Disco voador? Cavalo de Tróia? Um dia, todo o design será assim. Entretanto, a La.Ga já terá evoluído para outra coisa. Só não digam que é uma mala. Texto de Kathleen Gomes Fotografia de Pedro Elias
La.Ga
Pronta para seduzir. E para melhorar o mundo
D
entro de dias esta mala estará no topo do mundo, mas neste momento ela é cosida por uma mão tatuada. Quatro pontinhos e toscos, mai s um no meio, como num dado. Se uníssemos os quatro, teríamos um quadrado. Uma cela. O pontinho do meio representa um homem sozinho ou, neste caso, uma mulher sozinha. Dito sem rodeios: é mão que sabe o que é a prisão. Quando se está ou se esteve preso, ninguém precisa que lho lembrem, portanto esta tatuagem só pode ter poderes além-epidérmicos. Talvez seja um sinal exterior de resistência, um totem de força: quando se consegue vencer a prisão, tudo deve parecer possível. Não há nada de errado nesta imagem, a mão tatuada a coser a mala “trendy” que conquistou a Issey Miyake, a Swarovski e a nata da nata do design contemporâneo. Se acham isso inesperado, experimentem esta versão: a mão tatuada numa prisão portuguesa a coser a mala “trendy” portuguesa que terá Manhattan a seus pés. “As pessoas acham sempre que somos nórdicos ou japoneses.” Jorge Moita, a metade criativa por detrás da mala (a outra metade é Daniela Pais, que se desvinculou do estúdio de design criado por ambos, a Krv Kurva, e foi para a Holanda fazer um mestrado em Design Humanitário), já se cruzou com alguns negacionistas — gente que jura a pés juntos, e na presença do demiurgo, que a La.Ga não pode ser portuguesa. O topo do mundo, enfim: criador e designers gráficos quiseram baptizar uma das últimas versões da mala La.Ga no cimo do Empire State Building, antes da sua apresentação pública, há cerca de um mês, em Nova Iorque. Tem tudo a ver: a mala, que se chama NYC, como
As várias etapas da La.Ga em Tires
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as iniciais da cidade, é inspirada no “skyline” nova-iorquino visto dali. Que a inspiração seja essa e os seus criadores tenham feito uma espécie de celebração íntima, em surdina, antes da festa a sério (e do barulho, portanto), atesta bem a visão romântica que existe por detrás da La.Ga. Ela não tem falta de ambição: quer ser um objecto de desejo e, ao mesmo tempo, quer melhorar o mundo. (Agora é capaz de ser um bom momento para varrerem qualquer cinismo para debaixo do tapete. Aqui não há lugar para ele.) É uma mala sem vergonha. Não se importa de capitalizar os nossos impulsos consumistas, seduzindo-nos à primeira vista. Uma tentadora nata que faz tudo pelo “coup de foudre”. Está no seu ambiente natural quando se ouvem as palavras “chic”, “glamour”, “style”, está na Issey Miyake de Tribeca, em lojas de museus (hoje é lançada uma nova edição em Serralves, no Porto, assinalando o 20.º aniversário do parque), na ultra-selecta galeria de design dos armazéns Selfridges em Oxford Street, Londres, nas páginas de revistas internacionais, e ela pertence aí. Mas se fosse só um fenómeno de moda, um uau, não seria o que é agora, seis anos depois de ter surgido: uma oportunidade de valorização pessoal e profissional para reclusas. A mão tatuada cose uma mala por minuto. — Falo por mim: sinto-me útil. A “NYC bag” rodopia na máquina. — Era uma coisa que eu realmente gostava de fazer na rua: corte e confecção. Jesus sorri. Tem um colete de salvação cor de laranja por baixo. Se nunca foram formalmente apresentados, o mais certo é vacilarem perante a La.Ga. Como o Super-Homem, as pessoas não sabem muito bem o que estão a ver. Bárbara Coutinho, directora do Museu do Design e da Moda constituído pela colecção de Francisco Capelo e que deverá inaugurar na
Jorge Moita: “A mão-de-obra delas [reclusas] tem uma qualidade que nunca conseguiria atingir noutros sítios”
Hayon
Love
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Baixa de Lisboa em 2010, fez parte do júri que em 2002 atribuiu o Prémio Nacional de Design à La.Ga. “Chamou-me a atenção pela sua forma. Não tinha qualquer tipo de descrição técnica. Lembro-me de olhar e pensar: ‘Mas o que é isto? Será para quê?’” É minimal e “high tech”, curvilínea mas também direita, com o seu corte a laser. Mais fina que um milímetro, parece papel mas não é papel, e essa não é a última das suas contradições. Pesa 40 gramas e suporta 55 quilos. Mala sinuosa, mala-silhueta. É uma mala ou é para vestir? Não é preciso escolher entre uma coisa e outra. “A La.Ga tem sido um ovni”, diz Jorge Moita, nascido em Elvas há 32 anos. “Digo muitas vezes que é um objecto voador não-identificado e as pessoas que chegam até nós tiveram esse impacto, de nem saberem o que aquilo era. Tenho clientes que compram e nem sabem porquê. Que as usam só nas paredes, como decoração, não tiram partido dela como uma mala.” A La.Ga transcendeu-se a si própria enquanto acessório. Mais do que uma mala, já provou ser uma peça de colecção ou um “flyer” apetecível a que marcas e eventos querem estar associados (recentemente, a mala foi recriada parcialmente em cortiça para oferecer à imprensa na inauguração da mostra “Design Cork”, no Museu Berardo, em Lisboa). Mais do que uma mala, um cavalo de Tróia. “Há muito tempo que deixei de dizer que faço malas”, ri-se Moita. “Elas são só um pretexto para continuar a trabalhar ideias. Até me chateia que as pessoas digam que faço malas...”
