A ARTE, O FAZER E AS CABEÇAS
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Programa de Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais.
Habilitação: Gravura
Orientador: Dr. George Rembrandt Gütlich
Escola de Belas Artes da UFMG Belo Horizonte, dezembro de 2022
A imagem me encanta mas, logo cedo, o que mais me chamou a atenção foi o fazer, o trabalho manual, a manualidade.
Com meu pai tive o contato com o prazer do trabalho manual, minucioso, o pensar com as mãos; tenho as lembranças mais carinhosas de dividirmos juntos os momentos do fazer –as vezes na cozinha, outras na garagem e até mesmo em meus trabalhos de escola. Mal sabia, criança que era, que seriam os momentos de maior afeto em minha memória, que com o olhar infantil se encantava com a incrível capacidade do adulto que podia fazer qualquer coisa que quisesse. Essa partilha, de fazer juntos, dividir resultados, termos coisas que nós mesmos fizemos, era também um momento de grande aprendizagem pra me tornar quem sou hoje.
Na gravura encontrei-me novamente com essa manualidade, que tem seu próprio tempo e suas próprias regras. Na gravura reúnem-se meus afetos, memórias e sonhos, com a generosidade que me permite o tempo da imagem. Dedico, assim, todas elas ao meu pai, que me ensinou sobre a partilha, a manualidade e o afeto, três pontos cruciais do que é, pra mim, o fazer da gravura.
Começo agradecendo, e tenho muito a agradecer.
Agradeço a Maria do Céu Diel, por me apresentar a gravura e tantas outras coisas logo no início da graduação, que foram essenciais nesses seis anos na Escola de Belas Artes da UFMG.
Ao meu professor e orientador querido, George Gutlich, que me acompanhou por anos com uma atenção e carinho de mestre e amigo.
A Antônio Signorini que, com muita generosidade e café, dividiu comigo muito do que ele sabe das imagens e pra além delas.
Ao Paulo Pardini e Carminha Macedo, que me acolheram e incentivaram a insistir na arte.
Aos queridos professores Tiago Valério, Alexandre Ventura e tantos outros que foram essenciais em toda minha formação como pessoa e artista.
A Geuva, Vavá e toda a família, que me acompanharam em toda minha lida com os materiais na graduação.
Aos meus colegas de ateliê, pela partilha diária em nosso espaço de trabalho, em especial à Helô, que dava mais leveza aos dias no ateliê.
Bê e Bel pela amizade e por dividirem comigo minha rotina maluca desse último ano. Ao Gouthier, por todos esses anos de amizade e cumplicidade em que crescemos tanto, juntos. Matheus, Alice, Henrique, Leonardo e Gustavo, pela amizade, as longas conversas e toda aprendizagem. A Marina, Lucas e Gabriel Elias, pela companhia nesse caminho das artes.
Agradeço ao meu pai, por todo afeto. Às mulheres da minha família, que me ensinaram a ser forte. E a todos meus amigos e camaradas, que me ensinam a não perder a ternura, jamais.
Esse é o resultado de uma série de reflexões a respeito do fazer das imagens e do início de meu percurso como jovem artista. Desde que me propus a estudar Artes Visuais, no início de 2017, me vejo diante da questão do que se trata o fazer da arte e o porquê fazê-la. Não me proponho a ousadia de responder à pergunta, mas a viver a questão e, a partir dela, do fazer: fazer imagens, imagens que sem movem, imagens com sons. A construção poética que resulta dessa pesquisa chega, finalmente, aos retratos apresentados em minha produção pessoal, desde os cadernos que viajaram comigo até as gravuras em metal, xilogravura e litografia –que espero que ainda viagem muito por aí.
Começo já apontando que não pretendo aqui definir o que é arte, mas abordar o chamado fazer artístico e algumas questões que o tangenciam. Na incrível introdução que Antônio Callado (1985, p.8) escreve para o livro A Necessidade da arte, de Ernst Fischer, lê-se que “o artista, integrado em seu processo, fez do homem de seu tempo um retrato imortal nas grandes fases de evolução da sociedade”. Assim, ressalto que seja indispensável que se pense a respeito do fazer artístico associado a seu aspecto político.
A modernidade e todo o desenvolvimento das tecnologias e dos meios de produção transformam radicalmente todo o papel social da arte. Com o fim da dependência do mecenato e sua consequente integração no mercado, a arte se distancia cada vez mais do seu aspecto “mágico” em detrimento de se tornar objeto de consumo de massa, a serviço da ideologia da nova classe dominante.
A arte perde então a capacidade de se apresentar como forma de cultura – que capacita o indivíduo a se identificar com a vida dos outros – a medida em que é guiada por uma reprodutibilidade individualista, dissolvendo o conteúdo completamente na forma e afastando o artista do público, já que uma arte que só pode ser entendida por artistas é uma arte da qual os homens comuns se acham alienados. Sendo ela um meio individual de retorno ao coletivo, essa alienação do homem comum vai interferir diretamente na característica da arte de ser um reflexo social que mostre o mundo como passível de ser mudado, privando o homem de seu direito de sonhar um sonho em contato com a vida.
