Revista Mulheres & Refúgio: histórias para ocupar a cidade | Abraço Cultural RJ

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MULHERES & REFร GIO

Histรณrias para ocupar a cidade



Rio de Janeiro, março de 2020. Abraço Cultural Rio de Janeiro. Os direitos desta revista são do Abraço Cultural Rio de Janeiro. Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores. Permite-se a reprodução desde que citada a fonte. A revista “Mulheres & Refúgio: histórias para ocupar a cidade” está disponível em: http://bit.ly/RevistaMulheres&Refugio

Editoria, redação e seleção de fotos: Roberta de Sousa

Coletoras de relatos: Aléxia Kílaris, Anna Clara Marzocchi, Carolina Costa, Caroline Luiz, Fernanda Coelho, Ingrid da Costa, Isabele Lima, Juliana Rizzo, Juliana Rodrigues, Laís Clemente, Lycia Brasil, Marcela Bastos, Nina Hambury, Sueli Wysard, Taiane de Souza, Thainá Ornellas, Thais Vivacqua, Thayná Neves e Thays Munhoz

Fotógrafas: Ana Cristina Avelar, Daniela Segadilha, Gabriela Rocha e Júlia Loureiro

Tradutoras: Carolina Vieira, Maryony Gomez, Maíra Santos e Tülin Hashemi

Projeto editorial da revista: Kyanne Alves e Yasmin Menezes

Revisão: Carla Dawidman


Agradecemos a todas as mulheres incríveis que aceitaram compartilhar conosco e com o mundo suas histórias de vida, experiências, vivências, alegrias, tristezas e memórias para que este projeto pudesse ser realizado e para que mais pessoas possam se inspirar nas suas histórias Agradecemos

a

todas

as

amigas,

voluntárias e alunas do Abraço Cultural que cederam seu tempo, vontade, olhos e ouvidos para trocar, conversar e capturar fragmentos de histórias reais de mulheres. Agradecemos

às

queridas

Cássia

Werneck, Júlia Schuback e Rosa Diaz, representantes do Feminicidade Rio, por acolher a ideia do projeto e realizar conosco a iniciativa. Agradecemos ao Instituto Igarapé pelo apoio na realização desse projeto. Agradecemos ao Nex Coworking Rio pela boa vontade em ceder seus espaços para os nossos eventos. Finalmente, agradecemos às professoras responsáveis pela tradução de frases em português para diferentes idiomas - Cacau Vieira, Maryony Gomez, Maíra Santos e Tülin Hashemi além da equipe de coordenadoras do Abraço Cultural Rio pela ideia, planejamento e execução de um dos projetos mais significativos realizados ao longo de quatro anos de funcionamento Cacau Vieira, Tatiana Rodrigues e Roberta Sousa.


01 COLABORADORES 02 Abraço Cultural 03 Feminicidade 05 Instituto Igarapé

06 DESENVOLVIMENTO 07 “Mulheres & Refúgio: histórias para ocupar a cidade” 08 O papel político dos lambes lambes e o contexto brasileiro 10 Realização do projeto

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DEPOIMENTOS

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ENTREVISTAS 21 Venezuela 25 Síria 29 Colômbia 39 Angola 43 Colômbia 47 Angola 51 Gâmbia 55 Venezuela 59 Venenzuela



O ABRAÇO CULTURAL tivemos mais de 2700 estudantes, já capacitamos em torno de 50 refugiados/as e já geramos 950 mil reais em renda para pessoas em situação de refúgio¹. Além das aulas em sala, procuramos aproveitar ao máximo todo o potencial cultural dos nossos professores/as, por isso, periodicamente, também realizamos eventos e projetos que busquem a difusão de diferentes culturas e vivências, como o projeto "Mulheres & Refúgio: histórias para ocupar a cidade."

