COLEÇÃO viagens na ficção
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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida. www.chiadoeditora.com Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde Conjunto Nacional, cj. 903, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil Avenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar 1250-166 Lisboa, Portugal
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© 2015, A. Ridan e Chiado Editora E-mail: geral@chiadoeditora.com Título: Herathor - As Seis Zekats Editor: Mayara Facchini Composição gráfica: Vera Sousa – Departamento Gráfico Capa: Prasad Siva e Ana Carolina da Silva Crestani Revisão: A. Ridan Impressão e acabamento: Chiado Print 1.ª edição: Agosto, 2015 ISBN: 978-989-51-4337-5 Depósito Legal n.º 392205/15
A. Ridan
Herathor As Seis Zekats
Chiado Editora Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde
Para todos os meus grandiosos amigos, os quais não me presentearam apenas com a amizade, mas com sua leitura e suas críticas. Para todos aqueles que me apoiaram nesta trajetória incerta da escrita. Aos meus pais, os quais me criaram e educaram, ensinando-me sobre o ódio e o amor, revelando o caminho entre o pecado e o perdão para que eu pudesse chegar até este momento. Mas, principalmente… Obrigado Beatriz, por ser a mulher mais encantadora e perfeita de minha vida. Minha inspiração e a minha felicidade se devem ao mais encantador dos sorrisos, cujo qual apenas você pode oferecer. Obrigado por acreditar em mim. Obrigado por me fazer acreditar em mim.
Índice
Consequências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Ato I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Prólogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Nakryn Bahlandur. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Ezrath Ma-Woo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Yzgart. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 A Morte de Ablurgor Hyvat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 Conversas do Fogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Priv Pajainen. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 O Sepulcro do Guerreiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 A Caverna de Arakna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 O Legado Malit. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 A Cicatriz Escarlate. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 O Furor Negro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 As Seis Zekats. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 Ato II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 Olhares Inertes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 Byt Pajainen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 Ruínas de Uma Memória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 A Mensagem do Pequeno Guardião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 Wak Pajainen. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .271 Hel Eldur. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293 Mestre das Charadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 O Corpo e o Credo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
Ato III. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aahbran As-Ha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Raanka. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Boldyr. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Malaki Mhór. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Demônio Pode Chorar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Calar do Pranto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Patrono do Destino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Abismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Morredouro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Epifania. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Último Amigo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Consequências
-I-
C
– hegaremos a tempo? – Pela bondade de Xícenum, Ablurgor, eu espero que sim. O estrépito das pesadas armaduras dos cavalos rasgava o som ao que a chuva caia agressivamente sobre suas cabeças. O vento forte e tempestuoso quase arrastava as pobres criaturas para o lado. Montados, homens de diversas raças seguravam-se veemente. Seus cabelos grisalhos esvoaçavam contra o vento. Perdera seu elmo durante a viagem, mas isto não importava agora, perder o bem de metal não era nada perto das vidas que seriam perdidas caso atrasassem-se. Seu rosto contraía-se no pesar, sua frustração era evidente. – Está tudo bem, Owan? – Por mais que gritasse para o humano, sua voz era ouvida quase como um sussurro. – Nunca te vi tão preocupado! – E como não estar?! Se minhas teorias estiverem corretas, esta pode ser a próxima cidade executada! – Desculpe-me, Owan… – O velho elfo mostrava-se preocupado. Em suas centenas de anos, nunca havia visto tantas mortes em tão pouco tempo. – Sei que a perda de sua família é recente… Mas, talvez, este não seja o fim. – De fato, meu bom e velho amigo. – Um sorriso inseguro rasgou o canto de sua boca. – É justamente este meu medo. Pois, no fundo de minhas entranhas, sinto como se este fosse apenas o começo. – Impossível! Por mais que os ataques estejam mais vorazes, os templários estão vencendo! Há esperança para cultivar! – Se você ao menos soubesse de tudo, Ablurgor…
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– Se você falasse mais enquanto está bêbado, talvez eu soubesse. Um suspirar relaxado soprou entre seus lábios, talvez o primeiro em dias. – Você não tem medo, Ablurgor? – Dos Kauhuzas? – De tudo. – Tenho medo de não ter medo. Pois se não tivesse, teria certeza de que estaria louco ao te seguir até aqui. Apenas consigo pensar em Sida… – Tenho certeza que sua filha está se virando bem com os enfermos. Ela é uma ótima pessoa, assim como o pai. Os raios caíam tão próximos que seu estouro repercutia no mesmo instante do clarão. Seus corações agitavam-se na simples expectativa da batalha. Estavam há trinta ou quarenta minutos da cidade, mas o fulgor no horizonte já era visível. – Seria aquilo… – Fogo… – Owan complementou. – Contudo, não escuto grito algum… – Nem mesmo eu… – Ablurgor fechou seus olhos, concentrando-se. O homem de longo cabelo grisalho percebeu a angustia em sua face. – O terror está levando embora nossas famílias, nossas crianças e nossas esperanças, Owan… Sou velho, mas você que é o sábio. Diga-me, entre tantos conhecimentos que traz, há alguma coisa que possa me dizer para me trazer conforto? – Como eu disse, Ablurgor… Se minhas teorias estiverem corretas… Os trovões rugiam como furiosas feras, relâmpagos incendiavam o céu em um clarão ameaçador, o brado dos ventos quase derrubava os guerreiros de seus cavalos. O galopar intensificava-se, assim como a tempestade, e as altas árvores deixavam apenas vultos em suas visões. Contudo, foi quando ele avistou. Em um ato repentino, puxou as rédeas de seu cavalo com tanta força que este perdeu o controle e caiu ao chão. O guerreiro do cabelo grisalho teve apenas tempo de retirar seu escudo, protegendo-se do impacto contra os cascos que corriam em sua direção. Seu corpo era arrastado e pisoteado ao que a chuva escorria pela sua face.
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– OWAN! – O elfo o encarava com preocupação e estranhes. – O QUE HOUVE?! – ACALME-SE HOMEM! – Seu grito soava dolorido. – Acalme-se… Acalme-se, Owan… Suas pernas tremiam, seu braço deslocado ardia em uma intensa dor. Já não era tão jovem quanto um dia foi, e se jogar de um cavalo? Pensando mais claramente, fora a segunda ideia mais estúpida que já teve. A primeira foi nascer. Ouviu o barulho dos cavalos aproximando-se. Virando-se de perfil, ergueu sua mão, ordenando-lhes a ficarem parados. Ablurgor, no entanto, desceu de seu cavalo, correndo enquanto revirava sua mochila de couro. – Tome, aqui! – Estendo-lhe um frasco de aço, retirou a rolha que o tampava. – Cortesia de Gragold e Thernys. – Obrigado, Ablurgor. – Alcançando sua mão, bebeu o líquido. Os cortes em sua face encolheram-se até desaparecer, apenas as manchas de sangue permaneciam. – O que houve, Owan? Você simplesmente se jogou de seu cavalo?! – Acalme-se… Acalme-se… – Repetia para si mesmo em um tom de euforia e medo. Segurando seu ombro, puxou-o até um estalo quebrar o ar. Sua mão queimava em uma pálida luz alva. Logo, seu braço estava novamente bem. – Ablurgor, fique aqui. – Mas e o ataque?! Ignorando os protestos de seu amigo, caminhou, ainda um pouco tonto, retornou alguns metros por onde passaram. Prendeu seu escudo em suas costas como pôde, suas mãos suavam demais e seus dedos tremiam compulsivamente. Sentia seu coração bater, sua alma pulsar, sua mente eclodir. Seu nervosismo apenas aumentava ao que se aproximava de uma pequena gruta pouco após a estrada. Seria simples ilusão…? Não. Pois lá estava ela. Deitada ao chão, em um sono profundo, vestindo um rasgado e sujo vestido rosa, uma garota de aproximadamente sete anos suspirava sonoramente agarrada a uma rocha. Seu longo cabelo negro escorria pelas suas costas, sua pele branca apenas contrastava os vermelhos lábios contraídos. Havia um misto de paz e desespero em sua expressão, se é que isto mesmo era possível.
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mais.
Contudo, não fora isto que chamou sua atenção. Havia algo a
Os laços de seda de seu vestido balançavam como asas, flutuando no ar ao que um vapor subia de seu corpo. Era até mesmo possível escutar estalos da água. E seus olhos… Seus olhos conflagravam no mais puro brilho dourado. Fora exatamente isto que lhe chamou a atenção antes de jogar-se do cavalo. Agachou-se, estendendo seus braços e pegando a garota em suas mãos. Contudo, fora justamente quando soltou um urro de dor, afastando-se imediatamente. – ARGH! Pelos diabos de Zabohrav! – OWAN! – Ablurgor vinha correndo, logo atrás, com suas adagas em punho. – Por Haotran! O que houve com suas mãos?! Suas mãos estendidas para seu amigo mostravam as marcas de queimaduras em suas palmas. Ablurgor vislumbrou a pequena garota e, voltando seu olhar para o humano, notou que o brilho alvo de sua magia voltava a emanar, contudo, suas mãos permaneciam queimadas. Abaixo da pequena garota, não havia lama alguma, a terra estava seca e quebradiça. Era possível notar agora que nem mesmo seu cabelo estava úmido. – Pelos Seis Deuses… – Um seco prendia em sua garganta. – Owan… O que há com ela? – Você me faz perguntas que ainda não tenho respostas, meu caro. Mas algo é certo… Devemos voltar. – O quê?! Mesmo envolto na dor, Owan abaixou-se, erguendo a garota contra seu ombro. Seu pescoço queimava, o aço de sua armadura esquentava ao ponto de ferver sua pele. Forçando sua mandíbula, suprimiu o grito que arranhava seus pulmões. – OWAN! – NÃO, ABLURGOR! – Exclamou, serrilhando os dentes. – ESTÁ… Tudo… Bem. Acalme-se… Voltando para a estrada, caminhava em direção ao seu cavalo, o qual estava sendo curado pelos clérigos que aguardavam-lhes. – SOLDADOS! – Owan vociferou. – Retornaremos! – Mas por quê? – Ablurgor o seguia, ainda confuso. – Sumahkot está perdida… – Seu ar carregava não só a dor corporal, como também a que sua alma sentia.
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– Mas… – A face do elfo esbranquecia. – Isto quer dizer que nossa cidade será a próxima a ser dizimada? – Não. – Suas sobrancelhas arcadas mostravam a confiança e determinação em seu ser. – Nadati não será dizimada, nós batalharemos e sobreviveremos! Pois este não será o final da história… Este é apenas o começo de algo imensurável, maior do que nós dois, maior mesmo do que toda esta guerra. – Você não quer dizer…? – São apenas teorias. – E você acha que ela…? – Talvez… – Seria possível? Justo agora? Justo aqui?! Não poderia ser apenas coincidência? – Não existem coincidências, apenas consequências, meu honrável amigo.
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Ato I
Prólogo
H
– á muito tempo, antes mesmo da primeira torre ser erguida em nossa grande Kasadak, o mundo era coberto pela ignorância e pela selvageria. A força era a arma da seleção natural, favorecendo a dominação das mais temíveis criaturas. Não havia lei que restringisse as ações. Nem mesmo desafio contra a soberania daqueles que possuíssem o poder para dominar. E ao longo de incontáveis séculos de disputa, apenas uma raça predominou sobre todas: os dragões! – o velho humano fez uma breve pausa, fitando os vários discípulos à sua frente, todos em vestes cinzas com adornos em preto e branco. Alguns de túnica, outros de armadura, mas todos ali pela mesma causa. – Sim! Dragões de todos os tipos e tamanhos! – Prosseguiu o ancião, entusiasmando-se ao notar a atenção contemplativa dos mais jovens. – Ao contrário das inúmeras bestas irracionais que povoavam Taros, os dragões eram uma das únicas criaturas que possuíam inteligência avançada o suficiente para criar um tipo de sociedade organizada. Eles não fizeram construções ou monumentos, mas foram capazes de erguer hierarquias. Havia os soberanos e os subalternos. Existia uma ordem com seus líderes, seus ideais, ponto de vistas… – Mas o que os levou a esta supremacia, mestre? – perguntou um jovem e esguio discípulo, o qual ainda possuía marcas em sua face de uma puberdade indiscreta. – Não é claro, meu jovem? Eles não só dominavam a terra, mas também governavam os céus! – Apontava seu dedo para o alto, entusiasmadamente. – E quem seria idiota o suficiente para enfrentar um dragão? – Riu a pequena e bela clériga dos olhos amarelos, a qual permanecia ao lado do velho homem, com seus braços cruzados para trás de sua armadura de talas de ferro.
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– Nakryn, calada. – Repreendeu. – É hora do ensinamento agora. A jovem clériga manteve um sorriso estático virando sua face lentamente para seu mestre. Ele sabia que ela não conseguiria ficar calada por mais de cinco minutos enquanto entediada. – Mas a batalha pela força não era o único dos conflitos. – O velho homem limpou sua garganta, retomando seu pensamento. – Cada um defendia o destino das terras de Taros. E é claro… Esta disputa de ideais acabou gerando uma guerra que destruiu quase todos os dragões. Ao longo em que as décadas se passaram, os combates intensificaram-se, e apenas duas facções predominaram. Os dragões de Layos e os dragões de Kamayatan. – Apenas estas duas raças sobreviveram, mestre?! – Um pálido e volumoso rapaz erguia sua mão ao alto. – Não exatamente, meu caro aprendiz. – Respondeu serenamente, acariciando sua barba branca com suas mãos calejadas. No oscilar de seus movimentos, pouco da cicatriz que envolvia o lado esquerdo do seu pescoço até o seu ombro tornava-se visível. – Os dragões dividiam-se por suas espécies e cores. Durante a guerra, os mais fracos escolhiam se aliar com os vencedores. Contudo, havia também aqueles que eram forçados à aliar-se. Mas, ao final, todas as outras pequenas facções tiveram de escolher um dos lados. – Se eu fosse escolher um dos lados, escolheria o Senhor Gatinho. – Nakryn interrompeu mais uma vez. Sua sobrancelha fina erguia-se, vagando seu olhar pela sala à procura de seu gato. – Isto se o Senhor Gatinho aceitasse você ao lado dele, às vezes me pergunto como eu aceitei. – Ele teria que aceitar, ou eu o queimaria… Novamente. – Nakryn provocava seu mestre, abrindo um meigo sorriso. Owan nunca compreendeu como os discípulos não se perdiam na beleza selvagem e intoxicante que carregava. Naquele delicado rosto oval, a pequena cova de seu queixo destacava seu riso como a flor de uma cerejeira deitada sobre a neve. – Nakryn! Mais uma palavra e terá de limpar as latrinas hoje! Como eu ia dizendo… – Tossiu. – Os dragões de Layos, liderados pelo dragão negro Yerum, acreditavam que possuíam a força e a inteligência suficiente para servirem de maestros da vida. Almejavam viver em harmonia, saciando suas próprias necessidades enquanto
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todas as outras criaturas poderiam viver em paz. Acreditavam poder aprender algo com outras raças e que necessitavam de um ao outro para poder alcançar até mesmo os maiores objetivos. Sua crença era de que a força apenas destruiria tudo aquilo que eles mais amavam em Taros, junto com todos os recursos naturais que precisavam para sobreviver. Havia uma forte compaixão por todas as criaturas, principalmente por aquelas que demonstravam sinais de inteligência latente: Como os humanos, anões, elfos e orcs, os quais possuíam pequenos grupos nômades. Não era exatamente uma sociedade… – O velho mestre fez uma pequena pausa contemplando sua própria história. – Mas os Layos sabiam que, com um pouco de auxílio, eles poderiam se tornar raças nobres e ajudar no cultivo e proteção das terras de seu continente. Governariam aqueles para poder guiá-los. A jovem e bela mulher mordia seus polposos lábios avermelhados, batendo ritmicamente seu pé no chão, fazendo com que as dobras de ferro de sua armadura rangessem, quebrando o silêncio das pausas que seu mestre fazia. – Todavia, os dragões de Kamayatan discordavam da nobreza dos Layos. Eles se destacavam nas batalhas não simplesmente por sua força, mas pela sua sede por combate e brilhantes estratégias de seu líder, o dragão branco Zlodanih. Poderoso e astuto, acreditava na lei do mais forte e mais hábil, levando tal ideologia ao ponto de sacrificar vários dragões de sua própria espécie por demonstrarem fraqueza ao não aderirem às suas ordens. Eles acreditavam que aquelas criaturas inferiores existiam apenas para servir aos dragões, e não para viver ao lado deles. Seriam simplesmente braços para seus ideais, carne para seus filhotes, presas para seu jogo de caça. Toda vida fraca deveria sucumbir e idolatrá-los pelo seu grandioso poder! Ou ao menos, é isto que os livros nos contam. – Por Zewo! – Exclamou uma pálida garota ruiva que encontrava-se na segunda fileira do lado direito do salão, sentada junto aos iniciados da ordem. – E como pôde qualquer criatura aliarse com alguém tão desesperado por poder? – Independente de onde busque, minha jovem, a ganância encontra-se mesmo na mais pequena das criaturas. E não é necessário que ninguém lhe corrompa… Apenas que exista esta semente em sua alma. – O velho passou os dedos por sua barba alva e macia, juntando suas mãos na altura do peito. – E alguns dos dragões não queriam dividir
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seu poder com as criaturas menores… Havia inveja… Havia o medo da traição. Mas então, a última guerra dracônica começou! Diferente de todas as outras, não durou décadas, mas dias. Os Kamayatans de Zlodanih estavam perdendo o apoio de seus próprios aliados de forma rápida. Bawahim, O Guardião de Prata, liderava os exércitos em um cerco imparável. Haotran, A Sombra do Carrasco, dilacerava as tropas inimigas sem ao menos ser descoberto. E até mesmo Maylo, A Vingança Dourada, havia abandonado os Kamayatans pela liderança de Yerum. Mesmo percebendo que o fracasso aguardava-lhe, o dragão branco não poderia se deixar por vencido. E por mais que seus instintos gritassem que havia ido longe demais, seu orgulho sabia que aquela era a única forma de não sucumbir à vontade de Yerum… Zlodanih não se calaria tão facilmente. – E o que ele fez, mestre Owan? – Perguntou um rapaz negro de cabelo ralo e face quadrada, o qual matinha sua atenção fixa em seu mestre. Por mais que o barulho estridente da armadura de Nakryn tentasse tomar a atenção de seus ouvintes. – O que ninguém imaginava, meu jovem. – Owan respirou fundo, tanto pela parte da história que não agradava-lhe, quanto para manter a paciência e não estrangular Nakryn. – Enviando um mensageiro para os Layos, anunciou que faria uma assembleia para decidir o futuro de Taros, onde declararia formalmente sua rendição. Todos os dragões deveriam se reunir no centro do continente, no monte Zatwa. – Caminhando lentamente, seguiu até um antigo mapa pendurado na parede à sua esquerda, fitando-o. – Após alguns dias, lá estavam eles. Todos os dragões de Kamayatan e de Layos, lado a lado, em um raro momento de paz que nunca fora presenciado antes. O barulho estridente do metal e das batidas do pé da bela morena interromperam mais uma vez o silêncio de seu mestre, fazendo com que sua branca sobrancelha esquerda franzisse rapidamente em um tique que só ela conhecia. – Bahlandur! – Sua voz séria repreendeu-a. – Mas eu não disse nada! – Ela tem um ponto… – Sussurrou em meio ao silêncio um dos discípulos. – Viu só? – Sorriu. – Eles me amam! – Não abuse de sua sorte, garotinha! – O velho colocou suas mãos atrás de suas costas, mantendo sua coluna perfeitamente ereta,
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retornando para o palanque que se encontrava no centro do pequeno palco. De canto de seus olhos, observou Nakryn arrumando seu cabelo. Até mesmo os cachos resplendeciam o caos indomável que aquela garota representava. – Zatwa era a montanha mais alta de Taros, os bons olhos podiam até mesmo vê-la de qualquer parte do continente. Em seu cume, uma camada grossa e sólida de gelo impedia que qualquer outra criatura ali habitasse, até mesmo os dragões. O árduo ambiente gélido o tornava deserto. Muitos questionaram a escolha do local, mas, ao mesmo tempo, o que mais desejavam era a paz. – E havia espaço para todos os dragões? Ouvi histórias sobre o vulcão quando era criança… Mas seria tão grande assim? – O obeso garoto perguntou novamente. – Por mais que, em nosso presente, apenas possamos ver vestígios de sua existência, Zatwa, sem dúvidas, era colossal. Em tempos ainda mais remotos, fora um gigantesco vulcão. Despertou apenas uma vez em sua existência, estudos dizem que isto resultou na formação da maior parte de Taros. Após milênios, por sua altura e condições climáticas, congelou-se, formando uma cratera em seu cume. E acreditem ou não, o interior da cratera superava a extensão de Malaki Mhór de Lumaban! E sua extensão total era tão grande que poderia comportar três vezes o tamanho do território de Rajlan. O cume descia sinuosamente em uma espiral de gelo, terminando em uma larga arena congelada. – Mestre… – Nakryn ergueu sua mão para interrompê-lo novamente. – Não. – Respondeu. – Eu sei o que perguntará, mas agora não. – Apoiando suas mãos no palanque, prosseguiu. – E lá estavam eles. Ao longo da espiral de Zatwa, os dragões permaneciam em silêncio observando os líderes branco e negro que se encontravam na arena principal. Quanto mais importante sua hierarquia, mais próximo à arena encontrava-se. Mas tocando o mesmo solo que os dois líderes, apenas quatro dragões encontravam-se: Ucenmaru, O Conselheiro Índigo, o mais inteligente dentre os Kamayatans, dizem ter sido o responsável por conter a ira de Zlodanih; Maylo estava do lado oposto, suas informações sobre sua antiga facção haviam sido fundamentais para a vitória; E ao lado de Bawahim, Pazija, a dragão vermelha, amante de Yerum. – E Haotran, onde estava?
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– Longe de ser encontrado… Nunca se soube se estava escondido entre a casta mais baixa ou se apenas não compareceu. O pouco que se sabe sobre ele leva a crer que preferia a solidão. – Owan murmurou algo para si, mas logo continuou. – Modo ou outro, o dragão de prata estava lá. Sempre ao lado de Yerum, não era apenas seu melhor amigo, como também seu mais confiável general. Todavia, nos dias que se antecederam o evento de Zatwa, o dragão negro ordenou que Bawahim permanecesse ao lado de Pazija. Talvez fosse o medo da guerra lhe tirar o que mais amava, talvez fosse premonição… Mas tal decisão decidiria o fatídico destino de Yerum e de toda Taros. – Você acabou de tirar a surpresa da história, sabia disto? – Nakryn reclamou. – Pela Asa Esquerda, todos sabem o que acontece com Yerum, não é surpresa alguma! – E então porque está contando isto a eles? Seria mais divertido ver os novatos tentando batalhar! Vamos lá! – Seus olhos âmbares queimaram ao retirar uma moeda de prata de sua pochete lateral. Aproximou-se de Owan a ponto de sussurrar-lhe. – Eu aposto no presuntinho! – Sem apostas! Como mestre de nossa ordem, é meu dever ensinar aos jovens discípulos a história completa. – Owan respondeu serenamente. – E eu não apostaria nele se fosse você. – Sabe… Se você escrevesse um livro com a história de Taros e Herathor, eu seria uma das várias pessoas que não leria! – Nakryn… Já existem livros com esta história, você realmente não os leu. – Viu só! Não estava mentindo! – Sorriu carinhosamente. – Além do mais, eu gosto de ler. Mas para que ler algo que você repete todos os dias? – Apenas… Pegue-me uma taça de vinho, tudo bem? – Agora mesmo, senhor! – Respondeu animadamente, virandose para a saída lateral. – E não tome todo o vinho antes de voltar! Pelo menos mostre um pouco de bom exemplo para as pobres almas que aqui estão… – Owan apertou seus olhos com seus dedos, retomando a linha do pensamento. Os discípulos que o observavam estavam confusos quanto a sua decisão, mas os mais experientes que faziam a guarda
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do local já conheciam aquilo como rotina. – Bem, ao menos, agora conseguirei prosseguir… Aonde eu estava mesmo? – No fatídico destino de Yerum, mestre. – Disse a jovem e bela ruiva. – Sim! Claro… A estrela Arawan estava a pino, tornando aquela arena o foco. Apenas os olhos negros de Zlodanih se ressaltavam por entre a neve pálida de Zatwa. Yerum destacava-se nitidamente, exibindo um contraste forte de suas escamas rígidas. A discussão prosseguia tranquila, o dragão branco cedia a todas as propostas do líder de Layos, sem proferir uma única palavra. Zlodanih aparentava doente e fraco, muitos acharam que havia perdido sua própria consciência, outros pensaram que estava a zombar da situação. Inúmeros foram os Kamayatans que rugiram em protesto. Levou pouco tempo para que um grupo isolado de dragões começassem a brigar. Quando Yerum desviou seu olhar para ver o que estava acontecendo, Zlodanih alçou voo sem hesitar, mergulhando contra o líder Layos e desferindo uma forte mordida em seu pescoço. – O velho mestre mexia vagarosa e compulsivamente em sua espada longa. – Sangue jorrou pelo chão da arena. Algo de estranho havia na investida de Zlodanih, fazendo com que seu ataque drenasse todas as forças dos dois dragões. Após o ofuscar de uma poderosa energia, ambos caíram sem vida ao chão. – Por quê Bawahim não evitou o ataque, mestre? Ele não deveria ser seu guardião? – Perguntou o astuto discípulo moreno. – Como antes eu havia mencionado, Yerum havia ordenado que Bawahim protegesse Pazija. O ataque foi rápido demais para qualquer reação… Ele fracassou em proteger Yerum, mas apesar dos profundos ferimentos que lhe infligiram, protegeu Pazija de todos que tentaram lhe atacar enquanto esta lamuriava sobre seu falecido companheiro. Um completo massacre iniciou nos anéis superiores. Um confronto sangrento e cruel. Cada morte fazia com que sangue chovesse no centro da arena, sobre os corpos dos líderes das facções. Foi então que Pazija notou… O corpo de Yerum lentamente desfazendo-se, assim como o de Zlodanih. Cada vez que o sangue tocava seus corpos, um poder gritante emanava. Os dois cadáveres começaram a unir-se. A coloração de suas escamas se misturavam como tinta em água. Uma vida ressurgia ao longo que uma aura caótica esvaia de sua carcaça. Um tremor colossal tomou o solo gélido. Bawahim notou o perigo eminente e, forçando Pazija em suas costas, fugiu rapidamente do
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gigantesco vulcão. Rugindo o estrondo de mil trovões, Zatwa renascia, como também renascia Yerum, O Cinzento Deus da Loucura. – E como conseguiram impedi-lo? Os outros dragões sobreviveram? – O magro garoto coçava seu rosto marcado. – Impedi-lo foi o maior desafio dos antigos tempos… Como Pazija fez para pará-lo, ou mesmo como descobriu a resposta, é um mistério até hoje. O que se sabe é que alguns dragões sobreviveram. E é claro, a trindade. Alguém, saberia seus títulos? – Senhor! – Levantou a mão a jovem ruiva dos olhos verdes. – Bawahim, O Guardião, deus dragão da proteção. Maylo, A Vingadora, deusa dragão da vingança. E Haotran, O Assassino, deus dragão do destino. – Muito bem! – Owan bateu duas palmas seguidas, parabenizando-a. – E mais alguém poderia me dizer porque eles são considerados “deuses dragões” e por qual motivo os outros caíram no esquecimento? – Porque foram eles que concederam às raças de Herathor suas principais virtudes! – respondeu o garoto gordinho. – E os outros provavelmente morreram de uma forma lenta e dolorosa… – Precisamente… Principalmente quanto a morte… Enfim. Pazija notou que os dragões não seriam suficientes para derrotar Yerum. Precisavam da ajuda de todos que pudessem encontrar. E, assim, concedeu o último desejo de seu amado, presenteando as raças com uma benção dos dragões. – Ela sozinha fez isto? – Perguntou o esguio garoto. – Não, não! Novamente, os deuses dragões a ajudaram. Tomando a forma das criaturas que desejavam, visitaram as quatro tribos para entregar-lhes seus novos poderes. – Limpando a garganta, prosseguiu. – Aos fortes anões, Bawahim presenteou-lhes uma resistência sobrenatural e a capacidade de compreender a terra como ninguém. E, é claro, seus torsos que mais parecem com toras. Assim criariam as armas e as armaduras que seriam empunhadas por todos. Seriam eles os responsáveis por erguer as muralhas mais resistentes de nosso mundo, estas que aguentariam ao ataque mais furioso de um dragão. Todavia, dentre os anões, Bawahim encontrou alguns que não eram tão fortes, mas extremamente inteligentes. A eles, presenteou a curiosidade e genialidade para criarem mecanismos nunca antes imaginados. E vendo que não possuíam tanta força, reduziu-
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-lhes o tamanho para que pudessem sobreviver e ajudar os anões a criar a defesa necessária para suas muralhas. Seriam versáteis no ataque, mortais na defesa. E a esta raça, nomeou de “gnomos”. – E por este motivo ele é o patrono dos anões e gnomos! – Complementou a bela ruiva com um comentário um tanto óbvio. – Exatamente! E já Haotran, o patrono dos elfos e malits, concedeu aos elfos a longevidade para poderem prosperar e moldar seu próprio destino, e a agilidade para que pudessem sempre estar um passo à frente da morte. Dizem que até hoje guardam segredos da grande dragão vermelha em suas gerações seculares. Mas Haotran não estava satisfeito. Notou que alguns dos elfos eram extremamente ativos, rápidos e astutos, porém, seus corpos frágeis e esguios demais seriam ossos de galinha a serem quebrados. Resolveu criar algo diferente. Reduziu o tamanho daqueles elfos além do tamanho de gnomos, para que pudessem se infiltrar com facilidade em qualquer caverna ou covil. Seria difícil para um dragão detectar uma criatura tão pequena ou mesmo acertá-lo com precisão. Seria perfeito para poder importunar Yerum. Haotran então lhes concedeu reflexos e velocidade sobre-humanas, nomeando-lhes “Malits”. – Bawahim e Haotran aproveitaram dois lados de cada raça, por quê Maylo não fez o mesmo com os orcs? – O forte rapaz moreno perguntou. – Maylo acreditava que o poder que se traz consigo é o suficiente para derrubar seus obstáculos, independente dos defeitos que o ser carregue. – O velho acariciou mais uma vez sua barba. – Um pensamento honrável, como a maioria dos guerreiros orcs de Neobuzdan. E assim, Maylo concedeu a eles a poderosa força dos dragões. Eles empunhariam espadas e machados, seriam os primeiros a desferir um ataque contra Yerum. Foram guerreiros que lutaram lado a lado com os humanos em um tempo de guerra, compartilhando a mesma honra e a mesma glória. – E os humanos? Quem é o seu patrono? – Perguntou o pálido garoto, coçando os resquícios de barba que cresciam em seu pescoço. – O ÁLCOOL! – Gritou a bela clériga morena que adentrava novamente a sala com duas grandiosas canecas transbordando o vinho. – Nakryn… Você bebeu antes de voltar, não é? – Perguntou Owan, notando que em seus lábios havia marcas ainda mais vermelhas. – Não…?
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– Dê-me isto aqui e se aquiete em seu lugar, estou chegando na parte boa. – Disse ao pegar a grande caneca e virar um gole, refrescando sua garganta. – Bem, aos humanos… Restou Pazija. Mas ela não quis se tornar nossa matriarca. Desejou que cada humano fosse livre para escolher a quem seguir, o que séculos mais tarde, acabou por se tornar comum entre outras raças também. – Owan desceu lentamente as escadas do pequeno palco, andando no corredor entre os bancos de madeira onde a plateia observava-o. – Os humanos não eram tão excepcionais, mas nem mesmo fracos. Eram adaptáveis. Para eles, Pazija decidiu dar a benção da versatilidade e da liberdade, para que, assim, fizessem o que fosse preciso para sobreviver. E, por fim, deu-lhes o poder da diplomacia, para assim unir todas as outras raças em prol da vitória contra Yerum… Foi após este momento que os humanos uniram todas as seis raças e criaram a primeira cidade de Herathor, “Kasadak”. – E assim, começou o exílio de Pazija. – Disse Nakryn, terminando de virar o vinho da caneca para sua boca. – Exatamente! – Exclamou Owan, batendo seu punho contra a parede, fazendo com que todos os ouvintes dessem um pequeno pulo em suas cadeiras. – Pazija resolveu rebuscar os passos de Zlodanih para compreender que tipo de maldição rogou em seu amado e, assim, buscar uma forma de revertê-la. Por anos, nem mesmo Haotran pode encontrar seus traços. Durante este período, os habitantes de Taros buscaram refúgio em Kasadak. Enquanto outros, migraram para terras distantes para colonizar e sobreviver. Durante os anos de interminável terror, O Cinzento transformou florestas e vales em ambientes hostis e perigosos. Por onde Yerum sobrevoava, infectava toda vida com rastros de sua loucura, as quais transformavam-se em novas criaturas… Criaturas mais fortes e aterrorizantes… Criaturas nunca antes vistas nem mesmo pelos próprios dragões! – Mas todas as criaturas que Yerum criou eram más? – Perguntou novamente o garoto de barriga proeminente. – Não, pedacinho de presunto. – Disse Nakryn, com um belo sorriso em sua face. – Yerum naquele momento estava em sua forma insana. Ele não significava o bem ou o mal, mas sim um pandemônio conturbado. As criaturas ganhavam poderes inimagináveis, mas quem decidia o que fazer com este poder eram elas mesmas. O único ponto fraco nesta teoria é o mesmo quesito do “poder”. Imagine você, se
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fosse uma criatura fraca e oprimida, após ganhar todo este poder, o que faria? Você acabaria com qualquer criatura que entrasse em seu caminho, caso esta tentasse lhe impedir em seus objetivos? Ou protegeria os mais fracos da opressão dos tiranos? – Muito bem dito, Nakryn! Se não fosse a parte do presunto. – Owan voltava lentamente ao palco. – Foi um elogio! Todos gostam de presunto! – Retrucou a pequena e bela clériga. – Assim como todos me amam! Logo, então, eu sou um presunto também! – Retomando, meus discípulos. – O velho limpava sua garganta, repreendendo Nakryn apenas com seu olhar. – Ao passar do tempo, todos em Kasadak trabalharam dia e noite para construir algo que, hoje, achamos ser impossível. Mas a força de vontade nos primórdios era muito maior. Todos eles eram heróis determinados a morrer por aquela terra, morrer pela justiça e a liberdade de suas raças! E em principal, aprisionar o dragão Yerum. E, enfim, aconteceu “A Cruzada”. Todas as raças decidiram avançar unidas. Mais de dez mil voluntários seguindo para a montanha Zatwa. De todos os habitantes, menos de mil ficaram para trás, a grande parte era jovem demais ou idosa demais para uma guerra. Caso os guerreiros fracassassem, a vida deveria prosperar. Nakryn escutou alguns barulhos vindos da saída lateral, onde ficava o caminho para a cozinha. Reconhecia os ruídos… Talvez seu mestre não notasse sua ausência por alguns minutos. – Havia guerreiros, arqueiros e até magos! Inúmeros combatentes prontos para derrotar Yerum. O cerco foi preparado, até mesmo os dragões se reuniram para transportar os combatentes para o topo de Zatwa e lutarem ao seu lado. Todos uniam-se por apenas um motivo, um ideal. Ao chegarem lá, notaram que esta estava diferente. O seu cume estava dezenas de metros menor. A explosão havia destruído grande parte de sua altura e, agora, não havia somente gelo, mas também fogo! – Gelo em um vulcão? E isto é possível? – perguntou a bela ruiva, apoiando sua face em suas mãos. – A explosão foi forte o suficiente para destruir grande parte de seu exterior, mas aquela camada de gelo não era comum. Espessa e gélida que nem mesmo o calor de Arawan seria capaz de derretê-la! Algo místico existia naquele material… – Mestre Owan andou para frente
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do palanque, ficando na ponta do pequeno palco. – Pazija ascendeu a montanha. Yerum estava adormecido dentro do vulcão, assim como planejavam. Mas ao ouvir o rugido de sua antiga companheira, o dragão cinzento despertou. E assim se iniciou o confronto final. – Ajoelhando-se, fitou cada um dos novos discípulos, erguendo sua mão dramaticamente ao céu. – A batalha levou muitas vidas embora. Muitos caíram dentro do vulcão, outros foram arremessados para longe pelas fortes rajadas das asas colossais de Yerum. E os que não foram esmagados pelo peso de dragões que caiam dilacerados pelo deus da loucura, encontraram destino ainda pior. A batalha estava quase perdida, mas um relance de oportunidade surgiu quando Haotran, Bawahim e Maylo atacaram simultaneamente com o máximo de seu poder, enfraquecendo-o por um momento. Pazija não hesitou e, em um veloz rasante, envolveu seu corpo em chamas, rasgando a asa direita de Yerum. Antes mesmo que este colidisse no chão, a grande dragão impulsionou-se mais uma vez pelo céu, descendo ferozmente contra a garganta do Cinzento, derrubando-o dentro do vulcão… Mas se sacrificando para levar o corpo de seu amado ao coração de Zatwa. – Então Yerum morreu? – O esguio garoto perguntou. – Não exatamente. Muitos contam que, naquele mesmo dia, os guerreiros sobreviventes presenciaram Yerum ressurgindo do vulcão, tentando escapar de correntes de fogo e gelo que envolviam seu corpo. Foi assim que Yerum, o deus dragão da loucura, pereceu. E adormecendo, dividiu-se em duas entidades. Xícenum, o deus dragão da justiça, conhecido também como A Asa Esquerda de Yerum. E Yamaluhan, o deus dragão da destruição, conhecido como A Asa Direita. Mas não só deu-se origem a estas entidades, como também nascia Zewo, O Purificado! – Owan levantou-se, colocando seus braços para trás de suas costas e erguendo sua face para o alto. – Cada parte de Zewo aterrissou em um extremo do continente. Nosso continente, Herathor, foi abençoado por Xícenum e, por mais que exista rastros de maldade em nossas terras, nada se compara aos segredos do oriente… No que Yamaluhan colidiu contra as terras orientais, ela foi contaminada, assim nasceu Zabohrav, a ilha dos pesadelos. Toda a essência do mal se encontra neste lugar profano. Todas as expedições que um dia tentaram encontrá-la nunca mais retornaram. – Mas, por quê? O que impede de um lado alcançar o outro? – O jovem e forte rapaz indagou.
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– Quilômetros de uma imensidão azul, meu rapaz! – Respondeu o velho, arrumando o cordão dourado que prendia suas vestes. – Quando Zatwa entrou em erupção, uma gigantesca explosão de cinzas cobriu o céu. Toda a extensão territorial ao norte e ao sul começou a desmoronar e ser tomada pelo oceano! A escuridão tomou Taros e o leste separou-se do oeste! A montanha parecia se afastar dias de viagem das costas de Herathor. A terra que envolvia Zatwa se rompeu como se fosse um simples casco frágil. Taros se dividiu em duas ilhas, mas o vulcão permanecia no mesmo lugar, fervendo e gritando aos céus. Ao longo dos dias, Zatwa ficou cada vez mais longe, o clima mudou bruscamente. Foram tempos difíceis, é o que contam… A escuridão perdurou por semanas até que o primeiro traço de luz de Arawan fosse visível novamente. E, enfim, surgiu o dia em que tudo parou. Mas Zatwa estava tão longe que apenas os olhos não podiam mais alcançá-la. – E assim nasceu nossa ordem, mestre? – Perguntou a bela moça dos olhos verdes. – Precisamente, minha jovem. Nós, da Ordem de Zewo, estudamos a purificação e o equilíbrio entre a bondade de Xícenum e a crueldade de Yamaluhan. Nossas juras nos mantém sempre preparados para que, se um dia, alguém se atrever a libertar Zewo, estaremos prontos para impedi-los! Se o dragão cinzento voar livre novamente, isto trará desequilíbrio ao nosso mundo. – E é possível realmente libertá-lo? – Perguntou o garoto negro. – Não que eu queira, mas… Alguém descobriu algum modo? – Por mais que seja apenas uma lenda, algumas pessoas dizem que as chaves que soltariam Zewo de sua prisão e uniria seus extremos mais uma vez foi dada aos elfos. Eles, por sua vez, esconderam estas chaves por Herathor. Outros, dizem que elas foram entregues aos sobreviventes da Cruzada, para que peregrinassem com estes artefatos e escondessem junto a suas tumbas. E há os que digam que foram escondidas apenas para que, um dia, alguém descubra como reverter a magia de Zlodanih e traga paz aos antepassados dracônicos. A verdade sobre isto? Não se sabe até hoje. Mas muitos aventureiros, com intenções boas ou más, buscam saber. Vocês compreenderam? – CONTEMPLEM! O DEUS DOS DRAGÕES! – Parada na frente da porta lateral, Nakryn estava encoberta por farinha, molhos e até mesmo embebida em óleo. Seus braços erguidos ao alto seguravam um animal tão sujo quanto ela. Em uma segunda inspeção, pode se
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dizer que era, de fato, um gato grande e gordo. Este que, por sua vez, possuía vários machucados antigos que apareciam dentre as falhas de sua pelagem chamuscada. O bichano, o qual não conseguia manter erguida uma de suas orelhas, encarava a plateia com uma expressão mórbida e seca de quem amaria poder morrer naquele exato momento. – Meow… – O gato soltou um pequeno e seco miado, declarando sua desistência pela batalha vã que travou ao tentar fugir de Nakryn. – E quando eu penso que você finalmente ficou em silêncio… É porque está destruindo outro lugar. – Owan esfregou a mão por sua face até chegar em sua cicatriz, soltando um longo suspiro. – Bem, ao menos você provou meu ponto aos discípulos. Antes de você chegar, havia lhes falado que você mostraria como não se portar diante seu mestre. – Você é um velho bobão e sem graça, sabia disto? – Nakryn abaixou o Senhor Gatinho ao chão, o qual logo correu em disparada para a cozinha. – Por fim, Nakryn. Vá se limpar, depois dê um banho no Senhor Gatinho. Só após isto, direcione-se até meus aposentos. Tenho uma missão para você hoje. – Tudo bem, senhor! – Nakryn, sorrindo, bateu continência para seu mestre, logo saindo da sala de reuniões. – Antes que perguntem-me. – Disse o velho da barba alva, notando o olhar de espanto e dúvida dos novos discípulos. – Ela não é tão cruel assim com o Senhor Gatinho, apenas possui o incrível dom de fazer a coisa errada no lugar errado quando o maldito gato está por perto. E não, vocês não ficarão assim como ela… Ou como ele. – Mas, afinal… Quem é ela, mestre? – Perguntou o forte rapaz negro. – Ela é daqui de Nadati? Como alguém como ela resolveu se juntar a Ordem? – Indagou o pálido garoto obeso. – Como alguém como ela conseguiu entrar na ordem? Há quantos anos ela está aqui? – A bela dos olhos verdes questionou. – Ela tem namorado? – Perguntou o esguio garoto. Mas logo se arrependeu ao perceber que todos olhavam-no. – O quê? Achei uma boa hora para perguntar! – Meus caros discípulos… – Mestre Owan fez uma breve pausa, fitando cada um deles ao voltar para um silêncio contemplativo. – Isto é uma história para ser contada mais adiante.
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Nakryn Bahlandur
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grande quarto encontrava-se ao final do corredor dos dormitórios dos Clérigos de Zewo. Não era apenas por ser o mestre da Ordem, mas Owan Atma precisava de espaço… Muito espaço. Seu interior aparentava mais ser uma cúpula do que necessariamente um quarto. O velho homem havia posicionado as grandes estantes de madeira para formar um semicírculo logo na entrada, não era apenas por questões estéticas, mas também práticas – Sempre que precisasse, teria um lugar para jogar bugigangas e antiguidades que faziam parte de sua pesquisa. E, hora ou outra, um discípulo desafortunado era encarregado para poder limpar os vãos bagunçados. E quando se tratava de bagunça, Owan era perito. Por mais inteligente e sábio que o velho humano fosse, seu pensamento era ágil demais para conseguir manter as coisas organizadas. Por vezes, passava dias no caótico ambiente que era seu quarto, enfurnado em meio aos livros e artefatos que, por muitas vezes, acabavam sendo arremessados pela grande janela por detrás de sua confortável poltrona. Mestre Owan era um homem sereno, calmo e compassivo, tanto com seus discípulos quanto com os habitantes de Nadati, mas, muitas vezes, frustrava-se consigo e com suas pesquisas. Buscava algo que nunca havia encontrado em sua vida e, mesmo tendo suas inúmeras teorias, continuava sem saber a resposta. Sua alma queimava a cada noite arranhando sua mente de que havia algo que precisava descobrir urgentemente, o detalhe que faltava para que tudo fizesse sentido. Nakryn carinhosamente chamava isto de “crise do velho barbudo”. Recluso, nunca chegou a compartilhar de seus verdadeiros temores com mais ninguém. O mais próximo de uma confissão fora as
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histórias que compartilhou com seu melhor amigo, Ablurgor Hyvat, mas estava longe de compartilhar a verdade. E, por mais que confiasse plenamente em sua pupila, Nakryn Bahlandur, sabia que seus medos deveriam habitar apenas sua própria mente. A verdade é que, desde que encontrara a pequena garota dos olhos amarelos sozinha na estrada de Sumahkot, uma mistura de euforia e medo cresceu em seu coração. Sentiu que aquilo era um sinal, mas por mais que seus instintos clamassem que deveria desvendar o segredo que Nakryn carregava consigo, nunca foi capaz de descobrir a verdade sobre a garota. Quando concentrava-se a pensar naquela noite, as cicatrizes de seu corpo queimavam. Grande parte de seu ombro e peito sofreram queimaduras de terceiro grau, ainda lembrava-se da dor pungente de quando o aço derreteu sobre sua pele. Seu corpo e sua armadura carregariam as marcas para sempre, mas seu espírito encontrou a paz quando finalmente trouxe a pequena garota até Nadati. Pobre garota, fora a única sobrevivente do ataque dos Kauhuzas à Sumahkot. Contudo, não foi piedade que lhe trouxe a um dos mais altos escalões da Ordem de Zewo, mas seu grande talento com armas e afinidade com magias em tão nova idade garantiram sua ascensão. Havia um brilho em seus olhos… Algo que, cada vez que o velho homem fitava-a, levantava aquele mesmo sentimento que sentiu quando a encontrou pela primeira vez: Felicidade e medo. Isto lhe incomodava mais do que o necessário. Mas não importava o quanto sua “crise de velho barbudo” atentasse-lhe. Não queria demonstrar tais preocupações. Afinal, Nakryn era uma corajosa garota e, por mais que tivesse perdido tudo em sua vida, mantinha um bom humor sobrenatural. Era possível contar nos dedos as vezes que havia entristecido-se. A maioria delas foi quando Owan contrariou a pequena garota, a qual possuía um orgulho tão forte quanto sua insistência. Não seria ele que provocaria suas lágrimas por apenas intrigas de sua mente. Afinal, Nakryn havia completado há pouco seu 26° aniversário. Sabia que não demoraria até que desejasse partir em sua própria busca… Talvez os segredos não estivessem ali para que ele revelasse, mas a própria garota deveria descobrir por si. Ele e Ablurgor cuidaram tanto para que seu segredo não fosse conhecido… Tentaram tanto compreender e decifrar o ardor que
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queimava em seus olhos… E, ao final, tudo o que restou foi prepará-la para que aguentasse as lágrimas que teria de derramar caso as teorias que vagavam a mente do velho homem fossem verdadeiras. – Mestre? – uma voz doce e suave atravessava a grande porta dupla de madeira que protegia a entrada do quarto. – Senhor Gatinho está brilhante e limpinho! – Entre, Nakryn, a porta está destrancada. – Desculpe-me por antes, senhor, mas sabe o quão entediada fico em seus discursos. – a bela clériga batia vagarosamente a porta, puxando uma das quatro cadeiras que ali estavam. – Afinal, porque não deixou eu terminar minha pergunta naquele momento? – Não é claro, minha jovem? – Owan inclinou-se para trás, encarando a pequena clériga. – Eu sei o que você estava para perguntar. – E o que seria? – Nakryn sorriu. – Sua clássica frase: “Como pode saber tantos detalhes se não estava lá?” – Então! Como sabe?! – Nakryn inclinou-se para frente, apoiando um de seus braços em seu joelho. – Você não tem jeito, não é mesmo, garotinha? – O velho afastou-se da mesa, levantando-se e virando-se para a grande janela com vista para o campo de treinamento, onde vários dos novos discípulos estavam tomando lições de seus superiores. – Todos os fatos estão escritos em livros chatos de linguagem complicadas, mas estão lá como fatos e registros históricos… Eu apenas relato de uma forma mais compreensível. – E precisa detalhar tanto? – Nakryn reclamou. – Desde a primeira vez que ouvi eu não consegui escutá-la inteira. – Nakryn, Nakryn… – Owan parou por um momento, olhando-a com o canto dos olhos. – Se minha vida não fosse pela Ordem, eu seria escritor… E o que é uma boa história sem seus detalhes para torná-la mais épica? – Você quer dizer enrolações, certo? – Você mesma disse que não conseguiu escutá-la inteira, não é mesmo? – O velho dos olhos azuis virou-se para Nakryn. – Isto significa que ouviu ao menos uma parte… E, levando em conta que antes havia dito que não leu nenhum livro com as histórias que contei, significa que meu método é aceitável. Apenas preciso… Aprimorar para conseguir sua atenção.
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– Espertinho. – retrucou Nakryn, com um belo sorriso em sua face. – E como está seu ombro, senhor? Ainda incomodando-lhe nos últimos dias? – Apenas mais uma “crise do velho barbudo”. Coisas de minha cabeça. – Você precisa se preocupar menos, mestre! Além do mais, como é que o senhor conseguiu se queimar tanto em um bar?! – Já fazem vinte anos, Nakryn, os detalhes já não são tão frescos. – Sua boca tremulou quase imperceptivelmente sob sua barba. – Durante a comemoração por termos vencido a guerra do Cerco de Nadati, aquele maldito mago bêbado deve ter pensado que eu era um Kauhuzas. Foi apenas azar. – Apenas acho triste a incompetência dos clérigos da época não terem te curado a tempo. Não gosto de te ver mal, mestre, e é triste que tenha de sempre usar estas luvas por causa das cicatrizes. – Seu olhar compassivo acalentava a dor do velho homem. Em um suspirar, Nakryn desviou seus olhos para o chão. – Mas enfim, senhor… – Você tem algo para me dizer, não é mesmo? – Owan notou que sua discípula estava retraída. Para algo incomodá-la a ponto de deixá-la em dúvida sobre o que falar (ou melhor, sem falar) deveria ser algo importante. – Mestre… – Nakryn hesitou por um momento, mas, ao engolir seu nervosismo, prosseguiu. – Eu estou aqui há mais de vinte verões… Estou pensando em partir! Encontrar meus irmãos, encontrar a verdade por trás de tudo que aconteceu. Encontrar… O que eu sou. – Você é uma garota boba. Pronto! Descoberto! – Owan soltou uma calorosa risada. Por mais que suas piadas fossem ruins, Nakryn sempre ria da sua risada… Por mais que ele pensasse que ela realmente achava graça. – Perdão, não resisti o momento. Mas enfim, minha querida Nakryn... Quem sou eu para lhe separar de seus sonhos? – Mestre da Ordem de Zewo na cidade templo de Nadati, o qual tem autonomia total para suas decisões sem depender do auxílio do Círculo dos Sete? – Nakryn ergueu uma de suas sobrancelhas. – Isto é controle suficiente para me prender aqui pelo resto da minha vida. – Nakryn! – Owan sorriu calorosamente por detrás de sua longa barba branca, apertando seus olhos ao contrair sua face. – Penso que já fez muito por todos nós, mais do que pudemos fazer por você neste tempo inteiro. Nossa Ordem e, principalmente, eu mesmo, não impedir-
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-lhe-emos de encontrar seu destino. Todavia… – Após uma breve pausa, Owan virou-se novamente para a janela. – Preciso de um último favor seu. – O que quiser, mestre! Desde que não seja um favor para Ethert… Nem próprio Zewo criou algo para se manter calmo com aquele tarado. Owan riu da pequena garota e prosseguiu: – Bem, não é para ele, mas terá de passar lá de qualquer forma. Encontrei sua maça bem danificada há dois dias, percebi que novamente esqueceu de fazer a manutenção mensal dela com Ethert, mas até imagino o motivo. – Nakryn sorriu, explicitando sua culpa. Nunca escondia o fato de detestar as atitudes de Ethert, o ferreiro da cidade. – Preciso que vá buscá-la e, logo em seguida, siga para a taverna. E não para beber! Nossa querida Sida está com problemas no porão dela, algo sobre ratos… Nada tão honrável para uma clériga de Zewo, mas seu pai, Ablurgor, está pelas florestas caçando. E sabe como Sida fica sem seu pai por perto… Ao menos assim, ela ficará um pouco mais calma. – Tudo bem, mestre, partirei agora mesmo. – Que Zewo seja seu caminho, minha querida discípula. – Disse o ancião, reverenciando a pequena garota dos olhos amarelos ao acenar sua cabeça. Nakryn acenou com sua cabeça, respondendo a reverência de Owan. Levantando-se, seguiu seu caminho.
