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Apresentação dos Anais da Jornada ABCA 2021

Ana Lúcia Beck Paulo Henrique Duarte-Feitoza Sandra Makowiecky

Para o esplêndido egotismo de um pensador, a existência dos outros é na verdade sempre inquietante. Ele não pode evitar enfrentar o grande enigma que o arbitrário do outro lhe propõe. O sentimento, o pensamento, o ato de um outro quase sempre nos parecem arbitrários. Fortificamos toda a preferência que damos aos nossos, por uma necessidade da qual acreditamos ser os agentes. Mas, decerto, o outro existe, e o enigma nos pressiona. Ele atua sobre nós de duas formas: uma que consiste na diferença das condutas e dos caracteres, na diversidade da decisões e das atitudes em tudo que diz respeito à conservação do corpo e de suas posses; a outra, que se manifesta pela variedade dos gostos, das expressões e das criações da sensibilidade.

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Paul Valéry1

Em poucos outros momentos históricos recentes pudemos observar tão fortemente o que o filósofo Paul Valéry nos lembra na passagem acima. Afinal, lidando com a pandemia de Covid-19 desde 2020, as arbitrariedades alheias – não respeitar o distanciamento social, não usar máscara, discursar contra medidas protetivas e atacar a ciência, não reconhecer o ímpeto destrutivo da pandemia sobre as parcelas menos favorecidas da população – puderam ser percebidas flagrantemente não somente como enigmáticas arbitrariedades, mas como efetiva ameaça à vida de todos. A pandemia nos confrontou diretamente com este espaço no qual reconhecemos que a conservação de nosso corpo perpassa o tecido social, sendo garantida pela permanência deste tecido enquanto matéria composta pela contínua relação entre urdidura e trama que mantém tensionados, porém integrados nós e os outros. É este tecido que não somente nos compõe como sociedade como garante nossa proteção em termos, agora sabemos, em nada metafóricos.

Se a pandemia nos confrontou com a agudeza de percepção sobre os comportamentos do outro, na mesma medida, como afirma o filósofo, nos lembrou que o outro existe! E essa existência esteve – tanto a minha como a do outro – ameaçada por diferentes crises, sejam aquelas diretamente ligadas à existência do vírus e às diferentes atitudes tomadas para combate-lo, sejam aquelas que desde há muito colocam em xeque até mesmo valores basilares de nossa sociedade. É com essa realidade, que também a arte e a crítica de arte têm se confrontado.

Tal paisagem temporal nos serviu de mote ao propormos o tema da Jornada ABCA de 2021: “Crítica de Arte diante das crises atuais”, enquanto espaço de reflexão e debate através da arte, a partir da arte e com a arte, sobre como estamos coletivamente lidando com a realidade atual e suas muitas crises.

Assim, após cuidadoso processo de análise, foram selecionadas propostas submetidas à equipe organizadora para a apresentação no dia do evento que ocorreu na modalidade on-line em 3 de julho de 2021. Todavia, dada a diversidade de sensibilidades – como diria Valéry – a diversidade de questões, artistas e debates que tal temática envolve, algumas propostas que não foram apresentadas no evento foram convidadas a compor seus Anais. Nosso intuito, nesse sentido, é garantir um panorama mais diverso e rico sobre essas questões, uma vez que o evento ocorreu excepcionalmente, de forma enxuta em apenas um dia, por ocorrer no fechamento do Encuentro de las AICAs Latinoamericanas. O evento ocorrido em 3 de julho contou com duas palestras de abertura que abrem nossos Anais. Proferidas por Divino Sobral, “As primeiras exposições de arte em Goiânia e suas contribuições para a formação do modernismo goiano nas artes plásticas”, e Bianca Casanova, “Um panorama da crítica de arte em Goiás (1942-2020)”, constituem textos que, sem dúvida, serão referência para o estudo e pesquisas sobre a arte produzida no estado de Goiás, pela sistematização dos dados e pelas reflexões deles oriundas. De igual forma, situam o estado de Goiás no cenário brasileiro da crítica de arte, nos Anais da Jornada da ABCA, assim como garantem visibilidade a um outro muito particular desde a perspectiva deste nosso país ainda voltado ao litoral a mirar perpetuamente a metrópole. Marca-se a presença e o desenvolvimento da arte e da crítica de arte no centro-oeste, zona periférica aos grandes centros do sistema artístico brasileiro, mas nem por isso menos relevante se lembrarmos nossa epígrafe inicial e seu reconhecimento da sensibilidade do outro. Em tempos de crise, a arte também é um outro, e permanecerá sendo lanterna a alumiar escuridões. Lamparina fulgente, ainda que desenhada em carvão, como na produção de Lucélia Maciel que escolhemos como imagem de nossa Jornada, numa imagem que integra a tradição e a simplicidade, os claros e escuros, os individuais e coletivos das memórias e do imaginário. Além da mesa de abertura, ao longo da Jornada, foram apresentadas comunicações agrupadas sob três eixos centrais: “Crítica de arte e imagens de crise”; “Crítica de arte para além da crise das imagens” e “Crítica de arte e a convivência de regimes de verdade”. Ainda que nestes Anais os textos sejam apresentados em ordem alfabética pelo nome dos autores, a lembrança destes três eixos é um interessante sinalizador ao leitor sobre como a crítica de arte – enquanto prática viva de reflexão a partir da produção artística - é capaz de fazer dialogar as questões “da arte” e “da crítica” com a realidade e a atualidade de um mundo em disputa. Aos que desejem conhecer ou rever as comunicações, as mesmas podem ser acessadas na íntegra no Youtube no canal do NIHA-UFG no endereço: https://www.youtube. com/c/NIHAUFG Enquanto registro de evento e de um momento histórico particular, cumpre recuperar na apresentação destes Anais a fala de um outro regional: a poesia de Cora Coralina, com a qual abrimos a Jornada. No poema intitulado “O longínquo cantar do carro”, a poetisa recorda:

Dizia meu avô: Quando as coisas ficam ruins, é sinal de que o bem está perto.

O ruim está sempre abrindo passagem para o bom. O errado traz muita experiência e o bom traz às vezes confusão: “Nem sempre assim nem nunca pior”.

Meu avô conhecia todas as verdades e gastava a filosofia de quem muito viveu e aprendeu.

Quando as coisas não iam bem, Ele dizia: amanhã estará melhor. E descia curvado para o seu engenho de serra. [...]2

Este poema foi selecionado por nós por um lado, num gesto de reconhecimento e valorização do outro, desenhado aqui na sabedoria dos chamados “homens simples”, tão bem captada por Cora. Com relação a nosso contexto específico de crise e pandemia, trata-se de mantermos a esperança na ideia de que o exacerbamento do ruim, do errado, possa ser prenúncio da vinda de tempos melhores. É com esta ideia em mente que abrimos a Jornada com um desejo intenso de que a arte e a crítica de arte possam ser também um “engenho de serra”. Local de trabalho que nos ajuda a perceber melhor o mundo e as condições em que estamos inseridos, local desde o qual possamos lançar luz às diferentes escuridões que nos ameaçam. De outra parte, tal escolha traduz também nosso desejo de estreitamento dos laços interregionais e interinstitucionais que, no caso desta Jornada, uniram aos esforços e atividades da ABCA também a dedicação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), através da atuação de diferentes docentes e técnicos de ambas as instituições que contribuíram de forma efetiva para a realização deste evento. Em um cenário onde se busca a visibilidade local, regional e nacional da produção artística e a produção conjunta de conhecimento, a formação de alianças mediante a cooperação e o estreitamento dos laços inter-regionais e entre instituições é de extrema relevância. A ABCA, em suas jornadas, visa apoiar e incentivar ações e eventos que propiciem a mencionada integração e estreitamento de laços entre as instituições e entre críticos de arte de todo o país. Nesse sentido, fazemos votos que tal marca de atuação seja perceptível no conjunto dos textos que compõe os Anais e que as reflexões nele contidas possam despertar cada vez mais interesse investigativo nas regiões periféricas geograficamente e conceitualmente.

Que a crítica de arte, fortalecida pelos laços inter-regionais e interinstitucionais que marcam a composição e a atuação da Associação Brasileira de Críticos de Arte, possa contribuir para o fortalecimento não dos nossos gostos pessoais – aqueles que nem sempre se apresentam como enigmáticos – mas dos gostos dos outros! Aqueles que, conosco, formam o tecido social do que podemos chamar, de fato, uma nação. Não podemos finalizar esta apresentação dos Anais da Jornada ABCA 2021 sem agradecermos as inúmeras pessoas e instituições cuja contribuição foi fundamental para que o evento ocorresse. Assim, agradecemos primeiramente à Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAVUFG), na pessoa de seu diretor Bráulio Vinicius por ter sediado o evento; à Secretaria de Comunicação (SECOM) pela logística de transmissão; à Comunica FAV, pela divulgação em diferentes redes sociais. Agradecemos também ao Curso de Artes Visuais Bacharelado, em especial aos acadêmicos Emmanuel Felipe A. Amaral, Levi Nascente Gomes e Thaysa Alarcão pelo auxílio na organização e logística, e à Lucélia Maciel que gentilmente cedeu seu trabalho para compor a identidade visual do evento e destes Anais; ao Núcleo de Investigação em Histórias da Arte (NIHA-UFG) pelo auxílio na organização e divulgação do evento; aos discentes e docentes do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, assim como do Programa de Pós-Graduação em História da UFG pelo auxílio na organização e na condução das mesas da Jornada, em especial Amanda Teixeira, Anna Carolina Mendes Ramos, Bianca Casanova, Maria Elizia Borges, Marina Muniz Mendes. Além disso, agradecemos à Viviane Baschirotto pela divulgação nas mídias sociais e ABCA Informa; Fernanda Pujol pelo gerenciamento, design e diagramação do site ABCA; Leila Kyiomura, editora do jornal da ABCA “Arte e Crítica”; Maria Amélia Bulhões Garcia, presidente da ABCA, pela confiança; a Lisbeth Rebollo Gonçalves, presidente da AICA, pelo incentivo; a Cauê Alves, tesoureiro da ABCA, pelo apoio; e finalmente, a todos os associados à ABCA que compuseram a Comissão Científica e que conosco dividiram suas pesquisas durante a jornada e nestes Anais. Desejamos a todos ótimas leituras.

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