e cabra-selvagem. Em relação a espécie Lynx lynx, suas populações foram dramaticamente reduzidas na Europa pois foi caçada por sua pele até recentemente; populações isoladas sobreviveram no sul dos Bálcãs e em outras áreas europeias (Nowak, 1991). É o maior felino da Grécia atualmente, e não há informações sobre o tamanho de sua população e distribuição (Paraschi, 1992). Ursus arctos e Cervus elaphus foram recentemente incluídas na lista de espécies ameaçadas da fauna grega (Merzanis, 1992; Poirazidis & Paraschi, 1992). Populações da cabraselvagem, Capra aegagrus, estão atualmente restritas a algumas ilhas do Mar Egeu, com a maior população em Creta, onde a subespécie Capra aegagrus cretica (Schinz, 1838) é atualmente protegida por lei (Paragamian, 1992). Ossos dessa espécie foram encontrados em várias escavações em sítios cretenses (Jarman, 1996). Hughes (2003) alega que a extinção ou declínio da biodiversidade em algumas áreas da Antiguidade foram o resultado do imprudente consumo e coleta de animais pelos gregos e romanos.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Deve-se mencionar que o elefante não habitava a Grécia durante a Época Homérica, mas era bem conhecido devido ao seu marfim, material decorativo muito apreciado. Ossos de elefantes eram encontrados em sítios de fósseis, e devido às interpretações imaginativas do período, foram pensados como esqueletos de míticos gigantes e monstros (Mayor, 2000; Hughes, 2003). Os ossos fossilizados de uma espécie de elefante-pigmeu, Elephas falconeri (Busk, 1867) que viveu no Pleistoceno tardio e no início da época Recente, foram encontrados em algumas ilhas do Mar Egeu (Nowak, 1991); datas por Carbono-14 até 4390 A.C foram relatadas para espécimes da ilha grega de Telos. Escavações arqueológicas em vários sítios no

Avesso


território grego (como Creta e Peloponeso) revelaram materiais ósseos de diversas espécies, confirmando suas presenças na área durante a Era Homérica. O gado-bovino, Bos taurus, O cão, Canis familiaris, a cabraselvagem, Capra aegagrus, a cabra-doméstica, C. hircus, o asno, Equus asinus, o cavalo, E. caballus, a fuinha Martes foina (Erxleben, 1777), o javali e/ou porco-doméstico, Sus scrofa e a ovelha Ovis aries, foram reconhecidos por ossos e/ou chifres como elementos significativos da fauna doméstica e da economia contemporânea (Jarman, 1996; Tsoukala & Hatzi-Valianou, 1996; Wilkens, 1996). Além desses, a raposa, Vulpes vulpes (Linnaeus, 1758), o gato-selvagem, Felis sylvestris (Schreber, 1777), o coelho, Oryctolagus cuniculus (Linnaeus, 1758), e o texugo, Meles meles (Linnaeus, 1758), apesar de não terem sido mencionados nos épicos, foram encontrados. Ademais, coleções de ossos fossilizados do Pleistoceno tardio e do Holoceno nos dão informações sobre a presença no território grego (continente e ilhas) de espécies como o lobo, Canis lupus, o chacal, C. aureus, o ursopardo, Ursus arctos, o cervo-vermelho, Cervus elaphus, a tartaruga-grega, Testudo marginata, o lince, Lynx lynx, o gamo, Cervus dama (Linnaeus, 1758), a lebre, Lepus timidus (Linnaeus, 1758), e os morcegos Rhinolophus sp. e Myotis sp. (Trandalidou, 1996; Tsoukala, 2001, 2003). A esses devemos adicionar algumas espécies de ratos [e.x. Apodemus mystacinus (Danford & Alston, 1877), Mus musculus (Linnaeus, 1766) e Rattus rattus (Linnaeus, 1758)], além de sapos (e.x. Bufo viridis), que parecem ter tido uma presença contínua no território grego apesar de estarem totalmente ausentes dos textos estudados.

