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Espiritualidade

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Introdução

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CASAMENTO

ESPIRITUALIDADE

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COMUNICAÇÃO COMUNICAÇÃO

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COOPERAÇÃO EMOÇÃO

Gary Thomas, no seu livro Casamento Sagrado, afirma que opropósito maior do casamento não é a nossa felicidade, mas a nossa santidade. O propósito do casamento, segundo o autor, é agradar a Deus. Ele resume: “Mas se você quiser ser mais parecido com Jesus, não posso imaginar coisa melhor do que se casar. Ser casado força você a encarar certos problemas de caráter que de outra forma não enfrentaria”.3 Por isso, se o seu maior propósito para o

3 THOMAS, Gary. Casamento Sagrado. E se o propósito de Deus para o casamento, mais do que nos fazer felizes, for nos tornar santos? Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2013, p. 13. 38, 23.

casamento for ser feliz, não case, mas se for glorificar a Deus, case, pois assim, poderá ser feliz e fazer o outro feliz. O aspecto central do objetivo de glorificar a Deus, é sermos santos, sermos mais parecidos com Jesus! Por essa razão, começamos esse livro apontando a espiritualidade como aspecto ou fator fundamental para desenvolvermos casamentos de qualidade.

A espiritualidade proposta neste livro tem suas pressuposições fundamentadas no paradigma cristão, em especial nos seus aspectos mais essenciais e imprescindíveis. É uma espiritualidade fundamentada em todos os seus aspectos, na obra graciosa de Cristo, manifestada através da Sua encarnação, testemunho de vida, crucificação, ressurreição e assunção ao céu, para ser o centro de todas as coisas e para assumir e representar o governo divino da história. (1 Tm 3.13, Ef 2.14-22). A salvação é uma dádiva de Deus para a humanidade baseada exclusivamente na obra redentora de Cristo, efetuada por meio da Sua morte na cruz, (Ef 2.8; Rm 3.21-26; 6.23), e recebida por meio do arrependimento (At 2.38) e fé, por aqueles que confessam a Jesus Cristo como Senhor e Salvador, em resposta à pregação das boas novas do evangelho. (Rm 10. 8-13). O convertido torna-se uma nova criatura (2 Co 5.17), é selado com o Espírito Santo de Deus (Ef 1.13,14), torna-se santuário individual (1 Co 6.19) e coletivo (1 Co 3.16) da presença de Deus e, é introduzido como parte integrante do corpo de Cristo (1 Co 12.13), para compor a igreja, que é o povo de Deus, formada pelas igrejas locais e por toda a família de Deus no céu, e espalhada sobre a terra. (Ef 2.19, 3.15). Na comunidade local, o novo convertido desenvolve uma espiritualidade baseada no serviço e no exercício dos dons espirituais, (Gl 5.13; 1 Pe 4.10), centralizada na pessoa e no relacionamento com Cristo. (Fl 1.18-30). Será o tipo de espiritualidade, desenvolvida em comunhão com as pessoas, com Cristo, com o Espírito Santo, e mediada pelo ensino das Escrituras (Ef 5.18-21; Cl 3.16-17) e, terá como evidência da sua autenticidade, profundo amor a Deus e ao próximo, (Mt 22.37-40) e um estilo de vida caracterizado pelo fruto do Espírito (Gl 5.22-23).

Por isso, afirmamos, categoricamente, que pessoas espirituais terão casamentos de qualidade. Pessoas não espirituais, (espiritualidade no sentido cristão), podem ter casamentos de qualidade, mas pessoas espi-

rituais não podem ter casamentos sem qualidade, pois estarão sempre em processo de amadurecimento. Uma pessoa pode ser espiritual e imatura, por ser um novo convertido, mas, com o tempo, no processo de amadurecimento da vida espiritual, desenvolverá as qualidades inerentes à sua espiritualidade. Todavia, mesmo um cristão iniciante, em processo de crescimento saudável, apresentará atitudes que facilitarão odesenvolvimento da vida conjugal. A razão é muito simples: a espiritualidade cristã é caracterizada pela vida de comunhão com Cristo, ou, se preferirmos, por uma vida cheia do Espírito Santo. A Bíblia apresenta a pessoa espiritual, evidenciando inevitavelmente algumas marcas que a caracterizam. Há Três textos que descrevem essas características: Gl 5.22.23, Mt 22.37-40 e 1Co 13.4-7. Mesmo que ele ainda não tenha desenvolvido comportamentos que expressam as qualidades do fruto do Espírito de forma consolidada, já apresenta recursos para os processos reconciliatórios necessários aos relacionamentos, por meio dos quais o fruto e suas qualidades são desenvolvidos. Vamos ver os textos:

“22 Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, 23 mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei.” (Gl 5)

“4 O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. 5 Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. 6 O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. 7 Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1 Co 13).

“37 Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. 38 Este é o grande e primeiro mandamento. 39 O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. 40 Destes dois mandamentos dependem toda a

Lei e os Profetas.” (Mt 22).

Se a pessoa espiritual tem essas características, a saber: amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio, a ponto de não ter inveja e orgulho, de não cometer maus tratos para com as pessoas, de não ter egoísmo e ira, e ainda, for capaz de tudo sofrer, tudo crer, tudo esperar e tudo suportar, por causa da obediência de

amar a Deus e ao próximo de todo coração, não tem como o casamento dar errado. Por isso, eu sempre afirmo: “pessoas espirituais terão casamentos de qualidade”. Quanto mais íntimos formos de Cristo, mais íntimos seremos um do outro na vida conjugal. A figura abaixo ilustra isso.

CONSAGRAÇÃO

Quanto mais amor e comunhão com Deus, mais amor e comunhão com o cônjuge. Mt 22.37-40 Deus

CÔNJUGE CÔNJUGE

Quem ama a Deus de todo o coração, ama o próximo com intensidade e sacrifício. Por isso, quanto mais amarmos a Deus, mais amaremos opróximo e, quanto mais próximos estivermos de Deus, mais próximo estaremos dos outros.

