Sublimes Ruínas

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S UB L IMES RUÍN AS Abílio Mateus Jr.


SUBLIMES RUÍNAS


Leia também, do mesmo autor: DANÇAS DA ESCURIDÃO 1ª edição, 2002, Scortecci Editora
 ISBN 85-7372-709-8 2ª edição, 2012, e-book, Edição do Autor
 ISBN 978-85-914822-0-7

IMAGEM DA CAPA: Detalhe do cenotáfio erguido em homenagem a Charles Baudelaire no Cemitério de Montparnasse, Paris, França © 2007 Abílio Mateus Jr. TEXTURA DA CAPA: NegativeThoughts por Shadowhouse Creations


Abílio Mateus Jr.

S UBL IME S RU ÍNAS

Florianópolis
 2012


Copyright © 2012 Abílio Mateus Jr. 
 Todos os direitos reservados

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M425s

Mateus Jr., Abílio, 1978 Sublimes Ruínas / Abílio Mateus Jr. – Florianópolis: Edição do Autor, 2012. ISBN 978-85-914822-1-4 1. Poesia brasileira. I. Título 2. CDD 869.91 CDU 821.134.3(81)-1 Índice para Catálogo Sistemático: 1. Poesia: Literatura Brasileira 869.91


Ao pequeno Arthur


ÉPIGRAPHE
 POUR UN LIVRE CONDAMNÉ

Lecteur paisible et bucolique,
 Sobre et naïf homme de bien,
 Jette ce livre saturnien,
 Orgiaque et mélancolique. Si tu n'as fait ta rhétorique
 Chez Satan, le rusé doyen,
 Jette! tu n'y comprendrais rien,
 Ou tu me croirais hysthérique. Mais si, sans se laisser charmer,
 Ton oeil sait plonger dans les gouffres,
 Lis-moi, pour apprendre à m'aimer; Âme curieuse qui souffres
 Et vas cherchant ton paradis,
 Plains-moi!... Sinon, je te maudis! Charles Baudelaire



SUMÁR IO fênix 12 abutre 13 terceiro 14 vel(h)a 15 rosto faminto 16 o corpo 17 caravana 18 sírius 19 dia de missa 20 o bailarino 21 agonias de um velho 22 o trem 23 moldura fina 24 pobre poeta 25 estátua-viva 26 malabares 27 o comedor de ócio 28 vinho e circo 30 assassino 32 a noite 33 democrático 34 visionário 35 poeta das curvas 36 a caverna 37


den døde mor 38 ossário 39 fogo e flor 40 o carnaval dos mortos 41 recortes do mar 43 mare nigrum 44 tristeza outonal 45 ferro e salitre 46 doce insurreição 47 liberdade 48 sublimação 49 ruminante 50 a cabeça 52 derradeira saga 54 jazz & gatos 56 gato Bukowski 57 ela 58 de bocas e beijos 59 sobre navalhas 60 ultimato 62



SUBLIMES RUÍNAS

fênix esta angústia que corre em minhas veias
 exala um perfume acre de flor morta
 são naus a singrar minha ácida aorta
 entre hemáceas malsãs e vis sereias
 perfura a carne as vísceras me corta
 ata minha alma a sórdidas correias
 transforma em rocha o pó d’alvas areias
 em grades o cais onde a ideia aporta
 e por mais que eu resista a esta tragédia
 laminando os dois pulsos e exaurindo
 todo sangue a angústia toma a rédea
 cavalga minha fronte e vai sorrindo
 sem suspeitar que a fênix ressuscita e
 das próprias cinzas se eleva bendita! [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

abutre estou oco por dentro tenho fome
 das pragas semeadas nas calçadas
 plantadas nas gris ruas dos sem-nome
 nas suas próprias faces desoladas
 tenho pressa mastigo podres frutos
 pasto migalhas míseras a esmo
 com os olhos de pedra frios e astutos
 sacio o ser interno e a mim mesmo
 regurgito alegrias esporádicas
 tristezas espontâneas e sádicas
 dilacerações ácidas da mente
 repouso no teu âmago silente
 com um gosto de vísceras no olhar
 e as asas bem abertas p’ra voar [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

terceiro o cérebro vago lamenta e revela
 silêncios e abismos sepulcrais
 diálogos a sós à luz de vela
 do morto vestígio onde o corpo jaz
 mas há tempo pungentes temporais
 castigam o outro lado da janela
 enquanto aqui posta nos meus umbrais
 deixo pender minha cinza aquarela
 um dilúvio de cores cria a imagem
 que os espelhos insistem refletir
 e os olhos cansados de ver reagem
 vorazmente anseiam pelo porvir
 levanto ando curo o último edema e
 ressuscito num terceiro poema [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