213 Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

Duas espécies de animais posteriormente muito comuns na Grécia e na Europa, o gato-doméstico e a galinha, não foram incluídos nos textos. Suas ausências reforçam a teoria de que foram posteriormente introduzidos na Europa de outras regiões. Acredita-se que o gato veio para a Grécia do Egito, onde era um objeto de adoração e tinha sido domesticado (Heródoto, Histórias, 2), por volta do quinto século A.C (e.x. Hughes, 2003). Galinhas foram introduzidas na Grécia vindas da Índia, onde a espécie Gallus gallus (Linnaeus, 1758) foi domesticada 4000 anos atrás. Hughes (2003) sugere que essa introdução ocorreu no sétimo século A.C. Portanto, o relato de gatos e galos em A batalha dos sapos e dos ratos, um texto atribuído a Homero por autores da antiguidade (Easterling & Knox, 1985), reforça a opinião moderna sugerindo que foi escrito na mesma época, Avesso


214 Tradução V. 1 N. 1 2020

por volta de 500 A.C As fábulas de Esopo, que também registram tais animais, também devem ter sido escritas em uma data posterior. Sabe-se que a maioria dos animais domésticos utilizados na Era Homérica eram estrangeiros: cavalos, asnos, carneiros, cabras, vacas e porcos foram introduzidos da Ásia no período Neolítico (MCNEILL, 2003). Finalmente, devemos enfatizar a importância da iconografia de animais como vista nas obras de arte do Período Geométrico ou Minoico. Animais como o golfinho, foca-monge, lobo, touro, cavalo, cabra-selvagem, cervovermelho, cão, leão e andorinha são representados em pinturas em paredes, vasos e outros objetos (Langdon, 1993; Vanschoonwinkel, 1996). O cervo-vermelho, a foca-monge e o mocho-galego aparecem em moedas dos séculos V, VI e VII A.C respectivamente. Por vezes, quando as representações dos animais são realistas, as imagens se tornam fontes eficazes de evidências paleofaunísticas para os zoólogos (MASSETI, 2000). CONCLUSÕES

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Em resumo, as seguintes conclusões podem ser feitas: (1) O conhecimento do homem homérico sobre o reino animal concentra-se principalmente em animais envolvidos em atividades humanas: os animais domésticos são os mais frequentemente registrados nos épicos. Ademais, a fauna terrestre atraía mais atenção do que a fauna marinha ou de água-doce. (2) Animais relatados em textos clássicos podem ser assinalados a táxons recentes com base na diversidade de informações sobre sua morfologia, ecologia ou comportamento, dadas nos textos. Nomes de animais podem ser muito úteis já que a maioria deles foram mantidos no grego moderno ou foram usados na formação de nomes científicos latinos. (3) Algumas populações, principalmente de espécies de animais selvagens, comuns na época nas áreas gregas, desapareceram ou estão atualmente reduzidas, enquanto alguns animais atualmente comuns não aparecem nos textos já que foram introduzidos posteriormente. Informações zoológicas úteis podem derivarse do estudo de textos clássicos, que podem ajudar biogeógrafos históricos como um método suplementar em adição à arqueologia e à arte, na reconstrução da fauna de períodos mais antigos.

Avesso


215

BIBLIOGRAFIA BABINIOTIS, G. (2000). Lexicon of Modern Greek language. Centre of Lexicology Press, Athens (in Greek). BROWNING, R. (1983). Medieval and Modern Greek. Cambridge University Press, Cambridge (Greek translation by M. Konomi 2002. Papademas Press, Athens).

Heitor Fagundes Beloch A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

DOUKAS, K. (2000). Homeric dialect: the common language of Greeks. Homer’s Iliad. Translation and interpretative comments. Ideotheatron & Georgiadis Press, Athens (in Greek). ENCYCLOPEDIA PAPYROS-LAROUSSEBRITANNICA with an Interpetative and Etymological Lexicon of the Greek Language. Vols. 1–61. Amarousion, Attica, Papyros Press, 1981–1994 (in Greek). EASTERLING, P.E. & KNOX B.M.W. (1985). The Cambridge History of Classical Literature. I: Greek Literature. Cambridge University Press, Cambridge (Greek translation by N. KONOMI, C. GRIBA & M. KONOMI, 1999, Papademas Press, Athens). GUEST-PAPAMANOLI, A. (1996). “Hunting and trapping in pre-historic Crete: a proposal for ethnoarchaeological research”. In: REESE, D. S. Pleistocene and Holocene fauna of Crete and its first settlers, pp. 337–349. Pre-history Press, Madison, WI. HANDRINOS, G. (1992). “Birds”. In: BOUSBOURAS, D., et. al. The red data book of threatened vertebrates of Greece, pp. 123–243. Hellenic Zoological Society, Athens. HANDRINOS, G. & AKRIOTIS, T. (1997). The birds of Greece. A. & C. Black, London. HONACKI, J., KINMAN K. & KOEPPLE, J. (eds) (1982). Mammal species of the world. A taxonomic and geographic reference. Allen Press and Association of Systematic Collections, Kansas. HOWARD, R. & MOORE, A. (1991). A complete checklist of the birds of the world. Academic Press, Avesso