-IIA manhã se mostrava pacata na pequena cidade de Nadati. No modesto centro comercial que possuía, crianças brincavam ao redor do majestoso chafariz onde algumas mulheres se reuniam para fazer sua fofoca diária. O chafariz demarcava o marco zero da cidade, ficando logo a frente do monastério. A água cristalina jorrava da boca da grande estátua do Dragão Cinzento. Sua asa direita rasgada era de um mármore branco excepcionalmente esculpido de forma que esta parecia vibrar com o vento. Já sua asa esquerda aparentava ser rígida, provavelmente de puro ônix negro. As duas pedras se misturavam ao
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chegar às costas do dragão, rajando-o em listras que tomavam o seu corpo e mudavam o seu ser. O céu estava quase límpido, apenas algumas nuvens obstruíam a passagem dos raios de Arawan que queimava no céu. O ar estava seco, há dias não chovia. Os tijolos de barro que revestiam a praça central estavam encobertos pela poeira da terra. Nakryn caminhava rapidamente para fora do monastério de pedra, estava animada. Não só pela euforia de que, tão breve, partiria em busca daquilo que tanto desejava encontrar. Mas se havia algo que adorava era poder fazer as coisas. Correr! Lutar! Agir! Apenas de pensar nestas coisas já abria um sorriso em sua face. Apesar de pequena, a clériga dos olhos amarelos possuía uma grande força. Podia até mesmo andar sem dificuldades com sua pesada armadura. Não que fosse completamente musculosa, mas sabia como usar sua força de forma eficiente. Enquanto um brutamonte tentava usar sua força total para balançar uma pesada maça, ela simplesmente alavancava seus movimentos, aproveitando da inercia e a gravidade. E quando se tratava de se livrar de pessoas indesejadas, sabia usar a inercia de um chute muito bem. O ferreiro da pequena cidade havia descoberto isto da pior maneira. A ferraria de Ethert ficava logo ao lado do monastério. Mas, como de costume, a porta estava fechada, apenas exibindo sua grandiosa placa de madeira. E, em letras garrafais, a escrita: “Quanto maior os seios, maior o desconto!”. Aquilo resumia quem era Ethert: Um ótimo ferreiro, mas também um ótimo tarado preguiçoso. Seu maior ditado era: “Se puder procrastinar, assim o faça! Se a espada for boa, ela te salvará.” Até hoje ela se perguntava se a espada que se referia era para vender ou para se defender dos maridos enfurecidos. Modo ou outro, aquilo não importava no momento. Em questão de segundo, Ethert começaria a tagarel… – Olá, menina-garoto! Veio brincar de clériga? – Ethert estava debruçado em seu balcão, admirando uma bela adaga. – Não, Ethert… Não. – Mal entrara no estabelecimento e o ferreiro já interrompia seus pensamentos. – Estou aqui pela maça. Mestre Owan pediu para retirá-la hoje. Ele já deixou tudo pago? – Como sempre, tudo certo, jovem preferida. – Disse Ethert, passando a mão por sua careca, descendo seus dedos para sua barba
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negra e cheia. Seu rosto gordo e redondo ressaltava suas sobrancelhas grossas. – Esta foi por uma pequena dívida que tive após nossa última caça juntos. – Sério?! – Nakryn realmente pareceu impressionada. – Não sabia que o mestre ainda caçava! – Apesar de já estar velho, ele ainda aguenta muita coisa nesta vida, principalmente quando o assunto é ursos e bebidas. – Ainda vou botar isto a prova jogando-o embriagado contra um urso! Ou contra qualquer coisa, é sempre engraçado ver Owan bêbado… Fico feliz que vocês ainda saiam juntos, mesmo após sua expulsão… – Ora, não é como se tivessemos escolhido isto! – Ethert… Você roubou uma das poções camaleão do estoque e ficou assistindo as mulheres se banharem no lago… Você pediu por isto. – Tudo uma boa causa! – E depois que foi descoberto, você ainda ousou sair correndo, pelado, entorpecido pelo efeito colateral, gritando que copularia com todos. – Uma boa causa má planejada! – Ethert a olhou torto. – E não é como se eu tivesse sido descoberto… Se não fosse pela pequena favorita! – Sempre uma honra, Ethert! Mas bem, chega de conversa. Preciso apressar-me, a senhorita Sida está esperando-me. – Hah! Senhorita… – Retrucou o ferreiro, retirando a maça estrela excepcionalmente polida que estava embaixo do balcão – Ainda me impressiono como podem chamar uma criatura de mais de duzentos anos uma “senhorita”. – Bem, são elfos! – Respondeu Nakryn, testando o balanço de sua clava. – Seu envelhecimento será apenas notável após os trezentos anos. E sabe também que não vai ser com mais cem anos que conseguirá conquistá-la. – Deixando um leve sorriso, virou-se para a porta. – Enquanto ela estiver com aquela tralha do Seabald, definitivamente, não. Mas o velhinho não aguentará muito tempo… Principalmente estressado como é. – E penso que, se ele souber desta sua frase, você não durará muito tempo também! – Foram as últimas palavras da pequena ao sair elegantemente, deixando apenas uma fresta entreaberta.
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O ferreiro voltava a olhar para a sua faca. Mas, agora, uma cara de espanto refletia de seu aço lustroso. Não havia pesadelo maior do que o velho e rabugento Seabald. Nem mesmo os Kauhuzas! Era bom que Nakryn não dedurasse mais isto…
-IIIBalançando sua maça no ar, perguntava-se quais seriam os problemas de Sida Hyvat, a filha do dono da taverna “Os Neutros”. Uma linda e elegante elfa que Nakryn gostava. Sua face e seu corpo eram dignos das histórias de princesa que lera quando criança. Um fino queixo, uma delicada sobrancelha, olhos desenhados com longos cílios negros. Suas longas e finas orelhas erguiam sinuosamente algumas mechas, fazendo cascatas carmesins sobre seus ombros. Uma beleza exuberantemente nata. Por mais que a bela ruiva falasse mais do que muitas pessoas pudessem aguentar, Nakryn sempre se divertia com sua excentricidade especial. Quando a pequena garota chegou a cidade, Sida já era uma mulher. Entretanto, isto não lhe impediu de sempre lhe fazer companhia quando a pequena dos olhos dourados procurava alguém para brincar. E mesmo agora a elfa continuava ao seu lado… Apesar de que, agora, a brincadeira foi trocada pelo álcool. Nakryn sempre gostou de ouvir boas histórias, e isto era uma das coisas que Sida melhor sabia fazer. Por sinal, foi a própria taverneira que ajudou a disseminar o querido apelido “Cidade da Loucura” para Nadati. Claro, tudo começou pelo efeito colateral da energia de Zewo que se concentrava no local, mas Sida fazia o resto. Logo ao entrar na velha e conservada taverna, pode enxergar a elegante elfa dos olhos verdes. Sida andava da esquerda para a direita por detrás do balcão de madeira de lenha, balançando seu vestido vermelho ao ar. Seus dedos mexiam compulsivamente no pingente de seu colar, um coração de ouro. Murmurava para si aleatoriedades. Estas variavam desde uma aposta até um problema com ratos no porão. Repentinamente, a elfa de pouco mais de um metro e sessenta pulou para trás pela presença inusitada da clériga.
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– Oh! Nakryn! Perdoe-me, estava pensando em algumas coisas… Principalmente nos ratos… – Sida calou-se por um instante, franzindo levemente sua testa. Odiava ser superada por algo, principalmente por criaturas de menor porte que ela. Incluso nesta lista anões, gnomos e malits. – Sempre tivemos problemas com ratos hora ou outra, mas isto é ridículo! Não importa o quanto eu mate, eles continuam aparecendo! – Não se preocupe, Sida! Mas você sabe me dizer por onde eles estão entrando? – Alcançou uma das canecas recém-limpas que ali estava. – Não sei te dizer, Nakryn… Apenas tenho olhos para aquelas coisinhas nojentas e repugnantes. Desperdício de oxigênio, eu diria! – A elfa ficava tão vermelha quanto seu próprio cabelo. – Já tentou usar algum veneno? – Procurava com sua mão a garrafa de vinho que Sida guardava sempre no mesmo lugar. – Veneno? Aqui está o veneno que uso! – Alcançando seu braço abaixo da gaveta de contas, retirou um cabo de vassoura com a ponta quebrada. Sua extremidade repleta de sangue encontrava-se muito bem afiada e preservada. – Este é o veneno mais eficaz de “Os Neutros”! Resolve qualquer coisa! Ratos, lobos, aranhas e ocasionalmente alguns bêbados que tentam tirar proveito de uma dama inocente e indefesa como eu! – Elegantemente, apoiou seus dedos sobre seu peito. – Malditos alcoólatras… Ao menos sustentam bem a casa. – Droga… – Reclamou a garota da íris âmbar, guardando a garrafa de vinho. Seus olhos miravam a ponta ensanguentada da vassoura. – Agora perdi a vontade de beber vinho, sua cretina. – Bem, talvez eu tenha acabado de lhe salvar, quem sabe eu não tenha guardado um pouco de sangue nesta garrafa? – Sida soltou uma aguda e oscilante risada. – Parabéns, agora você garantiu minha sobriedade pelo resto da vida. – Nakryn abriu um pequeno sorriso, logo vertendo o vinho para dentro da caneca. – Mentira… Nada tiraria meu apetite por bebidas, nem mesmo as histórias de mestre Owan! As duas mulheres riram juntas. – Afinal, aonde está o velho Ablurgor? – A clériga bebia apreensivamente, buscando ver com o canto de seus olhos se o seu mestre, ou algum discípulo, lhe veria bebendo em tal horário.
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– Papai está na floresta… Faz alguns dias que saiu junto a um anão um tanto excêntrico. Um sujeito engraçado, eu diria! Gostei muito dele… Parecia-me tão simpático. Falavam sobre caçar e cogumelos do eco. Preocupo-me com o que esteja fazendo para demorar tanto! – Compreendo… Mas tenho certeza que ele está bem. Afinal, é o seu pai. E se foi caçar com um anão, está em boa companhia! Owan me disse que uma vez enfrentou um anão Kauhuzas… Longa história, longa batalha. Nakryn terminou de virar a bebida, apoiou-se no balcão e levantou-se. Desprendendo sua maça estrela do suporte em sua cintura, bateu com sua mão no balcão. – Bem, é hora de iniciar minha caçada épica! Aonde mesmo fica o porão, Sida? – Ali, naquele canto, querida. Sinta-se à vontade para aniquilar tais criaturas usando o que precisar. – Disse Sida, apontando para uma pequena portinhola ao canto do grande salão. A madeira e as dobradiças aparentavam bem desgastadas pelo uso excessivo. Era ali onde ficava o depósito de comida e bebida. E pelo movimento que ganhava durante os almoços e jantas, era impressionante que ainda estivesse no lugar. – Mas tome cuidado, Nakryn. Recentemente estes ratos estão ficando estranhos… Violentos… – Sida voltou o olhar para a vassoura e então novamente para a humana. – Ao menos estão mais gordos, assim é mais fácil de acertar! – Tudo bem! Tomarei cuidado sim! Mas… Não acha que os clientes vão se assustar se eu fizer muito barulho? – Olhou para a meia dúzia de indivíduos que permaneciam distraídos. – Não se preocupe. Em poucos minutos, os sinos tocarão e este lugar começará a infestar de pessoas… É mais provável que você se assuste lá embaixo! – Melhor assim! – Sorriu, voltando-se para a portinhola. – Boa sorte com os clientes! – Agradecida, minha querida! Estarei aqui qualquer coisa!
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-IVLogo que desceu pelas escadas de madeira, chegou a um pequeno e abafado cômodo. Estranhamente, sentiu-se incomodada. Uma estranha claustrofobia repentina. Nunca esteve ali, mas sentia algo de familiar no ambiente. Era como se já tivesse passado por uma situação familiar… Balançou sua cabeça, não deveria ser nada. Pôs seus olhos a observar o ambiente. Acima de sua cabeça, uma bancada contendo alguns caixotes, cordas e outras tralhas as quais não se importou em checar. Todos os alimentos e bebidas armazenados ao redor da sala enclausuravam-na. A luz precária que a pequena lamparina fornecia não era de muita utilidade. Garrafas de vidro e cerâmica empilhavam-se acima de caixotes. E vários panos limpos se penduravam na parte superior. Sacos de linho estavam distribuídos organizadamente nas laterais, cobrindo toda a parede. Apenas de olhar para a quantidade de poeira que aquela bagunça acumulava já fazia o seu nariz coçar. Os sinos da cidade começaram a tocar. Um saco rasgado, parcialmente vazio, agitava-se. Pode ouvir estalos de sementes quebrando em seu interior. A pequena mulher empunhou sua maça de aço em uma de suas mãos e, segurando seu pequeno broquel de madeira na outra, avançou com cautela até o indefeso saco de verduras. Nakryn era muito inteligente e sábia. Mas tamanha inteligência acabava por criar estratégias demasiadamente cautelosas para o menor dos problemas. Ligava um fato a outro em uma corrente quase interminável de pensamentos, transformando um simples martelar de cabeças em um estratagema militar. Deixando o broquel a proteger boa parte de sua face, ergueu lentamente o tecido que agitava-se. Queria ver para onde os ratos fugiriam para encontrar sua toca. Selar-lhe-ia, resolvendo o problema em sua fonte. Mas ao erguer o leve saco cor de couro, três ratos imediatamente avançaram contra ela. A clériga se esquivava como podia. Os roedores enraivecidos pulavam ferozmente. Não era simplesmente instinto de sobrevivência, eles queriam matá-la!
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Por mais que conseguisse se defender da maioria dos golpes, os proeminentes ratos conseguiam desferir fortes mordidas nas falhas de sua armadura. Pelo amor de Neyu! Aquelas criaturas eram grandes! Podia jurar que o próprio Senhor Gatinho era menor que estes roedores! O que era irônico, levando em conta o quanto aquele gato era gordo. Ao mesmo, também era irônico o fato de mestre Owan ter dado o prefixo “Senhor” para um filhote. Claro, fazia sentido agora que estava velho, mas antes era algo risível. Isto sem contar a falta de criatividade de seu mestre quanto a nomes. Ou a vez em que Senhor Gatinho foi encontrado dentro de uma grande cobra atrás do monastério, mas conseguiu ser salvo e ressuscitado por Owan. Nakryn também foi útil, incinerando o corpo da serpente. Retomou sua atenção. Era incrível como conseguia se perder em seus pensamentos quando sentia-se assustada. Mais incrível era o fato de não ter percebido seu ombro e sua mão banhadas em sangue. Havia esquecido que estava em meio a uma batalha, perdendo boa parte de seu tempo bailando pelo cômodo, pensando em um gato gordo e fofo. Nakryn deixou de lado seu deficit de atenção momentâneo e se focou na batalha. Balançando sua clava ao ar, conseguiu atingir uma das criaturas, quebrando as costelas de um dos ratos. Agarrando a cauda do roedor que estava em seu ombro, alavancou-o contra a quina de um pilar de madeira, matando-o no impacto. Contudo, avançando contra sua perna, o último dos ratos desferiu uma profunda mordida em sua panturrilha. Instintivamente, puxou sua perna, fazendo-o se desequilibrar e cair a sua frente. Logo que o corpo peludo e sujo da criatura de olhos vermelhos tocou o chão, Nakryn esmagou seu crânio com sua maça, fazendo um grande estrondo ecoar pela câmara ao quebrar o assoalho de madeira. Até mesmo a conversa que vinha do salão da taverna parou por um momento. Mas, logo, o barulho recomeçou. Seu sangue escorria por toda sua armadura de talas. Retirando-a, enfaixou-se com os panos limpos que ali havia. Bem… Os que sobraram limpos. A maioria estava com vestígios do sangue dos ratos. Quando retornasse para o monastério, mestre Owan poderia lhe purificar com suas magias, garantindo que não sofresse de nenhuma doença degenerativa proliferada pelas criaturas
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repugnantes. Daquele dia em diante, era definitivo: Nakryn odiaria cada roedor vivo em Herathor! Mas antes de começar sua chacina, havia de terminar seu trabalho atual: Deveria se livrar da toca maldita. E levando em conta o tamanho deles, não seria difícil achá-la. – Madáli! – Sussurrou, conjurando uma magia de luz em sua maça. No mesmo instante, todo o quarto estava iluminado pela sua estrela de ferro. Passou alguns minutos revirando sacos pesados e caixotes. O barulho das conversas, dos passos e das cadeiras se arrastando não ajudava em sua concentração. Tinha certeza de que havia um barulho muito próximo a ela. Mas nada tão perceptível… Estranho… Não havia nada próximo ao solo que pudesse servir de entrada. A não ser que… Ao olhar para cima, um par de pérolas vermelhas encaravam-na. Um rato muito maior do que os roedores que matou, ou mesmo que o Senhor Gatinho, estava entalado em um buraco na parte superior do porão. Sem cometer o mesmo erro, resolveu atacar o animal antes que este se libertasse. Balançando sua maça, acertou-lhe o focinho, criando um grande e estrondoso estalo ao quebrá-lo. Contudo, não foi o suficiente para matar ou mesmo atordoar a criatura. Mas foi o suficiente para enfurecê-lo. Nakryn chegou a conclusão de que aquela criatura deveria ter comido pelo menos um cachorro inteiro para engordar daquela maneira. De fato, aquele rato deveria ter, pelo menos, o tamanho de um cachorro um pouco avantajado. Entretanto, não era seu tamanho que chegava a assustar, mas o fato de que ossos surgiam por toda sua espinha. Suas omoplatas pareciam ombreiras pontiagudas. Espinhos afiados tomavam seu corpo, prontos para dilacerá-la. Por um momento, não soube dizer se aquilo se tratava de um porco-espinho muito feio ou se o vinho que havia bebido estava estragado. Afinal, vinho poderia estragar? Impossível, era perfeito demais para se estragar… O fato de saber que o vinagre era resultado da fermentação do vinho não lhe impedia de pensar assim. Não era “estragar”, era “reaproveitamento do luto para a culinária”. A pancada de sua maça havia feito com que seu exoesqueleto rompesse a madeira do buraco, libertando-o. E aproveitando de sua distração, o rato avançou. 43
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Seus dentes sujos penetraram sua carne, pode sentir seu organismo fervendo e lutando contra a infecção que tentava invadir seu corpo. Precisava agir rapidamente, não sabia se o veneno poderia ter algum efeito colateral. Empurrando o rato para longe, Nakryn concentrou-se. Colocou o broquel à sua frente, acumulando suas forças em seu braço direito. Respirou fundo, o rato agitava-se. Uma espuma branca escorria pela sua boca escancarada, podia até mesmo ver as duas fileiras de dentes reluzindo a luz de sua arma. E então, ele saltou. Calculando a trajetória que tomava, Nakryn balançou seu corpo, impulsionando sua clava contra o estômago da besta. As pontas afiadas de maça estrela penetraram sua carne, facilmente expondo suas entranhas. Em um baque, o roedor caiu ao chão. O rato debateu-se, um guincho rouco e histérico saía pela sua garganta. Pisoteando seu pescoço, deu fim ao seu sofrimento. Nakryn estava muito ferida. A batalha poderia ter sido mais fácil se não tivesse divagado tanto. Ao menos estava viva. Todavia, algo atormentava sua mente: Aquela situação era extraordinariamente anormal. Por mais que a cidade enfrentasse problemas com ratos nos últimos anos, eles nunca deram tanto trabalho. Simples ratos, pequenos e comuns. Problemas mundanos. Contudo… Aqueles ratos não eram normais… Especialmente a presença de um rato tão atroz. Um arrepio subiu pela sua coluna. Tentava entender o que aquilo poderia significar. Decidiu deixar seus pensamentos de lado. Precisava fechar o buraco e ir até Owan o quanto antes. Afinal, não gostava de tomar antídotos, preferia que o velho curasse-lhe. Era mais prático. Erguendo novamente sua maça, a qual agora brilhava em uma luz avermelhada devido ao sangue, observou o buraco que mais parecia uma janela redonda esculpida na madeira e na terra. Analisando-o, concluiu de que aquele rato monstruoso havia cavado seu caminho até ali, diretamente para o porão de “Os Neutros”. A criatura estava tão determinada a entrar naquele local que chegou a roer e arrancar a madeira grossa que revestia as paredes… Ou a comida ali guardada era muito boa, ou algo levou a procurarem por um local mais seguro e isolado. E levando em conta
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que nada de espetacular havia na culinária local, a segunda opção parecia a mais certa. Pouco tempo levou para tampar o buraco com várias garrafas vazias. Se tentassem cavar por aquele material, certamente iriam ferir-se. Contava que os ratos não tentassem roer o vidro, mas já não duvidava de nada. Com algumas tábuas e pregos, fechou a cratera sem deixar qualquer falha ou fresta. Após alguns minutos, viu que seu trabalho ali estava pronto. Não havia mais nenhum buraco, nenhum rato… Apenas o sentimento estranho que lhe percorria as entranhas gritando que algo ali estava muito errado. Não sabia se aquela sensação seria o vinho, o veneno, ou sua sabedoria. Talvez os três ao mesmo tempo. Precisava falar com Owan. Não gostava de maus pressentimentos. Nunca acabavam bem… Após refazer os curativos de seu ombro, subiu as escadas contendo a dor em seu corpo.
-VA taverna estava cheia. Todos os trabalhadores locais e mercantes ambulantes paravam para ali alimentar-se. Não prestou muita atenção em quem estava por lá. A única coisa que queria era um bom descanso. A noite retornaria e se embebedaria com Sida. Talvez conseguisse convencer os novatos a beberem com ela! Mas assim que fechou a velha portinhola do porão, ouviu um grande estrondo vindo do exterior da taverna. Não importava o que fosse, ou mesmo como estivesse. Era o seu dever ajudar a preservar a ordem em Nadati. Se alguém estivesse correndo perigo, precisava ajudar! Respirando fundo, sacou sua maça, partindo em disparada para averiguar a situação.
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Ezrath Ma-Woo
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– esde o princípio, as florestas de Herathor guardam segredos tão preciosos quanto o ouro e a prata de Zlato. Histórias nunca contadas, criaturas nunca vistas, sabores nunca provados. Dos bosques calmos de Miyamiran até o pântano conflagrado de Neobuzdan, a natureza trilha seu caminho em um transe harmonioso e caótico. E por mais exóticos sejam seus atos e decisões, nunca houve de soprar uma única palavra. Os segredos da terra permanecem na terra. E nós, como filhos de Taros, abençoados pela astúcia de Haotran e a dádiva de Pazija, temos como dever garantir que tais segredos nunca sejam ditos. A esguia e bela elfa palestrava calmamente. Sua voz soprava ao vento em um tom alto o suficiente para que os dois elfos que a seguiam ouvissem-na. Com seu arco curto em mãos, mantinha a flecha perfeitamente ornamentada esticando a resistente linha de couro cru. Seus olhos prateados observavam cautelosamente o ambiente ao seu redor. Seu rosto pálido era moldado em finos traços sutis. As finas e longas orelhas tendiam para o lado, revelando-se entre os compridos fios brancos de seu cabelo. Seu delicado e pequeno nariz e os traços de seus lábios finos poderiam levar qualquer viajante a pensar estarem vendo um anjo. Suas estreitas sobrancelhas acompanhavam sua testa franzida. Estava preocupada. Nos últimos meses, inúmeros integrantes de sua tribo haviam desaparecido durante as caças. E por mais que aquilo fosse apenas um treinamento para a jovem Celith, Ezrath não podia admitir perder mais um elfo… Principalmente alguém tão importante para ela. 47
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– Antes da ascensão de Yerum, O Louco, nossos antepassados se concentravam no grande vale de Kalikav, ao sudoeste do vulcão Zatwa. Eram, assim como outras tribos, caçadores selvagens. Mas havia algo que os diferenciava de qualquer outra raça. Eles eram um com a natureza. Mesmo sem a benção dos dragões, aquele era o seu verdadeiro lar! Kalikav seria para sempre sua casa… Apesar de hoje ser usurpada por raças inferiores… – Ezrath fez uma breve pausa, remoendo em silêncio seu rancor. – Mas após Malaki Zemtrojes, “o grande tremor”, separar Herathor de Zabohrav, foi-nos atribuída uma única missão. E assim, tivemos de abandonar nossas raízes por um bem maior. – E que missão seria esta, ditze? – Seus olhos castanhos se contrastavam sob as mechas loiras de seu cabelo encaracolado. Diferente de Ezrath, não era alta, suas orelhas pequenas e pontudas demonstravam sua linhagem mista. Possuía uma expressão ingênua, indefesa, insegura. Não sabia a linguagem élfica, mas esforçava-se para aprender. Ao menos, agora, havia finalmente parado de confundir ditze com dadija. Afinal, “ditze” era como se cumprimentava cordialmente as mulheres da mesma tribo, e “dadija” era um pronome empregado as amas subordinadas. Um erro que lhe custou um caro açoitamento. – Nosso ancião conta que, ao retornar de seu exilamento, Pazija se reuniu com os elfos remanescentes em Kalikav, antes da batalha final. Naquele dia, proferiu o segredo do ritual de Zlodanih. E para que Yerum fosse derrotado e aprisionado, seis selos surgiriam. A tumba do grande Cinzento nunca poderia ser aberta, as chaves para tais selos deveriam ser escondidas pela eternidade. E assim, dentre todas as raças, Pazija confiou apenas em nós. – Ezrath soltou um suspiro orgulhoso. – Nossa linhagem sempre se mostrou astuta e preparada. Sabíamos que, um dia, alguma criatura das outras raças buscaria pelo Segredo. Então, para que ninguém pudesse saber aonde ela realmente estaria, os elfos se dividiram em seis grupos e se espalharam por Herathor. Destes, várias tribos surgiram e a cada uma foi entregue um baú, onde acreditava-se estar o Segredo de Pazija. Mas apenas uma tribo portaria a verdadeira essência! – E… – Interrompeu timidamente a garota do cabelo cacheado. – Sua… Digo… Nossa tribo… Ela possuí este Segredo? – O que você acha? – Ezrath rasgou um sorriso com o canto de sua boca. – Não somos apenas a raça escolhida. Somos a verdadeira
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tribo! Você deve sentir um imensurável orgulho por agora ser uma Ma-Woo, Celith! – Hah! – Um alto riso irônico soou por detrás das duas elfas, afugentando algumas criaturas de pequeno porte que se escondiam na mata. Um elfo alto de longo cabelo branco preso em um rabo de cavalo apoiava um grande machado em seu ombro. Seu sorriso forçado acima de seu queixo quadrado zombava claramente de Ezrath. – Orgulhosa?! Não me faça rir! Esta medíocre imitação de elfo nunca passará de uma Puolí! – Cale-se, Éreror! Celith não tem culpa de sua mãe ser uma humana. – Respondeu-o em um tom seco, um tanto quanto decepcionada. – Por mais que não queira aceitar, ao menos metade de sangue élfico corre por suas veias. Além do mais, nosso ancião, o seu progenitor, instruiu-nos para a treinar e protegê-la! – Velho tolo… Seu contato com outras raças fez seu coração amolecer. E, pelo visto, seu cérebro também. – pigarreou com força, cuspindo ao chão. A única reação que Celith demonstrara eram suas sobrancelhas levemente erguidas pela sua tristeza. Ser chamado de puolí era considerado o maior insulto que um elfo poderia receber. Significava “sangue impuro”, muitas vezes usado para acusar alguém de traição. Quando não era o caso, usavam para denominar os meio-elfos nascidos entre o cruzamento de um elfo com um humano. E isto, para as tribos mais conservadoras, tratava-se justamente de uma traição. – Além do mais. – A bela elfa dos olhos prateados acrescentou. – Você é um varvárian, Éreror. Um dos mais nobres e altos postos que um guerreiro pode almejar… Seria realmente uma pena se quebrasse algum de seus juramentos e tivesse de voltar a ser um relés vartija, não é mesmo? Seus fartos músculos tensionaram-se. O elfo rangeu seus dentes controlando sua língua e seus punhos. Por mais audaciosa e impertinente que Ezrath fosse, naquele momento, possuía razão. Caso agredisse ou matasse um membro de sua tribo, perderia seu posto de varvárian. Poderia até mesmo ser exilado. Sua tribo estava passando por um momento difícil desde que os misteriosos ataques intensificaram-se. Argon, seu pai, não toleraria nem mesmo que chacoteasse a pobre garota. Precisavam ficar unidos, mesmo que isto significasse conviver com uma puolí.
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– Continue o que quer que esteja fazendo, apenas pare com sua conversa inútil e enrolada. – Rugiu Éreror, descendo o machado de seu ombro. – Não precisamos de mais casualidades. Ao se esgueirar dentre a densa mata, Ezrath avistou uma pequena clareira onde uma lebre marrom estava a saciar sua cede. O pequeno animal não proveria muita carne. Provavelmente, alimentaria apenas dois elfos. Mas teria de ser aquilo. Fazendo um leve sinal com seus dedos, pediu para que Celith se aproximasse cautelosamente. – Está vendo logo a nossa frente? – Sussurrou a bela elfa dos olhos prateados. – Sua primeira presa. Não possui muita carne, mas, ao menos, é o melhor alvo para você começar. Mate-o. – Mas… Ele é tão bonitinho! – Não, não tenha pena dele, Celith. De fato, esta é apenas uma lebre indefesa. Mas encontrará diversas ocasiões em que terá de matar uma criatura que possa parecer inofensiva. E esta criatura não terá pena de você! Você precisa ser ágil, silenciosa e letal, só assim sobreviverá! – Tudo bem… Eu compreendo, ditze. Ezrath segurou nas macias mãos de Celith, abraçando suas costas e levando o arco curto da pequena garota ao alto. Conduzindo-a delicadamente, fez com que a jovem dos olhos castanhos preparasse uma fina flecha. – Sempre puxe a flecha vagarosamente para que a folhagem não entregue sua posição. – Ezrath sussurrou em seu ouvido. – Mantenha a atenção em seu alvo. A lebre está bebendo água, isto lhe torna um alvo fácil. Sempre aproveite as oportunidades para atacar. – E se eu errar, ditze? – Perguntou Celith, virando seu rosto para a esguia e alta elfa. – Você não errará, Celith… Estou ao seu lado. – Soprando as palavras ao vento, a bela elfa virou sua face, encarando-a ternamente ao longo que seus dedos entrelaçavam-se nos dela. – Agora, aguarde o momento preciso… – E quando será este momento, ditze? – Um verdadeiro arqueiro nunca disparará cedo ou tarde demais a sua flecha, mas sempre no exato momento em que seu alvo estará mais vulnerável. – Ambas voltavam seus olhos para a pequena lebre. – Visualize um ponto fraco, respire fundo… E…
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A maior do corpo da lebre estava envolta em plantas rasteiras, apenas sua cabeça estava exposta. Fixando seu olhar em seu alvo, Ezrath ajudou a pequena elfa e colocar a flecha na mira. – Agora! Celith soltou a flecha em sincronia às palavras de Ezrath. Em menos de um segundo, a Lebre estava morta. O Sangue que escorria fazia com que manchas vermelhas flutuassem serenamente sobre a água cristalina do lago. Um tiro perfeito. – Eu consegui! – Sim! Parabéns Celith! – A formosa elfa sorria calorosamente. – Apenas mantenha a voz baixa, precisamos nos precaver. – Perdão, ditze. – Enrubesceu. – Caladas! – Éreror interrompeu-as, surgindo na mata atrás delas, rapidamente abaixando-as. – Algo aproxima-se! Mais adiante do pequeno lago, uma aberração expunha-se à luz da clareira. O ser avançava em suas duas patas em direção à pequena lebre, esgueirando-se lentamente pelas sombras com suas escamas marrons. A criatura era pouco menor que um humano, mas tão larga quanto uma píton. Todavia, não foi isto que assustou Ezrath, mas sim o fato da besta não possuir uma cabeça. Ao invés disto, sua parte frontal terminava em uma gigantesca boca com quatro mandíbulas que formavam um X. Cada parte de sua boca escancarada era composta por afiados dentes negros como sombras, terminando em uma grande presa falciforme. Não possuía olhos, nem mesmo pescoço. Sua mandíbula girava lentamente, soando alto e claro os estalos que se assemelhavam como ossos partindo-se. Quatro longas línguas escorriam pela sua boca, tateando o chão ao procurar uma presa. Ao notar a carcaça da lebre, sua cauda, a qual parecia uma longa lança maleável, começou a balançar de um lado para o outro, pronta para empalar o animal e devorá-lo. Celith estava apavorada. Tremia descontroladamente. O guerreiro do machado se aproximou cuidadosamente para que a criatura não percebesse-os. – Pelas bolas de Haotran, o que diabos é isto? – Resmungou, franzindo sua longa e fina sobrancelha. – Não faço a mínima ideia, mas parece ser extremamente perigoso. 51
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– Isto não é nato de Miyamiran. – Disse com um tom perceptível de ódio e rancor, como se culpasse Ezrath pela presença da criatura. – Isto é… – Celith sussurrava, contendo seu choro. – Um kolmezu… – Um kolmezu?! – Éreror intrigado exclamou. – Impossível, estas criaturas preferem ambientes áridos como a savana de Opazan! – E ainda assim, cá está ele… Centenas de quilômetros, em uma terra gelada como Miyamiran. Algo está errado… – Ezrath puxou lentamente sua flecha. – O que faremos? – Se você não atacar primeiro, eu atacarei. – Disse o varvárian, desafiando-a. Ezrath controlava suas emoções. Por mais medo que sentisse pela criatura sanguinária, não poderia errar. Caso contrário, poderia ser o seu fim, ou pior, o fim de Celith! Inspirando lentamente o ar para seus pulmões, concentrou-se. A criatura precisava abaixar sua guarda. O forte kolmezu girava o eixo de suas mandíbulas. Rasgando o ar, empalou a lebre com sua cauda, escancarando suas mandíbulas para engoli-la. Assim que enxergou a garganta da besta, Ezrath soltou sua flecha. Assoviando no ar, a seta voou para o interior da criatura. Em poucos segundos, seguido por um abafado rugido rouco, o kolmezu caiu, debilitado, ao chão. Éreror avançou, bradando um grito de guerra ao atravessar seu grande machado entre suas mandíbulas. Ezrath levantou-se, mal podia acreditar no que acabara de ver. Aquilo era, sem dúvida, inusitado. Mas, pela benção de Haotran, nada havia acontecido com Celith. – Um kolmezu… Já não basta termos de fugir de Maazenji por causa de criaturas demoníacas! – Éreror rugia, arrancando seu machado da carcaça da criatura. – O velho havia nos prometido que o sul seria mais seguro… Tolice! Estaríamos mais protegidos em meio à neve de nossas terras! Ao menos, conhecíamos nosso próprio lar… Esta não será a última criatura que tentará matar-nos. Todos ficaram em silêncio por um instante. Celith sentou-se ao chão, chorando. Éreror fitou as duas guerreiras e, rangendo seus dentes, agarrou o corpo sem vida da criatura, arrastando-lhe para o acampamento.
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– E o que exatamente foi isto? – Perguntou Ezrath. – É tudo minha culpa, Ezrath. – Soluçava a pequena garota. – É tudo culpa minha… – Como pode dizer isto? – Ajoelhou-se, segurando os braços da garota. – É apenas uma coincidência! Não há nada de errado com você! – Mas como pode!? – Com seus olhos avermelhados pelas lágrimas, fitou-a. – Assim que minha família buscou abrigo com os Ma-Woo do norte, eles morreram! E quando sua tribo finalmente resgatou-nos, começaram a morrer também! Até mesmo o seu pai… Tudo por minha culpa! Ezrath puxou rapidamente Celith contra seu corpo e, abraçando-a, beijou-lhe ternamente a boca. Acariciando sua face com a ponta de seus dedos, afastou-se lentamente, fitando a pequena elfa em seus olhos. – O que aconteceu com a tribo norte foi um evento à parte. – A bela dos lisos cabelos brancos mantinha sua mão limpando as lágrimas de Celith. – Não somos eles… Somos os Ma-Woo do sul de Maazenji! Herathor não é a mesma que um dia foi, isto não está acontecendo somente conosco. Certamente é apenas um momento. Tudo voltará ao normal em breve! – Obrigada, Ezrath. – Soluçava, contemplando seus olhos prateados. – Não sei o que faria sem você… Primeiro minha tribo, depois meus pais… Não poderia perder você também. – Não se preocupe, Elen. – Suspirou Ezrath. – Estou aqui por você. – Adoro quando você me chama pelo meu verdadeiro nome. – A pequena garota sorriu. – Eu não gosto muito de que me chamem pelo meu nome élfico… – Sei que gosta, por isto o faço. – Foi o que disse… Foi o que queria dizer. – Mas não posso fazer isto com frequência… Os outros elfos podem começar a suspeitar de nós. – Sua tribo é tão fechada assim? – Perguntou Elen. – Digo… Qual é o problema com os humanos? E até mesmo de nos verem juntas? Por que todo este medo? – Não me entenda mal, meu amor. – Levantou-se, prendendo seu arco curto. – Não se trata de medo… Somos os verdadeiros portadores do Segredo de Pazija. Temos de manter nossa cultura e nosso sangue
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puros. O contato com as outras raças apenas enfraquecer-nos-á… Se isto acontecer, pereceremos como tantas outras tribos que fraquejaram em seu caminho.
-IIA tarde estava abafada, mas a temperatura ainda estava baixa. Contudo, por mais gélido que estivesse, os elfos de Ma-Woo não demonstravam o mínimo desconforto. A taiga de Miyamiran não se comparava à tundra que antes habitavam: Maazenji. Os altos pinheiros e abetos preenchiam a região, deixando o solo apenas com diminutas plantas rasteiras. Entre as rochas encostadas em um paredão, o qual localizava-se ao lado de uma pequena cachoeira, uma estreita gruta coberta por musgos e líquens levava ao acampamento élfico. Logo na entrada, duas grandes fogueiras permaneciam apagadas. Serviam tanto como demarcação do local quanto proteção durante as longas noites. Um pequeno corredor curvo de pedra levava a espaçosa gruta que abrigava-os. Nas esteiras de couro e lã ao redor da fogueira central, elfos de várias idades permaneciam. Alguns conversando, outros meditando, mas a maioria silenciosamente contemplando o crepitar das chamas, nervosos pelo que poderia acontecer até o final da noite. Cada dia que se passava era um novo pesadelo para os membros da tribo Ma-Woo. Há pouco mais de um ano, iniciaram uma incansável peregrinação buscando um lugar que pudessem, enfim, estar seguros. Mas quanto mais distantes ficavam de seu verdadeiro lar, mais cansados e expostos tornavam-se. Ezrath e Celith mal haviam chegado e os olhos dos elfos da tribo já retorciam em sua direção. Era como se os próprios Kauhuzas estivessem parados na entrada da caverna, provocando um misto de medo e repulsa. Elas não sabiam ao certo o que exatamente aquilo significava… Culpavam-nas pelos acontecimentos, ou simplesmente desconfiavam de seu relacionamento? Poucas tochas iluminavam seu interior, deixando-o à deriva da escuridão. Não que isto lhes incomodassem, pois enxergavam sem dificuldades na penumbra. Entretanto, nada mudava o fato de que o ambiente se tornava mais fúnebre com tal iluminação.
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– Elen. – Cochichou Ezrath. – É melhor você ir até seu leito. Falo com você mais tarde. – Tudo bem… Ditze. – Sussurrou a jovem meio-elfa, com um meigo sorriso em sua face. Ao passar por Ezrath, acariciou sua mão discretamente com a ponta de seus dedos, seguindo para seu lugar. Ezrath observou, parada, Celith afastando-se lentamente. Seus instintos incomodavam-lhe. Éreror estava mais explosivo do que o normal, e, certamente, estava para fazer algo impetuoso… Tinha a impressão de que ela seria prejudicada por isto.
-IIIAndava pela extensão da profunda gruta escondendo o barulho de seus passos. Pouco demorou até que, enfim, avistou-os. Ao final do largo corredor de pedras, iluminados pela luz de uma tocha solitária presa contra a parede, Éreror, o qual sentava-se em cima do cadáver do monstruoso kolmezu, balançava seus braços ao ar conversando em um dialeto desconhecido com seu pai, Argon Ma-Woo. O ancião andava com o apoio de um longo cajado branco de madeira de bordo, apoiando sua cansada e curva costa na força que lhe restava em seu braço. Sua pele enrugada e suas mãos trêmulas e pálidas marcavam seu corpo exaurido. A velhice não lhe retirou os longos cabelos brancos, mas esta não foi tão generosa com seus traços. Ainda jovem, tornou-se líder da tribo Ma-Woo sulista. Talvez tenha sido o mais jovem elfo a tomar a liderança de uma tribo. Pouco antes de atingir sua maioridade, com apenas 119 anos, fora nomeado. Todavia, agora, beirava sua morte arrastando consigo 672 longos anos de vida e experiência. Por mais que sua língua nativa fosse élfica, Ezrath não conseguia entender uma única palavra do que os dois conversavam. Talvez o eco estivesse atrapalhando? Ou seria porque estavam falando baixo demais…? Não importava. Ali estava vindo Éreror, precisava se esconder rapidamente. O alto e robusto elfo arrastava pela cauda a criatura morta, fazendo com que o barulho do atrito com as pedras e a terra ecoassem pelas paredes da gruta. Ezrath encostou-se contra um vão, camuflando-
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-se entre as sombras. Permaneceu estática ao observar Éreror se afastar. Assim que o elfo tomou uma distância segura, a bela elfa dos olhos cinzas saiu lentamente de seu esconderijo, sem ao menos dissipar um som sequer. – Aproxime-se, Ezrath. – A voz rouca e cansada de Argon soou em élfico, fazendo com que um arrepio subisse pela sua espinha. – Creio que está aqui por respostas, não é mesmo? – Como sabia que eu estava aqui? – Indagou, aproximando-se de modo que nenhum passo fosse ouvido. – Minha estimada filha… – O ancião virou-se lentamente. A luz da tocha iluminou sua face, revelando o oco que ocupava o lugar de seus globos oculares. – Eu não teria me cegado se precisasse de meus olhos. Ezrath calou-se. Nunca teve tanto contato com o ancião, mas sempre soube das histórias de que havia arrancado seus próprios olhos para se tornar líder de sua tribo. Dizia que a verdade não estava aonde o olhar podia vagar, mas sim no oculto interior da alma de um ser. Possuía uma sabedoria imensurável, assim como sua compaixão. Todavia, era rígido e ríspido com aqueles que o espírito havia sido tocado pelas trevas. – Diga-me, o que busca, Ezrath? – perguntou o ancião. – O que Éreror e o senhor estavam conversando? – Sinto lhe dizer que tal conversa não foi feita para seus ouvidos, minha filha. – Argon suspirou, batendo levemente seu cajado contra o seco solo. – Mas, sem dúvida, é sobre o que você presume… Os ataques. – O senhor sabe algo que esteja levando a estes acontecimentos, ancião? – A bela elfa engoliu um seco pela sua garganta. – Deveria saber? – O oco de seus olhos ampliavam-se, acompanhando sua sobrancelha. – Não… – Sua voz soava um pouco trêmula, uma gota de suor escorria por sua testa. – Lamento ter tomado seu tempo, ancião, devo voltar ao grupo agora. – Ezrath encurvou-se, virando-se lentamente. – Lamento, Ezrath. – Disse a voz rouca, fazendo-a parar. – Mas você não voltará. – O que quer dizer com isto, ancião? – Virou-se rapidamente. Seus olhos arregalados e suas pupilas contraídas demonstravam seu espanto. 56
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– Está foi a última chance que pude lhe dar para ser sincera. Mas é hora de encarar os fatos. – Argon andou lentamente, com dificuldades, até uma elevação que aparentava um banco de pedra, sentando-se. – Você carrega consigo um grande poder, Ezrath. – E isto é motivo para dizer que estou enganando alguém? – Ezrath indagou, ainda nervosa. – Não digo o seu poder, minha filha. – Apontando seu cajado para o pescoço da esbelta elfa, prosseguiu. – Refiro-me ao amuleto que porta. – Como…? – Ezrath se empalideceu tão logo as palavras de Argon se dissiparam no ar. – Você me ouviu, Ezrath Ma-Woo. – O ancião levantou sua cabeça como se contemplasse algo nas pedras que revestiam a gruta. – Os membros da tribo podem não ter visto as coisas que você fez… Mas ninguém consegue esconder a essência da verdade em sua própria alma. Há tempos observo seu espírito, analisando e julgando suas ações. Por mais que passemos por um momento de grande dificuldade… – Respirando fundo para retomar seu fôlego, prosseguiu com suas palavras trêmulas. – Você deve partir. – Você está me exilando?! – Estava pasma e incrédula, seu coração batia aceleradamente. – Não, Ezrath… Estou lhe banindo da tribo Ma-Woo. – Sua voz soava como o estrondo de um trovão. – Impossível, isto é injusto! – Ezrath remoía seus pensamentos. – Isto só pode ser culpa de Éreror! – Minha filha… Se mesmo agora você não possuí a honra de confessar seus pecados, não tente desvirtuar aqueles que honra ainda possuem. – O velho Argon levantou-se e, andando contra Ezrath, inspirou sonoramente antes de um último aviso. – Nossa tribo está queimando em um ódio xenofóbico e menosprezador. Temo que, em pouco tempo, não restará cinzas da glória que um dia possuímos… Ezrath, sua alma não é a brasa que queima e destrói, mas sim o fogo que mata e devora. – O que quer dizer com isto, velho? – Ezrath avermelhava-se, confusa e furiosa. – Para onde espera que eu vá? O que devo fazer?! Argon cessou seus movimentos por um momento, abaixando sua cabeça lentamente. – O caminho da redenção é o mais turvo e incerto de todos… Mas se busca realmente entender e purificar sua alma, siga a estrada para o leste. Talvez, assim, entenda o mal que porta. Tanto em seu amuleto, quanto em seu espírito. 57
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Ezrath manteve-se no mesmo lugar, pálida, incrédula e trêmula. Seu orgulho não aceitava sua nova realidade… Como poderia ela, a melhor arqueira de sua tribo, ser banida? Nem mesmo Celith, uma relés puolí, havia encontrado o mesmo destino… O que ela possuía que Ezrath não? A inveja lhe corroía os sentidos. Ela precisava partir… Mas não como uma renegada.
-IVSeus passos seguiam elegantemente desfilando pelo solo seco da gruta. Seguia em direção à Celith sem mesmo esconder sua presença. Pelo contrário, havia um desejo queimando dentro de si para que todos a contemplassem. Passando pela fogueira, encarou Éreror, navalhando-o com seu olhar, cortando cada um que tentasse lhe fitar novamente. Celith, sozinha, estava sentada pouco mais afastada do círculo de elfos quando ela alcançou-lhe. – Ditze? – Indagou a pequena e meiga elfa. – Está tudo bem? Sem uma palavra, Ezrath aproximou-se da garota, puxando-a pelo braço e desferindo um beijo carnal e voluptuoso. Em poucos segundos, o silêncio que tomava a gruta foi substituído por uma grande discussão e protesto. Elen, assustada, rapidamente afastou a elfa dos cabelos prateados de seus braços. – AUDÁCIA! O QUE SIGNIFICA ISTO?! – A voz de um dos guerreiros ecoou pela caverna. – Ezrath…? Ezrath?! – Elen tremia nervosamente, sem saber como reagir. – Estou partindo. E sem mais uma palavra, a elfa virou-se, afogando a tribo em caos e desordem ao que abandonava-lhe.
-VDuas cimitarras de gelo cruzadas entre a silhueta congelada de um falcão. Este era o símbolo que todos da tribo Ma-Woo traziam em suas capas. E mesmo renegada, Ezrath não deixaria de usá-la. A verdade que as pessoas conhecem nada mais é que o boato mais espalhado, e a bela elfa não feriria sua própria imagem. Os boatos seriam outros. 58
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Não sentia ódio de sua tribo, mas sim pena… Pena, pois, em poucas semanas seriam dizimados sem sua melhor e mais astuta caçadora. Era ela quem trazia mais de dois terços das caças e, mesmo quando os misteriosos ataques deram início, sempre estava lá para protegê-los. O tolo ancião poderia pensar isto seria o melhor para sua tribo, mas arrepender-se-ia. E no momento que o peso das mortes arcasse sua consciência, Ezrath voltaria com a salvação! Emergiria das sombras como a luz que traria a paz para sua tribo. E não apenas isto… Argon era um velho insolente com visão limitada. Seu sucessor, Éreror, possuía apenas músculos onde deveria ter um cérebro. Sua tribo precisava de alguém que os guiasse na escuridão como uma flecha certeira no coração do inimigo… Sua tribo precisava de alguém que transporia qualquer coisa e qualquer um para alcançar seus objetivos… Sua tribo precisava… De Ezrath. Estava há horas seguindo pela estrada que lhe levaria ao leste. Mesiak era sua única companhia, iluminando a noite junto as estrelas. Martelava seus pensamentos. Não sabia ao certo por que Argon lhe enviou por tal estrada e, por mais que não confiasse no velho, era sua única pista de onde começar. Ao longe, o estridente e contínuo som de rodas de madeira invadia a estrada. Uma carroça! Perfeito… Se o condutor não lhe representasse perigo, seguiria viagem com ele. Este querendo ou não. A carroça se aproximava rapidamente. Um senhor extre-mamente idoso a conduzia. Era possível notar uma série de cicatrizes em sua face e seus braços. Não possuía barba nem cabelo, a não ser por uns fios avulsos sobre sua careca. Cara de pouquíssimos amigos, quase escondida por trás de um nariz adunco. A lona que cobria a solitária caravana parecia ser feita de vários couros de animais costurados uns aos outros. Seria um exibicionismo de força e intimidação ou um gosto um tanto medonho? Ezrath pensou um pouco. Decidiu que era melhor conversar. Assim que a carroça se aproximou o suficiente, a jovem elfa revelou-se por detrás de uma grande árvore, estendendo sua mão em direção à carroça. – Boa tarde, meu senhor! – Disse docemente. O velho puxou com força as rédeas de seus cavalos. Alcançando o compartimento traseiro de seu banco, retirou uma ornamentada besta, mirando-a na cabeça da elfa. 59
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– Quem é você?! O que quer?! – Grunhiu o velho, escarrando um cuspe ao chão. – Não tenho dinheiro para prostitutas hoje! – Calma, meu senhor! – Ezrath ergueu suas mãos ao alto. – Nada quero, se não, conversar. Caminhei o dia todo, gostaria apenas de saber se poderia acompanhá-lo pela estrada. Afinal, é perigoso viajar sozinho. – Sozinho?! – Riu rancorosamente. – Eu nunca estou sozinho, tenho minha bela e sagaz Betty! Ao proferir o nome, curvou um pouco a cabeça sem retirar os olhos de seu alvo, lascando um beijo em sua besta. A arma, sem dúvida, era extraordinária. Parecia ser feita de um metal enegrecido e distorcido. Seu arco formava duas asas amplamente abertas, e a cabeça de um dragão negro estava aonde seria o sulco para o virote, deixando sua seta apontada como uma língua. – Ela me protege aonde quer que eu esteja e sempre estará comigo! Agora… – Olhou dos pés à cabeça a pobre elfa. – Você sim está com problemas! Nenhum Odraued em sã consciência tentaria acabar com a vida do grandioso Seabald! Apesar que Odraueds costumam ser burros… Mas Betty gosta disto. – Meu senhor… – Ezrath engoliu o seco que estava preso em sua garganta. – Desculpe-me se lhe ofendi, tive um árduo dia. Apenas quero um meio mais rápido para chegar à cidade mais próxima. Posso servir como guardiã por este caminho. – Humpf… – O velho passou a mão pelo seu queixo, murmurando ao abaixar sua besta. – Não preciso de sua proteção, mas gosto de elfos. Na verdade tenho um ponto fraco por elfas. – O velho divagava novamente, murmurando. – Vá para trás da carroça e sente com Odraued. Aquele desperdício de oxigênio ainda deve estar vivo. Só não se aproxime muito dele. Ele fede. Ezrath rasgou um sorriso forçado. Curvando a cabeça em forma de reverência, seguiu para trás da carroça. – Ah! – Gritou o velho. – E não toque em nada de minha mercadoria! Ou Betty fará com você o que fez com Odraued! A elfa ficou confusa por um instante. O que infernos seria um Odraued? Mas assim que chegou na parte anterior da carroça, avistou a criatura pequena, fétida, suja, encardida e feia… Muito feia. Um goblin. Sua pele estava tão asquerosa que parecia envolta em um musgo verde. Suas orelhas de morcego eram tão grandes quanto o seu nariz. Uma grossa camada de muco acumulava-se em sua ponta, 60
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a qual balançava quando movia seu rosto. Seus olhos, por mais que pequenos, transpunham terror. Avermelhados e sedentos, ressaltavam-se pelo seu globo ocular negro. Apenas um trapo ensanguentado lhe cobria as pernas e o sexo, mas nada mais do que isto. Goblins eram uma raça horrenda por sua própria natureza. Extremamente gananciosos e cruéis. Assassinariam um bebê se este possuísse um pertence de seu interesse. Seu tamanho desavantajado era motivo de zombaria, mas muitos foram os aldeões que morreram pelas mãos desta repugnante criatura. Mas este, em especial, não demonstrava perigo algum. Estava preso, acorrentado pelos braços e pescoço. Seus movimentos eram mínimos tanto pelo cansaço quanto pelos ferimentos. Em sua perna direita havia um virote de aço prateado, provavelmente obra de Betty. – Odraued! Odraued! – Reclamava o goblin com sua voz aguda e estridente. – Solta, solta! – Soltar você? Hah! – Seu riso foi seco e curto. A carroça barulhenta voltava a locomover-se. – E por que faria isto? – Então elfa não veio para torturar goblin? Velho toma armadura, velho toma armas, velho toma até nome de goblin! Diz que mim ser Odraued, Odraued! Odraued! – Continuava a repetir compulsivamente o nome. Contorcia-se como se sentisse dor e pânico ao proferir as palavras – Elfa quer brilhantes? Carroça cheia de brilhantes! Elfa poderia ser rica! – Exclamou, tentando abafar sua voz em seu ombro – Olhe! Olhe elfa mesma! Ezrath puxou vagarosamente o pano que cobria a entrada da carroça, vislumbrando as caixas repletas de pedras reluzentes. A maioria deveria valer uma fortuna! Contudo, seus instintos temiam que o velho Seabald notasse a falta de alguma delas. – Diga, elfa, que tal um trato? Elfa solta Odraued, acabamos com o velho, e elfa rica, RICA! – Disse o goblin, franzindo as sobrancelhas grossas e sujas. – Interessante plano, goblin. – Respondeu serenamente a elfa dos olhos prateados. – Mas tenho um melhor. Retirando rapidamente uma flecha de sua aljava, cravou-a na perna esquerda da criatura. O goblin soltou um alto e agudo grito em resposta. Velozmente, Ezrath arrastou a cortina de couro e pegou um dos diamantes mais translúcidos que avistou, colocando-o em seu bolso.
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– MALDITA! POR QUÊ? – Contorcia-se pela dor. – Isto foi por você ter roubado o velho, criatura. – Respondeu sorrindo, contemplando a luz de Mesiak. – Agora, calado, pois tenho mais quarenta e duas flechas.
-VI– Ainda está aqui? – Resmungava o velho, mastigando a carne de um arminho assado em um espeto. Era o início da manhã. Ezrath estava sentada em cima da lona da carroça de Seabald. Ficou ali durante toda a noite refletindo no que poderia fazer para ganhar o respeito de sua tribo. Como todos os elfos, não precisava dormir, apenas meditava em um profundo transe para recuperar suas energias. – E para onde mais iria? – Questionou serenamente, observando a deserta estrada. – Herathor é grande, você tem qualquer lugar para ir ao longo que ninguém lhe arranque as pernas. – Arrancou o pernil do animal, mastigando-o com os poucos dentes que restava em sua boca. – Venha, você vai comigo na frente. Foi mais fiel do que o Cachorro. – Você tem um cachorro? – Perguntou, descendo para o banco frontal. O cavalo começava a puxar a carroça. – Na verdade era um crocodilo que chamei de “Cachorro”. Foi engraçado enquanto durou. Mas crocodilos gostam de morder mais forte do que os caninos. – Mostrou várias marcas de furos em seu braço. – Além do mais, meus companheiros não gostavam do Cachorro. – Então você tem amigos por aí? – Retirava uma maçã de sua mochila de couro. – Já viajei com muitas pessoas e muitas raças pelas estradas de Herathor. De kobolds inofensivos até gnomos psicopatas. Honestamente? Sempre preferi os elfos. Mas teve uma época em que tive alguns companheiros… – E o que aconteceu com eles? – Eu… Não me lembro… – Sussurrou Seabald. Pressionava seus dedos contra os seus olhos, nitidamente confuso. Ezrath não disse mais nada. Observou o pensativo velho franzir incontáveis vezes sua testa, logo perdendo o interesse.