A espiritualidade desenvolve a maturidade

A maturidade é um estágio na vida muito crítico. Ela, na minha opinião, não é um patamar que alçamos, onde, a partir dele, tudo será feito com excelência, maestria, sabedoria, discernimento, e com resoluções nobres e decisões precisas. Não! A maturidade não é assim! Na minha opinião, ela começa a partir de um ponto de inflexão na vida, que é um momento em tomamos consciência da abrangência e das profundas implicações da existência e, principalmente, de como os nossos destinos e conjunturas estão atrelados intrinsecamente às escolhas e decisões que tomamos. Maturidade acontece no momento que começamos a enxergar a vida com lucidez e clareza, tendo uma percepção mais refinada a respeito da potencialidade dos recursos que possuímos em Cristo, que precisam ser desenvolvidos e utilizados, ao mesmo tempo que percebemos o potencial extraordinário dessa consciência. A partir desse ponto

de inflexão, a pessoa ainda vai errar muito, mas, a maturidade vai fazê-la tratar cada situação de uma outra maneira completamente diferente de como agia antes de alcançar essa dimensão de compreensão da realidade.

A maturidade tem uma relação direta com a obediência a Deus. A pessoa que chegou a esse ponto de inflexão, compreende Deus de maneira diferente em relação à obediência. Stott, citando Philip Yancey, aponta uma visão distorcida de Deus que muitos de nós temos. Imaginamos Deus como “...um sadista cósmico que se deleita em vernos retorcer...” 4. Enxergamos Deus como um estraga prazer, e a Seus mandamentos como pesados e utópicos. Mas, quando amadurecemos, entendemos que tudo o que Deus requer de nós é para nossa própria felicidade. A obediência não é uma prática que fazemos para satisfazer a demanda caprichosa de uma divindade. Não! Quando obedecemos, seguindo as orientações de Cristo para a nossa vida, fazemos algo cujo objetivo é o nosso bem maior e supremo. Quando passamos a entender quem Deus é, e como planejou tudo para o nosso bem, a obediência ganha essa dinâmica e motivação diferenciadas. O objetivo último da obediência nunca será o homem, antes, sempre será Deus e a Sua glória. Mas quando entendemos que Deus será glorificado por meio do nosso bem maior e eterno, a obediência é colocada numa outra perspectiva.

A obediência a Cristo e à Sua vontade não é um compromisso fácil. Fazer a vontade de Deus em sua plenitude possível é uma prática totalmente contrária às nossas inclinações naturais. A prática do perdão, do sacrifício de amor pelos outros, de suportar as falhas dos cônjuges com empatia e a decisão de morrer para nós mesmos, desafia nossa disposição e vontade. Mas, a espiritualidade gera um tipo de maturidade que é capaz de se comprometer a fazer o que é certo, custe o que custar, pois sabe que é o caminho da vida e que é capacitada por Deus para a realização de Sua vontade. O amor é fruto do Espírito, e todas as qualidades que aparecem nos três textos que citamos não são disposições naturais. Todas elas são fruto e evidências de uma vida consagrada a Deus, que em resposta ao nosso desejo e consagração, produz essas qualidades em nós. Essas qualidades são desenvolvidas à medida em que nos entregamos a Ele, submetendo tudo o que temos e somos ao Seu amor e von-

4 STOTT, John R.W.A Cruz de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 1992. P. 304.

tade. Convencidos de que somos capacitados a viver esse tipo de vida, assumimos o compromisso de fazer tudo o que a palavra de Deus nos ensina, mesmo que Seus ensinamentos entrem em choque contra todas as dificuldades e resistências que se levantam dentro de nós.

No dia nove de maio de 2021, comemorei trinta e quatro anos de casamento. Quando olho para trás, para a minha vida e todos os problemas que enfrentei na infância, penso que não seria possível que um casamento sobrevivesse ao tipo de pessoa que me tornei como adulto. Todo prognóstico que eu fazia, acabava em projeções sombrias. Fui convertido aos 20 anos, e me casei com 23. Dois anos depois de minha conversão, comecei a trabalhar integralmente no ministério como missionário. Depois de 10 anos sem estudar, estava fazendo supletivo para tentar recuperar o tempo perdido. Tinha sérios problemas emocionais por conta dos dramas vividos com a família, e por causa das consequências de tudo o que aconteceu. Quando me casei, tive que enfrentar as tensões do ministério, lidando com suas demandas, sem nenhuma preparação prática e teológica. Estava lutando para superar todas as disfunções emocionais graves que sofri ao longo da infância até a vida adulta. Morava precariamente atrás de uma capela, construída pelos americanos, para a implantação de uma igreja na Cidade Náutica, em São Vicente, estado de São Paulo. Enfrentava várias dificuldades financeiras, despreparo em todos os sentidos, e ainda tinha que liderar um casamento, empreendimento que eu não tinha nenhuma condição de conduzir. Quando olho para trás, com o entendimento de um pastor que já está há 35 anos no ministério, e com a compreensão de um psicólogo, que hoje entende, de forma técnica, a gravidade dos traumas que enfrentei, posso afirmar, sem nenhuma dúvida, que o que me capacitou a permanecer casado, buscando sempre soluções para as crises conjugais, foi a vida de comunhão com Cristo – foi a vida espiritual. Minha esposa trazia também suas próprias dificuldades, problemas emocionais e aspectos imaturos, que foram enfrentados, tratados e superados por causa da sua vida espiritual. Como eu, ela era inexperiente, mas tinha maturidade (no sentido entendido aqui), tinha aquela compreensão de que seria capacitada a enfrentar qualquer dificuldade com a ajuda do Espírito Santo. A maturidade, portanto, é tanto um ponto de

lucidez e compreensão, quanto um processo. Sendo “maduros”, nós amadureceríamos! Vou considerar, a seguir, três aspectos da maturidade em relação à obediência, que fizeram diferença na nossa vida, quando entendemos que seríamos capazes de fazer qualquer coisa que a Bíblia ensinasse, com a ajuda do Espírito Santo. Acredito que são atitudes que farão grande diferença para o desenvolvimento da vida conjugal.

Compromissos de uma pessoa madura em relação à obediência à Palavra

Primeiro - “Não posso deixar de fazer o que tenho que fazer.”

