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Lugar incomum
Revestida por nuvens negras e espessas, a lua reinava soberana sobre o céu de Curitiba. Sua luz atravessava as montanhas negrumes do céu, criando um efeito artístico na imensidão sem estrelas. O frio cortante parecia ter vindo para ficar, enquanto o som do vento assobiando ao longe trazia à noite uma espécie de sensação fantasmagórica. Os uivos de alguns cães faziam dueto com a lua e o vento, enquanto de longe o barulho austero de um carro barulhento trazia o caos para a calmaria da noite.
O Chevette antigo trovejava pelas ruas de Curitiba. Turbinado, cantava pneus a cada curva. Acelerava tanto que o barulho impedia até os pensamentos de serem ouvidos por aqueles que estavam dentro do carro. O Chevette costurou um caminho tortuoso deixando Marcelo e o médico sem noção de onde estavam sendo levados. Por fim perceberam que estavam no Jardim das Américas, subitamente adentrando no campus da maior universidade da cidade. Ao entrar pelo portão, que já estava aberto, o Chevette dirigiu-se diretamente a um prédio bem no centro da universidade. Marcelo e o médico se olharam tentando entender o que faziam naquele lugar. O pensamento de Marcelo vagava entre o céu e o inferno, navegando entre o sonho onde Kelly se acidentava, e a imagem do telhado despencando sobre o policial. Sua garganta havia secado, seus músculos se contraíam, e no seu peito o coração bombeava como uma britadeira, testando os limites de sua ansiedade.
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– Desce todo mundo do carro, e em silêncio! – Falou o rapaz apontando a escopeta para todos. Marcelo e o médico desceram assim que a porta se abriu, seguidos por Daniel. O bandido não queria perder tempo, e os empurrou na direção de um dos prédios. – Anda logo! – Gritou. – Já demoramos muito! – O adolescente que estava inconsciente já havia despertado. Visivelmente atordoado e mancando de uma das pernas, ele vinha atrás de todos com um revólver na mão.
A faculdade estava deserta. Os prédios ladeavam árvores frondosas que se derramavam bucolicamente sobre a paisagem, apenas deixando passar o som do vento que soprava das ruas. Nenhuma alma viva se via em qualquer lugar. Após abrir cuidadosamente a porta de metal com a chave que estava em seu bolso, o rapaz colocou todos para dentro do prédio, trancando-a novamente. Ao subirem pelo corredor escuro, o corrimão pintado de azul celeste transparecia na escuridão, revelando nuances do caminho em meio à penumbra. Chegando ao último andar, observaram uma placa de madeira sobre a porta de onde se aproximavam. Debaixo da porta, uma luz revelava que a sala não estava vazia.
O prédio estava totalmente escuro e como o som melancólico da brisa passava pela fresta da janela causando uma sensação fantasmagórica, Marcelo sentia um arrepio subir pela espinha. Como invadia a escuridão daquele corredor de maneira furtiva, e com duas armas apontadas para ele, Marcelo sentia-se caminhando para uma execução. Ele não fazia ideia do que o aguardava no restante daquela noite. Ao se aproximar da porta Marcelo e os outros conseguiram ler a placa de madeira: “Biblioteca”. Mais uma vez eles se entreolharam, sem entender nada.
A Biblioteca estava com as luzes acesas, e alguns alunos sentados e deitados sobre as mesas de estudo, enquanto quatro homens armados andavam de um lado para o outro, cuidando do lugar. Eram três corredores entre as estantes, sendo que nas paredes as mesas para leitura serviam de cama para alguns estudantes exaustos.
Como se Deus não existisse
Três pessoas, Catatau? Três pessoas? Será que você não consegue fazer nada direito? – Gritou um homem com um boné azul, enquanto a dupla trazia Marcelo, o médico e Daniel pela porta. O homem usava uma camiseta preta com manchas de sangue na gola e na barriga. Por baixo de seu boné azul, seu cabelo loiro escapava pelas bordas, contrastando com seus olhos também azuis. De estatura alta e magra, e fumando dentro da biblioteca, visivelmente não dava o menor valor a qualquer regra de conduta que se espera ter em uma biblioteca.
– Não teve outro jeito, tinha um policial ... – Desculpou-se Catatau.
– Traz o médico aqui, seu irmão já perdeu muito sangue!
Segurando firmemente o braço do médico, Catatau o puxou até fundo da biblioteca. Seguindo-o, Marcelo caminhava ao lado de Daniel, que tremia a cada passo que dava. De lábios cerrados e olhos inquietos, Marcelo tentava absorver tudo o que estava ao seu redor. Cada passo que davam era acompanhado pelos olhos dos rapazes armados observando através das estantes.
“O que eu estou fazendo aqui?” se perguntava Marcelo. Passou os olhos em cada um dos alunos presentes. Viu um estendido sobre uma mesa num sono profundo e outro acariciando os cabelos da namorada que descansava no chão. Uma menina chorava silenciosamente no canto da parede, enquanto outra lia um livro, sem se importar com o que acontecia.
– Entreguem os celulares! – Falou um dos homens.
– Eu não tenho celular!
– Respondeu Daniel enquanto Marcelo entregava o seu. Ao tentar seguir o médico até o final da biblioteca, foi interrompido por outro homem armado, que ordenou que se sentasse junto aos alunos, encostado na parede.
