S UB L IMES RUÍN AS Abílio Mateus Jr.
SUBLIMES RUÍNAS
Leia também, do mesmo autor: DANÇAS DA ESCURIDÃO 1ª edição, 2002, Scortecci Editora ISBN 85-7372-709-8 2ª edição, 2012, e-book, Edição do Autor ISBN 978-85-914822-0-7
IMAGEM DA CAPA: Detalhe do cenotáfio erguido em homenagem a Charles Baudelaire no Cemitério de Montparnasse, Paris, França © 2007 Abílio Mateus Jr. TEXTURA DA CAPA: NegativeThoughts por Shadowhouse Creations
Abílio Mateus Jr.
S UBL IME S RU ÍNAS
Florianópolis 2012
Copyright © 2012 Abílio Mateus Jr. Todos os direitos reservados
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M425s
Mateus Jr., Abílio, 1978 Sublimes Ruínas / Abílio Mateus Jr. – Florianópolis: Edição do Autor, 2012. ISBN 978-85-914822-1-4 1. Poesia brasileira. I. Título 2. CDD 869.91 CDU 821.134.3(81)-1 Índice para Catálogo Sistemático: 1. Poesia: Literatura Brasileira 869.91
Ao pequeno Arthur
ÉPIGRAPHE POUR UN LIVRE CONDAMNÉ
Lecteur paisible et bucolique, Sobre et naïf homme de bien, Jette ce livre saturnien, Orgiaque et mélancolique. Si tu n'as fait ta rhétorique Chez Satan, le rusé doyen, Jette! tu n'y comprendrais rien, Ou tu me croirais hysthérique. Mais si, sans se laisser charmer, Ton oeil sait plonger dans les gouffres, Lis-moi, pour apprendre à m'aimer; Âme curieuse qui souffres Et vas cherchant ton paradis, Plains-moi!... Sinon, je te maudis! Charles Baudelaire
SUMÁR IO fênix 12 abutre 13 terceiro 14 vel(h)a 15 rosto faminto 16 o corpo 17 caravana 18 sírius 19 dia de missa 20 o bailarino 21 agonias de um velho 22 o trem 23 moldura fina 24 pobre poeta 25 estátua-viva 26 malabares 27 o comedor de ócio 28 vinho e circo 30 assassino 32 a noite 33 democrático 34 visionário 35 poeta das curvas 36 a caverna 37
den døde mor 38 ossário 39 fogo e flor 40 o carnaval dos mortos 41 recortes do mar 43 mare nigrum 44 tristeza outonal 45 ferro e salitre 46 doce insurreição 47 liberdade 48 sublimação 49 ruminante 50 a cabeça 52 derradeira saga 54 jazz & gatos 56 gato Bukowski 57 ela 58 de bocas e beijos 59 sobre navalhas 60 ultimato 62
SUBLIMES RUÍNAS
fênix esta angústia que corre em minhas veias exala um perfume acre de flor morta são naus a singrar minha ácida aorta entre hemáceas malsãs e vis sereias perfura a carne as vísceras me corta ata minha alma a sórdidas correias transforma em rocha o pó d’alvas areias em grades o cais onde a ideia aporta e por mais que eu resista a esta tragédia laminando os dois pulsos e exaurindo todo sangue a angústia toma a rédea cavalga minha fronte e vai sorrindo sem suspeitar que a fênix ressuscita e das próprias cinzas se eleva bendita! [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
abutre estou oco por dentro tenho fome das pragas semeadas nas calçadas plantadas nas gris ruas dos sem-nome nas suas próprias faces desoladas tenho pressa mastigo podres frutos pasto migalhas míseras a esmo com os olhos de pedra frios e astutos sacio o ser interno e a mim mesmo regurgito alegrias esporádicas tristezas espontâneas e sádicas dilacerações ácidas da mente repouso no teu âmago silente com um gosto de vísceras no olhar e as asas bem abertas p’ra voar [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
terceiro o cérebro vago lamenta e revela silêncios e abismos sepulcrais diálogos a sós à luz de vela do morto vestígio onde o corpo jaz mas há tempo pungentes temporais castigam o outro lado da janela enquanto aqui posta nos meus umbrais deixo pender minha cinza aquarela um dilúvio de cores cria a imagem que os espelhos insistem refletir e os olhos cansados de ver reagem vorazmente anseiam pelo porvir levanto ando curo o último edema e ressuscito num terceiro poema [u\
Abílio Mateus Jr.