Entendi essa verdade logo que me tornei cristão. Sabia que não podia deixar de fazer o que eu tinha que fazer. Percebi que os desafios eram muito maiores do que a minha capacidade de superá-los. Eu nunca fizera a maioria das coisas que a Bíblia orientava que eu fizesse como cristão. No casamento, as coisas pioraram muito. Antes de me casar, no decorrer dos primeiros quatros anos de vida cristã, comecei a pensar que eu era quase um santo. Quando cheguei à igreja, cheio de entusiasmo, vigor, zelo e dedicação para fazer qualquer coisa para Deus, encontrei muitas pessoas apáticas, sem vigor e até frias espiritualmente. Comecei a fazer comparação comigo e, a partir dessa atitude infantil, comecei a pensar que eu era, de fato, muito mais maduro e espiritual que a maioria das pessoas, mesmo tendo tão pouco tempo de vida cristã. Todavia, já no primeiro ano de casado, descobri que eu me parecia com qualquer coisa, menos com um anjo! Descobri, em mim, uma pessoa insensível, irritadiça, impaciente e incapaz de manter diálogos amigáveis em meio aos conflitos, e o que é pior, digo isso com vergonha, com grande ímpeto para a violência. Eu nunca bati em minha esposa, graças a Deus! Todavia, tive muita vontade, inúmeras vezes! Cheguei, uma vez, a empurrá-la sobre a cama. Outra vez, numa discussão, fiquei tão irado, que comecei a chutar as coisas, gritar, jogando os móveis da sala e, num acesso de fúria, saí vociferando, dizendo que iria embora e que o casamento tinha acabado ali. No mesmo dia, voltei, pedi perdão e acertei as

coisas. Minha esposa virou para mim e disse: “Estou com muito medo de você. Eu não te reconheço”. Eu, envergonhado, tentei explicar: “Quebrei as coisas e os móveis para não quebrar você ao meio”. Hoje, lembro disso e acho graça, mas, na verdade, foi muito trágico! Refletindo sobre essas coisas, descobri que não sabia lidar com os conflitos, e que ficava muito alterado todas as vezes que discutíamos. Percebi também que estava reproduzindo, na relação com minha esposa, o único comportamento que tinha no meu repertório para aquele tipo de situação, em função do modelo que tive em casa até os meus dez anos. Todas as vezes que vi meu pai conversando com minha mãe, presenciava gritos, discussões, ameaças e agressões. Eu estava reproduzindo esse trágico modelo. O casamento revelou exatamente o tipo de pessoa que eu ainda era, e como eu reagiria diante de tensões e atritos naturais ao matrimônio. Timothy Keller é conciso e preciso: “O casamento faz aflorar o que você tem de pior”. 5

Percebi também que Mas, quando estamos comprometidos com a estava reproduzindo, obediência a Deus, não podemos deixar de fazer o na relação com minha que temos que fazer. Como cristãos, aprendemos esposa, o único o que temos que fazer, e nos comprometemos a comportamento que tinha fazer o que aprendemos! Percebemos a dificulno meu repertório para dade em nós e nos outros, sabemos o que deveaquele tipo de situação, mos fazer, mas esbarramos em nossa imaturiem função do modelo que dade, limitação e impotência. Pensamos que não tive em casa até os meus conseguiremos mudar, que não seremos capazes dez anos. de perdoar e de transformar o nosso jeito de falar, agir e reagir. A sensação de impotência, no meu caso, veio da experiência de uma vida fazendo a mesma coisa, da mesma maneira. Nossa mente e emoções gritam, exigindo de nós o recuo imediato, e a acomodação às atitudes disfuncionais mais confortáveis ao nosso nível de maturidade.

Porém, fica a pergunta: por que não podemos deixar de fazer o que temos de fazer? Primeiro, por esse motivo: “Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz nisso está pecando”. (Tg 4.17). Segundo,

5 KELLER, Timothy, Kathy Keller. O Significado do Casamento. São Paulo: Vida Nova, 2012, p.167.

porque fomos capacitados por Deus para fazer o que temos que fazer. O Deus que nos orienta sobre o que temos de fazer, nos capacita a fazer. Temos o Espírito Santo e somos capacitados a andar de acordo com a vontade dEle. (Gl 5.16). A espiritualidade gera maturidade, e essa, a compreensão mais profunda da realidade e, com isso, a responsabilidade pelos rumos e destinos da vida. Sei que o que Deus orienta é o caminho da vida e é possível sob Sua graça e nada é impossível para Deus (Mc 10.27). Como eu poderia saber o que sei sobre Deus e recuar diante dos desafios e das minhas próprias limitações? Se não fizermos o que devemos fazer, mais cedo ou mais tarde, vamos entender que poderíamos ter feito, e isso trará profundas frustações e tristezas. Será como a música dos Titãs, Epitáfio. Leia esse trecho: Como cristãos, aprendemos o que temos que fazer, e nos comprometemos a fazer o que aprendemos!

“Devia ter amado mais Ter chorado mais Ter visto o sol nascer Devia ter arriscado mais e até errado mais Ter feito o que eu queria fazer Queria ter aceitado as pessoas como elas são”

Um dia, quando essa lucidez chegar, restará arrependimento, culpa e dor. Não deixe de fazer o que sabe que deve fazer. Deus empodera a cada um, para ser capaz de realizar o que dEle aprende. Quando percebi o tipo de pessoa que eu era, identificada pelas tensões do casamento, sabia que poderia ser diferente, não por minha capacidade, mas pelo grande poder de Deus que operava em mim, mediante a ação do Espírito Santo, me fortalecendo, conduzindo e transformando. Olhando para trás, tenho total consciência que não fiz sempre o melhor para cada situação da vida, não tomei sempre as melhores decisões, não fiz as melhores escolhas sempre, e não agi em várias situações, como eu desejei e sabia que poderia agir. Todavia, de uma coisa eu tenho certeza: desde o dia que eu

entendi quem é Deus, decidi não deixar de procurar e tentar fazer qualquer coisa que a Bíblia dizia que eu seria capaz de fazer com a ajuda de dEle. Graças a Deus por essa disposição, pois eu teria muita dificuldade de conviver com a culpa, de saber que eu fui capacitado a fazer coisas e que, deliberadamente, decidi não fazer, movido por sentimentos de impotência, conveniência, preguiça, fraqueza espiritual, problemas emocionais, ou por qualquer outro motivo. Não queria ter que mais tarde ser obrigado a dizer: “Queria ter amado mais ...”.

Segundo - “Sou capacitado a fazer o que tenho que fazer.”