A La.Ga deixou de ser apenas mala quando se percebeu que também funcionava como uma tela
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A La.Ga deixou de ser apenas mala quando se percebeu que também funcionava como uma tela. Nascera branca e imaculada, mas alguns utilizadores tinham começado a desenhar sobre ela. Hoje existem cerca de 40 modelos diferentes porque a La.Ga tem sido recriada com a colaboração de designers, ilustradores e artistas, nacionais e internacionais, estrelas como Jaime Hayon, Marcel Wanders ou Joana Vasconcelos. Não demorou muito até se tornar numa peça de embaixada do design português lá fora. Em 2005, quando surgiu o convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros para levar a La.Ga à Exposição Mundial de Aichi, no Japão, como exemplo de design sustentável, Jorge Moita e Daniela Pais não conseguiram encontrar produtores “competentes” em Portugal. O Estabelecimento Prisional Feminino de Tires, próximo de Oeiras, surgiu como uma alternativa. Ao mesmo tempo, havia a possibilidade de basear toda a produção em Itália, onde Moita se movimentava com à-vontade desde que trabalhara na Fabrica, o laboratório criativo da Benetton. “Acabei por voltar a Portugal para fazer o mais difícil. As pessoas perguntavam: porque vens para Portugal? Eu respondia: e por que não? O ‘por que não’ tinha de ser tão sonoro que fomos fazê-lo na prisão...” A verdade é que Tires veio reforçar a ideologia e as motivações por detrás do projecto. O que podia ser apenas um sistema de produção de baixo custo (mão-de-obra barata, sem 13.º mês nem segurança social: é sobretudo por isso que a prisão é procurada pelas empresas) foi assumido como um “statement” sobre o papel que o design deve representar. Uma declaração de responsabilidade social. “Já se desenharam suficientes cadeiras, suficientes mesas”, diz Moita. “Estamos a chegar a um ponto em que as pessoas vão deixar de consumir produtos se eles não se justificarem.” Se lerem nas entrelinhas, é uma crítica ao estado a que o design chegou. O “bluff ” atingiu proporções clamorosas no Salone di Mobile 2007, a feira de Milão que representa o epicentro mundial do design: triunfo do supérfluo e do hiper-
Luxury
Onde encontrar a La.Ga LISBOA a Hotel Bairro Alto Boutique (Pça. Luís de Camões, 2. Tel.: 213408288) a Centro Cultural de Belém (Pça. Do Império. Tel.: 213612410) a ZEN (Av. Miguel Bombarda, 102. Tel.: 217971401) a Fabrico Infinito (R. D. Pedro V, 74. Tel.: 212467629) a Fabrica Features – Benetton Megastore Chiado (R. Garrett, 83 – 4º. Tel.: 213556765) PORTO a Cocktail Molotof (Edifício Artes em Partes. R. Miguel Bombarda 457, 2.º) a Fundação de Serralves (R. D. João de
Castro, 210. Tel.: 226156500) * Lançamento, hoje, das edições 20 Anos Parque de Serralves, em colaboração com Benedita Feijó COIMBRA a Mau Feitio (R. Quebra-Costas, 42/44. Tel.: 239838201) LAGOS a Portugal the Best Of (R. Cândido dos Reis, 47. Tel.: 282181501) FARO a Libido (R. Conselheiro Bívar, 81/83. Tel.: 289829063)
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bólico. O design mandou a funcionalidade às urtigas e rejubilou no seu exibicionismo. “Estamos numa época em que o design quer ocupar patamares da arte e acaba por tornar-se oco e desprovido de função. Toda a gente quer grande, maior, mais deslumbrante, quando aquilo que torna uma peça realmente bela, ou a faz ultrapassar as questões da estética, é a função ser tão bem cumprida.” A verdade é que Milão emendou-se: este ano, se houve tendência no Salone, foi para um design mais responsável. (Entretanto, em Nova Iorque, no Cooper-Hewitt National Design Museum, também houve uma exposição importante para meter as mãos na consciência: “Design for the Other 90%” veio mostrar que o design só chega a dez por cento da população mundial, o que exclui 5,8 mil milhões de pessoas.) “Mais do que projectar novos produtos, o design deve projectar novas atitudes”, resume Bárbara Coutinho. Por isso é que a La.Ga é um cavalo de Tróia. “A maior parte dos clientes não sabe porque é que quer o que quer. Queremos que as pessoas tenham mais noção de