Patagonia Express

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1 PATAGÓNIA EXPRESS (22 de Março 11 de Abril 2007)

22 Março, dia 1 Lisboa – Buenos Aires (Argentina)

16 Horas de viagem, separam Lisboa a Buenos Aires, percurso via Madrid na Ibéria em classe turística com uma tripulação eficiente mas pouco afável, ao pedir um café “solo” responderam-me “que isto não é uma cafetaria”. O melhor do voo foi mesmo o software do avião, animação em 3D em todo o percurso, uma câmara instalada no leme do avião, mostrava uma visão única da aeronave, saliento a descolagem do aparelho a subir e a romper as nuvens, uma perspectiva que todos os passageiros não ignoraram nos monitores, 11h30mts de voo, filmes dobrados em espanhol de segunda categoria, o meu livro de Miguel Sousa Tavares (Sul), o mp3

e

amendoins,

foram

a

minha

companhia. Á chegada já é de noite, a silhueta do avião Aires

sobre e

Buenos toda

a

iluminação nocturna de uma metrópole com milhões de habitantes foi outro grande momento, uma aterragem em directo.


2 Depois das formalidades alfandegárias, eram 22h00 quando consegui sair do Aeroporto Ministro Pistarini, estava mau tempo, vento e chuva, o lixo no chão rodopiava no ar. Sou assediado por muitos intermediários de transportes, apesar das recomendações oficiais recomendarem outros serviços, as alternativas não as conheci, sujeitei-me aos esquemas locais, dois Argentinos levaram o carrinho até ao táxi, um deles coloca as malas na bagageira, o outro discute com o taxista a partilha de comissões, e pediram gratificação só pela despejo das mochilas no carro, eu disse que os 20 Euros acordados daria para todos, mas mesmo assim insistiram e cedi. Estava sem telefone, isto porque, naquele país só os celulares de quatro bandas é que funcionam, cansado rabugento e também com fome, só me apetecia chegar ao hotel. Sr. Guilherme o motorista que me levou, tem 70 anos de vida e 26 de taxista, alerta as virtudes e perigos da capital deste país, 50% dos 36 milhões Argentinos divididos por sete regiões e vinte e três províncias vivem na província de Buenos Aires, queixa-se dos Bolivianos e Peruanos diz que são preguiçosos e dão mau ambiente à cidade, mas gosta muito dos Brasileiros, gaba o Tango o Futebol (Boca Júnior) e a beleza das mulheres Argentinas. Foi tão simpático que emprestou o telemóvel e assim pude tranquilizar quem aguardava notícias. A fome apertava o estômago, apetecia-me algo quente, tipo um prego e uma imperial, não consegui, os Dólares são bem-vindos na restauração os Euros não, fiquei refém do meu próprio dinheiro. Contentei-me com uma sandes no hotel e uma cerveja, fiquei mais confortável. Sempre sozinho, não foi fácil, entre aviões táxis e


3 aeroportos, foi uma odisseia comprida, e até as pilhas do MP3 esgotaram a energia.

23 De Março 2º dia Viagem para Patagónia, voo doméstico entre Aeroporto Jorge Newbery B.A. e Calafate

O jet lag não perdoa, eram 6 da manhã quando acordei, no Hotel Wilton o pequeno-almoço é continental, sem ostentações mas o essencial. Junto à recepção havia dois computadores, mas também estes não tinham linha, ou seja, sem telefone nem Internet, bonito! Perguntei a um dos funcionários qual era o problema, a resposta foi simples “Welcome to Argentina” saí, e procurei um locutório (lojas de Internet e telefones). Também essas lojas tecnológicas não aceitam Euros, que desespero, encontrei um Polícia, tinha colete à prova de bala e um ar austero, mas a sua simpatia desfez aquela aparência rude, perguntei por uma caixa de Multibanco, ele respondeu “Aqui os Bancos só abrem a partir das 10hoo”. Eram 8h30m, fiquei a pensar na dependência destes meios para comunicar. Ainda me lembro dos meus pais trocarem cartas com os meus avós, viviam a 200Km de distância a 4 horas de estrada, telefones há 25 anos atrás, só para alguns. Hoje é bem diferente, habituado a contactar quem eu quero à velocidade da luz, seja por celular ou Internet. Hoje estou refém dos Euros, sinto-me impotente, não consigo contactar com ninguém de forma alguma. Entretanto vejo uma máquina de Multibanco, é uma autêntica bóia de salvação, foi um


4 grande alívio, introduzo o cartão e

finalmente

tenho

Pesos

Argentinos (moeda local). Agora

tinha

dinheiro,

actualizei o correio electrónico e fiz algumas chamadas. O

Hotel

situado, segura

Wilson uma

no

estava

zona

coração

bem

central de

e

Buenos

Aires, uma cidade com cerca de 4 milhões

de pessoas, as

pessoas

não

são

ruas

diferentes

e de

outras capitais “ditas” civilizadas, é a globalização, os mesmos carros as mesmas montras e roupas e marcas, com uma feliz diferença é tudo muito mais barato, o Euro é muito mais forte. Desde Lisboa até à capital Argentina sem falar com alguém, sentia falta de companhia, fui para o hotel o resto do grupo estava a chegar. O

problema

do

telemóvel

estava

sanado,

Maria

João,

uma

participante da viagem, emprestou o celular sempre que foi preciso, bastava trocar o cartão de telefone. O estômago já reclama, fomos almoçar à Recoleta, um bairro bonito, com espaços verdes restaurantes e esplanadas, há uma árvore tão grande que tem o tamanho de sombrear uma área equivalente um campo de ténis.


5 Almoçámos no restaurante Campos Elísios, um serviço simpático e saboroso mas muito demorado, as ementas estão recheadas de pratos à base de carne, aqui os vegetarianos não têm sorte. Em ritmo de marcha dirigimo-nos para o hotel, já estávamos atrasados para o transfere que nos levava para o aeroporto doméstico. Como se não bastasse, o cartão do meu quarto não funcionava, tive que esperar pela governanta para o abrir, e, por isso fui o último a chegar, já todos esperavam por mim, foi uma péssima primeira impressão. Já no aeroporto doméstico Jorge Newbery, bebi o chá mais famoso da América do Sul, o Mate, aromático e suave, não me impressionou. O pano de fundo são os aviões na placa vê-se também o rio Prata, que separa Argentina e Uruguai, uma extensão de água tão grande que à vista desarmada não se vê a outra margem, não admira este leito chega a ter 90 Km de largura. Apreciámos os Argentinos, eles e elas, há para todos os gostos, caucasianos de média estatura, um povo bonito, a maior diferença é o olhar, elas têm os olhos ligeiramente rasgados, não assumem o Espanhol como língua materna, dizem que falam Castelhano. A funcionária que nos fez o check-in, conseguiu separar-nos a todos no avião, desta vez mais 3H15 de voo, até Calafate.


6 A aterragem não foi para grávidas, à chegada Bodi o guia Argentino e Jaime o cicerone Chileno, aguardam-nos no aeroporto, este tem dois anos, dizem as pessoas locais que parece um porta-aviões no meio de nada. Só existe um tapete para as bagagens, aqui não há uma mala da Samsonite ou Luís Vuiton é só mochilas de campismo, umas novas e outras com mais quilómetros de uso, até parece um encontro de caminheiros, pessoas de muitas nacionalidades, e de várias gerações, Calafete é um dos portos de entrada para a Patagónia. Dirigimo-nos ao transfere, para a maioria do grupo, a viagem tinha começado em Lisboa via Milão depois Buenos Aires e agora Calafate, isto traduzido em horas dá 20h30m de voo, sem contar com as escalas de aeroporto, é dose. Habituados à temperatura amena dos aeroportos e ar condicionado dos aviões, finalmente ar fresco mas frio, apertámos os casacos, o líder da expedição Pedro Pedrosa diz “ Bem-vindos à Patagónia” O regozijo da primeira meta alcançada ainda não compensa, cansados e com fome, despejámos as malas na Hosteria Roblesur e fomos jantar. Cordeiro,

vaca,

enchidos,

carne

saborosa

e

casta

frango, tenrinha

suculenta

do

vinho

a era

Cabarnêt Sauvignon, a xixa Argentina,

o

restaurante

estava cheio de ocidentais, Argentinos

mesmo

os

empregados, foram as melhores boas vindas que poderíamos têr,


7 depois de muitas refeições de plástico, aquele menu foi um verdadeiro manjar dos Deuses. Foi um jantar muito divertido, ficámo-nos a conhecer muito melhor uns aos outros. 24 De Março 3º dia Glaciar Perito Moreno (Argentina) e transfere 410 Km para Torres del Paine (Chile)

Acordei às 6 da manhã, era de noite, a luz ao pequeno-almoço foi um crepúsculo vermelho e azul bem carregados, apenas algumas nuvens recortavam o horizonte, as janelas eram grandes, o céu deu-nos o primeiro espectáculo do dia. O Parque Nacional Perito Moreno está inserido na região da Patagónia, um planalto composto por Lagos, Bosques, e Geleiras, o clima é geralmente frio e húmido, é um dos

pontos

mais

turísticos

na

Argentina,

aqui

estacionam autocarros

que

trazem

ano

por

500.000 turistas/ano.


8

Qualificar este ambiente é difícil, os Poetas têm mais sensibilidade para caracterizar a imponência desta paisagem, os adjectivos que possam qualificar este monumento natural, não chegam, por isso, só mesmo alguns líricos tenham a capacidade de elevar as palavras a uma

dimensão,

que

se

aproxime da grandeza deste Glaciar,

estou

estarrecido,

aqui a natureza manda. Uma parede de gelo com 5 km

de

comprimento,

as

placas desse manto branco e azul, chegam a ter sessenta metros em altura, estalam e


9 fazem um barulho que mais parecem trovoadas, com o degelo é uma tempestade constante, ainda vimos alguns fragmentos a cair.

Há umas décadas atrás,

militares

da Força Aérea deste

País,

bombardearam o Glaciar, como este tem a capacidade singular

de

se

contrair e dilatar consoante

as

estações do ano, a consequência


10 destes movimentos é que isola uma das margens do Lago Argentino, e ao secar, os fazendeiros Ficam sem água para o pasto e agricultura. Por

isso,

com

bombas

de

várias

espécies tentaram romper as paredes de gelo, mas não conseguiram. Todos anos no Inverno o espectáculo repete-se,

o

Glaciar

encosta

à

margem, formando um grande tapete de gelo, milhares de turistas enchem os miradouros, traços a óleo de uma pintora e um fotógrafo profissional com máquinas analógicas de médio formato registam o espectáculo, perguntei ao fotógrafo, trabalho ou prazer? E respondeu” Para o cliente trabalho, para mim prazer” . Com cinquenta dólares, é possível fazer um mini trecking sob o glaciar, e beber um wiskey com gelo milenar. E, de facto ver, pintar,

respirar,

fotografar e ouvir um Glaciar com estas é

proporções,

realmente

prazer

um

para

os

nossos sentidos. Regressámos a El-


11 Calafate, uma cidade muito pitoresca.

Reza a lenda deste povoado que os Selknam, tribos que viviam na Terra do Fogo, estavam em conflito e juraram lutar até à morte. Calafate, filha do chefe de uma das tribos, era muito linda e formosa, conheceu um rapaz muito bonito e esbelto, depressa se apaixonaram e descobriram que as suas famílias se odiavam, tarde demais o amor fala mais alto, os amantes não desistiram um do outro, o romance foi brutalmente interrompido pelo Pai da Calafate, que chamou toda a tribo para pôr fim à relação, e disse “ Eu só quero conservar os seus bonitos olhos”. Assim o seu corpo transformou-se num arbusto e seu fruto foram umas bagas negras e doces como os seus olhos, para que ninguém se aproximasse do arbusto ficou também com espinhos.


12 O Pai de Calafate nunca esperou que o amor que sentiam um pelo outro fosse tão forte, o rapaz ficou junto do arbusto ao frio ao sol à chuva à fome e á sede até morrer, sucumbiram os amados mas nasceu uma lenda, o amor venceu a morte, hoje o nome desta cidade Argentina é eternizada com esta história. Diz-se come

que os

quem

bagos

de

Calafate transformará o seu coração, apaixonarse-á pela Patagónia e ficará com o desejo de

voltar

onde

à

esta

terra

crónica

aconteceu. As casas nesta pequena cidade remota que sobrevive à custa do turismo são todas de madeira, serviços e comércio, lojas de todos os géneros, mas o artesanato local impera. Infelizmente só ficámos 1

hora, é um paraíso para quem gosta de compras. Uma carrinha de marca Mercedes, leva-nos

por

mais

4

horas

de


13 viagem, um luxo, ar condicionado, bancos reclináveis até almoçámos em andamento, com as pampas em pano de fundo, paisagens que se perdem

no

horizonte. Parámos ainda

num

café, esticar as pernas um

beber

café

fazer

e

alguns

telefonemas, nos

próximos

qutro

dias

vamos estar incontactáveis, só dia 28 é que podemos ter acesso a um telefone satélite. O tempo urge, e não queríamos chegar ao acampamento de noite, a luxúria acabou quando saímos Argentina, deixámos o conforto Alemão na fronteira. Entrámos no Chile, país com um dos povos mais carinhosos que já conheci, sofreram 17 anos de ditadura comandada por

General

Augusto

Pinochet, o lema desta pátria é “pela razão ou pela força” São 8000 km de

extensão,

num

território que goza as


14 quatro estações o ano inteiro, tem como vizinhos Bolívia, Peru e Argentina, tem o deserto mais seco do mundo, o Atacama, que Luís Spúlveda, escritor Chileno revolucionário que tão bem ilustrou no seu romance “AS Rosas de Atacama” Jaime, Chileno de Punta Arenas, agora é o nosso guia, amigo, confidente e

motorista,

carrinha velha

uma

Chevrolet e

cansada

carrega agora 13 pessoas mais as bagagens num espaço que me faz lembrar o Metro em hora de ponta.

Os primeiros km são em terra batida, pelo caminho um ambiente inóspito quase sem vida. Apenas alguns Guanácos, um animal que se assemelham ao Lama, é uma das marcas

mais

emblemáticos

da

Patagónia, deslocam-se em manadas de 20 ou 30 indivíduos, outro símbolo da região é o Condor, o rei dos Andes,


15 chega

a

envergadura

de

quase três metros. Chegámos ao acampamento Las

Torres,

preparado

arrumado pelo

filho

e do

Jaime e outro colega, agora já divididos pelas tendas, com as

malas preparados

para o dia seguinte, fui fotografar o crepúsculo do parque, cavalos, ribeiras, uma montanha e um hotel de luxo, caracterizava o ambiente.

O jantar foi à luz das nossas lanternas, estava frio, mas o vinho compensou, todos juntos e apertados dentro de uma tenda, 13 bocas e 26 mãos vorazes cercam uma mesa pequena. Bem bebidos e compostos, fomos ao hotel luxuoso para beber uma cerveja, o preço também foi uma

luxúria,

6

Euros

por

garrafa, embora a Lúcia a cientista Alemã que vive em Itália tenha pago, a conversa em jeito de entrevista que tive


16 foi prazer, aquele ambiente e tertúlia fez o preço da bebida muito mais barata. São 11 da noite, é muito tarde, para quem tem de se levantar cedo, regressámos ao acampamento, amanhã começam as caminhadas.

25 de Março 4º dia, Trecking Las Torres-Miradouro del Paine-Las torres (17km, 7 horas). Transfere para acampamento Lagoa Azul.

Levantei-me às 6 da manhã, era de noite e já não tinha sono, temia a minha resistência, era o único que nunca tinha feito caminhadas deste nível e dificuldade, não queria que estas férias fossem um pesadelo, por isso, estava ansioso e nervoso. À luz da lanterna, tomei um banho mais prolongado e aproveitei para lavar alguma roupa, o gel de banho que me lavou também serviu de detergente para a roupa. Ainda sem o pequeno-almoço tentei fotografar o nascer do sol, a maioria do grupo ou dormia, ou estava só agora a levantar-se, queria registar a luz vermelha a incidir na neve, mas as nuvens não deixaram. O silêncio da natureza foi brutalmente interrompido, por um barulho surpreendeu tudo e todos, o som fazia adivinhar uma manada de alguma coisa, eram 7 da manhã, os zip’s das tendas abrem-se, as pessoas começam a sair das tendas, os decibéis aumentam, 15 cavalos a galope trespassam o nosso perímetro, julgávamos cavalos selvagens, mas não eram, um Gaúcho fechava a corrida.


17 Foi um começo de dia fantástico, cavalos

aqueles

deram-nos

o

bom dia, como quem diz, bem vindos. O

pequeno-almoço

foi

farto e calórico, cereais, iogurtes, frutas, leite e barras energéticas, o primeiro dia de trecking espera-nos, 17km para trilhar e contemplar, a partir de agora as pernas e nossa motivação psicológica são o nosso motor.

A primeira hora foi dura, os músculos ainda frios assustaram-me, e pensei, estou fraco, não vou conseguir manter o ritmo necessário para concluir os objectivos propostos, mas o susto deu lugar à tranquilidade, aguentei muito mais e melhor que eu pensava, apesar do piso ser tortuoso para


18 os pés, os olhos vingavam com o deslumbre das montanhas, ribeiros, lagos, pontes de madeira e a vegetação. Começava-mos a sentir o encanto desta região, mas desta vez ao vivo e a cores, começa a fazer sentido, todos os relatos que ouvi-mos ou lemos sobre a Patagónia. Os vários circuitos pedestres do Parque Nacional de Torres Del Paine criado

em

1959,

são

mundialmente

famosos, não só pela sua beleza mas também por causa do grau de dificuldade. Existem 28 percursos e para os conhecer, são precisas palmilhar 249km de trilhos identificados. Este parque também tem a denominação de «Reserva da Biosfera» declarada pela UNESCO em 1978, significa que estes 242.ooo

hectares

de

terra

têm

um

ecossistema e meios que permite a simbiose da biodiversidade e o seu uso sustentável, ideal para aventura e eco turismo. A fauna, compõe-se por mais de uma centena de espécies de aves, duas dezenas de mamíferos, entre os quais: raposas, lebres, veados, guanácos e pumas. Até ao miradouro das Torres só fiz duas paragens, a última parte do percurso foi a mais difícil, fi-la sozinho, não quis perder o ritmo, por isso, não parei para reagrupar, pedi autorização para continuar e segui, a inclinação variava entre os 30 e os 45º a


19 subir, neste caso a escalar pedras e pedregulhos. Há uns milhares de anos, toda esta zona era um glaciar, hoje os testemunhos

dessa

orografia,

são

as

moreias

do

glaciar,

uma

montanha de calhaus uns pequenos, outros gigantes. A subida conquista-se de cm em cm e de pedra em pedra. O esforço valeu a pena,

cheguei,

finalmente as Torre Del Paine, o colosso de Rodes da

Patagónia,

são

3

mastros de pedra com uma altura de 2850mts de altura, as Torres são tão imponentes que mais parecem

um

marco

geodésico natural. Até apetece fazer uma vénia,

a

vida

ganha

outros sentidos quando somos confrontados com estas

escalas

naturais,

sentimo-nos mais pequenos mas também mais ricos, um esplendor visto apenas aos adeptos do trecking, aqui não chegam autocarros, sete horas de caminhada entre pedras, socalcos, e lama, às vezes o suor é tanto que o sal arde os olhos.


