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Editor: Clóvis Belbute Peres
Cara leitora e caro leitor,
A edição anterior dessa coluna tratou do impactante ensaio “A Tirania do Mérito”. Esta edição trata de uma obra ainda mais impactante, tanto por sua profundidade como por sua relevância. “Capital e Ideologia” é um tratado tão único que reservamos essa coluna para sua resenha. É o mínimo que se pode fazer para ofertar a devida deferência a esse Opus Magnum sobre a desigualdade e seus impactos ao longo da história.
Livro: Capital e Ideologia Autor: Thomas Piketty Ed: Intrínseca Ano: 2020
O primeiro contato com a obra “Capital e Ideologia” pode ser descrito em uma só palavra: intimidante! Suas 1.471 páginas (ou quase 50 horas de áudio, na versão audiobook) enviam uma mensagem apavorante ao cérebro. O que lhe posso assegurar, porém, querida leitora ou querido leitor, é que a recompensa é também descomunal. Vencer o medo e mergulhar nesta obra prima sobre a desigualdade paga os justos dividendos, com o perdão do trocadilho.
Em 19 capítulos (incluindo-se introdução e conclusão), o autor segue uma perspectiva histórica e comparada para buscar entender as raízes da desigualdade e suas consequências nefastas para a humanidade, arriscando algumas sugestões para a sua superação. O texto está dividido em quatro partes. A primeira centra-se na Europa e trata da passagem de uma sociedade feudal tripartite (nobreza, clero e servos) para uma sociedade centrada no conceito de propriedade. A transição de uma sociedade ternaria para uma de proprietários e a sacralização da propriedade por si só faz a obra interessantíssima. A segunda parte do livro escancara o absurdo da desigualdade, aprofundando o olhar sobre o fenômeno da escravidão nas sociedades coloniais. Piketty pacientemente descreve o modo de pensar do colonizador, do “proprietário de escravos”, da relação entre as metrópoles e suas colônias. Instigante e detalhada é sua descrição da situação da Índia; de como os ingleses mantiveram sob jugo uma sociedade, menos pela força militar e mais pelo investimento brutal no conhecimento (obtido em um meticuloso acúmulo de dados e de censos).
A terceira parte busca entender a superação da sociedade de proprietários à luz das crises do século XX, da ascensão das democracias sociais etc. Novas formas de poder e propriedade são experimentadas. Um ingrediente sobressai: o papel da educação como motor do desenvolvimento e redução de desigualdade. Sobre esse tema, porém, o autor não é romântico. Ele mostra que, em alguns casos, a educação gerou uma casta de intelectuais (à semelhança dos Brâmanes indianos) que, tomando o poder, reproduziram padrões de desigualdade, agora com base na meritocracia desvirtuada (que já discutimos na resenha de “A Tirania do Mérito”, de Michael Sandel). Em sua última parte, a obra lança reflexões sobre os impactos atuais da desigualdade e como se pode pensar em superá-la. O papel da tributação é visto como essencial pelo autor, que o demonstra com estudos quantitativos, indo além da moralidade ou da retórica. (Um pequeno spoiler: vale ler a análise do autor sobre o Brasil, onde a redução da desigualdade teria ocorrido à custa da classe média, não das grandes fortunas.) A obra impressiona, pois os argumentos são solidamente alicerçados em pesquisas rigorosas. O autor é insaciável na busca de dados econômicos nos arquivos e bases diversas. Em um momento em que o mundo enfrenta uma pandemia que não destrói apenas vidas, mas amplia a desigualdade entre os sobreviventes, o tema da obra é ainda mais central ao caminho que seguiremos como humanidade.