porque é que estão a trabalhar connosco”, diz Moita. A questão é que há valores que estão ali. Para mim, uma marca é isso, uma soma de valores.” O grafismo da La.Ga que subiu ao Empire State Building saiu da Peter Saville Associates, o atelier do designer responsável por capas de álbuns dos Joy Division e dos New Order, alguém suficientemente famoso para levantar alguns sobrolhos. Mas isso não é necessariamente melhor publicidade do que a frase que vem em cada mala: “Sewed at Tires Women’s Prisional Center” (cosida no Estabelecimento Prisional Feminino de Tires). Outros talvez tentassem esconder aquilo que a La.Ga faz questão de explicitar: uma prisão pode assustar. Mas Moita não tem dúvidas de que Tires é “uma mais-valia”, que “valoriza completamente o projecto”. Não por acaso, aquele “Sewed at Tires” soa como uma garan-
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“Estamos numa época em que o design quer ocupar patamares de arte e acaba por tornar-se oco de função”
tia de qualidade. “A mão-de-obra delas [das reclusas] tem uma qualidade que eu nunca conseguiria atingir noutros sítios — não há tempo para isso, não se podem permitir o luxo que é esse tempo.” No ano passado, Moita desafiou Joana Vasconcelos a reinterpretar a La.Ga. A artista, que na sua obra tem explorado técnicas e noções associadas a uma tradição artesanal portuguesa, concebeu uma versão da mala com uma pega em crochet de cada lado. Um labor de quatro horas a unidade. Só em Tires. Moita espera que as pessoas olhem e reconheçam o “human touch”, como diz. O cuidado. A manufactura que faz com que cada peça tenha uma individualidade. “Para mim, choque tecnológico é fazer esta mala numa prisão em Tires com material da NASA [Tyvek, um material usado em aeronáutica]”, diz Jorge Moita. Ele tem o perfil de um verdadeiro empreendedor, a experiência de quem viu mundo (a La.Ga tem-no levado a todo o lado; próximas paragens: Sydney e Buenos Aires), e ideias fortes, como esta: “Estamos presos a estas noções: queremos ser a NASA ou o Silicon Valley. Mas as coisas têm de partir daqui e só assim é que ganham a sua identidade. Não é a cópia.” É em parte por isso que, apesar de “emails” com convites para trabalhar no Brasil ou na China, Moita continua, às vezes parece que teimosamente, aqui. Voltando ao selo “Sewed
at Tires Women’s Prisional Center” que vem em cada mala: é um factor de diferenciação, logo de competitividade. A La.Ga também tem uma base em Itália, um produtor que trabalha com a Diesel e a Fabrica Features (colecção de objectos de design da Fabrica), e os clientes notam a diferença. “Tenho o mesmo tipo de máquina em Itália e os clientes dizem-me que não é igual. Em Tires o ponto é diferente, há outros detalhes. E elas próprias [as reclusas] fazem o controlo da qualidade. Achas que Itália faz isso?” Se a máquina italiana desalinhar, sempre há Tires. Como agora. — Esta é para emendar, diz Jorge Moita. Corte defeituoso, made in Itália. — Made in Portugal é melhor. Made in Portugal, não: made in Tires. — Os italianos já não precisam da perfeição. Têm a fama, diz a guarda Violeta Neves. — A dona Violeta tem sido muito feliz comigo, não é? É a mão tatuada a falar. A única janela, aqui, tem grades, mas também é ela que dá música. Um velho rádio-cassete Akai está atado às barras. Se estiver desligado, é porque ainda ninguém disse: — Kim, música! Para chegar ao pavilhão das preventivas, atravessa-se um imenso terreno pontuado por edifícios, como um quartel militar. Tudo parece