20 Tirámos a fotografia de grupo, descansámos e também comemos, agora temos de regressar a fazer o mesmo caminho, pelo trilho cruzámos com pessoas de todo mundo, aprendi saudação

nesse dia

internacional

a

dos

caminheiros “OLÁ” A meio do caminho Lúcia e eu parámos no refúgio para beber um

chá,

descalços,

só lá

podemos fora,

entrar

botas

e

bastões de todas as cores e géneros. Do lado

de

fora

Bob

Marley

pautava

a banda sonora,

uns

Americanos bêbados, com umas colunas amarradas à mochila e com garrafas de Jack Daniels quase vazias nas mãos, faziam a festa para eles e para quem tinha ouvidos, é quase um crime, adulterar os nossos sentidos com álcool e não absorverem de forma sóbria e sensível aquela

energia

bruta

e

virgem daquelas paisagens. Jaime, já esperava por nós, cansados

e

com

fome

entrámos na Chevi, agora o destino

chama-se

Lagoa

Azul, um trajecto de uma hora. Pelo caminho parámos para fotografar os Guanácos, o que era parecido com os Lamas, Bruno faz a melhor caracterização destes animais, um cruzamento de Camelos com Veados.


21

Chegámos ao entardecer, a vista do acampamento Lagoa Azul como muitos outros sítios é de cortar a respiração, um lago um molhe de madeira e ao longe no horizonte as Torres del Paine a vigiar a paisagem, havia poucas nuvens, mas o suficiente para recortar o céu. Nesta viagem, apesar de levar tripé com máquina e duas lentes, não há tempo para escolher o melhor enquadramento e momento, não há tempo para

parar

nas

caminhadas é sempre a andar,

sob

pena

de

perdermos o ritmo e nos


22 afadigáramos muito mais. Aqui neste acampamento, tenho o tempo e a luz que eu quero, fotografei, respirei e contemplei o ambiente, foi fantástico. Sujo e cansado, tomei banho e lavei a roupa como de costume, à lareira o tripé foi um óptimo estendal para secar, calças, meias e camisas minhas e dos outros companheiros, a roupa era tanta que o tripé mais parecia um abajour. O jantar estava pronto, sopa de cenoura e chili como prato principal, o vinho era tinto da casta Cabarnet Sauvignon, as velas dão luz à sala, não há electricidade e não à rede para telemóveis, e ainda bem, somos só nós, o pão o vinho e a natureza. Após o jantar bem hidratado, fui tentar fazer fotografia nocturna, sozinho, numa escuridão tão negra que as estrelas pareciam estar mesmo junto de nós, o brilho e as formas de algumas constelações parecem figuras que outrora eram mitos e lendas, gostava de saber mais sobre astronomia e assim podia apreciar melhor este espectáculo nocturno. Apesar

do

prepararei

frio a

fotografia, escolhi a lente o cenário configurei máquina,

a ajustei

o tripé, tudo, ou quase

tudo,

quando ia captar a foto, reparei que não tinha o cabo disparador, ou seja, naquela


23 situação, era obrigatório aquele pequeno acessório, a ausência de luz exigia um exposição prolongada, pelo menos 5 minutos, e o cabo estava no refúgio, tinha que o ir buscar e lembrei-me que por ali existe fauna selvagem, os Pumas e Raposas, senti algum medo. Regressei a casa sem a fotografia mas com o material e já não saí. Não dormi na tenda, preferi ficar junto da lareira não apenas por romantismo mas também por necessidade, tinha roupa para secar. Cansado mas satisfeito de um dia cheio de emoções, ajeitei o saco de cama e deitei-me, o único Barulho que se ouvia era a madeira a estalar no fogo, o Pedro e a João já dormiam, só depois de estar na horizontal é que reparei que não tinha insuflado o colchão, estava tão quentinho e que não tive coragem de sair para o encher, cansado que estava não teria dificuldade em adormecer.

26 de Março 5º dia, Circuito Del Paine, manhã percurso entre Laguna Azul e Lago Paine, (15 km, 200 mts de desnível aprox. 4 horas). À tarde, Lago Paine até ao abrigo Lago dickson (14km aprox. 4 horas)

A lareira já não fumegava, a roupa secou, a sala agora com luz do

dia

mais

parecia

uma

lavandaria, são 6 da manhã, o sol ainda não nasceu mas, já existe claridade

para

paisagem,

o

vislumbrar

abrigo

tinha

a

uma

janela panorâmica, que mostrava o Lago e as Torres.


24 É indescritível a sensação de acordar e espreguiçar com um pano de fundo daquele género, parece temos um postal gigante à nossa frente. É um verdadeiro momento Kodak, os primeiros raios de sol, começam a pintar a paisagem, é uma explosão de luz e cores, o verde e o castanho das árvores o azul da água e do céu, e o vermelho nas Torres, compõem um enquadramento quase perfeito. Obviamente, vesti-me o mais depressa que pude para registar aquele cenário.

Desta vez não tiro fotografias, agora vou a fotografar, a diferença é simples, captar fotografias, é carregar no botão no modo automático, sem tempo para pensar nem escolher o melhor ângulo, ou seja, dispara primeiro e ver depois. Fotografar é outro mundo, é meditar o local, aplicar técnicas, e nada é ao acaso, carregar no botão é a última


25 acção que se faz, nessa manhã tive o prazer de contemplar e registar esse ambiente. Uma Raposa um pouco atrevida, intrometeu-se no nosso espaço, ninguém teve medo, ela apenas queria alguns restos de comida que estavam no lixo, ao regressar para o abrigo com a máquina fotográfica deparo-me com a melhor simbiose possível, já tinha a flora e agora a fauna, esta simpática Raposa que nos veio dar um agradável bom dia posou para nós, e claro, registei uma dos melhores momentos, o animal em primeiro plano e as Torres de fundo, tive muita sorte. Fantástico, nem sequer

tinha

tomado

o

pequeno-almoço e já tinha o dia ganho, as fotos o cenário Raposa,

e

a

deram-

nos uma manhã que vai ser difícil de esquecer. Finalmente o pequeno-almoço, calórico como sempre, todos de frente para a janela panorâmica, nem apetecia sair daquele sítio. O objectivo hoje é o Refúgio Dikcson 29 km de trilhos, separámos as mochilas, os Cavalos conduzidos pelos Gaúchos levam as mais pesadas, e as mais leves transportamos nós às costas. Leves, só de manhã, porque caminhadas com este grau de dificuldade todos os gramas contam, entre a máquina fotográfica, lentes, calças


26 de 3ª camada caso chova e blusão, o termo leve só se aplica nas primeiras horas de percurso. A natureza regenera-se, em 2005 houve um grande incêndio nesta zona, e agora, apenas as árvores que teimaram em não cair, mostram alguns vestígios desse fogo, é incrível pensar que à dois anos toda esta área foi dizimada, e hoje o verde impera. Depois de andar, subir e

descer

vales

e

montanhas, o primeiro obstáculo

a

sério,

percorrermos margem

de

ao a

uma

ribeira, afunilámos até ao ponto de recuarmos ou passávamos para a outra margem. Artur e eu éramos os chefes de fila, Ele voltou para trás, eu descalceime, arregacei as calças coloquei as botas ao pescoço e com a ajuda dos bastões, pedra a pedra atravessei a água, estava tão gelada que até sentia agulhas a picar os pés.


27 Este circuito tinha a forma de um anel à volta das Torres del Paine, e desse ícone Chileno nasce o rio Paine, nos riachos podemos passar a pé, mas no leito principal não. Os Gaúchos com os seus cavalos aguardavam pelo grupo, agora os corcéis são a nossa ponte para a outra margem, dois a dois

e

contra

a

corrente

cruzámos o rio principal, as águas estavam revoltas e frias, o momento teve um sabor de

uma verdadeira aventura. Já do outro lado, o recorte rochoso das montanhas formam a cabeça de “Índio” e de uma “Teta”, os Gaúchos agora só com as mochilas, seguiam a sua odisseia equestre. O

sol

tinha

apartado

e

ainda

tínhamos mais uma hora de caminho, foi talvez o percurso mais perigoso que fiz até agora, Armando e a Marli atrás,

Bothi e eu à frente, tínhamos

que andar muito depressa, crepúsculo não ajudava, percorrer no meio de vegetação densa quase sem luz, era difícil e arriscado, por vezes a


28 distância do precipício era de apenas de uns centímetros ao lado, por uma diferença de 10 metros às vezes deixava-mos de nos ver. Marli gritou muitas a chamar por nós, emprestei-lhe o meu bastão, a luta era chegar o mais breve possível, as pernas já estavam desgastadas, e na recta final ter de fazer um sprint, ufa. Avistámos o refúgio, já é de noite, Pedro e Fael preocupados saíram do abrigo para irem ao nosso encontro e nos guiarem com lanternas, foram uns queridos. No Albergue, o banho foi outra odisseia apenas corria um fio de água, a técnica era, encher as mãos com o precioso líquido e escorrer pelo corpo, como se não bastasse a luz estava intermitente, aqui as lanternas, eram as melhores amigas. O refúgio Dickson é talvez um dos Albergues mais inóspitos do Chile, quaisquer mantimentos que estejam aqui, são transportados a Cavalo, está 6 horas de distância da hospedaria mais próxima. Mas apesar disso, ouvi Português junto à salamandra que nos aquecia, uma Lusitana de Coimbra que também estava lá, foi estranho, aquele sítio sem rede de telemóveis e um dos locais mais remotos que estive, encontrar uma conterrânea. É tempo de decidir quem vai ou não subir ao Paso Jonhn Gardner, 12 horas de caminhada, as primeiras 6 são sempre a subir, é o dia mais duro,

Pedro

vai

aconselhar/decidir, quem

tem

físicas

para

condições fazer

o


29 percurso. Pulverizei os músculos da tíbia com um spray quase milagroso, as pernas estavam doridas e cansadas, os meus pés sem bolhas, confesso que estava um pouco nervoso e ansioso do dia seguinte, perguntei ao líder da nossa expedição se ele me achava capaz, ao que respondeu: “ Tu é que sabes, não tens bolhas nem lesões, é uma etapa dura, mas até agora tens-te aguentado bem, por isso decide” vou arriscar, a saída é às 6 da manhã estou cansado e tenho sono vou dormir. 27 de Março 6º dia, passeio pedestre entre lago Dickson e o Refúgio Grey, passando por Los Perros e campamento Paso (23km/12horas)

E, valeu a pena, escrevo estas linhas com uma cerveja na mão e com as pernas doridas no refúgio Grey, tenho um sentimento de vitória, ultrapassei em muito as minhas expectativas, apesar desta aventura ainda agora está a começar, devo dizer que a viagem está paga, a partir daqui, tudo o que vir ou sentir é lucro. Tudo começou às 5h30 da manhã, era ainda de noite, o sono foi difícil, o Abrigo estava num local edílico mas os ventos neste vale pareciam ganhar vida e velocidade, um dos telheiros do Refúgio estava solto, o telhado a agitação das árvores e os assobios do vento, a juntar o nervosismo do dia seguinte, teve como consequência uma noite quase desperta.


30 Preparámos a mochila só com

as

lanternas,

deveríamos sair às 6 da manhã mas só o fizemos às 7 horas, desta vez os culpados

do

atraso

não

fomos nós, o cozinheiro do Dickson esteve nos copos até às tantas com a Portuguesa de Coimbra (Mila), e, em vez de nos sentarmos e comermos, ainda tivemos de esperar que o cozinheiro se levantasse. Deixarmos o acampamento a Mª João o Artur a Marli, e o Bothi, este ficava agora responsável pelo o grupo que não fazia esta etapa, fariam outra mais leve, agora só nos vamos encontrar daqui a 2 dias depois no Refúgio Phoe. O crepúsculo deu-nos o bom dia, as primeiras 2 horas como sempre foram muito difíceis, até os músculos aquecerem o passe é muito mais pesado, com paragens curtas, metro a metro, passo a passo seguia-mos. Ainda faltavam 10 horas de carregos tortuosos, mas o esforço de fazer trekking também compensa, só assim se vê e se cheira estes ambientes, o verde florescente de um bosque que atravessámos, fez-me lembrar Sintra, vimos também ao longe o Glaciar Dickson, até orquídeas selvagens, o Outono está a chegar, esta floresta é um festival de cores, consoante a altitude mais se sente os castanhos e amarelos da vegetação.


31

Além da dificuldade óbvia da orografia e inclinação, sempre a subir, outro grande inimigo é o vento, era tão forte que nos empurrava, para evitar quedas evitar e outras consequências, tinha-mos de cravar os bastões no chão, e mesmo assim os desequilíbrios foram muitos. O perfil da caminhada nas primeiras 6 horas era sempre a subir, terreno muito sinuoso e inclinado, riachos e pedras, não há trilho traçado, apenas alguns marcos que assinalam a direcção. Enterrei as botas na lama duas vezes, foi o teste que faltava à impermeabilização do calçado. Chegou a primeira recompensa, o Glaciar del Perros, uma massa de gelo estendida como um lençol por cima de uma montanha, que desagua num lago.


32 Aqui a natureza devido ao degelo, deixa a descoberto as suas impressões, anos

da

marcas

com milhões

geologia

de

rochosa.

Pelo vale e sempre a subir, outro Glaciar o Puma, menos compacto mas mais largo que o ultimo. O chefe da expedição e eu liderava-mos a fila, o cansaço é grande mas a motivação é maior, ao longe avista-se o ponto mais esperado, páramos para reagrupar. Descansei 5 minutos, não queria perder o ritmo, e continuei sozinho, segui as marcas era quase impossível perder-me, o vento era a minha companhia mas também um obstáculo, felizmente tinha o tapa orelhas, que me protegia da agitação do ar e do frio. Faltavam uns 50 metros para o cume, sentia-me exausto o suor escorria, Pedro estava atrás de mim e disse “Prepara-te, fecha o casaco e põe os óculos por causa do vento”. Achei estranha e redundante a advertência, porque vento já era forte, mas depois compreendi o conselho, a frase nem é poética, mas deu-me uma energia que fiquei com vontade de correr até ao miradouro, e, a subir com forças que me desconhecia, comecei a sentir o tal vento mais forte, mais forte, era uma barreira natural naquele


33 sítio, senti um arrepio que empolou a minha pele, mas não era de frio, mas sim de emoção o cume estava a meia dúzia de passos, não sabia o que me esperava, mas algo dentro de mim pressentia o estrondo na alma que ia sentir….

E senti, atingi o cume El Passo John Gardner, o que era uma paisagem quase lunar de pedras e gelo sem vida, deu lugar a uma Majestosa e Soberba

paisagem,

não

estou

a

exagerar,

os

meus

olhos

testemunharam algumas maravilhas da natureza e do homem em quatro cantos do mundo, mas como esta não, afirmo e sublinho esta é a paisagem mais bela e poderosa que algum dia vi. Á minha frente a cordilheira dos Andes, uma extensão com dezenas de km de montanhas rochosas delineada com neve e pequenos glaciares a separar as suas enrugadas arestas, a separar o “paso” das montanhas vê-se o Glaciar Grey, que nasce na segunda maior placa de gelo do mundo o “SUR”.


34

Um leito de gelo com centenas de km de comprimento, e outros tantos de largura, atravessa Argentina e Chile. A vista do El Paso, é um autêntico terraço da natureza para os nossos olhos, o Glaciar é tão imponente que desafia as escalas de grandeza, um manto enrugado de placas de gelo, milhões de metros cúbicos de água petrificada em tons azulados, uma neblina a aconchegar as montanhas, fazem um quadro perfeito. Por ter sido o primeiro a chegar, vi este esplendor sem ruído humano, era eu, e a natureza, avistei uma mariola, fiquei comovido, os meus olhos não aguentaram e chorei de alegria e de emoção, corri em direcção do marco, para colocara as pedras, o vento rasgava as minhas lágrimas, coloquei uma pedra por todos aqueles que estão no meu coração, o meu filho a família e amigos, saúde e alegria foram os meus votos, sepultei esses sentimentos na melhor vista do mundo. Só caminheiros ou de helicóptero é que se vislumbra este panorama, aqui também não chegam autocarros.


35 O restante grupo começou a chegar, abraçamo-nos a todos, foi uma festa com ventos muito, muito fortes, captámos as fotografias da praxe. Tive imensa dificuldade para registar aquele cenário, é grande demais, uma foto não chega para ilustrar a sua real dimensão. A primeira etapa do dia estava concluída com sucesso, as próximas 2 horas é sempre a descer, e não é por isso que é mais fácil, a inclinação é acentuada, os pés dentro das botas escaldam, parecem limas a escovar as palmilhas, suei mais a descer que a subir. Parámos para comer, descalcei-me e pus os pés numa pequena nascente, apesar da água estar gelada, soube muito bem. Ainda

faltam

caminho

3H30mts

Madis

o

de

cientista

oceanográfico Estónio, foi a minha companhia, só desejava que o chão fosse plano, a subir ou

a

estava

descer farto

não de

importa palmilhar

sempre com desníveis, raízes, lamas, pedras, e tronco de árvores, é inevitável caí algumas vezes, calçar o 46 não é uma vantagem, é muito fácil tropeçar, atravessa-mos riachos subimos e descemos escarpas. A ultima hora de caminho foi a menos difícil, as minhas preces foram atendidas, o chão era liso, por isso bem mais fácil, Madis e eu localizámos um miradouro, também com uma vista muito bonita, era o encontro do Glaciar com o Lago Grey.