vel(h)a a velha pálida os ombros caídos
 a face em ruína pressente o absurdo
 os olhos baços o ventre profundo
 a velha pálida pálida e pálida
 o tempo galga seu dorso pesado
 lágrimas fluem por rugas doídas
 a velha pálida plácida pálida
 uma chama cálida oscila no ar [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

rosto faminto louca! o seu rosto faminto a súplica rouca
 entre ruídos de insetos gritos de insetos
 rastejantes e abjetos santa! os joelhos na miséria óbvia tanta
 que se espalha nas ruas engole essas ruas
 rútilas vivas cruas sombra espavorida lúgubre que me assombra
 furta espasmos fortes queda de muros fortes
 renasce de mil mortes morre! padece na fome ninguém socorre
 a face da pobreza a órfã da pobreza
 sonâmbula indefesa fria?! encravada na calçada mais sombria
 estirada no leito torpe duro leito
 morta! um sonho desfeito [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

o corpo disformes pigmentos recobrem a ruína
 pelas ruas tons cinzas monótonos crus
 tornam negros quaisquer fachos de vaga luz
 que habitam o corpo hóspede duma esquina
 subversivos olhos de uma face assassina
 condenam os trapos sem leitos ou vil cruz
 culpam os restos que o povo humano produz
 ignoram o corpo cegueira repentina!
 estirado no eterno mármore sua praça
 abatido pela excelência da desgraça
 o corpo expira tragos de incredulidade
 enquanto um tumulto de pombas esvoaça
 perdido nos escombros sem qualquer verdade
 o corpo funde-se na infâmia da cidade [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

caravana uma caravana um povo perdido
 nos fétidos criminosos atalhos
 levando os restos mórbidos retalhos
 dignidade oculta em cada gemido
 tráfego de vilezas lixos vidas
 esparramadas nas ruas cinzentas
 ancoradas em sombras sonolentas
 sombras incessantemente sofridas
 movimentos síncronos no cimento
 uma queda ressurreição um passo!
 seguem num simbiótico compasso
 sugando das calçadas o alimento
 moldando-se na rude arquitetura
 dos bancos das esquinas da loucura [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

sírius sonhando e divagando sempre me deparo
 com a figura lânguida de um cão faminto
 que por vezes encontro feito um anteparo
 inerte sustentando seu corpo indistinto
 as patas alquebradas tremendo até os dentes
 numa tortura vaga e mais silenciosa
 que a dor reinante em suas pupilas tementes
 medo da morte humana usando terno e prosa os dois olhos confusos perdidos na esquina
 do insano desespero entre a glória e a paz
 um contido murmúrio de fome que mina
 do ventre oco e silente qual resto que jaz
 ainda me recordo desse animal fruto
 da comunhão da vida com o negro alento
 sua imagem persegue meu ser diminuto
 em cada passo raso no solo cinzento a leveza do seu caminhar seu sorriso
 levam minha alma à turva desconfiança
 que logo se revela num trágico aviso
 céus! o que vejo é uma santa criança!
 jogada no tumulto da cidade ingrata
 fica imóvel diante da minha surpresa
 sorrindo disfarçando a fome que lhe mata
 num silêncio voraz tristemente indefesa [u\
 Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

dia de missa flores para os mortos os santos os doentes
 vaga rosa reflete o dorso duma velha
 sentada sobre as sombras os braços dormentes
 firmes! gesto paciente que a flor espelha
 a mão estendida em silêncio agride e chora
 vende seus absurdos comprando piedade
 inerte muda como a chegada da aurora
 flores para os tolos flores para a cidade uma procissão de corpos e pesadelos
 segue as esmolas das caridosas retinas
 que cruzam o infinito e encaram os apelos
 cruéis! malditas revelações citadinas
 membros desfigurados espreitam quem passa
 súplicas juntam-se aos murmúrios dissonantes
 inundam as calçadas com densa desgraça
 com fé moribundas lástimas nauseantes um mar incandescente alastra-se e consome
 a carne pura a pele cheia de pecados
 queima ferve o vinho barato cessa a fome
 dos cínicos pregadores abençoados
 chamas infindas desabam do santo altar
 erguido entre a miséria as esmolas tão parcas
 no trágico tumulto no impiedoso ar
 um perfume de morte deixa suas marcas [u\
 Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

o bailarino o som da música intensa atordoa
 o bailarino tonto apenas dança a multidão em febre sorri à toa
 o bailarino louco apenas dança na noite erma de glórias e maldita
 o bailarino velho vibra e dança desenvoltura mística e esquisita
 do bailarino devoto da dança os olhos num movimento lascivo
 o bailarino cego em plena dança os aplausos o espetáculo vivo
 e o bailarino mendigando dança [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