Do lugar onde haviam se sentado, olhando-se para o fundo da biblioteca não se via muita coisa, apenas o reflexo vermelho de uma poça sob uma mesa. Ouviam-se gemidos de dor vindos da mesma dire- ção, mantendo os alunos acordados e ansiosos. “Afinal, o que será que está acontecendo aqui?”, pensou Marcelo.
– O que aconteceu com ele? – Indagou o médico ao ser posto diante de um rapaz ferido, deitado sobre uma grande mesa.
– Vidro! – Respondeu o homem com o boné azul enquanto soltava uma baforada de seu cigarro.
– Vidro?
– Ora. Vidro, caramba! Vidro é vidro!
– Como isso aconteceu? Preciso saber o que ...
– Saber o que aconteceu não é da sua conta! – Respondeu o homem.
– Como? – O médico enrugou a testa. – Eu só preciso de alguns detalhes ...
– Se você fizer o seu trabalho, vai ficar tudo bem! Quanto menos souber, melhor! – Deu uma pitada no cigarro e voltou a falar soltando a fumaça pelo nariz – Faça o seu trabalho. – Respondeu rispidamente. – Ninguém mais precisa se machucar! – Deu uma baforada na cara do médico – O problema dele é vidro, ele está todo cortado. Só isso! Se ele se recuperar, ninguém sairá ferido daqui.
– Mas e se ele não se recuperar? – O médico olhou para o homem esperando uma resposta, mas ele virou as costas e saiu.
Encostados na parede, longe do barulho, Marcelo e o garoto esperavam ao lado de um casal de namorados. Daniel, o rapaz que havia sonhado com Marcelo, parecia tão nervoso que não conseguia mexer um músculo sequer. Do jeito que se sentou, ali ficou. Marcelo observava o estudante ao seu lado acariciar afetuosamente os cabelos da namorada. A adrenalina que havia sido injetada no seu corpo agora começava a esmaecer, amortecendo calmamente os seus sentidos. Ao olhar o casal, era impossível não se lembrar de Kelly. Pensava em seus cabelos e nos seus olhos. Lembrava-se do quão carinhosa e delicada ela
Como se Deus não existisse sempre o tratava. “Afinal, como será que ela está? E aonde?”, pensava encostando sua cabeça na parede.
Inebriado pelo esvanecer da adrenalina, seus nervos até então tensos queriam se entregar ao cansaço. Ao mesmo tempo em que suas pálpebras começaram a pesar, os pensamentos de Marcelo surgiam em sua mente como uma avalanche de questionamentos: “Onde está Kelly?”, “Será que ela está bem?”, “Que sonho foi aquele que eu tive?”, “Como este rapaz sonhou o mesmo que eu?”, “Como eu vou sair daqui?”. Marcelo trafegava entre mundos naquele estado semiacordado. “Preciso sair daqui!”, repetia a si mesmo. Querendo vencer o sono, começou a balbuciar como se estivesse em transe.
– Não tem como sair daqui! – Falou o rapaz que acariciava os cabelos da namorada.
– Como? – Reagiu Marcelo, percebendo que havia falado alto.
– Você disse que precisa sair daqui! – Falou o rapaz enquanto passava lentamente as mãos entre os cabelos de sua namorada. Os dois eram loiros e com olhos claros, por volta dos vinte anos de idade.
– Eu? – Respondeu Marcelo, ainda tentando despertar.
– Eles não vão nos deixar sair até que descubram uma maneira de fugir com o dinheiro.
– Dinheiro? Que dinheiro?
– O dinheiro nas sacolas brancas! – Apontou para quatro sacolas próximas às estantes do outro lado da sala, próximo a um rapaz com uma escopeta sobre o colo. – O que eles assaltaram eu não sei. – Continuou o rapaz. – Mas parece ter muito dinheiro ali. – Marcelo arregalou os olhos e sacudiu a cabeça. Foi quando lhe veio um pensamento: “Uma quantia tão grande de dinheiro seria motivo de sobra para aqueles marginais matarem qualquer um que atrapalhasse seus planos”. O que ele pensou ser um sequestro equivocado, na verdade era um assalto, no qual ele e aqueles estudantes se tornaram reféns de assaltantes violentos, cujo plano desconhecido poderia até envolver a morte de alguns ali.
No pronto socorro do Hospital Evangélico, duas enfermeiras correm apressadamente para atender um chamado urgente. O auto falante do hospital chamava alguns médicos para a sala de emergência, enquanto três ambulâncias iluminavam com suas luzes giroscópicas as paredes do lado de fora. Várias macas colocadas lado a lado aguardavam o atendimento emergencial naquela noite fria e úmida. Logo em frente à porta de uma das ambulâncias, a maca de uma moça inconsciente aguardava, deitada com um colete cervical e outras proteções pelo corpo.
– O que aconteceu? – Perguntou um médico enquanto colocava suas luvas e máscara.
– Um acidente! – Respondeu uma das enfermeiras enquanto empurrava uma das macas.
– Droga! E eu que pensava que esta noite seria tranquila! Qual deles é o mais crítico? – Perguntou o médico enquanto outros enfermeiros se aproximavam.
– O homem ali está ... – A enfermeira começou a responder, mas o médico segurou sua mão impedindo-a de continuar. Ele havia se virado e percebido a moça inconsciente sobre uma das macas. Atônito, parecia enxergar algo que a enfermeira não havia visto. Após alguns segundos, ele falou:
– Chamem o Dr. Silas! – Falou com os olhos fixos na moça.
– O dermatologista? Ele não faz plantão a noite ...