36 Vimos e fotografa-mos um pica-pau com uma crista vermelha, as aves aqui parecem não ter medo do homem, fiz uma aproximação de três metros. Chegámos com 11h50mts de trajecto, já era lusco-fusco quando finamente entrámos no Refúgio Grey, depois de nos instalar no quarto, tinha um problema, a minha toalha de banho ficou no Abrigo Dickson. Pedi e tentei comprar uma toalha da cozinha, mas sem sucesso, tomei um prolongado duche, e sequei-me com uma camisa interior. Entretanto resto

do

o grupo

estava a chegar, cansados e sujos mas muito felizes, completámos

a

etapa mais dura desta

aventura,

cumprimentámonos a todos como se há uma semana nós não nos víamos. Lavado e com roupa limpa, fui beber cervejas e escrever o meu diário, sentia-me muito bem e feliz, foi um dia muito rico, o que vi e senti não tem preço nem se mede, quando somos confrontados com emoções tão fortes ficamos mais humildes, e despertamos novos sentidos de vida. Madi, fazia 51 anos, nessa noite o vinho foi patrocinado pelo


37 aniversariante, já bem hidratados, a grande surpresa do jantar foi Sérgio Godinho. Incrível, um cd pirata com uma colectânea de músicos

Chilenos

provavelmente

revolucionários

com

nosso

conterrâneo a pautar a noite, a qualidade não se fica por aqui, além dos acordes do nosso Português, também Singer Roch, uma banda nórdica de qualidade rara, também encantaram a noite. Deitei-me sem saco de cama, utilizei o lençol de cama, poupei no peso e no volume e não me arrependo. Com a alma alegre e as pernas cansadas, superei as minhas expectativas, estou feliz, amanhã é outro dia.

28 de Março 7º dia, passeio pedestre a ligar o Refugio Grey e o Albergue Pehoe. 12 km 4 horas

Férias e descanso é o que apetece, após o dia com a etapa mais dorida e depois de uma

noite

animada,

dormimos

sem

imposições de despertador, o dia hoje é muito fácil o percurso tem um desnível de 200 mts a descer. De

manhã,

sozinho

tive

tempo

para

explorar e fotografar a frente do Glaciar Grey, os pequenos icebergues que se vão desprendendo das crostas geladas daquele vasto manto branco, têm formas que algumas parecem autênticas obras de arte esculpidas, as cores a textura e volume são um regalo para quem gosta de fotografia.


38 Nesta etapa só fizemos uma pausa para almoçar, fiz a ultima parte do percurso sozinho, só eu a natureza, o vento é tanto que consegue nos empurrar, é um verdadeiro fenómeno, as vistas começam difíceis de surpreender, depois de estar no terraço do Paso John Gardner tudo resto é apenas espectacular. Ao longe avisto o Albergue, na encosta de um vale com lago Pehoe a compor o cenário. Este Refúgio é novo, tem dois anos e está aberto sazonalmente, tem excelentes condições, bons quartos, as casas de banho são grandes a cozinha é tipo buffet, e finalmente temos telefone, via satélite e caro mas reconfortante para quem aguarda ouvir a nossa voz, até Internet com uma velocidade de caracol mas funciona, entre abrir o servidor e enviar um e-mail demorei 6 minutos e quarenta e sete segundos. Já não tinha roupa limpa, estava suja suada tinha de lavar tudo, comprei uma camisa e sabão, da casa de banho fiz uma lavandaria, o problema era secar a roupa, não tinha onde a estender, até que vi por trás da cozinha um estendal, pedi a um funcionário autorização, não foi fácil, insisti até ele ceder e consegui, finalmente uma vantagem do vento, secou tudo em duas horas, fiquei com todo o meu guarda-roupa lavado. Este Refugio é um verdadeiro porto humano cosmopolita, pessoas de todo o mundo a chegar ou a partir a pé ou de barco, Boti, Marli, Artur e Maria João finalmente juntaram-se a nós, acordaram às quatro da madrugada para conseguirem apanhar o último barco, e assim estamos todos juntos novamente, quando nos perguntaram como foi o El Paso, foi fácil ilustrar o que se viu, mas difícil de


39 explicar o que se sentiu, senti alguma amargura deles por estes não terem regalado os olhos naquele panorama como nós. O jantar, bem composto e regado, foi uma lição de história, a sala é grande, a decoração das paredes eram tapeçarias, e umas fotografias de tribos locais, uns quadros despertaram a minha curiosidade. Era um conjunto de nove quadros em linha com umas dimensões de 20x30cm, o recepcionista do empreendimento explicou-me que aquelas imagens

retratavam

uma

lenda.

Em tempos idos, as mulheres dominavam as comunidades tribais na região, pintavam-se, vestiam trajes estranhos, dançavam e ecoavam cânticos e ritos para assustar os homens, um dia às escondidas, um deles assistiu à metamorfose falsa das mulheres e percebeu que tudo era um logro, apenas com o objectivo de com o medo, manter o domínio sobre os maridos, ao relatar o sucedido aos outros indivíduos da aldeia, ficaram muito enraivecidos. Posto isto, determinaram uma chacina, mataram todas as mulheres mais velhas, e pouparam só as crianças, assim o homem voltou a dominar a sociedade local.


40 Fotografei outros quadros, fotos e artesanato que estavam expostas no hotel, registos com tanto de idade como história, aqueles rostos, retratam um estilo de vida e uma época. Kawéscar era a tribo que povoava esta zona, viviam em pequenos grupos, utilizavam as canoas para se deslocarem pelos arquipélagos, estas eram construídas com troncos de árvores atada com fibras da vegetação. As mulheres quase nuas mergulhavam nas águas frias para pescar marisco e pescado, apenas a gordura dos Leões-marinhos as protegiam do frio, utilizavam também a sua pele como cobertores. Hoje ainda existe uma família descendente dessa tribo, está sedeada em

Pueto

Cabana

e

Williams, alguns

têm

uma

objectos

para

vender como livros, ferramentas e canoas em miniatura.

29 de Março dia 8 percurso pedestre circular entre Refugio Pehoe e o campo Italiano e volta a Pehoe (9 horas), Transfere Punta Arenas.

O grupo hoje foi dividido em dois, os que não viram o Glaciar Grey, tiveram a oportunidade de o ver, fazendo um percurso para trás de seis horas ida e volta. O restante conjunto ia até acampamento italiano, junto ao Glaciar Francês, um caminho de 9 horas entre ir e voltar. A alvorada foi às 6h30m, já tinha tudo preparado, a roupa toda lavada, baterias carregadas, e os cartões de memória vazios.


41 Como era tão cedo, fotografei o nascer do sol, a janela do nosso quarto (cada divisão albergava seis pessoas) tinha uma vista sob o Lago Pehoe, foi impossível resistir abri a janela e mesmo com o frio que vinha de fora, registei um cenário com umas cores muito fortes. O sol começava a romper o horizonte, o céu tinha um degradée do azul ao laranja, a montanha rochosa que vigiava o nosso albergue estava cercada com nuvens

avermelhadas, o

Lago recebia os

primeiros raios de luz, como a luz era rasante, a claridade aumentava na água á medida que o sol se elevava, era uma autêntica cortina solar. Já

depois

algumas

do

pequeno-almoço,

hesitações

saímos

após

atrasados

como de costume. Nesta fase já cada um conhecia o seu ritmo e andamento, decidi seguir sozinho, o vento teima em fazer companhia, a meteorologia hoje para caminhadas não é a

melhor,

aguaceiros

fortes

são

as

previsões, pela primeira vez sinto a chuva como obstáculo, a juntar o vento sempre muito forte, era um verdadeiro desafio. Mas, desta vez o vento deu espectáculo, e de borla, o percurso hoje proposto, designadamente entre o Refúgio Pain e o Glaciar Francês


42 existe o Lago Kottberg, e nessa albufeira, o vento era tão poderoso,

que fazia remoinhos de água e os levantava a uma altura de 5/6 metros, autêntico

o

resultado lençol

de

era água

que deslizava sobre o lago e entrava

com

muita

velocidade nas margens, e nós, que estávamos perto, como reflexo a única coisa que podíamos fazer ou nos escondíamos numa árvore ou virámos as costas de cócoras e deixávamos a onda de vento passar, a sensação foi um bafo muito molhado.


43 A circulação do ar a esta velocidade, dá também a oportunidade de nos “deitar” no ar que não caímos, é uma sensação fabulosa, e melhor ainda, porque na ida estamos a ser empurrados pelo vento, o que seria muito

perigoso

se

a

orografia

fosse

com

declives.

Já quase a chegar ao acampamento Italiano, atravessámos uma ponte digna da saga Indiana Jones, quinze metros de tábuas gastas e velhas suspensas arames e cordas com diferentes diâmetros, a chover imenso, só podiam passar duas pessoas de cada vez, o rio Francês que passava por baixo era tudo menos tranquilo, passei para a outra margem com os meus níveis de adrenalina a saltitar, a ponte abanava por todo o lado. No acampamento Italiano, fizemos uma pausa para descansar, chovia torrencialmente e o tempo não fazia prever melhoras, optámos por seguir em frente com o objectivo de ver o Glaciar Francês, as calças que usava não eram as melhores para a chuva, prendia os movimentos das pernas o dificultava muito a subida.


44 Finalmente o gigante Gaulês, um colosso de gelo bem musculado entre duas montanhas rochosas. O céu estava muito cinzento, o nevoeiro, vento, chuva e sem tripé num terreno muito sinuoso, procurei abrigar-me debaixo de uma árvore para captar a foto, mas mesmo assim não a consegui registar a fotografia como eu queria. Nesta altura a Lúcia e eu decidimos voltar para trás, chovia torrencialmente era muito complicado seguir em frente, as calças estavam encharcadas e prendiam as pernas, a água escorria como uma cascata na nossa cara. O único conforto que tinha era o meu casaco, custou-me um balúrdio, mas agora já o acho barato, entre vento, chuva e algumas

quedas

o

blusão

continua a ser uma parede para o frio e água. Sem paragens impusemos um ritmo muito acelerado, o que se faria em três horas, fizemos em duas horas o objectivo era escapar do temporal, ultrapassámos alguns grupos na caminhada, os trilhos eram muito estreitos, o nosso passo era uma autêntica marcha, agora o vento já não estava a nosso favor, o único factor que não estava contra era o desnível, o chão era muito irregular, havia muita lama, as tábuas que faziam algumas pontes improvisadas por estarem molhadas eram muito escorregadias, e à velocidade que nós seguíamos só mesmo os bastões evitaram algumas quedas.


45 Já quase a chegar ao acampamento deixou de chover, o céu continuava encoberto mas o lago Pehoe ficou com uma cor quase irreal, um verde muito vivo e brilhante, parámos para o fotografar, mas Lúcia não satisfeita como também fotografava em slide, esperou que as nuvens se abrissem ao sol para fazer o registo ainda com mais luz, eu não a esperei e segui para o Refúgio. Ao chegar, fui secar as botas junto da salamandra, as minhas mais outros tantos pares de outras pessoas, meias, polainas, luvas, uma meia-lua de vestuário e calçado à volta do aquecedor. Aproveita-mos o calor da sala para fazer um balanço sobre expedição. Já quase de partida dirigi-me à cozinha, pedi uma sopa e uma cerveja, foi um consolo, estava farto de barras energéticas, apeteciame comida a sério, aproveitei ainda o satélite para mais uns telefonemas e Internet. O barco espera-nos às seis da tarde, o Lago parecia um oceano, a água estava

muito

travessia

encrespada,

serviram

na

chocolate

quente, fui à ré para fotografar, não dá jeito nenhum manusear equipamentos

com

botões

pequenos e com luvas, prefiro o frio e o vento, fiquei com as mãos geladas,

e

não

fiz

nenhuma

fotografia de jeito. É tempo de sair do Parque Nacional das Torres del Paine, dizem que é dos cinco um dos parques mais famosos do mundo, justiça lhe seja feita, os trilhos percorridos, emoções, suores, lágrimas e tudo mais que


46 as melhores fotografias não captam, ficam cravados na minha memória. São oito da noite, Jaime e a sua Chevy estavam a postos, tinha-mos ainda 380 km para fazer até Punta Arenas, viagem nocturna e farta em calorias, comprámos comida (sandes mistas, fruta, sumos, cervejas e batatas fritas) por decisão democrática comemos em andamento. Para selar a refeição, Jaime deu-nos Pisco uma aguardente local, soube tão bem que repeti a dose, as rádios passavam músicas dos anos 80, cantámos muitas vezes, foi uma alegria mas o cansaço começava a fazer as primeiras baixas, numa disposição de 4,4,3,2 dentro da carrinha cada um dormia como podia, eu estava na extremidade d no banco de três pessoas, ao meu lado a João, tentei de várias posições, mas pouco ou quase nada dormi, eis uma desvantagem da minha altura, não sou muito alto, mas o suficiente para vêr o resto do grupo encostado aos ombros de uns de outros, e eu se o quisesse fazer, teria um torcicolo à chegada. Jaime, não se esqueceu de mim, já em Punta Arenas, parou a carrinha em frente da sua casa, e, para minha surpresa, trouxe uma toalha de banho para mim, finalmente já podia limpar-me como deve ser, estava farto de secar-me com camisas. Finalmente chegámos à pousada El Conventillo, era 1h30 da manhã, muito bonita com cores fortes e alegres, a música que que nos recebeu era cantada por Caetano Veloso, o casal que nos recebeu eram muito simpáticos, serviram-nos pisco como sinal de boas vindas, obviamente não recusei, cada quarto albergava quatro pessoas e a Internet era de borla, as duas casas de banho estavam ocupadas, uns a tomar banho, outros a lavar roupa.


47 Como não tinha sono decidi conhecer a noite daquela cidade. Reparei à chegada que havia um bar perto da nossa hospedagem, sozinho fui lá beber uma Corona, eram 2h30m da manhã, estava cansado mas a banda que tocava uns encores de Pink Floyd rejuvenesceu-me, o público estava muito animado, o grupo devia ser local, pois notava-se que todos se conheciam, eu, claramente era o único estrangeiro, e por isso notado, conheci Ramirez, um estudante local de 21 anos, com um orgulho do seu país que já roçava o fundamentalismo, trocámos conhecimento sobre os nossos países, embora ele o saiba, nem me atrevi a falar muito da nacionalidade do navegador que descobriu, e que dá nome a uma das 13 regiões desta nação, a região de Magalhães, não queria que a nossa tertúlia se transformasse num confronto, colonialista versus colonizado. Fernão Magalhães, de nacionalidade Portuguesa, contudo ao serviço de Espanha, comandou uma esquadra de cinco navios, com uma tripulação de 250 marinheiros. Esta expedição que começou em 1519, foi uma viagem tempestuosa, houve acidentes, doenças a bordo, Motins, foi o primeiro descobridor a fazer o “circum-navegação” ao globo, rasgou o canal de 350 Km que liga os maiores oceanos do mundo o Atlântico e o Pacífico. Baptizou a Patagónia ao chamar Patagões

às

tribos

locais

por

causa das suas vestes e do seu aspecto. Denominou também esta região como a Terra do Fogo, no Século XVI indígenas locais, Ona e Yagan, povoavam em pequenas tribos as


48 margens do estreito, e, devido ao fumo e luz das fogueiras as ribeiras ficavam iluminadas, daí o seu nome. A odisseia para o Português terminou em 1521 nas actuais Filipinas onde

morreu

em

combate

contra

os

nativos,

mas

apesar

do

Comandante ter sucumbido, a epopeia continuou e alcançou o destino em 1522 em Sevilha, Juan Sebastian de Elcano foi o Mestre que concluiu esta aventura pouco lucrativa, onde começaram 250 homens e apenas chegaram 18, curiosamente nenhum destes marinheiros recebeu qualquer tipo de recompensa, nas várias biografias de Fernão Magalhães, uma delas refere, que nesta expedição viajou também um turista, ou seja, pagou para participar nesta aventura. Mais uma cerveja, a conversa estava bem hidratada, o estudante ensinou-me a história desta região e vendeu-me como se fosse um operador turístico. Esta península de nome Brunswick onde assenta a capital da Patagónia Chilena, Punta Arenosa, ou seja, Sandy Point, nome de um Inglês que explorou esta região Chilena há 150 anos, hoje apenas Punta Arenas, é a cidade mais austral deste país, tem 130.000 habitantes, vivem das florestas, gado, petróleo e gás, os 20 hotéis e dezenas de albergues também movimentam o turismo na cidade. Aqui está sedeada a Polar Logistics uma agência que organiza viagens para alpinistas, exploradores e expedições cientificas. Para conhecer o umbigo do pólo sul, são três horas de viagem num avião russo, o ILYUSHION 74 com 4 reactores, assegura esta a ligação, que só se faz quando a meteorologia o permite, o nosso alpinista Português João Garcia, também lá esteve e ficou retido em Punta Arenas dez dias à espera que as condições atmosféricas permitissem este voo.


49 A 25 milhas náuticas encontra-se a “Isla Magdalena” uma das maiores atracções a norte desta urbe, uma colónia de 60.000 Pinguins de Magalhães. Até o canal de panamá estar concluído, esta era cidade portuária mais movimentada da América do Sul, hoje continua a ser porto importante e estratégico para a chegada e partida para os cruzeiros que vão para a Antartica. A Banda já tinha terminado a actuação, Ramirez desafia-me a ir a outro bar, já passava das três da manhã, cordialmente disse que não, estava cansado, e não eram desculpas, mesmo com o adubo da cerveja e do pisco, estava muito cansado. Voltei para o albergue, para não apanhar hora de ponta no dia seguinte de manhã, aproveitei para tomar um demorado banho, desfiz a barba e lavei a roupa, todos os aquecedores estavam a ser utilizados como estendal para secar a as mais variadas espécies de vestuário, obviamente que fiz o mesmo. Não tina sono, aproveitei para escrever postais, infelizmente nenhum chegou ao destino, enviei apartir do Chile com selos Argentinos. Finalmente a cama eram quase 5 da manhã, o despertar era às oito, mas não estava preocupado, pois amanhã estamos de descanso.

30 de Março dia 9 Viagem para Tierra DelFogo. Voo entre Punta Arenas e Puerto Williams.