agonias de um velho medo da morte dos seus traços tortos
 seus olhos absortos são justa desgraça medo do tempo do maldito agouro
 sórdido tesouro acre qual fumaça medo da noite suas fortes garras
 em mortais amarras o velho se enlaça clama qual louco confessa e murmura
 a pungente agrura que ele velho abraça retrata a morte o silêncio noturno
 que o torna soturno tirando-lhe a graça chora emudece espera sua sorte
 reza enquanto a morte cativa quem passa [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

o trem cerca meus olhos a mesma angústia insana
 que carrega meus ossos numa atra carreta
 tudo rasteja sobre a carcaça humana
 lapidada na estação de férrea cor preta
 tudo foge em busca do bendito conforto
 enquanto os molambos entregam-se aos suplícios
 e os jovens astutos brincam de vivo-morto
 vivendo de trocos morrendo por seus vícios nos vagões da monotonia a cada instante
 um novo grito disfarçando a piedade
 desperta do sono a percepção lancinante
 e revela aos meus olhos a velha verdade
 que se ocultava nas muralhas de concreto
 nos parapeitos que dividem vida e morte
 os ideais não seguem único trajeto
 serpenteiam entre a miséria o caos a sorte vultos caminham sem direção nem respostas
 (os lampejos de vozes são sempre as perguntas)
 ofertando coisas que nas mãos estão postas
 esperando o destino em súplicas conjuntas
 outra estação ergue-se diante das vistas
 novamente negra qual noite sem fronteiras
 tudo morre os sonhos as lutas as conquistas
 o trem parte a vida trilha árduas barreiras [u\
 Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

moldura fina um louco debruçado no meio do fio
 na lâmina mordaz da perfídia mundana
 irrita transeuntes do mesmo covil
 donde saíra agora solto ri ou emana
 um brando desespero vivo e arredio cavalos mentecaptos cavalgam as trilhas
 do paraíso farto de ares carbonados
 névoas sufocam olhos vivas armadilhas
 dispersas no oceano de descontrolados
 espasmos desoladas faces maltrapilhas faces do louco preso em seus santos infernos
 que jazem sob as pétalas do capital
 anjos de ouro trajando máscaras e ternos
 caem dos céus num gesto divino e brutal
 ajoelham-se os servos dos deuses modernos multidão de orações embriagam as praças
 enquanto a grata dor alimenta o demente
 compaixão piedade pedidos e graças
 fica o vívido louco debruçado rente
 aos bispos da fortuna ao reino das desgraças [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

pobre poeta pobre poeta! versos rasgados no peito
 no peito farto de ares sonhos malabares
 poemas desterrados num avulso leito
 panfleto arremessado aos sóbrios olhares pobre poeta! o público que te condena
 condena e sacrifica as almas de outra rica
 linhagem artesãos eremitas em cena
 combatendo a tolice que se fortifica sofre poeta e oferta esses versos de amor
 de amor que contagia os ermos de alegria
 e espera um só sorriso desconsolador
 e um só abraço falso com garras de harpia cobre poeta teus olhos cheios de abismos
 de abismos e de horrores insanos temores
 a nau que te carrega sobre ondas e sismos
 um dia afundará! afoga tuas dores [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

estátua-viva na praça infestada de movimentos
 olhos cortando a náusea vespertina
 lábios cravados em lábios sedentos
 uma estátua plácida se ilumina
 ascende seus braços de cata-ventos
 contorce a rigidez da dura sina
 eleva a surpresa em meneios lentos
 e glorifica a sua pantomina
 atrai curiosas-pobres-crianças
 que outrora esvaziavam esperanças
 juntado as migalhas da piedade
 distrai a multidão que a praça invade
 recolhe os braços silencia e queda
 ficando à espera de outra moeda [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

malabares a fúria do fogo na boca do maluco
 (inferno mascarado de malabarismos)
 é sublime como plumas galgando abismos
 a liberdade oculta num absurdo sulco sublime! os lábios são um chafariz de fogo
 que a fronte faz ferver os olhos como adagas
 fatiam luminescências em quentes vagas
 num duelo vaporoso num hábil jogo voam chamas cada vez mais altas mais alto
 para as mãos dos deuses em nossos paraísos
 as danças da fumaça aos loucos causam risos
 aos tolos um bocejo prolixo e incauto sublime! os dragões na noite crivada de lanças
 rebentam utopias guardadas na face
 do povo sonâmbulo que sonha a catarse
 vagando nas ruas com frias esperanças seus sonhos resvalam nas fogueiras insanas
 em santas peregrinações malabaristas
 últimas brasas atiçam o fogo em cristas
 e exumam a loucura de suas entranhas [u\

Abílio Mateus Jr.