O Abraço Cultural é uma ONG que capacita pessoas em situação de refúgio para dar aulas de idiomas e cultura. Por meio dos cursos de árabe, espanhol, francês e inglês, buscamos gerar renda, promover a troca de experiências e valorizar a trajetória pessoal e cultural de refugiados e refugiadas residentes no Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto os e as estudantes aprendem idiomas, quebram barreiras e vivem aspectos culturais de outros países. No Rio de Janeiro, desde 2016, já

¹ Dados referentes apenas ao Abraço Cultural Rio de Janeiro, em outubro de 2019

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FEMINICIDADE

O Feminicidade é um coletivo que tem por objetivo ocupar o espaço público com histórias de mulheres através de cartazes lambe-lambes, a fim de debater temas relevantes às mulheres, desnaturalizar violências contra a mulher e estimular o fortalecimento feminino por meio da identificação e da empatia com as suas histórias. Desde 2016, o Feminicidade atua nas ruas e realiza rodas de conversa, oficinas, debates e intervenções urbanas com foco em questões femininas, políticas e artísticas, que envolvem o empoderamento da mulher. 3


METODOLOGIA DE TRABALHO

PROMOVER UM ESPAÇO DE LIBERDADE E CONFIANÇA PARA MULHERES EXPRESSAREM SUAS EXPERIÊNCIAS

REALIZAR AÇÕES PARA FOMENTAR A DISCUSSÃO PROMOVIDA PELAS HISTÓRIAS

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INSTITUTO IGARAPÉ O Instituto Igarapé é um think and do tank independente, dedicado à integração das agendas da segurança, justiça e do desenvolvimento. Seu objetivo é propor soluções inovadoras a desafios sociais complexos, por meio de pesquisas, novas tecnologias, influência em políticas públicas e articulação. É uma instituição sem fins lucrativos, independente e apartidária, com sede no Rio de Janeiro, cuja atuação transcende fronteiras locais, regionais e nacionais. Fundamentalmente, o Instituto Igarapé está conectado a um amplo ecossistema de organizações e agências do Brasil e do mundo todo. Atualmente, o Instituto trabalha com cinco macrotemas: (i) política sobre drogas nacional e global; (ii) segurança cidadã; (iii) consolidação da paz; (iv) cidades seguras; e (v) segurança cibernética.

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O PROJETO “Mulheres & Refúgio: histórias para ocupar a cidade” de em diferentes etapas de trabalho: coleta de relatos, transcrição das entrevistas, seleção de trechos, tradução de frases e design final de cada peça de lambe. Ao todo, dez mulheres aceitaram participar do projeto compartilhando seus relatos e vivências, e cerca de trinta atuaram como voluntárias em diferentes partes da iniciativa. Seus países de origem são: Angola, República Democrática do Congo, Colômbia, Gâmbia, Síria e Venezuela. Os nomes das entrevistadas foram retirados dos relatos compartilhados, constando apenas o país de origem. O projeto se concretizou no final de junho com uma roda de conversa, próximo da data do Dia Mundial da/o Refugiada/o, na qual participaram algumas protagonistas dos cartazes e a posterior colagem coletiva dos novos lambe-lambes nas ruas, ocupando a cidade com vozes femininas.

A iniciativa nasceu do desejo mútuo das duas instituições realizadoras – Abraço Cultural RJ e Feminicidade Rio –, de criar um projeto significativo, e que de algum modo trabalhassem juntas. Unindo arte de rua, feminismo e a causa do refúgio, decidimos realizar uma edição especial de cartazes lambe-lambes do Feminicidade apenas com mulheres em situação de refúgio como protagonistas. Com a elaboração e execução do projeto, buscamos celebrar a força e a coragem da mulher em situação de refúgio, chamar a atenção para a causa e proporcionar trocas entre mulheres de diferentes culturas. Assim, ao longo dos meses de abril, maio e junho de 2019, foi realizado o projeto Mulheres & Refúgio: Histórias para ocupar a cidade. O projeto foi elaborado voluntariamente por amigas e alunas do Abraço após uma capacitação com o Feminicida-

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O PAPEL POLÍTICO DOS LAMBES LAMBES E O CONTEXTO BRASILEIRO O lambe-lambe é uma vertente da arte de rua que utiliza cartazes como forma de intervenção urbana. A sua origem vem da mídia cartaz, iniciada em 1454, predominando o trabalho reprodutível. Foi durante o Renascimento que Saint Fleur produziu o primeiro cartaz expositivo. Com a produção de Toulouse-Lautrec - que retratava a vida boêmia de Paris de 1917, divulgando cabarés e outros espetáculos-, a mídia cartaz se popularizou e encontrou a sua força na propaganda. No fim do século XIX, o advento da indústria de impressão em massa possibilitou o florescimento da mídia em pôster. Esse tipo de mídia disseminou rapidamente informações pela cidade por meio da colagem de cartazes, a baixo custo. O conteúdo era bem variado: propagandas, eventos e cartazes de cunho político. Quase cem anos depois, os métodos de impressão evoluíram muito possibilitando o uso de uma gama variada de cores, artes mais detalhadas e em escalas maiores. Esta expansão fez com que o método de impressão se tornasse mais acessível, e que outros campos também o explorassem.