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Deixando-o sozinho com seus pensamentos, decidiu olhar a paisagem. Uma pequena fazenda enfeitava a visão ao norte. Aproximando-se dela, Ezrath notou que havia uma grande área de terra revirada entre a grama verde. Uma criança corria próxima ao lugar onde um homem consertava um chiqueiro danificado e um velho o ajudava alcançando o material. – Estranho… – Sussurrou a alta elfa. – Não, é normal eu esquecer as coisas. – Resmungou Seabald. – Não isto. A fazenda… – Ah! Você está falando do buraco do troll. – Falhei ao tentar entender, senhor. – Ezrath franzia sua testa, confusa. – Um túmulo gigante, elfa! Onde, antes, existia uma armadilha. Você já viu um troll, garota? – Nunca pessoalmente… – São criaturas gigantes, do tamanho de uma casa. Trogloditas cheios de músculos e com pouco cérebro… Difíceis de matar. Um metabolismo muito avançado e garras muito afiadas. Já vi um matar um guerreiro batendo nele com o tronco de uma árvore. – Prossiga. – Pois então, a maldita criatura decidiu que esta fazenda seria seu banquete especial. Quase destruiu tudo o que ali existia. A única coisa que estes pobres malditos conseguiram para se defender foram cinco aventureiros de primeira viagem… Nenhum deles forte demais ou especial demais. Às vezes o destino é cruel e os inúmeros “deuses”, os quais vocês intitulam como “mestres do destino”, se mostram ser completos cretinos inúteis… – Seabald pigarreou. – A morte era certa para todos eles. Ou, ao menos, era isto que os “mestres” desejavam. Mas eles não se entregaram… Ah, não… Não tão fácil assim! Com os próprios braços, os aventureiros fizeram um buraco tão fundo que o próprio troll sofreu uma grande queda direto às estacas pontiagudas colocadas em meio ao fogo de palha! Dizem que mesmo após derrubarem o gigante na armadilha, ainda assim ele não morreu… E foi após uma boa batalha que a sorte definiu o que os deuses não esperavam: A vitória dos mais fracos. – Haotran protegeu seus destinos. – Disse sorrindo, orgulhosa. – Minha jovem, eu não acredito nos deuses, eles nunca fizeram nada por mim… – Seabald voltou seu olhar para a estrada, coçando
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seu pescoço. – Eu acredito na sorte! E a sorte salvou esta família. Todos os detalhes da história, se alguma coisa tivesse começado ou terminado diferente, você acha que eles teriam sobrevivido? Cada particularidade em seu exato momento, em sua exata forma, levou a história a se tornar o que é… Chame do que quiser, continuarei chamando de sorte! – E o senhor acha que ter me encontrado na estrada foi sorte também? – Indagou Ezrath, acariciando a joia em seu bolso. – A grande onda de consequências às vezes pode não ser tão imediata, elfa… Mas se nosso encontro foi sorte ou não, para mim ou para você, é algo que só descobriremos ao traçar de nossas vidas. O goblin estava inquieto. Fazia um grande estardalhaço, contorcendo-se na parte traseira da caravana. O velho limpou sua garganta e gritou: – ODRAUED! – Como resposta, ouviu a voz aterrorizada de seu prisioneiro. – E por quê diz que os deuses não ajudaram-no? – Destampava seus ouvidos após se proteger do grito do velho. – Afinal, não pode ser apenas sorte que lhe deixou vivo! – Se você chama de sorte estar vivo em minha idade, parabenizo-a pelo otimismo, elfa… Mas mal lembro quem um dia fui. E as faces de quem um dia amei estão todas embaçadas. Além do mais… – Jogou fora o espeto de arminho com os restos que seus dentes não conseguiram mastigar. – Não é sorte. É habilidade! Ao final da conversa, Ezrath ficou mais quieta e pensativa. Por mais que o velho pudesse aparentar sábio, não ouvia com seu coração aberto as mensagens que passara-lhe. Afinal, como um humano poderia saber de algo? Ela mesma era mais velha que ele! Se ele, de fato, fosse tão sábio quanto dizia, não estaria em uma simples caravana, sujo, machucado e sozinho. Natava que, ao seu redor, a ignorância derramava como água em uma tempestade. Por mais que tivesse de compartilhar de seu tempo com o velho, não simpatizaria com sua história ou sua causa… Este apenas serviria como um degrau para que pudesse ascender seus objetivos.
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-VIIA estrada chegava ao seu fim. Após uma sinuosa curva, cruzaria uma cidade logo adiante. Havia alguns guardas em sua entrada e várias pessoas andando pelo centro. – Nadati… Sempre Nadati. – suspirou Seabald. – É o nome desta cidade? – Sim. Uma pequena “cidade templo”, como costumam chamar. – O velho sorriu pela primeira vez durante todo o trajeto. – Povo insano este, mas é aqui onde residem as mais confiáveis pessoas que já conheci. – Povo… Insano? – Ergueu preocupadamente uma de suas sobrancelhas. – Exatamente o que você ouviu e, exatamente, o que eu quis dizer. – Após uma breve pausa, observou alguns clérigos que faziam a ronda na entrada da cidade. – Dizem que a energia de Zewo, o deus dragão trancado em um vulcão que eles adoram, percorre toda Taros até hoje. Também falam que a energia é tão poderosa que, ao canalizarem este poder para o mundo físico, acaba por… Afetar as mentes mais frágeis… – E isto significa? – Perguntou. Mas ao virar sua face para a direita, viu um homem semi-nu a conversar com sua própria roupa, a qual estava jogada ao seu lado. – Tudo bem, entendi o ponto. Ainda assim… Se eles ficam insanos, isto não provaria a existência de Zewo? – Eles foram o primeiro culto que surgiu para qualquer deus dragão. – Seabald rasgou um sorriso no canto de sua boca. – Sorte de principiante, eu diria. E quanto ao homem, não se preocupe, não é sempre assim… Há um remédio que os alquimistas confeccionam para amenizar e controlar os efeitos da energia. Mas, pelo visto, está em falta hoje. Arawan estava a pino, o estômago de Ezrath roncava alto. Seabald olhou com o canto de seu olho, analisando-a. – Você foi uma boa companheira, elfa. Deixe-me pagar uma bebida no “Neutro” e contar-lhe uma última história. É por minha conta, não aceito um maldito “não” como resposta! – Tudo bem, penso que não haverá nenhum mal nisto. Sempre quis ver como são estas “tavernas”. – Talvez aquele teria sido seu primeiro sorriso sincero em dias.
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Seabald estacionou sua caravana em frente do estabelecimento. Gostava de manter sua carroça sempre por perto. Ambos desceram, deixando Odraued ainda preso, esturricando ao calor de Arawan. Os sinos do templo badalavam o anunciar do meio-dia quando finalmente adentravam a taverna “Os Neutros”. Poderiam descansar um pouco após a longa viagem. – E afinal, elfa. – Resmungou Seabald. – Eu até matar-lhe-ia, mas como roubou apenas uma joia, deixarei que leve-a… Afinal, gostei da parte da flecha. Ao menos, foi criativa. Ezrath olhou empalidecida o humano caminhar despreocupado para dentro do bar. Como poderia ter percebido? Nunca antes ninguém detectou suas lépidas mãos. A melhor opção era não falar nada… Fingir que nada aconteceu. Seguiu Seabald e sentou-se na mesma mesa que ele escolhera, esperando pela atendente, a qual, para sua surpresa, era uma elfa! A bela elfa de cabelo vermelho como sangue atendia-os sem surpresa alguma. Com um olhar sereno sobre Seabald, fitava-o como se lesse seus pensamentos. Seu primeiro contato com a sociedade e encontra uma maldita loikkari. Elfos que abandonaram suas tribos para viver em cidades… Era por seres como eles que os clãs élficos estavam se enfraquecendo e desaparecendo. E pela coloração de seu cabelo, certamente pertenceu a tribo Avikko. Calada, apenas observou. Seabald e Sida se encararam por um tempo sem trocar uma única palavra. Apenas olhares silenciosos. Logo, ela saiu para buscar duas canecas cheias de vinho. Ezrath notou que no olhar dos dois indivíduos havia algo escondido. Provavelmente, conheciam-se há muito tempo. Mas não sabia dizer se era amor ou ódio o que sentiam. Ou, talvez, os dois. Modo ou outro estava dispersa. Finalmente, poderia descansar de sua constante tensão e aproveitar um pouco aquela deliciosa bebida. A taverna se enchia ao longo que a cidade esvaziava-se. Todos procuravam um lugar para se alimentar. Apesar de um grande barulho e confusão que vinha debaixo do estabelecimento, não havia nada para preocupar-se. Seabald continuava a falar sobre suas cicatrizes ao longo dos minutos. O barulho que vinha do porão apenas intensificava-se. O que diabos estava acontecendo lá embaixo? 66
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A conversa de todos acabava se misturando na cabeรงa de Ezrath. Aquilo era uma loucura. Como aquelas criaturas conseguiam gostar de tanta algazarra? Todavia, o momento foi quebrado ao escutar um grande estrondo vindo da frente da taverna, Seabald sacou sua besta, voltando seus olhos apertados para a entrada, mas antes que pudesse falar algo, Ezrath correu para ver o que era.
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pós o aprisionamento de Yerum, as raças que, unidas, tornaram isto possível começaram a vislumbrar um novo amanhã. Todavia, criou-se uma divergência de ideais. Cada raça desejava algo, cada indivíduo ostentava por um mérito dissemelhante. Após o final da guerra, ao longo dos anos, Kasadak tornou-se o maior império de todos. E foi lá onde nasceu o “Círculo dos Sete”, o conselho que definiria o destino e a serventia de cada raça, dando-lhes novos propósitos. Para a formação do conselho, veteranos foram eleitos pelo seu próprio povo para que se tornassem líderes de suas raças. E, assim, os lendários Maôur do Círculo dos Sete se sentaram no grande salão no topo da torre de Karangan. Em votos sagrados de que se isolariam do mundo exterior, jamais interfeririam diretamente no mundo físico. Apenas serviriam como grandes mestres e grandes mentes arquitetando um futuro sublime para os habitantes de Herathor. Nos primeiros anos, todos concordavam que era imprescindível a repartição das terras de Herathor para que as raças pudessem viver em harmonia e restaurassem aquilo que Yerum destruíra. Todos… Menos Hukbo Magmatas, o líder dos orcs. Hukbo era o mais nobre dos guerreiros. Havia lutado na linha de frente contra Yerum, salvado a vida de inúmeros combatentes e, até mesmo, foi um dos responsáveis pelo enfraquecimento do dragão da Loucura. Seu desespero quanto a decisão do Conselho era racionável. Diferente de todas as outras raças, os orcs não pertenciam naturalmente à nova região de Herathor, e sim à Zabohrav, o continente corrompido por Yerum. 69
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Ele insistia que grande parte dos orcs, inclusive sua esposa, haviam sido aprisionados no continente amaldiçoado pela repartição das terras. E que o conselho deveria priorizar a organização de uma expedição com as tropas remanescentes para poder resgatá-los. Porém, súplica por súplica, os membros do conselho negaram seus pedidos. Por mais que Magmatas possuísse o apoio do líder dos anões e dos humanos, o voto da maioria prevalecia. Não importava o quanto tentasse, os membros insistiam que seria uma causa perdida. Precisavam visar na sobrevivência de seu novo povo, mesmo isto significando que grande parte dos orcs morreriam em Zabohrav. O guerreiro dos olhos dourados como ouro tentou por várias vezes, com discursos e argumentações, convencer seus companheiros de guerra a perceberem o que estavam fazendo. Mas tudo isto mudou no dia em que Angkan, o líder dos elfos, proclamou palavras que nunca saíram da torre de Karangan. Mas o que quer que Angkan Odzan tenha dito, enfureceu o grande orc vermelho, o qual tomou sua espada em mãos e avançou contra o elfo. Magmatas foi impedido pelos demais que estavam no local antes mesmo que pudesse deitar sua lâmina no peito daquele que o menosprezou. Após o conflito, Hukbo quebrou seus juramentos e abandonou seu posto como líder. Organizando o maior número de guerreiros que voluntariaram-se, partiu para o continente perdido de Zabohrav… E de lá, nunca mais se ouviu falar dos orcs vermelhos de Magmatas, deixando para sempre o trono dos orcs vazio. Sem liderança, o que sobrou da raça de Hukbo em Herathor se dissipou em meio ao caos. Sua grande maioria negou-se a tomar o sagrado lugar de Hukbo, acreditando que, este, um dia retornaria. E migrando para o pântano de Neobuzdan, nunca mais voltaram à Kasadak, separando-se do império. Mas a nobreza não tocou o espírito de todos. Alguns ainda tentaram usurpar, à força, o trono de Magmatas para assim se beneficiarem de todos os privilégios e se tornarem imortais. Contudo, foram impedidos pelos legendários “Magmatans”, três guerreiros fiéis a Hukbo Magmatas que dedicaram suas vidas a proteger o mais alto posto destinado a um orc honrável. Os Magmatans se destacaram tanto em habilidade quanto em lealdade, tornando-se os guardas oficiais do Círculo dos Sete. Nenhum
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orc de alma impura tocaria o trono sagrado. Ninguém corromperia a essência de sua raça, até que a mais nobre alma se enalteça dentre as demais, ou que Magmatas retorne. Afora, por Herathor, Alguns clãs se formaram buscando apenas sobreviver. Todavia, a glória se definhava quanto mais o ódio e a revolta cresciam em seus corações. Novos gritos e novos ideais proliferavamse, pois a decisão do Conselho dos Sete não havia passado impune pelos olhos dos orcs tribais. E, ao jurar vingança contra aqueles que desprezaram sua raça, formaram tribos bárbaras e hostis a qualquer raça. Temíveis oponentes, com sua nata musculatura rígida e forte, sua ferocidade em combate e sua falta de medo os tornavam quase imbatíveis. Contudo, os orcs selvagens eram desorganizados e mal equipados. Seu número era pequeno demais para engajar em batalhas contra cidades bem protegidas. E pela existência de dezenas de clãs de orcs tribais, havia também uma grande competição interna, o que facilitava ainda mais o trabalho da guarda real. Ao longo dos séculos, por mais fortes que os orcs fossem, a paz prosperava por Herathor. Eventualmente, saques e ataques a vilarejos aconteciam, ou até mesmo confrontos com tropas reais. Nunca foi o suficiente para causar caos e pânico. O que estes clãs realmente conseguiram foi denegrir a imagem dos orcs. Fossem eles bons ou maus. Contudo, chegou o dia em que os bárbaros calaram-se. Por anos nunca mais se notou sua atividade. Os soldados e legionários diziam que os orcs estavam com medo ou que estavam todos mortos… Enganados estavam. Há pouco mais de vinte anos, quando mesmo os mais céticos começaram a acreditar que os bárbaros haviam extinguido-se, uma nova horda ressurgiu. Vestidos em pesadas armaduras brancas, empunhando alvas lâminas ferozes, os orcs renasceram. E sozinhos não estavam. Ao lado deles, criaturas monstruosas surgiam nas linhas de combate. Demônios e terrores tão selvagens que alguns acreditavam estarem vivenciando a essência do terror… Um terror tão profundo e hostil que nada mais deixava além de destruição por onde quer que passasse… Dentre sangue e corpos, a palavra “Kauhuzas” era sussurrada no abafado de lágrimas e lamúrias. “Terror”, na linguagem ancestral.
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Inúmeras vidas foram tomadas nos meses que passaram-se. Inúmeras cidades foram destruídas e queimadas, restando apenas ruínas. As bestas temíveis chegavam a arrancar pedaços de edificações, goblins torturavam crianças indefesas, animais monstruosos e deformados devoravam qualquer um que tentasse intervir ou fugir. E mais poderosos que o maior dos demônios, os orcs seguiam à frente da batalha como seus generais e líderes. Quando o espólio não era o esperado, estupravam as mulheres e queimavam cada indivíduo junto às ruínas de seu lar. Sangue e lágrima escorriam pelo solo de Herathor ao longo que o terror e sofrimento se proliferaram mais rápido do que a própria corrupção de Yerum nos antigos tempos. Em pouco mais de um ano, dezenas de cidades já haviam sido destruídas. Poucas eram as sobreviventes, e pouco se poderia fazer contra os Kauhuzas. Mas apesar de inúmeras vozes terem sido caladas para sempre, Kasadak não se calou. Os Maôur convocaram todos os guerreiros que gostariam de defender Herathor para provarem seu valor e seu potencial em sete testes distintos. Cada teste criado e supervisionado por um membro do Círculo dos Sete na própria torre de Karangan, onde ninguém jamais havia adentrado. Durante os testes, apenas um candidato por vez poderia entrar na torre. Se este falhasse, era lhe retirado a memória de qualquer coisa que ali visse. Caso prevalecesse, seguiria para o próximo andar, subindo a torre até seu topo, onde encontraria o último desafio. Poucos realmente passaram neste teste. Aqueles que sucederam fizeram votos de silêncio quanto à qualquer detalhe que ocorreu dentro da Torre de Karangan, deixando o ritual de iniciação dos Templários de Ekran um mistério para os demais. O que se sabe é que os templários possuíam uma força sobrenatural, estratégias dignas de um general e a coragem de mil homens. Mesmo sendo um grupo seleto e pequeno, os legionários se dividiram entre as cidades remanescentes. Lá, fizeram seu último cerco. Após meses, ainda haviam batalhas. Dia após dia, os confrontos se intensificavam com a presença dos generais dos Kauhuzas, mas o número de suas tropas decrescia. E foi após a última batalha aos arredores de uma pequena cidade localizada no centro-oeste de
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Herathor, Nadati, que finalmente foram forçados a recuar para as sombras. E assim, mais uma vez se teve paz. Mas mesmo com uma vitória em mãos, Herathor possuía muito para lamentar. Milhares de vidas foram perdidas nos ataques dos Kauhuzas. Diversas cidades dizimadas, outras, extremamente danificadas. Haviam perdido batalhas demais antes de finalmente vencerem a guerra e, mesmo podendo reconstruir o reino ao longo das décadas, nunca poderiam reconstruir as vidas que aquela tirou… Ou mesmo que ela concebeu.
-IIEm meio a dor e a agonia da guerra dos Kauhuzas, inúmeros meio-orcs nasceram. Mas uma garota em especial destacou-se. Ela nunca soube ao certo o que ou aonde aconteceu, apenas que seu pai era Vihazit, um dos generais responsáveis pela invasão das cidades de Miyamiran, e que ela… Ela era fruto do estupro de uma das camponesas. A jovem meio-orc nunca conhecera sua mãe, esta morreu após o parto, o que talvez tenha sido uma benção para a mulher. Se não tivesse falecido, teria continuado a ser escrava dos orcs, tendo de gerar outros filhos ao longo dos anos. A pequena garota nunca teve contato com seu pai, até mesmo usar esta palavra seria estranho. Os meio-orcs não recebiam sequer nomes, apenas funções. Eram comumente chamados através de insultos. Ela não era nem humana, nem orc, mas sim a mistura das duas raças. Seu corpo era mais alto e forte do que qualquer criança de sua idade. Como os outros nascidos meio-orcs, alcançaria a maioridade mais cedo que outras raças, assim como alcançaria a morte. Contudo, por mais que se assemelhasse aos orcs, nunca seria considerada uma por eles. Pois era menor e mais fraca do que a raça pura.… Junto às crianças e meio-orcs prisioneiras, ficava em cativeiro levando uma vida tão pior quanto a dos goblins em meio à sua tribo. E isto significava viver tão precariamente quanto um porco faminto
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em um chiqueiro. As crianças eram tratadas como resto de um lixo, treinados apenas para rasgar carnes e odiar todas as criaturas. Inúmeras foram as vezes que a jovem assistiu aos goblins puxando crianças inocentes e torturando-as. Inúmeras foram as vezes que assistiu os orcs estuprando mulheres de todos os tamanhos e idades, sacrificando os fracos e doentes, mutilando corpos de prisioneiros. Inúmeras foram as vezes que a jovem aprendeu a odiá-los. Ao contrário do quanto tentassem criar seu rancor pelas lavagens cerebrais, seu ódio crescia cada vez mais pelos orcs. Odiava, por vezes, a si mesma. Odiava todo o mau e corrupção das criaturas. Não desprezava aquilo que aparentava, mas sim, a essência das coisas. Ela aprendeu a odiar a crueldade e a injustiça que corroía a alma de seres tão putrefactos. Mais inteligente que as demais crianças de sua raça, perguntava-se constantemente qual seria o significado de tal barbárie. Tais atrocidades tornavam-se parte de seu cotidiano. Mas, por mais que tentassem injetar tais sentimentos em seu coração, parte de seu espírito gritava que aquilo estava errado. De certa forma, ela sentia sua parte humana sussurrando que aquele não era o seu lugar, sentia sua honra de orc chamando-lhe para a justiça. Mas não havia nada que a pobre menina pudesse fazer a não ser comer os restos das refeições dos goblins para poder sobreviver a mais um dia. Talvez o futuro lhe reservasse ser apenas mais um peão sem mente e sem emoções dos orcs. Mas tudo isto mudou após a pequena orc conhecer Wittaz. Uma idosa escrava humana, responsável por deixar as criaturas do cativeiro em condições aceitáveis. Deveria cuidar para que nenhuma delas morressem. Não era uma questão de compaixão por parte dos Kauhuzas, mas não poderiam arcar com mais baixas em seus exércitos. Afinal, naquele momento, já haviam perdido a guerra contra os templários… Precisavam cultivar o que haviam semeado para que, um dia, encontrassem o que procuravam. Wittaz, na verdade, era uma poderosa druidisa nascida em Tikaris, a cidade oculta dos druidas. Em sua juventude, possuía grandes talentos mágicos, os quais desenvolveu com facilidade por sua ampla inteligência e sabedoria. Mas durante os ataques dos Kauhuzas, algo tão importante quanto sua própria vida chamou sua
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atenção. E quebrando o juramento mais sagrado dos druidas para assim salvar uma única vida, perdeu seus poderes. A anciã cumpriu com seu objetivo, mas em troca, foi capturada. Ao observar que a meio-orc começou a imitar suas palavras e aprender o nome de objetos, Wittaz ensinou a garota o idioma comum. Em pouco tempo, conseguia se comunicar quase perfeitamente com a jovem. Não levou muito tempo para que Wittaz se afeiçoasse à criança. Intrigava-se com sua astúcia e impressionava-se com a bondade que a pequena orc carregava em seu coração. Olhando em seus olhos negros e sentindo sua alma tão leve e serena, a anciã concebeu-lhe, enfim, um nome: Yzgart. Wittaz fez com que Yzgart prometesse que nunca falaria uma palavra sequer perto de um Kauhuzas, caso contrário, aquilo poderia custar sua vida. A jovem orc compreendeu o perigo que significava sua inteligência. Ao longo dos anos, suas conversas com sua tutora foram aos sussurros. A anciã ensinou todas as coisas básicas sobre Herathor: Sua história, seus deuses, sobre o continente e suas divisões, sobre Kasadak e até mesmo sobre os Templários de Ekran e a lenda de Magmatas. Mas, principalmente, sobre a natureza ao seu redor e como o ciclo fluía como um com o universo. E ao final, sobre a deusa que pregava tais sabedorias: A deusa Maylo, matriarca dos orcs. Yzgart começou a compreender mais sobre seu próprio “eu”. Compreendeu também o que os outros orcs conversavam, o que os humanos prisioneiros gritavam. Começou a perceber tudo ao seu redor. A única coisa que não compreendia era como tudo aquilo poderia acontecer. Por que os Templários não libertavam os prisioneiros daquele campo? Como poderia existir tanto ódio no coração de uma criatura para cometer tal atrocidade com pessoas que nenhum mal fizeram-lhe? Se Zabohrav existia para que houvesse o mal, porque Herathor lhe parecia tão sangrenta e mórbida? Tais questões vagavam em sua mente, mesmo a grandiosa sabedoria de Wittaz não podia trazer respostas para confortar seu espírito. Apenas seu doce e cansado timbre alertava-a que o ambiente ao seu redor nunca lhe corromperia o espírito, a não ser que ela permitisse.
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Poucos anos passaram-se. Ao completar seu sétimo ano de vida, seu corpo já era a de uma adolescente, assim como sua mente. Ainda era uma criança, mas seus traços fortes mostravam músculos tão firmes quanto um jovem homem adulto, e já havia passado de um metro e meio de altura. Sua aparência mudava rapidamente. Sua pele, antes um marrom escuro, tornava-se um pálido cinza o qual lembrava uma manhã nublada após uma noite chuvosa. Yzgart já sabia falar fluentemente o idioma orc e comum. Wittaz sabia que ela estava quase pronta. Poderia sobreviver caso precisassem fugir. Era chegado o momento de prepará-la. Contou-lhe sobre a geografia local, sobre a natureza e as criaturas que habitavam-na, o que deveria comer e o que deveria evitar. Apesar de não conhecer nada desta realidade, tudo era descrito tão minuciosamente por sua tutora que Yzgart conseguia até mesmo visualizá-las. Após algumas semanas, enfim, ela estava pronta. Wittaz compartilhou do seu plano com Yzgart. Confiava muito na jovem orc. As únicas criaturas com as quais possuía qualquer contato naquele inferno era ela e mais dois escravos humanos, Ulfrund e Cyna. O primeiro era um jovem humano de aproximadamente vinte e oito anos, de longos cabelos castanhos trançados e olhos azuis como o oceano. Forjando novas armas e restaurando as danificadas como nenhum outro orc era capaz de fazer, sobreviveu ao longo dos anos com sua excelsa habilidade. Já Cyna, uma formosa mulher loira de olhos verdes, a qual não deveria ter mais do que vinte anos, não possuía honra alguma no que fazia. Era uma das reprodutoras dos orcs. Não passava de uma máquina de prazer para produzir novos soldados. E nada mais. Muitas vezes desejava estar morta. A druidisa sabia que aquela tentativa poderia acabar em sua morte, mas amava Yzgart tanto quanto amaria uma filha se assim possuísse… Precisava salvá-la do destino eminente que aguardava-lhe. Wittaz já estava velha demais para suportar mais atrocidades, seus longos cabelos brancos carregavam anos de história, e seus olhos azuis como o céu já haviam visto mais coisas do que deveriam… Agora, Yzgart… Precisava ter a oportunidade de viver! E então, finalmente, a noite chegou. Ulfrund separou algumas das armas do arsenal. Cyna roubou as chaves de um dos orcs guardiões livrando os três das correntes que prendiam seus pés e suas mãos.
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Estavam avançando despercebidos entre as cabanas e os barracões, cruzando a barreira sul, rumo a sua liberdade. Mas foi quando suas entranhas congelaram pela visão do próprio terror: Vihazit Krev, o líder dos Kauhuzas remanescentes, esperava-os em uma emboscada com mais oito orcs ao seu lado. A grande criatura sombria e temerosa era mais alta do que qualquer outro orc. Seus braços eram grossos e fortes. Suas feições pesadas, repletas por profundas cicatrizes, contraíam-se em um sorriso macabro. Com apenas uma de suas mãos, segurava um gigantesco machado de fogo negro, o qual absorvia como um vórtex toda a claridade das tochas espalhadas pelo portão do acampamento. Seus olhos assemelhavam-se as próprias trevas da noite, encarando impiedosamente os quatro fugitivos. Todos assumiram posição de combate, preferiam morrer pela sua liberdade a aguentar mais torturas. Todos… Com exceção de Ulfrund, o qual caminhava em direção à Vihazit, despreocupado. O humano havia traído-as em troca de poder. No nervosismo, em meio à escuridão da noite, as mulheres não perceberam que as espadas que Ulfrund havia lhes entregado eram espadas cegas. Nunca conseguiriam vencer aquela batalha após tal traição. A primeira a morrer foi Cyna. Vihazit sinalizou para um de seus guerreiros e, com um tiro certeiro de besta, um virote cravou entre os olhos da indefesa mulher. O segundo orc já se preparava para atirar em Yzgart. Wittaz sabia que de lá as duas sairiam mortas… Mas não precisava ser assim. Empurrando Yzgart para o chão, Wittaz suplicou em gritos com a força que lhe restava em seu espírito para que Maylo provesse-lhe poder para sua vingança. Os Kauhuzas riram ao que a idosa druidisa caia ao chão com um virote em seu braço. Vihazit se deliciava com a visão patética da velha tentando salvar a aberração. Não era apenas tola! Sua audácia era tanta a ponto de invocar os poderes da deusa dos orcs! Como poderia pensar que Ela ajudaria uma pequena, fraca e ridícula humana… Erguendo seu machado para o alto, ordenou para que todos os seus soldados preparassem o próximo tiro. Sua gargalhada soou alta e estrondosa, quebrando o barulho do choro de Yzgart. Mas foi então que um grandioso raio atingiu o gigantesco orc, ensurdecendo todos ao seu redor.
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Wittaz agilmente gritou para que Yzgart fugisse. Um poder sobrenatural tomava seu corpo. Invocando uma grande esfera de calor, explodiu-a em uma luz ofuscante. Yzgart, sem hesitar, adentrou as profundezas da floresta com suas duas espadas cegas. Assim que a escuridão retornou, a orc olhou para trás na esperança de avistar Wittaz, mas a única coisa que viu foi um urso colossal arremessando os Kauhuzas e matando-os. A jovem sabia, pelas histórias de Wittaz, que a idosa druidisa podia se transformar em outras criaturas… Mas não desde que havia perdido seus poderes… Seria esta a intervenção de Maylo? Yzgart sabia o que deveria ser feito… Por mais que sua alma se quebrasse a cada passo que avançava, deveria correr sem nunca olhar para trás. Deveria honrar o sacrifício de sua tutora e sobreviver. Pois os mortos não podem buscar sua vingança… A noite limpa fechava-se, transformando-se em uma forte tempestade. A chuva não só cobriria seus rastros, mas também suas lágrimas. Por mais que não tentasse pensar no que poderia acontecer com Wittaz, não pode conter seu choro. O estrondoso rugido de dor de um urso se espalhou pela floresta… E assim, a única pessoa que Yzgart confiava e amava estava morta. Agora seria apenas ela… E a imensidão da floresta de Miyamiran.
-IIIDurante quase um ano, Yzgart permaneceu sozinha na floresta. Afiou suas duas espadas, treinando todos os dias para que pudesse caçar melhor e sobreviver. Mas havia momentos em que a única coisa que queria fazer era deitar e deixar que a morte lhe buscasse. Entretanto, sabia que isto não traria vingança ou satisfação alguma… Possuía um nojo inigualável pelos Kauhuzas e pelos orcs, mas também criou um nojo por humanos. Não de Wittaz, a qual sempre lembraria com orgulho e carinho. Mas de indivíduos como Ulfrund. Cansou-se de toda a civilização. Percebeu que, enquanto existisse poder, sempre haveriam criaturas tentando almejá-lo, corrompendo-se. Mesmo tendo a possibilidade de ir para a cidade mais próxima para abrigar-se, Yzgart negou. Sabia que viver em meio aos animais era mais justo do que viver em uma cultura desleal e desonrável. Não poderia confiar em ninguém. 78
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Yzgart sentia falta da companhia de Wittaz. A solidão lhe abalava e lhe feria mais do que a fome ou as feridas que trazia consigo. Rezando todas as noites para a deusa Maylo, criou um forte vínculo com sua fé. Sabia que a deusa significava tudo que ela possuía e tudo o que mais desejava: a natureza, os animais e, principalmente, a vingança. Suas preces tornavam-se sua única companhia. Até que, enfim, foi ouvida. Em um dia límpido, Yzgart procurava algo para poder alimentar-se. Seguindo os rastros de alguns animais, encontrou algo que mudou sua manhã. Contra uma grande formação de rochas, avistou quatro lobos pretos encurralando uma pequenina loba branca. Estavam para matar a pequena besta por esta ser fraca. A própria raça condenando um dos seus por este não parecer ou agir como eles. Tal cena enfureceu Yzgart, a qual, sem hesitar, pulou com suas duas espadas em mãos, cravando-as nas costas de um dos animais. Uma força descomunal a tomou naquele momento. Ao que sua ferocidade explodia, matou-os um a um. Ensanguentada pela batalha, olhou para a pequena loba ferida. O pequeno animal tremia, assustado. Yzgart a pegou gentilmente no colo, aninhando-a em seus braços. A loba gania, inquieta, até aquele momento. Mas assim que finalmente se aconchegou junto ao calor de Yzgart, silenciou-se. A jovem orc contemplou seus olhos azuis como o mar, acariciou sua pelagem branca e macia… Tais traços lembravam-na a humana que lhe cuidou e lhe amou como se fosse sangue de seu sangue… Uma solitária lágrima escorreu pela sua face ao que abraçou carinhosamente a pequena loba, concebendo-lhe o nome: “Wittaz”.
-IVInseparáveis, ambas cresceram lado a lado em meio à floresta de Miyamiran. Os anos passaram, e suas fraquezas também. Tornaram-se caçadoras letais. Wittaz obedecia aos comandos de Yzgart sem ao menos hesitar. Compreendiam-se mutualmente pelo simples olhar.
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Se um humano soubesse de sua idade, espantar-se-ia. A orc possuía mais de dois metros de altura, era robusta e forte, suas feições severas eram de uma mulher adulta, mas havia acabado de completar seus 18 anos. A mistura de duas raças de vida curta sentenciavam-na com uma vida precoce. Havia criado pouco interesse em sua aparência. Seu longo cabelo sempre lhe atrapalhou para caçar, decidiu então cortá-lo por completo. O que sobrou, usava das seivas de bordo para manter um moicano. Seus proeminentes caninos inferiores subiam acima dos lábios tensos. Não importava o ângulo que observasse-a, sempre parecia irritada. Seu nariz, um pouco achatado, sempre estava franzido a ponto de contrair suas sobrancelhas negras. Seu rosto quadrado, a depressão em seu queixo, e o brinco de osso que usava em sua pontuda orelha davam-na o aspecto intimidador de alguém que não se deseja encontrar problemas. Sua aparência nunca lhe trouxe muitas vantagens. Pouquíssimas vezes teve a necessidade de entrar em uma cidade, mas, quando assim o fazia, acabava por receber os mais distintos tipos de olhares. Ainda assim, os seus moradores não se importavam muito com sua presença. Modo ou outro Nadati era uma cidade estranha. Para garantir seu isolamento, Yzgart sempre usava sua capa de longo capuz negro para cobrir parte de sua face. Não gostava de ter de olhar nos olhos de criaturas que ela tanto desprezava. A orc cinzenta não era má com os pacatos habitantes do vilarejo local. Contudo, não media esforços para assassinar quem realmente possuía um coração pútrido e intenções cruéis. Sentia um prazer inigualável por expurgar um espírito corrupto de Herathor. Os bandidos e assassinos que cruzavam desprevenidos a floresta penavam suas decisões com o peso de suas vidas. Armas, suprimentos e ouro era o que ganhava em troca, não dos habitantes, mas sim dos cadáveres. Andava sempre bem armada e protegida. Além de sua espessa armadura de couro de urso, Wittaz, a qual agora era uma bela e robusta loba, sempre estava ao seu lado para protegê-la. Sentia-se confortável em viver na floresta. Podia se alimentar quando quisesse, podia matar quem quisesse, podia fazer o que quisesse. Não havia leis que cobrissem os lugares onde os animais habitavam, ninguém lhe confrontaria sobre os corpos de assassinos e estupradores desmembrados próximo a uma loba.
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Yzgart não estava apenas a ajudar os inocentes. Estava preparando-se para, um dia, finalmente se vingar de todos os subordinados daquele que matou a única pessoa que ela amou. Por mais que o medo de perder novamente quem amava pesasse suas decisões.
-V-
Arawan nascia vagarosamente no horizonte. A floresta de Miyamiran tornava-se cada vez mais nítida e iluminada. Por mais que pudesse enxergar perfeitamente no escuro, preferia a claridade do dia. A natureza parecia mais limpa, em paz, a caça seria favorável para ela e Wittaz, a qual também acordava aos poucos ao seu lado. Seu abrigo era pequeno, mal podia dizer que ali habitava alguém. O fogo de uma pequena fogueira queimava logo na entrada quase escondida da caverna aonde repousava. Mantinha-a sempre acesa durante as noites para afastar os animais noturnos e lhe manter aquecida. Os poucos pertences que possuía estavam espalhados por todo o chão de pedra: Um saco de dormir velho e rasgado, um pequeno cantil de couro e uma mochila bem esmurraçada. E é claro, uma loba monstruosamente grande, a qual, perto de sua companheira, mais se portava como um cachorro feliz do que necessariamente um lobo. Também havia uma panela enferrujada, raramente era usada. Sua utilidade era limitada a preparar algum chá medicinal. Mas refeições decentes? Não era o forte da orc. Muitas vezes, comia a carne crua, assim como Wittaz fazia. Seu estoque de carne estava esgotando-se. Sua última caça havia sido feita há alguns dias. Os animais estavam ficando inquietos, assustados demais, mesmo Wittaz mostrava-se irritadiça. Era necessário que caçasse com mais cautela. Pegando seu equipamento, fez um pequeno sinal com a cabeça para que Wittaz seguisse-a, saindo da gruta.
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-VIO céu límpido e o ar abafo anunciavam a chuva que estava por vir. Sua preocupação aumentava quanto mais o tempo passava. O que perturbaria a floresta? Seria a tempestade? Ou esta seria apenas parte de algo maior? Não sabia responder, principalmente de estômago vazio. Duas horas se passaram desde que começara sua procura por uma presa, mas nada haviam encontrado. Wittaz mostrava-se inquieta, havia encontrado o rastro de alguma criatura. Assim que Yzgart percebera, notou que eram marcas arrastadas pelo chão. Algum animal moribundo estava por perto. Após alguns minutos seguindo o rastro e o sangue, percebeu o barulho de um grunhido por entre os baixos pinheiros que ali cresciam. Agachou-se. Fazendo sinal para que Wittaz circulasse o lugar, aproximou-se lentamente. Ao que seus olhos negros fitaram o vão entre as folhas, pode ver com clareza uma grandiosa raposa. Sua pelagem era vermelha e comprida, mas estava longe de ser uma criatura ordinária. Ossos saltavam para fora de sua pele, formando um espesso exoesqueleto ao seu redor, até mesmo o seu crânio formava uma máscara sobre sua face, ressaltando suas presas longas e afiadas. Seria letal para a maioria dos camponeses que encontrassem-na, mas agora, estava quase morta. Sangrava por uma enorme ferida próxima de sua barriga. O máximo que a grande raposa poderia fazer era arfar pela dor. Wittaz se revelava na mata quando Yzgart se abaixou ao lado da criatura para analisá-la. Em volta do ferimento, sua carne gangrenava rapidamente. Um cheiro fétido subia ao ar. Até mesmo seu sangue possuía uma coloração diferente. Um forte veneno corria por suas veias e, provavelmente, até mesmo sua carne estava intoxicada. Yzgart desembainhou sua espada e, em um rápido momento, empalou a cabeça da criatura, livrando-a do sofrimento. Wittaz ainda rosnava para o cadáver. Pela primeira vez em anos, a orc cinzenta não entendia o que ela queria dizer. Mas antes que pudesse tentar compreender, sua companheira farejou o solo e avançou contra a floresta, correndo o mais rápido que podia.
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Um frio percorreu por sua espinha. O que havia de errado com ela? Não podia parar para pensar. Não podia deixá-la sozinha! Levantando-se rapidamente, partiu em disparada.
-VIIEsgueirando-se entre as árvores, seguia os barulhos dos rosnados de Wittaz. Suas pernas ardiam pela corrida, era difícil acompanhá-la, mas finalmente alcançou-a. A loba estava parada em frente a uma grandiosa caverna. Rastros de teias envolviam toda a sua estrutura, um forte odor emanava de suas profundezas e, no canto mais obscuro da formação de rochas, oito olhos observavam-nas. Uma aranha quase tão grande quanto sua loba descia lentamente de sua teia. Antes que a orc pudesse reagir, esgueirando-se das sombras, duas aranhas saltaram em sua direção. Wittaz rapidamente esquivou-se para o lado, evitando o bote. Yzgart fez o mesmo, mas ao desviar da aranha, outra já investia contra ela. Desembainhou sua espada longa, desferindo um profundo corte que rapidamente debilitou-a. Sobravam duas para que lidassem. A aranha atacava-a incessantemente em golpes rápidos. Precisava apenas de uma mordida para mudar o rumo da batalha. A grande orc tentava controlar a situação, mas era difícil contra-atacar. Se avançasse demais e acabasse por errar, entregaria seu braço para a mordida fatal. O máximo que poderia fazer era desferir pequenos ferimentos contra a aranha, enfraquecendo-a ao longo do tempo. Aproveitando um vislumbre de oportunidade, Wittaz saltou rapidamente contra a parede, jogando-se acima do cefalotórax do aracnídeo e abocanhando-o veemente. Antes de suas patas tocarem o chão, a criatura já estava morta. Yzgart não possuiu tanta sorte. Em um momento de descuido, foi ao chão quando sua adversária saltou sobre seu peito e injetou seu veneno em seu ombro esquerdo. Usando a força que ainda possuía em seu braço direito, com sua espada contra o abdome da criatura, resistia para não receber outra dose de sua toxina. Podia sentir seu ombro arder como se algo estivesse pressionando uma tocha contra sua carne. O veneno pingava sobre sua armadura de couro, sentia seu braço ceder aos poucos, até
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mesmo um leve delírio passou por sua mente. Por um momento, até mesmo imaginou ter visto presas de aço revelando-se lentamente por suas quelíceras. Quando suas forças estavam prestes a abandonar-lhe, Wittaz mordeu as patas traseiras do aracnídeo, fazendo-o pender pela dor do membro decepado. Yzgart rapidamente endireitou sua espada e, no que a criatura voltou para finalizar-lhe, atravessou-a com sua lâmina. A jovem orc respirou fundo, jogando o corpo sem vida para o lado. Olhando para Wittaz, verificou se estava bem. Mas a loba não possuía nem mesmo um arranhão. Apenas sua pelagem alva estava suja por rolar no chão da caverna. Sua mente lhe alertava para que fugisse, mas seus instintos diziam que algo estava errado. Conhecia aquela caverna. Alguns meses atrás não havia nada daquilo naquele lugar. E aranhas deste tamanho? Precisava descobrir o que estava acontecendo. A orc do curto cabelo negro fez sinal para que Wittaz esperasse fora da gruta. Por mais que tenha sido ela que acabara de salvar sua vida, Wittaz não conseguiria enxergar com nitidez na escuridão. Segurando firmemente sua espada e seus receios, adentrou a gruta infestada de teias. Percorrendo o tortuoso e amplo corredor, notou que haviam marcas de furos por toda a caverna. Aquele lugar estava mudado. O que antes era uma gruta de ursos mais parecia um gigante formigueiro de pedra. Quanto mais andava, maiores os buracos ficavam. Por mais que as teias encobrissem sua maior parte, podia ver inúmeros casulos circulando todo o local. Haviam pássaros, esquilos e até filhotes de cervos enclausurados em invólucros. Mas havia casulos tão grandes que Yzgart tinha receio de pensar o que seriam. Uma câmara grande e espaçosa envolta em teias demarcava o final daquele corredor. O cenário tornava-se tão branco quanto a neve, pois nem mesmo os poros que infestavam as paredes de pedra estavam visíveis. Mais uma vez um frio percorreu sua espinha. Ao fitar os cantos da câmara, inúmeras bolsas com filhotes de aranha repousavam sobre as teias. Aquele ninho era um criadouro e, em breve, tais aracnídeos nasceriam e se espalhariam pela floresta. Se estas ficassem do tamanho das últimas que encontrou, Miyamiran seria tomada em pouco tempo por tais monstruosidades.
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Yzgart pegou a tocha que havia em sua mochila, acendendo-a e iluminando rapidamente a sala de pedras e teias. Mas no que a chama ascendeu do pano banhado em óleo, um dos casulos que se encontrava junto a inúmeros outros no centro da sala começou a se debater lentamente. A orc cinzenta sacou sua espada, esperando apreensivamente. Mas nada aconteceu, apenas o mesmo movimento fraco. Aproximando-se vagarosamente, analisou-o. Notou que havia um pequeno espaço não encasulado diretamente abaixo das narinas, possibilitando que o ser respirasse com dificuldades. Sabia que, o que quer que estivesse embaixo de toda aquela resistente seda, não lhe faria mal. Mas a real questão era se este realmente merecia ser salvo. Seria um assassino qualquer que teve a sorte de encontrar seu túmulo em uma caverna no meio de lugar nenhum? Ou seria uma pessoa de bom coração, a qual foi desagradada pelo infortúnio de estar no lugar errado, na hora errada? Gemidos vinham do casulo, parecia até que a criatura sabia que ela estava ali ponderando… Parecia implorar por ajuda. Retirando uma faca de sua cinta, a jovem abriu uma pequena fenda na parte lateral do casulo, quebrando o resto com suas próprias mãos. Um velho elfo que ali estava preso revelou-se. Assim que sua face expôs-se, respirou desesperadamente, puxando com força o ar para seus pulmões. O senhor possuía poucos cabelos brancos em sua cabeça, seus olhos verdes estavam avermelhados pelo cansaço, sua pele estava até mesmo um pouco amarelada. Partes de seu corpo estavam completamente necrosadas. Pedaços de sua carne pareciam que estavam para cair a qualquer momento. Aparentemente, encontrava-se naquela condição há poucos dias. Estava fraco e desidratado. Apesar de o ancião demonstrar possuir alguma resistência superior àquela toxina, o veneno havia lhe feito um grandioso mal, torturando-o lentamente. O moribundo elfo tentou falar algumas palavras em vão. Sua boca estava seca demais e apenas gemidos fracos e rasgados saiam de sua garganta. Yzgart o colocou em seu ombro, percebendo que abaixo dele havia outros. Um casulo pequeno, porém volumoso, estava empapado em sangue. Era notável pelo formato de seu corpo que havia sido decapitado, mas de alguma forma sobrenatural, o cadáver estava tendo alguns espasmos sob a teia.
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Pobres criaturas… Retirando-se da caverna, jogou sua tocha no meio da pilha de corpos que ali estava. Em poucos segundos, o fogo se alastrou rapidamente, iluminando e consumindo a gruta em chamas e labaredas altas que crepitavam em estalos ao que o cheiro de carne queimada alastrava-se. Levando-o para onde Arawan aquecia a terra naquele final de tarde gélido. A jovem orc o repousou contra a parede de pedras no exterior da gruta. O elfo tossia, sua respiração era seca e fraca, sua boca mexia lentamente. Yzgart não conseguia compreender uma palavra sequer. Apenas pode ler em seus lábios: “Água”. Pegando seu cantil de couro, levou até a boca do idoso, o qual bebeu o líquido como se fosse o mais doce néctar. Boa parte escorria pelo seu corpo, até mesmo seus lábios estavam enfraquecidos. O elfo tentava abrir suas pálpebras, queria contemplar sua salvadora, mas não conseguiu. Após passar poucos dias em meio à completa escuridão, seus olhos queimavam a claridade da luz de Arawan. Alçando vagarosamente seu braço, repetidamente proferia uma mesma palavra rouca e sem forças: – Obrigado… Obrigado… – Respirou fundo mais uma vez. Resgatava até a última energia restante em seu corpo. – Tome… Amuleto… Leve-o… Os Neutros… – Esforçando-se para proferir estas palavras, ofegante em cada pausa, segurou a mão de Yzgart, colocando gentilmente em sua palma uma longa corrente de prata, a qual pendurava um medalhão ornamentado. Em sua face, o símbolo de Zewo em alto-relevo. Uma lágrima escorria do rosto enrugado e parcialmente necrosado do velho elfo. – Obri… Obrigado… – Fechando a mão de Yzgart, sorriu para sua salvadora, soltando um longo suspiro. O último suspiro de sua vida. Durante sua vida inteira na floresta, ninguém havia sido grato. Ninguém direcionou palavras sinceras e boas para Yzgart… Por mais que não tivesse grande compaixão por outras criaturas, ainda assim havia recebido um último pedido de uma pessoa de bom coração. Podia sentir que aquele velho senhor havia vivido uma longa vida de honestidade e benevolência. Acreditava em seus instintos, pois estes
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nunca falhavam. Seria apenas caminhar para Nadati e nada mais, era isto que dizia para si mesma. Voltaria para o esquecimento da floresta quando tudo acabasse. Saciaria a alma do idoso elfo… Sabia que era isto que a druidisa Wittaz gostaria que ela fizesse caso ainda estivesse viva. Deixou o corpo do elfo onde estava. As chamas da caverna estouravam nos inúmeros poros que havia próximo ao local. Não sabia nenhum rito de passagem para o senhor, ou mesmo se importava com isto. Sua mente estava envolto em outros pensamentos. Aquelas aranhas não deveriam estar naquele lugar. Aquele não era seu habitat e sua própria fisionomia era anormal. Algo estava muito errado… Se estas monstruosas criaturas se proliferassem em demasia, trariam um desequilíbrio grande no delicado ecossistema de Miyamiran. E isto afetaria todas as cidades e fazendas próximas, todos os animais que ali habitavam. Até mesmo sua irmã Wittaz sofreria com isto. E a pergunta ecoava em sua mente. Quem, ou o que, havia trazido aquelas criaturas até aquele local?
-VIIIAo longo que Arawan nascia, Yzgart já se pesava pelo seu compromisso incomum naquela manhã. Pensara nisto a noite toda. Seu corpo pesava, seus músculos doíam, sentia-se até mesmo um pouco febril. Por ser uma meia-orc, possuía uma resistência superior herdada de seu puro sangue, contudo, ainda era vulnerável. O antídoto que confeccionara ajudou a aliviar a dor e a eliminar o veneno de suas veias… Mas nada poderia tirar seu desconforto de ter de visitar Nadati. Conhecia a cidade muito bem. Seus poucos contatos com seus cidadãos haviam sido o suficiente para detestá-la. Eram espontâneos e excêntricos demais. E muitas vezes, falavam em demasia. Nunca houve a necessidade de ficar na cidade. Contudo, teve de eventualmente visitá-la para comprar itens que acabaram por ser indispensáveis ao longo dos anos. A floresta sempre lhe proveu com o necessário, mas, vez ou outra, apenas a civilização poderia ajudar-lhe. Contudo, não era o fato de ir até a cidade que lhe incomodava naquele momento, nem mesmo a possibilidade de encontrar os mal-
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-ditos gnomos discutindo no meio da praça. Mas de todos os lugares, de todos os estabelecimentos, o elfo a mandou para “Os Neutros”. Aquele dia ficara marcado e, certamente, seria inesquecível em sua mente. O fatídico dia em que, pela primeira vez, adentrou em “Os Neutros”. Vestindo sua capa negra, com sua face encoberta pelo capuz, buscava “A Flecha Escarlate”, a loja de suprimentos de Gery, o qual era a única pessoa que não incomodava-lhe. Todavia, confundiu a entrada dos estabelecimentos, seguindo, sem perceber, para a taverna... E aquele foi o dia que se arrependeu de não ter morrido no acampamento Kauhuzas. Sem notar que a música vinha daquela grande edificação, Yzgart se viu em meio a uma grande festa com música e muita bebida. Em meio a uma roda de pessoas de diferentes raças dançando juntas, girava sem parar em piruetas uma pequena e jovem clériga de longos cabelos negros e olhos amarelos. A garota ria e cantava em uma linguagem a qual a orc não conseguia compreender. Yzgart estava retirando-se vagarosamente quando a doce e alta voz gritou: “Visita!”. Ao mesmo tempo em que as palavras eram pronunciadas, foi puxada para a grande roda por várias pessoas. Quando retomou a si, estava sendo segurada firmemente pelas mãos pela clériga, a qual continuava a cantar, rir e dançar. Independente dos seus protestos, Yzgart era forçada a girar no mesmo ritmo que as alaudes, tambores, bandolins e cornamusas tocavam. A pobre orc estava desarmada. Sabia que se agredisse aquela pequena humana teria problemas maiores com os outros habitantes. Ela apenas queria sair de lá o mais rápido possível antes que realmente acabasse por matar alguém. Tentou virar o braço da garota para poder libertar-se, mas a humana, apesar de seu pequeno tamanho, mostrou-se muito forte. Pelo que pareceu uma eternidade, a solitária guerreira foi cruelmente forçada a dançar e girar. Sua salvação veio quando a estamina da humana acabou devido à quantidade de álcool ingerido. Embriagada e enfraquecida, caiu ao chão. Odiando todo aquele contato físico e social, Yzgart arrastrou-se para a saída. Mas foi quando a humana, com sua imensurável força de vontade, agarrou-se em seu braço com suas duas mãos.
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Bufando de raiva, a orc balançou seu braço para se soltar. Contudo, a clériga não queria deixá-la partir. Cantarolando entre risos, mais agarrada que um siri em uma rede de pesca, bradou: – Não se vá, Capuz Negro! E assim, Yzgart ficou para sempre conhecida em Nadati como “Capuz Negro”. A forasteira dançarina que, pelo fatídico destino, entrou sem querer no aniversário de vinte anos de Nakryn Bahlandur. Os orcs selvagens nunca tiveram boa reputação em Herathor. Porém, Yzgart começou a ser vista diferente pelos cidadãos justamente por não ser agressiva e violenta como os bárbaros Kauhuzas. Histórias misteriosas sobre a vigilante da floresta surgiram. Sua presença se tornava mais apreciada, mas Yzgart desprezava-os ainda mais. Não que lhe fizessem mal, mas odiava o contato social ou qualquer interação com qualquer outra criatura que não fosse sua companheira Wittaz. Modo ou outro, lá estava ela. Caminhando novamente para a taverna. A manhã se desenrolava ao que a capa negra como a noite e a loba branca como a neve viajavam. Ao horizonte, os sinos do templo soavam. Aproximou-se lentamente da cidade. Sabia que quanto mais perto chegasse, mais afastada Wittaz ficaria. A grande orc cinzenta sabia que sua loba detestava a civilização tanto quanto ela mesma. Preferia esperar à beira da floresta do que pisar no solo civilizado. Capuz Negro acenou com sua cabeça, despedindo-se de Wittaz, a qual, abanando sua cauda, choramingava. Nadati estava quase vazia. Poucas pessoas cruzavam, distraídas, o solo de pedras talhadas e tijolos de barro. Provavelmente estariam alimentando-se. Um mal estar percorria-lhe, imaginando os inúmeros olhares que receberia ao entrar na taverna. Seguindo a estrada principal que lhe levava ao norte, avistou que uma pequena carroça permanecia estacionada em frente de “Os Neutros”. Nada de tão importante ou grandioso. Na verdade, aparentava ser algo simples, construída com peles de criaturas selvagens. Mas aos poucos, ao que se aproximava da carroça, ouviu o ligeiro barulho de pedras se chocando junto ao um fino grunhido que do seu interior
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vinha. Alguém estava mexendo na mercadoria em seu interior. Sua curiosidade despertou. Silenciosamente, deu a volta pela carroça. Um conjunto de grilhões balançavam soltos. Pendurada no buraco da fechadura de uma das trancas, a agulha de um pequeno broche ornamentado com duas cimitarras e um falcão. Estranhou, algo estava errado. E ao espiar mais adiante, avistou a pequena criatura verde e repugnante. Não era necessário ver seu corpo inteiro, apenas aquelas verdes orelhas pontudas era o que precisava para entender o que era aquilo. A voz aguda e rouca murmurava para si: – Odraued… Velho escroto verá o que “Odraued” é capaz! Odraued triunfará! Odraued terá cabeça de velho em estaca! A nobre guerreira desprezava orcs, desprezava humanos… Mas goblins?! Ela repudiava apenas a simples palavra “goblin” surgindo em sua mente. Criaturas covardes e cruéis… Cansou de ver inúmeras vidas serem retiradas por estes seres desprezíveis no acampamento Kauhuzas. Eles nunca atacavam suas vítimas enquanto estas estavam soltas e nunca os matavam com apenas um golpe. Preferiam mutilar e desmembrar as pessoas em frente a entes queridos ou semelhantes. Sabiam que aquilo os desesperava, e Yzgart sabia que aquilo era o que os goblins mais amavam. Sem pensar duas vezes, afundou sua mão em volta da nuca da criatura verde como muco com tanta força que fez a carroça empinar, quebrando parte da madeira que constituía-lhe. Um grande barulho dissipou-se ao ar com o retinir de joias caindo ao chão e o alto relinchar do cavalo, o qual debatia-se tentando se soltar da corda que prendia-o. Um alvoroço iniciou-se dentro da taverna no que alguns dos clientes saíram imediatamente para presenciar o que estava acontecendo.