216 Tradução V. 1 N. 1 2020

* Palavras aparecendo como raízes ou palavras integrais em nomes em grego moderno são dadas entre parênteses. # Palavras usadas como palavras integrais, prefixos, bases ou sufixos, na formação de nomes de táxons latinos (exemplos são dados separadamente) $ I, Ilíada; O, Odisseia; T, Teogonia; D, Os trabalhos e os dias; E, Escudo de Héracles; C, Catálogo de mulheres; e H, Hinos homéricos. 5

London. Hughes, D. (2003). Europe as consumer of exotic biodiversity: Greek and Roman times. Landscape Research, 28, 21–31. Jarman, M. (1996). “Human influence in the development of the Cretan mammalian fauna”. In: REESE, D. S. Pleistocene and Holocene fauna of Crete and its first settlers, pp. 211–229. Prehistory Press, Madison, WI. KOFINIOTIS, E. (1992). Homeric Demiourgia Press, Athens (in Greek).

lexicon.

LANGDON, S. (ed.) (1993). From Pasture to Polis. Art in the Age of Homer. University of Missouri Press, Columbia, Missouri. LATACZ, J. (1997). Homer. Der erste Dichter des Abedlandes. Artemis & Winkler Press, Düsseldorf (Greek translation by E. Sistakou, 2000. Papademas Press, Athens). LESKY, A. (1971). Geschichte der Griechischen Literature. Francke, Bern (Greek translation by A. Tsopanakis, 2003. Kyriakidis Press, Thessaloniki). LIDDELL, H.G. & SCOTT, R. (1851). Great dictionary of the Greek language. Vols 1–5. (Greek translation by X. Moschos, 1990). Sideris Press, Athens (in Greek). MASSETI, M. (1997). Representations of birds in Minoan art. International Journal of Osteoarchaeology, 7, 354–363. MASSETI, M. (2000). Did the study of ethology begin in Crete 4000 years ago?. Ethology Ecology and Evolution, 12, 89–96.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

MAYOR, A ́. (2000). The first fossil hunters. Princeton University Press, Princeton, NJ. MAZARAKIS AINIAN, A. (2000). Homer and Archaeology. Book Institute, A. Kardamitsas, Athens (in Greek). MCNEILL, J. R. (2003). “Europe’s place in the global

Avesso


217

history of biological exchange”. Landscape Research, 12, 33–39.

Heitor Fagundes Beloch

MERZANIS, G. (1992). “Ursus arctos (Linnaeus, 1758)”. In: BOUSBOURAS, D. The red data book of threatened vertebrates of Greece, pp. 260–262. Hellenic Zoological Society, Athens.

A Fauna da Grécia e áreas adjacentes na época de Homero: Evidências dos primeiros documentos escritos da literatura grega

MIREAU, E. (1954). La vie quotididienne au temps d’Homere. Librairie Hachette Paris. (Greek translation by K. Panagio- tou, 1995. Papademas Press, Athens). NOWAK, M. R. (1991). Walker’s mammals of the world. The John Hopkins University Press, Baltimore and London. Paragamian, K. (1992). “Capra aegagrus cretica (Schinz, 1838)”. In: BOUSBOURAS, D. The red data book of threatened vertebrates of Greece, pp. 271–274. Hellenic Zoological Society, Athens, Greece. PARASCHI, L. (1992). “Lynx lynx (Linnaeus, 1758)”. BOUSBOURAS, D. The red data book of threatened vertebrates of Greece, pp. 263–264. Hellenic Zoological Society, Athens, Greece. POIRAZIDIS, K. & PARASCHI, L. (1992) “Cervus elaphus (Linnaeus, 1758)”. In: BOUSBOURAS, D. The red data book of threatened vertebrates of Greece, pp. 270–271. Hellenic Zoological Society, Athens, Greece. RIDE, W., SABROSKY, C., BERNARDI, G. & MELVILLE, R. (eds) (1985). International Code of Zoological Nomenclature. Great Britain International Trust for Zoological Nomenclature. University of California Press, London. TRANDALIDOU, K. (1996). The animal world. The Palaeolithic period in Greece (ed. by G. KourtesiPhilippakis). Archaeology and Arts, 58, 45–53 (in Greek). TSOUKALA, E. (1989) Contribution to the study of the Pleistocene fauna of large mammals (Carnivora, Perissodactyla, Artiodactyla) from Petralona cave Chalkidiki (N. Greece). Doctorate Degree Thesis, Thessaloniki, Greece (in Greek). TSOUKALA, E. (2001). Quaternary faunas of Greek Avesso