Cartaz de Toulouse Lautrec.

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No período pós-Segunda Guerra Mundial houve um ressurgimento dos pôsters de protestos, uma clara reação ao período de grande violência e de apoio à contracultura. Nessa época, a arte de rua começa a se aproveitar do caráter imediato e massivo da mídia impressa para criar a sua própria categoria: o lambe-lambe, também conhecido como wheatpaste poster ou paste up. Nesse novo cenário, vários artistas criam a sua arte através dessa mídia. No Brasil, o lambe-lambe teve uma importância muito grande durante o período da ditadura militar, tanto por parte da resistência como pela polícia, que os utilizava para divulgar criminosos e procurados do regime militar. Atualme nte, o uso do lambe-lambe ainda gira em torno de três principais eixos: propaganda, arte e política; movimentos femininos também utilizam essa mídia para debater questões políticas.

Mulheres colando lambe-lambes de protesto em manifestação feminista; Coletivo Deixa Ela em Paz.

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A REALIZAÇÃO DO PROJETO CAPACITAÇÃO DAS VOLUNTÁRIAS Antes de começar o projeto, as voluntárias foram convidadas a participar de uma capacitação sobre como coletar relatos de forma empática e sobre a metodologia usada pelo Feminicidade nesta prática. Através da escuta ativa, as voluntárias concretizaram a coleta de histórias em duplas.

TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS E SELEÇÃO DE TRECHOS Em duplas, as voluntárias coletoras de relatos transcreveram os registros dos encontros com as protagonistas dos lambe-lambes para, posteriormente, selecionar os trechos mais interessantes, e que poderiam ilustrar os cartazes de cada mulher.

Voluntárias e entrevistada no momento da coleta de relatos.

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TRADUÇÃO DE TRECHOS Após a escolha final da fala de cada protagonista do lambe-lambe, passamos à etapa de tradução. Cada mulher foi representada em um poster com duas versões diferentes: uma com sua fala original, em português, e outra com o trecho escolhido em uma das línguas de seu país de origem. Além das versões em português foram produzidos lambe-lambes em árabe, espanhol, francês e inglês.

DESIGN DOS LAMBES Com os retratos de cada protagonista e suas falas já escolhidas e traduzidas, passamos à etapa de design de cada peça de lambe-lambe conforme modelo Feminicidade.

Dia de capacitação das voluntárias com o Feminicidade.

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LANÇAMENTO DOS LAMBES: RODA DE CONVERSA E COLAGEM Para o lançamento oficial dos lambe-lambes e a primeira colagem coletiva, organizamos uma roda de conversa no Nex Coworking. O evento – que contou com um público em torno de 100 pessoas –, foi marcado pela presença e participação de algumas das próprias protagonistas dos lambe-lambes; discutiu-se sobre ser mulher, ser refugiada, as diferenças e semelhanças de ser mulher no Brasil e em seus países de origem, além de outros temas sobre refúgio e a causa das mulheres. Após o encontro, foi realizada a primeira colagem de lambes da edição especial pelos bairros da Glória e Lapa.

Momento da roda de conversa de lançamento dos lambes; público na roda de conversa de lançamento dos lambes.

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FOI UMA EXPERIÊNCIA ÚNICA. DESDE O INÍCIO, DURANTE A ENTREVISTA, TODO O PROCESSO FOI MUITO INTENSO E EMOCIONANTE. ESTAR EM CONTATO COM AS MULHERES E ESCUTAR TODAS AQUELAS HISTÓRIAS FOI UM PROCESSO QUE ME FEZ CRESCER MUITO COMO SER HUMANO.

SENTI UMA UNIÃO E EMPODERAMENTO MUITO BONITO EM RELAÇÃO ÀS MULHERES DIANTE DESSE PROJETO. AS HISTÓRIAS QUE OUVI DAS REFUGIADAS ME FIZERAM SAIR UM POUCO DA MINHA BOLHA E OLHAR DIFERENTES REALIDADES POR OUTROS OLHOS. 14


FALANDO E COMPARTILHANDO DA NOSSA HISTÓRIA AQUI, NO BRASIL, É QUE SENTIMOS QUE ESTAMOS AVANÇANDO E QUE AINDA PODEMOS IR MAIS LONGE... QUE NOSSOS SONHOS PODEM SE TORNAR REALIDADE E QUE SOMOS ACEITOS E QUERIDOS PELOS BRASILEIROS.