Não posso deixar de fazer o que sei e que tenho de fazer, porque sou capacitado por Deus a fazer. Essa é a afirmação do apóstolo Paulo: “... porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”. (Fl 2.13). Ser capacitado a fazer o que deve ser feito não significa que já temos todo o repertório pronto para enfrentar todos os desafios do casamento, mas o Deus que capacita é omesmo que oferece os caminhos para aprendermos a fazer as coisas do Seu jeito. Quando eu discutia com minha esposa, e percebia minha total desarticulação para diálogos eficientes e amorosos, sabia que Deus me capacitaria a usar a fala de forma mais apropriada. A Bíblia nos ensina e capacita a falarmos entre nós de maneira mais eficiente, (Ef 5.19, 4.31-32), a sermos honestos (Mt 5.37), a falarmos a verdade em amor (Ef 4.15) e a estarmos prontos para ouvir o outro, controlarmos nossa raiva, e sermos bem tardios na nossa fala e defesa (Tg 1.19) e, acima de tudo, que devemos exercitar sempre o rígido controle sobre tudo o que falamos (Tg 3.3-4). Entretanto, eu ainda não tinha essas habilidades. Sendo o eixo da engrenagem do casamento, descrito aqui como cooperação e comunicação, eu precisava desenvolvê-las. Com a certeza de que Deus me ajudaria, me dediquei ao aprendizado. Com a leitura da Bíblia, de livros sobre o assunto, oração, prática e treinamento constante, fui adquirindo novos repertórios e novas habilidades. Posso afirmar que saber que para Deus nada é impossível, foi o fator mais decisivo para eu buscar as mudanças que precisava. Aos meus olhos, me tornar a pessoa que Deus planejou que eu fosse em Cristo, com todas as características necessárias para iniciar, desenvolver, manter e aprimorar

o relacionamento conjugal, era um alvo inalcançável. Tudo era utópico demais para mim. Eu sabia exatamente quem eu era, e conhecia meus pecados, pensamentos, motivações, comportamentos, meus limites e possibilidades. Desenvolver o perfil da vida cristã e o retrato bíblico do que eu deveria ser, era humanamente impossível. Mas, graças a Deus, eu tinha recebido recursos sobre-humanos que me capacitariam a atingir os padrões de conduta impossíveis aos meus próprios olhos. A espiritualidade é fundamental em todo o processo. Somos seres cuja força de atração, sob as condições naturais da existência nos empurram normalmente para a dimensão ordinária da existência. É a espiritualidade que faz com que outras forças nos empurrem em direção ao extraordinário. Quando a espiritualidade está afetada, podemos perder a perspectiva das promissoras possibilidades que temos em Cristo, e passar a viver oscilando entre um tipo de vida e o outro, o que não deveria acontecer. A vida cristã é extraordinária, todavia, ela tem gradações, em que a nossa prática de cada aspecto de uma determinada qualidade, pode ser péssima, ruim, regular, boa, ótima e excelente. É a espiritualidade que faz com que outras forças nos empurrem em direção ao extraordinário. Posso ser péssimo em fazer elogios, mas bom na prática do serviço doméstico. Posso ser ruim na disposição de fazer coisas juntos, mas, posso ser excelente nas relações sociais. Posso ser bom quando se trata de transparência, mais excelente quando se trata de sensibilidade. Posso ser ótimo quando se trata de iniciativa, mas posso ser bom, quando se trata de perdoar. As gradações abaixo do item da excelência indicam que ainda enfrentamos algumas dificuldades em determinadas áreas. Todos os graus acima da linha divisória que define o limite do comportamento extraordinário, mesmo quando apresentamos qualidades com níveis péssimos, podem ser classificados dentro do espectro de extraordinário, sob a condição de que é uma área que está sendo trabalhada. Podemos ser péssimos em uma área, mas não podemos empurrá-la para uma região de conservação de pecados e hábitos ruins. A excelência, quando atingida, indica que estamos obedecendo, dentro das condições possíveis da existência, aquilo que a palavra de Deus ensina. Mas, infelizmente, mesmos como cristãos,

somos péssimos em algumas coisas. Existe uma linha divisória entre a vida extraordinária e ordinária. Abaixo dessa linha, que nos remete para a vida ordinária, temos a gradação de regular ou comum, ruim e péssimo. O cristão não deve jamais viver sob essa perspectiva. Quando estamos abaixo dessa linha, decaímos para uma vida comum, ordinária, o que deveria ser impróprio para o cristão. É a vida espiritual que define se vamos viver de forma extraordinária ou de forma ordinária. Qualquer pessoa pode viver sem alcançar a excelência em determinada área por um tempo. Mas, se ela está vivendo acima da mediocridade, estará em processo, avançando de um estágio extraordinário para outro. É sob essa perspectiva que defino o princípio que somos capacitados a fazer o que temos que fazer, ou seja, começando a desenvolver cada aspecto num processo. O importante não é ser extraordinário em tudo, mas, elevar todos os aspectos da vida em direção ao padrão de excelência. O que importa é estar em constante metamorfose em todos os aspectos da existência. O que determina se estamos vivendo na ambiência extraordinária é a determinação de investirmos em todas as áreas ruins, regulares, e péssimas da nossa vida para desenvolvê-las num processo contínuo. O que determina se estamos vivendo uma vida medíocre é a estratificação do nível no qual nos encontramos, tornando-o um estado estanque. É aceitarmos o pior e deixá-lo assim. Abaixo, insiro duas ilustrações que demonstram o que acabei de dizer, sobre as gradações da vida extraordinária e ordinária.

Cristãos vivendo uma espiritualidade ordinária

EXCELÊNCIA ÓTIMO BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO REGULAR RUIM PÉSSIMO MOTIVAÇÃO PERDÃO AMOR PACIÊNCIA INICIATIVA AUTENTICIDADE

Linha divisória entre o extraordiário e o ordinário MODERAÇÃO AMOR

Cristãos vivendo uma espiritualidade extraordinária

EXCELÊNCIA ÓTIMO BOM REGULAR RUIM PÉSSIMO REGULAR RUIM PÉSSIMO MOTIVAÇÃO PERDÃO AMOR PACIÊNCIA INICIATIVA AUTENTICIDADE

Linha divisória entre o extraordiário e o ordinário MODERAÇÃO AMOR

Terceiro - “Farei o que tenho que fazer no momento certo a qualquer preço.”