!27


SUBLIMES RUÍNAS

o comedor de ócio a praça abraça-me feito
 do morto o cúmplice leito
 sempre que peço repouso

e moradia

corrupto às vezes ouso
 roubar-lhe os castos canteiros
 fazendo-os meus travesseiros

de alvenaria

os dias passam ligeiros
 são como cães perdigueiros
 atrás da caça abatida

pelo cansaço

é triste ser ave ungida
 pelas monótonas crises
 que acumulam cicatrizes

no aspecto baço

mas há dias mais felizes
 onde busco nas marquises
 um descanso que me valha

o mês inteiro

e esqueço de quem trabalha
 em todas horas e cantos
 dos operários aos santos
 Abílio Mateus Jr.

pelo dinheiro !28


SUBLIMES RUÍNAS

e os sonhos tidos são tantos
 que desperto entre os espantos
 dos transeuntes perplexos

ante meu sono

e seus olhos e reflexos
 confundem-me com um bicho
 que habita a praça do lixo

e dela é dono

pois aqui em meu vasto nicho
 o destino por capricho
 revelou-me o que eu buscava

desde criança

a labuta é minha escrava
 e da preguiça sou cria
 comendo ócio todo dia

sorvo esperança [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

vinho e circo vai cambaleia desgraçado cambaleia!
 derruba teu corpo pesado de baleia
 regurgita a alma presa na tonta garganta
 rasteja na imundície da bebida santa alegria? confessas tê-la numa taça
 feita de vidro tinto cheia de desgraça
 transbordando aos jorros em tua ávida boca
 aflita e sedenta feito uma virgem louca alegria? imitando os porcos podes tê-la?
 é como no manto nublado olhar estrela
 ou num campo morto colher pérolas brancas
 levanta palhaço e junta as tuas pelancas! um sorriso falso feito lágrima doce
 deixas escorrer na face como se fosse
 da tua agonia a cínica salvação
 gargalha circense e meta-se num caixão! zombas da morte à beira dum precipício
 com as mãos atadas pelo teu velho vício
 e inda pensas em planar sobre ermas campinas?
 ora sacripanta tens a vida em ruínas!

Abílio Mateus Jr.

!30


SUBLIMES RUÍNAS

estás perdido num labirinto sem volta
 tens abandonado a liberdade e a revolta
 a coragem os sonhos e a verve valente
 para morrer bêbado e gordo e sorridente? levanta palhaço!
 gargalha circense! os olhos meio tortos o rosto vermelho
 como se mirassem para um lúcido espelho
 volvem para meu lado os olhos meio loucos
 e os lábios meio tortos vão dizendo aos poucos “desce mais uma chefe que hoje vou morrer
 senão de dor ao menos de tanto beber
 e essa vida que cuspo no chão caro amigo
 sempre me foi como um tenebroso castigo!” dou-lhe um novo trago sinto-lhe a lenta morte
 penso no dia em que terei a mesma sorte
 fugir da vida para encontrar minha paz
 fingir ser livre sem tê-lo sido jamais! [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

assassino fúria cravada na lâmina clara
 luz crepuscular que nela se ampara
 inunda de rogos a boca (grita!)
 enegrecida ante a face maldita mosaicos de sombras retas e rentes
 sob a chuva de lágrimas pendentes
 do rubro torpor que a voz obscurece
 semeiam sopros sempre a mesma prece ergue os punhos súditos da vingança
 e atira-os contra o outro feito lança
 envenenada com a fúria pura
 dos lábios do tempo a lenta tortura que assassina sua figura inerte
 vela a blasfêmia que das trevas verte
 imantada com o desejo imenso
 da morte no ar um vulto calmo e denso [u\

Abílio Mateus Jr.

!32


SUBLIMES RUÍNAS

a noite a noite é um bosque de lívidos horrores
 um hibernáculo de rostos desfolhados
 lábios em pétalas cadáveres de flores
 e mesmo quando o céu mostra seus níveos prados
 entre os fuscos sorrisos das estrelas várias
 e o horizonte sangra qual pele açoitada
 prefaciando o livro das ânsias diárias
 inda amedronta-me a flora da madrugada
 seus arbustos contorcidos em vis gemidos
 as altas copas sombreando ermos atalhos
 murmurando vozes e gestos comovidos
 a sonolência das folhas nos pétreos galhos [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

democrático “Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar;
 el tiempo ha sido mi Demócrito.” Jorge Luis Borges

estou cansado destes abutres em festa
 em torno do meu rosto calado inda cego
 desde o dia em que furtei os olhos sob a testa
 lançando-os contra o chão qual martelo a um prego
 dói-me sentir o ar quente que aflige e infesta
 os ermos sulcos que eram vida e luz não nego!
 sepulcrei os tolos mitos da visão funesta
 nas urnas do silêncio apoplético do ego
 queria respirar a paz da escuridão
 e tatear a esmo a pálida loucura
 em vão! sucumbi à outra penosa tortura
 abutres balbuciam palavras que são
 qual pesadas marretas esmagando ouvidos
 degolo o cego corpo abrando tais ruídos [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