Depois de uma noite “piscada”, quando acordei o som dos Pink Floyd ainda tocava na minha cabeça, o pequeno-almoço estava na mesa, ninguém esperou por ninguém,


50 O relógio também não parava, tínhamos de separar a bagagem de porão e de mão, foi a confusão total, mochilas grandes e pequenas espalhadas pelo hall. Para não variar saímos atrasados, o avião era às dez da manhã e às nove ainda estávamos no albergue, estava a chuviscar, Pedro decidiu que as malas iam depois de nós, assim podíamos fazer o check-in sem atrasos. Já no aeroporto e com as bagagens, o primeiro problema surgiu, excesso de peso nas malas, a funcionária da DAP (Las Aerolineas de la Patagónia), disse que o limite de peso era de dez kilos por pessoa, a minha mochila pesava 17 Kg, o resto grupo tinha o mesmo problema. Há duas formas de ir para Puerto Williams, ou de avião (1h15mts) ou de Ferry (36 horas), a solução encontrada, não foi agradável mas a possível. Jaime ficou em terra para ir no Ferry, assim subtraiu-se o peso do nosso guia pelo excesso das nossas malas, ficámos tristes, todos nós tínhamos um carinho muito especial por ele. Jaime tinha uma humildade e cultura admirável conhecia Mariza e Madre Deus, quando falávamos de história universal, não se ficava apenas com as versões dos livros, também opinava o seu juízo, era muito fácil gostar dele, não era apenas o nosso guia Chileno, fazia parte de nós era um amigo. O Piloto esteve também a controlar o check-in, disse-nos que para a próxima se o avisarmos, ele põe menos kilos de combustível,

e

assim

evita-se

este

problema do peso. O

tempo

continuava

chuvoso,

habituados aos grandes aviões, desta vez


51 a nossa boleias é um “Casa C.212 Aviocar” um bimotor de 17 lugares, quando o vimos pela primeira vez foi uma risota geral, ao longe por comparação de outras aeronaves ali estacionadas, parecia um avião de brincar. Quando embarcámos foi outro grande momento, a cabine era muito pequena e apertada, a disposição era de 2 + 1, o cockpit nem porta tinha, já todos sentados com as bagagens de mão ao colo o corredor que separava os bancos nem se via. O comandante sentado no seu posto, olha para trás e em Espanhol dá-nos as boas vindas, explicanos

o

perfil do percurso, diz que o nosso voo vai ter uma duração de 1 hora e prevê alguma turbulência em algumas zonas de passagem, a partir desse momento sentia-se um nervoso miudinho em todos nós, ninguém o escondeu, mas o receio deu lugar ao momento mais hilariante. Agora em Inglês o comandante, olha para trás e diz “This is the Captain Speaking” e repete tudo o que antes tinha dito em castelhano, fartámo-nos de rir, pois éramos os únicos passageiros, especulámos que a meio da viagem o mesmo piloto vestiria um avental e nos serviria um chá mais umas bolachas.


52 Descolámos com chuva e vento, já a sobrevoar o estreito de Magalhães, tem-se uma perspectiva do grande S dos mais de 3o0 km que atravessa o continente, nuvens e algumas rajadas de vento sentiam-se na carlinga. Como se diz na aviação, a aterragem foi para grávidas, todos batemos as palmas, o aeroporto local não tinha muitas comodidades e era pequeno, os que chegavam cruzavam-se com os que partiam na mesma sala. Luís, o guia local espera-nos num Jeep mais duas carrinhas e levamnos para o centro Puerto Williams. O albergue onde ficámos chama-se “Hostal Pusaki” tem um ambiente familiar, é gerido por Patty, uma antiga professora que hoje dedica-se em exclusivo ao turismo, é uma mulher extraordinária sempre muito solícita e bem disposta, é também uma verdadeira alquimista a cozinhar, ninguém deste grupo foi indiferente ao Cordeiro com milho e batata acompanhado com um pão tão delicioso, que fazia lembrar os scones, o vinho estava também a condizer, foi

um

almoço perfeito. À

tarde

ainda com alguma chuva, fomos visitar a “Villa Ukika” dizem


53 que

são

os

descendentes

das

locais,

que

regime

nómada

estas

tribos

outrora

terras,

cabanas,

últimos

povoavam

tinham a

num

duas

primeira

ilustrava como se abrigavam antigamente, a segunda era a feira do merchandising, canoas em miniatura, livros, fotografias e outros artigos para vender, não

gostei,

aquela

comunidade faziam-me

indígena lembrar

o

jardim zoológico, era tudo muito

artificial.

Williams província

(P.W.)

Puerto na

Antárctica

Chilena e comuna do Cabo Hornos, é a localidade Chilena com o código postal mais austral do mundo, daqui até ao Parque Nacional Cabo Hornos, o último pedaço de terra são 165 Km. Tem 2.262 habitantes dos quais 600 são crianças em idade escolar, vivem da pesca, turismo, serviços e de uma pequena base naval da armada Chilena. Situa-se na Isla de Navarino, tem uma área de 40 por 100 km, é classificada também por reserva da biosfera, existem apenas


54 484 locais em 102 países do mundo com esta designação, a biodiversidade de

terra

é

desta

uma

porção

autêntica

pérola da Patagónia. O resto dia era livre, cada um foi e fez o que queria e onde queria, apetecia-me estar sozinho e sentir o ambiente desta povoação, com a câmara ao pescoço fui fotografar, senti-me um forasteiro ao cruzar-me com as pessoas, educadamente diziam-me “Buenas Tardes Sénhor”

eu

retorquia

com

um

simples olá, o primeiro sítio que parei,

foi

no

miradouro

Plaza

Costanera. A vista era o Canal Beagle onde zarpavam algumas embarcações, mas o poiso era um cemitério,

gosto

muito

de

os

fotografar, reflectem a cultura e rito de um povo, cerimónias como Casamentos e Funerais sempre me atraíram, não de uma perspectiva Voiyer mas sim com uma abordagem jornalística. Reparei que nas lápides não constam títulos ou profissões, apenas a data de nascimento e o óbito, nem todas tinham fotografia, o elemento comum era a inscrição nos sepulcros, dos que ficaram com a eterna saudade dos que partiram.


55 As ruas em P.W. são quase todas em terra batida, há passeios mas nem sempre empedrados, as casas todas em

madeira

têm

cores

muito vivas, dignas de um postal da Beneton. Antes de ir para Pusaki, tive ainda tempo de telefonar, a distância paga-se caro, mas as saudades também não têm preço. Já no albergue, depois um jantar de fazer inveja aos Deuses no Olimpo, é tempo de decidir o que fica e o que vai, são 4 dias e três noites no coração da terra do fogo. Não há casas de banho ou quaisquer tipo de facilidades, somos nós e a natureza, temos como apoio cinco Chilenos, um guia e os restantes são carregadores de tendas, comidas e logística, todos os gramas são contabilizados, levo a mochila maior, saco de cama, polares, calças, casaco e outros acessórios fazem 17 kilos. Fico na dúvida se levo a máquina fotográfica grande ou não, as previsões meteorológicas não são animadoras, e não quero ter o prejuízo de a perder, não arrisco e levo a pequena, é frustrante um dos propósitos desta viagem é a fotografia, porém não vou com a câmara que devia, levo uma digital pequenina de bolso, para quatro dias tenho 2 pequenas baterias e 256 Megabytes disponíveis, o que é muito pouco, espero não me arrepender.


56 31 de Março dia 10 – Los Dientes (Etapa 1) entre Puerto Wlliams e Laguna Del Salto 17 km 9(horas).

Á distância temporal em que escrevo

estas

linhas,

e

me

lembro do que aconteceu ou poderia ter acontecido, afirmo que

a

verdadeira

odisseia

começa aqui. Esta ilha que no passado foi utilizada

para

treinos

militares não tem infra-estrutura nenhuma, as comunicações móveis não existem, apenas num rádio para contactar com uma base militar em caso de alguma aflição, o GPS (Global Posistion System) aqui, não é uma vaidade supérflua mas sim um bem precioso A orografia do terreno os bosques as montanhas a neve, estão em estado bruto e selvagem, os caminhos e obstáculos a percorrer somos nós

que

o

trilhamos,

existem

56

km

assinalados para trekking, a meteorologia é um factor determinante para o êxito destes dias, foi duro mas o prémio foi maior. São sete da manhã, estamos equipados e prontos

para

atmosféricas

sair,

eram

as feias,

previsões o

tempo

condicionou a primeira etapa, Este ou Oeste? Luís o guia local tomou a primeira


57 decisão, fomos por Oeste, o vale lado menos difícil, pois previa-se chuva, e as nuvens cinzentas e carregadas de água confirmavam os prognósticos. Arrependi-me de não levar a máquina fotográfica grande, afinal só pingou um pouco de manhã. Estava frio, aqui no verão as temperaturas máximas vão até aos 9º Celsius e no Inverno 0º. O primeiro e único cartaz que encontramos diz”Recinto Militar Prohibida La Entrada” Jorge, o bravo teve o primeiro acidente, ao passar uma ribeira por cima de um tronco, deslizou uma das pernas e caiu à água, não se aleijou, apenas a água

fria

o

poderia

incomodar, nós, só de vermos ficámos ainda com mais frio, sobre

este

descendente local

os

homem,

de

uma

tribo

“ONAKAS”

podíamos escrever um livro, tem

um

conhecimento

respeito

e

extenso

mas

empírico sobre a fauna e flora desta região. É um dos nossos carregadores, faz-se acompanhar por um cão preto de raça Labrador, o Lobo que o utiliza na caça aos Castores, é uma verdadeira personagem, conhecido por Castor Dundee, é o único predador destes roedores, pedi para o acompanhar e ajudar na captura destes animais, disse-me que sim mas perguntou-me se havia


58 alguém do nosso grupo, que pertencesse à “Green Peace ou outro género de ambientalistas”, por acaso um dos nossos elementos é fundador da Quercus, mas disse-lhe que não havia problema. Nesta ilha existe uma colónia de 50.000 Castores, estes dizmam florestas, por isso, não é proibido caça-los. Uma das premissas do trekking

é ter um bom

calçado,

uma sola de borracha anti

derrapante, resistentes, respiráveis e à prova de água, Jorge tinha apenas umas simples botas de borracha, do tipo que se compram numa

qualquer

drogaria, a queda na água

aconteceu

primeira

hora

na de

caminhada, alguns de nós

tínhamos

problemas com os pés, bolhas, encravadas

unhas ou

inchaços, só de pensar que aquele homem tinha um dia pela frente molhado, até nos arrepiava. Já no íntimo da ilha, vimos os vestígios da maior praga desta ilha, os Castores, centenas de árvores jazem na horizontal vitimas destes animais. Aqui bebemos o café da manhã, decidimos parar de duas em duas horas, estávamos todos com um bom ritmo.


59 A sorte sorriu-nos, a tarde foi um esplendor, não choveu mas deixou marcas do dia anterior, andámos sempre sobre um piso com muitas poças

e

lama,

as

paisagens condiziam com a meteorologia. Caminhei Luís

o

junto chefe

carregadores

do dos um

bom bocado, disse-me que

nós

tínhamos

muita sorte, um dia assim aqui é muito raro, o sol tornava o verde ainda mais florescente e dava um brilho mais cintilante à paisagem, conta-me com orgulho que Bill Gates, o homem mais rico do mundo já ancorou aqui em Puerto Williams, e sobrevoou a Isla de Navarino de Helicóptero, diz também que já ajudou uma equipa da National Geogrhafic, a precorrer dos

alguns

sítios

emblemáticos

mais da

Isla de Navarino, só por carregar o tripé da Câmara ganhou dólares

100 por

esse traduzido pesos Chilenos equivale a duas semanas de trabalho.

dia,

dinheiro em


60 A beleza destas paisagens virgens,

deve-se

muito

à

ausência humana, existem árvores

com

paralelas, amarelo

riscas

vermelho que

marcações mas

duas

fazem

nos

estes

e as

caminhos,

não

estão

trilhados, é uma das razões do grau de dificuldade ser médio alto e também o preço da exclusividade. Sem ser os adeptos de trekking, apenas em 1978, na altura na guerra entre Chile e Argentina é que o governo utilizava esta ilha para exercicios militares. Os soldados eram despejados numa ponta da ilha, e tinham de atravessar a mesma de ponta a ponta, graças a Marinha Chilena é que estes caminhos foram identificados, ainda hoje as relações

entre

estes

países,

principalmente

nas

regiões

transfronteiriças, não são muito amistosas, existem muitas pequenas ilhas

na

região

de

Magalhães

de

nacionalidade

indefinida

e

reclamada por ambas as nações. A época de turismo aqui é sazonal, de Outubro a Abril que correspondem ao maior fluxo de turistas, no ano passado 400 pessoas fizeram alguns circuitos, este ano foram 5oo, a tendência é para aumentar. O título da última localidade a sul do mundo, turisticamente vende, as condições naturais


61 falam por si, a hospitalidade é também uma marca, ou seja, argumentos não faltam para Puerto Williams prosperar. Alguns

dos

seus

habitantes

despertaram

para

esta

nova

opurtunidade e realidade, um exemplo é Patty, proprietária da hospedaria onde ficámos, adaptou a sua casa para receber turistas, outro exemplo é Miguel Yéuenes um dos nossos carregadores, Fotógrafo e Operdor de Câmara freelancer na área da televisão, autor de muitos postais de Navarino aproveita

a

temporada

túristica para ganhar algum dinheiro

extra,

diz

que

no

futuro quer abrir uma loja de fotografia em P.W. Os

meses

mais

fortes

são

Janeiro e Fevereiro, como a estamos 1500 km do polo sul no paralelo 55º de latitude, existe luz das 4h30m da manhã até às 11 da noite, ou seja, um grande potencial para as caminhadas. Os Dentes de Navarino foi uma constante

no

horizonte,

como

o

nome

indica é uma cordilheira rochosa, com uma forma de dentadura, a floresta é virgem, irrigada por alguns lagos e muitos riachos, muitas vezes não temos alternativa senão descalçarmo-nos

para

os

atravessar,

a


62 água é muito fria mas também é cristalina e potável. Na última paragem antes do local para pernoitar, Miguel tenta pescar umas Trutas para o nosso jantar mas sem sucesso, Jorge explica que só ao anoitecer é que mais fácil caçar os Castores. Apesar de ter 32 anos, conta que antigamente nesta zona da ilha havia muita neve, hoje à mais vento e chuva, o clima está a mudar diz. Concluimos com sucesso o objectivo de hoje, 9 horas e 17 km a trilhar a natureza

em

paragems

e

estado

bruto,

fotografias,

muitas

lamento

a

decisão de não ter levado a máquina grande,

estou

mesmo

muito

arrependido. Agora é tempo de montar a tenda e fazer lume, Pedro Pedrosa fez a divisão das tendas e respecivas pessoas, eu fiquei com o Fael e a Paula, por eles estarem tão bem sincronizados, dispensaram a minha ajuda para a montagem do iglô. Ajudei a recolher lenha para a noite, éramos uma verdadeira tribo na divisão de tarefas, o Miguel

ainda

tentava

sem

sucesso a pesca, uns a montar as tendas outros na lenha e


63 outros a fazer o lume. Ficámos junto a uma ribeira, era essencial para a cozinha e higiene, a luz diurna dá lugar ao crepúsculo, as estrelas começam a salpicar o céu,

como

não

havia

nuvens,

o

luar

criava

um

cenário

fantasmagórico, as árvores as suas sombras, pedras e o barulho da água, criava um ambiente sinistro. A noite foi tão romântica como horrivél, apaixonada na parte lúdica, juntos e apertadinhos à lareira, com a as nossa botas e meias a secar junto do lume, a comida a ser confeccionada ali à nossa frente por Patto, o nosso cozinheiro e animador de serviço, e horrivél porque sentia-me a adoecer, a garganta doia-me e estava irritada, já era o segundo dia que estava assim, temia piorar por razões óbvias. Ficar

de

cama

ali

não

dava

jeito

nenhum, Bruno que faz parte do grupo, o gajo que nunca se calava, ajudou-me com algumas pastilhas, para além das dores musculares, não as das pernas, mas do resto do corpo que costumam sinalizar e antecipar a febre. O monóxido de carbono foi outro inimigo desta noite, os ventos estavam cruzados, por isso, o fumo esvoaçava para todas as direcções e irritava a garganta e os olhos, a comida foi o único ponto positivo, estava rabugento e com muito frio, com a roupa de primeira e terceira camada mais o Blusão com o gorro, capucho, tapa orelhas e mesmo assim tremia de frio. Bebi mais um chá, e desisti, não aguentei mais aquele ambiente e fuime deitar, apesar de usar o frontal (pequena lanterna amovivél com


64 fita na cabeça) e por calçar 46, tropeçei muitas vezes nos cabos que seguram as tendas, não estou mesmo nada habituado a estes ambientes. Já deitado e embrulhado no saco de cama, não tirei o gorro e o tapa orelhas, o pijama era as calças e camisa de primeira camada, cansado e com frio tive alguma diculdade em adormeçer, às 2h30m da manhã a bexiga obrigou-me a levantar, como bebi muito chá era inevitável, quentinho e confortável tive de sair da tenda. Estava um frio de rachar, pensei se ainda não tinha adoecido a sério, era desta que não escapava, a lua estava cheia, nem era preciso lanterna, voltei para a tenda, e pensei, é incrivél, estou ausente do meu mundo à 10 dias, e não tenho saudades de nada nem ninguém, o ritmo é intenso e muito rico, as poucas pausas que tenho aproveito para escrever o meu diário. Confesso que sinto alguns remorsos, se calhar devia sentir a ausência dos que deixei, como ainda me sentia cansado não foi dificil adormecer.