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vel(h)a a velha pálida os ombros caídos a face em ruína pressente o absurdo os olhos baços o ventre profundo a velha pálida pálida e pálida o tempo galga seu dorso pesado lágrimas fluem por rugas doídas a velha pálida plácida pálida uma chama cálida oscila no ar [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
rosto faminto louca! o seu rosto faminto a súplica rouca entre ruídos de insetos gritos de insetos rastejantes e abjetos santa! os joelhos na miséria óbvia tanta que se espalha nas ruas engole essas ruas rútilas vivas cruas sombra espavorida lúgubre que me assombra furta espasmos fortes queda de muros fortes renasce de mil mortes morre! padece na fome ninguém socorre a face da pobreza a órfã da pobreza sonâmbula indefesa fria?! encravada na calçada mais sombria estirada no leito torpe duro leito morta! um sonho desfeito [u\
Abílio Mateus Jr.
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o corpo disformes pigmentos recobrem a ruína pelas ruas tons cinzas monótonos crus tornam negros quaisquer fachos de vaga luz que habitam o corpo hóspede duma esquina subversivos olhos de uma face assassina condenam os trapos sem leitos ou vil cruz culpam os restos que o povo humano produz ignoram o corpo cegueira repentina! estirado no eterno mármore sua praça abatido pela excelência da desgraça o corpo expira tragos de incredulidade enquanto um tumulto de pombas esvoaça perdido nos escombros sem qualquer verdade o corpo funde-se na infâmia da cidade [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
caravana uma caravana um povo perdido nos fétidos criminosos atalhos levando os restos mórbidos retalhos dignidade oculta em cada gemido tráfego de vilezas lixos vidas esparramadas nas ruas cinzentas ancoradas em sombras sonolentas sombras incessantemente sofridas movimentos síncronos no cimento uma queda ressurreição um passo! seguem num simbiótico compasso sugando das calçadas o alimento moldando-se na rude arquitetura dos bancos das esquinas da loucura [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
sírius sonhando e divagando sempre me deparo com a figura lânguida de um cão faminto que por vezes encontro feito um anteparo inerte sustentando seu corpo indistinto as patas alquebradas tremendo até os dentes numa tortura vaga e mais silenciosa que a dor reinante em suas pupilas tementes medo da morte humana usando terno e prosa os dois olhos confusos perdidos na esquina do insano desespero entre a glória e a paz um contido murmúrio de fome que mina do ventre oco e silente qual resto que jaz ainda me recordo desse animal fruto da comunhão da vida com o negro alento sua imagem persegue meu ser diminuto em cada passo raso no solo cinzento a leveza do seu caminhar seu sorriso levam minha alma à turva desconfiança que logo se revela num trágico aviso céus! o que vejo é uma santa criança! jogada no tumulto da cidade ingrata fica imóvel diante da minha surpresa sorrindo disfarçando a fome que lhe mata num silêncio voraz tristemente indefesa [u\ Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
dia de missa flores para os mortos os santos os doentes vaga rosa reflete o dorso duma velha sentada sobre as sombras os braços dormentes firmes! gesto paciente que a flor espelha a mão estendida em silêncio agride e chora vende seus absurdos comprando piedade inerte muda como a chegada da aurora flores para os tolos flores para a cidade uma procissão de corpos e pesadelos segue as esmolas das caridosas retinas que cruzam o infinito e encaram os apelos cruéis! malditas revelações citadinas membros desfigurados espreitam quem passa súplicas juntam-se aos murmúrios dissonantes inundam as calçadas com densa desgraça com fé moribundas lástimas nauseantes um mar incandescente alastra-se e consome a carne pura a pele cheia de pecados queima ferve o vinho barato cessa a fome dos cínicos pregadores abençoados chamas infindas desabam do santo altar erguido entre a miséria as esmolas tão parcas no trágico tumulto no impiedoso ar um perfume de morte deixa suas marcas [u\ Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
o bailarino o som da música intensa atordoa o bailarino tonto apenas dança a multidão em febre sorri à toa o bailarino louco apenas dança na noite erma de glórias e maldita o bailarino velho vibra e dança desenvoltura mística e esquisita do bailarino devoto da dança os olhos num movimento lascivo o bailarino cego em plena dança os aplausos o espetáculo vivo e o bailarino mendigando dança [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