visionário a Aldous Huxley

um vento noturno blasfema e freme
 as faces rubras do tempo que voa
 asas de águia pairam sobre a lagoa
 prenhe de tormentas “avante ao leme!”
 navegar! que infeliz necessidade
 tão estúpida quanto viver só
 o infinito revela-se qual pó
 volátil névoa cobrindo a verdade visões! apenas vão desprendimento
 da realidade absurda que corta
 e sangra a carne podre quase morta
 do profeta imerso no negro vento
 o tempo mostra aos seus olhos famintos
 um filme de convulsivas imagens
 futuro estampado em atras paisagens
 cinzas da arte dos medos dos instintos [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

poeta das curvas “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.” Oscar Niemeyer

há que se gostar das curvas e amá-las
 por todo um centenário e pouco mais
 sejam aéreas ou presas por garras
 nos corpos ao vento nas catedrais há que se temer as retas detê-las
 no horizonte ou num enésimo plano
 sempre tangentes às curvas belas
 nostálgicas no alto concreto urbano há que se esquecer da morte e morrer
 como a tinta que se livra da pena
 desaba no papel e vai escorrer
 nas linhas curvas da palma que acena há que se lembrar da vida uma vida
 uma cidade repleta de espaço!
 e em cada curva uma despedida
 como nestes poucos versos que faço [u\
 Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

a caverna lúgubre! penetro em sua negrura abjeta
 áspera escuridão de sombras paralíticas
 que me observam famintas qual faces raquíticas
 sozinho perco-me busco uma luz secreta no enevoado labirinto de segredos
 retrato de alguma alma fria e sorumbática
 encontro um ponto de fuga uma flama estática
 que admiro cego tateando com os dedos o clarão de virtuosas luzes e cores
 incendeia meus olhos qual fogo alegórico
 de chamas infindas de um lampejo fosfórico
 que em mim poeta ignoto brota como flores escapo das trevas com os lábios ilesos
 com o olhar detido na caverna bucólica
 a alma dispersa voa e voa melancólica
 sem seus traços despenca como absurdos pesos [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

den døde mor

*

a Edvard Munch

longe dos olhos fulvos um negror de morte
 emana da decrépita face que 
 no arcabouço largado entre o bando sequaz
 do ócio e o vil povo que unge sua sorte
 longe dos olhos puros da pura criança
 a paz das cavidades profanas engole
 o tumulto das preces da sonora prole
 do tédio a multidão de filhos sem ‘sperança um choro inda distante dos olhos calados
 desvela a fúria pérfida da sombra brava
 que hora após hora esculpe o rosto e nele crava
 seu reino abismo hostil de infindos desagrados
 um grito inda longínquo nos olhos afunda
 tece um emaranhado de eternos conflitos
 um crepúsculo cobre os vestígios aflitos
 enquanto a morte vela a face moribunda [u\

* Em norueguês, significa “A mãe morta”. Este poema é uma homenagem a Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês. Um de seus mais conhecidos quadros, The Cry, é típico de sua angustiante expressão de solidão e medo. Este poema faz menção a outra obra de Munch, com mesmo título, pintado entre 1899 e 1900. Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

ossário é noite! a quadra abandonada o matagal
 conspiram a favor do silêncio da prece
 a mudez sob as asas duma catedral
 na laje inacabada um reflexo a luz tece um estranho arsenal de fragmentos concisos
 revela-se entre as orlas da noite quieta
 um esqueleto! um corpo arremessado aos risos
 do tempo astuto que idealiza e arquiteta rígidos ossos sustentam o nada inerte
 nos seus olhos ocos nada se pode ver
 a boca cerrada em túmulo se converte
 e aprisiona o negror com vasto prazer alto no horizonte fica o roto esqueleto
 olhando outros gigantes ainda com vida
 seus alicerces formam um fulcro obsoleto
 que ampara sobras órfãs duma obra falida [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

fogo e flor ontem a tempestade era apenas vigor
 ventos raios
 luzentes deuses da atmosfera
 entre musas disformes qual erma cratera
 espiavam 
 na obscura laje fogo e flor as primitivas lágrimas em leves gotas
 tênues quedas 
 cortaram o silêncio frio
 do fogo e da flor postos num canto vazio
 do jazigo 
 outras lágrimas caíram soltas a intensa tempestade desabou qual ave
 alvejada 
 do fogo apenas rastros vagos
 da flor pétalas náufragas em rasos lagos
 lá restaram 
 sob a laje um som baixo e grave hoje o vil temporal tece os trajes dos nobres
 com ferro e aço 
 castiga faces poupas as flores
 extingue vidas deixa o fogo e seus ardores
 sempre acesos 
 o medo! o temporal dos pobres [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