1 De Abril dia 11 Los Dientes (Etapa 2) Ligação pedestre entre Laguna del Salto e Laguna Escondida 10Km 3-4 Horas

Acordámos às 6h30m, a esta hora aplica-se uma máxima de um velho amigo, “a vida de turista é dura” o terreno era inclinado, dormi um pouco torto, mas quentinho, o saco de cama suportava uma amplitude térmica até ao menos 10º Célsius, o que deu algum conforto. Não me deixaram ajudar a desmontar a tenda com o mesmo argumento do dia anterior, não insisti, aproveitei o tempo para tratar da higiene pessoal na ribeira, a água como sempre estava gelada, escolhi a roupa


65 em função das condições atmosféricas, o dia prometia ser solarengo, depois de arrumar e preparar a mochila, estava pronto para o pequeno-almoço, hiper calórico como sempre, ovos mechidos, cereais, frutos secos, yogurtes, leite, fruta, e no final o café. Uma das técnicas de alimentação neste tipo de trekking, é comer e beber antes de ter fome ou sede. Já todos prontos para sair, os guias Chilenos dizem que, nós temos muita sorte com o tempo, aqui nesta Ilha o ciclo das quatro estações pode sentir-se num único dia. Os cogumelos e plantas têm formas que nunca antes tinha visto, as árvores, consoante a sua altitude variam a sua cor, como estávamos no final do verão, o castanho e o amarelo predominam nos pequenos bosques. Os mais gulosos, podiam degustar e adoçar a boca com framboesa, não quero exagerar mas como havia tanta no chão, podese dizer que era ao pontapé. Montanhas,

lagos

e

pequenos

riachos desenham a paisagem, numa

dessas

ribeiras,

Jorge

brilhou, como alguns elementos da expedição tinham muito frio nos pés, passou a bagagem e as próprias

pessoas

às

suas

cavalitas. Existe uma coluna de rochas que se avistam em quase toda a ilha os Dientes de Navarino, é um dos emblemas

da

ilha

mais


66

fotografados, como o nome indica, tem a forma de uma dentadura, e todo o circuito de vamos fazer a circunda. Uma das características singulares desta ilha são os rios subterrâneos, por isso existem dezenas de turfeiras, caminhar sobre estas superfícies é uma sensação fofa mas perigosa, é como pisar esponja molhada, só que as poças são autênticas armadilhas, se tivermos o azar de calcar uma dessas

bacias

de

água,

ficamos

enterrados até à cintura, atrevo-me a dizer que o percurso que fizemos depois do almoço, bem que o podíamos medir em milhas marítimas, pois apesar de não chover foi o trajecto que mais molhou os meus pés. Jorge, o bravo disse-me que hoje como chegamos cedo, vamos tentar caçar o Castor, fiquei empolgado e ansioso, sabia que algumas pessoas do grupo decerto não gostariam de ver a forma de caçar o dito animal, porém na boca decerto lhes saberia bem.


67 Chegámos Charles,

à vai

ser

Cabana o

nosso

abrigo esta noite, é uma casa feita com troncos de árvores serrados a meio, é um

espaço

amplo,

sujo,

abandonado e vazio mas romântico

com

muitas

memórias, as tábuas interiores estão repletas de assinaturas e frases de quem lá passou e quis deixar o seu testemunho, o meu também ficou lá crivado. Sem luxos, mas com um forno a lenha e dois beliches com capacidade para quatro pessoas, existe também um bar, composto de muitas garrafas abandonadas ainda com alguns vestígios de noites bem estreladas. Queria dar privacidade à Paula e Fael, por isso, decidi dormir dentro da cabana, atirei para o chão aquelas mantas abandonadas cheias de teias de aranha e coloquei o meu saco de cama, mas depressa os Chilenos me preveniram dos perigos de alguns aranhiços, o veneno não é letal, mas o suficiente para me imobilizar. São cinco da tarde, está sol, não corre o vento, perfeito para lavar roupa e desinfectar-me, os padrões de higiene são impossíveis de manter. Junto à cabana passava uma ribeira, procurei uma zona mais discreta e lavei algum vestuário, pior foi quando me despi, a água nas mãos já me faziam tremer, agora só de cuecas quase congelei, estava farto de me lavar com lenços húmidos, a minha pele já estava seca, a minha epiderme reclamava água, água a sério, não mergulhei,


68 utilizei uma camisa interior como esponja e com sonasol a fazer de gel de banho, molhei-me, esfreguei-me e desinfectei-me, fiquei a cheirar a limão, só não fiquei sem a “gordura”. Caracterizei aquele momento de uma forma peculiar, sozinho a lavarme numa ribeira gelada ao frio como faziam os nossos antepassados, hoje pago um balúrdio e sofro para desfrutar e gozar as mesmas sensações. Agora lavado e seco é tempo de descansar, gozar e fotografar o ambiente. Por trás da Cabana estava uma grande lagoa, a água era cristalina e como o dia estava a apartar-se, o azul-marinho era forte, as folhas das árvores com um amarelo-torrado provocavam um degradée muito fotogénico.

Miguel estava no seu leito a tentar pescar, senti que ele precisava mesmo das trutas para fazer o jantar, fiquei inquieto, pois as refeições


69 eram essenciais, todos nós estávamos fartos dos frutos secos e das barras energéticas, tínhamos todos saudades da cozinha de Patty. Não vi o Jorge e hoje era o dia do Castor, um dos Chilenos disse-me que ele estava do outro lado, era só seguir a margem. Eu não era o único, que queria assistir à caça, Lúcia também era curiosa e fomos ao seu encontro,

ainda

caminhámos

mais

de

meia

hora

sozinhos,

equacionava-mos voltar para trás. Finalmente avistamos Lobo o fiel companheiro de Jorge, por isso o dono andava perto, Luís o chefe dos guias locais também pescava, uma cana simples com um carreto normal, o nosso bravo, utilizava uma lata velha amarrada a um fio de nylon com um anzol na ponta, mais do que a fotografia só mesmo visto, com uma das mãos fazia rodar o anzol até ter determinada velocidade, depois soltava o anzol, e o mesmo desenrolava-se como se uma cana de pesca se tratasse, ficámos muito impressionados, tentei pescar da mesma forma, obviamente

que

não

consegui

tirar

nada,

apenas

algumas

gargalhadas da Lúcia. Jorge pescou cinco trutas, ainda mais que o Luís, agora luz está rasante, o sol atira os últimos raios, e anunciase «É Tempo de Ir Caçar o Castor». Não fosse as calças de ganga, botas de borracha, relógio, e uma camisola de malha, a denunciar e vestígios de uma civilização moderna, dir-se-


70 ia que Jorge e a natureza são um só, é uma simbiose perfeita a forma como ele se adapta ao seu meio, tem 34 anos e um emprego fixo como motorista do governador local, mas é aqui neste ambiente que se distingue e gosta de estar, conta que o que sabe sobre esta ilha aprendeu com o avô. Lobo Localiza duas tocas numa albufeira, e com uma força brutal, Jorge com as suas mãos começa a desfazer um dique natural de

troncos de madeira e pedras, eu, vi com os meus olhos, não me contaram, a nossa personagem pegava em madeiros pesadíssimos como se fossem tábuas simples, Lúcia e eu estávamos abismados com o que víamos. A técnica da caça é ancestral, depois de romper o dique, a água começa a jorrar, o nível da água desce, por consequência a sofisticada rede de túneis ficam expostos, o Lobo começa a farejar até sentir o


71 animal, com um pau Jorge abre um buraco por cima da toca com um diâmetro muito estreito. O cão com gana e impaciência raspa e mergulha nesse complexo labirinto cego, chega a ficar dois a três minutos sem vir a cima, nesta altura está o Jorge em estado de alerta com um bastão de madeira na margem à espreita de algum sinal dos Castores, vimos dois mas ao longe, ainda não foi desta. Precisávamos de duas horas para vazar a pequena lagoa, e tempo já não tinha-mos. Já era quase de noite, tínhamos de regressar, sempre que a vegetação permitia seguíamos pela margem.

A “Hora Mágica”, é um momento excepcional para captar imagens, de Inverno temos as horas mágicas maiores com o sol presente e mais tempo de luz “boa” depois de nascer e antes de ele se pôr, de Verão temos mais e melhor antes do Sol nascer e depois de ele se pôr.


72 Cineastas e fotógrafos baptizaram esta expressão, tem condições únicas de luz, fica suave e acentua as silhuetas, um dos meus motivos favoritos, foi mais um momento Kodak. O crepúsculo já foi e surgiu uma nova companhia, a Lua, marcou uma presença no nosso ambiente edílica, o satélite do nosso planeta iluminava o lago e com o reflexo do mesmo guiava o nosso caminho por entre vegetações cerradas e árvores tombadas e pequenos riachos, num desses meandros de água ficámos bloqueados. Não tínhamos bastões nem luz, precisávamos de passar para a outra margem, Jorge o Bravo, foi buscar uma madeira para fazer de ponte, mas ele não fez por menos, foi buscar um tronco de árvore, não tinha balança para julgar o seu peso, mas o seu comprimento e diâmetro, era o suficiente para cansar dois homens fortes, a Lúcia e Eu ficámos mais uma vez impressionados por tamanha força, este momento foi a razão de o apelidar de Bravo. O regresso foi difícil e estimulante, mas senti que perto do nosso amigo não havia

nada

que

recear.

Quando

chegámos ao acampamento o resto do grupo estava preocupado com a nossa demora. O jantar hoje era trutas, estava com muita fome e sede, o serão foi muito mais agradável que a noite de ontem, entre anedotas e canções, concluímos que nenhum de nós conhecia uma letra de uma canção emblemática de Portugal do princípio ao fim, que vergonha.


73 A garganta já não doía, o fumo não incomodou tanto, o único senão foi o Castor, ainda não foi desta. Desta vez não abusei do vinho nem do chá, não queria levantar-me a meio da noite. O balanço do dia foi muito positivo, os percursos são bonitos e muito fotogénicas as baterias da câmara não me traíram, fiquei muito contente com as fotografias que registei, especialmente a da silhueta.

2 de Abril dia 12- Los Dientes, Ligação pedestre entre Laguna Escondida e Laguna Los Guanacos (17 Km 6 a 7 Horas.

A noite foi tempestuosa, chuva e muito vento, o suficiente para as minhas polainas voarem, de manhã demorei meia hora para as encontrar. Felizmente as nossas tendas são muito resistentes, como têm dupla camada protegem-nos do frio, mas o barulho é que não insonoriza, não se pode ter tudo. Hoje conseguimos sair à hora predefinida, às 7h30m, até o Pedro comentou, “É preciso estarmos a chegar ao fim para cumprir horários”,

não

é

fácil, desmontar e empacotar

tudo

da

mais

forma

compacta possível, preparar a nossa mochila, higiene pessoal e pequeno-almoço, é um corrupio.


74 Na saída da cabana Charles, estava uma placa que indicava com setas”Civilização para a direita e Fim do Mundo para a Esquerda”, ainda não estávamos de regresso seguimos a canhota, hoje o GPS iria marcar o nosso ponto mais austral, 55º’02’’ de latitude sul, naquele azimute, estamos a 1500 km do Pólo Sul a mesma distância de ParisLisboa. A etapa de hoje teve o inicio mais difícil de todas as primeiras duas horas, subimos com uma inclinação média 45º, por vezes quase que gatinhávamos. Como a noite foi encharcada, o piso estava

muito

escorregadio,

as

raízes do chão e as árvores

com

troncos

estreitos

eram

o

nosso

suporte, a minha mochila pesava 17 kg, se não tivesse cuidados redobrados era muito fácil cair para trás e rebolar até à primeira árvore. O esforço foi muito, Fael dizia, se fossemos um carro, o nosso consumo seria qualquer coisa como 20 aos 100, seguramente o meu ritmo cardíaco estava entre as 180 e 190 pulsações por minuto, o que é muito. Na minha tabela de esforço tem uma equação, peso, altura e idade, 160 é o meu limite confortável, para não perder o ritmo só parei para comer uma barra energética.


75 Faltei ao agrupamento e segui sozinho, ali as nossas distâncias mediam-se pelo tempo e não pelo comprimento. Estacionei no planalto junto de uma mariola que indicava o caminho, ali descansei e fotografei. Naquele sítio a sul, avista-se um arquipélago com pequenas ilhas, a última é Cabo Hornos, o último pedaço de terra com a latitude mais a sul, porém onde nós chamamos o fim do mundo, os locais chamam-lhe o principio do mundo, ali acaba a cordilheira Andina, marca a separação do Oceano Atlântico e Pacífico, este último foi

baptizado por Fernão Magalhães, por causa das suas bonanças, a partir

daqui

expedições

cientificas

ou

turistas

excêntricos

endinheirados, 200 dólares/dia, por pessoa é possível alugar um Veleiro com tripulação e navegar com bilhete de ida e volta até aos Fiordes do Pólo Sul durante 28 dias.


76 Reagrupámos num vale, este sítio não há palavras que chegue para o caracterizar, como descrever esta paisagem sem repetir os mesmos adjectivos e expressões usadas, noutros locais, a sul temos o último parque natural do Chile, o Hornos, a Este o Atlântico, a Oeste o Pacífico a Norte uma lagoa que faz de bacia ao Monte Bettinelli, um colosso de pedra com 1000 metros de altura. Aqui bem que podiam hastear a bandeira da região de Magalhães, as suas cores e símbolos são bem personificados neste local, as estrelas representam o Sur, o grande maciço de gelo que se situa na Antárctica

Chilena,

representa

os

o

Azul

Oceanos,

o

Amarelo as Pampas, os cones lembram

a

Cordilheira

dos

Andes, e o branco por cima das mesmos simbolizam a Neve e os Glaciares. O céu estava limpo o chão era estéril, não havia quaisquer tipo de vegetação, apenas um riacho que aliviava a lagoa, aí retemperámos forças e energias bebemos café e atestámos ao nossa bolsas de água. No sentido lato e figurativo a subimos para o ponto alto do dia, a par dos Dientes de Navarino, Bettinelli, é um dos marcos da região de Magalhães, tem 1 km de altitude, é um miradouro natural desta ilha. Os últimos 200 metros foram um desafio às leis da gravidade, a inclinação era grande, mas isso não era o que mais nos preocupava, o que metia medo era o abismo mesmo ao nosso lado, não havia raízes ou árvores para nos travar, o trilho era uma linha estreita que


77 separava

dois

lados

do

Monte, usei toda a minha concentração e força para não cometer nenhum erro. Não quero exagerar, mas numa

eventual

queda

podíamos não morrer, mas muito

mal

seguramente

tratados ficaríamos,

Pedro disse, “se o vento estivesse forte, nem todos tinham

peso

e

força

suficiente para subir esta ponta final”. Já no cume foi uma festa, partilhámos beijos e abraços por mais uma conquista, não podíamos pedir mais, isentos de lesões o dia estava lindo a paisagem perfeita, 360º de pura natureza personificada com os quatro elementos que os filósofos da Grécia antiga consideraram os mais importantes, Terra, Água, Ar e Fogo. São duas da tarde, por hoje termos sido pontuais, vamos chegar à hora prevista, agora é sempre a descer, a distância entre a primeira e a última pessoa é tão grande, que só pelo movimento é que sente o vulto das pessoas.


78 Já no acampamento distribuíram-se as tarefas do costume, havia muita lenha,

por

isso,

não

foi

difícil

atestar o nosso fogão e aquecedor. Três Chilenos e Eu, fomos tentar caçar

o

Castor,

Jorge

tinha

localizado uma toca ainda antes de chegarmos ao nosso bivaque. Com a mesma destreza e força de ontem, o nosso bravo abre uma ferida no dique natural, desta vez só precisaríamos de vinte minutos para, baixar o nível da pequena lagoa. Lobo em cima do esconderijo já estava excitado, os Labradores têm um olfacto 100 vezes mais sensível que o nosso, com o seu faro apurado ele já pressentia a sua presa, agora era só esperar que os túneis

ficassem

Estrategicamente

expostos.

formámos

um

quadrado à volta da toca, cada um suportando

o

pau

na

mão,

comprido e forte para servir de marreta, a água estava um pouco turva, Jorge dá-me instruções, se visse o animal, a pancada teria de ser na cabeça com muita força. O cão foi atiçado, seguindo os seus


79 instintos cegos,

brutos

penetrou

e nos

túneis,

instantes

depois,

vêem-se

algumas bolhas de ar, a

adrenalina

Lobo

mais

sobe, quatro

homens de cajado na mão cercam a presa, é uma luta desigual. Jorge chama o cão, já passam mais de dois minutos sem o cão vir à

superfície,

aparece

e

anunciasse

Lobo

como

se o

paradeiro do bicho e ladra incessantemente, de repente sem paus e apenas com o seu corpo, o nosso bravo de uma forma primitiva atirase à água e com as suas mãos luta com o Castor. Homem versus o Animal, as armas de combate são as patas e os dentes do bicho, contra as mãos e peso do predador, o nosso bravo agarra-o pelas patas de trás e barbaramente projecta a sua cabeça contra uma rocha com tamanha pujança, que no instante seguinte esperneava e sangrava, alguns segundos depois morreu. Quando chegámos ao acampamento, Jorge foi aplaudido. O mesmo caçador, esfolou e temperou a peça, a sua pele vale vinte Euros, e o seu sabor, só daqui a quatro horas é que saberemos.


80 No Chile chamam-lhe o assado,

a

carne

fica

exposta ao calor junto das brasas quatro a cinco horas a fumar, é devagar e devagarinho,

só por

volta das onze da noite é que as primeiras fatias foram

descascadas.

Estava

uma

chicha

é

porque

era

delícia,

suave um

a

talvez Castor

novo dizia Jorge, deveria ter

dois/três

anos

no

máximo. O seu sabor a par do vinho Chileno foi um festival de aromas e sabores na minha boca, para rematar a noite o Armando, brinda-nos com uma aguardente que trouxe de Portugal, foi o culminar da noite. Deitado pensei outra vez nas saudades que eu não tinha, desculpo-mo com a intensa actividade e o cansaço, com o estômago bem composto e bem regado não foi difícil dormir. E ainda bem, porque a noite foi a pior de todas, as nossas tendas estavam por debaixo de árvores e o vento foi muito violento, por isso o barulho foi ensurdecedor, até assobiava.


81

3 de Abril dia 13, Laguna Los Guanacos-P.W. (14km 5 horas)

São 5h30m da manhã hora de acordar, hoje é um dia muito especial, é último dia que caminhamos, concluímos a etapa final do circuito dos Dientes de Navarino. Depois da higiene pessoal na ribeira, o meu pequeno-almoço foi os restos do Castor, a carne ainda estava mais suculenta do que ontem, não fui o único a comer, os Chilenos também fizeram do assado a sua primeira refeição, só não bebi vinho. O

dia

estava

cinzento,

estava

na

dúvida

se

vestia

calças

impermeáveis (terceira camada) ou não, apostei em calças de normais de caminhada, ou seja, de segunda camada versáteis e resistentes. Toda a roupa que trouxe não a poupei, entre chuva, sol, vento,

quedas,

vegetação

rasteira e troncos de árvores a

fazer

de

resistência

obstáculos, da

roupa

a foi

posta à prova. As minhas polainas estavam a dar as últimas e os bastões também não correspondiam à

sua

função,

esticavam era foram

nem

medida muito

não

encolhiam,

única,

mas

resistentes,


82 evitaram

alguns

espalhanços. horas,

São

começamos

sete a

jornada, o céu continua cinzento e começa a chover, apostei mal nas calças, se não pingar muito talvez ainda me aguente.