218 Tradução V. 1 N. 1 2020

Islands. Bulletin de la Société des sciences historiques et naturelles de la Corse, 697, 277–303. TSOUKALA, E. (2003) Palaeontological research in Pella. Cave bears and late Pleistocene associated faunal remains from Loutra Arideas (Pella, Macedonia, Greece). Prefecture of Pella, Skydra, pp. 1–44 (in Greek). TSOUKALA E. & HATZI-VALIANOU D. (1996). Fauna and human diet in the Acropolis of Smari in the geometric and the palaeoanactoric period. Proceedings of the 8th Cretan Congress, Heraklion, Crete (in Greek). VANSCHOONWINKEL, J. (1996). “Les animaux dans l’art minoen”. In: REESE, D. S. Pleistocene and Holocene fauna of Crete and its first settlers, pp. 352–422. Prehistory Press, Madison, Wisconsin. VOULTSIADOU, E. & GKELIS, S. (2005). Greek and the phylum Porifera: a living language for living organisms. Journal of Zoology, 267, 1–15. WILKENS, B. (1996). “Faunal Remains from Italian Excavations on Crete”. In: REESE, D. S. Pleistocene and Holocene fauna of Crete and its first settlers, pp. 241– 254. Pre-history Press, Madison, Wisconsin.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Avesso


219

Avesso


220 Resenha V. 1 N. 1 2020

Camille C. Sant’Anna Camillo MACDOUGALL,D. The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019

O livro The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography) (2019) é composto por um conjunto de ensaios escritos pelo diretor de cinema David MacDougall1. MacDougall é uma das principais referências da antropologia visual no Brasil, sendo este diretor de documentários e um teórico do cinema e do uso de recursos audiovisuais, mais especificamente do filme etnográfico como uma ferramenta da Antropologia. Sua obra divide-se em três partes, a primeira trata do diretor por trás da câmera, como funciona seu olhar e mente, como este segue ou deixa de seguir as convenções impostas por ele pelo meio social e quais as estratégias que ajudam a melhorar o processo de insight proposto pelos filmes. A segunda parte trata dos efeitos exercidos pelas imagens e os sons na mente e no corpo humano, além de abordar como o diretor de cinema usa destes recursos para incitar a percepção humana e a experiência corpórea. A terceira e última parte preocupa-se com o cinema documental de fato, seu poder de representatividade e alcance fora e dentro da academia, além de focar no desenvolvimento do cinema observacional. Isto posto, esta resenha pretende focar especialmente nas partes 1 e 3, e sua correlação com as ciências sociais, em especial com a antropologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

Na introdução da primeira parte de sua obra: “filmmaking as practice”, David MacDougall discute o processo de produção cinematográfica e a importância do olhar do diretor frente a obra que se procura produzir. São promovidos questionamentos acerca do enquadramento e da forma que uma cena se relacionará à outra durante a construção de uma narrativa. À exemplo disso, MacDougall destaca a direção de Alfred Hitchcock e Jean-Luc Godard, em razão das particularidades rev-


olucionárias que ambos os diretores trouxeram para o cinema de suas respectivas épocas e locais. MacDougall assemelha o processo de filmagem com a pesquisa antropológica, uma vez que assim como o diretor que deve ir à campo para produção de seu filme, o antropólogo por vezes realiza um trabalho etnográfico, em que uma pesquisa prévia é realizada com o intuito de entender melhor um grupo de pessoas, suas instituições, práticas e costumes. Geralmente, dentro desse processo de pesquisa há espaço para transformações e desenvolvimento de diferentes abordagens, tanto no cinema quanto na antropologia. Estas intersecções entre as duas áreas tomaram forma com a pesquisa de Margareth Mead e Gregory Bateson, nos anos 30, a partir do uso de filme e fotografia para estudar as interações entre mães e crianças em Bali e na Nova Guiné; neste caso os recursos audiovisuais além de terem a função de documentar e comprovar os escritos dos antropólogos, para Bateson as filmagens foram essenciais para o processo investigativo e para a percepção de novos saberes.