o carnaval dos mortos quando o último féretro deixa seus rastos
 sobre o manto de túmulos calmos e castos
 um véu de vis prazeres cobre os muitos mortos
 que ancoram sonolentos em sublimes portos
 a rebeldia invade suas cavidades
 insuflando vigor e musicalidades
 no sangue ressequido nos ossos roídos
 levantando os escombros em graves gemidos as lápides quebradas revelam seus rostos
 marcados pela angústia e pungentes desgostos
 polvilhados com terra que vibra e germina
 e dança! os corpos tensos bailam na ruína
 inda presos aos trapos da monotonia
 os esguios molambos caem na alegria
 festejando e saudando o tosco carnaval
 com brindes em cãs taças ósseas de cristal desejos maculados pela mãe dos loucos
 reflorescem nos peitos podres e em sons roucos
 prenunciam a última hora de festejos
 orgias sepulcrais incendeiam-se aos beijos
 a lascívia percorre os labirintos vagos
 da festiva necrópole e os ébrios afagos
 turvam a vítrea aragem que se torna opaca
 aos olhos tenros vívidos da turba laica Abílio Mateus Jr.

!41


SUBLIMES RUÍNAS

os corpos decadentes a cada atro passo
 deixam pender fragmentos outonais qual maço
 de ingratas folhas secas e a cada outra dança
 farrapos e esqueletos findam a esperança
 derradeiros clamores de contentamento
 trancam-se em suas tumbas com um sombrio alento
 enquanto um novo féretro deixa seus rastos
 sobre o manto de túmulos calmos e castos [u\

Abílio Mateus Jr.

!42


SUBLIMES RUÍNAS

recortes do mar aquele mar já não é mais o mesmo
 ondas desnudas despertam na areia
 a lua ao longe estende sua teia
 enquanto divago e caminho a esmo
 a imensidão da orla predestinada
 furta olhos concentrados no horizonte
 na linha que passa o último monte
 antes do oco abismo da madrugada
 eis que fico com minhas doces águas
 ouvindo os lampejos do mar de outrora
 tudo era calmo sem cruzes ou mágoas
 tudo era o remanso da tenra aurora
 o silêncio apaziguante do dia
 a alva luz que já não me contagia [u\

Abílio Mateus Jr.

!43


SUBLIMES RUÍNAS

mare nigrum negro é o mar quando visto na madrugada
 os açoites das ondas nas orlas de areia
 recitam monólogos de alguma sereia
 embevecida pelos véus da noite alada aves forram o silêncio com suas asas
 sobrevoando alto elevando as firmes quilhas
 a noite também voa rumo às calmas ilhas
 soltas no horizonte longe das águas rasas hora após hora a escuridão se faz morta
 fragores do sol aquecem a maré baixa
 e hora após hora mais uma peça se encaixa
 no jogo de miragens onde a vista aporta perdem-se ilusões no último alvorecer
 a despedida do mar é doce tortura
 o corpo arrebatado fraqueja e murmura
 um triste e breve adeus que o peito faz doer pois negro é o mar das praias da solidão
 cada passo deixa um rasto e some nas ondas
 banham-se os olhos em lágrimas hediondas
 afunda a densa fronte qual num turbilhão [u\

Abílio Mateus Jr.

!44


SUBLIMES RUÍNAS

tristeza outonal estou entre a navalha e a faca afiada
 um frasco de veneno e a forte picada
 do destino ou de um escorpião amarelo
 estou entre a rubra foice e o atro martelo são forradas de trevas as minhas escolhas
 um frio outono urge em mim e o cair das folhas
 após tempestade que arrasou meus desejos
 deixa-me qual pã num deserto sem festejos é como ler versos num estranho alfabeto
 e ter por morada apenas o curvo teto
 ouvir fluir um rio e não poder segui-lo
 é como despertar dum repouso tranquilo sempre tive os olhos cegos pela loucura
 e agora temo o tempo trazer-me a candura
 retiro os ponteiros do relógio da vida
 e sigo entre a navalha a faca a despedida [u\

Abílio Mateus Jr.

!45


SUBLIMES RUÍNAS

ferro e salitre chove! sinto e ouço ruírem meus ossos
 como se de salitre fossem feitos
 e as nuvens que tombam em pingos grossos
 parecem ocultar férreos confeitos desabam artilharias dos céus
 foices mísseis missivas desalmadas
 o peito ferido jorra escarcéus
 qual chuva que demora madrugadas incessantemente chove e chovia
 quando herdei do tempo essas minhas mágoas
 a saudade que resta e a agonia
 de ver minha alma singrar turvas águas chove! sinto e penso fluir a vida
 pelos riachos mortos e barrentos
 órfãos da tempestade concebida
 pelas lágrimas dos meus sentimentos [u\

Abílio Mateus Jr.