agonias de um velho medo da morte dos seus traços tortos seus olhos absortos são justa desgraça medo do tempo do maldito agouro sórdido tesouro acre qual fumaça medo da noite suas fortes garras em mortais amarras o velho se enlaça clama qual louco confessa e murmura a pungente agrura que ele velho abraça retrata a morte o silêncio noturno que o torna soturno tirando-lhe a graça chora emudece espera sua sorte reza enquanto a morte cativa quem passa [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
o trem cerca meus olhos a mesma angústia insana que carrega meus ossos numa atra carreta tudo rasteja sobre a carcaça humana lapidada na estação de férrea cor preta tudo foge em busca do bendito conforto enquanto os molambos entregam-se aos suplícios e os jovens astutos brincam de vivo-morto vivendo de trocos morrendo por seus vícios nos vagões da monotonia a cada instante um novo grito disfarçando a piedade desperta do sono a percepção lancinante e revela aos meus olhos a velha verdade que se ocultava nas muralhas de concreto nos parapeitos que dividem vida e morte os ideais não seguem único trajeto serpenteiam entre a miséria o caos a sorte vultos caminham sem direção nem respostas (os lampejos de vozes são sempre as perguntas) ofertando coisas que nas mãos estão postas esperando o destino em súplicas conjuntas outra estação ergue-se diante das vistas novamente negra qual noite sem fronteiras tudo morre os sonhos as lutas as conquistas o trem parte a vida trilha árduas barreiras [u\ Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
moldura fina um louco debruçado no meio do fio na lâmina mordaz da perfídia mundana irrita transeuntes do mesmo covil donde saíra agora solto ri ou emana um brando desespero vivo e arredio cavalos mentecaptos cavalgam as trilhas do paraíso farto de ares carbonados névoas sufocam olhos vivas armadilhas dispersas no oceano de descontrolados espasmos desoladas faces maltrapilhas faces do louco preso em seus santos infernos que jazem sob as pétalas do capital anjos de ouro trajando máscaras e ternos caem dos céus num gesto divino e brutal ajoelham-se os servos dos deuses modernos multidão de orações embriagam as praças enquanto a grata dor alimenta o demente compaixão piedade pedidos e graças fica o vívido louco debruçado rente aos bispos da fortuna ao reino das desgraças [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
pobre poeta pobre poeta! versos rasgados no peito no peito farto de ares sonhos malabares poemas desterrados num avulso leito panfleto arremessado aos sóbrios olhares pobre poeta! o público que te condena condena e sacrifica as almas de outra rica linhagem artesãos eremitas em cena combatendo a tolice que se fortifica sofre poeta e oferta esses versos de amor de amor que contagia os ermos de alegria e espera um só sorriso desconsolador e um só abraço falso com garras de harpia cobre poeta teus olhos cheios de abismos de abismos e de horrores insanos temores a nau que te carrega sobre ondas e sismos um dia afundará! afoga tuas dores [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
estátua-viva na praça infestada de movimentos olhos cortando a náusea vespertina lábios cravados em lábios sedentos uma estátua plácida se ilumina ascende seus braços de cata-ventos contorce a rigidez da dura sina eleva a surpresa em meneios lentos e glorifica a sua pantomina atrai curiosas-pobres-crianças que outrora esvaziavam esperanças juntado as migalhas da piedade distrai a multidão que a praça invade recolhe os braços silencia e queda ficando à espera de outra moeda [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
malabares a fúria do fogo na boca do maluco (inferno mascarado de malabarismos) é sublime como plumas galgando abismos a liberdade oculta num absurdo sulco sublime! os lábios são um chafariz de fogo que a fronte faz ferver os olhos como adagas fatiam luminescências em quentes vagas num duelo vaporoso num hábil jogo voam chamas cada vez mais altas mais alto para as mãos dos deuses em nossos paraísos as danças da fumaça aos loucos causam risos aos tolos um bocejo prolixo e incauto sublime! os dragões na noite crivada de lanças rebentam utopias guardadas na face do povo sonâmbulo que sonha a catarse vagando nas ruas com frias esperanças seus sonhos resvalam nas fogueiras insanas em santas peregrinações malabaristas últimas brasas atiçam o fogo em cristas e exumam a loucura de suas entranhas [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
o comedor de ócio a praça abraça-me feito do morto o cúmplice leito sempre que peço repouso
e moradia
corrupto às vezes ouso roubar-lhe os castos canteiros fazendo-os meus travesseiros
de alvenaria
os dias passam ligeiros são como cães perdigueiros atrás da caça abatida
pelo cansaço
é triste ser ave ungida pelas monótonas crises que acumulam cicatrizes
no aspecto baço
mas há dias mais felizes onde busco nas marquises um descanso que me valha
o mês inteiro
e esqueço de quem trabalha em todas horas e cantos dos operários aos santos Abílio Mateus Jr.