O

ambiente

era lunar, este troço não tinha matéria orgânica, vazio de vida era só rochedos grandes e pequenos, o chão parecia as pistas do deserto do Sahara, só que em vez de areia havia pedras. Há uma planta única que aqui, consegue sobreviver a este ambiente é a Capihue, planta típica da Antárctica e um símbolo Chileno. As árvores já denunciam o Outono, o castanho é a cor que predomina nas folhas, nota-se nas encostas a variação das cores, conforme a altitude maior é a densidade da pigmentação. È tempo de almoçar, são onze horas, arroz com arroz e ketchup para dar cor e sabor, já não havia mais nada, nem barras. O perfil do percurso agora é sempre a descer até Puerto Williams, o que parecia aparentemente fácil foi um pesadelo, as três horas restantes foram muito húmidas, por causa da chuva da noite anterior o chão estava com muitas poças água, a vegetação era muito densa os trilhos marcados não deixavam alternativas. A opção variava entre os pés ou pernas enterradas em lama muita lama, cada passo era tormento calculado, o exercício de saltar com 17 kg às costas, de raiz em raiz ou de pedra em pedra foi uma constante,


83 caí duas vezes sem gravidade, felizmente a mochila servia de colchão, estava rabugento, sentia que a despedida do circuito deste não era a mais favorável, até as marcações eram deficientes. Houve uma altura que caminhei

sozinho durante uma hora,

entretanto deixei de ver sinalização, não entrei em pânico, voltei para trás até à última marcação e comecei a andar em círculos até encontrar as listas que assinalam o caminho correcto, e não encontrei, pousei a mochila, subi uma árvore para tentar noutra perspectiva descobrir o trilho, sob uma claustrofóbica vegetação com a ajuda do zoom da máquina fotográfica encontrei uma marca, aliviado mas ainda mau humor continuei. Ao contrário dos circuitos das Torres del Paine os circuitos da Isla Navarino, não têm os caminhos arranjados, o que torna tudo mais


84 difícil e agora visto à distância tem mais encanto. Já quase no final vimos umas listas paralelas azuis em algumas árvores, esta ilha tem os últimos Kilómetros do Sendero Chileno, traduzido à letra, significa caminho ou trilho. O governo Chileno quer concluir todas as marcações até ao ano de 2010, tem 8500 Km de extensão e percorre o país de norte a sul, inclusive a ilha de Páscoa, as panorâmicas são várias, vulcões, grandes lagos, deserto, florestas, pampas, glaciares e oceanos, na Região de Magalhães existem três trilhos inseridos na maior rota pedestre do mundo. Finalmente chegámos, o ponto de partida do Sendero em Navarino , foi o fim dos nossos circuitos da Patagónia, o grupo foi chegando a


85 conta gotas, um pouco comovidos distribuíram-se beijos e abraços por todos. A roupa estava miserável, as botas nem se conheciam a cor, a lama tinha camadas de vários níveis, as polainas irremediavelmente estragadas, os bastões idem, nesta altura só faziam peso, descalcei-me e descansei os pés e o corpo, lavei as polainas e raspei alguma terra entranhada nas botas. Sobrou bateria e alguma memória da máquina, e para a posteridade registámos uma fotografia com todos, foi dos momentos que mais prazer meu deu, esta imagem retrata o culminar de um musculado orgulho, de quem “Veio, Viu e Venceu”. Jaime a quem nós carinhosamente apelidámos de Dom Jaime pela sua grandeza de espírito esperava por nós mais a Adelina na entrada de Puerto Williams, foi uma festa encontrá-lo, ficámos ainda mais felizes, agora sim estávamos todos juntos. Entrámos no primeiro café e bebemos cerveja muita cerveja, a Lúcia ensinou-nos que no seu país (Alemanha) a boa educação manda que ao saudar com bebida, deve-se cruzar o olhar, assim de uma forma exagerada, sempre a olhar para os olhos uns de outros brindámos a tudo e mais alguma coisa. Trocámos de endereços electrónicos com os chilenos com a promessa de enviar fotografias e cartas. É hora de nos despedir deles, não foi fácil, foram quase 100 horas de convivência com sentimentos à flor da pele, vai ser impossível esquecer-me da bravura do Jorge da boa disposição de Pato o nosso cozinheiro e das tertúlias que tive com o Miguel sobre Fotografia.


86 Em frente ao café Dientes de Navarino, estava um locutório, finalmente pude telefonar, foram as chamadas mais caras de sempre, mas foram as que menos me custaram. A cereja por cima do bolo ainda está para chegar, o jantar cozinhado por Patty, nós todos sem excepção, desde o dia que partimos desejámos a chegada para voltar a saborear aquelas iguarias cozinhadas por uma verdadeira mestra dos sabores. Desejava um banho, a roupa e Eu estávamos muito sujos, felizmente reparei numa lavandaria de esquina, era mais casa particular muito modesta com um aparelho, não diferente das nossas máquinas domésticas. Negociei com a Sr.ª Rosa e por 6000 Pesos Chilenos (11 Euros) lavou e passou toda a minha roupa suja, até lavou em água fria as botas, por terem um película de Gortex a impermeabilização não permite altas temperaturas, entreguei tudo às seis da tarde com a promessa de por volta das 9 da noite a roupa estar em minha posse. O banho foi um alívio senti-me lavado com uns kilos mais leve, desfiz a barba, senti-me fresco e pronto para jantar. Patty, presenteou-nos com “Chupe” de Santola, que delícia que manjar, a nossa anfitriã conta que este prato não é para Chilenos porque esta especialidade nos restaurantes da capital (Santiago) custa cerca de 40 dólares, entre o pão os molhos o vinho, muita alegria, e música revolucionária a Sr.ª Rosa chegou com a roupa, quando ela entrou até se sentiu o cheiro a lavanda, calças, meias, cuecas, pólos, camisas e botas apresentáveis, finalmente aquele vestuário conhecia detergente próprio.


87 Um colchão numa cama torta, no nosso ambiente seria uma tortura, uma noite mal dormida, e uma manhã rabugenta, lá foi um Shereton a comparar com as noites anteriores foi um verdadeiro luxo.

4 de Abril Dia 14- (manhã)Parque etnobotânico OMORA, museu Martim Gusinde, (tarde) travessia do canal Beagle em barco de Puerto Williams (Chile) até Ushuaia(Argentina).

Uma matilha nervosa e

histérica

de

cães,

acordou-me às cinco e meia das manhã, não queria

desperdiçar

tempo na cama, o sol estava nascer,

prestes por

a isso,

levantei-me tomei mais um banho e saí para fotografar. Desta vez já com a minha máquina grande, senti alguma estranheza por me sentir tão leve, a câmara e Eu mais nada, o dia acordou bonito, a Lua de um Lado e o Sol do outro, com muita descontracção e paz de espírito deixei-me absorver pelo ambiente. Dirigi-me à zona dos pescadores, senti que a minha presença não era estranha nem chamava a atenção, cada um nas suas vidas e nos seus pensamentos, ali também existia um cemitério, mas de barcos, reparei nos nomes dos barcos tinham quase todos a mesma terminação “Rosita, Camelita, etc..”.


88 Meti conversa que um pescador, Ernesto

Darwin

que

gentilmente me convidou para conhecer a embarcação. Tenho um grande respeito por todas as profissões, mas a dos pescadores quando arriscam a vida no mar muitas vezes tempestuoso, e vêm o seu produto no prato com uma inflação de 500% é de questionar quem mais devia ganhar, diz Ernesto este barco é “pequinito mas seguro” tem duas camas separadas pelos motores e possui os instrumentos de navegação elementares. Está vocacionado para a Santola, cinco toneladas é a medida por uma faina que chega a demorar dez dias nos bancos Antárcticos sem regressar a terra, a técnica da pesca é simples, utiliza-se a “Trampa” um espécie de rede com um diâmetro de um metro, coloca-se caranguejo como

isco

e passadas

algumas

horas

recolhe-se

as


89

armadilhas com a Santola desejada. 20% da população em Puerto Williams vive directa ou indirectamente do Mar. Na marginal com o nome de João Paulo II de terra batida, encontro um pontão muito bonito, a luz ainda era rasante, havia algumas nuvens as tábuas tinham um vermelho escarlate, senti que ali podia registar uma boa foto, estava tudo perfeito até que Fritz, um cão rafeiro que também nos acompanhou no circuito desta ilha teimava em pousar no meu enquadramento, foi a vingança do cão, eu não nunca simpatizei com Ele, estava sempre a tentar lamber a nossa comida, era um chato, por isso não gostava dele, não o maltratei mas bati o pé e fugiu. Patty, voltou a surpreender, até no pequeno-almoço, desta vez com uma geleia extraída de uma raiz que só existe aqui, e na Ásia, não era muito doce, mas tinha um paladar fresco e saboroso. O programa foi alterado, a ideia era apanhar o barco de manhã, mas não foi possível, assim aproveitámos para conhecer o Parque


90 Botânico.

Cristopher,

um

cientista

Americano

que

ali

desenvolve

pesquisas,

foi

as o

suas nosso

cícerone, em duas horas detalhou toda

a

cientificamente fauna

e

na

Isla

existente

flora de

Navarino, sublinhou com orgulho que esta porção de terra tem a classificação de

Reserva

Explica

que

da

Biosfera.

o

objectivo

desta pequena comunidade científica forma

é

integrar

harmoniosa

de e

sustentada a preservação natural desta ilha com a pressão humana e turística. Ainda antes do almoço fomos visitar o Museu Martin Gusinde, um espaço sem réplicas e mundialmente famoso, não por ser o mais austral mas sim pelos instrumentos e pela história das tribos. “Los Yaganes” gente que povoou a Terra do Fogo está exposta num espaço modesto com duas divisões e um corredor. Quando fotografias

olho que

para retratam

estas um


91 povo e um modo de vida, penso que estas pessoas são da geração dos nossos bisavós, aqui as diferenças dos

nossos

mundos

são

mais

distantes que o próprio tempo. A pé dirigimo-nos ao Albergue, preparámos

as

mochilas

e

almoçámos como Deuses, não é demais gabar esta cozinheira, fiz questão de ficar numa fotografia só com ela, uma mulher de armas, divorciada e sozinha que se dedica ao turismo, com duas casas de banho e três quartos consegue albergar quinze pessoas, e garanto quem vai, não se importaria de repetir, não só pela comida, mas pela simpatia e humildade, que começa a ser um padrão nos Chilenos que vou conhecendo. A viagem é como se começasse outra vez, baterias carregadas cartões vazios e roupa lavada, duas carrinhas transportam-nos durante uma hora para a última fronteira, entre Chile e Argentina. Aqui

moram

famílias,

e

três se

quisermos estar com preciosismos este é o último e mais austral local habitado, mais um

carimbo

passaporte hora

de

Ushuaia,

e barco dois

no meia até semi-


92 rígidos zarpam até à outra

margem,

malas

as

seguiram

depois por causa do excesso de peso. O

Canal

que

atravessamos chamase Beagle, este nome deriva do nome de um Veleiro que navegou nestas águas ao serviço de Inglaterra no século XIX entre 1831-1836. Comandado por Fitz Roy, objectivo daquela aventura e missão era cartografar aquela área da América de Sul. Aquela embarcação um passageiro muito especial o Sr. Charles Darwin,

documentou

um

legado

rico

em

Biologia,

Geologia

e

Antropologia que até à altura era desconhecido, hoje na comunidade científica as suas teorias sobre

a

espécie

evolução

ainda

são

da uma

referência. Chegámos à última cidade do mundo, Ushuaia dizem que

é

Las

Vegas

da

Patagónia, espero que não, já tive a oportunidade de conhecer

o

estado

de


93 Nevada e a sua capital, e confesso depois de me deixar absorver pela natureza com todas as suas energias, apetecia-me tudo menos Casinos, prostituição, Corvettes e espectáculos do tipo Broadway. Esta cidade Argentina com 60.000 habitantes é a capital da província da Terra do Fogo, de facto é a última cidade do planisfério sul, Puerto Williams é uma localidade. A sua marina tem bandeiras dos quatro cantos do mundo, lanchas e veleiros de todos os estilos e carteiras preenchem todo o parqueamento náutico. A hospedaria “Los Canelos” pode-se qualificar como um local de charme, é propriedade de um casal de meia-idade muito simpático, Luís e Alexandra, Ele é Arquitecto o que explicava a sensibilidade e bom gosto na estrutura e decoração do Albergue, ela professora. Fiquei no quarto do Pedro Pedrosa e do Dom Jaime, a Internet era gratuita o que foi uma alegria para todos, a velocidade não era a ideal, mas a suficiente para actualizar alguns e-mails. Fomos à baixa da cidade jantar ao restaurante “A Roda” trinta e dois pesos Argentinos por pessoa, o equivalente a dez Euros por pessoa, só as

bebidas

não

estão

incluídazs, o famoso Assado e Chouriço

é

à

vontade

do

apetite e da fome. O Cordeiro estava

delicioso

o

vinho

a

preceito foi um jantar bem composto e bem regado. Depois

de

regressar

à

Hospedaria Dom Jaime desafia-nos para conhecermos a noite, uns ficaram outros como eu saímos com a intenção de conhecer as famosas


94 Milongas, só que às quartas-feiras não é o melhor dia. Os últimos a regressar à base foi o Dom Jaime e Eu, não me senti inseguro, apesar de Jaime ser Chileno em terras Argentinas, move-se como um local, e ainda bem, ali sente-se o bairrismo. Por causa das discórdias fronteiriças, um Chileno na Argentina, é como um Benfiquista a passear junto do Estádio do Dragão, existe uma expressão neste país que ilustra bem a relação entre ambos” É mais perigoso que um Chileno a fazer um mapa”. Conhecemos o bar “Invisivel”, mesmo com o barulho, não nos impediu de nos conhecer melhor um ao outro, falámos desde o trivial até aos sentimentos da vida e daqueles que ocupam lugar dos nossos pensamentos. 5 de Abril dia 15 Canal Beagle e Haberton, visita às ilhas dos Leões Marinhos e Pinguins

A alvorada foi às oito da manhã, deitei-me muito tarde mas tive um sono santo, o pequeno-almoço não tem o mesmo encanto da sala de Patty, aqui é uma hospedaria muito menos personalizada, até nos servem à mesa. Às dez horas já estávamos na marina prontos para embarcar, os barcos que nos levaram eram semi-rígidos, o objectivo foi conhecer as ilhas virgens, visitar as colónias dos Leões-marinhos e dos Pinguins. O Mar estava picado não foi fácil navegar, hoje não tivemos sorte com o tempo, a chuva o vento e a ondulação traíram o nosso programa. Não vimos os Pinguins para desgosto de todos, havia vagas de quatro metros, o que se tornava muito perigoso, por isso, regressámos.


95

Mesmo assim ainda enchi um cartão de memória de um giga, o céu estava carregado de nuvens negras, com as ondas eram impossível estabilizar a câmara usei sempre sensibilidades de 400 e 800 Asa para conseguir mais velocidade, e mesmo assim foi complicado, a técnica era carregar no gatilho disparar e rezar para que algumas ficassem boas. Fiquei enjoado, olhar para o visor da câmara ao sabor das marés é fatal, mas o que mais me impressionou, foi a forma que os Leõesmarinhos

coexistem

entre

eles,

eram milhares em pequenos ilhéus, uns em cima dos outros, nem se via a cor do chão. Vimos também o turismo de luxo, barcos grandes atracados às ilhotas, com muitos estrangeiros de máquina ao peito, ali não se sentia a


96 ondulação, até cafetaria tinham dentro da embarcação. Nós não tínhamos o luxo, mas havia a vantagem da proximidade com a fauna, os leões mais novos e atrevidos nadavam e saltavam à volta do nosso modesto semi-rígido, como se nos cumprimentassem. Para render o tempo, a caminho do Parque Nacional da Terá do Fogo, almoçamos na carrinha, sandes, frutas, bolachas e batatas fritas de pacote. Sentimo-nos uns turistas ditos convencionais, este Parque tem um percurso pedestre de duas horas, e nele podemos ver um pouco de tudo, está tudo muito bem ornamentado, com presunção, aqui pode-se dizer que num par de horas se conhece a Terra do Fogo. Um rio com Kaiakes a deslizar, o Lago Fagnano que também faz de fronteira natural entre Chile e Argentina, árvores que representam a flora da região, Aves de Rapina e uma praga de coelhos são todos estes elementos que compõem este parque. Não podia defraudar as expectativas do meu filho, para ele a minha viagem tinha como objectivo fotografar Pinguins, a primeira sessão de cinema do Miguel foi “A Marcha dos Pinguins” no quiosque de souvenirs fotografei alguns postais e assim resolvi o único problema que atormentava a minha cabeça. Outro momento Kodak foi o ponto que assinala o fim de uma das maiores rotas do Mundo, a Transamérica, este trespassa

o

caminho

continente

Americano desde o Alaska até ao Parque Nacional da Terra do Fogo são 17.848 km, há quem faça este caminho de


97 Mota, Carro, Avião e Bicicleta. Já em Ushuaia é tempo de comprar lembranças, agora a única limitação é o que cabe nas mochilas, o peso deixou ser problema, isto porque já não carregamos as malas às costas. No trekking todos os gramas contam, dentro do porão de um Boeing não custa nada. Agora compreendo a comparação a Las Vegas, lojas de toda a espécie, restaurantes, casino, hotéis, neons de todas as cores fervilham na avenida San Martim. Apesar de não ser crente em religião alguma, comprei presépios, este género de artesanato reflecte a cultura de um povo e país, e aqui, vai ao extremo de existir alguns que substituem José e Maria com a figura de Pinguins. Adquiri também outro símbolo da Patagónia, o Chá Mate, a sua origem deriva dos Índios Guaraníes que enraizaram a tradição do consumo desta erva popular, já o tinha experimentado, mas agora comprei a “Bombilla” instrumento de metal ou de cana, para sugar o liquido, e uma réplica dos potes originais que dera fama a este produto. O chavão do fim do mundo, ajuda a vender

canecas,

porta-chaves,

camisas e toda uma gama extensa de acessórios uns mais inúteis que outros,

as

lojas

são

autênticos

hipermercados de quinquilharia. Depois de tratar das prendas dos outros também queria levar algo para mim, procurei sem sucesso uma


98 galeria que tivesse quadros de artistas locais, as telas que encontrei eram tudo réplicas

de figuras

indígenas,

não gostei,

o único

artesanato que senti que era de muita qualidade eram as tapeçarias. O Jantar foi na hospedaria, estas refeições não estavam incluídas no programa da viagem, por isso tínhamos a liberdade de escolher o restaurante e a companhia. A unidade do grupo manteve-se, por 10 Euros, tivemos direito a um músico, empadas Argentinas (carne) e Árabes (Vegetarianas), saladas várias, com o vinho da casta do costume. O ambiente foi memorável, o índice das músicas Argentinas foi uma viagem do passado ao presente, uma Harmónica um Órgão uma Guitarra, uma voz e as mãos foram os instrumentos pautados pelo nosso trovador, cantámos, dançámos, bebemos, pulámos, foi um verdadeiro êxtase.