É MUITO LINDO VER TANTAS MULHERES MARAVILHOSAS APOIANDO UMAS ÀS OUTRAS.


FAZER PARTE DESSE PROJETO ME FEZ MAIS HUMANA. SÃO RELATOS DE LUTA, AMOR, REVOLTA, SAUDADE, GRATIDÃO. ANDAR POR CAMINHOS DISTANTES DA FAMÍLIA, SE DEPARAR COM SITUAÇÕES TÃO HOSTIS E MESMO ASSIM REVIGORAR-SE EM EXPOR ESSAS VIVÊNCIAS NAS RUAS, EXALTOU A MINHA CONFIANÇA EM COMPARTILHAR DA MESMA ESPERANÇA POR UM AMANHÃ MAIS JUSTO.

ADOREI TER A OPORTUNIDADE DE PODER MOSTRAR UM POUCO DA MINHA REALIDADE DE MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO.


FOI MUITO INTERESSANTE PODER CONTAR PARTE DE NOSSA VIDA PASSADA E PRESENTE, SOBRE A CAPACIDADE E A FORÇA QUE TENHO COMO MULHER, E, ASSIM, MOSTRAR AO MUNDO QUE SOU FEITA DE VALORES E DE AMOR.

PERTENCIMENTO E EMPATIA. ESTAR EM CONTATO COM REALIDADES E OLHARES TÃO DIVERSOS FOI MUITO IMPORTANTE E ME AJUDOU A FOMENTAR A ESPERANÇA DE UM MUNDO MAIS JUSTO PARA TODAS, ATRAVÉS DA AÇÃO EM CONJUNTO E DA ESCUTA CUIDADOSA DAS VIVÊNCIAS DO PRÓXIMO. 17


CONHECER AS HISTÓRIAS, O QUE MOTIVOU ESSAS MULHERES A SAIR DOS SEUS PAÍSES E DEIXAREM UMA VIDA PARA TRÁS E VIREM PARA CÁ É MUITO EMOCIONANTE.


O FEMINICIDADE E O ABRAÇO CULTURAL ME FORNECERAM UMA OPORTUNIDADE DE VIVENCIAR UMA CONEXÃO COM O MUNDO FEMININO, ESPALHAR MENSAGENS NAS RUAS DE MULHERES, EM UM MUNDO ONDE SER MULHER É ENFRENTAR DESAFIOS CONSTANTES NA SOCIEDADE, É EMPODERADOR. O RESULTADO PARA MIM FOI QUERER SAIR MAIS ÀS RUAS E TOMAR OS ESPAÇOS PÚBLICOS INTEIROS COM AS VOZES DE TODAS NÓS, MULHERES, NÃO SÓ COMO FORMA DE PROTESTO, MAS COMO UMA CORRENTE DE FORÇA E SUPERAÇÃO PARA CADA UMA DE NÓS.

OBRIGADA A TODAS ESSAS MULHERES, FOI UMA HONRA CONHECÊ-LAS. 19



DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA VENEZUELA “VOCÊ NÃO É DENTISTA, VOCÊ É SÓ O QUE VOCÊ É COMO HUMANO, É SÓ ISSO O QUE VOCÊ TRAZ.”

Eu vim para o Brasil já tem um ano. Eu cheguei por Boa Vista, mas vim de avião para o Rio. Meu esposo e eu somos dentistas de profissão. Como a situação do país estava tão terrível, tivemos que sair, mas estávamos pensando para onde ir. Estávamos considerando muitos países para ir e então ele falou: “Vamos para o Brasil, é maravilhoso, o Rio, bonito, e podemos aprendemos o português” e a gente decidiu. Começamos a nos preparar com um ano de antecedência, compramos passagem para o voo e ficamos organizando tudo. Vendemos tudo para fazer a viagem e vir com algum dinheiro. Meu esposo vendeu o carro dele, vendemos tudo e ficamos sem nada. L. e eu trouxemos nossa cachorra, que é como nossa filha, então tivemos também todo o procedimento dela que precisou de dinheiro e protocolo. Trabalhamos muito para vir com algum dinheiro, meu pai e toda a família ajudou também. Eles ficaram e meu pai morreu lá quando a gente já estava aqui, tem sete meses. Não tivemos como ir, mas assim é a vida, sabe…? (...) Nesse momento ainda não estava tão terrível, os refúgios estavam começando, foi em 2018, estava tudo mais tranquilo. Claro, eu vi venezuelanos morando na rua, comendo no chão, pedindo dinheiro nos sinais; quando estão esperando o carro passar, eles pedem dinheiro, vendem coisas. (...) Eu dei para minhas amigas o que ficou da roupa, o que ficou das coisas, até para minha família. Você já não é mais quem você era, você é outra pessoa, você tá recomeçando do zero. Você não é dentista, você é só o que você é como ser humano, é só o que você traz. Eu não tenho certificados, essas coisas, não; você é só uma pessoa aqui, simplesmente.