A obediência que me capacita a não deixar de fazer o que tenho que fazer, me capacita a fazer o que tenho que fazer e, também, me capacita a fazer o que tenho que fazer no momento certo a qualquer preço, o que significa que não deixaremos de fazer nada que seja legítimo e amoroso para o bem do casamento, mesmo que isso envolva um alto sacrifício. O diálogo, as exortações, o perdão, as mudanças, os acordos, os desafios, e tudo mais que faz parte da dinâmica da vida conjugal, vamos fazer, no tempo certo, custe o que custar. Indicamos um “tempo certo”, porque algumas mudanças e conversas podem ser adiadas. Se a pessoa está vivendo um momento de stress, perda, tristeza, depressão, ou qualquer outra experiência que a tenha fragilizado, ela espera paciência e compreensão, pois vai evitar a tratativa de questões que geram mais tensão e dor num determinado momento, já sobrecarregado de tristeza e cansaço. A busca pelo desenvolvimento do casamento precisa ser modelada, em certo sentido, pelas circunstâncias da vida. Não estou falando de procrastinação e evitação para tratar assuntos difíceis, antes, apenas sugiro que se espere o momento certo para tratar de algumas questões delicadas. Quem tem maturidade e sensibilidade para entender os outros, poderá esperar até que o momento adequado para o diálogo surja.

Aconselhei um pastor, cuja esposa estava passando um momento muito difícil. Ela vinha enfrentando um problema familiar que lhe trazia muita tristeza e enormes desgastes. O envolvimento dela com o problema de uma pessoa da sua família de origem já se prolongava por mais de um ano. Nesse período, ela negligenciou as necessidades de seu marido e filhos, descuidou-se de suas responsabilidades com a casa, e, invariavelmente, estava sempre de mau humor e irritada. Toda vez que ele tentava conversar sobre o assunto, ela o acusava de insensível, descaridoso e incompreensível. Quando estamos vivendo no “olho do furacão”, não conseguimos enxergar com clareza. Ambos estavam tendo percepções parciais do problema. Aconselhei o pastor a ter paciência e esperar que essa fase passasse, para conversar com a esposa em outro momento. O problema, provavelmente, se prolongaria por mais meio semestre. Apontei o quanto oproblema era grave aos olhos da esposa, motivo pelo qual, ela se encontrava tão envolvida e cansada. Tentei explicar o quanto era difícil para ela viver aquele momento sem que isso afetasse a todos ao seu redor. O pastor entendeu a gravidade da situação para a esposa, decidindo esperar para conversar com ela sobre alguns temas delicados, numa ocasião posterior. Quando essa fase passou, eles conversaram e se entenderam. Pessoas maduras sabem esperar os momentos mais oportunos para tratar os conflitos conjugais. E quando esse momento chegar, não importa o quanto seja difícil e doloroso, o diálogo vai acontecer, custe oque custar. O casamento é feito de conversas difíceis. “Quando se trata de fricções no relacionamento, um problema adiado é um problema piorado. Neste caso, o tempo é inimigo do casal.”6 (Grifei para destacar a importância da Não podemos adiar conflitos, pois conflito adiado é conflito piorado. frase). Não podemos adiar conflitos, pois conflito adiado é conflito piorado. A obediência não apenas me fará fazer o que for necessário para o bem do casamento, mas me capacitará a fazer no momento certo, sem importar o preço que pagarei. O nosso compromisso deve ser o de lutar para

6 CARDOSO, Renato e Cristiane Cardoso. Casamento blindado: o seu casamento à prova de divórcio. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012.p. 45.

fazer com amor o que for necessário, em qualquer área da vida conjugal, no momento certo, a qualquer preço.

O processo do crescimento

Quando pensamos em crescimento em direção à excelência, devemos sempre ter em mente três verdades: 1)O crescimento acontece através de processos. 2)O crescimento é lento, pessoal e dinâmico. 3)O crescimento traz desconforto, dor e ajuste.

Em primeiro lugar, o crescimento acontece através de processos. A maturidade nos capacita a ter paciência conosco e com os outros. Todos estão em obra, e o mais importante é estarmos no processo. Deveríamos nos avaliar e perguntar: “Em que estágio estamos no nível da nossa maturidade? Estamos sendo mais sensíveis, mais transparentes, mais amorosos e mais perdoadores do que quando decidimos obedecer?” Isso é mais importante do que já possuir os repertórios necessários. Todos nós somos muito bons em um aspecto e não tão bons em outros. Não importa, necessariamente, que patamar alcançamos, desde que estejamos no processo. O importante é viver acima da linha da mediocridade. O importante é experimentarmos a metamorfose contínua através da obra de santificação, que Cristo deu início em nossas vidas, quando nos tornamos novas criaturas. Não podemos olhar para trás, se não viraremos estátuas de sal. Temos que prosseguir caminhando.

Em segundo lugar, o crescimento é lento, pessoal e dinâmico. Não cabe julgamento para alguém que está vivendo acima da linha de mediocridade, mesmo próximos ao seu limite, pois cada um tem seu próprio ritmo, e a dinâmica da velocidade do processo é muito pessoal. Alguns vão mudar com velocidade, outros com lentidão. Mas, para a maioria das pessoas, o processo é lento e, para a nossa frustração, bem mais lento do que gostaríamos. Ora, se acreditamos na pessoa que vive conosco, quando ela diz que está tentando, não podemos julgá-la através da perspectiva, velocidade, dinâmica e resultados em relação ao nosso próprio

processo. O processo de crescimento, devemos sempre lembrar, é lento, dinâmico e pessoal.

Em terceiro lugar, o crescimento traz desconforto, dor e ajustes. Crescer dói. Os padrões elevados das Escrituras não são naturais para pessoas que vivem sob as condições e forças alienantes da existência. O processo é lento exatamente porque não é natural, entrando em choque com nossa tendência natural para a mediocridade e egoísmo. O casamento deveria gerar em nós uma cumplicidade empática e condescendente. Temos que aprender a tolerar as dificuldades do outro, porque conhecemos as agruras do crescimento na própria pele, como uma navalha retalhando a epiderme, e às vezes, riscando o osso!

A qualidade da obediência que apresento aqui, é do tipo encarnacional, a exemplo do modelo de Jesus. É um tipo de obediência vital, relacional, orgânica, que faz o que faz, motivado por amor. É semelhante àquela que Jesus demonstrou em João 4.34: “Disse-lhes Jesus: A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra”. É algo que não posso deixar de fazer, pois equivale ao que me mantém vivo. Fazer a vontade do Pai é ter uma identificação tal com Ele, ao ponto de a vontade dEle passar a ser minha.