!46


SUBLIMES RUÍNAS

doce insurreição visão recompensadora a de uma barata
 retorcendo seu tronco abjeto numa dança
 que ora nos fascina e ora ao asco nos lança
 qual sacerdote que reza e lustra a chibata revolvendo as patas num sinistro artifício
 tenta livrar-se do finamento em vã luta
 ébrio rijo no cimento sem cruz nem gruta
 o mísero inseto geme vago suplício um cemitério se ergue entre ervas e migalhas
 última oração fúnebre e cheia de glórias
 “um paraíso te espera um reino de escórias
 para ti que enfrentaste tamanhas batalhas” mas a áspera barata após um forte espasmo
 ressuscita volta a rastejar suga a vida
 abraça a vida esfola seu deus e atrevida
 voa qual ave repleta de entusiasmo [u\

Abílio Mateus Jr.

!47


SUBLIMES RUÍNAS

liberdade dia quente vento de pedra e sono
 banha a varanda clara que me abriga
 o tempo também claro anda e mendiga
 qualquer migalha de inverno ou outono dia ermo a liberdade ressuscita
 no bater das asas de nada e nada
 no dorso duma mosca esverdeada
 que levita e paira e paira e levita indignado com a abstrata ousadia
 da mosca e seu voo a mosca e seu vulto
 fujo corto os pulsos não os escuto
 minha liberdade inda que tardia caído na mesma varanda calma
 compreendo do inseto o seu apelo
 a mosca é livre sem querer sê-lo!
 meus voos apenas vislumbres da alma [u\

Abílio Mateus Jr.

!48


SUBLIMES RUÍNAS

sublimação no campo praguejado de rumores
 capim ante capim estrume e lama
 um alvo novilho berra e derrama
 sua tristeza ante a mãe em horrores indiferente a este infeliz traço
 um surto de bruxuleantes moscas
 orna a carcaça com vis manchas foscas
 e vivas asas zunindo em compasso um revoo de fétidas fragrâncias
 salta da abjeta e podre natureza
 inunda o pasto com sua vileza
 saciando as moscas e suas ânsias absorto diante desta atroz cena
 abstraio a beleza difusa no ar
 digo a mosca é sublime por consagrar
 essa podridão que nos envenena [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

ruminante pasto
 e posto que pasto
 engasto uma prosa
 na áspera garganta
 rósea feito planta
 ou flor não importa
 seja viva ou morta
 seja apenas rosa rumino
 palavras e mato
 e assalto dilemas
 distraídos no ar
 náufragos num mar
 sem ondas nem outras
 bailarinas rotas
 apenas poemas cuspo
 ácidos e arroubos
 assombro senhoras
 sentadas na vida
 sepultadas inda
 em suas quimeras
 venenosas heras
 de malditas floras Abílio Mateus Jr.

!50


SUBLIMES RUÍNAS

bocejo
 de sono e palavras
 escravas da boca
 escapam de mim
 fogem para o fim
 do verso arredio
 que flui feito rio
 e no ar desemboca [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

a cabeça a cabeça gira
 o vento respinga
 na face cansada
 que ora choraminga
 e ora a gargalhada
 é o alvo da mira a cabeça grita
 vibram os cabelos
 lisos da loucura
 o medo em novelos
 fios de desventura
 adorna-os qual fita a cabeça cansa
 o olhar curto e baço
 o eco surdo e grave
 das pálpebras de aço
 caindo qual ave
 ferida por lança a cabeça queda
 o soluço canta
 vozes de verão
 o torpor espanca
 o oco coração
 duro feito pedra Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

a cabeça reza
 prece sonolenta
 canção de ninar
 que a vida acalenta
 e a alma faz chorar
 a alma fria e tesa a cabeça fina
 caída de um lado
 no ombro seu esquife
 seu corpo jogado
 no emerso recife
 de sua ruína [u\

Abílio Mateus Jr.

!53


SUBLIMES RUÍNAS

derradeira saga na silente e vaga
 noite de sombreiros
 os passos ligeiros
 cobrem o caminho
 pesados casacos
 de metal ou linho
 cobrem ossos fracos
 moldam quietudes
 desalinham rudes
 fantasmas da fome um pobre sem nome
 casa ou convicção
 herdou do patrão
 de outro sem barraco
 (mas com nome e fé!)
 um belo casaco
 que no rodapé
 trazia bordada
 u'a alcunha mais nada
 fulano da silva

Abílio Mateus Jr.

!54


SUBLIMES RUÍNAS

qual vento que silva
 na noite de velas
 também nas querelas
 sibila o destino
 o pobre coitado
 num tal desatino
 vê seu nome atado
 a um traje de luta
 de forja e labuta
 de um povo bravio no caminho um rio
 vai feito criança
 e a doce esperança
 revigora o pobre
 que num só instante
 veste-se e descobre
 seu sonho distante
 o nome perdido
 encontra sentido
 no grito do povo! [u\

Abílio Mateus Jr.