O mais difícil para mim foi deixar meu pai. Para mim ainda é forte, sabe? Porque eu não sabia se deveria voltar para lá ou ficar aqui. Meu esposo me falava para retornar para Venezuela se eu quisesse, mas se eu fosse ele ficaria aqui sem dinheiro, e eu não poderia enviar dinheiro para os medicamentos do meu pai. A doutora falou que ele precisaria de dinheiro para comprar remédios, então entendi que tinha que ficar aqui. Se eu fosse talvez não superaria, porque eu e meu pai éramos muito próximos. Para mim, deixar eles foi a coisa mais difícil. Nada é tão forte como isso. Se eu não conseguir trabalho, sei lá, não tem problema, posso trabalhar em qualquer coisa, eu não vou me sentir mal se não trabalhar como dentista. Eu posso aprender o que tenho que aprender e vou começar. Mas deixar eles, sabe... todos os dias da minha vida a primeira coisa que penso é em meu pai e a última também. (...) A dor você aprende a viver com ela, a dor tá aqui, é minha amiga, nunca vai e eu também não quero às vezes que vá, porque eu quero sempre lembrar do meu pai. Mas tento sempre lembrar dele com alegria. Foram várias coisas que me fizeram perceber que chegou o momento que não dava mais para ficar na Venezuela. A primeira que lembro que foi muito dura para mim foi que sempre participávamos dos protestos contra o governo, desde o primeiro momento, que foi protestar contra Chávez, até o último momento que foi contra Maduro. Numa dessas começaram a matar pessoas muito jovens. E um

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menino, ele morreu assim, de repente, ele tava ali, parado. As pessoas mais novas sempre estão à frente das manifestações, os mais jovens não têm medo. E a morte dele foi gravada, muitas pessoas gravaram o momento que mataram ele, foram os guardas nacionais, que é como a Polícia Militar daqui. A morte dele para mim foi... senti um dó tão forte. São inocentes, não têm nada, não estão fazendo nada, só estão falando que não querem esse governo e, então, são mortos. E ele não foi o primeiro. Já tinham morrido muitos, em 2014 já haviam matado pessoas, mas ele se converteu em um símbolo da luta. Quando ele morreu foi a primeira vez que senti que algo se rompeu, quebrou, dentro de mim. Eu pensava “não vou embora, eu vou ficar aqui e vou a todas as manifestações”. E eu vi que não acontecia nada, morreram muitas pessoas e não acontecia nada. Então comecei a achar que precisava pensar em mim, que a vida vai continuar e que não tenho como continuar trabalhando do jeito que eu estava. A cada dia eu trabalhava muito mais e ganhava muito menos. Eu tinha cinco empregos. Tinha meu consultório em uma cidade da Venezuela, trabalhava em outro em Caracas, depois ia para o interior e trabalhava em mais três consultórios. E L., meu esposo, também. Geralmente tínhamos um sábado livre por mês. E tudo o que a gente recebia só dava para a gente comer. Já não podíamos ir a nenhum lugar, já não podíamos ir ao cinema - coisas simples que qualquer pessoa fazia. E a última coisa que aconteceu, que percebi que tinha que ir embora, foi um dia que o pneu do meu carro furou. E o valor de um pneu novo era o valor de tudo que eu havia ganhado em um mês. Então L. teve que comprar um pneu bem ruim, ele teve que andar com o pneu vários quilômetros, porque não tinha ônibus, nenhum táxi pegaria ele…. Nesse momento decidimos que era hora de ir embora, que não dava mais. Porque estávamos perdendo a essência do que éramos. Você não vive só para trabalhar, você tem que viver e a gente não estava mais vivendo. Você perde o que você é. As