Gosto de uma história que ouvi a respeito de Napoleão. Costumo denominar essa história de “O menino da porteira”. Conta-se que Napoleão, comandando suas tropas por grandes propriedades, no território francês, deparou-se com uma porteira de uma grande fazenda, e um menino, de aproximadamente 10 anos, plantado na frente, em pé, como se estivesse de guarda. Napoleão se dirigiu ao menino e ordenou: “Menino, abra a porteira para minha tropa passar”. O menino respondeu: “Senhor, não abro, não”. O comandante, curioso para entender a atitude corajosa do menino, perguntou: “Menino, você sabe quem eu sou?”. O menino respondeu: “Sei sim, Senhor!” Disse-lhe Napoleão: “Então, por que você não abre a porteira?”. O menino, resoluto, sem titubear, afirmou com toda coragem e simplicidade: “Meu pai me deu ordem para eu não abrir a porteira para ninguém. Por isso, em obediência ao meu pai, ninguém pode passar por aqui”. Napoleão, dirigindo-se ao seu exército, disse: “Dême cem homens como esse menino, e eu conquistarei o mundo!”.

Quando eu trato da obediência encarnacional, avanço numa dimensão superior à obediência do menino. O cristão deve dizer o seguinte: “Aquilo que meu Pai me mandou fazer, eu farei, não apenas porque meu Pai mandou, mas, porque a vontade dEle é a minha vontade. Não posso deixar de fazer a vontade dEle, pois ela me alimenta, me faz viver e me dá alegria. Tenho enorme satisfação quando faço a vontade do meu Senhor, “pois a sua graça é melhor do que a vida”. (Sl 63.3).

Uma espiritualidade assim confere ao casamento uma dinâmica de crescimento contínua e crescente. Casamento nenhum pode dar errado quando Cristo é o Senhor, e se Cristo está conduzindo a vida do casal, tudo vai se ajeitar com o tempo.

É por isso que, quando orientamos os jovens na preparação para o casamento, apontamos a gravidade que o desnível de maturidade pode trazer para a qualidade da vida conjugal. Não basta que o outro seja cristão, ele precisa demonstrar compromisso espiritual com Cristo. Quando há desnivelamento em relação a esse fator, a engrenagem vai funcionar com morosidade e apresentar fricção e atrito. A engrenagem do casamento não suporta fricção e atrito intenso por muito tempo. Ela vai quebrar! Casamento nenhum pode dar errado quando Cristo é o Senhor, e se Cristo está conduzindo a vida do casal, tudo vai se ajeitar com o tempo.

Atritos relacionados à falta de espiritualidade

Quando uma pessoa se casa com alguém que não tem vida espiritual, ela se casa com alguém que não tem ressonância com o tipo de demanda que o casamento, de uma forma geral, requer. A questão da religiosidade não é tão importante quanto é a questão da espiritualidade. O casal pode ter credos diferentes, mas se houver verdadeira espiritualidade, haverá oque a frase atribuída a Peter Meiderlin prescreve: “Nas coisas essenciais, unidade, nas não-essenciais, liberdade; em todas as coisas, amor”. 7 A espiri-

7 http://solascriptura-tt.org/SeparacaoEclesiastFundament/NasCoisasEssenciaisUnidade. NasNaoEssenciaisLiberdade-VemIssoBiblia-DCloud.htm. Extraído no dia 05-06-2020, às 13.44h.

tualidade, como vimos, é dotada de um poder fenomenal, que faz toda diferença para o casamento: o poder do amor! É como ensina Larry Crabb: “Trata-se do amor que nos capacita a suportar com paciência as atitudes erradas, resistir ao mal com convicção, a desfrutar das coisas boas com prazer, a dar de nós mesmos generosamente e com humildade, e a nutrir a alma do outro com perseverança.”8

Quando há desníveis na qualidade da espiritualidade praticada pelos cônjuges, há um fator desarmônico que vai afetar a engrenagem, gerando fricção, atrito, que vai causar muito desgaste na relação. Alisto aqui quatro problemas que, provavelmente, surgirão em decorrência da desarmonia nas engrenagens nesse aspecto. É óbvio que todos esses atritos podem não surgir em alguns casamentos, porém, o perigo é real, e a probabilidade é maior do que a maioria de nós gostaria que fosse. Os causadores de atrito são: desnivelamento em relação ao estágio espiritual onde o casal se encontra, problemas de caráter, cosmovisão de mundo e estilo de vida.

A figura a seguir ilustra esses aspectos.

Fatores geradores de atrito

DESNIVELAMENTO

Fator Espitualidade

CARÁTER ESTILO DE VIDA

COSMOVISÃO

Esses são atritos que poderão aparecer quando alguém decide se casar com uma pessoa sem o tipo de espiritualidade defendida aqui. As

8 CRABB, Larry. Homem e mulher. Viva a diferença. Belo Horizonte: Betânia, 1997, p.53.

fricções que vão aparecer terão potencial de abalar a qualidade da vida conjugal, e até colapsar a engrenagem. Vamos discutir cada um desses atritos aqui para, em seguida, oferecer algumas sugestões que poderão nos ajudar a lidar com cada um desses problemas.

Desnivelamento Espiritual

O desnivelamento espiritual é um problema grave. Podemos identificar alguém que não tenha espiritualidade nenhuma, mas também, alguém que esteja em um estágio diferente na vida espiritual. João indica esses estágios quando estabelece três níveis de espiritualidade: filhos, jovens e pais (1 Jo 2.12-14). Essa é a compreensão de Stott quando diz: “O autor divide os seus leitores em três grupos, que denomina filhinhos, pais e jovens, e a cada grupo se dirige duas vezes. Ele está indicando, não as suas idades físicas como pensam alguns, mas estágios em seu desenvolvimento espiritual, pois a família de Deus, como toda família humana, tem membros de diferente maturidade.”9. Casar-se com uma pessoa sem espiritualidade, ou em um nível muito inferior, pode possibilitar o surgimento de atritos graves, como será demonstrado. Poderão surgir problemas de caráter, cosmovisões completamente antagônicas em relação a aspectos que podem ser muito caros para o casal, além de implicar, muito provavelmente, em estilos de vida completamente diferentes. Mas esse não é o único problema, pois, a pessoa poderá também se encontrar em estágios muitos pueris da vida cristã, e não demonstrar disposição e vontade para sair dele. Esse tipo de desnivelamento, vai gerar atritos e desgastar a relação. Infelizmente, a reclamação mais comum que ouço das esposas é de que seus maridos não lideram o lar e não se envolvem com a vida da igreja. É verdade que homens espirituais podem apresentar dificuldades no exercício da liderança na família por diversos motivos, todavia, irão se esforçar para desenvolver as habilidades necessárias para liderar ocasamento, e para se envolver com a sua comunidade local. A espiritualidade cristã é, essencialmente, a dedicação no serviço a Deus, ao próximo e ao mundo, através da comunidade local. Algumas esposas vão sofrer muito com esse problema, e alguns maridos também. O desgaste,