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A Morte de Ablurgor Hyvat
-I-
E
zrath Ma-Woo estava apenas se levantando quando uma garota ensanguentada com pouco mais de um metro e meio quase derrubou-lhe. – Desculpe! – Foi o máximo de cuidado que conseguiu demonstrar. Por mais que Nakryn Bahlandur aparentasse uma garota inocente e distraída, na verdade era a mais competente clériga da Ordem de Zewo em Nadati. Seu dever primário era proteger a cidade de qualquer desordem ou caos. A elfa soltou um curto insulto em élfico e correu junto ao velho Seabald, o qual já estava amaldiçoando os seis deuses e sentenciando Odraued. Sabia que aquilo só poderia ser obra dele. E se não fosse, culpá-lo-ia de qualquer maneira. Ao saírem pela entrada escancarada de porta dupla, os curiosos presenciaram a cena que menos poderiam esperar. Yzgart, a famosa “Capuz Negro”, lentamente sufocava o asqueroso goblin em sua mão direita, erguendo-o a quase três metros do solo. – Hah! Sabia! – O velho sorriu. – Maldição, não! – Exclamou Sida. Seabald disparou o virote de sua besta, a qual cortou o vento e assoviando agudamente até atravessar o crânio da criatura. Sangue escorria pelo corpo que debatia-se e, após uma curta convulsão, finalmente estava morto o indigno goblin. – Sida! Mais uma aposta que perde, menina. Eu disse que este não duraria uma semana! – Deu um seco riso. – Como pode acertar todas?! – Indagou indignada a elfa ruiva. – Além do mais, isto é trapaça! Você perfurou a cabeça dele, então não conta como suicídio! 91
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– Algo de errado ele fez para estar nas mãos de uma orc. Nem que tenha sido sua nascença! – O velho abriu um sorriso com o canto de sua boca. – Para mim, isto é a mesma coisa que suicídio. Sida entrou novamente na taverna, soltando um alto suspiro de decepção. Seabald a seguiu não dando muita importância ao fato de que sua carroça estava bem danificada e, possivelmente, até mesmo sua mercadoria. Ou a recompensa da aposta lhe interessava mais do que seu próprio negócio, ou simplesmente não ligava para seus clientes. Yzgart ainda segurava o corpo sem vida do goblin em sua mão. O seu repugnante sangue verde-escuro escorria lentamente entre seus dedos. Sentiu-se frustrada por não ter sido ela mesma a ter retirado o último sopro de vida daquela criatura repulsiva. Ao menos, ele estava morto. Abrindo lentamente seus dedos, Capuz Negro deixou a carcaça da criatura escorregar. A multidão que havia se formado ao seu redor logo perdeu o interesse e cada um voltou ao seu respectivo afazer. Um goblin era apenas um goblin, e a cidade já havia visto coisas demais para se impressionar com a morte de apenas um. Nakryn olhava apreensiva para o saco verde de carne e ossos caído ao chão. Não exatamente preocupação ou compaixão pelo defunto, mas o que lhe perturbava era o medo do que Sida faria com aquela carne… Não seria a primeira vez que Sida usaria uma fonte alternativa de carne para suas receitas secretas. Ezrath enfim notou que o broche que carregava próximo ao seu cinto havia desaparecido. Como o maldito goblin havia roubado sem que percebesse? Mas é claro… Quando fincou a flecha em sua perna e virou-se para roubar o diamante, Odraued certamente agiu rapidamente e arrancou o broche no segurar de sua mão. Como havia sido tola… – Capuz negro! – Exaltou-se Nakryn. – Há quanto tempo não a vejo por aqui! Veio para dançar? Vamos beber um pouco? Yzgart virou seus olhos com rancor para a humana. Sua face demonstrava bem o desagrado da situação. Sempre que visitava Nadati, a clériga ia atentar-lhe. Sabia que quanto mais atenção lhe desse, pior seria. Empurrando-a para o lado, seguiu seu caminho para dentro da taverna. – Aquilo… Aquilo era um orc?! – Espantou-se Ezrath.
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– Sim! Uma grandiosa orc dançarina! Uma diversão em qualquer festa… Você os puxa para dançar e eles ficam todo o tempo reclamando. E depois ainda criam um ódio rancoroso que dura até sua sexta geração… Mas, tirando a parte da raiva e da morte lenta e dolorosa que esta formidável criatura causa, possivelmente todos deveriam ter um orc em uma festa! A elfa encarava a clériga com uma mistura de espanto e confusão. Não sabia ao certo se ela estava brincando ou se era completamente louca. Perguntava-se se todos os humanos seriam assim. – Então… Taverna… Eu vou… Tá?! – Ao término de sua frase, a elfa esgueirou-se novamente para a taverna sem mesmo olhar para trás. Ainda não havia terminado seu almoço. Além do mais, havia amado o conforto de se sentar em uma cadeira. – Claro! Vou com você! Preciso avisar Sida sobre os ratos, modo ou outro… Malditos ratos… – Resmungando em uma linguagem desconhecida pela elfa, seguia-lhe amaldiçoando os roedores e seus antepassados.
-IIYzgart estendia sua mão para Sida. Em seu punho fechado, uma fina corrente de prata escorria. A esbelta elfa dos olhos verdes estendeu sua mão, e Capuz Negro deixou cair o medalhão de prata. Trêmula, analisando o ornamento prateado, Sida leu em voz chorosa as escritas em élfico do amuleto: “Para sempre minha eterna e terna Sida”. O maravilhoso sorriso que a formosa elfa sempre carregava em sua delicada face desapareceu. Tentava esconder seu desespero mordendo os próprios lábios. Lágrimas escorriam pela sua pele alva e macia. Ela sabia o que aquilo significava, mas não queria acreditar que nunca mais veria seu pai novamente. Sida ajoelhou-se abraçando o medalhão fortemente contra seu peito, libertando um choro doloroso. Nakryn reconheceu rapidamente o medalhão. Desde pequenina, conhecia Sida e seu pai, Ablurgor. Em verdade, desde que começou a viver em Nadati, os dois sempre aparentaram os mesmos. Acreditava que ela mesma morreria antes que Ablurgor deixasse Herathor. Apesar de ser um velho elfo, era também um grandioso guerreiro.
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– O que houve?! Quem o matou? – Indagou a bela morena. – Aranhas… – Respondeu Yzgart, seca e diretamente. – Aranhas?! Uma simples aranha não tiraria a vida de um guerreiro como Ablurgor! – Seabald rosnou, abaixando-se para acudir Sida. – Aranhas gigantes, tão grandes quanto um lobo. – Complementou a orc cinzenta. – Não sei da onde vieram, apenas que não deveriam estar aqui. – Talvez eu tenha a resposta… – Disse Ezrath, arrependendo-se de suas palavras no que todos olhavam em sua direção. – Como assim? – O Ancião de minha tribo… – Mediu suas palavras. – Mandou-me em uma missão especial para descobrir o que está causando os misteriosos ataques em Miyamiran. – E o que descobriu? – Seabald a fitou em um olhar penetrante, duvidoso. Ezrath calou-se por um momento, vislumbrando todos que encaravam-na. Era tarde demais para voltar atrás. – O caos e a desordem estão escorrendo e se espalhando por toda Miyamiran. Mas eu carrego algo que poderá mudar tal destino! – A elfa dos olhos prateados sorriu. – Espalhando-se pela floresta? – A orc cinzenta entrecerrou seus olhos. – O que isto significa? – Significa que algo está profanando o solo em que pisamos. A tribo Ma-Woo combate bravamente este mal desde Maazenji. Todavia, nossos recursos são limitados, e a morte assola nosso povo. Podemos sentir… – Ezrath fechou seus olhos, unindo suas mãos. – Temos uma conexão mais pura com a floresta… Aos poucos, ela morre. E se nada for feito, não só minha tribo perecerá, mas como cada cidade que habita os solos férteis de Miyamiran. Um silêncio mórbido e profundo tomou conta do estabelecimento. As pessoas se retiravam lentamente. Não só precisavam voltar para o trabalho, mas deixavam Sida em seu luto. Yzgart voltou-se para a porta. Não tinha parte alguma nisto, já havia cumprido com sua missão. Deveria retornar para a floresta aonde era seu lugar. Contudo, foi interrompida pela clériga. – Espere! Onde está indo? – Não tenho razão alguma para ficar, humana.
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– Pois eu penso que tenha! Se o que a elfa diz é verdade, então não só minha cidade corre perigo, mas logo, todas as criaturas de Miyamiran! Todos corremos o risco. Você mesma disse que estas criaturas não deveriam estar aqui! – Nakryn fez uma breve pausa. – Por favor… Se as histórias que correm pela cidade de suas habilidades são verdadeiras, então certamente precisaremos de sua ajuda! Yzgart parou repentinamente. Bufou de raiva, pois sabia que a pequena humana possuía razão. Viu com seus próprios olhos uma ameaça que poderia ter lhe custado a vida se não fosse sua companheira salvar-lhe. E mesmo Wittaz não estaria livre de tal mistério que perambulava por Miyamiran. Em silêncio, recostou-se na parede, aguardando o que as duas mulheres decidiriam. – Bem… Isto é um: “Tudo bem, podemos dançar juntas novamente”? – Perguntou Nakryn, sem obter resposta – Não? Sim?! Tudo bem, você não tem muita escolha neste quesito. – Enfim… – Ezrath interrompeu, limpando sua garganta. – Meu ancião mencionou que eu encontraria ajuda em minha missão nesta cidade. – Compreendo… – Olhou para Sida, a qual soluçava contra o peito de Seabald, o qual a abraçava fortemente. Respirou profundamente. Sabia que nenhuma palavra confortaria sua amiga, a perda era inefável... Mas havia ao menos algo que poderia fazer. – Sida… – Ajoelhando-se ao seu lado, afagou seus ruivos cabelos. – Nada que eu diga traria seu pai de volta para você… Mas eu juro, desde este momento, que Ablurgor será vingado! A elfa tentou dizer algo em meio ao seu choro, mas tudo o que pode fazer foi se afundar ainda mais no peito do velho homem, abafando ainda mais seu choro. – Venham comigo. – Disse Nakryn, mais séria. – As levarei até meu mestre, o velho Owan. Tenho certeza que ele deve possuir alguma resposta para isto. Ele sempre tem uma resposta… Ele precisa ter… Nakryn segurou pela mão a elfa, a qual, confusa, deixou-se ser guiada. Yzgart as seguiu de longe, não queria muito contato com ambas, mas precisava saber o que exatamente estava acontecendo. Afinal, era o que todos queriam saber.
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-IIIAo entrarem no templo, o silêncio foi a única coisa que encontraram. Não havia mesmo um simples ruído dentro da edificação. – Estão meditando… – Disse Nakryn por debaixo de sua respiração. – É o momento em que os discípulos tentam encontrar o equilíbrio em suas almas. Algo delicado e complexo… – Isto significa que não poderemos intervir? – Perguntou Ezrath, confusa. – Quê?! Nada disto, só assim para encontrar alguém aqui! – Nakryn puxou o ar em seu pulmão e, com vigor, berrou. – MESTRE OWAN! O grito ecoou pelo monastério. A voz da jovem clériga repetiu várias vezes pelas paredes dos cômodos vazios. Em pouco tempo, vozes e palavrões foram ouvidos ao longe como resposta. Teve a certeza de que havia atingido seu objetivo. Mal o alvoroço começava a se conter e o silêncio a retomar, os resmungos de Owan destacavam-se junto a seus passos pesados. Arrumando sua longa barba e suas vestes, estava prestes a repreender Nakryn quando avistou as duas outras entidades. – Visita! – Os dentes de Yzgart rangiam ao ouvir a palavra sair da boca da jovem clériga. Ainda não havia se recuperado do trauma da taverna. – Shh! – Owan fez um sinal com sua mão para que ficasse calada – Mais baixo! Um dos novos discípulos quase vomitou seu próprio baço após sua demonstração de força pulmonar, minha jovem! Fitou severamente as duas outras mulheres, analisando-as rapidamente, desde seus pertences às suas vestimentas. Principalmente as vestes ensanguentada de Nakryn, a qual sorria para ele como se lhe trouxesse uma enorme recompensa. – Uma elfa da tribo Ma-Woo e a famosa Capuz Negro! O que andou aprontando desta vez, Nakryn? – Ratos! – Respondeu, franzindo sua testa e abrindo um sorriso maníaco. – Todos mortos! Ratos tão grandes e gordos quanto o Senhor Gatinho! E estou envenenada! – Seu riso se desconcertava ao que sua sua expressão entristecia-se. – Mas… Descontrações à parte, mestre… Ablurgor está morto…
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O velho Owan fitou Nakryn esperando que aquilo fosse mais uma de suas brincadeiras fora de momento, mas logo percebeu que se tratava da realidade. Fechou seus olhos murmurando algumas palavras ao vento e, com uma voz entristecida, disse: – Velho maldito… Eu tinha certeza que todos desta cidade morreriam antes que ele deixasse de viver… Aparentemente enganei-me. – Soltou um pesado suspiro. – Era um grandioso elfo, um caçador excepcional… Mas, acima de tudo, um inestimável amigo. Diga-me, Nakryn… Diga-me que ele morreu lutando! – Quando encontrei o velho, estava preso e envenenado em um resistente casulo de seda. Impressiona-me que tenha sobrevivido por mais de um dia naquele estado… – Capuz Negro respondeu. – Certamente morreu lutando. – Uma morte digna para um guerreiro… Mas ao mesmo, incomum. Ablurgor não morreria por causa de uma pequena criatura. Nem mesmo durante os ataques dos Kauhuzas ele sequer feriu-se! Algo está errado… – Sim, mestre. – Disse Nakryn, aproximando-se do idoso senhor e colocando sua mão sobre seu ombro. – Receio que esta não seja a única notícia que eu deva reportar-lhe. – Virou seu rosto para Ezrath, a qual permanecia próxima a porta. – Esta elfa chegou, nos dizendo que seu ancião a mandara para uma missão em busca daquilo que está profanando a floresta e tornando suas criaturas mais violentas. Eu mesma presenciei o comportamento anormal dos ratos que se escondiam no porão da taverna. Um deles possuía espinhos de ossos crescendo em suas costas! – Espinho de ossos? – Yzgart mostrava-se surpresa, erguendo uma de suas sobrancelhas. – Encontrei algo semelhante na floresta… Uma raposa gigante. Estava completamente envolta por uma armadura de ossos. Sua cabeça até mesmo parecia uma máscara. – E não é só isto. – Complementou Ezrath. – Ontem mesmo presenciei um monstruoso kolmezu de Opazan ao noroeste daqui. Criaturas como estas nem mesmo deveriam existir em Miyamiran… – Mas… Como? – Owan pressionava seus olhos com seus dedos. – Algo que possa ser tão nocivo e, ainda assim, passar imperceptível… Teríamos sentido a energia… Alguém teria presenciado algo… A não ser que… – A não ser o que, mestre?
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– Teorias… – Owan coçou a barba em seu queixo. – Teorias que não deveriam cruzar minha mente, mas os fatos insistem que eu cogite-as… Mas ainda assim, falta um catalisador. – Um catalisador? – Yzgart indagou confusa. – Um objeto, uma pessoa, um animal… Alguma fonte de poder que possa ser estudado além dos fatos e teorias! Talvez assim pudéssemos descobrir… – E se você encontrasse este “catalisador”… Seria possível impedir tal mal, não é mesmo, velho? – Ezrath encarou-o. – Talvez… Tudo é reversível, mas depende do grau de sua ameaça. Apenas poderia saber se soubéssemos qual a fonte desta energia que vaga Miyamiran. Ezrath silenciou-se. Pensamentos vagavam por sua mente. Seria isto que o ancião desejava que ela fizesse? Aquilo poderia ser a única salvação de sua tribo e, se assim revertesse o grande mal que assolava-lhe, seria aceita novamente. Era arriscado… Mas por mais que não gostasse da ideia, deveria entregar sua confiança a um humano… Todavia, não toda. – Talvez hei de salvá-los. – Proferiu a elfa dos cintilantes olhos cinzas, retirando o amuleto de seu pescoço e o pendurando dentre seus finos dedos. – Isto é… – As pupilas dos cansados olhos de Owan contraíamse. Sua mão alcançava trêmula o rajado amuleto marrom como sépia. De seu pulso para a ponta de seus dedos, uma brilhante energia se acumulava gradativamente. Um rastro de luz branca como névoa envolveu gentilmente o artefato, fazendo-o levitar. – Por Zewo… Não pode ser. – Mestre? – Nakryn estava nitidamente preocupada. – O que houve? Owan Atma permanecia parado com seu olhar seco e ríspido sobre o amuleto. Sua respiração tornava-se ofegante. Em sua testa, gotas de suor eram visíveis. – Nobre elfa da tribo Ma-Woo… Dê-me o amuleto. – Disse o velho, engolindo um seco. – O que?! – Ezrath o olhava com arrogância. – Para quê?! – Seu ancião o mandou para cá por um motivo, não é mesmo? – Owan a encarou, ferindo-a com seu olhar. Mantinha seu braço esticado, firme. Poderia ele saber a verdade? – Solte o artefato, agora!
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Assim poderei dizer o que pode ser feito pela sua tribo… Se ainda há o que ser feito. Os batimentos de Ezrath disparavam ao longo que analisava o seu redor. Yzgart tampava a saída, e não conhecia o lugar para tentar forçar uma fuga. Hesitou até o último segundo em soltar o seu pertence. Entretanto, não havia o que ser feito. Abriu seus dedos, deixando o medalhão escorregar para a velha mão de Owan. Em um rápido movimento, o velho da longa alva barba virou-se para as escadarias que levavam aos dormitórios, segurando firmemente o amuleto que estava em sua posse. Ao passar pela pequena clériga, tocou-lhe de relance ao que um leve brilho verde emanou de sua palma. – Pronto, você está curada. Contudo, Nakryn, terei de decepcionar-lhe. Sei o que havia lhe dito no começo da manhã, mas preciso que complete mais uma missão. – Deslizava sua mão pelo longo corrimão de madeira polida. – Arme-se! Leve ajuda se necessário. Há algo grande aproximando-se e, se não for contido, destruirá a nós e a cada criatura que habita as florestas de Miyamiran. Até amanhã terei a resposta para minhas teorias, mas, até lá, há algo que você precisa fazer: Vingar Ablurgor Hyvat e descobrir o que realmente o matou. – Ao chegar ao topo das escadas, apoiando-se no parapeito da sacada de madeira do segundo piso, prosseguiu. – Ratos mutantes, raposas monstruosas e aranhas assassinas… Há algo a mais nesta história, uma peça que falta… E se eu estiver correto, você a encontrará antes que ursos e lobos colossais encontrem-nos! – E o que espera que eu faça durante todo este tempo? – perguntou Ezrath, indignada. – Não é óbvio?! Você veio até mim em busca de meu conhecimento e não espera cobrança? Não quero seu ouro, mas necessito de algo em troca. Você acompanhará Nakryn em sua busca, fará o possível e o impossível para que ela retorne viva! – Um sorriso preocupado surgiu em meio a sua face. – Devolver-lhe-ei o amuleto assim que Arawan nascer e Nakryn estiver presente ao seu lado. Intacta! – O que você acha que eu sou? Uma guardiã particular?! Uma serviçal?! – Enquanto eu possuir o amuleto, sim, é exatamente isto que será. – Owan respirou fundo, voltando-se para o longo corredor que
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levava aos seus aposentos. Seus passos distanciavam-se, o que restava agora era apenas o eco de sua voz. – Agora, partam… O orgulho de Ezrath ardia por dentro. Quem era aquele velho para lhe dar quaisquer ordens?! Todavia, necessitava de seus serviços, e o único modo de consegui-lo era obedecendo. Ofegante e vermelha pela raiva que tomava-lhe, voltou seu olhar para Nakryn, a qual possuía um sorriso de orelha a orelha estampado em sua face. – Não se preocupe, na maior parte do tempo ele é muito amável. – Disse a pequena humana, satisfeita. – Ele só está assim porque atrapalhei seu discurso pela manhã. Por mais que sua testa franzida e seu olhar apreensivo delatassem sua preocupação, a grande orc cinzenta não havia compartilhado de seus pensamentos. Sua verdadeira vontade era de sair por aquela porta e voltar para Wittaz. Voltar para a floresta, onde apenas se preocuparia com a caça do dia. Mas, agora, era tarde demais… Era óbvio que algo assombrava a floresta. E tornava-se mais óbvio ainda que aquilo influenciava Wittaz também. Poderia deixar a humana com seus próprios problemas… Mas o solo em que pisava não era solenemente dela, mas seu também, e de todas as criaturas que ali habitavam. Havia muito em jogo para que deixasse o orgulho tomar conta de suas decisões. – Capuz Negro? – A voz de Nakryn perturbava seus pensamentos. – O que fará agora? – Yzgart. – Disse a orc asperamente. – E o que seria isto? – Perguntou, confusa. – Meu nome é Yzgart! Não “Capuz Negro”. – Respondeu, voltando seu frio olhar para Nakryn. Um nervosismo repentino tomou a pequena morena. Seria a primeira vez que conduziria uma missão. E para tal, conseguira também aliadas. Suas responsabilidades aumentavam. Contudo, por mais que seu coração se entristecesse pela morte de seu estimado amigo, Ablurgor, sentia a esperança tomar conta de sua alma quanto mais possível se tornava sua vingança.
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-IVO tempo escorria lentamente pela tarde. Arawan ardia em um céu claro, tornando o ambiente cada vez mais abafado e quente. Havia ainda muito o que discutir. Nakryn não possuía noção do que poderia enfrentar pelo caminho, mas sabia que precisava se preparar. E não apenas ela! Ezrath possuía armas extremamente precárias, e as espadas de Yzgart pareciam ter sido regurgitadas por um urso atroz (e, talvez, realmente tenha sido este o caso). E, afinal, todas precisavam de reparos nas armaduras. Por mais que odiasse, isto significava visitar Ethert novamente. Antes mesmo de entrarem na antiga ferraria “O Martelo Viril”, já conseguiam ouvir o ronco estrondoso do gordo ferreiro, o qual dormia debruçado em seu martelo. Assim que a porta se arrastou pelo chão e tocou o sino da entrada, Ethert acordou gritando: – Eu não sabia que ela era casada! – Calma, ferreiro galante! – Disse em tom de deboche a jovem clériga. – Não é o marido. Ao menos não desta vez. – Pelos culhões de Bawahim… – Ethert se recompunha com a mão no peito. Inspirava com força o ar. – Por um segundo eu pensei que era o fim do meu pequeno martelinho. – Apoiou-se no riscado e lascado balcão de madeira, esfregando a mão nos olhos. – Mas enfim, o que posso fazer por… Santa mãe de todos os peitos! No que os olhos de Ethert avistaram a grandiosa orc, sua vista lacrou-se em seus seios avantajados. Cada um deles parecia uma melancia! Não importava se a criatura fosse uma malit, humana, orc ou mesmo um troll. Aonde existisse seios fartos, Ethert também estava lá. – O que posso fazer para ajudá-las, minhas caras e excelentíssimas senhoritas? – Inclinou-se, erguendo uma de suas sobrancelhas. Yzgart se mostrava completamente confusa, mal fazia ideia de que o ferreiro a tarava a cada milésimo de segundo que se passava. – Precisamos de bons e novos equipamentos, Ethert. Sem ao menos perguntar o motivo, apenas distraído com o que a natureza trouxe-lhe, Ethert prosseguiu: – Apenas escolham o que possuo no catálogo! Daremos um jeito. Mas não peçam nada complicado demais, afinal, não sei nenhuma
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magia! – Ethert soltou uma grande gargalhada, alisando sua careca. – Mas bem que queria ser para poder ver através destas roupas… – Ethert… – Disse Nakryn com cara de desconforto – Os equipamentos. Após um tempo decidindo o arsenal que comprariam, optaram por unir o pouco dinheiro que cada uma tinha e trocar o pior que possuíam. Mesmo isto tomando um bom tempo de argumentação com a elfa, a qual não queria ceder seu dinheiro por nada. E mais um atraso ao Yzgart perceber o que Ethert queria com ela, pois tiveram de impedi-la de arrancar o machado que estava exposto na parede e atravessar em sua gorda garganta. Foi assim que Nakryn percebeu o quão difícil era segurar uma parede de dois metros e dez de músculos. Durante o tempo que se passou, o volumoso ferreiro amolou a bela e curva cimitarra, ignorando completamente o fato de que uma orc furiosa ameaçava a vida de seu pequeno martelinho com a própria arma que amolava. – A cimitarra eu posso disponibilizar de imediato. – Seus olhos brilhavam ao terminar seu trabalho. Seu fio estava tão afiado a ponto de cortar um osso sem grandes dificuldades. – Contudo, o resto da lista… – Qual o problema com ela? – Retrucou Nakryn. – Você quer este trabalho para o final da noite, não é mesmo? – Sim, partiremos no início da manhã. – Pois, então… É uma grande lista… E isto exigirá um grande preço pelo grande tempo que terei de dedicar-me. – Ora, quanto cobrará? – Duzentas peças de ouro. – MAS O QUÊ?! Mas isto é muito! – Nakryn, Nakryn… Muito é o que você está me pedindo para fazer. Ao mesmo tempo, eu tenho contas para pagar. E vender, o que é bom, raramente acontece. Preciso ganhar a vida de alguma forma! – Ao menos um desconto! Somos clientes há tantos anos! – Sem ouro, sem tesouro. – Mas não temos todo este dinheiro! Precisamos disto para vingar Ablurgor! – E é justamente por este motivo que já estou fazendo mais barato! Deveria cobrar, no mínimo, 500 peças de ouro. E ao mesmo, esta é minha melhor cimitarra, usei-a em meu tempo de guerreiro
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contra os Kauhuzas! E fez um bom estrago neles… É mais do que um presente, é um gesto de boa fé. Nakryn pensou por um segundo. Entendia a posição do ferreiro, mas era fundamental que estivessem bem preparadas. Um vislumbre de ideia surgiu em sua mente. Sabia que aquilo poderia custar sua vida… Agilmente, saltou no ombro da orc: – Desculpe… – Foi o que pode sussurrar antes de forçar seu corpo para baixo, levando Yzgart até que seus peitos ficassem na altura do balcão. – E por estes seios, algum desconto extra?! Ethert hipnotizou-se. Nakryn havia atingido o seu pequeno ponto fraco e, agora, possuía sua atenção novamente. Por mais que isto significasse conter a fúria de Yzgart. – Estes seios que você vê nunca mais serão contemplados por seus olhos se este desconto não aparecer neste exato momento! Desesperado, Ethert virou as costas para as três mulheres. Fez algumas contas rápidas em seus dedos, bateu várias vezes com a palma da mão em sua careca e, pelo menos, quatro vezes, virou para olhar os seios de Yzgart, a qual estava sendo segurada e controlada pelas outras duas para que ela não matasse-o. Mas este detalhe ele não notou. – Tudo bem, tudo bem! – Virando-se novamente, entregou-se. – Grandes descontos para grandes seios! Faço por 100 peças de ouro, é o maior desconto que posso fazer! Provavelmente vou me arrepender disto depois que o sangue voltar para cabeça certa… – Se um dia o sangue voltar para a cabeça certa. – Sussurrou Nakryn para Ezrath. – E então, temos um acordo? – Perguntou, apertando seus dedos contra seus olhos. – Fechado! – Exclamou Ezrath o quanto antes para poder sair daquele lugar e nunca mais retornar. Entregando-lhe a maior parte das moedas que possuíam, Nakryn assinou alguns poucos papéis que Ethert mantinha como formalidade. Parte do legado burocrático de seus pais. Após, direcionaram-se à saída, enfim aliviadas pela tortura chegar ao seu fim. Contudo, ao que a porta se fechava por trás da bela clériga, a voz grossa do ferreiro soou novamente. – E Nakryn… – O que foi, Ethert?
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– Tome cuidado… O que quer que tenha matado o bom Ablurgor… Sinto que dias obscuros retornam… Apenas… Tome cuidado. – Obrigado… Ethert… A porta, enfim, fechou-se. Ethert observava suas novas moedas, contudo, não via brilho algum em seu ouro.
-VAlguns poucos metros da taverna, a “Flecha Escarlate” aguardava-as. Seria uma visita tranquila. Seu proprietário, Gery era um aposentado cavaleiro de aproximadamente cinquenta anos, o qual nunca se delongava em suas conversas. Por este mesmo motivo, era o único lugar em que Yzgart não se importava de visitar. Ainda mais porque ambos compartilhavam da mesma preferência de viverem solitariamente. Tal qual Nakryn não se importava, tendo a sua própria filosofia de perturbar aqueles que buscavam a paz. Repousando em uma cadeira de madeira inclinada para trás, apoiado apenas em sua grande espada, Gery meditava de olhos fechados. O robusto cavaleiro entreabriu um de seus olhos, fitando as aventureiras que adentravam o local. Possuía algumas pequenas cicatrizes em sua face. Seu cabelo curto e sua barba rala sempre estavam aparadas da mesma forma, mantendo a mesma aparência que de seus dias de guerreiro. Sua testa enrugada lhe fazia sempre parecer preocupado com algo, reforçando ainda mais suas feições sérias. Seus olhos verdes quase amarelados lembravam os de uma criatura selvagem, por mais que seu comportamento fosse calmo e compassivo. – Minha querida Nakryn! Vejo que trouxe companhia desta vez. – Gery se impulsionou para frente, sentando-se normalmente. – Creio que não veio apenas para importunar-me, certo? – Como pode dizer algo assim?! Eu sou o amor de Herathor! Todos me amam! Inclusive você, Gery! – Brincou a pequena clériga. Contudo, logo sua face esmoreceu-se. – Bem… Trago más notícias, senhor… – Owan contou-me tudo… Desde a morte de nosso estimado Ablurgor, até de seu curioso… Artefato… – Gery fez um momento de
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silêncio, observando-as. – Mas bem, deixei separadas algumas coisas para vocês. Apoiando-se em sua espada embainhada, usando-a como bengala, levantou-se. Retirou por detrás do estreito balcão de madeira uma esteira de couro. Desenrolando-a sobre a mesa, revelou vários acessórios que poderiam vir a ser úteis para as aventureiras, dentre eles, uma pá. – Uma… Pá…? – Perguntou Yzgart. – Sim, uma pá! Nunca subestime o poder de uma ferramenta tão versátil. Todo item é útil quando o previsto é o desconhecido. Soube até mesmo de um grupo de guerreiros que derrotou um troll usando uma rede de pesca! Quando a mente e o coração se alinham em um só, um indivíduo é capaz de derrotar até os maiores inimigos com o menor dos utensílios. – Gery sentou-se calmamente e prosseguiu – Isto é o que tenho a oferecer a vocês. – E quanto o senhor cobrará por isto, Gery? – Perguntou Nakryn. – Nada. – Respirou fundo, voltando seu olhar para sua espada. – Meu dever primário é ajudar as pessoas. Ablurgor era um grande amigo. Lutamos lado a lado contra os Kauhuzas… Todavia, não posso ir atrás do responsável… – Disse melancolicamente, encarando sua perna amputada, a qual perdera na guerra. – Mas, ao menos, posso ajudar quem irá. Este é o mínimo que posso fazer. – Agradeço-lhe, Gery. – Disse docemente Nakryn. – E não se preocupe, descobriremos o que realmente aconteceu! – Tenho certeza de que vão. – Disse o homem dos olhos selvagens com um sereno sorriso em sua face. – Nakryn, antes que se vá… Sida veio falar comigo há pouco tempo. Ela tem um pedido para fazer-lhe… Converse com ela antes de partir, tudo bem? – Entendido! Mas, mais uma vez, muito obrigada. Não imagina o quanto nos ajudou. – E antes que eu esqueça-me, tome. – Caminhando com dificuldades, aproximou-se da clériga, colocando em sua mão uma presilha negra com o formato de uma asa de dragão. – Quero que guarde isto com você. – Uma presilha? – Nakryn a olhava com curiosidade. – Isto já pertenceu a uma pessoa muito importante para mim. Quero que o leve como totem de boa sorte. – Isto é muito gentil de sua parte, Gery. – Segurando duas mechas de seu cabelo, prendeu-as com a presilha em sua nuca. – A usarei sempre! 105
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– Que Xícenum abençoe seu caminho, Bahlandur. A jovem garota sorriu carinhosamente para o cavaleiro honrável, abraçando-o. Após reunir os itens, com o mesmo sorriso, Nakryn acenou e despediu-se, fechando lentamente a porta ao sair. A fresta de claridade projetada pelo vão da entrada ressaltava a poeira do local. Ao longo que a luz morria, o sorriso de Gery desvanecia. Segurando firme sua espada, fitou-a até enxergar seu próprio reflexo. O cintilar de seus verdes olhos encaravam-no. O cavaleiro inclinou sua cabeça, murmurando para a solidão: – Pobre garota…
-VINakryn não queria se delongar em seu próximo destino. Apesar de gostar dos irmãos gnomos, sempre alguém saia ferido quando ela visitava o local. Não que ela atraísse a briga, mas ela carregava consigo o azar de chegar no dia errado, na hora errada, na circunstância errada. E este dom não se limitava apenas àquele estabelecimento. Thernys e Gragold eram casos completamente especiais na cidade. Não só faziam parte dos insanos alterados pela energia de Zewo, mas seu contato com a alquimia e plantas exóticas, por vezes, o levavam ao uso indevido de plantas que os alteravam mais do que o necessário. Os gnomos não eram tão diferentes dos humanos em sua aparência. Em realidade, apenas pareciam versões diminutas dos mesmos, totalmente proporcionais. A única diferença física visível eram nos homens, os quais, em sua grande maioria, possuíam um nariz abatatado. Fato, o qual, não era diferente para Gragold. Seus cabelos abagunçados davam a impressão de que havia sido atingido por um raio. Seu rosto redondo trazia consigo apenas um longo tufo de barba loira em seu queixo. Como a maioria dos gnomos machos, já havia passado de sua puberdade, dando início a queda de seus cabelos. Já Thernys, possuía uma beleza peculiar. Nos poucos momentos em que estava calma, as longas mechas onduladas e douradas pareciam uma pintura viva. Seus olhos azulados, seus lábios vermelhos, sua
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pele pálida e bem cuidada. Seria a mais bonita das bonecas se, em menos de quatro minutos próxima ao seu irmão, não se transformasse em uma criatura raivosa, chegando a quase espumar pela boca. Logo ao chegarem no “Equilíbrio Volátil”, avistaram as duas portas de entrada, as quais ficavam distantes uma da outra por motivos precativos. A humana mal pôs sua mão no trinco e já ouviu os berros de Thernys. Era agora ou nunca. Ela precisava entrar antes que o caos se proliferasse. Fazendo sinal para suas companheiras não falarem nada, entrou repentinamente. – OLÁ! – Exclamou, batendo contra a parede. – BOM DI– PIRANHA! – SEU IMPRESTÁVEL! PEDAÇO DE TEXUGO ABISSAL LEPROSO! Nakryn parou na posição que estava, fechando sua boca e passando seus olhos apreensivamente ao redor. A pequenina gnoma de apenas um metro estava com seus cabelos loiros descabelados. Gritava contra a fina parede que dividia o salão em dois, a qual havia sido colocada pelos seus pais no intuito de acabar com as brigas dos irmãos. Isto amenizou a situação até que os gnomos quebraram um pequeno buraco para poderem passar quando queriam se agredir. – Eu já disse MAIS DE MIL VEZES para NÃO tocar nas minhas ervas! – Gritava histericamente, batendo seu punho com força contra a parede. As poções que ficavam do outro lado tremiam e tiniam. – Aquiete-se bruxa das ervas! – Gragold gritava do outro lado da parede. – Agora é tarde demais, não adianta ficar se sacudindo de um lado para o outro como uma galinha esquizofrênica! Não é a toa que estão te chamando de vassourinha agora! – Thernys? – Nakryn tentou novamente interromper. – O QUE FOI?! – Gritou histericamente, vermelha e desarrumada. – Pelo sangue de Zewo! Desculpe Nakryn, eu estava entretida em uma conversa com meu pequeno irmão. Haha… – Disse a pequenina, recompondo-se. – Uma vassoura velha, usada, inútil e mal humorada! – Complementou Gragold, sem o conhecimento das visitantes. Além da parede lhe impedir a visão, sua audição era limitada desde que sua irmã ensurdeceu seu ouvido direito ao explodir parte de suas poções em sua cabeça. 107
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– CALE-SE, IMPRESTÁVEL! TEMOS VISITAS! – Rosnou a gnoma, socando a parede. Voltando-se para Nakryn, voltou a falar docemente. – E então, minha querida, o que posso fazer por você? – Err… Precisamos de ingredientes para fazer antídotos e qualquer poção que possa ajudar. – Certo, certo, minha querida, terá tudo o que desejar e o que o seu dinheiro possa pagar. – Thernys soltou uma pequena risada aguda. – Mas, curiosidade a parte, posso saber o motivo? – Você ainda não soube?. – Soube... Do quê? - Olhou-a confusa. – Thernys… Ablurgor Hyvat está morto. – Ablurgor?! – Gragold exclamou do outro lado da parede. – Impossível, ele nunca teria falhado! – Falhado? – Indagou a clériga, observando o olhar de espanto da pequena gnoma. – Ablurgor… Eu não acredito… É tudo culpa nossa… – Thernys balançava sua cabeça de um lado para o outro com a palma de suas mãos cobrindo sua face. – Eu não devia tê-lo mandado… – O que quer dizer com isto? – Era só uma simples missão! – Disse Gragold – Estávamos tendo problemas com os herboristas de sempre. Pedíamos para que coletassem o ingrediente que mais usamos. Entretanto, eles pegavam o pagamento e nunca mais voltavam. – O barulho do arrastar de uma cadeira tomou conta. O gnomo provavelmente sentava-se. – Foi um mês muito difícil pela escassez do reagente e a falta do dinheiro. Achávamos que estávamos sendo embromados… – E qual exatamente era este… Reagente? – Indagou Ezrath. – Cogumelos do eco. Eles têm este nome por apenas crescerem em cavernas profundas. E também pelo seu… Efeito colateral… Thernys fez uma pausa, olhando para o lado. – Digo, ao ingeri-lo sem o preparo básico. – Efeitos colaterais? – Nakryn perguntou. – Não queira saber. – disse Ezrath – Um elfo de minha tribo, Celadon, encontrou um destes tais cogumelos. Afobado como sempre, devorou-o de uma só vez. O pobre garoto alucinou por três dias até que nosso ancião neutralizar o efeito. Coisa maldita, não traz bem algum! – Na verdade, há mais utilidade do que você pensa! – Respondeu a voz rouca de Gragold. – Em nossa pequena cidade, temos alguns casos
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de insanidade descontrolada, o que pode levar até mesmo à agressão! Apenas uma poção concentrada de cogumelo do eco pode diminuir as ilusões e a insanidade destas pessoas… Ou torná-las extremamente viciadas e dependentes, mas isto são detalhes! – Pigarreou. – Compreendo… – Pensativa, Nakryn coçava sua cabeça, passando a mão pela sua nova presilha. – Estamos indo investigar o que aconteceu com Ablurgor. Se ele morreu procurando tais reagentes, certamente os encontraremos em nossa busca. O que eu encontrar, trarei para vocês, prometo-lhes. – Oh, Nakryn! Você é a melhor coisa que aconteceu para esta cidade, minha querida. – Disse sorridente a pequenina gnoma. – Estamos com recursos limitados, mas levem isto por conta da casa. Batendo contra a parede por detrás do balcão, uma pequena portinhola abriu-se. Gragold passava por ela uma bandeja contendo dois pequenos frascos e algo que parecia uma folha de bordo azul. – Folhas de Mandriv. – Disse a voz rouca por detrás da parede. – Um reagente extremamente difícil de se encontrar pela floresta. Nunca se sabem o que podem encontrar, mas estas folhas podem fazer milagres! – Obrigada! – Não há de quê, minha querida. Desejo-lhes toda a sorte que Haotran possa conceber-lhes. – Thernys falou calmamente, curvando-se. – Hey! Nakryn! – Gritou Gragold do seu lado da loja. – Se eu fosse você, afastaria-me desta gnoma. Os últimos aventureiros que ela desejou sorte acabaram todos MORTOS! – Seu bastardo, insensível, filho de UMA PROSTITUTA MANCA! VENHA CÁ! – Descabelando-se, pegou uma vassoura e correu pelo buraco da parede. Sem hesitar, Nakryn segurou o braço de suas companheiras, abandonando o estabelecimento ao bater a porta pelas suas costas. O barulho de madeira e vidro quebrando foi a última coisa que as guerreiras ouviram antes de estarem longe o suficiente. Nakryn imaginava que aquilo seria o início do segundo velório que mestre Owan teria de cerimoniar.
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-VIIArawan se punha lentamente no horizonte. As três guerreiras estavam à frente da taverna “Os Neutros” onde, horas antes, todo o caos que mudou o rumo de seus dias havia acontecido. Durante todo o dia, Ezrath e Yzgart mantiveram-se silenciosas. Cada qual com seu motivo, mas ao final, ambas estavam encarando a mesma situação: Não queriam estar ali. A elfa estava cansada da presença das duas mulheres. Mas, se por aquilo não passasse, não recuperaria o amuleto que por tantos anos cuidou. Seria por pouco tempo que teria que aturar aquela loucura incabível até que pudesse voltar em sua busca pela salvação de sua tribo. Por mais que se sentisse desconfortável, Yzgart sabia que aquela pequena missão significava uma causa muito mais nobre do que aparentava. Afinal, precisava proteger Wittaz a qualquer custo. O tempo de debilidade ficou para trás. Não perderia alguém que tanto amava para um mal que assolasse as terras de Herathor… Não perderia Wittaz mais uma vez. Quanto a Nakryn, pensava cuidadosamente em como falaria com Sida. Não havia perdido apenas o seu pai, mas também o único familiar vivo que possuía. Mais do que ninguém, a pequena clériga compreendia a dor que sentia. Apoiando levemente sua mão contra a grande entrada de madeira maciça, a garota dos olhos amarelos pôs-se a refletir. – E então, não vai entrar? – Perguntou Ezrath, impaciente. – Estou pensando no que posso dizer… – E o que isto vai mudar? Eu também perdi meu pai! Assim como metade de Herathor perdeu alguém durante os ataques dos Kauhuzas. E não é por isto que estou trancada em uma taverna chorando! – A elfa erguia suas mãos aos céus, virando-se para a orc. – Chorar não muda nada, ela que deveria estar indo atrás de vingança, não nós! – Não é tão simples assim, elfa… Sida sabe se defender sozinha, mas não herdou as habilidades de seu pai, o qual era um nato e habilidoso guerreiro. – Nakryn inspirou fundo. – Ele ensinava aos novos discípulos como caçar e como combater criaturas selvagens. Ablurgor era o melhor no que fazia… E se ele não conseguiu enfrentar
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o que matou-lhe, não será apenas sua filha e o ódio que ela carrega que conseguirá. – E a responsabilidade tem que ser nossa então?! – Disse desafiante a elfa. – A responsabilidade será nossa, medíocre elfa. – A voz de Yzgart tremia como se fosse a própria terra. – Agora cale-se! Ou eu mesmo farei este favor por nós! Uma cólera ardente percorria pelos braços da guerreira Ma-Woo. Segurava firmemente seu arco em mãos, sentindo seus dedos formigarem à vontade de alcançar uma de suas flechas. Quem aquela orc suja pensava que era para desafiá-la?! Precisava manter seus nervos e aturar a presença desagradável da grande criatura arrogante… – Temos coisas mais importantes para discutir do que isto… Uma possível aposta talvez. – Nakryn interrompeu, imaginando em quem apostaria caso as duas se envolvessem em uma luta. – Imagino que não queira dormir na cidade, Yzgart, então pensei em dormirmos na estrada. Assim ficaremos longe do perigo das profundezas da floresta e teremos contato direto com os discípulos da Ordem caso algo aconteça. A orc não queria companhia, mas sabia que a humana não lhe deixaria em paz caso negasse. Não impedir-lhe-ia, mas também não faria questão de lhes dar boas vindas. Balançou a cabeça, caminhando para a saída da cidade. – Orc problemática… – Murmurou Ezrath. – Siga com ela, elfa. Preciso conversar com Sida. Até eu retornar, vocês podem começar a arrumar o acampamento. – Nakryn sorriu, acenando com sua cabela e entrando na taverna. – Sendo comandada por uma humana… Aproveite enquanto pode criatura, mas quando eu tiver o que realmente quero, não precisarei mais de você. – Com sua testa demasiadamente franzida, retirou-se da cidade.
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-VIIIA taverna estava diferente. Não apenas pelo fato de que estava vazia, escura, e os pratos e copos ainda não haviam sido limpos, mas a melancolia que pairava no ar angustiava a mente de Nakryn. Era visível que a taverna refletia o estado de espírito de sua querida amiga, a qual encontrava-se escorada junto ao balcão de madeira, segurando uma antiga adaga de seu falecido pai. – Estamos fechados… – Suspirou Sida ao ouvir o barulho da porta ranger. – Sida? Sou eu, Nakryn! – Nakryn?! – A elfa ruiva virou-se mostrando sua pálida face e seus olhos intumescidos por tanto chorar. A vermelhidão de seu olhar delatava que fora assim que passou o seu dia. E assim que avistou a pequena humana, voltou a chorar. Sida levantou-se e, correndo, foi logo abraçar sua amiga. – Muito obrigada, Nakryn, obrigada! – Lágrimas escorriam para os ombros da garota dos olhos amarelos. – Pelo quê, Sida? Pelos ratos?! Não foi nada, realmente! – Disse brincando. – Não, sua bobinha! – Sida deu um pequeno riso – Mestre Owan contou-me o que farão. Não tenho palavras para agradecer este gesto tão compassivo… Sempre soube que seu espírito era diferente das demais pessoas, mas nunca pensei que seria divino! – Calma, minha querida Sida, não é para tanto! Seu pai foi um grande homem, um guerreiro de valor… Tenho certeza de que ele faria o mesmo por qualquer um de Nadati. E tenha certeza de que ele fará falta para todos nós. – Passava a sua mão pela face da elfa, confortando-a. – Ele será vingado, acredite em mim! – Confio em suas palavras e em sua força, Nakryn… Seu futuro será mais brilhante do que pensa. – Sida fitou-a com orgulho. – Sei que já está para fazer algo tão honrável por minha família, minha querida… Mas tenho algo à pedir-lhe. – Por Ablurgor, Sida, farei o que me pedir. – Sei que soará estranho… – Sida apertou bem as mãos da humana, segurando seu choro. – Mas se o corpo de papai ainda estiver no local, tenho certeza de que estará quase destruído… Não quero ver meu pai naquele estado. Quero manter a imagem dele como sempre
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me lembrei: confiante e sorridente. – A bela elfa tentou engolir seu pranto, mas as lágrimas derramavam de seus olhos. – Enterre-o, Nakryn! Dê-lhe um enterro digno, mas não traga o seu corpo até aqui… Desculpe-me pelo transtorno, minha querida. – Sida, não pense neste tipo de bobagem, por favor. – A pequena clériga lhe abraçou mais forte do que antes. – Farei o impossível se necessário, mas seu pai terá os ritos finais e um enterro digno. E, um dia, ergueremos uma estátua em sua homenagem! Confie em mim… – Muito obrigada, Nakryn… Muito obrigada por tudo, meu anjo… – Sida chorava como uma pequena criança desamparada. Nakryn passou alguns minutos abraçada com sua amiga, esperando que esta se recuperasse. Quando enfim acalmou-se, limpando suas lágrimas, retomou a atenção. – Como sou tola! Quase esquecia-me. – Sida correu até a cozinha retornando com uma cesta coberta por um límpido pano branco. – Aqui está! Comida para a viagem! Eu mesma fiz, então tenha certeza que estará gostoso! – Perfeito! – Parte de sua mente estava feliz por isto, mas a outra se perguntava se não estavam prestes a comer os restos de “Odraued”. – Assim não precisarei gastar com isto! Obrigada, Sida! – Não precisa agradecer… Afinal, eu que tanto devo a você. – A bela elfa sorriu e, após um breve silêncio, prosseguiu. – Mas ainda há algo que preciso entregar-lhe. – Algo? – Cruzava seus dedos. – Por favor, que seja vinho! Sida deu uma pequena risada caminhando até o balcão, o qual estava repleto de copos e marcas de bebida. Atrás dele, retirou um baú de bronze empoeirado. Soprou o pó para longe, limpando-o com a manga de seu vestido. Pegando uma das chaves do grande claviculário que se encontrava ao lado das prateleiras de bebida, abriu a pequena arca, revelando uma bonita bolsa de couro nobre. A bela elfa voltou-se para a clériga e, abrindo o fecho da bolsa, revelou uma longa chave de prata. Ornamentado em sua base, estava o símbolo de Zewo: Dois dragões que se entrelaçavam como serpentes, ascendendo contra uma esfera acinzentada ao que tentavam engoli-la. E no lugar de seu segredo, a cabeça de um dragão com sua boca exibindo inúmeros dentes. Seria impossível se encaixar em qualquer fechadura.
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– O que seria isto, Sida? – Sei que isto não foi correto, discuti inúmeras vezes com meu pai sobre o assunto. Mas, hoje, após conversar com Owan, cheguei a esta conclusão… – A elfa dos olhos verdes segurou firmemente a bolsa, sem tirá-la da caixa, divagando em inúmeras lembranças de seu pai. – Você talvez não se lembre, mas quando foi encontrada, carregava isto consigo. Mestre Owan disse que dentro dela havia itens que provavelmente seus pais deixaram para que você sobrevivesse por alguns dias. Dentre os alimentos, encontrava-se esta chave. – Mas por que guardá-la de mim? – Nakryn continuava confusa. – Papai disse que ela possui um grandioso poder mágico. Foi por isto que seu mestre decidiu que era melhor guardá-lo de você. Ninguém sabia ao certo o que aconteceria ao expor-lhe a tamanho poder. Ele apenas sabia que, ainda criança, poderia ser seu fim. – Sida fez uma breve pausa. – Mas agora ele tem certeza de que você está pronta para seguir seu próprio destino. – E o que exatamente esta chave abre, Sida? – Não tenho certeza, minha jovem Nakryn… Nem mesmo meu pai, nem Owan sabem. Todavia, a chave possui um poder incomum de proteção, ninguém conseguiu nem mesmo retirá-la do lugar! Por mais leve que seja, ao tocá-la, apenas feriram-se. Owan teve de usar quase todo o seu poder para conseguir colocar o saco de couro nesta caixa… – Seus olhos analisavam a bela chave. – Esta chave pertence a você, Nakryn! À sua família… Provavelmente, apenas você pode usá-la. – Por Zewo, Sida! Como você sabe de todas estas coisas? Sei que Owan era grande amigo de seu pai, mas porque lhe contariam isto? – Nakryn, minha bobinha… – Olhou para a clériga, limpando as lágrimas que marcavam sua face ao abrir um pequeno e carinhoso sorriso. – Sou dona de uma taverna. Meu trabalho é embebedar pessoas e descobrir segredos. Não há como esconder algo de mim! – É, acho que você tem razão. – A bela clériga sorriu serenamente. – Vamos… – Alcançou o pequeno baú de bronze para a morena. – Agora tome o que é seu por direito. Nakryn esticou seus dedos até a reluzente chave, sentindo uma energia mística tomar conta do local. Era mais poderosa do que qualquer coisa que um dia havia sentido. E ainda assim, uma força completamente familiar… Era como se estivesse nos braços de seus pais novamente.
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Um vento sobrenatural soprou, os copos espalhados pelas mesas e pelo balcão tremiam, alguns pratos chegaram a quebraram pela intensa vibração. A clériga perdia a noção do tempo e do espaço. Sua mão, instintivamente, tentava alcançar a pequena chave. Quanto mais próxima ficava, mais forte a energia emanava do pequeno artefato. Sida assustou-se, derrubando o baú com a bolsa de couro ao chão, mas a chave permaneceu estática no ar, girando em seu próprio eixo. Diante os olhos amarelos de Nakryn, símbolos vagavam se transpondo entre luzes e sombras. Mesmo nunca os tendo visto, reconhecia-os como letras. Inúmeras palavras passavam pela sua vista, mal podia perceber que seu corpo já não tocava o chão. Foi então que, dentre todas elas, a palavra “Bahoay” incandesceu em sua mente, ardendo em forte fulgor. Nakryn, enfim, tocou a chave prateada. O vento parou de soprar e os copos pararam de tremer. A pequena bolsa de couro incendiou-se, desintegrando-se à sua frente. A chave prateada estava em posse da bela clériga de cabelos negros, a qual não possuía ideia do que havia acontecido. – Nakryn?! – Sida correu em sua direção – Está tudo bem? – Sim… O que houve? – A chave… Ela reagiu a você… – A bela elfa dos olhos verdes ofegava. – Você quase destruiu minha taverna! – Pela segunda vez no dia!? É um recorde! – Brincou docemente a clériga, observando os estilhaços de vidro espalhados pelo chão. – Ao final… A chave realmente pertence-me. – Owan também disse que algo poderia acontecer… – Sida mexeu em seu cabelo, soltando um longo suspiro. – Deveria ter ao menos limpado um pouco as mesas… – Bahoay… – A morena repetiu para si. – O que disse, querida? – Perguntou a elfa, recolhendo alguns dos cacos do chão para sua mão. – Bahoay… Bahoay… – A palavra soava-lhe cada vez mais familiar a cada vez que repetia. Repentinamente, compreendeu. – Lar?! Sim! Lar! – Querida, o que está tentando me dizer? – Sida, já disse que te amo?! – Sorridentemente, a bela clériga abraçou-a. – Obrigada por ter nascido, sua linda!