221 Camille C. Sant’Anna Camillo The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019

David MacDougall estudou na UCLA e na Harvard University na década de 1960. É referência no campo da Antropologia Visual e possui um importante conjunto de filmes etnográficos, tendo filmado em Austrália, Uganda, Itália e Índia. É autor dos livros Transcultural Cinema e The Corporeal Image: Film, Ethnography and The Senses 1

Nesta primeira parte, David MacDougall discorre acerca de questões relacionadas a difícil decisão do diretor do que cortar ou abordar e qual a melhor maneira, dentro do filme etnográfico é muito comum a necessidade de lidar com indivíduos de outras culturas e as particularidades de cada um deles. O autor cita o artigo The case of Well-Mannered Guest de Pauline Spiegel, em que a antropóloga argumenta que os observadores passam a fazer parte do grupo (objeto de estudo) após estudá-los de maneira próxima. Isto dentro do contexto de produção de um filme apenas levanta mais questões de que até que ponto o diretor, como um observador participante, mas não pertencente de tal cultura, pode gravar expressões culturais que muitas vezes colocam o diretor em uma posição dúbia, onde morais dissidentes se chocam. Por conta disso, para evitar polêmicas e opiniões controvérsias por parte da audiência, muitos diretores de filmes etnográficos preferem utilizar uma perspectiva afastada perante seus temas, apenas se aproximando de forma superficial e previsível. Ao tratar do filme documental, David MacDougall usa como exemplo grandes diretores como Agnès Varda e Chris Marker para ilustrar o diretor que enxerga a câmera não apenas como uma máquina, mas como uma extensão da mente e do corpo de seu realizador, que é Avesso


222 Resenha V. 1 N. 1 2020

capaz de se conectar em termos pessoais com o mundo à sua volta. Logo, MacDougall coloca que diferentemente do que é apresentado pelas instituições governamentais, as câmeras não são instrumentos neutros que representam uma única e correta perspectiva do mundo gravado. Cada indivíduo transpõe sua visão para a forma e para o que se deseja enquadrar pela câmera, sendo este diretor ou mesmo um amador, o movimento e o estilo da câmera refletem muito do pensamento de quem a manuseia. Além de analisar filmes e documentários de diversos diretores, MacDougall também utiliza seus próprios estudos de campo e filmagens como produto de análise. O diretor realiza as filmagens dentro de instituições voltadas para o ensino de crianças, e critica o fato de muitos diretores ignorarem as crianças ao entrevistarem um grupo de pessoas para seus filmes documentais e reduzirem sua singularidade aos estereótipos mostrados no cinema. O processo de filmar uma criança e o ambiente que a rodeia é completamente único, visto que ela explora e possui um olhar e opiniões distintas das de um adulto; Segundo MacDougall as crianças possuem uma subcultura divergente da de seus próprios parentes, devido à isso filmar o período da infância é interessante para um diretor/pesquisador mesmo que ambos façam parte de culturas similares.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

MacDougall realiza as filmagens em dois internatos na Índia, na Doon School, um internato para meninos em Dehra Dun, e depois na Rishi Valley School no Sul da Índia, nos dois casos foram filmadas a infância de crianças crescendo dentro de instituições de classe média. Dentre os filmes etnográficos gravados nas localidades, destaca-se o Doon School Chronicles (2000). A abordagem escolhida pelo diretor foi gravar o cotidiano da vida dos garotos, suas relações interpessoais, os diálogos realizados entre eles e com David MacDougall, e o ambiente em torno deles; responsável por carregar um pouco da essência dos próprios meninos e por refletir o estrato social em que estes se inseriam. A partir do acompanhamento da rotina dos garotos da Doon School, constata-se que há uma padronização e até mesmo um controle dos processos corporais dos estudantes. Assim como outros internatos, este possuía um regulamento que prezava pelo uso de uniformes específico para diferentes atividades, pelo uso de obje-

Avesso


tos idênticos (camas, mesas, banheiros) que encobriam a identidade de cada indivíduo. Um caso em particular chamou a atenção de MacDougall, o de um menino que dividia o dormitório com outras 29 crianças. Apesar disso ele foi capaz de delimitar uma parte do local em que viviam e mesmo sem demarcações reais, construir uma espécie de quarto que era seu próprio espaço; esta posse, mesmo que imaginária, o diferenciava de todos os outros indivíduos do local.