9 STOTT, John R. W. João 1,2,3. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 83.

ao longo da jornada, vai minar as forças dos cônjuges e gerar conflitos intermináveis, que poderiam ter sido evitados, se ambos tivessem vidas espirituais comprometidas com Cristo. Certamente ainda teriam problemas, mas seriam vividos sob outra perspectiva. A Bíblia é categórica quando afirma: “Não se ponha em julgo desigual com os descrentes...” (2 Co 6.14). Essa desigualdade poderá se tornar um conflito entre justiça e maldade, entre luz e trevas, e o que é pior, entre Deus e o diabo. (2 Co 6.14,15). “A expressão jugo desigual” (ginesthe heterozygountes) contém a ideia de alguém estar num jugo desnivelado.”10 Kruse explica que era proibido colocar animais diferentes sob um mesmo jugo. O jugo era uma peça de madeira colocada sobre uma parelha de animais para puxar o arado. Quando isso era feito, todo o esforço e desgaste do trabalho recairia sobre o animal maior. A lição é clara! O jugo desigual trará um fardo excruciante e pungente sobre um dos cônjuges.

Estilo de vida

Dependendo do nível de espiritualidade, o estilo de vida pode ser totalmente diferente. Isso vai gerar atritos, sem dúvida. Imagine uma pessoa comprometida, disposta a servir a Deus, servindo à comunidade e aos irmãos, vivendo a seguinte situação: no dia do culto, ele (a) deseja estar com os amigos (as). Não há problema, se, uma vez, ou outra, decidirmos investir na vida de um amigo e, por causa disso, faltarmos ao culto para estar com ele. O problema é que pessoas não comprometidas com a comunidade, fazem esses programas exatamente no dia e horário de culto. Atendi uma esposa cuja reclamação do marido era essa. Segundo ela, o marido queria estar com os amigos todos os domingos, exatamente no horário de culto, repetidas vezes e agindo como se o compromisso com a igreja local e a comunidade fosse algo sem importância. Eles se reuniam para beber e jogar conversa fora. A esposa sofria também porque as esposas iam a esses encontros com muita regularidade, e o marido, vivia reclamando, pois ela, normalmente, não ia. Ela dizia que um dos seus maiores sonhos era servir a Deus na companhia do seu esposo. Agora, casada, quando prestava algum serviço para a comuni-

10 KRUSE, Colin. 2 Coríntios. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2014. P. 145.

dade, fazia sozinha, e o marido não participava de absolutamente nada. Ela experimentava uma profunda frustração e desânimo por causa desse comportamento. Não estou julgando a atividade do marido com os amigos, necessariamente, como errada, mas apenas exemplificando atritos que surgem por causa dos anseios relacionados à espiritualidade. Como podemos observar, dependendo do estilo de vida, podem surgir atritos em relação à vida financeira, lugares frequentados, modelos de educação, tipos de amizades, tipos de filmes preferidos, palavreados e até diferenças nas preferências sexuais.

Atendi uma mulher cuja reclamação era que o marido a obrigava a assistir filmes pornográficos, antes do intercurso sexual, o que lhe trazia grande sofrimento. Atendi um marido que reclamava que a esposa não aceitava ter seu salário administrado de comum acordo pelo casal. Ela ganhava muito mais do que ele, e não aceitava que o marido interferisse na maneira como usaria o seu dinheiro, mesmo que isso fosse realizado através de regras e acordos. Ela não aceitava esse tipo de metodologia de gerenciamento financeiro no casamento. Esse foi um caso em que, por causa da esposa, não foi possível chegar a qualquer tipo de negociação.

Outros problemas menores, mas, não menos desgastantes, tem potencial de minar a energia e satisfação da vida conjugal. Homens e mulheres, cuja espiritualidade é precária, de nível infantil e com alguns desajustes emocionais, vão encrencar com seus cônjuges, algumas vezes, por situações aparentemente normais. Um marido criava problemas com a esposa quando participava de reuniões na comunidade, com a presença de homens. Ele não aceitava isso de jeito nenhum e vivia brigando com a esposa, exigindo que ela deixasse oseu trabalho na igreja. No ministério infantil da igreja, homens e mulheres trabalham juntos, sendo absolutamente comum esse tipo de reunião. Esse marido era cristão, mais muito infantil e inseguro. O desnivelamento espiritual pode gerar esse tipo de problema. Homens e mulheres, cuja espiritualidade é precária, de nível infantil e com alguns desajustes emocionais, vão encrencar com seus cônjuges, algumas vezes, por situações aparentemente normais.

Caráter

Uma pessoa pode não ser cristã e ter um caráter absolutamente íntegro, e ser cristã, mas não ter integridade. Caráter é o conjunto das qualidades que determinam a conduta e os valores morais e éticos de um indivíduo.

Veja a ilustração a seguir. Ela demonstra a possibilidade de que, qualquer indivíduo, mesmo não sendo cristão, tenha um alto padrão de integridade.

INTEGRIDADE

CRISTÃO NÃO-CRISTÃO

IMORALIDADE

Todavia, um verdadeiro cristão, sempre terá um alto padrão de integridade. Não será perfeito, mas apresentará um tipo de caráter confiável e caracterizado por princípios virtuosos. Há possibilidade de alguém se casar com um desses dois tipos de pessoas, cristão e não cristão, e ter problema nessa área. Mas, a falta de uma espiritualidade autêntica, pode resultar em frouxidão moral e ética, em falta de caráter e de integridade. As reclamações comuns nesse sentido estão relacionadas à mentira, traição, irresponsabilidade com os compromissos assumidos, falta de palavra, desonestidade, falsidade, grosseria, abuso físico e psicológico, e vários outros comportamentos que evidenciam uma clara ausência de caráter. Algumas mulheres reclamam que seus maridos são irresponsáveis, levam tudo na brincadeira, tem um sistema moral frouxo e flexível, não cumprem com sua palavra e cometem pequenos deslizes no trabalho, impossibilitando que as esposas tenham segurança e confiança neles. Alguns maridos reclamam que suas esposas são fofoqueiras,

rixosas, invejosas, petulantes, encrenqueiras, melindrosas e dinheiristas, criando muitas dificuldades para a manutenção do relacionamento conjugal, e com outros casais. Pessoas assim, trazem grandes atritos para a engrenagem do casamento.