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– Você é louca, Nakryn, mas também te amo… Mas qual o motivo de sua alegria? – Indagou a mulher dos olhos verdes. – Não há tempo, agora devo ir, estão esperando por mim! – Nakryn pegou seus pertences e logo correu para a entrada. – E não se preocupe, seu pai será vingado! Prepare a bebida que amanhã brindaremos esta vitória! E ao bater a porta, deixou a taverna de “Os Neutros”, mas esta não estava mais como antes. Por mais que aparentasse mais suja e destruída do que um dia esteve, havia agora uma aura mais leve pela esperança que a bela clériga havia acendido na alma de Sida Hyvat.
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Conversas do Fogo
-I-
O
dia longo e exaustivo encontrava seu fim. A fogueira que serviria como fonte de luz, proteção e aquecimento havia sido levantada há mais de duzentos metros da pequena cidade. Não queriam chamar atenção desnecessária, precisavam apenas de uma breve noite de descanso. Assim que a luz de Arawan voltasse a iluminar a terra e a energia para segurar suas armas retornasse, partiriam. Todavia, agora, podiam apenas esperar. Era tarde da noite, a brasa entre as lenhas cortadas por Yzgart ardiam intensamente, iluminando o local. Eram visíveis apenas as constelações da imensidão do céu e as luzes de Nadati ao horizonte. As tochas dos guardiões da Ordem de Zewo, os quais sempre faziam a ronda noturnal, dançavam de um lado para o outro no pequeno vilarejo. Nakryn se perguntava se algum dos novatos havia sido incompetente o suficiente para ter de ficar de guarda durante sua primeira noite. Por vezes, entre as frestas das longas árvore que cercavam a estrada de terra, era notável algumas criaturas de pequeno porte passando por ali. Apenas coelhos ou raposas, nada que preocupasse-lhes. Nakryn e Ezrath estavam próximas à fogueira, apenas Yzgart deitou-se na penumbra da luz das chamas. Não queria ser incomodada, preocupava-se solenemente com Wittaz, a qual ainda não havia retornado. – Está frio… Odeio o frio… – Reclamou Nakryn. – O frio apenas faz sentir-me em casa. – Ezrath limpava suas flechas, encarando o fogo que crepitava na fogueira. – Não há como
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não sentir frio ao norte. A neve nunca derreteu em Maazenji. Por isto Miyamiran nunca incomodou-me… Pelo contrário, aqui é quente demais! – Você acha cinco graus algo quente?! Você é louca! – Nakryn riu da ironia em sua própria frase. – Hah… Comediante. – A elfa debochou. – Mas se sua tribo é de lá, o que veio fazer em Miyamiran? – Já lhe falei, humana. – Ezrath voltou seu olhar para a garota dos olhos amarelos. – Aquelas malditas criaturas atacaram nossa tribo inúmeras e inúmeras vezes. Perdemos muitos elfos… E agora, após tanto tempo, é difícil de acreditar de que isto possa ter um fim. – Agora que parei para pensar… Não creio que tenhamos nos apresentado, não é? – A clériga sentou-se sobre suas pernas. – Se batalharemos juntas, precisamos ao menos conhecer um pouco umas das outras! Apenas o barulho da lenha se queimando sobrepunha o silêncio constrangedor que erguia-se. A elfa dos olhos prateados recusava-se à se apresentar. Já Yzgart, nunca havia feito isto em sua vida. Em verdade, a primeira pessoa que havia contado seu nome fora Nakryn. – Não é tão difícil assim, gente! – A pequena humana inclinou-se para trás, fitando-as. – Se ninguém começar a falar eu vou começar a cantar! E pela Asa Direita, Yzgart sabe que não pararei até conseguir! Novamente, apenas o silêncio respondeu-a. – Vocês pediram… – Nakryn inspirou fundo. – O que vamos fazer com um clérigo bêbado? O que vamos fazer com um clérigo bêbado?! O que vamos fazer com um clérigo bêbado?!? NO INÍCIO DA MANH… – Tudo bem! – Interrompeu Ezrath. – Já não começou bem, não quero ver aonde isto vai parar! – Perfeito! – Nakryn sorriu, satisfeita. – Prometo que me comportarei enquanto for oportuno! A esbelta elfa suspirou, fitando sua fina flecha. Pensava por onde começar, selecionando o que contaria para não deixar transparecer seu passado. Não queria que aquelas criaturas ficassem sabendo de toda a sua vida… Mas, tirando o velho da carroça, elas eram sua única companhia desde seu banimento.
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– Meu nome é Ezrath Ma-Woo. Como todo elfo, recebo o nome de meu clã, o qual pertence ao sul de Maazenji. Completarei 138 anos no próximo verão e não gosto de carne. O vento soprava serenamente. A elfa calou-se. Nakryn esperava que aquilo fosse apenas parte de uma dramatização para deixar a história mais interessante, mas quando notou que ela realmente havia terminado, protestou: – É isto…? – Sim… Basicamente. – Respondeu, confusa, erguendo uma de suas sobrancelhas. – Sem histórias épicas e trágicas? Sem contos divertidos? Sem acidentes ao atear fogo em seu gato? – Nakryn gesticulava. – Apenas: “Sou uma elfa velha que não gosta de carne”?! – E o que esperava?! – Ezrath criticou. – E além do mais, não sou velha. Os elfos vivem em média 700 anos. Há pouco saí da adolescência! – Vamos lá, velhinha, se esforce! – Apoiou suas mãos em seus joelhos. – Em um século de vida, algo de interessante deve ter acontecido! Afinal, todos tivemos nossas perdas durante os ataques dos Kauhuzas. – Bem… – Calou-se mais uma vez, contemplativa. – Minha mãe morreu quando eu ainda era criança, muitos anos antes dos Kauhuzas surgirem. E, para ser bem sincera, minha tribo foi pouquíssima afetada por eles. Maazenji é tão gélido que nem mesmo eles se aventuraram ao norte… Existiram alguns ataques, mas nada forte… Ainda assim, foi quando conheci Celith. – Celith? – Perguntou Nakryn. – É uma amiga? – Sim… Digamos que sim. – Ezrath abriu um sorriso com o canto de seus lábios. – A pobre garota é uma puolí, uma meio-elfa, como vocês chamariam. E não só isto, pertence ao clã nômade Vaelt. Eles não tem casa, nem mesmo propósito. Apenas vagam de região para região acreditando escutar o chamado de Haotran… Há quem acredite, mas nós sabemos que não é verdade. – E como podem ter certeza? – Não posso lhe contar os segredos de minha tribo, humana. – Advertiu em palavras calmas. – Modo ou outro, Celith, sim, perdeu seus pais durante ataques dos Kauhuzas. E foi em uma missão de busca aos Vaelts sobreviventes que meu pai fora morto. Eu mesmo estava
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lá quando isto aconteceu. Tudo o que me restou dele foi seu punhal de prata. – De uma fina bainha, retirou a lâmina reluzente. Próximo a sua guarda, uma única palavra em élfico jazia. – “Dignidade”, é o que está escrito. Ele sempre me dizia que, ao fim, o que define um caçador não é sua arma, mas sua dignidade. E em minha primeira caça, ele me presenteou com isto. É uma que a Dignidade não possa tê-lo salvo. – Meus pêsames, Ezrath… – Não preciso de seu pesar, humana. – Respondeu amargamente. – Meu pai morreu como um herói para minha tribo! O verdadeiro pesar foi tê-lo perdido ao tentar resgatar relês puolís. Ele poderia estar vivo, batalhando, protegendo nossa tribo! Mas por causa de criaturas impuras, sacrificou-se… – E como exatamente ele morreu? – Revirava seus olhos pela arrogância de Ezrath, mesmo mantendo-se interessada na história. – Ele e sua equipe foram as primeiras casualidades dos ataques misteriosos que nos acompanharam pelos próximos meses… Eu mesma estava lá quando aconteceu… Mal pude ver as criaturas que atacaram-lhe. Apenas sobrevivi porque Celith me puxou em meio aos cadáveres dos membros de sua tribo, os quais estavam se refugiando com a tribo Ma-Woo do norte. – Refugiando-se? – A clériga estranhou. – Do que? – Hah! – A bela elfa soltou um riso sarcástico. – Honestamente? Todos sabem que os nômades de Vaelt viviam procurando “refugio”. Como nunca paravam em um único lugar, acabavam por ter de mendigar comida e abrigo quando o momento era oportuno. Mas, ao final, Haotran virou suas costas para eles e algo realmente aconteceu – Coitados… E pobre garota… Perdeu tudo o que possuía em sua vida. – Nakryn carregava um olhar triste e condolente. – Pobre garota?! – Ezrath ergueu sua sobrancelha. Um sorriso orgulhoso lhe rasgava a face. – Ela deixou de ser uma simplória Vaelt, deixou de mendigar por um pedaço de comida para se tornar uma grandiosa e honrável Ma-Woo! – Se você já tivesse perdido tudo o que realmente amou em sua vida, entenderia meus pesares. – Respondeu secamente. Seus olhos âmbar refletiam o crepitar das chamas. – Como ousa?! – Indignada, sua face tornava-se rubra. – E você, Yzgart, qual é sua história? – Estendia sua palma aberta em direção à Ezrath, solicitando seu silêncio.
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No que Ezrath estava para se levantar, bufando em fúria, um grande ruído veio da floresta. Nakryn levantou-se rapidamente segurando sua maça. Ezrath aprontou sua flecha em seu arco, fazendo assim o vento assoviar com seu rápido movimento. Todavia, Yzgart levantou-se rapidamente, colocando-se em frente das duas guerreiras. – Não atrevam-se! – Rugiu a orc cinzenta. – Yzgart? O que houve? – Nakryn abaixou sua maça. O barulho de galhos se quebrando e folhas se movendo aumentava. Algo aproximava-se. Yzgart virou-se para a floresta, ajoelhando-se. – Está tudo bem. – disse Yzgart – Venha, Wittaz! Dos arbustos que cobriam uma das entradas para a floresta, a grande loba saltou diretamente à frente da orc. Com sua calda abanando inquieta, arremessou-se aos braços de Yzgart, lambendo sua face ao longo que gania. – Isto é… Isto é…! – Apontou trêmula com sua mão para a grande loba branca. – UM CACHORRINHO! – Exclamou a pequena clériga com sua voz um pouco esganiçada. – Pela glória de Pazija, ela é a coisa mais fofa que eu já vi em minha VIDA! – Prosseguiu falando mimosamente. – Ela não é um cãozinho, e também não gosta de ser chamada de fofa, humana. – Disse a orc, encarando friamente Nakryn, por mais que concordasse que Wittaz, de fato, fosse fofa. – Seu nome é “Wittaz”. Ela é como uma irmã para mim. – Sua irmã é uma loba?! – Debochou Ezrath. – Isto explica muita coisa. – Algum problema, elfa? – Rosnou a orc. – Se vocês forem se matar, já deixo claro que aposto na Yzgart! – Exclamou a humana, sacando uma reluzente moeda de bronze de sua pequena bolsa de couro. – Mas como isto aconteceu? Como conheceu a sua cachorrinha? Yzgart balançou sua cabeça e, ignorando a clériga, voltou a se posicionar próxima a seu saco de dormir. Wittaz a seguiu, analisando cautelosamente o terreno, encarando Ezrath e Nakryn desconfiadamente. Deitando-se ao lado da grande orc, repousou sua cabeça sobre suas pernas sem tirar os olhos das outras duas criaturas estranhas. – Bem… Se você não vai falar agora, deixa que eu falo primeiro! – Exclamou a pequena clériga, levantando-se de seu saco de dormir.
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Yzgart erguia uma de suas sobrancelhas, preparando-se para a pior das histórias. Aproximando-se da fogueira, com seus pés quase a tocar a ponta da lenha seca que ainda não queimava, sentou-se ao vislumbrar das centenas de centelhas que flutuavam lentamente ao vento. O calor aconchegante e confortável sempre acolheu-lhe. Abraçou suas pernas, acomodando seu queixo sobre seus joelhos. Seus olhos amarelos refletiam o fogo que ardia intensamente à sua frente, quase hipnotizando-a. Pegando um graveto em sua mão, revirou as brasas mortas, tentando reanimá-las. – Bem… Para falar a verdade, quando tenho de contar sobre mim mesma, chega a ser um pouco estranho… Pois, para ser sincera, não me recordo dos fatos com precisão. – O graveto entrou em combustão. Vendo isto, afundou-o na terra, observando a fumaça da chama que asfixiava-se. – Muita coisa se apagou. Mestre Owan diz ser um efeito comum após traumas. Mas bem… Eu não sou natural de Nadati. Nasci e passei parte de minha infância ao norte daqui, na antiga cidade de Sumahkot. – Sumahkot?! – Ezrath espantou-se. – Impossível! Na cidade amaldiçoada não houve sobreviventes. Todos foram mortos! E os que foram escravizados morreram no processo. – É o que dizem… É o que querem que eu acredite… Mas não quero acreditar! Afinal, se eu sobrevivi, mais alguém deve ter conseguido! – Nakryn fez uma breve pausa. – Meus irmãos estão vivos em algum lugar… Marahas, meu irmão mais velho, estava fora de casa caçando com meu pai. Minha mãe estava cuidando de meu pequeno irmão, Kazgut, o qual mal havia completado seu quarto ano de vida… – E então, os Kauhuzas atacaram. – Ezrath completou pela humana. – Chega a ser engraçada a facilidade com que as pessoas falam esta frase. – Nakryn abriu um pequeno sorriso melancólico. – É sempre “os Kauhuzas atacaram a cidade”, ou “os Kauhuzas dizimaram os cidadãos”, é sempre… Fácil. As pessoas contam as histórias como se fossem simples ficções, as palavras soam até como se fossem literatura… Mas ao final, sempre existe uma história por trás de cada palavra. – Nakryn retirou uma das brasas de perto do fogo
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para assisti-la apagar em sua solidão. – Os historiadores não estavam lá para ouvir os gritos de minha mãe ao que arrastavam-na para longe do pequeno Kazgut. Os guardas morrendo um a um sem ao menos conseguirem proteger a si próprios enquanto meus amigos e meus vizinhos afogavam-se em seu próprio sangue. E meu pai… Quem me dera ter lhe abraçado uma última vez… Dito-lhe que amava-o… Os que não foram mortos em Sumahkot, foram levados pelos Kauhuzas, a morte teria sido dádiva melhor. – A bela morena conteve as lágrimas que insistiam brotar em seus olhos. – Apenas quem testemunhou o que eu mesma presenciei pode descrever o verdadeiro terror que eram os Kauhuzas. Um silêncio mórbido tomou conta do pequeno acampamento. Quando Nakryn disse que contaria sua história, nenhuma das duas imaginou que realmente existiria um conto que envolvesse perdas e sofrimento. Talvez uma história contando sobre o dia em que ela aprendeu a vomitar um arco-íris, mas isto? Não havia muito o que se dizer a respeito. Nunca esperariam tal testemunho de uma garota tão animada e excêntrica. – Eu não sei dizer ao certo como… Foi tudo tão rápido… Os gritos e sangue envolviam a batalha… As chamas tomavam todo o meu lar. Foi a primeira vez que entendi o que era a morte. Todavia, cá estou… Viva… – Fechou seus olhos, sentindo o ardor das chamas. O silêncio perdurava sem ao menos um comentário. Nakryn olhava seriamente para o centro da chama, a qual continuava a queimar intensamente, iluminando a noite e as guerreiras. A bela clériga dos longos cabelos negros ficou em pé, espreguiçando-se e estalando seu pescoço. – A última coisa que me lembro foi desmaiar em meio ao caos e a destruição. Ao acordar, estava andando por uma estrada deserta. Foi quando mestre Owan me encontrou e salvou-me. – Sorrindo, prosseguiu. – E foi assim que eu tornei a vida daquele velho um inferno! E tenho certeza de que ele se arrepende até hoje de ter me descoberto. – Nakryn soltou uma risada gostosa de se ouvir. – E graças ao bom Zewo ele nunca descobriu que fui eu que ateei fogo no Senhor Gatinho! Mas bem! Histórias da vida! Sua vez, Yzgart! A grande orc cinzenta não pôde esconder sua admiração. Havia se surpreendido ao ver que a pequena mulher possuía, de fato, uma história. Não se tratava de uma futilidade infantil em um conto de
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fadas. Nakryn sofreu e perdeu e, ainda assim, batalhou arduamente em prol dos outros. Aliando-se àqueles que lhe salvaram para poder retribuir-lhes, quando tudo o que poderia ter feito era partir em uma cruzada errante em busca de vingança, fazendo qualquer coisa para atingir seus objetivos, fossem coisas boas ou não. No começo pensou que a jovem humana fosse tola. Deveria buscar vingança! Mas então observou novamente… Ela não era uma criança repleta de ódio buscando, sem rumo, retaliação. Pelo contrário, era uma mulher! Uma guerreira treinada e preparada… Pronta para cumprir com seu destino! Por mais que ela lhe tirasse do sério… Merecia respeito. Além do mais, Yzgart era fruto dos Kauhuzas. Ela mesma era uma orc! E ainda assim, a pequena clériga lhe tratava como se fosse uma pessoa qualquer… Como era possível ser tão compassiva quando em seu interior existia um passado repleto de dor? – Apenas responda-me, humana. – Disse serenamente a grande orc. – O que fará agora? – Encontrar meus irmãos. – A clériga apoiou sua maça em seu ombro, voltando a olhar para a fogueira. – Perdi meus pais para a morte, mas ainda tenho a esperança de que meus irmãos estejam vivos… Sei que os Kauhuzas raramente matavam as crianças, preferindo escravizá-las. Talvez, assim, Kazgut esteja vivo em algum lugar de Herathor. Já Marahas… Ele era um garoto forte e esperto! Não creio que tenha se entregado à morte tão facilmente. – Girando sua maça em mãos, fez um pequeno momento de silêncio, contemplando suas lembranças. – Eu vou encontrá-los! Não importa como, não importa quando, mas vou encontrá-los… – Ao final… Você entende o que é amar… – A mulher dos olhos negros disse para si mesma sob sua respiração. Yzgart franziu sua testa e respirou fundo. Sabia que não queria fazer aquilo. Mas, ao final… A clériga havia sido honesta e sincera com ela. Colocando sua grande mão sobre a pelagem macia e branca de sua loba, olhou bem em seus olhos, relembrando o primeiro momento em que se conheceram. Wittaz estava mais calma, como se estivesse compreendendo o sentimento de compaixão que sua companheira sentia. – Wittaz é tudo o que tenho como família. – Inspirou sonoramente. – Ela é a criatura mais importante que existe para mim,
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eu mataria qualquer um que tentasse ferir-lhe. Destruiria cidades para protegê-la se isto fosse necessário. Arrancaria meu braço para que ela não morresse de fome! Sangraria até a última gota de meu corpo para que ela pudesse ter a chance de viver mais um dia… Ela é o motivo de eu ter aguentado tantas noites frias e tantos ferimentos profundos… Juntas, nos preparamos para uma jornada… E, juntas, marcharemos até o fim… – Pressionando sua mão contra seu pelo macio, fechou seus olhos. – Afinal, eu sou tudo o que ela tem… – Não é mais… – Aproximando-se da jovem orc, colocou sua mão sobre o largo ombro de Yzgart. – Você é minha amiga agora… E isto significa que sangrarei por você, sangrarei por Wittaz, assim como sangrarei por Ezrath… Enquanto eu respirar, eu juro para você, Yzgart: Você não perderá sua família! Yzgart segurou firmemente a pele de Wittaz. Era a primeira vez que sentia palavras de compaixão e segurança tão serenas. A primeira vez desde que havia perdido sua mestra… Seu timbre soava tão familiar e confortante que fez seu espírito tremer. A grande orc sempre soube dizer quando alguém mentia para ela… E o que Nakryn acabara de lhe falar era a mais pura verdade. Nenhuma outra palavra foi trocada o resto da noite. Cada uma refletia consigo mesma o significado dos diálogos que trocaram. Havia algo naquela conversa do fogo que havia mexido com seus espíritos. Precisavam descansar… Faltava pouco para descobrirem o que havia acontecido com Ablurgor Hyvat… Faltava pouco para descobrirem o que realmente acontecia em Herathor.
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Priv Pajainen
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noite estava fria. O vento gélido soprava do norte. A grama estava um pouco umedecida devido a garoa que lentamente descia ao chão. Yzgart dormia ao lado de Wittaz para se manter aquecida. Do outro lado do acampamento, Ezrath meditava em silêncio no que mais parecia um sono profundo. Nakryn seria a primeira a vigiar o acampamento. Por mais que o local não demonstrasse perigo, os acontecimentos recentes levavam a paranoia. E, afinal, preferia isto a ser devorada por um texugo descomunal. Os minutos se passavam como se fossem longas horas. A bela clériga sempre odiou ter de ficar de guarda. Não havia criatura que ela pudesse importunar ou ao menos conversar. Não podia dançar, não podia cantar, não podia torturar almas inocentes com suas aleatoriedades… Era um tédio. A única coisa que poderia fazer era andar em círculos e manter os olhos bem abertos. Andando de um lado para o outro, observava mais as estrelas do que a floresta. Até tal momento, havia encontrado várias constelações e até mesmo criado algumas em sua cabeça. Mesiak, a lua de Herathor, mal se moveu desde o início de sua patrulha. Aparentemente, seu turno demoraria a passar. Sentou-se próxima a fogueira para se esquentar um pouco. Já era tortura o suficiente ter de ficar acordada sem fazer nada… Não faria mal aquecer-se, faria? As chamas ardiam e crepitavam à sua frente, a brasa queimava viva e incandescente entre a lenha que se destruía. Chegava a ser
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engraçado o amor que tinha por algo que antes tanto temia: O fogo. Por alguns anos, mal podia ver uma tocha acesa que já lhe vinha o temor e a agonia lhe oprimir a mente. Era vívida a lembrança. Pessoas e animais correndo e gritando ao longo que aquilo que Nakryn conhecia como lar sucumbia às chamas. Fechou seus olhos, esforçando-se para relembrar a face de seus pais. Era algo que nunca compartilhara com ninguém, mas tantos anos haviam se passado que muitas vezes se esquecia de como eles aparentavam… Assim, quando conseguia, tentava se emergir em seus pensamentos para relembrar o que aconteceu naquele fatídico dia. Precisava de certezas, mas as dúvidas eram maiores. Inspirou fundo, sentindo o calor das chamas tomar-lhe, assim como aconteceu naquele trágico momento. Precisava, mais uma vez, recriar a cena.
-IIParecia uma pequena princesa em seu longo e armado vestido rosa. Os detalhes do bordado que sua mãe mesma fizera lembravam pequenas correntes de fogo e gelo. Nakryn era fascinada nas histórias de Zewo que seu pai, Faoir, contava para ela antes de dormir. O laço vermelho de seda em suas costas, a qual a pequena garota fantasiava serem asas de dragão, voava ao vento no que corria pelo chão abrasado e ensanguentado. Suas lágrimas embaçavam sua visão, mas não havia como não notar a destruição. As labaredas incandescentes, que tomavam casas e corpos, iluminavam a noite, revelando um campo de batalha aonde antes era a praça central da pequena cidade. O cheiro forte da carniça, os gritos tremulantes de desespero, o cansaço de suas pequenas pernas… Nakryn estava relembrando cada detalhe do massacre de forma que nunca conseguira antes. Até mesmo o temor insuportável retornara… Tudo estava perfeitamente claro. A garota correu contra a praça passando entre corpos e guerreiros que ainda lutavam por suas vidas. Guardas e camponeses tentavam defender a cidade que tanto amavam empunhando espadas e ferramentas. Mas a desvantagem contra o armamento pesado e o treinamento que os Kauhuzas possuíam era esmagadora.
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Aos tropeços, Nakryn se esquivava dos golpes dos grandiosos orcs. Não parou para ver nenhum dos corpos, a única coisa que queria era chegar em casa. Em sua mente juvenil, seria onde estaria segura… Seria aonde o pesadelo acabaria. Contudo, antes que pudesse alcançar sua casa, seu pé enroscou no braço de uma pobre mulher que acabara de morrer à sua frente. Tentou levantar-se, tentou correr! Mas uma mão firmemente lhe segurava os longos cabelos negros. Sentiu o couro de sua cabeça sendo ferido pela pressão que afligia-lhe. Não… Aquilo não era apenas lembrança… Ao que era arrastada, agarrou a própria terra, ferindo seus dedos e unhas. Suplicou por ajuda, mas ninguém respondeu… Ninguém podia ajudar-lhe. Tentou voltar a si. Aquilo era maior do que ela poderia aguentar… Todavia, estranhamente, não possuía mais o controle de seu corpo, de suas lembranças e nem mesmo de sua mente. Estava trancada em seu próprio pesadelo. Suas lágrimas escorriam pela sua pele levemente bronzeada e macia. Clamava pela sua mãe e seu pai. Mas a única resposta era uma alta e forte risada seguida por palavras em um idioma que nunca antes havia escutado. Como um relâmpago escarlate, algo cortou o vento ao seu redor como se suprimisse o próprio ar. Sentiu a pressão em seus cabelos cedendo até estar livre. Assustada e confusa, virou-se rapidamente, reconhecendo seu salvador: Faoir, seu pai. Entretanto, algo estava diferente. Algo que não continha em suas lembranças. Nakryn recordava-se que seu pai havia lutado bravamente contra os invasores, mas era apenas um fato sem detalhes. Ele, um mero camponês, com suas ferramentas de trabalho prolongando seus últimos segundos de vida. Todavia, naquele momento, a imagem era nítida e clara. Faoir não empunhava uma arma de ferro ou aço. Mas, sim, fogo! Uma chama vigorosa emanava do artefato em suas mãos. Por mais que a arma aparentasse ser fogo puro, concentrava-se de tal forma que era visível o fino fio de sua lâmina. O bastão que seu pai segurava era de um cristal enegrecido, opaco, o qual projetava de suas extremidades as chamas que constituíam as armas que brandia. De sua ponta inferior, o majestoso tridente rasgava o chão em chamas,
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apoiando o corpo do orc transfixado pela espada bastarda que queimava na outra ponta. Seu choro emudeceu-se. A imagem que presenciava ficou lenta. A escuridão da horda de criaturas envolvia seu pai, deixando sua aura cada vez mais turva e obscura. Faoir distanciava-se das mãos da pequena garota, ficando visível apenas a luz que emanava das labaredas dançantes de sua arma. Nakryn tentou levantar-se e correr em sua direção, mas nada adiantou… Suas pernas não respondiam, suas mãos não alcançavam-lhe, seu corpo pesava como se estivesse tentando arrastar o mundo consigo. Ainda em lágrimas, em um grito mudo proclamando o nome de seu pai, fez um esforço sobre-humano para mover-se. Precisava tocálo… Ao menos uma última vez, precisava tocar o rosto de seu pai. Um forte ardor desprendia de Faoir. A chama de sua arma brilhava em uma ofuscante luz. Sentia tal intensidade queimar sua pele. O fulgor quebrava e explodia até o momento que mau conseguia manter seus olhos abertos. Em um último suspiro, sussurrou com a força que restava-lhe: – Papai… E enfim, com sua mão esticada e deitada próxima à fogueira, despertou.
-IIINakryn estava confusa. Tudo havia sido apenas um sonho. Já imaginava isto, mas… Foi realista a ponto de sentir cada sensação. Não sabia como havia adormecido tão rápido. Por mais cansada que estivesse, em nenhuma vigia de sua vida isto havia acontecido. Seus olhos inquisitivos alarmaram-se ainda mais quando notou que algo havia em sua mão. Em seu punho cerrado firmemente, incandescia uma fraca luz. Abriu sua palma lentamente. Seus olhos amarelos fitavam atenciosos tentando reconhecer o que era aquilo. Até que, enfim, percebeu que se tratava de uma pequena brasa. Fitando-a, confusa, observou-a morrer aos poucos até que esta apagou-se por completo. Antes que mais dúvidas lhe viessem a mente, uma voz rouca e familiar lhe chamava por suas costas.
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– Nakryn! Assustada, virou-se repentinamente, abafando com sua mão um pequeno grito repentino. Seabald, o velho e forte homem, permanecia encurvado à sua frente, apoiando-se em um de seus joelhos, encarando-a com uma de suas sobrancelhas erguidas. – Vinte anos de curso para dormir fazendo a guarda, soldado? – Seabald?! – Nakryn levantava-se, limpando a poeira de sua armadura de talas. Sem perceber, deixou cair a pequena brasa morta ao chão, sem notar que esta não havia lhe ferido a mão. – O que infernos está fazendo aqui? – Onde estão seus modos ao não brindar com o seu velho? – Seabald abriu um leve sorriso desdentado, tirando por debaixo de seu gibão de pele de ursos duas garrafas de vinho.
-IVO silêncio das estrelas inundava a pacifica noite. Seabald e Nakryn transbordavam suas gargantas com o doce vinho durante conversas sobre os velhos tempos. O velho mercante havia sido um personagem inusitado em sua vida. Desde pequena, quando não estava servindo a Ordem, a jovem clériga visitava a taverna para brincar com Sida, a qual, por mais que já não fosse uma criança, não se importava em entretê-la enquanto trabalhava. E foi lá que Nakryn avistou-o. Sujo, ferido e envolto em marcas de sangue que obviamente não pertenciam-lhe, o velho senhor carregava consigo uma besta tão grande quanto ela mesma. As curvas negras de grandiosas asas, o dragão rugindo silenciosamente com sua boca escancarada, o cabo ornamentado como uma longa cauda… Seus olhos amarelados brilhavam na presença de uma arma tão exótica. O senhor a recostava contra uma solitária mesa no canto da taverna e, por um momento de distração, seguiu para o balcão para conversar com a bela elfa dos cabelos vermelhos. E foi assim que Nakryn e Seabald se conheceram… Quando a pequenina e meiga garota pegou emprestada a amada besta Betty do velho mercante e, fugindo com ela sobre sua cabeça, perseguiu o Senhor Gatinho por metade da cidade ao que o amargurado velho
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lhe caçava em meio à fúria e xingamentos em todos os idiomas possíveis. Seabald visitava a pequena cidade no máximo duas vezes por mês, isto quando não estava em suas “missões exclusivas”, como chamava seus desaparecimentos por meses. Ao tomar conhecimento da história da pequena clériga, por mais aversivo que julgassem-lhe, o excêntrico mercante jurou para a pequena garota que, se um dia encontrasse alguém com os seus distintos olhos amarelados, retornaria para Nadati para lhe informar de seu paradeiro. Os anos se passaram e a criança cresceu. As visitas que antes fazia para brincar com Sida e verificar se Seabald retornara tornaram-se vigias cotidianas ao acompanhamento de bebida e conversas com Sida e Ablurgor. E por mais que Seabald nunca tivesse encontrado vestígios de seus irmãos, o afeto que a morena sentia por ele crescia cada vez mais. – E assim você está aqui… – Disse o velho, virando mais um grande gole. – Em poucas horas, Ablurgor estará vingado. O que você fará em seguida? – Eu não sei. – Nakryn balançava lentamente a garrava, rodando-a em seus dedos. – Provavelmente seguirei para Sumahkot. Não sei qual é o lado certo para se seguir agora. Talvez, se eu voltar onde tudo começou, eu consiga encontrar o caminho que devo seguir. – Menina, você ao menos lembra do que eu vivia falando-lhe? – “Saia de cima da porcaria da minha carroça”? – Nakryn sorriu, tomando um pouco de vinho. – Também! – Seabald exclamou, soltando uma risada baixa para não acordar Yzgart e Ezrath que estavam do outro lado da estrada. – Mas quanto as escolhas que deve fazer, você lembra? – Neste exato momento, só me lembro das coisas que você dizia para que eu não fizesse. As quais eram várias, e eu ainda assim adorava fazer! Não sabe o quanto é divertido te ver irritado. – Nakryn, a cada minuto que se passa, a cada movimento dado, nada é certo! Mas nada é errado. – E eu nunca entendi o que você quis dizer. – Minha filha, não há nada que determine para você o que realmente é a verdade. Se Zlodanih tivesse conquistado e obliterado toda a oposição de Taros, a verdade seria o que ele proclamasse. Então, se você tentasse fazer o que é “certo” hoje, você seria a inimiga… Você
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representaria o mal. – Seabald fez uma breve pausa, olhando para algumas das cicatrizes em seu antebraço. – Você encontrará inúmeras dificuldades pelo seu caminho. Herathor é um grande continente, não há apenas bondade por suas terras… O seu caminho, apenas você definirá, Nakryn. E tudo isto será parte de suas escolhas. – Entendo… – Respirou fundo a bela clériga, pensativa. – Mas se meu caminho estou para definir, isto não significa que posso definir um caminho errado? – Você não vê, menina? – Seabald terminava de engolir o líquido avermelhado da garrafa. – Nada está errado! Nem mesmo os Kauhuzas estavam errados! – O que quer dizer com isto, Seabald? – Exatamente isto que você ouviu! Na concepção deles, todos estão certos. E, afinal, tudo isto não é uma simples reação? – O velho sorriu, recostando-se na grande pedra que estava atrás dos dois. – O que você faria se o mundo como você conhece estivesse sucumbindo a uma força maior? – Eu… Faria o que fosse preciso para restaurar o equilíbrio. – Respondeu. – O equilíbrio… Vocês do dragãozinho Zewo me irritam às vezes com suas respostas generalizadas e seus pensamentos metafóricos. – Seabald tossiu algumas vezes ao rir. – Mas veja comigo… Yerum tentou fazer o que podia para seu mundo não sucumbir e, com isto, entrou em uma guerra com os Kamayatans, o que resultou no ritual de Zlodanih, o nascimento de Zewo e a repartição do continente em Zabohrav e Herathor. – Estou acompanhando. – Se os continentes não tivessem separado-se, os orcs de Zabohrav não seriam isolados. E se o conselho não estivesse tentando manter um equilíbrio e seguissem seu coração, Magmatas nunca teria surtado e, consequentemente, os orcs nunca teriam se revoltado… E o que mesmo se gerou da revolta e o rancor dos orcs por tantos séculos? – Os Kauhuzas… – Respondeu a clériga, contemplativa. – Exatamente… – Respirou fundo Seabald, voltando seu olhar para a pequena mulher. – Não se ofenda, menina, mas se os Kauhuzas não existissem, seu vilarejo estaria inteiro e você nunca precisaria nos conhecer. Sua história seria completamente diferente… Todavia, o mal sempre existirá e, talvez, nesta outra realidade, o seu sofrimento seria ainda maior… Nunca saberemos. 133
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– Não sabia que era filósofo nos seus tempos vagos, velhinho. – Riu baixinho. – Talvez suas pequenas e discretas decisões resultem em extraordinários acontecimentos que possam mudar mesmo o destino de Herathor, Nakryn. Ou talvez seja você quem trará caos e destruição com estes olhões amarelos. – O mercante sorriu. – Modo ou outro, você, e apenas você, poderá decidir os caminhos que tomará… E por mais que uma atitude sempre tenderá ao bem ou ao mal, elas sempre estarão certas quanto a consequência que trarão. O que realmente define o que você quer é o que você deseja que aconteça… – Muito obrigada por suas palavras, Seabald. – Nakryn sorriu docemente para o velho senhor. – Nunca esquecerei sua sabedoria. – Talvez esqueça. – Retrucou o velho, juntando as duas garrafas vazias e levantando-se. – Mas desde que não morra, é o que importa. – Fazendo um breve silêncio ao olhar para seus punhos cerrados, voltou seus olhos cansados para a bela mulher. – Estou grato por ter lhe conhecido, jovem Nakryn, creio que os deuses sorrirão para suas escolhas. – Pensei que não acreditasse nos seis deuses dragões, Seabald! – Disse com uma grandiosa serenidade em seus olhos, como se assim quisesse que o pobre velho se sentisse abraçado. – Não é porque eu não acredite nos deuses que eles não acreditarão em você. – Um leve sorriso abriu no canto de sua boca, correspondendo o olhar de Nakryn. Lentamente, ao peso de seus próprios passos, Seabald retornava para a silenciosa cidade de Nadati. Mas por mais que suas costas doessem e sua mente pesasse, sentia sua alma um pouco mais leve.
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O Sepulcro do Guerreiro
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noite decorreu serena. Apesar da falta de conforto e da baixa temperatura, não houve nenhum incidente. Talvez fosse apenas sorte, ou talvez as criaturas estivessem com medo de algo maior que estava por vir. A verdade, não poderiam afirmar… Mas algo era certo, as criaturas estavam cada vez mais agitadas, inclusive Wittaz. Arawan já emergia no horizonte, precisavam sair o quanto antes. Seriam algumas horas de viagem até a caverna, mas, independentemente do que lá encontrassem, deveriam retornar no mesmo dia. Afinal, a missão era simples e rápida: Encontrar o verdadeiro motivo por trás da morte de Ablurgor Hyvat. E é claro… Colher os alucinógenos cogumelos do eco. – Apressem-se! – Rosnou a orc com suas espadas brandidas. – Não podemos perder tempo! – Concordo. – Disse Nakryn. – Ezrath, está pronta? – Aprontei-me muito antes de você, humana. – Respondeu secamente. – Estou pronta desde que iniciei minha guarda. – Então… Devemos cantar alguma música para passar o tempo? – Perguntou animadamente, mas a resposta foi óbvia ao que o silêncio pairou pelo ar. Yzgart e Ezrath seguiam em frente, distantes uma da outra. – Vocês sabem que minhas perguntas são retóricas ou só se fazem de difícil? Nakryn terminou de arrumar seus pertences e se agilizou para acompanhar o passo das duas aventureiras. Antes de adentrar a floresta, voltou sua cabeça para trás para avistar uma última vez Nadati, a qual se estendia no horizonte. Claro, retornaria ainda no mesmo dia, mas uma emoção percorria seu coração. 135
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Desde pequena, imaginava-se exatamente daquela forma: Saindo do conforto de seu cotidiano para explorar o desconhecido de Herathor. Aquele seria o começo de algo que poderia resultar, um dia, na conquista de seus sonhos… Pequenos sonhos bobos que vagavam a mente… Mas independentemente do que aquilo realmente significasse, estava feliz. Pela primeira vez em sua vida, pode sentir o poder que ela mesma possuía sobre seu próprio destino.
-IIWittaz seguia metros à frente de Yzgart, servindo como batedora para o grupo. Qualquer pequeno problema que pudesse existir, a grande loba perceberia. A esguia elfa vinha logo atrás. Por mais que não gostasse de ficar perto da orc, sabia que estava em uma posição favorável. Afinal, a chance de atacarem quem está no meio sempre é menor. E ao final da fila, Nakryn, cautelosamente analisando o ambiente ao seu redor, garantindo que nada estivesse seguindo-lhes. Não como se algo pudesse saber o que estavam fazendo, mas nunca era demais prevenir. Apenas algumas pequenas criaturas tentaram atacar o grupo, mas nada que não conseguissem cuidar com pouco esforço. Contudo, a atitude de tais bestas não condiziam com seus atos. Já esperavam por algo assim… Mesmo sendo incomum. Por fim, lá estavam elas… O corpo de Ablurgor Hyvat repousava exatamente onde Yzgart havia deixado-o. Sua face transpassava tranquilidade, por mais que a necrose tivesse tomado boa parte de seu corpo. Todavia, nenhum inseto pairava em sua carne exposta. Não, estes estavam mortos no chão. Nakryn aproximou-se do velho elfo e, ajoelhando-se à sua frente, estendeu sua mão em sua face. – Ablurgor… – Sussurrou. – O que foi que aconteceu com você? – Estranho. – Disse Yzgart. – Eu tinha certeza de que os animais da floresta aproveitariam o resto da carne, mas parece que nenhuma criatura quis sua carcaça… – Não apenas parece. – Nakryn analisava o cadáver. E ao soltar a armadura de couro que estava firmemente presa ao corpo do
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elfo, expôs uma grande marca em suas costas, quase do tamanho de sua mão. – Ablurgor deve ter recebido uma dose letal de veneno… Mas impossível ser uma quelícera… Seria uma… Garra? Uma lança envenenada, talvez? – Sua testa franzia. – Ele certamente foi assassinado… Mas, por quê? E este veneno… Tenho certeza de que os insetos morreram infectados ao tentarem comer a carne. – Melhor não tocarmos nele, é perigoso. – Ezrath incomodou-se. – Talvez tenha razão… – A humana pensou por um instante. – Mas não posso deixá-lo assim. Era um homem honrável, merece um enterro digno. Desamarrando a pá dentre os pertences que carregava em sua mochila de couro, voltou-se a Yzgart. – Sei que não gosta de se envolver em assuntos alheios, Yzgart… Mas poderia me ajudar? A orc olhou nos olhos de Nakryn. Por um momento, pensou que estava zombando, mas notou que seu pedido fora sincero. Bufou. E sem dizer uma palavra, segurou o corpo de Ablurgor em seus braços, sem mesmo se importar com o estado de decomposição que se encontrava. A jovem humana olhou ao seu redor, percebendo que há poucos metros encontrava-se um enorme bordo. Provavelmente, tratava-se de uma árvore centenária, a qual aguentou as mais diversas adversidades que a natureza pode trazer-lhe… Exatamente como o velho elfo que um dia lhe treinara. Indo até a sombra da árvore, Nakryn pôs-se a cavar. Sabia que poderia demorar um pouco, mas havia feito uma promessa. Ablurgor receberia os ritos finais. Yzgart deitou o corpo cuidadosamente ao lado do buraco. E sinalizando para Wittaz, brandiu suas espadas. – Olharei a área ao redor enquanto cava, humana… Garantirei de que não seja interrompida. Com um sutil movimento de sua cabeça, no silêncio de seus pensamentos, Nakryn agradeceu. Não queria, nem mesmo podia falar uma palavra naquele momento. A tristeza que lhe acarretava era maior do que suas palavras poderiam expressar. Cada pá de terra jogada ao ar era uma lembrança de um momento que nunca retornaria a acontecer.
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-IIIO barulho da terra sendo rasgada e revirada incomodava Ezrath. Como poderia parar para algo tão trivial quando o que realmente deveriam fazer era encontrar o responsável por aquilo? Enterrá-lo não mudaria o fato de estar morto. Ou mesmo de que o assassino poderia estar à espreita. – Você realmente fará isto? Nos atrasará desta forma? – Ele é um elfo, não? Você não deveria estar feliz por fazermos isto? – Ele deixou de ser um verdadeiro elfo no momento em que decidiu que a cidade seria mais confortável para ele. – Ergueu sua cabeça orgulhosamente, pronunciando as palavras com desprezo. – Ele não passa de um loikkari. Um desertor! – Um desertor?! – Nakryn indagou amargamente. – Elfos legítimos mantém a linhagem pura em sua verdadeira tribo… Ma-Woo, Luontoo, Avikko… Estes são sobrenomes de um verdadeiro elfo! – Seus reluzentes olhos fitaram o cadáver de Ablurgor. – Foi por causa de elfos assim que a tribo Tavaall desapareceu em Miyamiran. Sem guerreiros, sucumbiram aos Kauhuzas! E por mais que todos estejam mortos, ao menos todos os Tavaall faleceram com seu orgulho intacto. “Hyvat”… – Proferiu como se amaldiçoasse-o. – Imagino a história de honra que possa ter uma família chamada “Hyvat”. – Bem… – Nakryn não havia nem mesmo retirado os olhos da tumba. – Talvez não seja tão importante historicamente para Herathor em si, mas, sem dúvida, quando os Kauhuzas atacaram… Foi a família Hyvat que cedeu a taverna dos Neutros como enfermaria. Sida cuidava dos feridos e dos enfermos. Ablurgor não desistiu de resgatar nenhum soldado ferido, não importava o perigo que se expusesse ou a criatura que enfrentasse… Eles salvaram inúmeras pessoas que respiram até hoje. – E aonde estava seu honrável “Hyvat” enquanto minha tribo estava sendo dizimada?! – Avermelhou-se, encarando furiosamente a clériga. – Ele estava aqui, em Nadati… Sempre pronto para ajudar qualquer um, independente de sua raça. Mas, se não me engano, foi sua tribo quem demorou anos para buscar socorro com raças tão inferiores, não foi?
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Ezrath ficou mais vermelha do que um dia ficara em sua vida. Sua testa franziu a ponto de retirar a juventude e a beleza de sua face. Sabia que Nakryn tinha razão no que dizia, mas Ablurgor era um loikkari e por causa de elfos como ele que sua tribo estava fraca e desestruturada, nem mesmo aguentando os ataques das criaturas selvagens. As tribos deveriam ser autossuficientes! Pazija concedeu o segredo aos elfos, e apenas a eles…! Mas, por hora, a escolhida ficaria calada. Não era o momento de reagir. Precisava aturá-la enquanto ela lhe fosse útil.
-IVAvistando que Yzgart e Wittaz retornavam, Nakryn, a qual terminava de abrir a cova, sinalizou para que lhe ajudasse mais uma vez. A orc cinzenta carregou Ablurgor em seus braços e cuidadosamente desceu seu cadáver para que Nakryn o segurasse. – Ele era importante para você? – Perguntou Yzgart, passando o corpo para os braços da clériga. – Um elfo? – Sim… Ele foi meu tutor durante alguns anos. Ensinou-me sobre a floresta, sobrevivência e, principalmente como me defender… As melhores táticas de combate foi ele quem me passou. – Nakryn respirou fundo, colocando Ablurgor gentilmente no solo seco. – Eu era pequena, mal sabia como segurar uma maldita maça na mão… Não que hoje eu saiba. Mestre Owan sempre achou perigoso que eu manuseasse uma espada, então exigia que eu treinasse com maças. Ablurgor sempre foi paciente e observador… Escondido, ensinou-me tudo o que sabia sobre espadas. Era sempre divertido treinar com ele… Ele sempre foi tão carinhoso… Mesmo eu errando, mesmo me sentindo fraca, ele sempre estava lá para me animar. O âmbar de seus olhos encaravam a face de paz de seu tutor. Respirou fundo, engolindo suas emoções, – Ablurgor não foi apenas um elfo. Mas sim, um grandioso ser. – Complementou A orc contemplou em silêncio. Era como se ela estivesse descrevendo a sua falecida tutora humana. Entendia a dor de sua perda, como também o que aquilo significava para ela. Após o cadáver de Ablurgor estar acomodado em sua cova, Yzgart ajudou Nakryn a subir. Cortando um grande galho de uma das
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árvores ao redor, auxiliou-a a empurrar a terra, cobrindo o corpo do velho elfo. A morena admirava uma última vez o seu tutor ao que a terra cobria sua face, notando mais uma vez a expressão serena que carregava. Vingá-lo-ia, nem que isto significasse matar cada aracnídeo repugnante daquela caverna para descobrir quem era seu assassino. A floresta permanecia silenciosa. Somente o barulho do aço do punhal de Ezrath sendo afiado repercutia no ar. Yzgart e Wittaz sentaram-se próximas à Nakryn, a qual rezava, em élfico, o rito de passagem de Zewo. Os ritos finais para um grandioso guerreiro. – Spat vaz Rajlan, Ablurgor. – Sussurrou Nakryn, contendo suas lágrimas enquanto desenhava com uma brilhante adaga o símbolo sagrado de Zewo. E antes de partir, cravou-a sobre a cova, demarcando o sepulcro do guerreiro.
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A Caverna de Arakna
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rawan estava a pino. Haviam se alimentado e separado o que levariam dos equipamentos. Acenderam duas tochas, uma para Nakryn e outra para Ezrath, já Yzgart não necessitaria de uma, enxergava sem dificuldades no escuro. A grande orc ordenou para que Wittaz não entrasse na caverna, precisava que ela ficasse de guarda. Fosse do que entrasse, ou saísse. E assim, adentraram a misteriosa gruta. Ao passarem pela primeira curva, chegaram à câmara que Yzgart havia mencionado ter incendiado. Havia sinais de fogo por toda a sala. As paredes estavam chamuscadas e manchadas, havia cinzas por todo o redor. O cheiro de carne queimada irritava o nariz das aventureiras. Estava tudo bem familiar para Yzgart, exceto por algo: Onde antes estava a pilha de corpos encasulados, agora revelava um grande buraco. – Isto não deveria estar aqui… Não existia antes… – Yzgart franziu a testa. – O que poderia ter aberto isto…? – A clériga abaixou-se para analisar melhor a cratera. – Não conheço esta área, mas… Humano não foi. – Disse Ezrath, circulando lentamente o buraco. – E com que certeza diz isto? – Nakryn coçava seu nariz por causa das cinzas que incomodavam-lhe. – Bem, apenas veja… – Ezrath apontou para a parede da câmara. Ao redor da sala de pedra, Ezrath iluminava milhares de pequenos buracos que circulavam a sala. Alguns do tamanho da circunferência de um dedo, já outros, era possível até se esgueirar
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por dentro. A própria clériga poderia entrar em um deles se assim quisesse, mas um instinto claustrofóbico invadia sua mente apenas de olhar para o estreito e escuro túnel de pedra. Iluminando um dos buracos, era perceptível que centenas de outras cavidades também existiam em seu interior. Ou aquilo havia sido feito por um maníaco compulsivo, ou, de fato, aquilo não era obra humana. – Precisamos de um plano… Não acho seguro simplesmente pul… Antes que a clériga pudesse terminar sua frase, Yzgart se jogou contra a escuridão, chegando ao solo após uma queda de três metros. Frustrada, a jovem clériga perguntou: – Ainda viva?! Caso contrário rirei de você! – Mais túneis. – Yzgart bufou em resposta à clériga. – Nada de perigoso… Mas parece que a única saída é aqui. Nakryn pegou o pedaço de corda que estava guardado em sua mochila. Procurando um lugar para prendê-la, achou dois buracos do tamanho do Senhor Gatinho, os quais convergiam-se, formando uma barra de pedra. Amarrando-a firmemente, jogou a outra ponta para Yzgart. – Pelo menos, agora sabemos que podemos sair! – Disse animadamente. – Até que uma destas criaturas coma sua corda… – Respondeu Ezrath. – Detalhes…
-IIA tocha iluminava a caverna, derramando suas centelhas ao chão. Novamente, diversos túneis de vários tamanhos perfuravam a sala. Haviam pequenos buracos no teto, no chão, nas paredes, em tudo! O ambiente se tornava hipnotizador… Dentre todos, dois deles chamavam a atenção por seu grande diâmetro. – Norte ou sul? – Nakryn indagou. – Consegue ver qual é o mais promissor, Yzgart? A orc cinzenta forçou sua visão. A caverna a confundia, ainda mais no preto-e-branco que enxergava quando estava na escuridão.
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Encontrava-se em um pesadelo visual com tantas crateras cercando-lhe. Às vezes, era difícil entender se o buraco estava longe ou se era apenas pequeno. Tal ilusão de óptica despertava-lhe um desejo de sair daquele lugar. – O túnel norte dá para uma bifurcação, ao que parece. Já o túnel sul desce. – Outros andares? Que tipo de criatura pode ter arquitetado isto? – Não sei ao certo, Ezrath, mas tenho a impressão de que estamos para descobrir em breve. Nakryn empunhava sua maça. – Seguiremos pelo sul.
-IIICautelosamente avançaram o estreito e longo corredor. Os buracos seguiam enfileirados. Era possível ver frestas de luz oriundas de Arawan em alguns deles. Havia também pequenas aranhas incineradas, as quais entraram em combustão quando os corpos da câmara superior cederam para aquele andar. Ao chegarem ao final do corredor, um nervosismo tomou conta de suas entranhas. Os inúmeros buracos ocos mostravam-se preenchidos. A maioria deles com carcaças de pequenos animais envoltos em teias. À partir daquele ponto, todos os buracos possuíam teias. Nakryn observou cautelosamente e, após aproximar sua tocha de uma das fissuras, notou que algo ali estava escondido. – Um cogumelo do eco! – Nakryn sorriu. – É um belo começo! – Estranho… O fogo não deveria ter destruído isto? – Indagou a bela elfa. A jovem clériga estendeu sua mão e rapidamente puxou o cogumelo que crescia por detrás das teias. Mas, no que seus finos dedos arrebentaram os primeiros fios de seda, barulhos de estalos ecoaram por toda a caverna. Aranhas tão grandes quanto cães saíram de um dos buracos superiores, avançando rapidamente contra Nakryn. A garota se defendeu da primeira criatura, arremessando-a para longe com um forte golpe de sua maça. Contudo, pela distração, Yzgart foi derrubada ao chão. – Pela Asa Esquerda! – Nakryn se defendia de outra investida. – Quem alimentou esta criança?!
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Yzgart estava contra o piso de pedra gelado, empurrando o aracnídeo pelo cefalotórax. Podia ver nitidamente as gotas de veneno se formando em suas quelíceras, sua boca abrindo e fechando, os vários olhos que focavam-lhe. Mas algo mais assustador se destacou em sua carcaça monstruosa: Suas quelíceras dilatavam-se lentamente, revelando garras de metal puro, tão pontiagudas quanto sua própria espada. Por mais que a orc possuísse grande força em seus braços, não era o suficiente para manter a aranha longe de seu corpo, a qaul aproximava-se cada vez mais. O assovio de inúmeras flechas se fundia ao estalar que ecoava pela caverna. Setas e sangue translúcido voavam ao ar. Ezrath estava ocupada demais para ao menos se importar com a orc, do teto e das paredes, várias aranhas emergiam consecutivamente. Contudo, Capuz Negro escutou o barulho de metal se arrastando pelo chão e, em instantes, a aranha estava contra a parede, com seu tórax esmagado pela maça de Nakryn. Percebendo que algo aproximava-se, a clériga virou seu pequeno broquel de madeira, recebendo contra ele o cadáver da última aranha que tentava atacar-lhe, a qual estava transfixada com uma flecha em seu cefalotórax. Ezrath sorria, satisfeita, abaixando o arco e contemplando as criaturas mortas. A humana, por sua vez, virou-se e estendeu sua mão à Yzgart. – Precisa de ajuda? – Disse sorridente. Os olhos da orc arregalaram-se e suas sobrancelhas franziram. Segurando fortemente a mão de Nakryn, puxou-a contra seu corpo, esticando sua espada. A pequena humana caiu ao seu lado e, em cima delas, o corpo de mais uma aranha deslizava lentamente sobre a lâmina de Yzgart. – Não. – Respondeu Capuz Negro. As duas empurraram para longe a carcaça do aracnídeo. Observaram ao redor, mas nada mais havia além dos corpos que contorciam-se. Entretanto, o barulho não havia cessado. Era como se milhares de estalos de aço invadissem suas mentes. Pequenos, agudos e repetitivos sons. O eco ressonava por todos os buracos, cercando-as.