223 Camille C. Sant’Anna Camillo The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019

David MacDougall encerra a primeira parte de The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography) com uma reflexão acerca da falta de protagonismo das crianças dentro do cinema documental/observacional, e o quanto uma ideia idealizada da criança é vendida, quando na verdade as crianças são portadoras de uma complexidade e de uma visão de mundo até mais abrangente que a dos adultos. A terceira parte “Film, anthropology and the documentary tradition”, foca em três vertentes do cinema e sua relação com a antropologia, são estes: observacional (subgênero do documentário), o filme etnográfico e o documentário e sua relação com o real. O "cinema observacional", diferente do cinema-verdade e do cinema direto se assemelha mais ao processo de pesquisa antropológica da observação participativa, tendo seu desenvolvimento muito alinhado às descobertas dentro do cinema e das ciências sociais no pós-guerra. O movimento cinematográfico do Neorrealismo italiano influenciou o cinema observacional, posto que os diretores neorrealistas prezavam pela naturalidade das cenas, por retratar o cotidiano ordinário de pessoas comuns. Essa estética era muito valorizada pelo crítico de cinema francês, André Bazin que ressaltava a importância da construção de um cinema que engaja a audiência a assistir os eventos e procurar interpretar o que foi visto em cena. Assim como no cinema observacional, a essência do filme etnográfico é abordar questões culturais, as particularidades que permeiam a vida em sociedade, sendo estas a estética, o gestual e a linguagem de um indivíduo ou grupo. De acordo com MacDougall, por vezes esta abordagem é erroneamente subjugada frente a predileção por filmes que tratem de temáticas que Avesso


224 Resenha V. 1 N. 1 2020

Citado em Mick Eaton, ed., Anthropology- Reality- Cinema: The Films of Jean Rouch (London: British Film Institute, 1979), p.63.

1

se encontram mais explícitas a todos, como questões econômicas, políticas e ideológicas de uma comunidade. Porém, são estas particularidades e detalhes que frequentemente determinam melhor o caráter de uma sociedade ou sujeito. Apesar de desde 1930/40 haver experimentações com o uso de recursos fílmicos, é apenas com Jean Rouch que o cinema passa a exercer real importância dentro da antropologia. Rouch afirma ter tido muita sorte no Rio Níger ao perder seu tripé e por isso ter de utilizar as mãos para segurar a câmera das gravações de Bataille sur le grand fleuve (1952), filme que acompanhava a caça dos hipopótamos pelo rio. Segurar a câmera com as mãos permitiu um certo olhar e alcance que um tripé não é capaz de oferecer, reforçando a ideia de David Macdougall acerca do traço autoral de cada diretor que pode ser percebido especialmente por meio das escolhas de enquadramento e movimento da câmera. Ao longo de The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography) Macdougall destaca a figura de Jean Rouch, cujo trabalho permeia a pesquisa etnográfica e o campo cinematográfico. É importante ressaltar o seu trabalho de documentação dos efeitos do colonialismo no ‘terceiro mundo’. Segundo Rouch, o filme etnográfico era essencial porque mostrava as diferenças entre sociedades, além de prevenir a tentativa dos europeus de “tentarem transformar outras culturas em uma imagem deles próprios” 1 (THOMPSON & BORDWELL, 2019, p. 483).

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Até hoje, Rouch é reconhecido pela sua produção de filmes etnográficos e documentários, Inspirado pelas teorias do cinema soviético de Dziga-Vertov, Rouch em conjunto com Edgar Morin apresentam o termo cinema-verdade em um manifesto que acompanha o filme Chronique d’un été. Nesse sentido, MacDougall destaca uma citação de Jean Rouch: “no campo, o observador modifica-se a si mesmo”, levantando questões importantes tanto para a antropologia, quanto para o cinema, relativas a aproximação do diretor/pesquisador com o seu “objeto de estudos” e o quanto essa aproximação física ou cultural pode interferir no produto final. David MacDougall, Encerra sua obra com uma discussão a respeito dos documentários. Os primórdios do