pelo dinheiro !28
SUBLIMES RUÍNAS
e os sonhos tidos são tantos que desperto entre os espantos dos transeuntes perplexos
ante meu sono
e seus olhos e reflexos confundem-me com um bicho que habita a praça do lixo
e dela é dono
pois aqui em meu vasto nicho o destino por capricho revelou-me o que eu buscava
desde criança
a labuta é minha escrava e da preguiça sou cria comendo ócio todo dia
sorvo esperança [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
vinho e circo vai cambaleia desgraçado cambaleia! derruba teu corpo pesado de baleia regurgita a alma presa na tonta garganta rasteja na imundície da bebida santa alegria? confessas tê-la numa taça feita de vidro tinto cheia de desgraça transbordando aos jorros em tua ávida boca aflita e sedenta feito uma virgem louca alegria? imitando os porcos podes tê-la? é como no manto nublado olhar estrela ou num campo morto colher pérolas brancas levanta palhaço e junta as tuas pelancas! um sorriso falso feito lágrima doce deixas escorrer na face como se fosse da tua agonia a cínica salvação gargalha circense e meta-se num caixão! zombas da morte à beira dum precipício com as mãos atadas pelo teu velho vício e inda pensas em planar sobre ermas campinas? ora sacripanta tens a vida em ruínas!
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
estás perdido num labirinto sem volta tens abandonado a liberdade e a revolta a coragem os sonhos e a verve valente para morrer bêbado e gordo e sorridente? levanta palhaço! gargalha circense! os olhos meio tortos o rosto vermelho como se mirassem para um lúcido espelho volvem para meu lado os olhos meio loucos e os lábios meio tortos vão dizendo aos poucos “desce mais uma chefe que hoje vou morrer senão de dor ao menos de tanto beber e essa vida que cuspo no chão caro amigo sempre me foi como um tenebroso castigo!” dou-lhe um novo trago sinto-lhe a lenta morte penso no dia em que terei a mesma sorte fugir da vida para encontrar minha paz fingir ser livre sem tê-lo sido jamais! [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
assassino fúria cravada na lâmina clara luz crepuscular que nela se ampara inunda de rogos a boca (grita!) enegrecida ante a face maldita mosaicos de sombras retas e rentes sob a chuva de lágrimas pendentes do rubro torpor que a voz obscurece semeiam sopros sempre a mesma prece ergue os punhos súditos da vingança e atira-os contra o outro feito lança envenenada com a fúria pura dos lábios do tempo a lenta tortura que assassina sua figura inerte vela a blasfêmia que das trevas verte imantada com o desejo imenso da morte no ar um vulto calmo e denso [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
a noite a noite é um bosque de lívidos horrores um hibernáculo de rostos desfolhados lábios em pétalas cadáveres de flores e mesmo quando o céu mostra seus níveos prados entre os fuscos sorrisos das estrelas várias e o horizonte sangra qual pele açoitada prefaciando o livro das ânsias diárias inda amedronta-me a flora da madrugada seus arbustos contorcidos em vis gemidos as altas copas sombreando ermos atalhos murmurando vozes e gestos comovidos a sonolência das folhas nos pétreos galhos [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
democrático “Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar; el tiempo ha sido mi Demócrito.” Jorge Luis Borges
estou cansado destes abutres em festa em torno do meu rosto calado inda cego desde o dia em que furtei os olhos sob a testa lançando-os contra o chão qual martelo a um prego dói-me sentir o ar quente que aflige e infesta os ermos sulcos que eram vida e luz não nego! sepulcrei os tolos mitos da visão funesta nas urnas do silêncio apoplético do ego queria respirar a paz da escuridão e tatear a esmo a pálida loucura em vão! sucumbi à outra penosa tortura abutres balbuciam palavras que são qual pesadas marretas esmagando ouvidos degolo o cego corpo abrando tais ruídos [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