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Nakryn ajoelhou-se próxima ao corpo de uma das aranhas. Verificou cautelosamente se a criatura estava morta cutucando-a com sua maça. Após garantir a sua segurança, pôs suas mãos em suas presas. – Parece… Ferro? – Indagou. – Não! Não bastavam ser aranhas venenosas, precisavam ter quelíceras de ferro! – Os buracos… Seria capaz que estas aranhas tenham esculpidoos? – Ezrath arrancava as flechas dos olhos de seu alvo, verificando se ainda estavam em condições de uso. – Talvez. Nunca ouvi de nenhuma criatura que pudesse fazer tais coisas, mas se estes bichos possuem força suficiente para dar trabalho para Yzgart… Provavelmente conseguiram quebrar as pedras com estas garras. As três aventureiras se entreolharam. Precisavam apressar-se. Não poderiam retornar agora que haviam presenciado o verdadeiro perigo da caverna. Acima de tudo, algo ainda estava muito estranho. – Yzgart, isto não é comum pela floresta, é? – Não. Nunca havia presenciado criaturas como estas… Muito menos formarem uma colônia. – Não teremos chance de eliminar todas as aranhas da caverna! É melhor voltarmos. Este barulho… Ficarei louca! – Resmungou Ezrath, aprontando outra flecha em seu arco. – Não se preocupe, será bem-vinda em Nadati! – Disse a humana, soltando um risinho satisfeito pela elfa não ter apreciado sua piada. – Modo ou outro, não podemos voltar. Viemos aqui com um objetivo, e vamos cumpri-lo.
-IVMuito custaram para avançar. Durante todo o caminho, ao tropeçar em fios de seda, inúmeras aranhas atacavam-nas. As criaturas enormes se camuflavam na escuridão das sombras, os inúmeros olhos cintilavam como pérolas negras ao brilho da chama da tocha. Avançavam com suas presas, projetando seus corpos com as patas prontas para emboscá-las. A clériga dos olhos amarelos defendia o grupo dos maiores aracnídeos. Usando sua maça, quebrava as juntas das patas das criaturas, afastando-as com seu escudo. E, sempre que a oportunidade surgia, queimava-as com o fogo de sua tocha para o seu entretenimento. 145
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Ezrath dançava graciosamente, esquivando-se das criaturas e respondendo com flechas velozes e certeiras que assoviavam pelo ar. A cada criatura que falecia a sua frente, recuperava a flecha da carcaça para lançá-la mais uma vez. A gigante guerreira que protegia a retaguarda não deixava nenhum inimigo passar. Yzgart dilacerava e desmembrava o que quer que tentasse avançar contra elas. Suas duas espadas rasgavam o ar na mesma velocidade que as entranhas das aranhas espalhavam-se pela parede. Contudo, a fatiga mostrava seus traços e, pouco a pouco, as guerreiras feriam-se. O veneno já corria por suas veias, o suor frio escorria pelos seus corpos. E ainda assim, o corredor descia sinuosamente em espiral em sua ilusória infinitude. O barulho do metal intensificava-se, assim como seus ferimentos. Mas foi quando, em uma fusão de alívio e desespero, tudo cessou por completo. Somente os passos pesados da armadura de Nakryn e a respiração ofegante das três mulheres era o que se podia ouvir. Assim que acalmaram-se, viraram seus únicos frascos de antídoto pela garganta, sentindo o sangue ferver ao eliminar a forte toxina. Apenas uma leve dor de cabeça remanesceu após alguns segundos. O silêncio mórbido transbordava o ar, deixando apenas a incógnita do imprevisível. Observando o local, puderam notar que haviam percorrido um longo caminho desde que iniciaram a longa e impetuosa batalha. Estavam provavelmente chegando ao final do túnel. Ou, ao menos, é o que esperavam. – Estamos quase lá. – Disse a clériga calmamente após limpar o seu escudo das entranhas presas a ele. – Como pode ter certeza, humana? – Ezrath perguntou. – Tudo aqui é igual! – Levando em conta a quantidade de criaturas que matamos e as proporções desta caverna…Impossível estar maior do que isto! No máximo deve haver mais alguns corredores. – Então é um chute? – Um belo de um chute! – Respondeu confiante. Observavam as centenas de fissuras nas paredes ao longo que seus passos ecoavam pela caverna. Teias e pequeninas aranhas
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preenchiam o cenário. Os buracos continuavam a preencher o interior da caverna, formando linhas e espirais inteiras, hipnotizando-as e aterrorizando-as. Pararam, pois havia uma trifurcação. Precisavam escolher um dos caminhos. – Yzgart? – Perguntou Nakryn. – O caminho da esquerda é o mais curto, o da direita aparenta seguir em uma curva, assim como o central. – Então vamos pela esquerda. Quanto antes terminarmos, melhor. – Resmungou Ezrath. Andaram poucos metros até perceber que o túnel não havia saída. Este era curto e estreito, não havia nada de interessante ali. Mas Nakryn avistou algo que tornou este beco um motivo para sua intervenção. Não era nenhum tesouro precioso, nem mesmo algum item imprescindível para a sobrevivência do grupo, ou mesmo um cogumelo do eco. Mas, envolto em um casulo de seda dentro de um dos buracos da parede, estava seu grande nêmesis: Um rato. O roedor estava morto, enrolado em teias de seda dentro de um dos buracos da parede. Era perceptível que aquela criatura estava há dias naquele estado, talvez todo o seu interior já estivesse devorado. E levando em conta o tamanho daquele animal, havia sido um banquete e tanto para as aranhas diminutas. Entretanto, ainda assim, era um grande rato peludo e detestável, o qual estragava Herathor simplesmente pela sua carcaça fétida e desprezível. Então, antes mesmo que a orc e a elfa pudessem perceber, Nakryn esfregou sua tocha no defunto rato, resmungando furiosamente: – Rato maldito! Vou perseguir até a quinta geração de sua prole imunda! Quase que imediatamente, o corpo do rato começou a se agitar e a contorcer-se. A jovem humana soltou uma alta gargalhada lunática pensando que estava a torturar o rato. Mas em sua face a decepção se estampou quando notou que inúmeras aranhas saiam do corpo do roedor e inúmeras outras fugiam dos buracos para evitar as chamas. Em pouco tempo, as três guerreiras estavam cercadas por milhares de minúsculas aranhas, as quais tornaram o cinza escuro das paredes em uma cor negra e vibrante.
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Estavam cercadas. Nakryn olhou ao redor puxando a sua tocha para si, girando seu corpo para manter os aracnídeos afastados. Enchendo seu peito, pensou em várias frases de inspiração e confiança para suas companheiras, falando: – Ops! Yzgart e Ezrath pensaram que, se aquilo não as matassem, elas mesmas matariam Nakryn. Por mais que a ansiedade fervesse o sangue das aventureiras, as aranhas apenas as cercaram. Algo estava errado. A agressividade destas criaturas era algo explícito até então. Mas estas apenas as circulavam como se quisessem matá-las, mas não pudessem naquele momento. – Acho melhor sairmos… Não importa o que esteja acontecendo, é melhor sairmos. – Ezrath falou, abrindo seus passos para a saída daquele beco. A elfa dos longos cabelos brancos estava para pisar em uma parte do enxame de aracnídeos quando as aranhas se afastaram do seu pé. Era como se estivessem sendo repelidas pelo seu corpo. Nakryn e Yzgart notaram que o mesmo acontecia com elas e, logo, seguiram-na. – Isto está errado… Mas por mais que eu vá me arrepender de não questionar, por hora, prefiro não reclamar. – Nakryn colocava uma de suas mãos na parede, observando as aranhas afastando-se de sua palma, formando uma silhueta forte e vibrante.
-VUm vento frio soprava pelo túnel, mas era difícil distinguir de qual dos inúmeros buracos vinha. Talvez um deles levasse para a superfície. Ou mesmo, todos. O silêncio fúnebre embalava seus pensamentos. Estavam receosas, mas era necessário prosseguir. Novamente na trifurcação, decidiram seguir o caminho da esquerda. Os passos se estendiam vagarosamente. O corredor pelo qual percorriam se estreitava, sinuosamente inclinando-se. Estavam descendo mais uma vez, mas ali, não haviam fissuras no solo. Isto só poderia significar que estavam chegando na última câmara.
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Mesmo Yzgart, a qual possuía mais audácia ao enfrentar o perigo, estava com incerteza do que aconteceria com elas. O medo de deixar sua companheira sozinha no mundo a agoniava. Nakryn se indagava qual era o real perigo. As criaturas ou a própria caverna? O ambiente daquele local afogava-as em uma paranoia constante de sufocamento. Pior do que qualquer batalha que um dia travara, era como se a própria essência de seus pesadelos fluísse dentre as inúmeras aberturas nas paredes direto para as suas entranhas. Ansiosa, passando a unha pela pena da flecha que segurava, Ezrath antecipava o pânico. Sentia um calafrio seguir pela sua espinha, seus instintos gritavam para que saísse daquela caverna e abandonasse o grupo para seu próprio destino, mas sabia que morreria sozinha se assim tentasse. O incomodo em sua alma apenas aumentava a cada passo que dava. Seus pés ficaram gelados, sua cabeça pesou. Por um instante pensou que desmaiaria. Nakryn suspeitava de que havia algo errado. Mais errado do que tudo que encontraram até o momento. Estava silencioso demais… O caminho estava livre demais… Por mais que pudessem ver logo em frente que o corredor ali acabava, era como se fossem encontrar uma… – Armadilha! – Um estalo invadia a caverna acompanhado do grito da pequena clériga, ecoando por suas paredes perfuradas o grande estrondo. O solo desabou. O chão onde haviam pisado era falso e fraco, não suportando o peso das guerreiras. As três rolaram por uma íngreme ladeira, deixando-as levemente atordoadas. A tocha de Nakryn parou alguns metros de seu corpo. O estouro ecoava inúmeras vezes pelos ocos vãos. O barulho cessou. O terror retornou. – Eu sabia que me arrependeria por não questionar… – A visão da clériga lhe inundava com angústia e medo. Logo à frente, do outro lado da câmara, um hexagrama formado pelo sangue de seis cabeças empaladas cobria toda a extensão da grande parede de pedra. Em seu topo, estava a cabeça de um orc, a qual aparentava estar em decomposição há meses, deformando sua face a ponto de deixá-lo irreconhecível. No canto superior esquerdo e direito estava,
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respectivamente, a cabeça de uma elfa de longos cabelos castanhos e um humano de cabelos grisalhos, ambos aparentavam ter sido mortos há pouco tempo. Logo abaixo, havia um gnomo calvo e um malit de ralo cabelo castanho, este último com inúmeros cortes pela sua face. E, por fim, na base do hexagrama, a cabeça de um anão de longo cabelo negro e uma barba densa e comprida. Dentre todas, era a mais recente que ali estava, ainda escorrendo e pingando sangue fresco pela sua barba. A visão tenebrosa e o ambiente mórbido extasiou-as em um medo profundo, mas o silêncio impérvio logo foi quebrado pelo som de palmas estalando pelo ar. – Pontuais… Simplesmente, pontuais. – Disse a voz misteriosa, a qual vinha por entre as sombras de um dos buracos da câmara. A alta figura encapuzada aproximou-se vagarosamente em direção ao hexagrama. – Perdão a recepção não tão calorosa, senhoritas. Eu estava apenas reunindo os últimos ingredientes para o ritual. Se ao menos imaginasse que visitas teria, ao menos prepararia um banque! – Quem é você?! – Indagou Nakryn. – O que fez com estas pobres pessoas?! – Um dia, a floresta suspirou o nome de Aran Tavaall… – A figura curvou-se em reverência. – Mas hoje, o medo murmura o nome de Aran Arakna. Muito prazer!
-VI– Tavaall?! – A face de Ezrath branquejou. – Impossível… Um elfo de Miyamiran sobreviveu aos Kauhuzas?! Aran aproximou-se lentamente das três guerreiras, até manter meros três metros de distância entre eles. Toda sua imagem ocultava-se pela branca capa que mantinha-se presa por um pequeno feixe vermelho em seu peito. – Longos cabelos brancos e delicada pele clara… E pelas suas vestimentas, uma selvagem! Ma-Woo, estou certo? – A figura então retirou o capuz que cobria sua cabeça, revelando sua faceta. Possuía a pálida face de um elfo de aproximadamente 300 anos. Contudo, suas feições permaneciam joviais. Seu cabelo castanho estava preso em um longo rabo-de-cavalo, perdendo-se de vista ao se
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esconder sob a capa. Suas orelhas expostas eram longas e pontiagudas. Seu corpo era magro e, mesmo para sua raça, era dotado de grande altura. Queixo fino, mandíbula quadrada, rosto comprido. Um elfo charmoso e bonito, mas havia algo em seus olhos púrpuras que causava uma certa perturbação. Por mais que possuísse pesadas olheiras, seu olhar transpunha um brilho inquieto e intimidador. – O que uma elfa Ma-Woo faria tão distante de sua terra… Aran colocou a mão em seu queixo, pensou por um momento e, com um sorriso em seus lábios, começou a rir. Sua risada era maníaca. Um tom forte e alto que invadia as fissuras da caverna e retornavam em forma de ecos que emergiam das sombras. – O que foi? Qual a graça?! – Perguntou Ezrath, remoendo-se pelo tom insolente que o elfo de Tavaall ria. – Desculpe a falta de postura de minha parte, ditze, mas não poderiam ter alegrado mais o meu dia! – Levantou seu rosto revelando um sorriso pungente e ameaçador. – Certamente, estão fugindo… Estão fugindo da morte que vem do norte! Mestre Yamaluhan ficará satisfeito com as consequências de meu trabalho! A palavra “Yamaluhan” atingia a clériga como se fossem pequenas adagas caindo do céu, penetrando sua alma e seu coração. Nunca em sua vida pensou que alguém traria esta entidade em um tom de satisfação. – Yamaluhan?! Você está louco! – Gritou Nakryn. – O deus esquecido está trancado para sempre em Zabohrav! Novamente a risada invadiu o ambiente da câmara de pedras, Aran não poderia parecer mais realizado. – Pelo símbolo de seu anel de tungstênio, presumo que seja uma patética clériga da Ordem de Zewo… – O elfo fechou seu sorriso, proclamando as palavras com desdém. – Você realmente acreditou nestas histórias?! Nestes contos ridículos!? Zabohrav não é uma prisão para meu mestre, mas sim sua fortaleza! Ele nunca foi e NUNCA será derrotado. A única coisa que ele precisava era a extensão de seu conhecimento… E eu sou o que ele necessitava! – Chega de conversa! – Urrou Yzgart. Farta da enrolação, aproveitou o discurso do elfo da capa alva para investir contra ele. Com suas duas espadas em mãos, a orc jogou-se contra o homem. Não importava se este era apenas um andarilho insano ou realmente era culpado, Yzgart tinha apenas uma certeza: Ele era perigoso e deveria morrer. 151
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Estava próxima o suficiente para ver o brilho púrpura dos olhos de Aran quando sentiu um baque em seus ombros, derrubando-a imediatamente ao chão. Estava presa. Conseguiu erguer-se até apoiar seu cotovelo no frio solo, mas além disto, era impossível se mover. Uma escura teia espessa e resistente mantinha seus ombros no chão, agarrando também seus tornozelos. Aran permanecia ileso e imóvel. Apenas seu braço havia movido-se. Com a palma de sua mão aberta e esticada, as veias de seu braço, agora exposto por fora da capa, eram como pedras ásperas por debaixo de sua pele, pulsando uma coloração negra. A artéria de seu pulso havia aberto sua carne, saltando para fora. Um líquido negro e viscoso escorria lentamente de sua extremidade. Em um rápido pulsar, a artéria retraiu-se com força para o corpo de Aran, voltando ao normal. – Ezrath, rápido! – Gritou Nakryn, avançando em direção ao elfo. A bela humana balançou sua arma contra a teia que prendia um dos ombros de Yzgart, rasgando-a com as pontas de sua maça estrelada. Mantendo a força, prosseguiu a trajetória rumo ao elfo, contudo, quando sua clava estava para desferir um golpe certeiro, as veias dos pálidos braços saltaram novamente. Assim que o sangue negro jorrou em sua direção, transformou-se em algo semelhante a uma forte seda, colidindo com força contra seu corpo. Caiu ao chão, ao lado de Yzgart, mas sua maça já estava longe de seu alcance. Ezrath tomou distância das duas guerreiras na intenção de flanqueá-lo, mas quando puxava sua flecha para lançá-la, uma teia vinda do teto lhe acertou os pés, derrubando-a. Segurou firmemente seu arco ao que foi puxada até o centro da câmara, reunindo-se com as outras guerreiras. A teia que segurava Ezrath quebrou-se pelas garras de aço de uma grande aranha que se omitia nas sombras dos túneis superiores. Batendo suas quelíceras metálicas, reproduziu os estalos que tanto perturbavam-nas anteriormente. O eco que se quebrava no ar teve a resposta de toda a caverna. Logo, dezenas de milhares de aracnídeos de inúmeros tamanhos inundaram a câmara. A tocha de Nakryn permanecia iluminando o local de onde havia caído, revelando uma abertura de quatro metros no centro do teto, donde uma aranha colossal esgueirou-se. Esta era tão grande
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quanto um urso cinzento, as garras que irrompiam de suas quelíceras mais pareciam um par de lanças curvas do que propriamente presas. O barulho era constante e ameaçador. Era notável que as criaturas estavam famintas e desesperadas por sangue. Vindas de todas as direções, inúmeras teias foram lançadas, formando um grande emaranhado de fios de seda. Trançadas, possibilitaram as pequenas aranhas chegarem até as guerreiras. Por mais que se agitassem para se livrar das criaturas, a horda de aracnídeos era numerosa demais para ser morta daquela maneira. Era inevitável, seus corpos estavam sendo envolvidos em casulos.
-VIIAran Arakna fitou-as, gargalhando em êxtase. Alimentava-se do desespero que percebia na face das mulheres. Haviam se preparado para o “pior”, mas nada havia lhes preparado para isto. Não havia luz de salvação. Em verdade, a única luz que iluminava a sala continuava a ser a tocha de Nakryn, a qual estava caída ao seu lado, afastando as aranhas daquele pequeno espaço que tomava. – SILÊNCIO! – Gritou o elfo, estendendo suas palmas ao ar. No que suas palavras foram pronunciadas, todas as aranhas pararam de bater suas garras em uma perfeita sincronia. – Vocês, criaturas ordinárias e insignificantes… Sem dúvida, a sorte brilha e ilumina vocês. Preciso iniciar o ritual sem delongas e, como podem ver, eu já tenho o que preciso. – Apontou para o hexagrama e as cabeças empaladas na parede. – Mas… Penso que, saber a honra que terão de terem sido as primeiras vítimas abatidas no massacre de Aran Arakna, possa tranquilizá-las… A verdadeira vontade de Nakryn era segurar sua tocha e empalar a cabeça do elfo para poder vê-la queimar como uma vela, mas sabia que estavam em desvantagem. Precisava desse tempo para pensar em algum plano de fuga. – Diga-me, poderoso elfo, quem realmente é você? Sei que daqui apenas a morte nos espera, mas diga-me: Por que está fazendo isto! – HAH! Clérigos de Zewo, sempre curiosos. – Aran colocou a mão no queixo de Nakryn. – Farei-lhe um último favor e contar-lhe-ei uma pequena história enquanto meus filhotes trançam seu destino. Afinal… Não quero estragar este magnífico espetáculo!
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No que o elfo deu de costas para as guerreiras, tentaram se livrar das teias, mas nada podiam fazer. Yzgart conseguiu ficar de joelhos, mas as pequenas aranhas que circulavam seu corpo trabalhavam velozmente, formando teias resistentes ao redor de seus pés. Era como se alguém a segurasse firmemente pelos tornozelos. Ezrath sabia que se tentasse atirar uma flecha seria seu fim, o medo lhe tomava gradativamente ao longo que sentia as pequenas patas caminhando pelo seu corpo, envolvendo-a em sua tumba. – A tribo de Tavaall… Há quantos anos não ouvia este nome! – Disse Aran, tomado por uma fúnebre euforia. – Você sabe o que aconteceu com eles, não é, elfa? Você conhece a sensação assombrosa. Passamos pelo mesmo… Fomos caçados! – Alcançando sua mão para o alto, uma aranha do tamanho de uma cabeça humana caminhou para sua palma. – Quando os grandes Kauhuzas emergiram das trevas de Herathor, eles estavam centrados na procura por algo: Os segredos de Pazija. – Voltando seus olhos para Ezrath, analisou sua expressão, acariciando o pequeno aracnídeo. – Você sabe o que são os segredos de Pazija, minha doce ditze? Afinal… Vocês possuem uma, não é mesmo? – S-Sim… – Gaguejou. – Mas nunca lhe direi onde está! – HAH! MAS É CLARO! – Aran espremia em suas mãos o corpo da aranha, matando-a. Seu riso seco ecoou áspero como uma navalha. – E por que você nunca me dirá aonde está? Porque você não SABE aonde ela está! Seu próprio ancião não sabe! E o motivo?! Pois sua tribo era um mero peão! – Virou-se, jogando em frente a elfa a grande aranha morta. – Como se atreve a dizer isto?! Somos descendentes puros da linhagem ancestral élfica! – Sim, sim, minha querida… Não nego tal fato. Mas nunca se perguntou o motivo do por que vocês não podiam se unificar com as outras tribos Ma-Woo? Mesmo sendo caçados? – Aran notou que Ezrath estava surpresa e confusa. – Tão leal à sua própria linhagem, tão obediente… O seu ancião cumpriu bem com seu dever. Deixe-me lhe retirar de seu mundo de ignorância. – Passo por passo, aproximava-se de Ezrath. – No início dos tempos, Pazija revelou o Segredo aos elfos. Mas, convenhamos, se qualquer um soubesse disto, não seria difícil reunir os Segredos. Foi assim que, quem realmente tomou a decisão do que seria feito, foi o maldito Círculo dos Sete.
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– O que?! – Ezrath indagou, revolta. – Sim, minha jovem ditze. Os Segredos de Pazija nunca estiveram nas mãos de nenhuma tribo, e sim do conselho… Mas de fato, existiu algo que as tribos protegeram. – Abaixando-se, colocou a mão na face de Ezrath. – Elfos separaram-se em diversas tribos e blá-blá-blá! Você já sabe a história. O que não sabe, é que cada ancião deveria ensinar seu herdeiro a treinar sua tribo a pensar que eles eram os escolhidos! Assim o inimigo nunca saberia aonde realmente estariam as Zekats… As chaves que escondem o Segredo de Pazija! – Mas… – Interrompeu Nakryn – Se o segredo ficou por tantos séculos seguros desta forma, como poderia seu mestre ter descoberto sobre ele? – Veja bem, minha querida… – Sorridente, virou sua face para a humana, a qual já estava presa até a cintura. – Esta é a melhor parte, escute-me! – Aran mostrava-se empolgado com sua própria história. – A verdade é que… Eu era o sucessor dos verdadeiros Tavaall! – Você traiu toda a sua linhagem!? Pelo manto de Haotran, o que deu em você?! – Ezrath questionou indignada. – E o que mais você queria que eu fizesse?! Estávamos cercados, os Kauhuzas sabiam que os elfos de Tavaall eram uma das raças que escondiam a Zekat! – Uma das raças? – Repetiu a elfa dos olhos prateados. – Você quer dizer que… – Calada! – Seus olhos purpureados ardiam intensamente. – Interrompa minha história apenas quando eu permitir! Aonde eu estava mesmo? Ah, sim! – Limpando sua garganta, voltou para sua postura remansada, caminhando entre os aracnídeos. – Ao longo dos anos, assisti inúmeros de minha tribo nos abandonarem pelo conforto da cidade, pela luxúria do comodismo! Estávamos fracos… Havíamos fugido por tantas semanas… Não seriamos páreos sozinhos, morreríamos naquele lugar sem que nunca ninguém lembrasse do nome de nossa tribo! Como, de fato, jamais lembraram… Tentei convencer meu pai e os poucos que sobreviveram que deveríamos nos aliar aos Kauhuzas. Que Yamaluhan seria nosso protetor! Afinal, aonde estavam os deuses quando tanto precisávamos?! – Voltou a caminhar em direção ao hexagrama, enquanto várias aranhas o circulavam. – Entretanto… Disseram-me que morreriam como cordeiros se fosse necessário. O segredo não poderia cair nas mãos do inimigo… Eles iriam me
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torturar até retirar meu último suspiro de vida afim que lhes contasse aonde estava o segredo… Eu, o grande Aran Tavaall, pagando pela fraqueza de meu próprio povo?! Não… – O elfo cerrou seus punhos com força, as veias lentamente estouravam sua carne e sua pele. – Eu não sou o cordeiro que aguarda pacificamente o abate… EU SOU A ARANHA QUE DEVORA O INTERIOR DE SUAS PRESAS! Sangue negro jorrou pelos seus braços esticados, petrificandose instantaneamente e empalando inúmeras criaturas ao seu redor. Ao recuperar sua calma, o sangue tornou-se líquido mais uma vez, caindo junto às carcaças dos aracnídeos enquanto Nakryn o olhava enojada. – Foi assim que eu percebi quem era meu verdadeiro inimigo… E envenenando minha adaga com o veneno das aranhas da floresta, matei um… A um. – Você matou todos os elfos de sua tribo?! Você matou toda a sua família, seu puolí desgraçado! – Gritou Ezrath, tomada por lágrimas de ódio. – Não me olhe assim, minha querida. – Prosseguiu Aran. – Vejo nos seus olhos… Vejo uma sede por poder e por fama tão grande que consigo ver meu próprio reflexo. Se você estivesse em meu lugar, teria feito o mesmo… É uma pena que tenha de matá-la… – Aproximou-se ao ponto de quase encostar seus lábios no ouvido, sussurrando. – Pois sua alma me mostra a bela aliada que tornar-se-ia. – Você é um monstro! – Não! Eu sou um GÊNIO! – Desferiu um veloz tapa com as costas de suas mãos, cortando a face da elfa. – Talvez tenha sido cruel na visão de vocês… Matá-los envenenados… Mas, acreditem, eles morreram de forma muito melhor do que teriam morrido nas mãos dos Kauhuzas! Bem… Tirando a parte do veneno. Admito que foi algo dramático e doloroso demais. Mas eles morreram por um bem maior… – E qual seria este bem que você insiste em dizer? – Nakryn notava que Yzgart estava quieta demais. Possivelmente, estava tentando se concentrar em algo. – Não é óbvio?! Para que EU pudesse viver! – Um sorriso se escancarava em seu rosto. – Com este ato, chamei a atenção do grande general dos Kauhuzas, o qual me revelou ter contatos com o próprio Yamaluhan! Naquele momento, percebi que meu destino era maior do que qualquer outro elfo de Herathor… Naquele dia, Aran
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Tavaall morria e, assim, nasceu Aran Arakna, o primeiro Arauto da Asa Direita! Um sonoro e aliviado suspiro saiu de sua boca. Seu rosto tendia para o alto. Com seus olhos fechados, deleitava-se nos estalos de seus lacaios. – Espero que tenham gostado da história, garotinhas. Mas agora é hora de dormir! Nakryn precisava ganhar mais tempo. As aranhas estavam quase chegando em seus ombros e, se assim acontecesse, não poderiam fazer mais nada. – Você é um mentiroso! – Desafiou Nakryn. – Por que o general dos Kauhuzas deixaria um elfo vivo sendo que poderia apenas pegar o segredo para ele e dar um fim em você? – Tola e fraca humana… As Zekats só podem ser usadas por aquela raça que lhe foi destinada. Eu fui o único elfo que cedeu seus poderes em nome dos Kauhuzas! Eles precisavam de mim… – E demorou vinte anos para fazer algo? – Para uma clériga, você está sendo impertinentemente cética! – É um dom! – Sorriu, tentando mascarar seu medo. – Você acha que foi fácil encontrar este ritual?! Por vinte anos vaguei em segredo buscando os mais exóticos ingredientes. Até finalmente encontrar o ritual para ligar as duas ilhas uma vez mais! Apenas algo me faltava… A essência de Pazija… – A essência de Pazija? – Repetiu Nakryn, confusa sobre o que era aquilo. – Não culpo-lhe, humana. – Aran franziu sua testa. – Mesmo para minha brilhante mente, demorou para que eu pudesse entender que cada raça possui a essência de Pazija em si! O que eu precisava fazer era apenas decepar alguns indigentes que vinham esporadicamente colher os cogumelos da caverna. Uma presa de cada espécie… Após tanto esperar, um elfo local chegou acompanhado com um anão familiar. A vida não poderia ser mais irônica! Pois era a última peça que eu precisava para minha coleção! – Exclamou entusiasmado. Em suas mãos, formavam-se lanças de sangue com o líquido que saia de suas veias. – O elfo e o resto do anão deixei no topo para servir de alimento para meus filhotes. Mas então, algum andarilho maldito ateou fogo neles! – Suas mãos tremiam contendo sua fúria. O sangue sólido de suas lanças rachou-se.
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Nakryn desviou o olhar para o teto, disfarçadamente. A probabilidade de que ele mataria Yzgart naquele exato momento era grande. Fitando-as com desprezo, por mais que voltasse a parecer calmo, Aran Arakna virou-se para o símbolo profano na grande parede de pedra. A penumbra se tornava trevas ao que a tocha de Nakryn perdia o seu brilho.Era chegada a hora. – O meu plano era lhes matar agora, mas… – Inspirando profundamente, ergueu seus braços ao alto. – O que é a vida sem um pouco de caos? Presenciem com seus próprios olhos o DEUS do novo mundo! As aranhas seguiam seus movimentos, afastando-se rapidamente. O chão negro e vibrante se tornava mais uma vez no solo rochoso e cinzento. Um corredor de aranhas formou-se. O elfo das vestes brancas deslizava em direção do hexagrama. Retirando a longa e curva adaga que estava presa em sua cintura, cortou uma de suas mãos. O sangue escorreu, sujando a manga e o peito de sua veste. Levando suas mãos até sua boca, recitou palavras inaudíveis. O líquido enegrecido rastejou-se para fora de suas veias, uma energia sobrenatural o envolvia. Deslizando como serpentes, os rastros de sangue caminharam pelo seu braço, condensando-se em uma esfera ao redor de suas mãos. Após englobá-la completamente, Aran esticou-a contra o hexagrama, gritando: – DUMAT AO AKIN, HERRA AF KARIM! Por mais que Nakryn soubesse que o elfo estava falando em um idioma que nunca ouvira antes, conseguiu entender cada palavra que saía de sua boca. Ou seria tudo aquilo impressão? A frase “Venha até mim, Lorde das Trevas” rasgava sua mente, fazendo-a tremer e ofegar em desespero. O chão começou a tremer. Mesmo as aranhas se afastaram de Aran Arakna, tentando manter uma distância segura do hexagrama, o qual brilhava intensamente em uma luz branca e intensa, iluminando toda a câmara. A luz velozmente se esvaiu em um forte vermelho, invadindo o cenário em uma cor de sangue recém-derramado. Uma onda de energia espectral negra percorria entre os crânios empalados do símbolo profano. Por dentre os olhos de cada uma das vítimas do
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ritual, uma fumaça roxa vaporizava ao ar. E então, um vulto níveo tomou forma, emergindo da parede da caverna e inundando a sala de pedras com a mórbida sensação de terror. Toda a esperança sufocava-se naquele instante, pois, diante as três guerreiras, erguia-se a sombra de Yamaluhan. Apenas a silhueta da caveira de Yamaluhan era visível, mas esta ocupava quase todo o espaço do lugar. Seu tamanho real era inimaginável. A sombra mostrava claramente um par de grandes chifres, os quais curvavam-se para trás, em direção ao seu pescoço. Seus olhos roxos e profundos transpareciam um desejo de ódio e destruição, era impossível não encará-los e, quanto mais se olhasse, mais miserável a pessoa sentia-se. Entretanto, o colossal dragão Yamaluhan aparentava ignorar a presença das três mulheres. Talvez não pudesse enxergá-las, ou simplesmente achasse que fossem inúteis. Seus olhos roxos se mantinham fixos apenas no arauto. – Mestre! Sou eu, Aran Arakna, seu fiel e mais leal Kmet! – Aran ajoelhava-se ao chão. Ainda usava o idioma que apenas Nakryn reconhecia. – Como vão os preparativos para a malak invasão, Kmet Arakna? – A voz obscura e tenebrosa de Yamaluhan ecoava pela caverna, fazendo-a tremer. – NÃO MUITO BEM, SENHOR! – Gritou Nakryn, pulando de um lado para o outro para se livrar do casulo. – CALADA! – Gritou o elfo do manto ensanguentado para a clériga audaciosa. – Perdoe-me mestre. Mas não ahygg… A invasão à Nadati começará hoje mesmo. Iniciarei o ritual e o lakzar abrir-se-á conforme o senhor karani! Por mais que não entendesse completamente a linguagem que falavam, havia sido o suficiente para que a conversa lhe fizesse branquejar. Uma invasão à Nadati de criaturas vindas da Ilha dos Pesadelos? Todos morreriam, nem mesmo mestre Owan poderia evitar uma tragédia deste nível. Não sem preparo… O mesmo desespero que sentiu em Sumahkot há vinte anos voltava a afligir-lhe. Não poderia permitir que isto acontecesse com sua cidade… Não agora que ela poderia lutar! Mas por mais que tentasse, não conseguia se livrar do maldito casulo. Sua armadura era rígida e pesada demais para facilitar seus movimentos, a seda a
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enrolava tão firme que mal podia sentir seus dedos. Teria de assistir todos morrerem? Novamente…? – A tropa está pronta para adentrar o lakzar… Lembre-se Kmet, ninguém deve sobreviver! Tais repugnâncias ousaram pensar que eu, Yamaluhan, verdadeiro DEUS de Taros, estaria derrotado?! Do caos Herathor nasceu e em caos perecerá. A ilusão da proteção apenas enfraqueceu suas defesas e, agora que a discórdia foi semeada, não haverá redenção diante minha cólera! – Todos sucumbirão à sua glória, guomay af Draak! – Estarei lhe sjaark com interesse, Aran Arakna, não falhe ak chamado! – A sombra de Yamaluhan lentamente se dissipou no ar como uma névoa espessa. Por mais que o luzente semblante do deus da destruição tivesse desaparecido, o terror ainda pairava. Desde o aprisionamento de Yerum, ninguém jamais havia visto a face de Yamaluhan… Ninguém havia sentido o horror que aquelas três mulheres estavam sentindo. O portal ardia em um roxo fluorescente, agitando-se intensamente. Pequenos raios cruzavam seu centro em uma espiral rubra, a qual lentamente tomava toda a sua extensão. O barulho de rugidos e guinchos ecoavam de seu interior, invadindo a caverna impregnada por aranhas. – Nem pense em tocar em Nadati, seu protótipo de roedor! – Nakryn debatia-se em fúria. – Fascinante! – O elfo soltou um sorriso macabro em sua face. – Não só uma clériga de Zewo, mas também uma poliglota! Vocês humanos acabam sempre por impressionar-me… Mas chega de conversa. Cansei-me de vocês. Tenho uma cidade para dizimar e um continente para subjugar! O manto níveo que vestia se agitava violentamente como se criasse vida própria, rasgando-se ao meio. Por debaixo de suas vestes, seu corpo era deforme e necrótico. Feridas e tumores envolviam sua carne, a qual borbulhava em um negro avermelhado sobre seus irreconhecíveis músculos devido a mutação. – Agradeço pela grandiosa atenção, minha pequena criaturinha. Ao menos me rendeu um bom entretenimento enquanto preparava minhas energias! O dorso do Kmet inchou velozmente, inflando de maneira irregular e desproporcional. O fecho vermelho de seu manto voou pelo ar. Sua capa se fundia com seu corpo.
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O elfo soltou um grandioso urro de dor em meio a uma risada abafada e maníaca. Seus músculos se expandiam e sua altura aumentava. Patas gigantescas de aranhas se formavam do dorso de Aran Arakna. Sua pele tornou-se um roxo sombrio. No lugar de suas mãos e seus pés, duas garras negras e maciças surgiam de seu sangue. Seu corpo era agora o triplo de seu tamanho original. Seus olhos púrpuras arregalaram-se, saltando para fora de sua cavidade óssea. Oito pequenos olhos surgiram ao longo de seu novo crânio, o qual se transmutou em uma cabeça de aranha. Cada uma de suas quatro quelíceras dilataram-se, saltando garras afiadas de aço puro. O elfo estava irreconhecível, a mutação finalmente estava completa. Aran ergueu-se em suas oito patas, alto e onipotente. – EU SOU ARAN DE ARAKNA! O ARAUTO DA DESTRUIÇÃO! O PODEROSO KMET DE YAMALUHAN! – Sua voz rasgava o ar como garras penetrando em carne fresca. Seu timbre soava como se três criaturas urrassem simultaneamente dentro de si. – CONTEMPLEM A FORMA QUE MEU PATRIARCA CONCEBEU-ME! TEMAM! Pois hoje, o massacre de Nadati iniciará a nova era! Ezrath, Yzgart e Nakryn observavam horrorizadas a criatura que permanecia à frente. Estavam cercadas, se o Kmet não as matasse, os filhotes assim fariam. Não havia o que fazer, não havia para onde correr, a morte era o único destino. – Clériga de Zewo! – A voz lhe feria como estalactites transpondo sua alma. – Sinta a fúria de Yamaluhan e aceite-o como seu novo deus! Aran Arakna segurou a pequena humana pelo torso, arrancando-a de seu casulo em um único puxão. Nakryn sentiu a pressão entre seus braços quase a quebrar ao meio. O Kmet a ergueu até quase encostar nas aranhas que estalavam suas garras no teto, batendo suas bocas em uma fome desesperadora. Seguindo para suas garras opacas e afiadas, onde o veneno vermelho escorria como sangue fresco, uma energia sinistra se formava no outro braço do monstro. – A Ilha dos Pesadelos mandou lembranças! – Sua alta e forte gargalhada trovejou pelo salão. Quebrando a tensão, um grito invadiu a câmara em um eco rígido e estrondoso. Não era o grito de Nakryn. Mas sim um grito forte e rouco. E este, não transpunha desespero…
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Antes que o Kmet pudesse reagir, um vulto vindo do grande túnel central da câmara caiu em alta velocidade em cima das costas da horrível criatura. Berrando pela dor, Aran arremessou Nakryn ao ar, girando seu corpo para tentar jogar ao chão quem quer que estivesse ferindo-lhe. Em suas costas, uma enorme foice negra estava cravada. E a segurando firmemente, um anão de longo cabelo branco e barba trançada. Suas íris cinzas eram tão claras que quase se misturavam com o branco de seus olhos. Seu corpulento nariz adunco e sua testa enrugada apenas enfatizavam um aspecto honroso e sério. Observando rapidamente ao redor da sala, avistou a tocha ao chão. Um sorriso rasgou suas fortes feições. – Você! Humana! – Gritou a voz grave. – Dê-me esta tocha, agora! Nakryn não pensou duas vezes e, antes que as aranhas avançassem contra ela, correu até a tocha, lançando-a para o anão da armadura reluzente. – Yzgart, agora! – Gritou. A orc cinzenta rugiu, usando toda a sua força para rasgar as ligações dos fios que prendiam-lhe. Agarrando suas espadas do chão. Brandiu-as com fúria, desferindo um corte preciso contra o casulo de Ezrath. Assim que liberta, os assovios das flechas tomaram seguiram os guinchos dos aracnídeos. A tocha chegava às mãos do anão da foice negra. Em um movimento tão destro quanto um malit, impulsionou-se para cima da cabeça do Kmet. E em um soco impetuoso, atingiu a cabeça de Arakna, atordoando-o. Retirando o grande pergaminho que estava preso em suas costas, abriu-o em um único balançar, recitando as palavras desconhecidas que nele estavam inscritas. Os símbolos e letras em uma grafia rasgada incandesciam ao longo que o anão proclamava suas palavras. As aranhas jogavam-se contra ele, mas as guerreiras o defendiam como podiam. Flechas, magias e cadáveres de aranha eram projetados no ar. Contudo, a gigantesca aranha descia pela parede e Aran estava para retomar sua consciência. Faltava pouco tempo. Ainda se equilibrando no crânio do Kmet, o anão atravessou o pergaminho com a tocha. Ao que as chamas tomaram o delicado papel, uma luz intensa nasceu.
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A chama espalhou-se velozmente, explodindo em um brilho ofuscante ao formar uma esfera de fogo. O círculo queimava tão vigorosamente que iluminou até mesmo o interior dos pequenos túneis. As criaturas que tentaram avançar contra a grande barreira se incineraram no mesmo momento. Apenas as aranhas que estavam próximas de Arakna, no interior da esfera, continuavam a atacar as guerreiras que rodeavam-no. O anão estendeu sua mão aberta, fazendo um simples gesto com seus dedos. A foice, ainda incrustada nas costas do monstruoso Kmet, respondeu seu chamado. Soltando-se da carne necrótica, voltou para as mãos de seu dono. Erguendo-a para o alto, o bravo anão urrou: – Hel Eldur! No pronunciar das palavras, a esfera de fogo explodiu. A explosão se espalhou por toda a caverna em uma velocidade extraordinária. Os furos comprimiram as chamas, intensificando-as. O estouro da combustão durou apenas alguns segundos, mas quando o forte clarão desapareceu, todas as aranhas ao redor também haviam desaparecido em cinzas. O calor intenso chegou a queimar um pouco da pele de Yzgart e Ezrath, entretanto, as pequenas aranhas que arrastavam-se por dentro da esfera de fogo não resistiram ao calor, falecendo. A explosão também destruiu algumas das patas do grande Kmet, o qual desequilibrou-se e caiu ao chão. O anão segurou-se, sentindo o impacto da grande criatura. Saltou ao chão, fitando as aventureiras. Sua postura já assumia o combate ao que sua fala soou rápida e seca: – Ou vocês fogem, ou vocês lutam, façam sua escolha! – Lutaremos ao seu lado! – respondeu Nakryn, sem hesitar, recuperando sua maça agora avermelhada. – Ezrath, Yzgart, vamos! Ouvindo o assovio do vento, o guerreiro virou-se, empunhando firmemente sua foice. As garras de Aran tentavam incansavelmente acertar-lhe. Contudo, rajadas de flechas alvejaram seu braço. Seus braços se ergueram para se proteger das setas, distraindo-o tempo o suficiente para que Nakryn investisse. Em um salto, direcionou seu peso e sua força em seu broquel, concentrando o impacto e o empurrando para trás. Assim que o corpo de Arakna recuou, a valente clériga fixou firmemente seus pés no chão, erguendo seu broquel sobre seu ombro.
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Yzgart avançou em direção à humana, pulando em seu escudo. Assim que seus pés tocaram a madeira seca e resistente, Nakryn impulsionou-a contra o Kmet. A grande orc cinzenta girou seu corpo por cima do monstro, estendendo as lâminas de suas espadas e pregando-as nos tumores de suas costas. Mantendo as espadas presas, segurou-se com seus pés na coluna da criatura. Com sua carcaça e carne rasgadas, tentou reagir pela dor procurando retirar Yzgart de suas costas. Mas, ao erguer seus braços, sentiu algo penetrar sua alma. A ensanguentada lâmina da foice do anão estava cravada em sua caixa torácica. Uma poderosa energia negra emanava de sua arma, fazendo com que sombras a envolvessem como uma névoa. Ao sentir o impacto, Yzgart forçou todo o seu peso para baixo, rasgando inteiramente seu dorso. O guerreiro da barba branca olhou terminantemente nos vários olhos esbugalhados de Arakna e, sussurrando algo para ele, abriu ao meio o seu peito e o abdome. – Não… Não pode ser… Eu sou Aran… Aran Arakna! – Caiu de joelhos. Sua voz rouca e trêmula soava fraca. Sangue escorria pela sua boca. – O último Tavaall de Miyamiran, o Arauto da Morte de Yamaluhan! Como… Como?! O quê... O que você fez?! Passos pesados ecoaram no corredor. O som do atrito entre aço e pedra se arrastava no ar. Nakryn segurava ferozmente sua maça, correndo em direção ao Kmet. – NADATI MANDOU LEMBRANÇAS, FILHO DA PUTA! – Usando toda a força que lhe restava em seus braços, ergueu sua maça estrelada até o céu. O impulso e força que ganhara pela corrida foi o suficiente para destruir o crânio de Aran Arakna. Sua caveira grotesca separou-se de seu corpo. A maça de Nakryn escorregou de suas mãos, girando ao ar. À frente do portal que fechava-se, a cabeça do elfo assassino se juntava as suas vítimas e, ao seu lado, a maça da clériga de Zewo aterrissava.
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-VIIIAntes que qualquer demônio tocasse Herathor, o portal profano selou-se. O silêncio aterrorizante se tornou em paz. Nadati estava a salvo, assim como elas. Todos tomaram um momento para respirar, mas uma movimentação brusca logo voltou a perturbá-los. O corpo do Kmet tremia e contorcia-se. Nakryn tinha certeza de que ele estava morto, afinal, ele estava sem a droga de sua cabeça! Mas seu corpo debatia-se como se algo ainda estivesse vivo. Seus músculos desinchavam, uma fumaça roxa exalava de seu corpo deformado, sua aparência retornava a uma forma élfica. Um cheiro forte de carniça invadiu o ar. Tudo o que restava do corpo do Kmet era seu esqueleto encoberto pela sua capa, a qual, estranhamente, não apresentava rasgos ou macha alguma. – Finalmente… Acabou… – Yzgart limpava suas lâminas. – Eu juro que se tivesse que escutar mais dois minutos deste otário eu morderia minha língua para poder morrer por hemorragia! – Disse a pequena clériga. Nakryn estava a recompor-se. Não sabia ao certo quanto tempo havia se passado desde que entraram na caverna, mas pareciam dias pela agonia que passaram. Voltando seu rosto para procurar o anão que ajudara-lhes, avistou-o parado em frente ao hexagrama, analisando-o. – Muito obrigada, senhor! – Disse carinhosamente, abrindo um belo sorriso em sua face. – Duvido muito que teríamos sobrevivido sem sua ajuda. – Não necessita agradecer, bela senhorita. – Sem virar-se, mantinha seu olhar fixo aos estranhos símbolos da parede. – Mas, perdoe-me a curiosidade… Quem são vocês? O que diabos exatamente estavam fazendo aqui? – Esta orc amigável chama-se Yzgart, e a elfa é Ezrath Ma-Woo. Meu nome é Nakryn Bahlandur, sou uma clériga da Ordem de Zewo de Nadati. Viemos investigar o que havia levado ao desaparecimento de algumas pessoas, entre eles, um grande amigo meu. Precisávamos trazer justiça… – Fitou o que sobrou do crânio de Aran Arakna. – E assim fizemos. – Entendo… Então estamos aqui por um mesmo motivo… – Disse o homem, esticando seu braço até a cabeça empalada do anão moreno. 165
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Nakryn notou que as feições em seus rostos eram parecidas. Contudo, o anão da barba branca possuía uma expressão tranquilizadora e compassiva, enquanto o outro, possuía traços intimidadores e irritadiços. Por mais que não possuíssem a mesma tonalidade de cor no cabelo, a humana não tinha dúvidas, aquele era seu irmão. – Irmão teimoso? – Perguntou ao anão, andando em sua direção. – Hah! – O guerreiro deu uma risada seca, mas, ao mesmo tempo, calorosa. – Você não imagina o quanto… Seria capaz de montar um dragão com os próprios dentes se eu lhe dissesse que não seria possível. Uma vez apostei com Ultred que seria mais fácil convencer um troll a se vestir de bardo do que Nex usar uma armadura mais resistente… E não só venci a aposta, como também ensinei o troll a dançar. – O anão abriu um sorriso condolente. – Mas, um ótimo indivíduo. Sempre vagando por aí ajudando a todos que precisavam… A propósito, perdoe-me novamente, jovem donzela, meu nome é Lethnox… Lethnox Keturak. – Muito prazer, Lethnox! Mas, curiosidade a parte, como nos encontrou? Como sabia que seu irmão estaria aqui? – Honestamente? Não é muito difícil encontrar este idiota. Eu estava seguindo seu rastro há alguns dias, descobri que havia ajudado um grupo de aventureiros a matar um troll em uma fazenda a oeste daqui. Perguntei-os se sabiam para onde havia ido, eles apenas me responderam que ele estava procurando por assuntos não resolvidos. Sem dúvida foi encher a cara na cidade mais próxima, buscando informações junto à uma boa bebida. Após isto, apenas tive de perguntar. Descobri sobre a morte do proprietário da taverna e que vocês haviam partido para descobrir o que aconteceu. E, em principal, descobri que Nex havia partido com o proprietário, mas não havia retornado. Sabia que algo estava errado. Com todo o respeito, senhorita… Se Nex não pode resolver, significa que vocês não conseguiriam sozinhas. – Lethnox olhava ao redor do crânio de seu irmão, como se buscasse por algo. – Eu tinha certeza de que havia acontecido algo com ele, pude… Sentir. – Mas, como chegou tão rápido? Digo… Não que eu esteja insinuando que você tem pernas pequenas… Mas você tem pernas pequenas. – Hah! – Riu. – Foi apenas questão de… Sorte. – Coçou sua barba, sua expressão calma estava agitando-se. – Modo ou outro,
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pude ouvir muito do que esta criatura demoníaca disse… Vocês deram sorte de que ele falava mais do que agia. Se fosse qualquer outro, teria matado-as na primeira oportunidade. – Observando o quanto a jovem mulher, a qual era um pouco mais alta que ele, estava ferida, fitou-a com ternura. – Mas não lhes tiro o mérito. Batalharam valentemente. Há anos não via um grupo reagir tão bem a uma situação! E o que você e a orc fizeram com o escudo… Lembra-me muito de minha época batalhando ao lado de Nex. Lethnox agarrou o crânio de seu irmão pelo cabelo, retirando-o da estaca de pedra que o prendia. Sangue ainda pingava pelo chão, o cheiro que a cabeça exalava era pútrido, chegava mesmo a dar náuseas. Mas, mesmo assim, o anão da barba branca encarou os olhos sem vida de Nex, murmurando: – E o que farei agora com você, seu tolo? – Sua frustração era evidente em seu olhar. Sua cabeça girava em todas as direções, procurando por algo. Em um tom de preocupação, prosseguiu. – O corpo… Pela barba de Bawahim, aonde está o corpo?! – Carbonizado. – Disse Yzgart, a qual revistava os buracos pelas paredes para garantir que nenhuma outra criatura houvesse sobrevivido. – Se o seu irmão era o anão que o Kmet mencionou, seu corpo estava na entrada da caverna. E fui eu quem ateou fogo neles para matar as criaturas que aqui habitavam. – Você o QUÊ?! – Os olhos de Lethnox arregalaram-se desesperados para Yzgart e então para seu irmão, repetindo o movimento enquanto processava a situação. – Você… Você quer dizer que o corpo está destruído?! – Se “em cinzas” você quer dizer destruído, sim. – NÃO! Não… Nex… Seu ignorante, eu lhe avisei para não partir sozinho! – A face tranquila de Lethnox foi tomada por preocupação e ansiedade. – Maldição… Não posso perder tempo! Lethnox retirou um saco de couro e jogou alguns mantimentos ao chão, colocando a cabeça de seu irmão no lugar. Sacando novamente sua foice, andou rapidamente até a saída desmoronada da caverna. – Hey! Aonde você vai?! – Perguntou Nakryn, confusa. – Nem pude lhe recompensar por ter nos salvado! – Stayatello! A cidade dos anões… – Lethnox parou repentinamente, como se algo estivesse lhe perturbando a mente. Fechou seus olhos respirando fundo. Virou-se novamente para a
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clériga, fitando seus olhos amarelos. – Nos encontraremos novamente, Nakryn Bahlandur, clériga de Zewo. Sinto que Xícenum não teria me provido este encontro apenas ao acaso… Até lá, sobreviva! Herathor não é mais um lugar seguro… Há dias sombrios se rastejando no horizonte.
-IX-
– O que você acha que ele quis dizer com isto? – Perguntou Yzgart, a qual ainda verificava as entradas da caverna com sua espada. O eco dos passos da armadura pesada do anão desapareciam. – Eu não sei ao certo… Mas ele parecia triste. Espero que ainda o encontremos. Talvez possamos ajudá-lo. – Humana, devo admitir, lutou muito bem… Foi uma ótima estratégia distraí-lo. Eu estava tendo dificuldades para conseguir me posicionar decentemente. Você ganhou tempo o suficiente para mim… E lamento não ter lhe ajudado quando a criatura lhe agarrou. Estas coisas parecem fracas, mas não são. – Eu não sei se fico mais impressionada pelo fato de você ter me elogiado ou de ter falado mais do que duas frases comigo. Ainda assim, estou pasma! – Brincou, logo abrindo um grande e belo sorriso em seu rosto. – Mas estou feliz por você estar aqui, Yzgart. Penso que não teríamos conseguido sem você. Mas, por favor, na próxima vez, não tente se jogar em cima do inimigo logo de cara! – Riu carinhosamente. Yzgart entreabriu o que seria um projeto de sorriso, mas foi o suficiente para que Nakryn pudesse se sentir confortável. Se havia uma pessoa no mundo que ela pensou que nunca faria rir, seria Yzgart. – Espera… Cadê a Ezrath? A bela elfa havia ficado tão quieta que Nakryn esqueceu de sua presença. Restos de aracnídeos ainda ardiam em chamas, iluminando a sala ao redor. Ainda assim, Nakryn não conseguia avistá-la. – Yzgart, você não viu a Ezrath? Ela não estava com você? – Preocupo-me mais com os buracos da caverna do que uma elfa individualista. – Embainhava suas espadas. – Se dermos sorte, foi fazer algo de útil e procurar mais cogumelos. – EZRATH! – Gritou Nakryn – Aonde está você, menina?! A doce voz de Nakryn espalhou-se pela caverna, propagando-se pelos diversos túneis que a compunha. No que seu eco retornava, ouviu alguns passos vindos dos escombros.
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– Estou bem, pare de berrar. Apenas fui procurar alguns cogumelos, mas nada achei… O que restou estava carbonizado. – A esguia e alta elfa jogou seus longos cabelos brancos para trás, observando o local. – Vamos sair daqui, não há mais nada que possamos fazer. – Certo… Penso que tenha razão. Não há nada que resta a fazer por estas pobres criaturas. – Nakryn olhava com pesar para as vítimas de Arakna. – Pedirei para mestre Owan mandar um grupo selar e purificar a caverna… Este solo profano já provou sangue demais… Vamos, Yzgart! Nakryn acendeu uma nova tocha no fogo que ardia na carcaça da gigantesca aranha. “Ao menos para isto ela serviu.”, a garota pensou, “Até mesmo as pequenininhas foram mais úteis do que este monstrengo.” Nakryn era uma criatura insensível. Retirando-se do salão, a clériga fez um sinal com para que seguissem-na, subindo apressadamente. Yzgart estava para passar por Ezrath quando a empurrou contra a parede, encarando-a. – O que foi?! – Perguntou Ezrath – Quer matar mais elfos?! – Não sabia que elfos enxergavam no escuro. – Yzgart franziu sua testa, encarando Ezrath. – Estranho alguém procurar por ingredientes em uma caverna sem ao menos uma tocha para auxiliar! – Não precisei de tocha alguma! Há criaturas pegando fogo por toda a caverna, oh sábia orc! – A elfa dos reluzentes olhos prateados a encarou com desdém. – Agora, tire suas mãos imundas de mim e continue andando! Este lugar já está me dando náuseas. Não preciso de suas teorias conspiratórias para piorar minha situação! – Não gosto de você, elfa! – A grande orc retrucou. Bufando, retirou a mão de seu peito. – E principalmente, não confio em você! Não se atreva nem a pensar em nos trair… Você não quer imaginar o que acontecerá caso assim o faça… – Shoosh! – Ezrath exclamou, irritada, fazendo sinais com suas mãos para que a orc se retirasse de sua frente. Yzgart voltou a acompanhar a clériga, a qual seguia desatenta à conversa das duas mulheres. Ezrath limpou sua roupa com suas mãos, arrumando-se elegantemente. A luz de Nakryn seguia acima do corredor iluminando o local onde passava, mas quanto mais ascendia, mais afastava-se de Ezrath.