pessoas que ainda estão lá agora estão numa situação bem pior. “NESSE MOMENTO DECIDIMOS QUE ERA HORA DE IR EMBORA, QUE NÃO DAVA MAIS. PORQUE ESTÁVAMOS PERDENDO A ESSÊNCIA DO QUE ÉRAMOS. (...) VOCÊ TEM QUE VIVER E A GENTE NÃO ESTAVA MAIS VIVENDO.” (...) Então nesse momento do pneu percebi que se continuasse lá poderia ficar doida. Só trabalhávamos, como um animalzinho, trabalhar para comer, comer para trabalhar. Se você conseguia poupar um dinheirinho, era pra comprar mais comida... Lá na Venezuela ter um sabonete é um luxo, um presente maravilhoso era dar para alguém um shampoo Pantene, por exemplo. Quando a gente começou a ver que havia escassez, então a gente virou acumulador. Começamos a comprar muito quando podíamos. Meu pai tinha 69 anos, já estava aposentado e tinha uma vida feliz, eu achava, até que começou a ser cada vez pior. Tinha vezes que ligava para ele e ele falava que estava na fila para comprar farinha de milho, que a gente come muito lá, que tinha chegado às 10h da manhã no mercado e ficou até as 15h da tarde e não conseguiu nada. Então quando ele começou a ficar doente, nós começamos a enviar dinheiro de tudo que eu fazia. Por exemplo, a henna; quando eu fazia enviava para eles, L. também. Meu pai começou a poupar dinheiro, pensava que não poderia gastar, que tinha que guardar. Então, ele começou a se deprimir. Ficar sem comida, comendo só arroz, por exemplo, faz você perder sua essência. Ainda temos planos de trazer a família. Pelo menos os pais de L. e minha mãe. (...) As pessoas estão morrendo de fome, estão comendo do lixo. Um dia eu desci do meu trabalho em Caracas e vi um grupo de 15, 20 pessoas às 17h da tarde em um canto da rua. Ficava me perguntando porque estavam lá e soube que era porque naquele lugar era descarregado o lixo de comida de um shopping. Eles ficam esperando o lixo ali; são pessoas como eu, como você, como qualquer pessoa… Você

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Quando alugamos nosso apartamento, recebemos doações de roupa, geladeira, eu fiquei surpreendida com a bondade, eu aprendi muito aqui com a capacidade de dar sem esperar nada. E isso se perdeu na Venezuela pela situação. (...) Quando eu vim, estava sem emprego, estava muito desesperada, não porque eu estava passando fome, mas porque quando você está acostumado a trabalhar a vida toda você quer produzir e ajudar a família que ficou lá, para eles ficarem melhor. O dinheiro tinha acabado, eu e meu marido não estávamos trabalhando e eu estava pensando como iríamos pagar o aluguel. Nesse momento alguém ligou pra mim e me perguntou se eu queria fazer uma oficina de henna. E a primeira vez que eu trabalhei, eu tive certeza de que as coisas iriam melhorar. Também aconteceu outra vez que estávamos sem comida, ficamos pensando no que faríamos… me ligaram para participar de uma palestra, participei e lá todos se juntaram para me dar alguma colaboração, juntaram 150 reais. Era muito dinheiro! Compramos comida. Ficamos tão gratos, é um aprendizado tão grande que temos aqui, que eu tenho certeza que as coisas vão melhorar.