visionário a Aldous Huxley
um vento noturno blasfema e freme as faces rubras do tempo que voa asas de águia pairam sobre a lagoa prenhe de tormentas “avante ao leme!” navegar! que infeliz necessidade tão estúpida quanto viver só o infinito revela-se qual pó volátil névoa cobrindo a verdade visões! apenas vão desprendimento da realidade absurda que corta e sangra a carne podre quase morta do profeta imerso no negro vento o tempo mostra aos seus olhos famintos um filme de convulsivas imagens futuro estampado em atras paisagens cinzas da arte dos medos dos instintos [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
poeta das curvas “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.” Oscar Niemeyer
há que se gostar das curvas e amá-las por todo um centenário e pouco mais sejam aéreas ou presas por garras nos corpos ao vento nas catedrais há que se temer as retas detê-las no horizonte ou num enésimo plano sempre tangentes às curvas belas nostálgicas no alto concreto urbano há que se esquecer da morte e morrer como a tinta que se livra da pena desaba no papel e vai escorrer nas linhas curvas da palma que acena há que se lembrar da vida uma vida uma cidade repleta de espaço! e em cada curva uma despedida como nestes poucos versos que faço [u\ Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
a caverna lúgubre! penetro em sua negrura abjeta áspera escuridão de sombras paralíticas que me observam famintas qual faces raquíticas sozinho perco-me busco uma luz secreta no enevoado labirinto de segredos retrato de alguma alma fria e sorumbática encontro um ponto de fuga uma flama estática que admiro cego tateando com os dedos o clarão de virtuosas luzes e cores incendeia meus olhos qual fogo alegórico de chamas infindas de um lampejo fosfórico que em mim poeta ignoto brota como flores escapo das trevas com os lábios ilesos com o olhar detido na caverna bucólica a alma dispersa voa e voa melancólica sem seus traços despenca como absurdos pesos [u\
Abílio Mateus Jr.
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den døde mor
*
a Edvard Munch
longe dos olhos fulvos um negror de morte emana da decrépita face que no arcabouço largado entre o bando sequaz do ócio e o vil povo que unge sua sorte longe dos olhos puros da pura criança a paz das cavidades profanas engole o tumulto das preces da sonora prole do tédio a multidão de filhos sem ‘sperança um choro inda distante dos olhos calados desvela a fúria pérfida da sombra brava que hora após hora esculpe o rosto e nele crava seu reino abismo hostil de infindos desagrados um grito inda longínquo nos olhos afunda tece um emaranhado de eternos conflitos um crepúsculo cobre os vestígios aflitos enquanto a morte vela a face moribunda [u\
* Em norueguês, significa “A mãe morta”. Este poema é uma homenagem a Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês. Um de seus mais conhecidos quadros, The Cry, é típico de sua angustiante expressão de solidão e medo. Este poema faz menção a outra obra de Munch, com mesmo título, pintado entre 1899 e 1900. Abílio Mateus Jr.
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ossário é noite! a quadra abandonada o matagal conspiram a favor do silêncio da prece a mudez sob as asas duma catedral na laje inacabada um reflexo a luz tece um estranho arsenal de fragmentos concisos revela-se entre as orlas da noite quieta um esqueleto! um corpo arremessado aos risos do tempo astuto que idealiza e arquiteta rígidos ossos sustentam o nada inerte nos seus olhos ocos nada se pode ver a boca cerrada em túmulo se converte e aprisiona o negror com vasto prazer alto no horizonte fica o roto esqueleto olhando outros gigantes ainda com vida seus alicerces formam um fulcro obsoleto que ampara sobras órfãs duma obra falida [u\
Abílio Mateus Jr.