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Parte de sua face escondia-se no negrume das sombras, já sua outra metade ainda era visível, iluminada pelas carcaças das criaturas que ardiam em chamas altas no que agora era a tumba de Aran Arakna. O Arauto da Morte se encontrava estendido no mesmo local em que havia sido morto, mas a capa nívea que envolvia seu corpo não estava mais lá, deixando a mostra todo o seu esqueleto. No canto da boca de Ezrath um pequeno sorriso se formava enquanto a escuridão ao seu redor consumia seu corpo por completo.
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O Legado Malit
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N
akryn se dividia em seus sentimentos. Por um lado estava feliz. Havia impedido a obliteração de Nadati, sobrevivendo ao confronto contra um dos emissários de Yamaluhan. Por outro, uma angustia sufocava-lhe. Se Aran Arakna passou tantos anos planejando seu plano maestral, certamente não seria a única peça do Deus Níveo. Herathor corria um grande perigo… Um breve medo lhe abatia a mente: Seria capaz de proteger a todos quando o mundo começasse a desabar? Balançou sua cabeça, dando pequenos tapas em sua testa. Não podia pensar desta forma. Deveria, sim, descobrir por onde poderia começar. Era a única forma de se preparar para o desconhecido. A única maneira de proteger aqueles que ela tanto amava. – É uma pena não termos conseguido todos os cogumelos. – Disse Ezrath. – E acho que isto será um problema para sua cidade, não é, humana? – Isto é verdade… Provavelmente, tudo foi perdido por causa do fogo. Demorará até que algo nasça na caverna. Até lá, os gnomos terão de encontrar outra fonte… Ou logo algumas pessoas terão de ser sacrificadas.
-IIFinalmente chegaram na primeira cratera onde, antes, haviam deixado a corda pendurada. Todavia, esta estava queimada, não poderiam subir por ali. – Alguém terá de escalar. – disse Yzgart.
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– Eu posso subir, mas precisarei de ajuda. – respondeu Ezrath. – Espere, antes de irmos… O que será que tem ali? – Nakryn apontou para a ala norte. – Não passamos por lá, será que haveria uma chance de ter ao menos alguns cogumelos? – Acho difícil, humana, mas podemos verificar. – A elfa replicou. – Se Haotran estiver observando nossos passos, talvez sejamos recompensados.
-IIIComo Yzgart mencionara anteriormente, o corredor bifurcava-se no final da ala norte. O caminho da direita não passava de um beco iluminado pelas chamas de algumas criaturas mortas. O outro lado, porém, era um corredor estreito, o qual se afunilava ao longo dos metros. Contudo, era perceptível que ao final das apertadas paredes havia uma pequena câmara. – Talvez aqui! – Disse esperançosa Nakryn. A bela elfa analisou o pequeno espaço à sua frente. Seria um pouco difícil, mas talvez conseguisse passar. E se encontrasse alguma coisa de maior valor, seria apenas seu. – Deixe que eu mesma vejo. – Pegou a tocha que Nakryn estendia-lhe, abrindo um pequeno sorriso sarcástico. – Afinal, de nós três, eu sou a mais esguia para isto. Ezrath esticou seu braço, deixando a tocha à frente de seu corpo. O corredor deveria ter no máximo seis metros, mas afunilava-se rapidamente. Tanto que, ao chegar na metade da passagem, apoiou-se junto a uma das paredes, esgueirando-se mais e mais para poder prosseguir. Soltou todo o ar de seus pulmões para diminuir o espaço que tomava, pressionando-se contra a parede. Sentia o áspero das rochas ferindo sua pele macia, uma claustrofobia momentânea lhe afligindo a mente. Todavia, foi apenas um instante angustiante para que conseguisse passar para o outro lado. Por Haotran! Agradecia por não ter os peitos da orc. A esbelta elfa limpou suas roupas rapidamente, livrando-se da poeira que ficou em suas vestimentas de couro. Ao voltar sua visão para a câmara, notou que esta era menor do que imaginava. Deveria
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ter, no máximo, três metros quadrados. Até mesmo sua cabeça quase encostava no teto. De bruços no chão, um corpo murcho e decapitado repousava em posição fetal. Haviam marcas de queimadura recentes em seu exterior devido, seu traje estava em chamas. Em pouco tempo, seu cadáver seria consumido pelas chamas. A princípio, Ezrath pensou se tratar de uma criança, mas lembrou-se que as únicas criaturas decapitadas foram utilizadas no ritual de Arakna. Possivelmente… Um malit? Aparentava estar há, pelo menos, algumas semanas no local. As aranhas devem ter devorado todo o seu interior. Ezrath aproximou-se da desafortunada criatura e, usando a ponta de seu punhal, revirou o corpo, o qual facilmente caiu para a esquerda. – Ezrath? Está tudo bem? – A doce voz de Nakryn ecoou pelo corredor de pedra. – Sim, claro… Já estou retornando. A elfa dos olhos prateados abaixou-se para analisar melhor o infeliz indigente. Seus braços descarnados estavam cruzados. Morreu tentando esconder algo dentre suas vestes. No momento, pode até ter enganado seu assassino, mas agora que as chamas se espalhavam, era notório que algo ali estava. Aproveitando que seu peito ainda não queimava, Ezrath apoiou sua mão contra o tórax do malit. Segurando seu punhal, forçou os pequeninos braços até que estes se partissem. Não foi difícil, levando em conta que já estavam secos e duros. Em seus braços quebrados, revelava-se uma bolsa de couro. Ezrath pensava consigo: “Um material não inflamável, ora, minha sorte”. Puxando-a, retirou a bolsa do pequeno malit, levando-a para longe das chamas. Após verificar rapidamente se não havia nenhuma surpresa desagradável, abriu-a para ver o que poderia aproveitar. Para a sua surpresa, a bolsa não continha nada de valor, mas, ao mesmo, continha exatamente o que procuravam. Doze cogumelos do eco de diversos tamanhos estavam agrupados. Não satisfeita, ajoelhou-se e retirou um por um dos cogumelos. Por Haotran! Aquela criatura era um malit! E se havia algum tipo de criatura que pudesse esconder objetos de valor de forma imperceptível, seriam eles.
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Após retirar mais de meia dúzia dos cogumelos, achou uma pequena fissura na parte inferior da bolsa. Um fundo falso! Usando novamente sua faca, rasgou-o, revelando dois objetos. Uma carta escrita a sangue e um amuleto de rocha. Mas não era uma rocha comum, aparentava ser extremamente resistente, seria isto uma rocha matriz? Havia também um símbolo distinto talhado em seu exterior: Uma rosa-dos-ventos composta de punhais, mas no lugar de cada ponto cardeal havia um símbolo desconhecido. No verso do medalhão, uma escrita que Ezrath não podia compreender, talvez o idioma malit… – Ezrath? Você ainda está viva? – Perguntou novamente Nakryn. – Estou indo! Achei algo útil aqui, apenas estou reunindo os itens. – Apressadamente, colocava o medalhão em seu pescoço, escondendo-o por dentro de sua blusa. Todavia, não podia esconder sua curiosidade… O que estava escrito na carta? Usou a chama do cadáver do malit para conseguir identificar o que estava escrito, logo surpreendendo-se, pois estava justamente na linguagem comum. Em sangue, as palavras corridas e tortas marcavam a página rasgada, provavelmente retirada de algum livro que carregava consigo. Estas são minhas últimas palavras. Provavelmente não chegarão nas mãos de qualquer pessoa tão cedo, mas é minha última companhia em meus últimos momentos. Vim à procura de alguns cogumelos para alguns lunáticos de Nadati. Ofereceram-me uma grande quantia em ouro por esta “simples” missão… Não encontrei nada simples neste inferno, apenas aranhas com comportamento estranho. Nunca vi nada parecido em minha vida, é como se estivessem organizadas! Mas isto seria loucura demais… Nada mais me parece certo. Após juntar os cogumelos, tentei encontrar a saída, mas fui atacado por vários destes demônios! Talvez, se eu comer um dos cogumelos, alivie a minha dor… Ou talvez apenas termine de me matar… Modo ou outro, não há como eu sair vivo daqui. O que realmente importa agora é meu testamento. Para a pessoa que encontrar meu cadáver, não há como negá-lo qualquer coisa que antes pertencia-me… Afinal, não terá utilidade alguma para onde vou. Pegue o que quiser, apenas peço algo em
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troca: Se algum dia viajar para Lumaban, entregue o amuleto para minha irmã, Sybel Bryselw, diga que Narden, seu irmão, arrepende-se por ter roubado tal objeto que tanto prezava proteger… Foi um impulso, um erro, não sei o que me deu na cabeça. Mas aquele homem… Suas palavras eram tão convincentes… Por mais que eu soubesse que ele proferia falácias, minha alma acreditou… Diga a Sybel que a esperarei ao lado de nossos ancestrais… O legado não perecerá! Escuto passos… Alguma coisa está se aproximando… Chegou a hora de morrer. Ezrath terminava as palavras sentindo um frio em seu pescoço. Era claro que Aran Arakna havia o encontrado naquele lugar. Provavelmente mandou suas aranhas para decapitá-lo, pois, se tivesse matado-o pessoalmente, encontraria o amuleto, assim como ela encontrou-o. Olhou para a pobre figura estendida ao chão. Decapitado, seu interior devorado e feridas marcando toda a sua carne, a qual queimava pelas chamas que consumiam-no. De todos os destinos que poderia esperar para uma morte dolorosa, não poderia imaginar tal cena em sua lista. Ele havia vivido em culpa, arrependendo-se apenas antes de falecer. Seu último pedido estava escrito naquela folha de papel… Pobre miserável. Mas ele havia decretado seu próprio destino. – Narden, certo…? Lamento não poder atender seu perdido, malit… – As chamas crepitavam no reflexo de seus olhos prateados. – Afinal… Não terá utilidade alguma para onde vou. Com um sorriso no canto de sua boca, amassou o papel ensanguentado em sua mão, jogando-o contra a carcaça de Narden Bryselw. O fogo se espalhou pelo papel tão rápido tocou seu cadáver, tornando em cinzas o último desejo do malit de Lumaban.
-IV– E então, o que encontrou? – Perguntou Nakryn, enquanto a bela elfa esgueirava-se para fora do estreito corredor. – Contemple você mesma! – Ezrath sorriu ao jogar a mochila de couro para a humana.
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No que abriu o fecho, um grande sorriso tomou sua face. Cogumelos do eco! E vários deles! Gragold e Thernys ficariam mais do que felizes com esta grande quantidade. – Muito obrigada, Ezrath! – Nakryn então saltou em cima da pálida elfa, dando-lhe um grande abraço. A princípio, a elfa não soube como reagir. Não esperava qualquer afeto da humana. Em verdade, não esperava afeto de nenhuma daquelas criaturas tão bizarras. Dando alguns tapinhas em suas costas, afastou-a em seguida. – Enfim… – Pigarreou, recompondo-se. – É melhor partimos agora, não sei há quanto tempo estamos aqui embaixo, mas precisamos voltar antes que anoiteça. – Concordo, Ezrath. Por Zewo, se for para dormir em algum lugar hoje, que seja longe de uma caverna! – Exclamou a pequena mulher.
-VAbaixo da cratera condenada, Ezrath olhava com desconfiança a orc, a qual, sem demonstrar qualquer emoção, estava ajoelhada. Mantinha seus braços estendidos com as costas de suas mãos deitadas no chão. – Suba. – Disse Yzgart. – Eu escalarei sozinha. – Suba! – Insistiu firmemente. Ezrath mordeu seus lábios, segurando sua raiva. Ao pisar em cima das palmas da orc, as quais eram maiores que os delicados pés da elfa, Capuz Negro ergueu seus braços com todas as suas forças, arremessando Ezrath ao ar. A arqueira reagiu rapidamente para não bater sua cabeça no teto da câmara principal, girando seu corpo para reganhar seu equilíbrio e cair em segurança. “Droga…”, pensou Yzgart, “Ela não parece ter se ferido”. Nakryn retirou de sua mochila o resto da corda que guardara. Após dar alguns nós pela corda, girou-a em suas mãos, arremessando-a para Ezrath. Após alguns segundos, a elfa confirmou que, enfim, a corda estava fixa, e as guerreiras subiram rumo à liberdade. Caminhando rumo a luz, Arawan brilhava e ardia no céu. Estavam, enfim, fora da caverna de Arakna. Era passado das
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quatro horas da tarde. O brilho ofuscante lhes machucava os olhos acostumados à escuridão. Mas um ar de satisfação e felicidade as tomou ao finalmente sentir o calor da grande estrela tomando seu corpo. Sentiam a fresca brisa acariciar suas peles e seus cabelos, embalando-as gentilmente. Podia-se ouvir alguns pássaros cantando e as folhas dos bordos dançando ao vento. Elas estavam vivas… Cansadas, feridas, mas vivas. Yzgart avistou Wittaz, a qual, agitada, corria em sua direção. Era clara a felicidade ao ver sua dona. A grande orc sorriu, abraçando-a fortemente. A loba branca lhe lambia a face inteira. Não entendia como Wittaz não havia atacado Lethnox, mas, naquele momento, não importava. Yzgart estava viva para continuar protegendo-a. Nakryn abriu seu cantil, fechou seus olhos e bebeu um grande gole de água, deixando um pouco jorrar sobre sua pele, refrescando-se ao sentir seu coração bater acelerado pela euforia do momento. Era como se toda a experiência de existir significasse algo a mais. Observou uma última vez o túmulo do grande guerreiro. Uma paz imperscrutável tomou conta de seu ser, sentiu como se seu velho mentor a observasse e sorrisse carinhosamente para ela. Nakryn respondeu seus sentimentos abrindo um meigo e cativante sorriso. Havia cumprido sua promessa… Seu grande amigo e mentor, Ablurgor Hyvat, havia sido vingado. E o peso que recaía sobre Nadati dispersava-se. Tudo estava em seu perfeito lugar… Ao menos, por enquanto.
-VICaminharam durante algumas horas. Mesiak emergia do horizonte. Por mais que isto tornasse a viagem mais perigosa, o vislumbrar do brilho das estrelas acalantava suas almas. Era questão de tempo para finalmente descansarem. A cidade estava apenas há metros de distância. As luzes dos patrulheiros de Nadati ficavam cada vez maiores e mais visíveis. O portal da cidade nunca havia parecido tão confortante nos últimos anos. Mesmo para Yzgart, a qual odiava o local, sentiu certa satisfação por entrar mais uma vez no pequeno povoado. A orc cinzenta fez um leve sinal com sua mão, Wittaz acenou com a cabeça e adentrou a floresta. Por mais que agora confiasse um
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pouco mais nas pessoas da cidade por causa de Nakryn, preferia deixar Wittaz em um local mais seguro e, de preferência, não civilizado. A cidade estava deserta, apenas alguns discípulos da Ordem circulavam pelas ruas. A clériga sabia que não poderia retornar para Owan naquele momento. Conhecendo bem o velho, estava enfurnado em seu quarto pesquisando e usando magias desconhecidas para descobrir o que demônios era aquele amuleto. Dormiria na taverna, seria incomodo chegar no templo naquele horário. Mas antes de descansar, havia um lugar para passar.
-VIIA casa era simples como as demais, a única coisa que lhe diferenciava era seu tamanho inconvencional. Tinha a metade da altura das casas normais. O telhado de barro ficava há dois metros e meio do chão, apenas um pouco mais alto que Yzgart. Apesar de ser uma pequena mulher de um metro e cinquenta e nove de altura, Nakryn tinha de se abaixar se quisesse entrar na casa, portanto nunca os visitou. Em verdade, nenhuma outra pessoa de Nadati algum dia havia visitado os irmãos gnomos Gragold e Thernys justamente pela entrada estreita… Isto e também o fato de que, geralmente, a chance de alguém sair com um ferimento grave era alta. – Não vai bater à porta, Nakryn? – Perguntou Ezrath. – Estou tomando coragem. – Coragem? Coragem para quê? Deixe que eu mesma faço isto se tem medo de uma porta! Um grito histérico, agudo e ensurdecedor trespassou as paredes de madeira da casa com o barulho de jarros e frascos quebrando-se: – SEU IMBECÍL! CULPE-ME MAIS UMA VEZ PELA MORTE DA NAKRYN E LHE CASTRAREI PARA TROCAR SEUS GLOBOS OCULARES PELAS SUAS BOLAS! – Toda sua! – disse Ezrath, virando-se e caminhando em direção ao centro da cidade. – Estarei na taverna qualquer coisa, em uma distância segura. Nakryn olhou com arrependimento para Yzgart. – Se quiser, não precisa ficar para aturar isto, sei o quanto detesta esta cidade.
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– Não. – Respondeu a orc, sem olhar nos olhos da humana. – Eu ficarei ao seu lado. A humana dos olhos amarelos primeiramente estranhou, mas logo sorriu para Yzgart. Será que finalmente estava ganhando sua confiança? Mas não era momento de se perguntar sobre isto. Se não batesse à porta, provavelmente não sobraria gnomo para usufruir de seus cogumelos… Nakryn parava para analisar em como sua frase soava errado em diversos níveis e graus. Enchendo seu peito, bateu com força a porta, fazendo as pequenas paredes tremerem. Exaltou-se um pouco, mas foi o suficiente para que o silêncio voltasse a tomar a casa. Curtos e rápidos passos se direcionaram até a pequena entrada de madeira. O barulho de três cadeados soaram e, logo, Thernys estava parada diante as duas guerreiras. A preocupação era evidente em seus olhos, mas assim que reconheceu Nakryn em meio ao sangue e a sujeira em suas roupas, um sorriso que nunca havia sido visto na gnoma apareceu. Ela estava aliviada e em paz, mesmo sem saber se possuía ou não os ingredientes. Thernys segurou-lhe as mãos, apertando-as com força, contendo suas emoções. – Minha querida! Eu estava tão preocupada, Nakryn… Mal pude trabalhar! O dia todo, apenas pensava em seu bem-estar! Novamente uma corrida foi ouvida e os cabelos espetados de Gragold surgiam à sua frente. O gnomo que geralmente possuía uma cara de poucos amigos mostrava uma satisfação inigualável. – EU SABIA! O elfo era um grandioso guerreiro, mas você?! Ablurgor estaria orgulhoso de você, minha jovem! – Dizia entusiasmadamente, com sua voz mais fina e rouca. – Mas diga-me! O que matou? Ogros? Gigantes?! Orcs repugn… – CALADO, INÚTIL! – Thernys repreendeu-o. – Não vê que a jovem Capuz Negro está à sua frente?! Um pouco de respeito para a moça! – Lamento, senhorita, força do habito… Moça, jovem, senhorita… Yzgart impressionou-se consigo mesma, pois, não sentia repúdio. Não sentiu-se ofendida ou se quer desafiada… No fundo, havia realmente apreciado as palavras dos irmãos. Mas o que mais lhe impressionara era o fato de sentir que estas palavras eram sinceras.
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Não foi somente algo para manter um aspecto social forçado de igualdade e respeito. Eles realmente estavam reverenciando a orc… Não havia desprezo ou desconfiança em suas palavras, não havia a insegurança por ela ser parecida com o inimigo… Por ser fruto dos antigos Kauhuzas… Não ser tratada como “coisa” ou “aberração”… Aquilo confortou-lhe. – Lamento, Gragold, – Respondeu a pequena mulher – não posso revelar as informações de nossa aventura, preciso discutir isto com mestre Owan antes de as compartilhar. Todavia, tenho uma boa notícia para vocês! – Bem, Thernys ainda está respirando, então acho que não é tão boa notícia assim… – retrucou Gragold. – SEU PEDAÇO DE FETO ABORTADO! ESPERE SÓ ATÉ ENTRARMOS! – A gnoma apenas não espumou pela boca por falta de oportunidade, mas logo recompôs-se. – Enfim, minha querida, é sobre os cogumelos, certo?! Conseguiu encontrar alguns? E, por favor, se me trouxe cinco já estaria mais do que agradecida! Cobriria o que precisamos para o mês! – Melhor ainda, Thernys! – Animadamente, abriu a bolsa de couro. – Doze cogumelos do eco, prontos para serem utilizados! Thernys e Gragold olharam para a bolsa como se este fosse um baú de tesouros esquecidos pelo tempo. Seus olhos brilharam e um grande sorriso surgiu em suas faces. Nakryn confirmou que o fim do mundo se aproximava quando Thernys se jogou nos braços de Gragold, abraçando-o fortemente. – Estamos salvos! – Ria a gnoma alegremente. – Não precisaremos vender a loja! Muito obrigado, Nakryn! – Gragold erguia sua irmã. Sua felicidade estava explícita em seus olhos. – Não sei se conseguiríamos nos arrastar mais um mês inteiro sem nosso principal produto. E após tudo que gastamos com os outros aventureiros… Obrigado Nakryn, obrigado Capuz Negro… Vocês salvaram o negócio de nossa família! – Esperem um pouco aqui! – Disse Thernys, correndo para os fundos da pequena casa. Após poucos segundos, voltava com uma caixa vermelha em suas mãos. – Aqui está! Tenho certeza que isto ajudará em sua viagem, seja aonde for! Nakryn segurou o baú em suas mãos, abrindo-o. Dentro da pequena arca, um veludo negro e macio protegia três frascos vermelhos
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arredondados. Apenas de abrir o compartimento, sentiu que um poder emanava de cada recipiente. – Poções! – Respondeu Gragold – Eu mesmo fiz a partir das plantas de Thernys! Você não encontrará isto para vender em lugar algum, pois é receita secreta da família! Sua confecção é complicadíssima e exigem ingredientes precisos e raros… A inventei na época da guerra. Estes mesmos frascos fazem parte de um dos últimos que fabricamos durante o grande cerco de Nadati! Estranhamente, nunca mais encontramos o reagente… – E como devemos usá-los? – perguntou Yzgart. – É simples… A mistura é extremamente poderosa. Caso estejam à beira da morte, basta ingerir todo o seu conteúdo e sentiram-se novas em folhas! Bem, talvez não tão novas… E os efeitos colaterais envolvem hemorragia interna, dores de cabeça, náuseas e desmaios… Mas tirando estes detalhes, dei-lhe o nome de “Elixir da segunda chance”! Chega a ser poético, não? – Gragold soltou sua risada maníaca usual. – Não tenho palavras para agradecer! – Nakryn contemplava a beleza dos fracos, os quais pareciam resistentes, apesar de serem de vidro. – Não há o que dizer, minha querida. – Completou Thernys. – Apenas cuide para que os fracos não se quebrem e terá a sua Segunda Chance. É o mínimo que podemos fazer após vocês darem a nossa segunda chance. – Apenas, adianto, Thernys. Vocês precisarão encontrar um novo local para colher os cogumelos do eco. Talvez demore para voltar a crescer dentro da caverna usual… Tivemos alguns… Problemas que acarretaram na destruição do que havia por lá. – Não se preocupe com isto, clériga. Daremos um jeito… Ao menos, agora, teremos mais tempo! – Respondeu Gragold. – Sabemos que em breve partirá, Nakryn, apenas não se esqueça de nós. E saiba que sempre poderá contar com nossa ajuda! – Obrigada Thernys, Gragold! – Disse com um sorriso desenhado em seu rosto. – Tentem não se matar até que eu retorne, tudo bem?! – Não garanto nada, minha querida, mas tentaremos! – Thernys deu sua clássica risada aguda. – Agora devemos ir. Adeus, gnomos, cuidem-se! – Adeus, Nakryn! Que Zewo lhe guie em seu novo destino!
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Nakryn acenou carinhosamente, seguindo em direção ao centro da cidade.Yzgart andava ao seu lado, após alguns segundos em silêncio, perguntou: – Eu realmente não queria perguntar, humana… E tenho certeza de que me arrependerei, mas… Você mesma não havia pego um ou dois cogumelos na caverna? – Na verdade, três! Durante a confusão do corredor, enquanto estávamos sendo cercadas, eu consegui avistar mais dois cogumelos. Pensando melhor, talvez eles fossem armadilhas… Pensando melhor ainda, isto explicaria porque tantas aranhas nos atacavam sem parar! – Nakryn balançava seus braços encenando a situação com seus dedos. – Que cruéis, não deveriam fazer isto com um inocente cogumelo! – E por que não os entregou aos gnomos? - Ergueu uma de suas sobrancelhas. – Bem… Gragold havia mencionado algo sobre “efeito colateral” e “alucinação” na mesma frase… Seria divertido drogar alguém sem que a pessoa soubesse! – Deu um pulinho de animação. – Eu sabia que me arrependeria… – Yzgart passava a mão sobre seus olhos, mas apesar de não mencionar nada, adoraria fazer isto com a elfa.
-VIIIA taverna estava vazia. Não apenas por ser o meio da semana e muitos já estarem em suas casas para dormir. Mas “Os Neutros” ficaria uma semana sem abrir devido ao falecimento do pai da patroa da famosa taverna, Sida Hyvat, a qual estava debruçada contra o balcão, escutando a jovem Ezrath contar sobre os acontecimentos na caverna de Aran Arakna. Sida enrolava a ponta de seu cabelo ruivo, escutando atenciosamente cada palavra que saia da boca da elfa Ma-Woo. Seus olhos estavam profundos e com olheiras. Apenas havia parado de chorar no momento em que Ezrath pediu para entrar. A elfa dos olhos prateados decidiu contar toda a verdade sobre o que aconteceu, desde o enterro de Ablurgor até mesmo o encontro com o Kmet. Agia com uma disposição espantosa que antes relutava em oferecer. – E foi assim que, enfim, derrotamos o monstro Aran, minha senhora. – Concluía Ezrath – Logo após, voltamos para a cidade.
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– Pela bondade suprema de Xícenum! Eu lamento muito por terem passado por tudo isto… Há ao menos algo que posso fazer por vocês? – Bem, eu não possuo dinheiro, mas preciso de um quarto e material de costura para remendar minhas vestes. Sei que a senhorita está passando por um momento difícil, levando em conta todos os acontecimentos recentes. Todavia… Seria mais seguro consertar minhas coisas em um quarto fechado. Além do mais, não se pode mais confiar na floresta. – Não se preocupe. Ninguém está hospedado aqui na taverna hoje. Sinta-se à vontade para ficar em qualquer um dos quartos! Uma batida na porta dupla de madeira interrompeu a conversa das duas mulheres, seguida por uma voz familiar. – Sida? Você está aí? Sou eu, Nakryn! – Sim, minha querida! Deixe-me apenas pegar as chaves! – Sida falou em alto tom para que a clériga pudesse escutar pelo lado de fora. Voltando a falar normalmente para Ezrath, prosseguiu. – Elas foram rápidas. Aparentemente, sobreviveram ao encontro com os gnomos! – Sim, pelo visto sim. – Soltou um pequeno riso. Sida pegou seu molho de chaves, o qual, espantosamente, possuía mais chaves do que portas em todo o estabelecimento. Logo, selecionou uma das maiores chaves do molho. A maldita porta possuía um pequeno problema na fechadura, apenas Sida e Ablurgor sabiam como abri-la. Não que acontecesse muito, mas isto lhes salvou de alguns assaltos. Ou melhor, salvou os assaltantes de serem brutalmente mortos. Os elfos de “Os Neutros” não eram conhecidos por sua piedade e paciência com gatunos. – Nakryn! – Exclamou Sida ao ver o rosto de sua amiga, abraçando-a fortemente. – Ezrath contou-me tudo! Muito obrigada! Muito obrigada mesmo, minha querida! Nunca terei como lhe agradecer o suficiente pelo que fez por nós! – Sida, Sida… – Respondia a pequena humana, apertando bem sua amiga – Não há o que agradecer! Apenas fiz o que deveria ser feito. E me deixa completamente feliz saber que está melhor! – Que tal um brinde às heroínas? – Perguntou Ezrath, sentada ao balcão, estendendo suas mãos ao saudar Nakryn e Yzgart. – Um brinde? Não, não… Sida ainda está de luto pelo seu pai, Ezrath. Não podemos abusar desta forma. – A clériga soltava Sida de seu abraço. 183
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– Não, está tudo bem, Nakryn… Por mais que meu coração ainda sofra… Estou feliz. Feliz, pois vocês retornaram vivas e a criatura finalmente pagou o preço de seus pecados! – Sorriu. Seus olhos brilhavam pelas lágrimas que formavam-se. – Bem… Tudo bem! Um brinde pela vitória de Nadati! – Nakryn erguia seus braços entusiasmada. – BEBIDA! Sida virou-se para ir pegar algumas bebidas. A clériga dos olhos amarelos estava para lhe seguir quando notou que Yzgart caminhava para a direção oposta. – Yzgart? Está tudo bem? – Não é nada pessoal, humana. – Respondeu, virando-se de perfil para Nakryn. – Nunca comemorei desta forma que vocês fazem. Eu tenho minha própria forma de aproveitar o momento. – Você tem certeza? É mais do que bem-vinda ao nosso lado. Já lhe disse, você é minha amiga! – Não se preocupe comigo, descansarei na floresta com a Wittaz. Amanhã, no início da manhã, nos encontramos em frente a fonte do dragão. – Tudo bem, então. – Disse compreensivamente, acenando com sua cabeça. – Mas tenha uma boa noite, Yzgart! Cuide-se, hein?! Yzgart ficou parada por alguns segundos, calada. A proximidade do contato social que mantinha com a humana era algo simplesmente estranho demais para ela mesma. Para a orc, Nakryn estava se tornando uma loba a qual lhe seguia pela floresta… Uma loba hiperativa, tagarela e insana, mas, ainda assim, uma loba. – Boa noite, humana. – Respondeu antes de retomar seu rumo, vestindo seu capuz negro para se camuflar à noite.
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noite estava confortável. Era possível até mesmo ouvir o vento uivar contra as frestas das madeiras e das pedras que constituíam a taverna. As folhas dos pinheiros e bordos que cercavam a cidade balançavam fortemente, mas, ainda assim, em uma paz inexplicável. Talvez fosse apenas algo psicológico, mas isto não importava. Estavam desfrutando o momento. Desfrutando ao calor da lareira acesa, a segurança do estabelecimento e o barulho aconchegante de uma conversa sem compromisso das histórias cotidianas de pessoas desconhecidas. Sida sabia bem como entreter com uma boa conversa. Ao longo de sua vida centenária, conhecera inúmeros aventureiros, mercantes e soldados que por Nadati passaram, conhecendo assim inúmeras estórias e casos. Como a história do único sobrevivente de uma expedição secreta para Zabohrav, o qual se tornou uma aberração e até hoje aguarda resgate na Ilha dos Pesadelos. Também a história de um aventureiro que foi salvo por um urso gigante que controlava raios! Ou mesmo a história de um velho elfo que jurava ter ficado bêbado junto ao deus dragão dos elfos, Haotran… Apesar de esta última ser a menos verídica dentre todas, principalmente vinda de um velho elfo bêbado (ainda mais levando em conta a baixa tolerância ao álcool dos elfos). Sida nunca podia dizer o que realmente era fato ou falácia. De histórias perfeitamente coerentes contadas por grandes mentirosos aos contos mais inacreditáveis dos mais excêntricos bardos, a taverna era aonde convergiam. E ao final, não importava se era real ou não, apenas se rendia uma boa história. Sida admirava todas elas! Pois não importava se ao final fosse comédia, drama ou mesmo uma aventura agitada, cada uma possuía
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sua emoção. E Sida não gostava apenas de contar as histórias, como também interpretá-las! A bela elfa desfilava e deslizava, entonando com emoção as falas e ações de personagens que nunca saberá se existiram ou não. Sua atuação era tão contagiante que Ezrath e Nakryn perdiam-se em seus sentimentos, fossem bons ou ruins, seguindo os movimentos e a voz da atriz. A esbelta elfa dos olhos verdes possuía o dom de dar vida aos seus personagens. A maioria de suas histórias, entretanto, envolviam Seabald. O velho mercante sempre compartilhava de suas aventuras com Sida. Ela estava a terminar mais uma de suas histórias envolvendo o idoso homem quando Nakryn interrompeu-a: – Sida, desculpe interromper, mas aproveitando que partirei em breve… Você precisa me contar algo! – Sim, minha querida? Pode perguntar-me, lhe responderei com sinceridade! – Você e Seabald, o que exatamente há com vocês?! – Como assim?! – A elfa ficou tão vermelha quanto seu próprio cabelo. – Você prometeu sinceridade, sua safadinha! – respondeu Nakryn – Não é novidade para muitos que vocês dois têm algo, apesar da idade dele… Mas se não estão tentando matar um ao outro, estão quase se casando. Ou estão tentando se matar enquanto estão se casando! Nunca entendi ao certo… O que há com vocês? – Você e o velho?! – Ezrath a olhou com estupefação. – Ele é praticamente um defunto ambulante! – Eu… B-Bem… – A elfa ruiva gaguejava, murmurando desculpas para si. – Tudo bem, tudo bem! Nunca contei isto a ninguém, então, se eu souber que alguém criou uma certeza, eu esquartejarei vocês e jogarei junto aos corpos dos ratos no porão! – Você ainda não se livrou dos ratos? – Nakryn perguntou assustada. – Estão lá como um lembrete para os próximos. – Posso atear fogo neles?! – Não, você não pode atear fogo nos ratos, e não pode contar a ninguém sobre a história de Seabald! – Sida fez uma pequena pausa, olhando fixamente para Nakryn. Voltou então seus olhos para a portinhola do porão. – E não conte sobre os ratos também…
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– Apenas se você me prometer que amanhã poderei incinerar um deles! – Tudo bem! Você pode destroçar o cadáver do roedor em cinzas! – Ratos! – Exclamou Nakryn em um tom agudo e um tanto quanto medonho. Ezrath puxava sua cadeira alguns centímetros para longe da clériga. – Enfim… Eu era jovem, havia completado meus 182 anos de vida. Para vocês, humanos, seria como se eu estivesse nos meus 20 e poucos anos… Nadati existe há centenas de anos, mas expandiu em demasia justamente por causa do monastério. Mas foi algo inevitável surgir outros negócios por causa de mercadores. Todos que queriam ir por uma rota segura para Lumaban passavam por aqui. Mesmo os nortenhos que quisessem ir para Kasadak, também haveriam de nos visitar. A taverna do papai cresceu rapidamente, de uma barraca de bebidas que ele mesmo criava, para a grande taverna que temos hoje. Neste tempo, inúmeras pessoas eu conheci… Na verdade, chega a ser meio triste… – Não entendo a tristeza, somos elfos! Não temos vida eterna, mas podemos viver séculos! O vigor que Pazija nos deu é incomparável. – Retrucou a orgulhosa elfa dos cabelos brancos. – Não são todos que querem viver para sempre, minha querida… Enquanto eu estava completando meu primeiro centenário, vários amigos meus de infância já haviam morrido. Conheci os bisavós de Ethert e costumava brincar com seus pais quando eles ainda eram crianças. Todavia, ser a única criança elfa em uma cidade onde a presença de humanos é majoritária… Eu não entendia ao certo o motivo de eu parecer apenas uma criança quando meus amigos já eram adultos e casados. – Sida reclinou-se na cadeira, olhando contemplativa para o teto. – E, principalmente, porque a mãe de Ethert, Sarah, tinha os peitos tão fartos enquanto eu ainda não tinha nem um biquinho sequer… O riso abafado de Narkyn e a expressão mórbida de Ezrath marcaram a muda contemplação de Sida. – Enfim, não vem ao caso… – Pigarreou. – Eu sempre me senti sozinha por este motivo. Adultos tem responsabilidades, eles não podem brincar o dia inteiro… Meus amigos não podiam mais me dar atenção… Então, eu tinha de brincar com os filhos deles, alguns
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ainda brinquei com seus netos! Mas foi apenas quando meu corpo finalmente amadureceu que eu o conheci… – E o velho rabugento te tarou, não é? – brincou Nakryn. – Hah! – Sida gargalhou. – Seabald… Tão gentil e tão honrável… Um perfeito cavalheiro! Acredite se quiser, ele não agrediria uma flor! Mesmo se esta tivesse cento e oito dentes em uma boca monstruosa, com chifres nascendo de suas pétalas. – Espera, estamos falando da mesma pessoa? – interrompeu Ezrath. – Velho, ranzinza, sociopata, com ódio imensurável por goblins? E com um estranho amor por sua besta Bet– NÃO OUSE… – Sida bateu na mesa, levantando-se. – … Falar este nome. – A elfa sentou-se, arrumando seu vestido vermelho. Recuperando sua postura, cruzou as pernas. – Isto foi anos após! Após… Após começar com suas loucuras por Herathor! Agradeço a Pazija e Haotran pela longevidade e a sorte que tenho, pois ainda usar-lhes-ei para estrangular aquela MALDITA PROSTITUTA ANÃ! – Uma… Anã…? – Perguntou Ezrath, mais retraída agora. – Prostituta anã… Prostituta anã… Prostituta anã… – Repetia para si Nakryn. – Isto é bizarro, até mesmo para mim. – Não me faça perguntas que não sei responder, minha jovem… Mas ao que aparenta, quanto mais bárbaro, mais a anã se excita e mais ela excita o bárbaro. Ao menos, é o que diz a música. – Ela tem uma música?! A prostituta-que-não-deve-ser-nomeada?! – Nakryn segurava seu riso, mas não continha a surpresa em sua face. – Estamos aqui para falar de quantas pessoas aquela ninfa desproporcional contaminou com suas doenças ou sobre Seabald?! – Sida encheu sua caneca até a boca com vinho, virando-a de uma vez só garganta a baixo. Nakryn sempre se impressionava de ver a única elfa existente que bebia como um anão. – Seabald… Aquele miserável… Não demorou muito para eu me encantar por ele. Sua elegância e seu charme eram tocantes, sua força formidável, e sua educação… Inigualável. Mas havia algo nele que diferenciava de todos que eu já havia conhecido… – A prostituta anã?! – Nakryn realmente apreciava irritar Sida. – Interrompa-me novamente e juro que jogarei os ratos no rio e nunca poderá queimar o corpo de qualquer um deles! Nakryn acanhou-se soltando um resmungo de tristeza que mais pareceu um ganido.
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– Seabald era forte não por causa de batalhas, mas porque sempre viajava com seus pais mercantes e ajudava-os. Eles eram nômades. O pobre homem nunca havia conhecido um lar, nunca havia tido amigos… O que mais me chamou atenção foi sua alma, pois valia mais do que todo o ouro das casas nobres de Stayatello! Mais do que o castelo dourado de Zlato! A primeira vez que eu o vi, fora aqui mesmo, na taverna. – Debruçando-se na mesa, suspirou. – Sua família havia parado na cidade para repousar após uma longa viagem que estavam fazendo para Stayatello. Eles não possuíam muito dinheiro, então pegaram os pratos e os quartos mais baratos. Contudo, Seabald não comeu sua janta… Não por não estar com fome, pude ouvir seu estomago rugir no momento em que entrou! Mas ele deixou toda a refeição para um cão faminto que vagava pela cidade. Mesmo sabendo que não teria dinheiro para pagar por mais comida e, mesmo sentindo a fome consumir-lhe… Ainda assim, ele alimentou o pobre cão… Foi aí que nos conhecemos. – Mexendo em seus longos cabelos ondulados, parecia vivenciar a cena. – Eu fui até ele lhe entregar outro prato por minha conta, uma forma de parabenizá-lo pela boa ação, e acabei por me sentar com ele para conversar. – Você se apaixonou por ele? Um humano? – Apaixonar… Eu diria que sim, arqueira Ma-Woo… O simples toque de sua mão fez todo o meu corpo se arrepiar e pulsar em uma comoção indescritível e inigualável, penso que nunca esquecerei tal momento. Lembro-me de cada detalhe… Seus olhos azuis cintilavam à luz das velas que iluminavam o exterior da taverna, eram tão claros quanto Mesiak que brilhava no céu límpido daquela noite fria. Possuía um curto cabelo negro como a escuridão e sua barba estava por fazer, deixando o contorno do seu rosto mais forte e viril do que já era… Eramos dois estranhos na noite. Alguma coisa em seu sorriso ao me observar fazia com que um calor repentino subisse pelo meu corpo, envolvendo-me em um êxtase momentâneo… Ele segurou minha mão gentilmente, beijando-a, agradecendo pelo meu gesto… Em toda a minha vida eu só havia conhecido bêbados que tentavam me assediar. Desde bardos fracassados até brutamontes mal encarados. E admito que havia alguns deles que realmente eram muito bonitos! Mas Seabald… – Seus olhos esmeraldas cintilavam na nostalgia que tomava-lhe. – Seabald era diferente. Ele ganhou meu coração no momento em que o semblante de sua alma penetrou o meu ser… Ele
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esperou-me pacientemente a noite inteira até que a taverna fechasse e, logo após, fomos até a floresta. Eu havia vivido mais de um século sem nunca ter pisado fora de Nadati, enquanto ele, um nômade de Herathor… Ele conhecia melhor as redondezas da cidade do que eu mesma! – Sida riu, um pouco sem graça. – Ele levou-me até um lago nas proximidades da cidade. Eu não fazia a mínima ideia de que isto existia aqui por perto… Conversamos a madrugada inteira. O tempo voou como se fossem apenas segundos… Mesiak reluzia não apenas nas águas calmas e cristalinas do grande lago, mas também em seus olhos, os quais me encaravam incansavelmente. E era recíproco, pois eu não me cansava de admirá-los… Foi então que demos nosso primeiro beijo… E… Bem… Não só o primeiro beijo. – Sida riu timidamente. – Você está com vergonha?! – Nakryn apoiou-se com as mãos na mesa, aproximando-se mais de sua amiga. – Pelas correntes de Zewo! Você realmente está com vergonha! Eu posso até mesmo morrer em paz agora! – Sua boba! – Disse ao ficar cada vez mais corada, lançando sua mão ao ar para que Nakryn parasse. – Foi a minha primeira vez! E a dele também! Mas… Bem… Resumidamente, foi a noite mais perfeita de minha vida. Todavia, esta felicidade durou pouco… Ele precisava voltar para a estrada, junto de seus pais, mas prometeu-me que um dia voltaria com dinheiro suficiente para abrir seu próprio negócio em Nadati e aqui viver comigo. Então deu-me um dos seus pertences mais valiosos: Um pingente de ouro no formato de um coração, o qual ele disse se chamar “O amor de Pazija”, o qual simbolizava o amor e sacrifício da dragão vermelho por Yerum. – Sida fez uma breve pausa, mexendo no pingente que ainda usava em seu pescoço. – No fundo, eu duvidava que um dia ele voltaria… Mas ele voltou. Ele sempre voltou… Inúmeras vezes, independente se isto significasse desviar quilômetros de sua rota principal, ele sempre retornava… Até que, após alguns anos, ele finalmente cumpriu sua promessa. Retornou para Nadati e abriu seu próprio estabelecimento… Inclusive teve dinheiro o suficiente para construir a própria cabana! E assim, ele inaugurou a “Flecha Escarlate”. – Flecha Escarlate?! – Os olhos de Nakryn arregalaram-se. – Mas esta não é a loja do senhor Gery? – Exatamente, minha querida… Você não sabia? Ah, mas é claro… Às vezes me esqueço de que você não é nata de Nadati. Gery
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chegou na cidade pouco antes do cerco dos Kauhuzas e, poucos meses após, assumiu a gerência da loja de Seabald… “Flecha Escarlate”… Você sabe por que ele escolheu este nome? – Alguma coisa a ver com o instinto assassino e a sua besta? – Ezrath erguia sua sobrancelha. – Não exatamente! – Sida riu. – Em nosso primeiro encontro, ele havia me dito que meu olhar atingiu seu coração como uma flecha escarlate… Por sinal, foi como ele me chamou por anos, “minha pequena escarlate”. Como sinto falta destes tempos, onde tudo era mais calmo, mais bonito… Mais simples… Eu morei com ele por mais de uma década nos fundos daquela pequena cabana. Durante o dia, eu o amava e auxiliava-o, cuidando para que trabalhasse com o menor pesar. E a noite, trabalhava para meu pai na taverna. E mesmo eu sendo diferente dele, o qual precisava perder um terço do seu dia dormindo para descansar, eu deitava-me ao seu lado todas as noites, abraçando-o junto ao meu corpo… – Seus olhos se apertaram com pesar, fitando sua própria mão. – Mas cada noite que passava-se, eu o sentia envelhecer um pouco mais. Eu mal havia mudado… Meu corpo apenas amadureceu ao longo dos anos, mas eu aparentava exatamente a mesma de quando nos conhecemos… Enquanto ele envelhecia rapidamente… Sua face já não era tão jovial, seu corpo começou a pesar para ele mesmo, já havia passado de seus quarenta anos… Contudo, ele disse-me que não importava o que o tempo pudesse fazer com ele, o seu amor por mim nunca envelheceria e se desfaria… E assim manteve sua palavra por anos, mesmo durante pequenas brigas ou desentendimentos… Mesmo quando percebemos que eu nunca poderia dar luz a um filho nosso… Ele sempre sorria e olhava-me ternamente com seus olhos inefáveis, dizendo-me que estava tudo bem… Pois, ao final, tínhamos um ao outro… – Mas… – Nakryn interrompeu. – Se vocês eram tão felizes juntos, o que de fato aconteceu para separar vocês? – Exatamente aquilo que acabou com tantas vidas, minha querida… – Apoiou seu corpo cruzando seus braços acima da mesa. Seu olhar se mantinha fixo para a porta da taverna. – Os Kauhuzas… – Foi quando atacaram a cidade? – Ezrath perguntou. – Não, isto foi depois… – Sida suspirou sonoramente. – Seabald nem mesmo estava aqui quando Nadati foi atacada… Entretanto, ele foi uma das primeiras pessoas que sofreu com os ataques… Seus
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pais já estavam velhos e cansados, mas, ainda assim, estavam usando suas últimas forças para trabalhar por um último ano. Precisavam do dinheiro para finalmente se aposentarem e viverem tranquilamente. Eles planejavam morar aqui em Nadati! Owan já havia até mesmo autorizado a construção de uma nova casa para eles… Entretanto… Eles deveriam ter parado na cidade como o de costume naquela semana, mas nunca chegaram até aqui. Não demorou para que chegasse a notícia de que uma caravana conduzida por dois idosos havia sido saqueada e os corpos encontrados mutilados próximo ao local… Isto foi antes mesmo dos Kauhuzas tornarem proporções colossais, foi na época em que os orcs haviam retornado a saquear pequenas carroças para roubar os seus suprimentos… – Sida fez uma pequena pausa, enchendo novamente sua caneca. – Mais vinho? – Sim, pode encher, Sida! – respondeu Nakryn. – Meia caneca já foi o suficiente para mim, é melhor eu não arriscar. – Respondeu Ezrath. – Tudo bem, mais para nós! – Sida sorriu levemente, mas seus olhos mostravam a tristeza que sentia. – Era certo que os idosos eram os pais de Seabald… E quase no mesmo instante, ele decidiu que partiria para encontrar os responsáveis por tal atrocidade. E eu admito… Fui completamente egoísta naquele momento que ele tanto precisava de apoio. Reconheço isto hoje… Mas, na época, tudo que eu mais queria era que ele ficasse comigo! Não queria vê-lo partir, não queria que se ferisse! Disse-lhe que a guarda local cuidaria do caso, que a Ordem de Zewo poderia investigar… Porém, ele continuou insistindo, começou até mesmo a arrumar seu equipamento para partir em busca de vingança. Disse-me então que precisava ir, mas não sabia se conseguiria voltar… Eu estava desesperada, estava preocupada, então eu lhe disse… – Sida parou, batendo com a palma de sua mão em sua testa. – Pelo maldito Capuz de Haotran, por que eu disse aquilo?! – O que você disse para ele, Sida? – perguntou angustiadamente Nakryn. – Eu disse: “Se você sair desta cidade, também sairá de meu coração. Você estará morto para mim.” – Sida ficou em silêncio por alguns segundos. Uma lágrima escorria pela sua face. – “Saiba então que morrerei pensando em você, meu amor, e, mesmo após minha morte, tudo que me restará será você, minha pequena escarlate.”, foi
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o que respondeu-me. Abraçando-me fortemente, deu-me um último beijo… O último beijo… Tão apaixonado quanto o primeiro que me dera há quase 2 décadas antes daquele dia… E dizendo-me “até logo”, partiu em sua jornada… Enquanto, eu, fiquei ali. Remoendo minhas palavras, as quais eram apenas para assustá-lo e fazê-lo ficar… – E ele ao menos conseguiu encontrar os assassinos de seus pais? – Ezrath perguntou, agora mais entretida na história. – Ele nunca me contou ao certo o que aconteceu… Três anos após, os Kauhuzas surgiram e atacaram Nadati. Seabald não havia retornado… Pensei que estava morto. Sobrevivemos pela contribuição de todos, e fomos salvos quando os templários de Ekran surgiram… Foi apenas após uma década que Seabald finalmente retornou. Suas roupas estavam sujas e amarrotadas, sua face estava muito mais velha, havia perdido quase todo o seu belo cabelo negro e inúmeras cicatrizes lhe marcavam o corpo. Ele chegou em uma pequena caravana, igual ao primeiro dia que chegou em Nadati, mas nosso encontro não aconteceu como ele imaginava… Eu pude ver que seu corpo havia sido extremamente ferido ao longo dos anos, mas seus olhos azuis como um céu límpido mostravam que sua alma não havia mudado. Ele chorou de felicidade ao me ver e abraçou-me fortemente em meio aos soluços… Ele ainda me amava… Ele não havia deixado de me amar sequer um segundo… – Estou sentindo um “mas” aí. – Nakryn previu. – Mas… – prosseguiu Sida – Por mais que meu egocentrismo falasse alto de que foi o certo a se fazer… Que era algo de direito meu… Fiz algo que arrependo-me até hoje. Após anos chorando por Seabald, eu decidi seguir minha vida em frente. Eu era uma elfa jovem, elegante e linda… Ainda viveria por séculos! E viveria assim como viúva? – Tapando seus olhos com suas palmas, balançava sua cabeça. – Então segui em frente, conheci outras pessoas, saí com outros homens… E, naquela época, eu estava em um relacionamento de meses com um belo e jovem guerreiro chamado “Odraued Passiagi”… Apesar de belo, o rapaz era um bruto arrogante. – Odraued?! – Exclamou Nakryn. – Prevejo caos! – Ele estava na taverna bebendo com os amigos quando viu Seabald abraçado comigo, chorando em meu ombro. Resolveu então tirar suas satisfações com o velho bêbado. Valentão como era, Odraued o insultou, empurrando-o para o chão, gritando para que não
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se aproximasse novamente de sua mulher. Foi neste momento que Seabald surtou… Estava cercado por guerreiros que estavam prontos para lhe agredir caso Odraued desse a permissão e, à sua frente, o homem que havia me roubado dele… E como se não bastasse, lá estava eu… A mulher com quem ele havia sonhado todas as noites enquanto enfrentava dificuldades que eu nunca saberei quais foram… Eu, a mulher que havia traído-lhe. – Sida bebeu o resto do vinho que estava em sua caneca, enchendo novamente com o que havia sobrado da garrafa. Ao termina, jogou-a para trás sem se importar aonde atingiria, apenas para escutar o estrondo quebradiço. – Não preciso mencionar que Seabald quase matou os idiotas, não é? Ele deveria estar com cinquenta ou sessenta anos, aparentava ser um velho frágil e pobre… Mas, ao final, Seabald sempre foi e sempre será um guerreiro extraordinário. – Um sorriso no canto de sua boca revelouse. – Os amigos do grande valentão fugiram, mas Odraued não teve tanta sorte… Seabald socou a face do desgraçado até arrancar metade de seus dentes fora e garantir que havia deixado seu rosto desfigurado. Eu estava horrorizada, gritava para que ele não o matasse… Até que escutou-me. Ofegante, olhando o sangue escorrer pelo seu punho cerrado, largou Odraued ao chão… Seabald fitou-me, mas desta vez havia algo diferente… Seu olhar exprimia uma tristeza e uma amargura indescritível… Senti toda a sua dor sem ao menos ele me falar uma palavra… Naquela mesma noite, ele partiu, deixando-me apenas uma pequena carta. – Sida pegou o pingente de ouro que estava pendurado em seu peito e, soltando cuidadosamente o lacre do coração, abriu-o, mostrando um pequeno pedaço de papel envelhecido. A bela ruiva desenrolou-o com cuidado e se pôs a ler. Minha pequena escarlate, Das noites frias e tenebrosas que suportei em meio ao pesadelo, era seu olhar, mais forte que Arawan e mais lindo que Mesiak, a luz que guiava meu caminho pelas trevas. Por horas, pensei que não suportaria a dor dos cortes e ferimentos que afligiam meu corpo, mas minha alma era infalível e intocável, pois seu amor me protegia… Seu amor me acolhia… E mesmo após anos longe de ti, meu único sonho era poder voltar para os braços teus e poder beijar novamente tua boca macia. Sempre pensei que minha morte ocorreria pela lança ou
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espada empunhada por meus inimigos. Todavia, encontro-me agora desolado e destruído… Meu corpo desaparecerá ao longo dos anos, levando consigo todas as cicatrizes que nele há… Mas minha alma nunca cicatrizará da ferida causada pela sua flecha escarlate, a qual um dia transfixou meu coração, porém, hoje, dilacera-me e mata-me. E ainda assim, por mais que não reste mais nada neste cadáver que um dia foi seu homem, eu para sempre te amarei. Eternamente seu, Seabald. Lágrimas escorriam silenciosamente pela sua face ao que seus lábios formosos terminavam a leitura. Nada mais do que o vento batendo contra as janelas soava no salão, até que, enfim, Nakryn interrompeu: – Pelo que ele diz na carta, ele estava para se matar… O que aconteceu para que ele mudasse de ideia? – Ele não mudou de ideia, Nakryn… Pois, ao final daquela noite, o Seabald que eu conhecia morreu… – Segurando gentilmente o papel em suas mãos, deslizou seus dedos sobre ele. – Ele retornou alguns anos após. Vestia as mesmas roupas, possuía a mesma carroça. Sempre parando em Nadati. Sempre almoçando, jantando e se hospedando na taverna. Mas seu olhar estava diferente… Ele agia como se nunca tivesse me conhecido, como se um dia não tivéssemos nos apaixonado. Ele não cumprimentava ninguém da cidade, não reconhecia nenhuma outra pessoa… Ele sequer lembrava meu nome… Até hoje não sei se ele realmente não lembra de tudo o que passamos, ou se apenas finge… Mas nunca consegui me aproximar novamente para tentar entender o que aqueles olhos tristes e pesados haviam presenciado para deixá-lo daquela forma. Seria tudo por minha causa? Eu nunca pude me perdoar pelo que fiz com meu pobre Seabald… Acho improvável que voltemos a ser o que um dia fomos… – Mas ao menos você tentou, Sida? – perguntou Nakryn. – Tentei… Mas ele sempre se mostrava completamente confuso. Chamava-me de louca, gritando que eu estava abusando de cogumelos do eco. Saia às pressas da cidade, fugindo de mim. Percebi que nada adiantaria… Então comecei engajar em conversas casuais com ele… Conversar sobre suas viagens, a fazer de conta que
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realmente eu era apenas a moça da taverna. Neste tempo, fiquei ainda mais brava pois soube que sua besta agora tinha um nome, impossível ser apenas coincidência de ser o mesmo da prostituta de Kasadak. Então começamos a brigar… E nos amar… E continuar brigando… E, por Zewo, como este homem é teimoso! – Sida sorriu, limpando suas lágrimas. – Mas mantivemos esta relação sem nunca dar o próximo passo… E nunca daremos. Para sempre ele será o velho Seabald, o mercante sedento por sangue, o velho que tortura ladrões que tentam lhe roubar, apelidando-os de Odraued. – Sida deu um pequeno riso sem graça. – E, para sempre, eu serei a moça da taverna, a única com coragem o suficiente para conversar com Seabald, e louca na mesma medida para fazer apostas de quanto tempo os Odraueds sobrevivem. – Mas, espera… O que aconteceu com o Odraued? – Ezrath questionou. – Digo… O verdadeiro Odraued. – Ah sim! Sempre me esqueço dele… Eu nunca o perdoei pelo que fez com Seabald. Sua atitude foi completamente inadmissível, então chutei ele da relação… E para fora da taverna também, já que ele estava morando aqui. E consequentemente, chutei-o da cidade. – Inclinava sua cabeça para a direita, olhando para o teto. – Depois disto, saiu com alguns de seus amigos para caçar Seabald e fazê-lo pagar pela sua desonra… Anos após, quando Seabald retornou, ele realmente fez parecer como se nunca tivesse conhecido Odraued antes… Mas disse que um bandido sem dentes e com deformações sérias em seu rosto tentou lhe matar sem motivo aparente e, ironicamente, seu nome era Odraued… Assim, morreu o primeiro Odraued de vários outros que surgiriam. Seabald jura até hoje que o motivo de ele chamar os ladrões que tortura de Odraued é justamente porque o primeiro que ele pegou se chamava assim… Eu prefiro nem tentar imaginar o que realmente se passa em sua cabeça… Mas a verdade é que depois daquele choque em minha vida, eu não conseguiria me relacionar com Odraued novamente… Na verdade, nunca mais consegui me relacionar com homem algum. Até hoje meu verdadeiro amor pertence à Seabald… Continuarei acompanhando seu envelhecimento ao seu lado como sua simples atendente e uma atenciosa amiga, e guardarei para sempre em meu coração tudo o que ele significou para mim… E tudo que, para sempre, significará. Sida dobrou com cuidado a pequena carta, até que esta tomasse o tamanho certo para poder entrar novamente no pingente de ouro.