“SOLO

LE PIDO A DIOS”

(This song simply says) I only ask of God He not let me be indifferent to the suffering Solo le pido a Dios Que el dolor no me sea indiferente Que la reseca muerte no me encuentre Vacio y solo sin haber echo lo suficiente Solo le pido a Dios Que lo injusto no me sea indiferente Que no me abofeteen la otra mejia Despues que una garra me arane esta frente Chorus: Solo le pido a Dios Que la guerra no me sea indiferente Es un monstro grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente Es un monstro grande y pisa fuerte Toda la pobre inocencia de la gente Solo le pido a Dios Que el engano no me sea indiferente Si un traidor puede mas que unos quantos Que esos quantos no lo olviden facilmente Solo le pido a Dios Que el futuro no me sea indiferente Deshauciado esta el que tiene que marchar A vivir una cultura diferente


99

O melhor momento ainda está por chegar, uma percentagem do dinheiro que pagámos nesta viagem, reverte a favor de uma instituição a designar, tinha ficado convencionado que seria entregue em

Punta

Arenas,

numa

associação

que

apoiava

crianças.

Estranhamente nenhum representante dessa instituição compareceu à hora combinada. Assim por unanimidade decidimos

doar esse

dinheiro a Dom Jaime, para ajudar o seu filho, pois este tinha entrado para a Universidade e todo o dinheiro seria sempre pouco. Ficou muito comovido pelo nosso gesto, mas o recibo foi maior que a factura. Com o microfone do músico, elogiou a nossa atitude e começou a declamar um dos maiores símbolos do Chile, mundialmente reconhecido e nóbel da literatura em 1971, Pablo Neruda

Oda al hombre sencillo (Pablo Neruda) De: Odas elementales (1954)

Vou contar-te em segredo

e então

Quem sou eu,

vejo o trigo

Assim, em voz alta

os trigais temporões,

Dir-me-ás quem és,

a

Quero saber quem és,

primavera,

Quanto ganhas,

as raízes, a água,

Em que fábrica trabalhas, em que mina,

por isso

Em que farmácia,

para além do pão,

Tenho uma obrigação terrível:

vejo a terra,

E é saber,

e a sua unidade,

Saber tudo,

a água,

Dia e noite saber

o homem,

Como te chamas,

e tudo provo assim

verde

forma

que

tem

a


100 é esse o meu ofício,

buscando-te

conhecer uma vida

em tudo,

não basta,

ando, nado, navego

nem conhecer todas as vidas,

até

é necessário,

então

verás,

como te

há que desentranhar,

número,

raspar profundamente

para que recebas

e como numa tela

as minhas cartas,

as linhas ocultaram,

para que te diga

com a sua cor, a trama

quem sou e quanto ganho,

do tecido, eu apago as cores

onde vivo,

e busco até achar

e como era o meu pai.

o tecido profundo,

Vês como sou simples,

assim também encontro

não se trata

a unidade dos homens,

de nada complicado,

e no pão

eu trabalho contigo,

busco

Tu vives, vais e vens,

para além da forma:

de um lado para o outro,

gosto do pão, mordo-o,

é muito simples:

és a vida,

como velhos amigos

és transparente

digo-te ao ouvido:

como a água,

não sofras,

e sou assim também

está perto o dia,

o meu dever é esse:

vem,

ser transparente,

vem comigo,

todos os dias

vem

me educo,

com todos

todos os dias me penteio

os que se parecem contigo,

a pensar como pensas,

os mais simples,

e ando

vem,

como andas,

não sofras,

encontrar-te,e

chamas,

pergunto-te

a rua e

o


101 como, como tu comes,

vem comigo,

tenho nos braços o meu amor

porque, embora não o saibas,

como tens a tua namorada,

isso, sim, sei-o eu:

e então

sei para onde vamos,

quando isto está provado,

e esta é a palavra:

quando somos iguais

não sofras

escrevo,

pois venceremos,

escrevo com a tua vida e com a minha,

havemos de vencer,

com o teu amor e com os meus,

ou mais simples, nós,

com todas as tuas dores

venceremos,

e então

mesmo que não o creias,

já somos diferentes,

venceremos.

porque, com a mão sobre o teu ombro,

Foi um momento encantado e mágico carregado de emoção, em meialua à volta do orador. Demos as mãos, entrelaçámos os dedos e ouvimos, sentimos e respirámos os versos. A cada um o seu sentimento e a sua energia, nada foi ensaiado, mas o músico acompanhou o poema com uns acordes improvisados que em conjunto hipnotizaram a plateia, quando Jaime acabou de discursar, estava visivelmente emocionado como todos nós, houve lágrimas e abraços. Ninguém pode prever ocasiões destas, não tirei fotografias nem fiquei chateado por isso, há momentos que a nossa memória não deixa apagar e este foi um deles.


102

6 de Abril dia 16- Ushuaia- Buenos Aires, Manhã livre para compras, Tarde voo para B.A. e Noite com Tango e Milongas.

Páscoa, está quase tudo fechado é feriado nacional. Fui passear sozinho, evitei a Av. Principal e fiz a marginal toda até ao Porto. É fácil constatar para onde esta cidade “Ush” ao fundo, “Wuaia” baia, caminha em termos económicos, a marina tem mais barcos de recreio, do que embarcações de pesca. Qualquer rua paralela à Av. SanMartin prolifera lojas de todas as categorias, existe um largo com alguns quiosques que são pequenas agências de viagens, que vendem programas para todos os gostos e todas as bolsas. Culturalmente o tem um Museu, que outrora foi um presídio, expõe entre muitas curiosidades a linha de ferro que transportava os reclusos para os campos de trabalho, este terminal de comboios foi reactivado para fins turísticos e faz a ligação entre o Parque Nacional e a Baia de Lapataia Não podia faltar um painel grande com a insígnia do “Fim Del Mundo”, turista Esta

ideal

para

fotografar. cidade,

com

60.000 habitantes tem duplicado

a

população todos

sua nos


103 últimos anos, é a pressão do turismo e dos que se podem aproveitar dele. Exemplo disso é a quantidade de Hospedarias e Hotéis que têm surgido, muitas pessoas particulares também, remodelam as suas casas para receber para suportar o fluxo de quem quer estar, e dizer que já foi ao fim do mundo. É sempre triste partir, a simpatia de Alexandra e Luís, não nos foi indiferente, fizeram-nos sentir como se fôssemos amigos e não clientes. Um copo de vinho e mais duas empadas vegetarianas, sabia que só no avião

é

voltaria

a

comer,

por

isso

antecipei

a

fome.

E, fiz bem, o voo demorou 3h30m, a viagem foi tranquila e dispensei o almoço de plástico típico da aviação. Á chegada, nos tapetes rolantes é que foi o caos, devia ser hora de ponta, as malas demoraram


104 demasiado tempo, mas o que interessa é que nenhuma desapareceu, a fama dos aeroportos da América do Sul não é das melhores. Já começava

a

ficar enjoado de

tanta carne, comemos

uma

Parrilhada de chouriço (Bife local) e de Cordeiro, o restaurante devia ser famoso e com história para contar, as suas paredes estavam cobertas de fotografias a preto e branco antigas, provavelmente de personalidades da cultura e política. Mesmo na capital, procuramos a essência dos valores culturais, esta noite queremos conhecer o Tango. Pedimos ao motorista do que nos fez o transfere do aeroporto para o hotel, que nos indicasse um local com que não fosse contaminado por turistas, este achou muito estranho, talvez por estar habituado a transportar estrangeiros para as grandes salas de espectáculo convencionais, o que nós queríamos era conhecer a nata das Milongas. O Tango, hoje é um dos emblemas de Buenos Aires, aqui existem escolas que ministram cursos de todos os níveis, até em regime intensivo para turistas, por toda a cidade se encontram cartazes

a

publicitar

os

locais

dos

Senhoras

seis

espectáculos. Cavalheiros

oito

Pesos,

Pesos, o talão foi um bilhete para voltar ao

passado,

“La

Argentina”

é

uma

danceteria onde o espectro de idades é dos cinquenta até aos setenta, com toda a certeza nós éramos os mais novos. O ambiente era a média luz, bolas de cristal, colunas grandes e velhas proporcionais ao seu tempo, o som


105 era abafado, parecia que ouvíamos ainda em Vinil. As mesas pequenas e redondas, pelo seu tamanho não convidavam mais de duas pessoas, as toalhas vermelhas tinham uma luz pontual, o cenário ficava assim intimista e romântico. O mobiliário e a decoração do Bar testemunhava a sua idade, era tudo muito antigo, não havia sinais de modernidade. A colectividade tinha o tamanho de um campo de ténis, o espaço era dividido em dois, o lado das mesas com um corredor no meio que conduzia à outra metade, a pista de dança. Elas e Eles muito concentrados no seu rito, bem agarrados e juntos os pares enchiam o soalho envernizado de madeira. As suas roupas e todo aquele cenário, parecia um filme dos anos cinquenta. Estava encantado com o que via e ouvia, Júlia foi a minha cicerone, uma senhora nascida e criada em Buenos Aires de 59 anos, era habitual cliente da casa, sentei-me ao seu lado, e com um Português Espanholado, perguntei-lhe coisas sobre o seu país e sobre a história do Tango, ela teve a paciência de responder à minha curiosidade. Explicou-me todo o protocolo e as regras de salão. O tango começa nas mesas, explica, eles na sua maioria ficam estacionados no bar, em pé a conversar e a beber uns copos e fumar cigarros, nota-se que é um ponto de encontro familiar, sentia-se que todos se conheciam com maior ou menor afinidade. Elas estão nas mesas em grupos, com as suas indumentárias de domingo, bebem e fumam como adolescentes. Eles, com olhos de predadores e muito discretos observam todas as mesas até encontrar a sua presa. Quando encontram a parceira desejada, cruzam o olhar um do outro, e este, faz um sinal a sugerir o convite, ela aprova ou não a proposta, Para evitar embaraços, toda


106 esta côrte faz-se à distância e só com os olhos, o cavalheiro nunca vai às mesas, o par

encontra-se

a

meio

caminho

no

corredor e avançam para a pista. O

Tango,

hoje

é

um

culto

e

uma

identidade na Argentina, remonta a 1850 em que na altura os Afroamericanos se instalaram neste país. Com influências Europeias, designadamente, Espanholas (Andaluzia) a consagração desta cultura manifesta-se no século XX. Grandes compositores, bailarinos, orquestras floresceram este género musical com a particularidade de ser introduzido o instrumento oficial, El Bandoneón. Foi este género da Concertina que galvanizou, Aston Piazzola, autor das mais famosas músicas que eternizam a sua memória, uma referência mundial. No Tango, homem conduz os movimentos, mãos nas costas do par e a outra segura a mão da parceira. É uma cumplicidade muito forte e íntima, os corpos estão sempre muito encostados, para os casais que ali dançavam, apesar da média das

idades

ser

elevada,

uns

com

mais

exuberância que outros, todos partilhavam a mesma intensidade e paixão. Nas Milongas, o ritmo é mais acelerado com os pares mais distantes, mas sempre ligados. Foi uma noite em cheio, o objectivo de vêr,


107 ouvir e sentir o mito do Tango de uma forma autêntica, não fabricada e muito menos turística, foi alcançado.

07 de Abril, dia 17. Regresso para Portugal do restante grupo

Buenos Aires, 8 da manhã. Com a infrutífera ajuda do Hotel tentei antecipar o regresso a Portugal em vão. O meu

bilhete

não

permitia trocas, é o preço de ser a tarifa mais reduzida. Agora os dias seguintes não seriam

tão

intensos,

por isso havia espaço para as saudades de casa. Fiquei mais dias, porque a minha companhia desta viagem, a Margarida, que acabou por não poder vir, queria conhecer a capital da Argentina, assim fiquei refém do meu bilhete sozinho. O grupo separa-se uns partem outros ficam, agora cada um faz a sua agenda. Bruno e Paula os noivos também ficaram, assim como Lúcia. Não queria ser um estorvo para os nubentes, achei que queriam conhecer a cidade sozinhos. A Alemã ficou noutro Hotel, com o objectivo de frequentar um mini curso de Tango. Felizmente o casal insistiu para os três vagueássemos pela cidade dentro.


108 Buenos Aires, é uma das 10 maiores cidades do mundo em terreno plano com uma área de 202 quilômetros quadrados. Estima-se que o número de habitantes seja 3 milhões de pessoas; acrescentando a população da área metropolitana esse número sobe a mais de 10 milhões de habitantes, é um dos 10 centros urbanos mais populosos do mundo. Os limites naturais da cidade são o Rio de la Plata e o Riachuelo ao leste ao sul. A Avenida General Paz circunda a cidade de norte a oeste, e a conecta rapidamente com a área da Grande Buenos Aires. A grandeza também se traduz nas ruas, esta metrópole tem a avenida mais larga do mundo. É tão grande que a passagem dos peões, têm uma contagem decrescente de 20 a 0 para que as pessoas não fiquem a meio da estrada quando o sinal passa a vermelho. O primeiro local que visitámos foi San Telmo, fez-me sentir o nosso Bairro Alto em Lisboa, zona muito rústica, velha mas muito charmosa, tem edifícios de uma valiosa arquitectura. Noutros tempos, aqui vivia a aristocracia, mas depois das epidemias, e das deficientes infra-estruturas sanitárias, esta classe de pessoas mudaram-se para o norte da cidade. Ficou um bairro residencial de emigrantes e antiquários. Aqui na plaza Dorrego, ao fim-de-semana, realiza-se uma feira de antiguidades de toda a espécie, uma pérola para coleccionadores e curiosos como eu, adorei. De seguida, a pé, fomos para La Boca, o nosso Cais do sodré, Neste percurso fomos abordados por dois Policias, ambos com colete à prova de

bala.

Como

trazia

a

máquina

fotográfica

ao

pescoço,

as

autoridades preveniram-me que era muito perigoso, pois as ruelas que nós seguíamos era frequentada por muitos amigos do alheio, contaram


109 que às vezes os turistas mais azarados, até sem a roupa ficam. A técnica dos “Gang’s” é esconderem-se em becos e puxam violentamente o seu alvo, e a partir daí com arma branca ou de fogo, tiram tudo o que podem. Não fiquei muito tranquilo depois do aviso, mas continuámos, com a máquina escondida e os cinco sentidos em alerta. É o único bairro que goza e interage com o rio Plata, patrono do famoso Boca Júnior, clube mítico que projectou Diego Maradona. No coração deste local, existe um dos postais mais bonitos e turísticos da cidade,

a

Calle

Caminito, ser

um

por bairro

piscatório, antigamente

os

pescadores aproveitavam restos

de

embarcações para fazerem as suas serem

casas,

daí

multicoloridas,

tem,

artesanato,

pintura,

restaurantes,

esplanadas, animação e claro o Tango que anima todas as ruas desta zona, os shows desta dança acontece em cada esquina, os pares chamam os turistas para dançar e tirar fotos, clara que tudo tem um preço. É tudo tão vivo, alegre e bonito que os olhos não descansam, visitámos várias galerias, eu queria comprar um quadro como faço sempre que viajo, e neste sítio, pintores não faltavam. Mas a única tela que gostei, estava pendurada num restaurante qu também servia


110 de galeria, estava assinada por Pollini, um pintor famoso ainda vivo, que frequentava este estabelecimento. Quis conhecer o autor e negociar a obra, depois de sermos apresentados disse-me que o quadro valia 4800 Dólares, achei o preço tão absurdo tendo em conta o preço de outros quadros expostos nas diferentes galerias que espreitámos, que nem me dei ao trabalho de regatear. Não desisti, e encontrei um lindo com umas cores que condiziam com a minha casa, o preço também não era barato, 600 dólares, mas as paredes da casa não esticam e a tela era muito grande, optei por não o levar mas havia orçamento para pequenos souvenirs, comprei um anel, música e um dvd de artistas locais. A Lúcia apareceu, contou-nos a experiência do mini curso deTango e fizemos mais uma ronda nas ruas de Caminito. Desta vez não resisti, uma japonesa lindíssima convidou-me para dançar Tango, e aceitei. Foi hilariante, só mesmo para a fotografia, ela ainda se esforçou mas com botas do tamanho 46, e como não tenho nenhum cromossoma de Fred Astaire o resultado só não foi desastroso porque não a pisei, mas foi um momento divertido. Como turistas convencionais almoçámos num dos muitos restaurantes típicos no bairro, desta vez não eram barras energéticas, foi um manjar de iguarias bem regadas, sentados numa atmosfera muito festiva e bonita, o dia estava a correr muito bem. Encontrei finalmente um motivo forte para fotografar, era uma dançarina,

a

sua

leveza,

postura

e

sensualidade

a

dançar

personificava o Tango, não resisti e pedi autorização para a fotografar, ela julgava que era para dançar, mas não, só a queria fotografar. Carolino seu nome, quando viu a máquina assustou-se com o tamanho da mesma, expliquei que a foto não tinha motivos


111 comerciais, e que a minha forma de pagamento seria o envio da mesma foto por email, ela aceitou. Escolhi o fundo

a

pose

e

o

enquadramento e fotografei, ganhei

o

dia

com

aquele

momento. Enviei a foto como prometido,

e

nem

um

obrigado. Já começava a ficar tarde e regressámos ao hotel, depois

de

um

tonificante

banho voltámos a San Telmo para

jantar.

Esta

noite

o

Flamengo ecoava na Plaza Dorrego. A nossa mesa era na esplanada, a temperatura estava à mesma do vinho, ameno. O ambiente estava muito cosmopolita, sentia-se muitos turistas e estudantes

de

idade

universitária,

o

espectáculo

tinha

muita

qualidade, o par e os músicos proporcionaram mais uma noite de alta qualidade. Já eram quase duas da manhã quando chegámos ao hotel.

08 de Abril, dia 18. Conhecer a cidade.