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fogo e flor ontem a tempestade era apenas vigor ventos raios luzentes deuses da atmosfera entre musas disformes qual erma cratera espiavam na obscura laje fogo e flor as primitivas lágrimas em leves gotas tênues quedas cortaram o silêncio frio do fogo e da flor postos num canto vazio do jazigo outras lágrimas caíram soltas a intensa tempestade desabou qual ave alvejada do fogo apenas rastros vagos da flor pétalas náufragas em rasos lagos lá restaram sob a laje um som baixo e grave hoje o vil temporal tece os trajes dos nobres com ferro e aço castiga faces poupas as flores extingue vidas deixa o fogo e seus ardores sempre acesos o medo! o temporal dos pobres [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
o carnaval dos mortos quando o último féretro deixa seus rastos sobre o manto de túmulos calmos e castos um véu de vis prazeres cobre os muitos mortos que ancoram sonolentos em sublimes portos a rebeldia invade suas cavidades insuflando vigor e musicalidades no sangue ressequido nos ossos roídos levantando os escombros em graves gemidos as lápides quebradas revelam seus rostos marcados pela angústia e pungentes desgostos polvilhados com terra que vibra e germina e dança! os corpos tensos bailam na ruína inda presos aos trapos da monotonia os esguios molambos caem na alegria festejando e saudando o tosco carnaval com brindes em cãs taças ósseas de cristal desejos maculados pela mãe dos loucos reflorescem nos peitos podres e em sons roucos prenunciam a última hora de festejos orgias sepulcrais incendeiam-se aos beijos a lascívia percorre os labirintos vagos da festiva necrópole e os ébrios afagos turvam a vítrea aragem que se torna opaca aos olhos tenros vívidos da turba laica Abílio Mateus Jr.
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os corpos decadentes a cada atro passo deixam pender fragmentos outonais qual maço de ingratas folhas secas e a cada outra dança farrapos e esqueletos findam a esperança derradeiros clamores de contentamento trancam-se em suas tumbas com um sombrio alento enquanto um novo féretro deixa seus rastos sobre o manto de túmulos calmos e castos [u\
Abílio Mateus Jr.
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recortes do mar aquele mar já não é mais o mesmo ondas desnudas despertam na areia a lua ao longe estende sua teia enquanto divago e caminho a esmo a imensidão da orla predestinada furta olhos concentrados no horizonte na linha que passa o último monte antes do oco abismo da madrugada eis que fico com minhas doces águas ouvindo os lampejos do mar de outrora tudo era calmo sem cruzes ou mágoas tudo era o remanso da tenra aurora o silêncio apaziguante do dia a alva luz que já não me contagia [u\
Abílio Mateus Jr.
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mare nigrum negro é o mar quando visto na madrugada os açoites das ondas nas orlas de areia recitam monólogos de alguma sereia embevecida pelos véus da noite alada aves forram o silêncio com suas asas sobrevoando alto elevando as firmes quilhas a noite também voa rumo às calmas ilhas soltas no horizonte longe das águas rasas hora após hora a escuridão se faz morta fragores do sol aquecem a maré baixa e hora após hora mais uma peça se encaixa no jogo de miragens onde a vista aporta perdem-se ilusões no último alvorecer a despedida do mar é doce tortura o corpo arrebatado fraqueja e murmura um triste e breve adeus que o peito faz doer pois negro é o mar das praias da solidão cada passo deixa um rasto e some nas ondas banham-se os olhos em lágrimas hediondas afunda a densa fronte qual num turbilhão [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
tristeza outonal estou entre a navalha e a faca afiada um frasco de veneno e a forte picada do destino ou de um escorpião amarelo estou entre a rubra foice e o atro martelo são forradas de trevas as minhas escolhas um frio outono urge em mim e o cair das folhas após tempestade que arrasou meus desejos deixa-me qual pã num deserto sem festejos é como ler versos num estranho alfabeto e ter por morada apenas o curvo teto ouvir fluir um rio e não poder segui-lo é como despertar dum repouso tranquilo sempre tive os olhos cegos pela loucura e agora temo o tempo trazer-me a candura retiro os ponteiros do relógio da vida e sigo entre a navalha a faca a despedida [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
ferro e salitre chove! sinto e ouço ruírem meus ossos como se de salitre fossem feitos e as nuvens que tombam em pingos grossos parecem ocultar férreos confeitos desabam artilharias dos céus foices mísseis missivas desalmadas o peito ferido jorra escarcéus qual chuva que demora madrugadas incessantemente chove e chovia quando herdei do tempo essas minhas mágoas a saudade que resta e a agonia de ver minha alma singrar turvas águas chove! sinto e penso fluir a vida pelos riachos mortos e barrentos órfãos da tempestade concebida pelas lágrimas dos meus sentimentos [u\
Abílio Mateus Jr.