Avesso


cinema documental surgem com os filmes gravados pelos irmãos Lumière com o cinematógrafo, muitos destes retratavam pessoas realizando ações dentro do cotidiano. Entretanto a veracidade dos atos gravados pela câmera gera questionamentos, como o proposto pelo crítico de cinema Dai Vaughan: “is this a fiction film or simply a filmed fiction”, ou seja, é este um filme de ficção ou simplesmente um ato de ficção sendo filmado? A este questionamento, David MacDougall coloca que distinguir os elementos reais dos elementos performáticos dentro de um filme, mesmo que este em questão seja um documentário, é um papel difícil e que depende unicamente da perspectiva do diretor e de sua audiência. Logo, cabe à interpretação de cada espectador distinguir e analisar os elementos do filme em questão.

225 Camille C. Sant’Anna Camillo The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019

À vista disso, em “Por uma antropologia da imagem” Hans Belting propõem uma reflexão acerca da máscara que se relaciona bem com o caráter duplo dos documentários. Assim como o documentário, a máscara se posiciona entre o real e o ficcional, “ela compendia belamente a simultaneidade, como também a oposição, entre ausência e presença que tanto tem caracterizado a maioria das imagens em uso humano” (BELTING, 2005, p. 70). MacDougall utiliza Crônica de um verão (1961) de Edgar Morin e Jean Rouch, como exemplo do “perfeito casamento” da antropologia com o cinema, sendo ambos estudiosos das referidas áreas. O filme é uma antologia de diversas entrevistas e diálogos que tem como plano de fundo a cidade de Paris e como os seus transeuntes relacionam-se com a cidade e com os problemas vivenciados neste cenário. Seu modo de produção desafiou a estrutura dos filmes convencionais, além de ter quebrado paradigmas ao dissolver as barreiras existentes entre o diretor, o tema e a audiência; fato que configurou Crônica de um verão como um verdadeiro símbolo do cinema-verdade. Desta forma, é possível concluir que em todo o processo de criação de um filme, seus idealizadores têm de traduzir sua visão/ expectativa em imagens que irão compor a obra final. No entanto, o que é visualizado nunca se equivale ao produto, o que acaba com o mito do documentário ser capaz de abarcar um tema em sua totalidade, o que a audiência vê nada mais é do que um recorte realizado por um autor. Em vista disso, David MacDougall afirma que todo filme existe duas vezes, priAvesso


226 Resenha V. 1 N. 1 2020

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Avesso

meiro existe como as ideias exploradas por seu diretor, e segundo como o filme que se busca apresentar para outrem, um conjunto de ideias consolidadas que toma como forma a película final; sendo assim, o diretor torna-se o primeiro espectador de seu filme. A obra aqui resenhada veicula diferentes discussões dentro do cinema e antropologia. Vale ressaltar a importância da produção de material de antropologia visual, área emergente dentro das ciências sociais, e o caráter didático, mas complexo da escrita de David MacDougall. Em razão das explicações teóricas seguidas de exemplos, torna-se possível entender facilmente a multiplicidade do cinema e sua relevância ao se estudar a vida em sociedade. O autor também obtém êxito ao levantar questões que incomodam e provocam os profissionais do cinema e os espectadores atentos. No entanto, à muitos destes questionamentos, MacDougall parece preferir manter em aberto as respostas, argumentando em favor da multiplicidade de interpretações e perspectivas dentro do cinema. Portanto, a leitura de the looking machine é indispensável para que se entenda melhor a evolução da antropologia visual ao longo do tempo e o papel desempenhado pelas mídias audiovisuais na representação do real.


BIBLIOGRAFIA MACDOUGALL,D. The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019 BELTING, H. Por uma antropologia da imagem, in: Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. Editora KKYM. 2005

227 Camille C. Sant’Anna Camillo The looking machine: Essays on cinema, anthropology and documentary filmmaking (Anthropology, Creative Practice and Ethnography). Manchester University Press. 2019

MACDOUGALL,D. 2000. Doon School Chronicles. Direção: David MacDougall ROUCH,J. 1961. Chronique d’un été. Direção: Jean Rouch e Edgar Morin. Roteiro: Jean Rouch e Edgar Morin. THOMPSON, K. & BORDWELL, D. Film history: An introduction. New York, NY: McGraw-Hill Education. 2019