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Assim que terminou, encarou por alguns segundos o pedaço de papel, relembrando todos os momentos em que sorriu devido à presença de seu amado Seabald. Fechou seus olhos. Aproximando a carta de sua boca, beijou-lhe. E, ao guardá-la em seu coração de ouro, lacrou-o mais uma vez.
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conversa acabou junto ao vinho que Sida Hyvat havia separado para a comemoração. A elfa dos cabelos cacheados vermelhos e a pequena morena haviam bebido um pouco mais antes de cada uma ir para o seu aposento, ambas embriagadas. Ezrath, contudo, manteve-se sã. Não era como se não apreciasse beber, mas sim, pois havia trabalho a ser feito. O quarto que Sida havia separado para a arqueira era um dos melhores de “Os Neutros”. Havia uma cama de casal muito bem-arrumada. Cobertas de lã dobradas sobre um lençol extremamente branco e bem cuidado jaziam em uma paz irrefutável. Uma mesa feita de madeira de pinheiro ficava entre a cama e a única janela do quarto, a qual ocupava grande parte da parede coberta por uma cortina de seda vermelha. O candelabro de bronze era a única fonte de iluminação e, ao mesmo, uma belíssima obra de arte. Sua base e sua haste lembravam uma árvore enorme, a qual Ezrath logo reconheceu como sendo a grande árvore de Henki, conhecida também como a árvore da vida. Possuía cinco arandelas, cada uma delas com o formato de uma cabeça de dragão, uma diferente da outra. Possivelmente figuras conhecidas nas religiões de Zewo ou Xícenum, mas a elfa não os reconhecia. Sabia das histórias, porém, nunca havia lido livros nem visto ilustrações sobre eles. A única face que realmente reconhecera era o dragão que engolia a todos subindo pela haste em direção a suas arandelas, Zewo, o qual apresentava os mesmos traços da estátua que marcava o centro da cidade. E, é claro, também de seu deus, Haotran, o qual permanecia isolado no canto direito.
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Ezrath despiu-se para se banhar na banheira de ferro que havia em um dos cantos. Sida havia deixado água fervente em uma chaleira ao lado da banheira caso a elfa quisesse um banho mais confortável, o que lhe incomodou um pouco, levando em conta que não sabia como a ruiva havia conseguido trazer a água sem tropeçar e se escaldar em meio à sua embriaguez. Zewo certamente protegia os insanos. Todavia, Ezrath não sentia frio nas temperaturas normais de Miyamiran. Afinal, era uma elfa de Ma-Woo, nascida e criada nas montanhas gélidas de Stayatello. Ainda assim, decidiu esquentar sua água. Merecia tal requinte. A pálida elfa das neves adentrou a banheira, submergindo em seus pensamentos. “Qual será o próximo passo?”, pensou consigo mesma. Havia inúmeras coisas perturbando-lhe. Desde o momento que fora banida de sua tribo, inúmeros acontecimentos lhe colocaram contra o seu orgulho, forçando-a a fazer coisas que certamente não faria se a escolha pertencesse-lhe. Estaria disposta a seguir sendo controlada? Havia aturado o suficiente os desaforos daquelas criaturas tão inferiores. De fato, este havia sido seu primeiro contato direto com quaisquer criaturas de outra raça, mas diferente das histórias que sua tribo contava, os elfos já não eram vistos com toda a glória que um dia foram… E, afinal, o que exatamente era verdade em sua tribo? Se o que Aran Arakna havia lhe dito era verdade, sua tribo estava condenada a viver em uma eterna mentira. Ao longo de anos, assistiu seu próprio povo morrer por uma causa fictícia. Seus tios, seus amigos… Seu próprio pai… Todos morreram acreditando que aquilo salvaria não só sua tribo, mas também Herathor! E agora… A dúvida pairava em sua mente. Em poucas horas, a verdade por trás de seu artefato seria revelada, Mas dependendo do que o velho humano fosse dizer-lhe, o que ela faria? Seguiria novamente para sua tribo para assim quebrar as barreiras da mentira e propagar uma anarquia revolucionária? A maioria de seu povo viveu por séculos acreditando nas mesmas mentiras, havia uma grande chance de que não acreditassem em suas palavras. E existia uma chance maior ainda de que lhe condenassem a algo pior que o banimento… E mesmo que acreditassem em suas palavras, o que poderiam fazer? Não possuíam o Segredo de Pazija em mãos. A tribo
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estava pequena por tantas mortes e desertores. Por Haotran, o que infernos poderia fazer?! Por outro lado… Havia uma segunda opção. Nakryn certamente não permaneceria em remanso. Era uma clériga da Ordem de Zewo e havia lhe dito que estava determinada a encontrar seus irmãos… Se o Kmet estava atrás do Segredo, Nakryn também procurar-lhe-á… Se as histórias de sua tribo fossem verdades, o Segredo teria poder suficiente para transformar qualquer criatura e lhe ampliar o poder! Os elfos possuíam a longevidade, mas lhes faltavam a força de um orc e a resistência de um anão… Contudo, se assim o tivessem, seriam implacáveis! E se Ezrath possuísse este poder, teria os elementos que faltam em sua raça. Sua tribo não desapareceria e sua amada Celith não teria de sofrer o que outros sofreram… Nenhum elfo teria de se rebaixar novamente a vontade de qualquer humano! Ou mesmo tolerar o comportamento boçal de um orc imundo! Mas tudo havia de começar por algo. Primeiramente, precisava ganhar a confiança da pequena humana, mesmo não apreciando sua companhia, pois Ezrath sozinha não conseguiria encontrar o Segredo… Precisava usar o escudo de Nakryn e as espadas de Yzgart ao seu favor.
-IIA nívea elfa levantou-se da banheira, secando cuidadosamente o seu belo corpo esguio e formoso. Seus olhos pratas reluziam à luz do candelabro, mostrando também um novo brilho de determinação. Vestindo a camisola que Sida havia emprestado-lhe, andou até sua mochila, onde retirou um embrulho de couro. Colocou-o sobre a mesa, abrindo-o e revelando seu conteúdo: A capa de Aran Arakna. Ezrath não entendia de magia ou artefatos, mas algo era certo: Aquela capa continha um poder intangível do qual Aran usufruía, pois mesmo após sua morte brutal, ainda assim, a capa permanecia ilesa. Aquele era o primeiro dia de uma nova era… A era em que os elfos finalmente ergueriam suas vozes e tomariam em suas mãos as rédeas do destino! Livrariam o mundo de todas as criaturas demoníacas e de todos os problemas que Herathor um dia já enfrentou. Assumiriam o posto das criaturas mais sábias e respeitosas que existiam!
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Finalmente seu povo não precisaria se esconder para proteger algo inexistente apenas por tradições antigas, humilhando-se nas profundezas de pântanos ou florestas. Os elfos, enfim, tomariam seu lugar de direito em tronos de prata e ouro! E agora… Tomando em suas mãos a capa de Arakna, usaria de seu poder para trilhar seu novo destino… Não erraria como o tolo Aran errou. Não sacrificaria sua tribo pelo seu próprio bem. Não se aliaria às forças demoníacas de Yamaluhan. E, principalmente, controlaria seu poder apenas para o momento certo… Ainda assim, precisava esconder a capa de Nakryn e Yzgart. Tinha certeza de que fariam de tudo para destruir seu tesouro se soubesse de sua origem. Pegando os carretéis de linha que Sida entregou-lhe, encontrou o exato tom de azul que enfeitava as bordas da capa de sua tribo. Haotran realmente estava ao seu favor. Após remover todos os objetos que se encontravam em cima da mesa, deitou sua capa antiga sobre ela, esticando o manto de Aran por cima dela. Sua capa era menor do que a do Kmet, não conseguiria costurá-la sem que aparecesse as sobras. Por sorte, as duas eram brancas, precisava apenas cortá-la. Ezrath pegou seu punhal e fez um corte na capa da cor da neve. Ao que sua lâmina terminou de atravessar o tecido, este regenerou-se, e o pedaço que estava segurando em sua mão se desintegrou rapidamente, deixando apenas uma fumaça roxa no ar. Não conformada, a elfa tentou novamente o procedimento, desta vez cortando mais rápido, mas a mesma cena repetiu-se. – Pahukcen! – Bufou, amaldiçoando em élfico, ao bater com as duas mãos sobre a capa. Seus punhos atingiram o tecido frio e pálido do manto e este vibrou como água. Ezrath olhou assustada e tentou instintivamente afastar-se, mas suas mãos estavam presas. Não importava a força que tentasse, nem mesmo a mesa arrastava-se. A capa agitava-se violentamente como fizera na caverna. Suas pontas moviam-se ligeiramente, várias sombras de aranhas emergiam de seu tecido. Um vento gélido e fúnebre tomou conta do local no que as velas do candelabro apagaram-se. Uma luz roxa fluorescente brilhava do manto enquanto inúmeras aranhas envolviam o corpo de Ezrath, deixando apenas seus olhos prateados descobertos.
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A bela elfa tentou clamar por socorro, mas suas cordas vocais não obedeciam-na. Nem mesmo sua boca conseguia abrir. Seu corpo estava inerte, o desespero assumia o controle de suas emoções. Seu coração quase falhou ao que uma voz rouca ecoou em sua mente. Como um sussurro em seus ouvidos, as palavras soaram em sua língua nativa: – Que assim seja… A capa contorceu-se, as aranhas retornavam a ela, livrando o seu corpo. A forte aura púrpura que emanava do manto se intensificou de modo que a elfa não pode mais deixar seus olhos abertos. Um som estridente penetrava sua mente, sentia seu corpo ser esfaqueado e dilacerado. Queria gritar, queria morrer, mas não queria continuar sentindo aquela agonia. Mas nada podia fazer. As paredes ao seu redor racharam-se, o vidro se quebrou e inúmeros fragmentos voaram contra seu corpo. A escuridão lhe devorava como uma besta faminta. Até que, enfim, o silêncio reinou.
-IIIEzrath abriu seus olhos. Havia desmaiado. A luz do candelabro iluminava o quarto. Tudo encontrava-se impecavelmente do modo que Sida havia organizado. A camisola que a elfa ruiva havia lhe emprestado cobria seu esbelto corpo estirado ao chão. Levantou-se lentamente, sua cabeça pesava e doía, havia tido um horrível pesadelo. Ezrath olhou ao seu redor. Não havia nenhum dano a edificação. As janelas estavam intactas, cristalinas, sem mesmo uma fissura. Tudo estava normal… Apoiou-se na mesa, cobrindo sua face com uma de suas mãos. Balançava a cabeça de um lado para o outro ao tentar entender o que seu sonho significava. Logo sua expressão de conforto tornou-se um horror nítido. Sua mão tocava o tecido de sua capa, mas esta não era mais a mesma. Do cor nívea que tomava todo o tecido, seu interior agora estava negro como a própria escuridão. Era a capa de Aran Arakna, agora costurada por um fino fio azul cerúleo, prendendo os dois mantos desde sua base até seu capuz, camuflando a capa perfeitamente. Não havia sobra de tecido,
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estavam exatamente do mesmo tamanho. E dentre a escuridão de seu interior, a silhueta de uma viúva-negra a preenchia. Ezrath ergueu-a, contemplando-a. Havia sido realmente apenas um sonho? Não… Como poderia ter feito aquilo? Apenas de tocar no tecido de seu novo manto, sentia o pulsar de uma força formidável! Um poder indescritível e imensurável percorria pelas suas veias. Um sorriso surgiu nos seus belos lábios. Despiu-se, jogando ao chão a bela camisola branca. Ezrath então vestiu-se com o manto que descansava a sua frente. Ao prendê-lo em seu pescoço, uma voz rouca e fraca voltou a sussurrar em sua mente: – Raan… Ka… Ezrath ouviu assustada as palavras. Mas mesmo com seus lábios tensionados, sussurrou para si mesma: – Raanka! No que a palavra era proferida ao vento, sentiu algo rapidamente apertar seu peito. Ao olhar para baixo, viu que um elemento negro tomava conta de seu tórax, segurando-a fortemente. Em questão de instantes, Ezrath tomava toda a altura do quarto, suspensa por oito patas de aranhas que saiam de suas costas. A princípio, horrificou-se. Mas ao ver seu reflexo no espelho, soltou um riso penetrante. A capa estava sob o seu comando. Sentia aquele novo poder percorrer o seu corpo e fortalecer seu espírito… Sentia-se capaz de enfrentar exércitos inteiros… Sentia-se capaz de cumprir com seu destino! Sentia-se… Completa.
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luz da manhã penetrava o fino tecido da cortina de seda vermelha, estendendo-se lentamente ao longo do quarto até alcançar a bela face de Nakryn. A pequena procurava proteção da claridade entre os travesseiros de sua grande cama de casal, tentando fingir que o dia ainda não havia começado. Murmurava, sonolenta, sobre sonhos aleatórios envolvendo fogo, ratos e Yzgart, o que, aparentemente, eram seus tópicos favoritos para o cenário bizarro perfeito. Em seu sonho, filosofava sobre o resultado de uma fusão destes três elementos. Seria uma orc flamejante com cara de rato? Ou seria um rato monstruoso com cara de Yzgart que cuspia fogo? Nakryn nunca descobriria ao certo… Ou descobriria, caso um dia encontrasse um ritual para fazer isto. Sua mente divagava entre inúmeras coisas. Forçava-se a acordar. A cama da taverna era boa demais para ser verdade, nunca em sua vida havia dormido tão bem. A única coisa que lhe incomodava no momento era a dor de cabeça repentina que anunciava a ressaca. Sentando-se na cama, espreguiçou seu corpo com seus braços esticados para o alto. Descabelada, respirou fundo para recompor-se. Olhou para a janela que estava alguns metros à sua frente, já estava bem claro. E pelos barulhos que vinham da praça principal, possivelmente já se passava das nove da manhã. Havia dormido demais. E certamente Yzgart não ficaria feliz com isto. Mas… Jogando-se novamente na cama, pensou: “Para quem esperou até agora, não ligará de esperar só mais dez minutinhos…” Um estrondo veio da porta. Uma voz não tão satisfeita gritava: – HUMANA?! RESPONDA, MALDITA HUMANA!
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– Por Zewo! Yzgart!? – Nakryn perguntou assustada, levantando-se em um único pulo. – Se você ainda estiver de pijama, eu juro que trarei Wittaz até aqui para te arrastar para aquele maldito templo! – Yzgart batia à porta no mesmo ritmo de suas palavras. De fato, ela não estava feliz. – Há quanto tempo está esperando? – A clériga se vestia rapidamente. As batidas quebravam sua mente pela ressaca. – E desde quando você tem um tambor?! – Desde que Arawan mostrou seu primeiro brilho, conforme combinamos! – Rugiu a Orc – Agora DEIXE-ME ENTRAR! – Calma, calma! Diga-me, como foi sua noite? Como está a linda Wittaz?! – Nakryn prendia sua bota o mais rápido que podia, faltava apenas prender sua armadura, apesar de que isto poderia ser um pouco complicado. – E isto importa?! Você tem noção de quantas crianças vieram tentar ver a maldita Capuz Negro?! – Olha! Que coisa boa! Você é famosa! – Eu vou contar até três e derrubar esta porta se você não abrir! Não sou nenhum elfo endemoniado para que você tente me enrolar! – Yzgart deu dois passos para trás. – Um…! Dois…! TR– Bom dia! – Nakryn abria rapidamente sua porta. Estava pronta! Nunca em sua vida havia equipado-se tão rápido quanto naquela manhã, “ao menos foi um bom treinamento”, pensou. – Então… Tudo bem? A orc respirou fundo, recuperando o que ela chamava de bom humor. Algo que mais parecia um troll enraivecido. – Precisamos falar com o velho. Ele já deve ter alguma resposta. – Yzgart olhou para o final do corredor, onde seria o quarto de Ezrath. – A elfa de cabelo vermelho me disse que a elfa mesquinha estaria naquele quarto, mas já estava vazio quando cheguei. – Estranho… Havíamos combinado de nos encontrar às… – Voltou seu olhar para a orc, a qual, de braços cruzados, erguia uma de suas sobrancelhas, encarando-lhe. – Esqueça o que combinamos! Nakryn coçou sua cabeça, arrumando um pouco seu longo cabelo negro, o qual continuava bagunçado. – Enfim, melhor descermos, vamos até o monastério. Se Ezrath não estiver lá, passaremos a notícia depois. Quer comer algo antes, Yzgart?
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– Já me alimentei. – respondeu secamente. – Sério? Sida deixou você comer de graça? – Não comi aqui. Não gosto destes lugares da cidade. – Você precisa relaxar mais, Yzgart! Deveria ao menos tentar comer na taverna algum dia. É muito bom! Apenas… Não peça a receita secreta… Se Sida conhece uma anã prostituta, tenho medo do que ela possa entender como receita secreta… A orc cinzenta franziu sua testa tentando imaginar o que infernos seria a receita secreta, ou mesmo qual seria a relação entre uma anã prostituta e as receitas da elfa, mas logo percebeu que se arrependeria no processo. – Vamos, humana. – Fez sinal com sua cabeça para as escadas. Sorrindo para a orc, seguiu-a em pulinhos de alegria. Havia começado sua manhã perfeitamente bem. Não havia nada melhor do que atentar uma pobre alma logo cedo para agitar as coisas, melhor ainda se esta pobre alma fosse a de Yzgart! Não odiava a orc, mas sim, sentia um carinho incondicional pela guerreira cinzenta. Nem mesmo ela sabia explicar o motivo, apenas entendia que gostava de sua companhia, portanto, precisava incomodá-la. Yzgart revirou seus olhos para a clériga e, balançando sua cabeça, desceu as escadas.
-IIA praça principal estava agitada. Provavelmente algum carregamento deveria ter chegado logo no início da manhã e acabou por ocupar as mãos dos trabalhadores de Nadati. Haviam homens carregando tábuas, mulheres com cestas contendo legumes e frutas, até mesmo jovens arrastando carrinhos de mão. Alguns lenhadores voltavam da floresta com lenha, padeiras se apressavam com suas cestas de pães e discípulos da Ordem de Zewo faziam a guarda local. Como se não bastasse a agitação, algumas crianças corriam ao redor da grande estátua de Zewo, brincando de algo que parecia a encenação da Cruzada das seis raças. O céu estava nublado e o ar estava mais abafado do que o dia anterior. Choveria à qualquer momento. Isto talvez explicasse por que todos estavam tão determinados a terminar o que precisavam.
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– Vamos! Antes que as crianças me avistem. Ou acabarei por alimentar Wittaz com uma receita secreta. – resmungou Yzgart. – Você está convivendo demais comigo, Capuz Negro! – A pequena humana sorriu. Poucos passos além da taverna deram até que uma voz interrompeu-lhes. – Bom dia, humana! – Uma voz sedosa saudava Nakryn. – Ezrath? – Aqui em cima! – Segurando uma seta entre seus dedos, estava sentada sobre o telhado da Flecha Escarlate. – Demorou para acordar, é? – Sim! – Soltou um pequeno riso sem jeito. – Acho que bebi demais… Mas aonde você esteve? Yzgart não lhe encontrou de manhã. – Estava treinando. – Em um salto, chegou ao chão. – Na floresta… É preciso sempre estar afiada. – E invadir a propriedade dos outros faz parte de seu treinamento? – Retrucou Yzgart. – Então a orc sabe sobre regras e leis? Que bonitinho! – Depois vocês se matam, temos outras coisas para fazer. Mestre Owan deve estar nos esperando com notícias sobre o amuleto! Não queremos nos atrasar, não é? – Humana… – Yzgart suspirou audivelmente. – Você já nos atrasou. – Detalhes! – Respondeu. – Pequenos e insignificantes detalhes! A bela clériga avançou em direção ao templo, fazendo sinal com sua mão para que as outras duas seguissem-lhe. Yzgart olhou para a elfa, expelindo o ar de seus pulmões com força, acenando com sua cabeça para que fosse em frente. Ezrath rasgou meio sorriso para a orc e, olhando-a dos pés à cabeça, seguiu Nakryn.
-IIIO templo se encontrava em caos. Havia discípulos andando de um lado para o outro. Alguns com livros, outros com armas, ferramentas, materiais, até mesmo outro que corria atrás de um falcão, o qual havia escapado de sua luva de falcoaria. Homens e mulheres cruzavam os corredores e passavam de uma sala para a outra, todos trabalhando em algo ao mesmo tempo.
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A movimentação ligeiramente incomodava Nakryn. Aquilo era algo incomum, mesmo para um lugar como Nadati. Havia um ar de preocupação. Tanto que não perceberam a chegada das três mulheres. Em meio aos barulhos de passos firmes e conversas dispersas ao ar, a firme voz de Owan ecoava pelos salões. A humana olhou com estranheza para suas companheiras e, sinalizando para que a acompanhassem, seguiu a voz de seu mestre.
-IVEm cima de um pequeno palco de madeira que era utilizado para ministrar conhecimentos, Owan permanecia alto e incisivo. À sua frente, inúmeros discípulos esperavam para acatar ordens do ancião. Era notável que seu mestre estava com grandes olheiras. Não deveria ter conseguido dormir um minuto sequer. Mas, ainda assim, não deixava transparecer o mínimo cansaço. Pelo contrário, sua presença inspirava força. Ele estava tenso, sua voz soava forte e áspera. Ao notar o aparecimento das três mulheres, ergueu suas mãos, ordenando: – O resto de vocês ajudará cada equipe no que for necessário! Façam o possível para que tudo esteja pronto antes do crepúsculo de Arawan! Dar-lhes-ei futuras instruções durante o almoço. Temos muito o que preparar! – Notando que havia um falcão voando pelo corredor principal, complementou. – E pela cólera de Yerum, alguém ajude Hadrid a pegar o bendito falcão! Quem infernos deixou Sanaan nas mãos deste garoto? Os discípulos se dispersavam rapidamente. Em meio à agitação, Owan locomoveu-se até Nakryn em passos largos e apressados, segurando-a pelo braço. – Sigam-me! – disse Owan.
-VSubindo as escadas, o ambiente se tornava nitidamente mais calmo. Não havia ninguém nos corredores dos dormitórios. Um frio desceu pela barriga de Nakryn, nunca havia visto na face de seu mestre uma expressão tão séria e concentrada.
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Os dormitórios estendiam-se por todo o segundo andar. Havia um grande corredor que dividia a ala feminina à esquerda e a masculina à direita, com inúmeras portas pelo caminho. Ao final da passagem alongada, uma grande porta dupla com a imagem da Ordem talhada na madeira marcava a entrada para os aposentos de Owan. O ancião seguiu em frente, abrindo-as de uma só vez. Seu quarto estava demasiadamente desorganizado. Pilhas de livros cercavam a mesa de Owan, tanto atrás dela quanto à sua frente. Havia, pelo menos, treze deles abertos sobre sua bancada de madeira de acácia, ocupando além do espaço que ela possuía. Penas vermelhas e brancas marcavam páginas específicas nos tomos empilhados. Suas estantes apresentavam vãos não repostos e os livros caídos ao chão descansavam esquecidos. Nakryn notou que, pelas suas cortinas fechadas e sua espada ao lado da mesa, o velho até mesmo aguardava companhia. Quando Owan notou que todas estavam dentro de seu quarto, encarou Nakryn com um olhar duro, fazendo um leve sinal para a porta. A bela clériga rapidamente percebeu o que desejava e, antes que qualquer reação pudesse surgir, avançou contra a entrada, fechando e trancando as grandes portas de madeira. Em um ágil movimento, esticando seu braço em direção às guerreiras, Owan estalou seus dedos, proclamando: – Naopak! Em um instante, quase que imperceptível, uma energia dourada se formou em seu antebraço, disparando contra os dedos que estalava. O som do estalo se propagou em uma onda que abafou o ar, retirando todo o barulho que invadia o cômodo. O silêncio tomou conta tão rápido um círculo branco surgiu abaixo dos pés de Ezrath, lançando-a contra o teto. Correntes douradas emergiam da luz, prendendo o seu corpo. – A quem pertence este amuleto?! – Os olhos de Owan tomavam uma coloração dourada. – Ele é meu! – Gritou Ezrath. – Ponha-me no chão, humano impertinente! – RESPONDA! – Sua túnica balançava pela energia que emanava de seu corpo. – A QUEM pertence tal artefato?! – EU JÁ DISSE! Ele é MEU! – Acho que você não compreendeu… – Erguendo sua mão para o alto, abriu sua palma como se tentasse alcançar a elfa, descendo 210
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seu punho ao longo que estrangulava o ar entre seus dedos. – PRAV VRHORRANY! As palavras que saíam da boca de Owan Atma soavam como lâminas afiadas penetrando sua alma. Um barulho contínuo de um turbilhão de vozes ecoava ao seu redor. Era como se garras se arrastassem pela sua mente, repuxando suas entranhas e rasgando o seu ser. Queria mentir… Queria manter o que estava dizendo… Mas o simples pensamento de tentar ludibriá-los fazia com que lágrimas de dor escorressem pela sua face. Sua boca queimava como se estivesse mastigando brasas e estilhaços de vidro, até mesmo respirar tornava-se difícil. O turbilhão de vozes aumentava ao longo do tempo que reluta-va, até não aguentar mais. – EU ROUBEI! – Um grito seco e desesperado soou de sua boca. As vozes em sua mente e a dor diminuíam ao longo que proferia a verdade. – O AMULETO… PERTENCE… À CELITH! O silêncio retornava em sua mente, um alívio indescritível tomava-lhe. O que está acontecendo?, perguntava-se Nakryn. Mas sabia que não poderia intervir. Seu mestre deveria ter seus motivos. – E quem é Celith? – A voz grossa e marcante do ancião a assombrava. – Uma… Puolí… Maldita! – Por mais que não quisesse ofender sua amante, não conseguia esconder nem mesmo suas verdadeiras opiniões. Não podia mentir… Sequer para si mesma. – Vejo que entendeu como funcionará. – O velho soltava o ar entre seus dedos lentamente. Imediatamente, Ezrath puxou o ar pela sua boca, ofegante. – Diga-me, desde o princípio, como conseguiu o amuleto, quando o conseguiu e por que o carrega. Ezrath cogitou relutar, ou até mesmo usar dos poderes da capa para fugir, mas o velho ancião possuía um poder que nunca antes havia presenciado… Não conseguia controlar sua boca ou suas palavras, apenas proferindo a verdade… Decidiu, enfim, ser sincera. – Logo após o misterioso massacre do clã norte, meu pai decidiu formar um grupo de busca à sobreviventes. Eu era uma das melhores arqueiras de minha tribo, decidi acompanhá-lo. – Os barulhos e as dores cediam gradativamente enquanto mantinha a verdade. – Seria uma missão rápida, mas ao chegarmos lá,
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encontramos o cadáver de todos os membros da tribo empilhados em um grande monte… Com exceção de uma pessoa, Celith Vaelt, uma puolí da tribo nômade. – E como ela teria sobrevivido sozinha? – Indagou Owan. – Ela disse que se escondeu em meio à neve enquanto criaturas monstruosas atacaram seus pais e toda a sua tribo. Teve sorte de sobreviver, mas estava apavorada demais para fugir do local. Antes que pudéssemos tirá-la de lá com segurança, criaturas sombrias nos cercaram e atacaram os membros de nossa tribo… Meu pai mandou eu esconder Celith no meio da pilha de corpos para protegê-la. Mas, assim que coloquei-a lá, tudo ficou escuro… – Você desmaiou? – Eu… Eu não sei… Tudo o que lembro foi ouvir os berros dos membros da minha tribo… E aquela risada macabra… Quando acordei, já não estávamos na tribo norte, e sim próximos à minha tribo. Apenas Celith estava comigo, desmaiada ao meu lado. Nunca entendi como chegamos até lá… Apenas sabia que meu pai e todos os amigos de minha família estavam mortos. Tudo por causa de uma única… Simples… Ordinária… Puolí. – Eu pensei que Celith fosse sua amiga! - Exclamou Nakryn, impressionada com a falsidade de Ezrath. – Ela não é minha amiga… É minha amante. – Respondeu sem manter contato visual. – No começo, odiava a sua simples presença… Mas o jeito que ela falava comigo me levou a desejá-la. Levou-me a acreditar que aquela puolí poderia ser diferente. – Apenas quero deixar bem claro que eu gosto de homens, tudo bem? – Nakryn interrompeu. – Mas nada contra. – Nakryn, calada! – Seu mestre repreendeu-a. – O que ela fazia com o amuleto? – O colar… Estava em sua mão quando acordamos. Não recordava-me dele durante o ataque, mas eu sentia que ele possuía algo em especial… Algo diferente… Algo melhor do que uma meio-sangue banal merecia carregar. Então, antes que ela acordasse, roubei-lhe. Tanto como lembrança de meu pai, como vingança pelo que me fez perder… Ela acordou desesperada em busca do seu preciso amuleto, mas nunca desconfiou que eu possuísse-o. – Um leve sorriso tomava sua face. – E por que ela não está aqui? O que veio fazer com tal artefato em Nadati?
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– Ela deveria… Mas meu plano fracassou. Eu fui banida de minha tribo. O ancião me acusou de ter trazido caos para todos e disse que, se eu quisesse buscar redenção, deveria seguir para leste, onde encontrei Nadati. Antes de partir, beijei Celith na frente de todos da tribo, revelando nossa relação… Ela deveria ter sido banida também… E imaginei que tentaria seguir-me. – Você sabe que seu ancião não a mandou até aqui simplesmente por redenção, não é mesmo? – A voz de Owan a reprimia em cada palavra. – Sim… – Respondeu mordendo seus lábios. – E por mais que antes não quisesse aceitar, você entende agora o mal que trouxe para sua tribo? – Sim…! – Uma tristeza amarga descia pela sua garganta. – Ezrath Ma-Woo… O que você fez? – Eu trouxe a morte comigo por meio deste amaldiçoado medalhão… – Suas palavras lhe feriam como adagas ao longo que lágrimas pingavam de sua face. – Exatamente. – Ao estalar novamente seus dedos, toda a sala retornou ao normal. Raios dourados voltavam para as suas mãos, desaparecendo sob sua pele. Ezrath libertou-se, caindo ao chão, debruçada em seus braços. – Sua arrogância e egocentrismo jovial podem ter conduzido o caos por onde você passou… – O ancião respirou fundo, apertando seus olhos. – Contudo, este mesmo ato pode ter impedido inúmeras outras mortes. – O que quer dizer com isto, mestre? – Desde que partiram, não deixei meus aposentos nem mesmo um segundo sequer… Procurei, em todos os livros que possuo, contradições para minhas teorias… Eu precisava de motivos para crer que se tratasse apenas de uma maldição. Todavia, quanto mais eu estudava, mais percebia que estava certo. E por Zewo… Como eu gostaria de estar errado. Yzgart, a qual desde o começo dos eventos estava reclinada contra a parede, assistiu prazerosamente a tortura da elfa. Mas logo que percebeu o grau da importância da situação pela face de Owan, não pode conter seu incomodo. – E estava certo sobre o quê? – Sobre a profecia… – O velho homem soltava suas palavras ao vento como se fossem seu último suspiro. – Profecia? De que profecia está falando, mestre?
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– Enquanto Mesiak ainda banhava o céu, recebi uma visita inesperada… Havia deixado claro para os guardiões de que não queria ser incomodado a não ser que uma emergência surgisse. Honestamente, por mais receoso que estivesse, não pensei que tal urgência surgiria. Um templário de Ekran chegou na cidade, exigindo minha atenção. – Um templário?! – Nakryn arrumava seu cabelo. – Eu sempre quis conhecer um templário! Como ele era? Atraente? – Pelo amor de Neyu, Nakryn! – Owan não sabia ao certo se a aprisionava com sua magia, ou simplesmente a ignorava. – Além do mais… Vocês já o conhecem. Lethnox Keturak. – O anão? Um templário?! – Exclamou Yzgart. – Precisamente. Ele contou-me tudo o que presenciou na caverna. Desde Aran Arakna até mesmo sobre Yamaluhan. Ele não só corroborou com minha hipótese e minha aflição, como também trouxe notícias de Kasadak. – Algo errado na capital, mestre? – Atentem ao que estou para lhes dizer, e que minhas palavras sejam proferidas apenas por mim. Nenhuma informação deve sair desta sala. – Dando a volta em sua mesa repleta de livros, empurrou alguns tomos ao chão, sentando-se em sua poltrona. – O Círculo dos Sete acreditam ter motivos para crer que a profecia está para acontecer. E estamos falando da primeira de todas elas, proferida pela profetiza de Neyu, no início da nova era. – Eu não sabia que existiam profetas de Neyu. – Yzgart comentou. – Não são profetas, mas sim, profetiza. Livros não carregam informações necessárias sobre quem ela foi. O que se sabe é que a mulher iniciou o culto a esta nova entidade, proclamando que parte da alma de Pazija ainda estava viva fora de Zatwa, que seu espírito vagaria por Herathor até o dia em que Yerum encontrasse sua verdadeira paz. – Neyu, a esperança de Pazija… – Sussurrou Nakryn. – E qual profecia seria esta, mestre? O ancião da barba branca pegou um grande livro que continha inúmeras penas, mas apenas duas marcavam a mesma página. O tomo era espesso, velho, com feridas marcando sua grossa capa de couro. Colocando-o à mesa, abriu-o, proferindo: – “O fulgor aclamará o mais puro sucessor quando a donzela sepultar-se em sua cela e o animal devorar seu punhal. Quando o caos
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eclodir para extinguir o bem e o mal. Seis Zekats atarão o segredo ancestral. E ao tombar da sexta asa, proclamará o final”. – Zekat? – Nakryn coçava sua cabeça. – Se não me engano, o elfo psicopata da caverna disse algo sobre isto. Mas pensei ser um termo élfico. – Bem. De fato, é um termo em élfico. Todavia, não trata simplesmente de uma palavra, mas sim, de uma relíquia. A profecia possui vários aspectos de múltipla interpretação, sendo que nenhum significado pode ser dito sobre ela. Todavia, foi algo que assombrou o Círculo, pois a palavra Zekat foi proferida. Nenhum habitante sabia de sua existência a não ser os próprios Maôur. E foi assim que, sabendo que a torre de Karangan não seria proteção o suficiente, decidiram que o mais sábio a ser feito seria confiná-las por Herathor. – Mas o que seriam estas Zekats, mestre? – Após o Segredo de Pazija ser confiado ao Círculo dos Sete, estes absorveram pequenas frações e as enclausuraram em pequenos artefatos, os quais chamaram de Zekats. Chave, em élfico. O verdadeiro propósito para isto não foi revelado nem para nós, da Ordem de Zewo. – Como assim… Nem para nós? – Yzgart indagou, levantando uma de suas sobrancelhas. – Ao tomar conhecimento da profecia de Neyu, o Círculo criou uma ordem secreta para investigar e decifrar o que tais predições significavam. No começo, tratava-se de um seleto grupo de indivíduos, mas ao longo que perceberam que uma geração não seria o suficiente. A ordem cresceu e proliferou-se, tornando-se um culto até mesmo popular. A Ordem de Zewo. – Quer dizer que… Você sabia destas coisas e nunca me contou? – A bela clériga tendia sua cabeça para a direita. – Sim, Nakryn… Perdoe-me por isto, mas como o grão-mestre da Ordem, eu possuo total conhecimento sobre todos os segredos revelados de Herathor. – GRÃO-MESTRE?! – Gritou surpresa. – Você?! O velho bonzinho da barba branca? – Surpresa? – Owan sorriu satisfeito e contente. – Perfeito. Se até mesmo uma astuta e curiosa clériga como você não suspeitava disto, ninguém suspeitará. – Soltou um riso vitorioso, mas sua face voltou a seriedade anterior. – Nadati foi escolhida e fundada para ser a central da Ordem de Zewo, por mais que seja muito mais indefesa
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e pequena do que a catedral de Kasadak, ninguém suspeitaria que o grão-mestre habitaria tão pequena cidade. – E presumo que, com isto, não seja a única coisa que escondeu de mim, não é? – E não será a última. Deve entender que é meu dever confinar as informações enquanto estas são simples teorias. – Eu compreendo mestre, – um sorriso repleto de compaixão tomou sua face. – mas isto não muda o fato de que você é um desgraçado. Contudo… Por que está me revelando isto? – Estou revelando aquilo que você necessita saber para o que enfrentará em sua jornada. – Jornada? – Sim, Nakryn… Novamente, sei o que prometi para você, mas há uma última missão. Uma verdadeira missão. E isto coincidirá com seu desejo de liberdade. – Sim? – Apesar de sua criação ser uma incógnita, sabemos o que os Maôur decidiram fazer com as Zekats. Como toda chave, ela serve para trancar algo. – Que neste caso, seria o Segredo de Pazija. – Exatamente, minha querida discípula. O Círculo dos Sete executaram um grande ritual e fragmentaram o Segredo em seis peças. Cada Maôur decidiria o destino de uma delas, sem ao menos precisar anunciar ao outro o que fizera. Alguns deles destinaram a Zekat e o Segredo ao mais fiel de seus guerreiros, para que este escondesse-a aonde ninguém conseguia alcançar. Outros, entregaram aos elfos para que estes vagassem com elas. E outros, nem mesmo podemos imaginar. O que se sabe, porém, é que necessitavam que o Segredo fosse tangível, pois, se tudo mais fracassasse, seria a única forma de impedir Zewo de corromper-se à sua forma insana. – Owan levantou-se, retirando por debaixo da mesa um baú de bronze. Abrindo-o com uma pequena chave de metal, retirou o amuleto de Ezrath, o qual emanava uma energia tão poderosa que chegou a disparar seus corações. – Isto que apresento-lhes, que a elfa carregava como um simples adorno, é a Zekat de Lukavost Mogun. A bela elfa estava ajoelhada ao chão. Seu orgulho ferido se rompia mais ao longo que compreendia as palavras do velho humano. Todo este tempo acreditando que sua tribo era a escolhida. Que
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eles eram os verdadeiros portadores do Segredo de Pazija… Mas não apenas isto. Era a tribo de Celith, os sujos e ordinários Vaelt, os verdadeiros escolhidos… E nas mãos de uma simples puolí repousava o artefato sagrado. Mas o pior dos pesos era pensar que, por todo este tempo, a morte a seguia por causa de algo que antes não possuíam. – O senhor acha que isto está enfurecendo as criaturas da floresta, mestre? – Eu tenho certeza disto. Independente deste artefato possuir um enorme poder, não deveria emanar toda esta energia… Durante séculos, seu poder manteve-se latente, camuflando-se. Não fui capaz de encontrar o responsável por esta fonte, mas há uma magia poderosa sendo conjurada há milhares de quilômetros ao leste daqui! Tão distante quanto o mar… Tão distante quanto… – A Ilha dos Pesadelos… – Nakryn empalideceu-se, sussurrando as palavras de seus lábios. – Sim… Zabohrav. Eu não tenho dúvidas sobre isto, pois se trata de uma energia maligna. Ela está funcionando como ondas que se espalham por Taros, e as Zekats respondem seu chamado emanando seu poder. Estranhamente, este mesmo poder perturba as criaturas locais, deixando-as cada vez mais agressivas, e até mesmo transformando suas formas. – E como chegou a esta conclusão, humano? – Usei o Senhor Gatinho como cobaia, Capuz Negro. – Voltando seu olhar para a boquiaberta Nakryn, consertou-se. – Ele está bem, garanto. Apenas muito estressado. Seus olhos azuis divagavam por um momento, tentando ligar os fatos em sua mente. – Não vem ao ponto como cheguei as minhas conclusões… O que importa é que algo deu errado. – Errado…? – Yzgart ergueu sua sobrancelha, descruzando os braços. – O quê? Vocês não estavam esperando que algo desse errado? – Owan soltou uma risada descontraída, por mais que estivesse nervoso. – Estamos falando de um poder intangível, oriundo de uma relíquia tocada por Pazija, a grande dragão vermelha que aprisionou Yerum, O Cinzento! Por mais que eu seja o grão-mestre da Ordem de Zewo, meus poderes foram suficientes apenas para
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identificar a origem e a essência do que estava perturbando esta Zekat… Mas não o suficiente para estancar seu poder. – E isto significa…? – Imagine que esta Zekat está emanando seu poder como sangue escorre de uma ferida. Eu precisava encontrar a causa deste ferimento, portanto, como um ótimo cirurgião que sou, enfiei minha espada na chaga aberta e lhe abri de ponta a ponta para poder analisá-la melhor… Porém, faltou-me linha e agulha para poder costurar novamente, então, agora, está jorrando sangue por todos os lados. Logo os predadores vão sentir o seu cheiro e virão atrás de nós… Ficou mais compreensível? A grande orc cinzenta franziu sua testa, olhando para Nakryn, a qual erguia seus ombros. – O que esperava? Eu precisava herdar este meu comportamento de alguém! – Nakryn riu, notando que sua companheira estava confusa. Mas logo voltou o seu olhar para Owan. – Senhor… Tenho certeza que não discutirá o que conversou com Lethnox, ou muito menos os detalhes de sua pesquisa. Mas toda a movimentação no monastério… Estão se preparando para uma batalha, não está? – Sim, Nakryn, e é assim que começa sua jornada… Lamento que as coisas estejam tomando este rumo, mas… – Andando lentamente até Nakryn, apoiou sua mão sobre seu ombro, ajoelhandose. – Se estes “Kmets”, como intitulam-se, conseguirem desenvolver seus planos, certamente atacarão Nadati. É questão de tempo para que descubram os segredos que aqui são guardados comigo. Eu poderia fugir para Kasadak, mas aqui é meu lar, este é meu povo! Mas você… Você deve partir… Você deve fugir da cidade o quanto antes, e levará consigo a Zekat! O único modo de neutralizar esta energia é a gastando por completa. E para fazer isto, você precisa encontrar o Segredo de Pazija que este amuleto esconde. O único motivo de Yamaluhan buscar as Zekats é para se apoderar dos Segredos e, com eles, certamente libertará Zewo, apoderando-se de sua energia para finalizar seu trabalho e destruir Herathor como conhecemos. – Owan segurou firmemente os braços de sua querida discípula. – Eu sei o quanto esperou este momento para vagar por estas terras e buscar seus irmãos e, pela bondade de Xícenum, eu tenho certeza que os encontrará! Mas desde o dia que lhe encontrei vagando solitariamente, eu sabia que você estava predestinada a algo maior… Um destino
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perigoso, mas você carrega um potencial que nunca em minha vida encontrei em outra pessoa! Mas eu preciso saber, Nakryn… Você está pronta para assumi-lo? A bela clériga olhou para o lado, refletindo em tudo que havia passado até tal momento. Todos os momentos felizes que passou em Nadati ao lado de pessoas que verdadeiramente amava, sentindo-se confortável e segura dentro das paredes do monastério de Zewo. Lembrou também de seus pais e seus irmãos, cujos quais sempre lembrava com tanto carinho e saudade. Havia treinado durante sua vida inteira para deixar de lado o sentimento de impotência e poder proteger a todas as pessoas que ela amava. Havia feito a promessa para si mesma de que encontraria seus irmãos. Mas, agora, o dever lhe convocava para algo maior que sua própria história. – Eu estou! – Nakryn disse firmemente, levantando-se e batendo com seu punho fechado contra seu peito. – Partirei para onde o senhor ordenar que eu parta, mestre Owan. Não lhe decepcionarei… Talvez o caminho que eu trace leve-me até meus irmãos, ou mesmo afaste-me ainda mais deles… Mas independente do que aconteça, eu cumprirei com meu dever! Nadati não perecerá enquanto eu ainda respirar, senhor. – Eu sabia que podia contar com você, minha jovem. – Owan abriu um confortante sorriso em sua face. O velho andou até o centro da sala. Olhou para Yzgart e então para Ezrath, a qual permanecia de joelhos ao chão. – Nakryn é uma eximia guerreira, mas é uma missão arriscada apenas para uma garota… Não só Nadati corre o risco de ser destruída, mas se não agirmos, toda Herathor sucumbirá… Ela precisará de ajuda, contudo, seria indiscreto enviar mais discípulos com ela. Ezrath cogitava as possibilidades. Nakryn estava em posse de uma das Zekats. Não só o velho faria de tudo para que continuasse assim, mas certamente o poder que fluía da Zekat atrairia outras criaturas como o Kmet Aran Arakna. Caso fugisse com o amuleto, não seria apenas as escórias de Yamaluhan que perseguir-lhe-iam, mas certamente a Ordem de Zewo tentaria reaver o amuleto. Não sobreviveria sozinha apenas com o poder da Zekat… Todavia… Havia outra opção. Afinal, o poder do amuleto era apenas um fragmento da verdadeira força do Segredo de Pazija. E havia apenas uma forma de se alcançá-lo…
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– Não se preocupe, honrável ancião. – Ezrath curvou-se diante ao velho homem. – Compreendo agora o erro que cometi pela minha arrogância e ignorância. Não há o que eu possa fazer para redimir meus passos passados, todavia, há uma oportunidade para tentar alcançar o perdão e a glória de meu povo. Enquanto sangue correr por minhas veias, não abandonarei Nakryn em sua honrável jornada e a protegerei de todo o mal! Yzgart continuava estática. Imaginariamente remoía o crânio de Ezrath em seus punhos cerrados. Não importava o que ela quisesse aparentar para os humanos, a orc sentia que seu espírito não passava de ganância e egoísmo… Não acreditava em uma palavra sequer que saia de sua boca profana. Há menos de um dia, seu maior desejo era voltar para a floresta em seu cotidiano ao lado de Wittaz, mas aquilo havia deixado de ser uma realidade. Possuía motivos óbvios que impediam-na de pensar que seus dias voltariam ao normal. Testemunhou o que Aran Arakna era capaz e, se não fosse pelo templário anão e Nakryn, certamente estaria morta. A floresta não era um lugar habitável enquanto esta nova escória rastejasse pelas profundezas de Herathor. Mas mais impressionante do que qualquer coisa, Yzgart confiava em Nakryn. Nunca em sua vida confiara em outra humana que não fosse Wittaz. E mesmo com o pouco contato que tivera com a clériga, notava que algo de diferente havia em sua alma… Não poderia deixála sozinha nas mãos de uma elfa traiçoeira. – Seguirei a pequena humana, velho. – Respondeu secamente Yzgart, encarando Owan. – Caso a elfa quebre sua palavra, estarei lá para quebrar os seus ossos. O amuleto estará seguro, como Nakryn também estará. – Que assim seja! Preparem-se. Precisam partir o quanto antes desta cidade. – Ao menos, sei por onde começar. – Nakryn lançava um olhar confiante para seu mestre. – Lumaban. Se há algum vestígio sobre o Segredo de Lukavost Mogun, o Maôur malit, certamente em Lumaban descobriremos! E afinal, há um lugar que preciso passar no caminho… Não lhe decepcionarei, senhor! A ordem de Zewo prevalecerá, Herathor não sucumbirá ao caos de Zabohrav se isto depender de mim… – Nakryn ajoelhou-se diante o ancião. – Minha vida pela ordem, minhas armas pela vitória.
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– E minha alma em equilíbrio pela paz. – disse Owan junto à Nakryn, erguendo-a com suas mãos em seus braços. – Que Zewo seja o seu caminho, minha querida Nakryn. – Sentirei sua falta, mestre Owan. – Nakryn sussurrou, com seus olhos a lacrimejar. Nunca antes havia visto seu mestre tão melancólico. Ainda assim, um sorriso rasgou o canto de sua boca. – E se eu morrer, a culpa será sua por sangrar esta maldita Zekat! – Também sentirei sua falta, minha filha… – Sorriu. – O templo ficará vazio sem sua alma tão imprevista e seu riso tão espontâneo. A pequena humana se jogou de braços abertos, abraçando fortemente o velhinho. Por mais que seu sonho fosse encontrar seus irmãos, sempre soube que a ausência de Owan lhe custariam lágrimas e marcaria sua alma com saudades. – Não se atreva a morrer, velho bobo! – Choramingava Nakryn no peito do ancião. – Não antes de vê-la atear fogo em todos os teus inimigos, Nakryn. Você sempre será meu maior orgulho. – Owan soltou-a lentamente de seus braços, encarando-a novamente com um sorriso confortante em sua face. A garota dos olhos dourados observou bem o semblante de Owan. Seu mestre estava velho, não sabia ao certo quantos anos ainda viveria, ou se é que alcançaria tal idade… Se algo desse errado, o ancião arcaria com mais uma batalha e, por mais que seu espírito fosse vigoroso, seu corpo talvez não suportasse tantas outras feridas. – Adeus, mestre Owan. – Suspirou a pequena clériga, limpando suas lágrimas. – Adeus, minha destemida discípula… – Estendeu a Zekat, deixando-a nas mãos de Nakryn e fechando suas mãos sobre as dela. Nakryn acenou com sua cabeça e, voltando-se para a porta, sinalizou para que Ezrath e Yzgart a seguissem. Com passos largos e apressados, a clériga se retirou dos aposentos de Owan, seguindo pelo longo corredor vazio. Ao chegar na pequena sacada de madeira, voltou-se para trás uma última vez, avistando Owan fechando lentamente sua porta, observando-a partir. Lançando-lhe um último sorriso, apoiou sua mão pelo corrimão, seguindo rumo ao caos que se encontrava o saguão principal.
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A. Ridan
-VIArawan estava quase a pino. Se partissem naquele momento, talvez chegassem ao anoitecer em Sumahkot, onde armariam o acampamento. Ezrath e Yzgart estavam prontas, mas havia algo que ainda incomodava Nakryn. – Sinto como se estivesse esquecendo de algo importante… – Resmungou consigo mesma. – Temos o necessário, duvido muito que esteja faltando algo. – Ezrath prendia sua mochila de couro em suas costas. – Não. Realmente tem algo faltando… – Nakryn respirou por um momento, fechando seus olhos para fazer uma lista mental de seus pertences. – SIM! Como poderia esquecer?! Sigam em frente, logo alcançarei vocês! Antes que Yzgart pudesse reclamar da enrolação da jovem clériga, Nakryn já corria em direção ao centro da cidade. Decidiram seguir pela estrada norte, certamente ela as alcançaria em breve. A grande orc seguia distante de Ezrath, cuja qual sabia que estava sendo encarada incansavelmente. Avançaram poucos metros até que, enfim, não aguentou o silêncio. – Qual é o problema desta vez, orc? Observando a forma que nunca terá?! – Reclamou Ezrath, inquieta. – Tuas palavras são vazias e sem propósito, elfa. – Retrucou secamente. – Não importa a imagem que tente passar… Você não é merecedora de minha confiança, principalmente agora sabendo de seu passado. Acompanharei cada movimento seu. – Eu não quero sua confiança, orc. Em verdade, quero nada que venha de você! Estou aqui apenas para ajudar a humana, nada mais. Caso se incomode com isto, sinta-se à vontade para desvanecer de minha frente! – Você está aqui pela humana, não é?! – Yzgart jogou um sorriso tenebroso. – Pois garantirei que assim esteja! Se qualquer coisa acontecer com ela… Qualquer coisa misteriosa e sem explicação… Seja sua culpa ou não, você se tornará a próxima refeição de Wittaz e a minha também! Ezrath estava pronta para replicar Yzgart, quando um grande tumulto chamou a atenção das duas, que logo sacaram suas armas. Gritos e conversas agitadas tomaram conta da cidade. Pessoas corriam
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Herathor - As Seis Zekats
de um lado para o outro, liberando espaço para a figura temida: Nakryn, a qual saltitava contentemente. Cantarolava ao arrastar pelo rabo a enorme carcaça de um rato morto e em chamas, deixando para trás parte de sua carne que se desprendia pelo atrito contra o chão. Yzgart bateu com sua mão em sua face, ao mesmo tempo em que colocava seu capuz com sua outra mão e continuava sua caminhada rumo ao norte. Ezrath, pasma, observava com nojo, afastando-se da pequena humana. – O que?! – Perguntou Nakryn, enquanto as outras duas guerreiras apressavam o passo. – O que foi?!
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Ato II