Bruno a Paula e eu, saímos do hotel por volta das 10h00, já com o pequeno-almoço, e energia para andar. Combinámos palmilhar a


112 cidade, a pé sempre se descobre melhor os pequenos recantos. Pela proximidade do Hotel, La Recoleta foi a primeira área a desbravar. Esta zona é uma das mais nobres, possui o Museu Nacional das Belas Artes, a Bibiloteca Nacional, Museu Nacional das Artes Decorativas, Museu Hispânico e o Centro Cultural da Buenos Aires. Por ser domingo, havia uma feira de artesanato, ordenada por jardins contíguos seguramente com mais de 200 pequenas barraquitas coloridas com Artesão de de todos os géneros (pintura, escultura, marroq uinaria, joalharia, bijutaria, roupa, tecidos, antiguidades etc.. etc..) Como

gosto

de

pintura,

entre

muitos

artistas, depois de dar duas voltas à zona dos

quadros,

escolhi

os

que

me

interessaram à medida da minha magra carteira. Comprei um conjunto de dois quadros, é uma combinação do primeiro e último momento da dança do Tango. Negociei directamente com a autora dos quadros, tentei regatear mas sem sucesso, mas também não insisti, era uma jovem estudante de Belas Artes. Senti que por apenas 150 Pesos, não estava apenas a comprar duas pinturas, estava a ajudar alguém que acredita que um dia vai ser uma Pintora a tempo inteiro, e expor nas galerias mais importantes da cidade. Com uma assumida presunção, senti-me um mecenas e ao mesmo tempo a fazer um investimento e não apenas uma compra. O cemitério Paris Pèr-Lachaise onde jazem 70.000 tem figuras mais famosas e importantes de França acolheu como o caso de Jim


113 Morrisson, Molìere, Óscar Wilde, este último túmulo é uma obra classificada como património da UNESCO. Buenos Aires, também tem um Jazigo onde descansam para toda a eternidade as pessoas mais ricas e influentes da política, sociedade e cultura. O Cemitério da Recoleta é o mais antigo e aristocrático da Cidade. Em seus quase seis hectares estão sepultados heróis da Independência, presidentes

da

República,

militares, cientistas e artistas. Entre eles, Eva Perón, Adolfo Bioy

Casares

e

Quiroga.

Os

mausoléus

foram

muitos

casos,

arquitetos. mausoléus como

Facundo

sepulcros

de Mais

foram

Monumentos

obras,

e em

importantes de

70

declarados Históricos

Nacionais. Está localizado em terras concedidas por Juan de Garay

a

Rodrigo

Ortiz

de

Zárate, que fazia parte de sua expedição colonizadora. Depois foi instalado nesse lugar um convento de freis recoletos. Em 1822, depois da expulsão dos monges --como conseqüência da reforma Geral da Ordem Eclesiástica--, o horto do convento foi transformado em cemitério. Seu traçado foi realizado pelo engenheiro francês Próspero Catelin, e remodelado durante a gestão de Torcuato de Alvear como prefeito em 1881, que encomendou


114 o trabalho ao arquiteto Juan Antonio Buschiazzo. O escultor italiano Giulio Monteverde realizou o Cristo que preside a capela. Não existem campas, cada túmulo é uma obra de arte, o chão é todo calcetado. Existem visitas guiadas e roteiros, a endereço de mais visitado é o da família Duarte, ou seja os restos mortais de Eva Peron. É uma peregrinação ao seu mausoléu, é só seguir os pequenos grupos ou excursões que todos vão lá passar para venerar ou apenas para fotografar como eu. É um ritual meu, sempre que viajo fotografo cemitérios, casamentos e outras manifestações culturais, com ritos que espelham um povo ou uma religião. Uma estátua em Bronze de uma menina e um cão de raça Golden Retriver, espertou-me a atenção, tinha uma dedicatória em Italiano, e tem a seguinte história: Liliana Crocciati era filha de um conhecido pintor e poeta italiano. Jovem artista plastica, ela faleceu com 25 anos de idade, em Innsbruck, Austria, em 26 de fevereiro de 1970, no meio da sua lua-demel. Uma avalanche atacou o hotel onde ela estava com o marido, dormindo. Morreu asfixiada na sua propria roupa, no meio neve. No mesmo dia, a 14000 km de distancia, seu adorado cachorro,

Sabu

morreu. Liliana foi enterrada com seu vestido de noiva. Seu tumulo foi construido com madeira e vidro, materiais que ela adorava usar em suas obras. Na frente tem essa escultura feita por Wilfredo Viladrich, onde ela aparece com seu fiel amigo Sabu e o mesmo vestido de noiva. O desenho de sua tumba foi baseado em como era o seu quarto. E nele, encontramos algumas pinturas da artista e um poema de seu pai que começa com: "Por que?".


115 É de arrepeiar esta Surreal história, é caso para se dizer, quem mora aqui,

apesar

de

economicamente

terem

heranças

culturais,

políticas

ou

diferentes, têm todos o mesmo fim com uma

perpetuação luxuosa. Da arte marginal da rua fomos ao Museu Hispânico, Botero e Frida Khallo na pintura são as estrelas deste espaço, os corredores largos com luz natural, obras de outros artistas de toda a América Latina forram as paredes de Arte. Em Fotografia

David

LaChapelle,

também

exibia as suas obras em tamanho

gigante.

Foi

possível ver os lábios de Angelina Jolie em grande formato. Este autor, é um provocador e criador de um conceito de imagem única. Por isso é um dos maiores,

favoritos

e

requisitados fotógrafos de Hollywood. Foi o responsável da direcção de fotografia das “Donas de casa desesperadas” Hora de almoço, m frequentada.

ais bife de chouriço numa esplanada bem


116 Como qualquer cidade existe a zona das compras, o Retiro Avenida Alvear, uma avenida de comércio local misturado com os franchisings do costume de roupas e restauração. A boa diferença é que nas ruas principais e adjacentes também convivem artistas de rua, mágicos, jogos a dinheiro de sorte e azar, dançarinos e músicos é uma animação constante. Bruno e Paula, hoje ao final da tarde partiam para Portugal, despedimo-nos

com alguma nostalgia, os

encontros são sempre

melhores que as despedidas. Continuei a passear sozinho, sem rumo e sem objectivo o meu mapa eram os meus sentidos. Já era de noite quando regressei ao hotel, comprei comida no supermercado e comi no Hotel. Queria conhecer a cultura televisiva da Argentina e do quarto não saí, a fazer zapping até adormecer.

09 de Abril, dia 19. Conhecer a cidade.

Pedi ajuda na recepção do hotel no sentido de me ajudarem a fazer o roteiro do dia. Depois do pôr a net em dia, saí do Hotel já depois das 10h00. Ainda equacionei viajar até ao Brasil e visitar as famosas Cascatas de iguaçú que faz fronteira com Argentina, apesar de serem voos domésticos, o orçamento já estava no limite. Por isso, decidi continuar onde estava a fazer todo o trajecto recomendado a pé. Traí o meu objectivo a conhecer outras partes da cidade a pé, apenas uma vez. Experimentei o Metro, nada de especial, parecem os nossos á 20 anos atrás. A zona de Bandoneon, indicaram que era uma zona castiça, tem três museus uma micro China Town. Escolhi um dos museus, o que retratava a história de Buenos Aires, pequeno e pobre.


117 Não estava satisfeito e fui a outro, com a carteira de jornalista é fácil e barato entrar nos museus, não paguei para entrar, mas depressa saí, era de Arte Barroca, estilo que pessoalmente não gosto. Não valeu o esforço de andar uma manhã para ver o que vi, estava a ficar rabugento. Retemperei forças e energias ao almoço e fui em direcção ao Museu das Belas Artes. Seguramente, este museu não iria defraudar

as

expectativas.

minhas

Como

era

segunda-feira estava fechado, mais chateado fiquei. Felizmente, já no regresso ao Hotel,

na

Martin,

Plaza

local

de

St.

privilegiado

com um edifício a lembrar o arranha

céus

Rockafeller

Center em N.Y. estão as mais famosas galerias de Arte e melhores estava

restaurantes, patente

uma

exposição de fotografias que ilustrava Guerra da Malvinas, o ano de 2007 comemorava-se os 25 anos da derrota dos ingleses naquelas ilhas estrategicamente e energeticamente (Petróleo e gás) importantes para Argentina. A par da mesma montra, está um mural e uma bandeira gigante protegida por dois soldados, com a inscrição de todos os soldados Argentinos que morreram na luta pelo seu território. Mesmo 25 anos depois, está bem patente o patriotismo deste povo.


118 Em memória dos Britânicos que ali perderam a vida, está a torre dos Ingleses, erguida em sua homenagem. A

mesma

está

vandalizada

com

inscrições bélicas manchadas a spray vermelho contra os britânicos. Seis da tarde, as pernas acusavam algum cansaço, desde de manhã a andar, mesmo em ritmo de passeio, os pés pediam descanso. Era cedo para me fechar no Hotel, na recepção pedi a agenda cultural, e propuseram-me uma noite de Tango. Cinquenta dólares, com jantar e transfere incluído. Hesitei, mas aprendi nas viagens que fiz até hoje, que só me arrependi do que não fiz ou não vi. Por isso, sacrifiquei o visa, e fui. Levei a máquina fotográfica, mas pouco ou nada serviu por duas razões. A primeira á que não tinha bateria, e a segunda é que no Show é proibido captar fotografias. Ficaria profundamente frustrado se a minha gaffe se ficasse a dever a um erro tão infantil, por não reparar na energia da câmara, pois o espectáculo foi do melhor que já vi. O restaurante era um sítio tipo sala de espectáculos, as mesas rodeavam a pista, com corredores laterais para os artistas entrarem e saírem. As

paredes, forradas

com

fotografias

autografadas

de

colunáveis à escala mundial, de Hollywood à política, destacam-se o Actor Robert Duval e Bill Clinton.


119 Na minha mesa, só se falava Português, sete Brasileiros (4 do Rio e 3 de S.Paulo) e Eu. A troca e partilha de palavras sobre a cultura do Brasil e Portugal foi um óptimo aperitivo à mesa, ficámos todos mais descontraídos e a tratarmo-nos todos pelo nome, para quem estava sozinho como eu foi muito mais fácil e agradável o serão. O espectáculo começou, luz, jogos de fumo, e som muito alto, sublinho a iluminação com uma técnica de elevado nível. As mesas a meia-luz, só o palco era bombardeado de jogos cénicos de luz, cor e brilho. Uma dança tribal abre a sequência, Trapezistas, Músicos, Dançarinos e Gaúchos com Cavalos a sério entram palco a dentro. A coreografia nesta parte, contava um pouco de tudo sobre o nascimento da nação Argentina até aos nos Trapezistas, músicos e dançarinos aos nossos dias. Os bailarinos foram sublimes, French Can Can, Sevilhanas, Milongas e o Tango foram géneros musicais muito bem representados, por estes profissionais. A garra, a forma como cruzavam as pernas e o resto do corpo era estonteante, foi de cortar a respiração. Já assisti, a espectáculos no Casino de Estoril em Brodway N.Y. e em Las Vegas, entre outros. Mas este superou tudo o que vi até hoje, a cultura desta dança aliada ao patriotismo exibido muitas vezes com a bandeira da Argentina em pleno show, sentia-se que o grupo dançava com amor á dança e ao país, uns perfeitos embaixadores da história de um país ilustrado em dança e acordes. E não era para menos, o público que assistia era todo estrangeiro. Há muita sensualidade no Tango, estes Bailarinos profissionais parece que já nasceram a dançar, fazem das pernas e dos pés uma serpente que se embala num momento a 20 rotações por minuto ou a 200, de


120 uma forma rápida, forte e cirúrgica, os lábios quase se tocam, e os corpos enroscam-se em manobras quase íntimas. Tem de existir muita paixão para se conseguir chegar a este nível. A par dos dançarinos, temos a banda que faz o recorte musical aos dançarinos. A genealogia destes trovadores, não podia ser melhor, mestres e discípulos de várias gerações, dos 19 aos 80 anos. No Piano, Violinos, Contra Baixo, Violoncelo e outros instrumentos, impunham o ritmo. Aston Piazzola, famoso compositor e intérprete do instrumento base do verdadeiro Tango, além das suas músicas tinha também ali um seu aluno, que exibia com mestria, o Bandoneon. É uma espécie de acordeão mas a uma escala mais pequena, mas tem uma sonoridade única. Já quase no final, cada par de dançarinos fez um solo com a banda, todo o público e eu gritámos bravo repetido vezes. No fim da actuação, todos os bailarinos encheram o palco para fechar a chave de ouro o espectáculo, com o orgulho do tamanho das bandeiras que empunhavam e algumas lágrimas despediram-se do público a cantar, um dos hinos da Argentina “Don’t cry for me Argentina” E mesmo no final da música cai uma bandeira gigante da Argentina com 6 metros de comprimento e 10 de largura, que assim encerrou esta magistral noite. A ovação durou muitos minutos, com todos de pé a aplaudir uma noite que não se esquece. Foi muito emotivo, de uma forma muito sincronizada, o satff do restaurante, ofereceram aos artistas e público um flute de Champanhe, e brindámos o momento com saudações do anfitrião e proprietário do salão.


121 Foi mais uma grande noite Kodak nesta viagem, com dois lamentos. O primeiro é que não tinha com quem partilhar esta noite inesquecível, e o segundo, é que nem uma fotografia registei. A não perder, o sítio chama-se “Senor Tango” nos arredore de Buenos Aires e custou 50 dólares. Dinheiro que não choro nem um cêntimo.

10 de Abril, dia 20. Último dia.

Tenho o bom costume, onde vou, tentar comprar um quadro ou um artefacto, que ilustre de alguma forma o país que visito. Apesar do orçamento já havia estoirado, não resisti, e comprei uma uma tela que estava exposta na galeria do hotel. Custou 650 Pesos (100 Euros). Um par a dançar, com um desenho e cor que me atraíram desde que o vi pela primeira vez. Queria negociar directamente com a autora do mesmo, mas não foi possível. Em vez disso, foi-me apresentada a representante da pintora, uma senhora Turca de nacionalidade Argentina. Uma mulher muito interessante, com 46 anos muito culta e também um charme muito perfumado, conhecia o mundo e gostava muito de Arte. Representava algumas das mais importantes galerias de Arte de Buenos Aires. Tomámos o café juntos depois do pequeno-almoço, privou comigo que também pintava mas com um estilo muito diferente da idosa que assinou o meu investimento. Apresentou-me ao dono do Hotel Wilton, Sérgio Wilton, Arménio de nacionalidade, que conhecia

Portugal

e

a

história

do

seu

conterrâneo

Calouste

Gulbenkian que criou uma fundação em Portugal com o objectivo de concentrar todo o seu espólio num único sítio.


122 Desejaram-me boa viagem de regresso, e de táxi fui para o aeroporto sozinho como cheguei. Sozinho, com menos dinheiro mas muito mais rico. É irónico, quando cheguei a Buenos Aires, estava vento, frio e chuva. Na manhã seguinte estava sol, e durante todo o resto da viagem fomos abençoado por bom tempo para a aventura (Trecking) que nos propusemos fazer, excepto pontualmente alguma chuva e vento. Toda a viagem foi uma aventura para os meus cinco sentidos, houve suor, lágrimas, frio e emoções fortes. Ultrapassei os meus próprios limites. Fui para lá da Patagónia, foi uma odisseia ao meu íntimo e alma. Volto com uma marca profunda e tatuada no meu coração, que jamais esquecerei, o El paso John Garden e o poema de Pablo Neruda, foram momentos Nirvana. Agora no trajecto contrário para o aeroporto o mesmo mau tempo tolda o ambiente, com saudades de casa mas também triste por partir recordo a música de ontem “Não chores por mim Argentina” Nostálgico, olho pelo vidro do táxi, uma lágrima tímida cai no meu rosto de saudades de uma aventura que me arrepiou a alma.


123

11 de Abril, dia 21. Chegada a Castelo Branco.

Depois das formalidades no aeroporto, embarquei para mais 12 horas de voo, o avião partiu a horas. Tive sorte, ao meu lado ficou um verdadeiro aventureiro, um lenhador Francês da minha idade, que trabalha sazonalmente nove meses por ano, e passa os restantes 3 meses a viajar na América do Sul. Fazia-se acompanhar com uma botija de chá-mate, contou-me que num dos muitos percursos que fez, esta bebida salvou-lhe a vida Como era um solitário nas suas aventuras, uma vez magoou-se e demorou três dias para fazer um trajecto de um dia. Sem comida, apenas só com o chá, como tem propriedades energéticas, foi o suficiente para não desfalecer, com consequências imprevisíveis. Estava com medo de atrasos, porque teoricamente a hora prevista de chegada era às 7h45m em Madrid e a minha ligação para Lisboa estava marcada para as 9h00. À chegada já no aeroporto de Madrid, a alfândega quis revistar a minha bagagem de mão, pediram para eu esperar, como demoraram mais tempo que o razoável, já com tudo exposto em cima de uma mesa, com paciência de Chinês aguardei quase 20 minutos que suas Exmas se dignassem a vasculhar os meus pertences, não esperei mais e fui-me embora sem remorsos alguns. O número do meu avião não constava nos monitores, perguntei no balcão de informações o paradeiro do mesmo ou alternativa. Mas ninguém me dizia nada em concreto. Já passava das 8h30 quando o voo foi listado com o terminal e número de porta. Literalmente fui a correr, pois eu estava na outra ponta do aeroporto. Cheguei a tempo


124 para embarcar, mas houve uma avaria no avião e não havia hora prevista de partida. Como ia chegar atrasado, fui consultar na internet as ligações de autocarro Lisboa para Castelo-Branco. O voo continuava atrasado sem hora de partida nos monitores. Subitamente ouve-se o meu nome nos altifalantes “Last Coll Mr. Mário Raposo” Quando entrei no avião, senti no olhar das pessoas, que eu era o culpado de acentuar ainda mais o atraso deste. Foi um atraso de uma hora e meia. Agora mais uma hora de voo para Lisboa. Como se não bastasse, à chegada já em Lisboa, a minha mochila, não aparecia no tapete. Fiquei rabugento, este regresso não estava a correr nada bem. Dirigi-me ao funcionário do aeroporto para reclamar o sucedido, e a mala apareceu noutro tapete. À saída do aeroporto, tive uma surpresa fantástica, o meu filho e os meus pais à minha espera. Foi delicioso. Miguel agrafou-se literalmente aos meus braços, parecia que não me via há meses. Há pessoas que marcam a nossa vida, há viagens que marcam a nossa existência, esta, é e foi das que melhor que já vivi. Já plantei uma árvore, já tenho um filho, e a ele, Miguel Alves Raposo (O Príncipe) dedico estas linhas com muito amor……

fim


125


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