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doce insurreição visão recompensadora a de uma barata retorcendo seu tronco abjeto numa dança que ora nos fascina e ora ao asco nos lança qual sacerdote que reza e lustra a chibata revolvendo as patas num sinistro artifício tenta livrar-se do finamento em vã luta ébrio rijo no cimento sem cruz nem gruta o mísero inseto geme vago suplício um cemitério se ergue entre ervas e migalhas última oração fúnebre e cheia de glórias “um paraíso te espera um reino de escórias para ti que enfrentaste tamanhas batalhas” mas a áspera barata após um forte espasmo ressuscita volta a rastejar suga a vida abraça a vida esfola seu deus e atrevida voa qual ave repleta de entusiasmo [u\
Abílio Mateus Jr.
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liberdade dia quente vento de pedra e sono banha a varanda clara que me abriga o tempo também claro anda e mendiga qualquer migalha de inverno ou outono dia ermo a liberdade ressuscita no bater das asas de nada e nada no dorso duma mosca esverdeada que levita e paira e paira e levita indignado com a abstrata ousadia da mosca e seu voo a mosca e seu vulto fujo corto os pulsos não os escuto minha liberdade inda que tardia caído na mesma varanda calma compreendo do inseto o seu apelo a mosca é livre sem querer sê-lo! meus voos apenas vislumbres da alma [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
sublimação no campo praguejado de rumores capim ante capim estrume e lama um alvo novilho berra e derrama sua tristeza ante a mãe em horrores indiferente a este infeliz traço um surto de bruxuleantes moscas orna a carcaça com vis manchas foscas e vivas asas zunindo em compasso um revoo de fétidas fragrâncias salta da abjeta e podre natureza inunda o pasto com sua vileza saciando as moscas e suas ânsias absorto diante desta atroz cena abstraio a beleza difusa no ar digo a mosca é sublime por consagrar essa podridão que nos envenena [u\
Abílio Mateus Jr.
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ruminante pasto e posto que pasto engasto uma prosa na áspera garganta rósea feito planta ou flor não importa seja viva ou morta seja apenas rosa rumino palavras e mato e assalto dilemas distraídos no ar náufragos num mar sem ondas nem outras bailarinas rotas apenas poemas cuspo ácidos e arroubos assombro senhoras sentadas na vida sepultadas inda em suas quimeras venenosas heras de malditas floras Abílio Mateus Jr.
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bocejo de sono e palavras escravas da boca escapam de mim fogem para o fim do verso arredio que flui feito rio e no ar desemboca [u\
Abílio Mateus Jr.
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a cabeça a cabeça gira o vento respinga na face cansada que ora choraminga e ora a gargalhada é o alvo da mira a cabeça grita vibram os cabelos lisos da loucura o medo em novelos fios de desventura adorna-os qual fita a cabeça cansa o olhar curto e baço o eco surdo e grave das pálpebras de aço caindo qual ave ferida por lança a cabeça queda o soluço canta vozes de verão o torpor espanca o oco coração duro feito pedra Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
a cabeça reza prece sonolenta canção de ninar que a vida acalenta e a alma faz chorar a alma fria e tesa a cabeça fina caída de um lado no ombro seu esquife seu corpo jogado no emerso recife de sua ruína [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
derradeira saga na silente e vaga noite de sombreiros os passos ligeiros cobrem o caminho pesados casacos de metal ou linho cobrem ossos fracos moldam quietudes desalinham rudes fantasmas da fome um pobre sem nome casa ou convicção herdou do patrão de outro sem barraco (mas com nome e fé!) um belo casaco que no rodapé trazia bordada u'a alcunha mais nada fulano da silva
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
qual vento que silva na noite de velas também nas querelas sibila o destino o pobre coitado num tal desatino vê seu nome atado a um traje de luta de forja e labuta de um povo bravio no caminho um rio vai feito criança e a doce esperança revigora o pobre que num só instante veste-se e descobre seu sonho distante o nome perdido encontra sentido no grito do povo! [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