!55


SUBLIMES RUÍNAS

jazz & gatos os gatos ouvem jazz na sala ao lado
 ronronam trompetes em si bemol
 ora os ouço outr’ora um rouco miado
 rasga o silêncio como ávido anzol solos de sax empolgam os felinos
 que sorrateiros eriçam seus pelos
 e inundam o espaço com bailarinos
 saltos solos de sax são qual novelos! outra partitura ecoa no ambiente
 onde o grave baixo reina absoluto
 os gatos reis de si e também da gente
 dormem no sofá o trono substituto uma guitarra uiva o piano freme
 respiram jazz os gatos sonolentos
 ora os vejo outr’ora a visão os teme
 como a leões famintos e sedentos [u\

Abílio Mateus Jr.

!56


SUBLIMES RUÍNAS

gato Bukowski a Eduardo Barrox, in memoriam

Bukowski já não bebe mais descansa
 torto sobre as coxas das almofadas
 repousa sóbrio vago de esperança
 de rever suas tontas madrugadas
 a inércia! a tortura! a vaga lembrança
 das auroras encerrando as noitadas
 pelos becos tropeçando na dança
 que as sombras faziam agitadas
 agora dormindo feito esqueleto
 ciente que o tempo não é querido
 Bukowski o noturno gato preto
 sonha a vida que teria vivido
 se fosse poeta não fosse gato
 fosse Bukowski bêbado e beato [u\

Abílio Mateus Jr.

!57


SUBLIMES RUÍNAS

ela ela chora vejo ela grita e chora
 sinto sua brisa castigar ora
 meus cabelos ora vagos apelos
 de felicidade divago ela chora toda ela em prantos
 cavo o seu silêncio nos seus recantos
 pacientes santos dormem silentes
 à sua vontade ela chora lágrimas ela inflama
 lança dardos rubros qual densa chama
 de desejos trama de longos beijos
 pela eternidade murmuro sorrindo ela apenas grita
 sim simplesmente ela voraz e aflita
 chora voa imita os deuses e entoa
 sua obscuridade [u\

Abílio Mateus Jr.

!58


SUBLIMES RUÍNAS

de bocas e beijos a boca contorcida é completa afeição
 alcança outro ermo céu quando a língua se ocupa
 em alçar voos no deleitável sertão
 que ela boca sedenta seca molha e chupa
 os dois lábios dormentes noutros lábios são
 mortos galgando o tempo na sua garupa
 ordinária e fria enquanto a esguia mão
 roçando a nuca é do assassinato a culpa
 o que seria então do beijo mais aflito
 se não fosse a distância do louco conflito
 e as mãos juntando os vívidos lábios dispostos?
 os olhares outrora em vértices opostos
 rendem-se aos dedos que somem entre os cabelos
 e convergem em beijos em íntimos zelos [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

sobre navalhas para Ana

navalhas hão de cortar os meus pulsos!
 vinho gelado servirei em cubos
 e o peito repleto de icebergs rubros
 será a lembrança de amores convulsos névoas frias ocultarão meu rosto
 lágrimas a zero grau verterei
 dias quentes serão o que não sei
 e o inferno — céus! — meu único gosto neve em pleno verão gelo ante fogo
 silêncio lunar sob minhas escamas
 sobre o semblante lacrimosas lamas
 na mandíbula inda o último rogo manto de pedra cobrirá meus ossos
 uma tundra negra será meu leito
 e o clima cada vez mais rarefeito
 engolirá meus árticos destroços tênues poeiras serão meus dejetos
 súbitos lamentos brilharão velas
 ardores serão preces e querelas
 queimarei a alma em pélagos secretos!

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

chama em pleno inverno brasa ante gelo
 é preciso aquecer a alma que chora
 ferver seu coração por longas horas
 se quiser senti-lo ou ao menos tê-lo e as navalhas antes frias mortais
 para o peito que protege um vulcão
 são apenas peças de aço ou latão
 sem outros fins fora os habituais [u\

Abílio Mateus Jr.

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SUBLIMES RUÍNAS

ultimato enfim quando a noite queda em teus olhos
 e a pele se enruga as lembranças fogem
 e todos os abismos te consomem
 os sonhos deixam de ser monopólios
 divide-os com os que ficam na vida
 com o sol sempre alto sobre os pescoços
 a esperança nítida sem esboços
 e a carne da alma inda pouco afligida
 doa teus sonhos de alvas primaveras
 desfaça as tuas gritantes quimeras
 enterre o desgosto de não sonhar
 pois o sonho que morre com o dono
 vai deixando um rasto frívolo no ar
 em cada hora do derradeiro sono [u\

Abílio Mateus Jr.

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SOB RE O AUTOR Abílio Mateus Jr., nascido em 1978, graduou-se em Física pela Universidade Federal de Mato Grosso e fez pósgraduação, mestrado e doutorado, em Astronomia no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Atualmente é professor adjunto no Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina.


Fonte dos títulos: Century Gothic
 Fonte do corpo de texto: Baskerville 12pt



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