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administrativo e quotidiano: funcionários a falar na rua, alguém que fuma à porta, um cumprimento amistoso. A entrada no pavilhão das preventivas pode ser tão súbita quanto o caminho até lá se parece pouco com o que seria de esperar de uma prisão. Mal entrámos e já estamos diante das grades. Do lado de lá, o ar é mais pesado. Caminhando dois ou três metros para a direita, fica a sala onde a La.Ga é cosida por reclusas. É um espaço cada vez mais exíguo, hoje até o senhor dos coletes está cá. Tires faz coletes de salvação desde 2004, ainda antes da La.Ga. “Os nossos concorrentes são chineses”, diz José Almeida, proprietário da marca. “Se agarrar num colete e não for made in China, ou nosso é um milagre.” Não tem pruridos em assumir que procurou Tires para conter os custos de produção. “Senão, não podíamos pôr os coletes à venda no mercado.” Só por si, as paredes deste atelier são uma narrativa. Jesus sorri. Os símbolos religiosos abundam, mas deixaram de ter o exclusivo em questões de fé. Também há diferentes versões da La.Ga e recortes de jornais que fazem referência à mala. Fé, ainda por cima com bónus: o orgulho. A guarda Violeta Neves é a serenidade em pessoa. Cabe-lhe supervisionar “a oficina”, mas a sua missão tem menos a ver com vigilância do que com recursos humanos. Faz o recrutamento (“Aqui não pode funcionar qualquer pessoa. Não pode ser uma pessoa que hoje vem e amanhã não”), motiva as reclusas (“Às vezes o que mais falta é motivação”). Também funciona como uma espécie de chefe de produção, sendo a principal interlocutora de Moita e um olho arguto no controle da qualidade. — A dona Violeta parece que lhe dá o cheiro. Tem este monte aqui, mas ela vai àquele ali. É tiro e queda: “Isto tem de ser desmanchado e cosido outra vez.” Maria João, 34 anos, mãe de três filhos, cumpre metade da pena em Fevereiro de 2009. O tempo na prisão é sempre prospectivo, porque é uma forma de subtraí-lo, de reduzi-lo. Maria
Maria João, condenada a oito anos de prisão: “Eu nem sabia coser um botão, quanto mais uma mala” João foi condenada a oito anos por tráfico de droga — a causa número um de detenção em Tires, representando cerca de dois terços da população prisional (num total de 355 mulheres e 74 homens). Fátima, a última costureira profissional a trabalhar no atelier de Tires, saiu em Fevereiro, em liberdade condicional. A maior parte nunca teve qualquer experiência anterior de costura mas, nota Moita, ao fim de algum tempo “começam a desenvolver uma capacidade por necessidade”. Isto, sim, é design emocional, diz. — Eu nem sabia coser um botão, quanto mais
Saville
Colores
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uma mala, diz Maria João. É como se falasse de uma prova olímpica. — Num belo dia de inspiração, ‘tava eu sozinha mais outra colega, uma moça venezuelana, e ela dizia ‘força, mami!’ e eu sentei-me na máquina. Foi uma prova bastante difícil que eu nunca pensei ultrapassar. A direcção de Tires reconhece que o projecto de Moita se distingue de outras parcerias, que passam pela execução de “tarefas mais indiferenciadas ou repetitivas”. O balanço é positivo: ao proporcionar a “valorização ou mesmo descoberta de competências”, a La.Ga contribui necessariamente para elevar a “auto-estima” das reclusas. Mas Moita parece querer manter-se fiel ao espírito de evolução do projecto e já está a planear o próximo passo. A ideia é intensificar o elo com Tires, ultrapassando a mera relação entre empresa e unidade de produção. Quer convidar outros criadores para desenvolverem projectos em Tires — e já começou a aliciar alguns: Lidija Kolovrat, Sara Lamúrias, Storytailors — que tenham uma componente mais pedagógica. Um calendário produtivo que também seja um calendário formativo, através da realização de “workshops”, dotando as reclusas de mais técnicas e valências. O modelo de inspiração são os Fab Labs, laboratórios com grande autonomia tecnológica e com uma escala comunitária, local, que têm uma perspectiva socialmente inclusiva. Não por acaso, Moita faz parte da equipa que está a trabalhar no projecto de implantação dos Fab Labs em Portugal, coordenada pela YDreams. “A ideia não é apostar na superformação ou na formação tradicional, mas no contacto directo com as pessoas que estão em situações de desigualdade. Transmitir-lhes conhecimentos com outra facilidade. Vejo na prisão uma plataforma onde isso é possível. Não acredito no castigozinho.” — O tempo aqui voa. E não estamos ao sábado e ao domingo porque, olhe, não nos deixam. Ainda pensa que a La.Ga é só uma mala? a
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Jorge Moita A La.Ga não é só uma mala