jazz & gatos os gatos ouvem jazz na sala ao lado ronronam trompetes em si bemol ora os ouço outr’ora um rouco miado rasga o silêncio como ávido anzol solos de sax empolgam os felinos que sorrateiros eriçam seus pelos e inundam o espaço com bailarinos saltos solos de sax são qual novelos! outra partitura ecoa no ambiente onde o grave baixo reina absoluto os gatos reis de si e também da gente dormem no sofá o trono substituto uma guitarra uiva o piano freme respiram jazz os gatos sonolentos ora os vejo outr’ora a visão os teme como a leões famintos e sedentos [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
gato Bukowski a Eduardo Barrox, in memoriam
Bukowski já não bebe mais descansa torto sobre as coxas das almofadas repousa sóbrio vago de esperança de rever suas tontas madrugadas a inércia! a tortura! a vaga lembrança das auroras encerrando as noitadas pelos becos tropeçando na dança que as sombras faziam agitadas agora dormindo feito esqueleto ciente que o tempo não é querido Bukowski o noturno gato preto sonha a vida que teria vivido se fosse poeta não fosse gato fosse Bukowski bêbado e beato [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
ela ela chora vejo ela grita e chora sinto sua brisa castigar ora meus cabelos ora vagos apelos de felicidade divago ela chora toda ela em prantos cavo o seu silêncio nos seus recantos pacientes santos dormem silentes à sua vontade ela chora lágrimas ela inflama lança dardos rubros qual densa chama de desejos trama de longos beijos pela eternidade murmuro sorrindo ela apenas grita sim simplesmente ela voraz e aflita chora voa imita os deuses e entoa sua obscuridade [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
de bocas e beijos a boca contorcida é completa afeição alcança outro ermo céu quando a língua se ocupa em alçar voos no deleitável sertão que ela boca sedenta seca molha e chupa os dois lábios dormentes noutros lábios são mortos galgando o tempo na sua garupa ordinária e fria enquanto a esguia mão roçando a nuca é do assassinato a culpa o que seria então do beijo mais aflito se não fosse a distância do louco conflito e as mãos juntando os vívidos lábios dispostos? os olhares outrora em vértices opostos rendem-se aos dedos que somem entre os cabelos e convergem em beijos em íntimos zelos [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
sobre navalhas para Ana
navalhas hão de cortar os meus pulsos! vinho gelado servirei em cubos e o peito repleto de icebergs rubros será a lembrança de amores convulsos névoas frias ocultarão meu rosto lágrimas a zero grau verterei dias quentes serão o que não sei e o inferno — céus! — meu único gosto neve em pleno verão gelo ante fogo silêncio lunar sob minhas escamas sobre o semblante lacrimosas lamas na mandíbula inda o último rogo manto de pedra cobrirá meus ossos uma tundra negra será meu leito e o clima cada vez mais rarefeito engolirá meus árticos destroços tênues poeiras serão meus dejetos súbitos lamentos brilharão velas ardores serão preces e querelas queimarei a alma em pélagos secretos!
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
chama em pleno inverno brasa ante gelo é preciso aquecer a alma que chora ferver seu coração por longas horas se quiser senti-lo ou ao menos tê-lo e as navalhas antes frias mortais para o peito que protege um vulcão são apenas peças de aço ou latão sem outros fins fora os habituais [u\
Abílio Mateus Jr.
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SUBLIMES RUÍNAS
ultimato enfim quando a noite queda em teus olhos e a pele se enruga as lembranças fogem e todos os abismos te consomem os sonhos deixam de ser monopólios divide-os com os que ficam na vida com o sol sempre alto sobre os pescoços a esperança nítida sem esboços e a carne da alma inda pouco afligida doa teus sonhos de alvas primaveras desfaça as tuas gritantes quimeras enterre o desgosto de não sonhar pois o sonho que morre com o dono vai deixando um rasto frívolo no ar em cada hora do derradeiro sono [u\
Abílio Mateus Jr.
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SOB RE O AUTOR Abílio Mateus Jr., nascido em 1978, graduou-se em Física pela Universidade Federal de Mato Grosso e fez pósgraduação, mestrado e doutorado, em Astronomia no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Atualmente é professor adjunto no Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina.
Fonte dos tĂtulos: Century Gothic
 Fonte do corpo de texto: Baskerville 12pt