Avesso


228

Avesso


229

REVISTA AVESSO PENSAMENTO, MEMÓRIA E SOCIEDADE Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP

Avesso


230

Avesso


ito A F ma Lá a” Tr to no l i fia e c lid sos ne in A s de na zo té té om L’ Ju lit s au ch gu ou op r r vas nd G os ad r y A fan tud id cio Sa et en os h lia iq da n in a a ic ur r io al m e ac nt ti y en na ns p Ir ex ál al el b vã ol do ia e le o ti li o oli a u an M ue li a d e: t E e wo on V ter a G es ntr nta ia M (C açõ ajos o ogia s p is e ner mo f th dad sm ne tiq n: id ali P o s s j ma giat ince atu réc ays evis tiv ove R) es s do La i co ovo m d Di rta e fa e n cu No ue en ud n. nz ra g ia on ta a d me co oc s e ncl m s i ec rei lity cto aci rdo tas Vin ti A o m i i e j u r n i t o or ciai Syd stu Sa reg e ár cin com co nt o v oec es sió ela díg sõe o e of b rs b nal : re sob cen g s n n ç e s o f r n a e e e sp ani Y ney dy o son t as ma Júl str Tath etor nôm Mar y l ão à nas jud Nar lack hin Ju orm e o iri za as An f t e rad ad , a ia uir ya d i ía a ic rat A d lia ul n i e c n ç j m R t a a i t ua ual ão in ten he f No uzid ace nth eb cen na co as Alej xclu ter co ais iva: mer he Mon açã s e e ac ta o nt ro ou ic Am nc no an s aç ns Y U ic m g o ci ió ã t a m a a i ón So oci Ma r s e p ç a e Se a fia al fu Dir tors sob por s n olo as me ara ntr mei dra n d o e ruç sm a a n w tern at aç o r Cá el nt ão ine ná om al rg ctu G e c lde ei be re He a é gy M nt l to h o it p an ar e a A ão ur ce in re d M li a a m io al alv os ei Lu d ã m A e ind n or oca d ia r rev fu al re di o e s a se n. nd o e o ol co Na t ac Fa d do na ep ol n : u s o e mu ua ful do S og rp rr he io gu e cu S re ut di m Me n n r r rur is O l in d s y j L ur al ed di a ia or at m na nd Ho m ler se io ári a a ri M do org e dis d al : u a o b in co al iva at lis e m en ca nt n i a. n no éx fí an A cu ál e ic si iz co r ed (C m Tr aj cl m ida : U er mo s B er ta e aç n P ro PR a a ue os usi re de m na c el o: ry G ão Ch ed ise Se o: L co aç rp ál A ) ná ba do ón la d a l a ur oc Ev fil ust de ile ro cr rg a e e ão ora ia lm co li ç o a i s s s í . n d h id m a Mo ei m se As s ej y la ão s p nál d i o: r L ên ma vo um Bu Alm tica o Lu itua pir oci ut v da o cr n es e à ov ise nf ef ’h ci ki Ru gê t w eid ac is ci itu al i a o a io em M ve ít ov x o n o n to ic as M clu ter s i do nti rm mo s d ng iz ner her a M erc Oje ón al e e Le in C nt nico r da a ac re aría sió açã ndí s di le m ula sex os p (20 Re o n e to en a d da act So g s n l ç u i 1 s ã a T u h iva te ile Tat ni con erca açõ Ale de o en ena cur ort ão alit rim 9) enh o in ? P icon cé rue al d de “Nã . Bu hya Leg cen da es s jan l ind tre s na sos ality de i é e eiro Ca a d tel iet i L dul ba e nt co o e t w na aci tra cé oci dra io o m co rac of den n Ir s d mi o li igív ro eg a d As e ns la he Am es çã du oe C en u n ia b ti an oc lle vr el Le ac o p a o s á l i d i o rep trui ” ou re t ara of t o fu la d con cer Mé ndo tru is e ack ad : id ume San Th Ol te es o rod de r r o? l he nd o ôm es xic fí çã m A e n en nt t'a e l ive “N f u a c e ro um sen eni ten P A r Tr iár pro ica Me o: sico o d dec me aci tité os nn ook r O ão the in lív el nã gê ta ca ta iet evo opi ia. dut s n rin La e e s isõ ric on et esc a g ia u m a t r c o o o si e r n o n ç l

po

231

Avesso


AVESSO

PENSAMENTO, MEMÓRIA E SOCIEDADE

v.1, n.1, 2020


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.