Apresento aqui essa discussão por compreender que uma reflexão a respeito de como se dá o fazer artístico não pode se poupar desse debate ou guiará as artes cada vez mais para um caminho que busca um “absoluto” que se propõe a negar as contradições de uma sociedade dividida em classes. O que não significa que a produção artística deva negar o subjetivo, pois mesmo o mais subjetivo dos artistas trabalha em favor da sociedade.
“O artista não é um mero acessório de um órgão sensorial que apreende o mundo exterior, ele é também um homem que pertence a uma determinada época, classe e nação, possui um temperamento e um caráter particulares, e todas essas coisas influem na maneira pela qual ele vê, sente e pinta a paisagem. Todas se combinam para criar uma realidade mais ampla do que o dado conjunto de árvores, pedras e nuvens, elementos que podem ser medidos e pesados. A nova e mais ampla realidade é determinada, em parte, pelo ponto de vista individual e social do artista. É a soma de todas as relações entre o sujeito e o objeto, envolve não só o passado como o futuro, não só os acontecimentos objetivos como as experiências subjetivas, os sonhos, pressentimentos, emoções, fantasias. A obra de arte une a realidade à imaginação.” (FISCHER, 1985, p.123)
A obra de arte une a realidade à imaginação, e precisamos sonhar como um exercício de mudança concreta, em que sonho e vida tem um contato, daí seu aspecto mágico. A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo.
A busca inconsciente pela compreensão do aspecto mágico da arte é talvez o primeiro incentivo pra que se comece o fazer. Na literatura vi a primeira faísca. Numa seleção de livros, encontrada numa busca desesperada por informações no escritório escuro debaixo da escada, um livro que começava em vírgula e terminava em dois pontos me apresentava, logo na nota de abertura, algo mágico sobre o fazer. Meu primeiro contato com Clarice Lispector foi também meu primeiro contato profundo com a subjetividade transbordante de um “eu” que acredito ser essencial hoje em todo meu trabalho.
A seleção de livros me apresentou também Lygia Fagundes Telles, outra importante companheira que tenho desde então, essa com uma surpresa que me fez tomar mais tempo até que tivesse a coragem de ler: o livro, de capa dura, continha em suas primeiras páginas uma sequência de desenhos feitos em caneta esferográfica por mim mesma, quando ainda não tinha idade o suficiente pra distinguir um caderno pra desenhos de um livro de literatura de meu pai. Na mesma hora acessei a memória de quando desenhava e, à medida em que as páginas iam ganhando mais e mais palavras, ficava impaciente com a falta de espaço para desenhar. Meu pai quis ficar bravo, mas sorriu. Não sei o quão fiel era essa memória, mas tão-pouco me importava: tinha encontrado o que buscava.
Com o tempo a literatura também me aproximou das imagens, até que volto a compreender que não se precisa distinguir tão assim um caderno de desenhos e um livro cheio de palavras; até que a busca do aspecto mágico se torna uma pesquisa e um fazer que hoje me vejo conscientemente marcando o começo do que pretendo que seja um esforço de toda uma vida, ou até que dure a magia.
Conhecer a gravura foi outro momento importante. Ela sempre existiu, como uma daquelas coisas que não sabia dar nome ou nunca tinha dedicado qualquer esforço pra entender como se davam as cópias e cópias e cópias que uma mesma matriz reproduzia. Múltipla e volante: George diz sempre. Agora eu digo também.
O processo de compreender uma matéria que, rígida e cheia de mistérios espalha por aí imagens que só passam a existir no momento de se tornar múltipla: e é verdadeiramente encantador como uma máquina que aperta um papel contra o cobre entintado pode resultar numa delicadeza tão grande do traço aveludado que o arranhar de uma ponta seca de metal resulta no atrito direto com uma chapa de cobre polida.
A imagem é latente em sua feitura diretamente na matéria que dá nome ao processo, seja metal, madeira, pedra ou tecido; tem possibilidades plásticas encantadoras, cheias de movimento, corpulentas: são traços tridimensionais no papel. No uso de técnicas industriais num fazer a duas mãos encontrei aura da imagem que é múltipla e única em cada impressão feita com as mãos humanas. Com as minhas mãos.
A gravura é cheia de incertezas e tem seu próprio tempo. O gravurista trabalha com possibilidades, potências. Diversas variáveis técnicas – a pressão da prensa, a qualidade do papel, a tinta, o feltro, o modo de entintagem – e a própria mão do impressor vão ser definidoras do resultado final, que é, na verdade, o único momento em que a imagem se materializa: no momento de impressão.