Cosmovisão

Cosmovisão, ou visão de mundo, é um conjunto ordenado de valores, crenças, impressões, sentimentos e concepções a respeito da totalidade da realidade da existência. Um dos princípios catalisadores no processo de comunicação no casamento é o cultivo do respeito e aceitação da opinião do outro, mesmo em áreas delicadas, impedindo que as divergências gerem ressentimentos e rupturas. Todavia, o desnivelamento espiritual e o nível de maturidade, podem trazer divergências irreconciliáveis. Há muitos anos, atendi uma viúva cristã, que decidiu se casar com um homem não-cristão. Eu fiz sérias advertências sobre os riscos que esse tipo de casamento poderia acarretar para a sua vida. Ela não conhecia bem a pessoa e estavam se relacionando a menos de três meses. Contra todas as minhas advertências e orientações, ela insistiu, e manteve o relacionamento. Numa das conversas ela me disse: “Pastor, ele vai na igreja comigo, e faz tudo o que eu peço. Ele bebe socialmente e fuma, mas fizemos um acordo que nenhum tipo de bebida alcoólica, entraria na nossa casa, e que ele só fumaria na rua, jamais dentro de casa.” (Essa irmã teve sérios problemas com alcoolismo na família e problemas respiratórios). Mais ou menos, seis meses depois, eles se casaram, e apenas uma semana depois do casamento, essa irmã veio me procurar, com uma expressão de angústia no rosto, quase de terror, me contando o que tinha acontecido. Ela relatou que no primeiro dia em casa, logo depois da lua de mel, o marido chegou do trabalho com garrafas de uísque e cerveja e as acomodou na geladeira. Em seguida, a chamou para conversar e disse o seguinte, num tom de voz grave e agressivo: “A partir de hoje, você não vai mais na igreja, não vai mais falar de Deus e Jesus nessa casa, e não vai fazer nenhum tipo de reclamação sobre minhas bebidas e meu cigarro! A Bíblia diz que você tem que me obedecer, e é isso que eu ordeno que você faça. Eu vou beber e fumar aqui dentro, o quanto eu quiser, e você tem que aceitar, sem reclamações e brigas”. Ela suportou o casamento por seis meses, mas acabou pedindo a separação.

Imagine todos os transtornos espirituais, emocionais e sociais que essa pobre mulher enfrentou? A Bíblia oferece a oportunidade de salvação para todos, mas não dá nenhuma garantia de que os cônjuges não convertidos serão salvos pelo testemunho da esposa, ou de qualquer outra maneira: “Você, mulher, como sabe se salvará seu marido? Ou você, marido, como sabe se salvará sua mulher?” (1 Co 7.16).

A cosmovisão peculiar de cada um a respeito da existência pode gerar atritos incontornáveis. Aconselhei um casal que vinha brigando faziam meses, por causa de conflitos religiosos. Ele era católico, e queria que os filhos fossem batizados na sua igreja. Ela era evangélica, e não aceitava a vontade do marido, por causa de suas convicções sobre o significado do batismo. Ela acreditava que deveriam esperar as crianças crescerem para que elas decidissem onde e se queriam ser batizadas. Ele afirmava que não podia permitir que os seus filhos vivessem como pagãos no mundo! Sugeri que ela se submetesse aos desejos do marido, caso ele se mantivesse irredutível, pois ele era o líder instituído por Deus e usaria esse argumento, que na verdade não expressa a totalidade do ensinamento das Escrituras sobre liderança familiar. Mas, sugeri também ao marido que esperasse o tempo de os filhos poderem escolher, o que evitaria desgaste com a esposa. Eles decidiram esperar, mas viveram meses de desgaste e atritos por causa disso.

Todos os cristãos sabem que muito do que cremos é matéria de fé, ou seja, nem sempre temos uma explicação racional para tudo que cremos e fazemos, além do que, o homem natural não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus, ao contrário, elas lhe parecem loucura (1 Co 2.14-15). O meu curso de psicologia foi custeado por uma mulher, cujo marido não era cristão protestante. Durante 5 anos, ela fielmente depositou na minha conta o valor da mensalidade do curso, sem falhar uma única vez. Essa experiência foi um milagre na minha vida, todavia, o seu marido não era evangélico, mas apoiou sua decisão. Ela decidiu renunciar a regalias durante cinco anos, para ajudar um pastor que mal conhecia. Ela me confidenciou que Deus tinha falado ao seu coração, para fazer esse investimento custoso. Imaginem ela contando a história para o marido! Milagrosamente, o marido não fez nenhuma objeção, mas poderia, e se isso acontecesse, eu acharia absolutamente compreensível. Essa seria

uma situação difícil, mesmo para mim, como pastor! Já tentei imaginar minha mulher chegando em casa e dizendo: “Deus me falou para custear ocurso de psicologia do fulano de tal”. Eu não tenho dúvida de que Deus usou essa irmã para me abençoar com essa ferramenta, que me habilitaria a ajudar muitas pessoas, inclusive pastores e familiares. A cosmovisão de mundo pode gerar atritos em várias áreas e segmentos da existência. As pessoas costumam discutir por coisas pequenas, que mesmo sem valor crucial para a vida, geram atritos e desgastes. Eu já discuti com minha esposa, por exemplo, sobre, se eu poderia ou não emprestar algumas coisas da nossa casa, e sobre coisas que não concordávamos se eu poderia ou não dar ou me desfazer! São visões de mundo diferentes! Por causa de cosmovisões diferentes, podemos ainda discutir sobre papéis, funções, vida financeira, viagens, descanso, trabalho e sobre muitas outras coisas, apenas por termos uma opinião um pouco diferente do outro. Todavia, algumas visões de mundo podem ser inegociáveis. Quando há espiritualidade autêntica, muitos valores e crenças são comuns em relação a aspectos mais importantes da existência, em torno dos quais tendemos a ter opiniões mais parecidas, entretanto, não podemos dizer isso sobre todos os casais que enfrentam desnivelamento espiritual.

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