Em minha curta experiência com a serigrafia – talvez a técnica que menos tive afinidade durante o percurso da habilitação de gravura na graduação – essa incerteza me foi uma grande lição: tão acostumada com o atrito direto com a matéria, enquanto usava o rascador de gravura em metal para fazer falsas maneiras negras na litografia, vi o desafio da gravura no tecido esticado. A impressão de uma serigrafia em grande formato, feita com desenho diretamente na tela com giz pastel oleoso e sem respeitar as margens, encontrei grandes dificuldades na impressão, que resultou em uma tiragem de imagens completamente distintas em seus detalhes. Se tratando de gravuras de quase 60 cm de mancha gráfica, as diferenças entre cada impressão se tornam bem mais evidentes que nas gravuras em metal de 20 cm de altura como estava mais acostumada a fazer. O processo de impressão, incialmente frustrante, significou também uma grande compreensão dessa característica da gravura, de entender a matéria e a própria interferência da mão humana. Passei a gostar de ver as cópias todas uma do lado da outra com suas distintas possibilidades de resposta a matéria, e assinei todas como uma tiragem. Também imprimi continuamente num papel com mais de três metros de altura num exercício de brincar com essas diferenças.
O trabalho do artista necessita da compreensão da matéria, num equilíbrio entre pensar e fazer. “Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma.” (FISCHER, 1985, p.14 ) Compreender o tempo da gravura foi outro ponto essencial em meu trabalho, que me permitiu criar uma nova relação com o próprio desenho. Todos os processos para sua feitura exigem que se respeite o tempo da imagem, o tempo da matéria. Não é imediato, e não aceita atropelos: a gravura tem seu próprio tempo. Entendêlo e respeitá-lo modifica toda a relação com o imediatismo do desenho, que tão pronto se demonstra no contato de pigmento e papel. São muitas etapas e muitos detalhes de um saber empírico do trato com a matéria que é compartilhado no ateliê.
O ateliê é essencial pro fazer da gravura, espaço de trabalho e de partilha. É lugar de pensamento, de conversa, de fazer – tudo faz parte do processo da gravura. Aqui, patrilha e trabalho são indissociáveis: por vezes, como no caso da litografia, é quase impossível se imprimir sozinho, por questões práticas de manejo do material, da prensa, de entintarem da pedra. Mas a arte precisa do artesanato, que se ensina a medida em que se faz; e o fazer compartilhado é muito mais rico.
“Mas existe a imagem. O problema é saber como a gente vai reproduzir a figura. Como fazer com que ela pareça real? Como fazê-la real segundo nossa maneira de sentir? Ou real segundo nosso instinto?” (BACON, 1995, p.164)
Meus cadernos de desenho estão todos amontoados de cabeças que se misturam incompletas e em movimento, assim como em minhas gravuras. Me parece estranho, num primeiro momento, que se faça um rosto para que seja assim reproduzido tantas vezes. Por que reproduzir tantas vezes o rosto de alguém? Quem é essa pessoa?
As cabeças, como gosto de chamar, surgem num primeiro momento na Coleção dos Sete Sonhos, série de xilogravuras ainda inacabada. Nelas, as cabeças se sobrepõem a objetos, plantas, paisagens, animais, outras cabeças, a própria luz da abertura da goiva na madeira. A mistura dos olhares em camadas incompletas e sobrepostas reproduzem na imagem o pensamento e a memória, sonho e lembrança. Desenho como penso, reunindo camadas de informações –também escrevo assim.
No audiovisual experimentei transpor minha lógica do desenho, montando imagens que coleciono e sobrepondo ruídos da imagem e do som. As imagens que desenho, afinal, são também uma coleção, um elogio à observação. Nos vídeos – ou imagens com som, como gosto de chamar – as cabeças pouco aparecem, apesar de estarem presentes nos sons, nos movimentos, nas vozes. As cabeças estão presentes na paisagem, assim como os retratos são, também, paisagens.
“(...) Quando se pinta um retrato, o problema é encontrar uma técnica capaz de expressar todas as vibrações de uma pessoa. Mas quase todo mundo, quando deseja um retrato pintado, recorre aos pintores acadêmicos.” (BACON, 1995, p.174)
As texturas da matéria dão outro aspecto às cabeças. O traço aveludado da ponta seca, as linhas que restam da madeira que resiste ao corte da goiva, a textura do crayon litográfico e a luz aberta pelas das raspagens modificam a concepção da pele e do corpo humano. As vezes adquirem movimento, as vezes dão o peso de vagões de minério às pálpebras caídas de quem olha pra lugar algum.
O amontoado de cabeças é recorrente em minhas imagens. Se amontoam como se amontoam as memórias, as angústias e os sonhos. Cabeças habitam os sonhos e sonhos habitam as cabeças: como representar os sonhos se não com a própria face de quem o sonha?
“(…) A emoção para um artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmití-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeita à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a.” (FISCHER, 1985, p.14)
Desenho em busca de descobrir o mundo, dominá-lo e transformá-lo. O ser humano transforma a natureza e dessa forma está se transformando.
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