vê uma pessoa como outra qualquer comendo do lixo, uma mãe com o bebê de três meses, colocando o bebê do lado para procurar comida no lixo. Todas essas coisas, assim, sabe… foram quebrando meu coração. Porque você tenta se proteger, tenta não olhar mas é uma realidade. Eu pensava que tinha que continuar com a minha vida e se eu continuasse com essa realidade em mente, iria me deprimir. Não poderia me conectar porque não podia me dar ao luxo de me deprimir, eu tinha que sustentar meus pais. “É TRISTE, MAS EU NÃO ESPERO VOLTAR PARA MORAR, TALVEZ PARA VISITAR MINHA MÃE, MINHA FAMÍLIA E MEU PAÍS, PORQUE EU SINTO MUITA FALTA DO MEU PAÍS.” Acho que a Venezuela tem solução, mas que não será nesse momento, talvez demore 20 anos porque destruir é muito mais rápido do que reconstruir. É triste mas eu não espero voltar para morar, talvez para visitar minha mãe, minha família e meu país, porque eu sinto muita falta de lá. Estou trabalhando no C. em Botafogo, como assistente administrativa. O que eu espero da vida aqui no Brasil? Eu espero ser feliz, eu não espero ser milionária, eu espero ter um lugar para morar com meu esposo e minha cachorra, para eu trazer a minha mãe, se ela quiser ficar aqui ou visitar. Ter uma vida tranquila, uma vida que eu possa sentar na praça e olhar o céu e a natureza, porque eu adoro a natureza. É isso que eu quero, ter um lugar para morar, nem que seja alugado, que eu possa pagar, poder comer em um restaurante, ir ao cinema, a praia... É muito triste quando você quer ajudar e não pode. Eu me falava: tenta não se conectar com isso, porque você tem que lutar, você não pode se deprimir. Não permitam que isso aconteça com o país de vocês, olhem para o que está acontecendo com a Venezuela, não deixem que seu país fique dessa forma. O venezuelano perdeu a humanidade. Não percam isso, porque eu vejo isso muito lindo no brasileiro essa capacidade de dar, de mãos abertas.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO para baixo. Você pode até ver uma mulher que estudou que tá com um marido que não acredita nela. Xinga ela e fala coisas para colocá-la numa situação para ela mesmo não acreditar nela. Muito machismo. Eles não querem que as mulheres façam algo, então elevam a voz para falar, para mandar. Vejo coisas que eu fico com medo aqui. Eles podem matar, fazer muito mal, eles podem ir muito longe com as coisas. E aí tem o feminicídio. No mercado de trabalho você vê um homem ou uma mulher com salário que não é igual. E por que isso? Os dois são humanos, estudaram, pode ser que a mulher estudou muito mais que o homem, pode ser que a mulher é muito mais inteligente que aquele homem. Mas, como ele é homem, é ele que tem que receber mais. Isso é errado, não pode acontecer. É muito difícil ser uma mulher aqui no Brasil. Eu vejo até os políticos, vocês têm políticos que nem nos deixam falar. Você está ali, na Câmara, no Ministério, onde você pode estar e, pode até ficar ali, mas de boca calada porque se você falar àqueles homens que estão ali do seu lado podem ameaçar você. E a vida toda, você nunca mais pode falar porque eles fizeram você se calar. Isso é muito errado. Dói, sabe. É isso que eu penso de ser mulher aqui no Brasil, muito difícil. Ainda é difícil no mundo inteiro, porque aqui não tem como em alguns países que a mulher senta e come na cozinha, e o homem na sala, na mesa. Ela não pode falar. Ele quer ter uma mulher, mas não quer saber como ela tá. Ele quer, ele faz. Isso muito ruim, é muito errado. E ainda tem as famílias que você eleva a voz pra dizer "não", para denunciar, e a família toda vem em cima

Primeiramente, eu sou M., sou da República Democrática do Congo. Trabalhei lá, estudei lá, passei uma boa parte da minha vida também lá, até chegar aqui. Só que lá eu conhecia um outro tipo de vida e, também, como mulher, conheci o que era e o que é, até hoje, ser mulher lá no Congo, na África. Quando eu cheguei aqui também vi que as mulheres passam por muitas situações similares às que passei lá. Ser mulher é difícil já que o mundo vê as mulheres como pessoas fracas, frágeis; são vistas como pessoas que não podem, que não têm direitos. Muita gente para e pensa isso porque na África uma mulher nasce e é criada para ser uma mãe de família. Não é totalmente ruim, só que a vida de uma mulher não para aí. A vida dela é muito mais que isso. Tem muitas coisas que ela pode fazer até muito melhor que o próprio marido. Só que muitas pessoas pensam diferente; as mulheres ficam se colocando naqueles lugares que aquelas pessoas colocam elas. Isso é errado. “(...) NA ÁFRICA UMA MULHER NASCE E É CRIADA PARA SER UMA MÃE DE FAMÍLIA. NÃO É TOTALMENTE RUIM, SÓ QUE A VIDA DE UMA MULHER NÃO PARA AÍ. A VIDA DELA É MUITO MAIS QUE ISSO.” Chegando aqui no Brasil também existe isso. Só que o mais difícil é que elas nascem, têm a discriminação, igual a todos os países porque as mulheres sempre vivem discriminação. No trabalho, nas famílias, aonde elas vão tem aquilo. Como os homens se acham poderosos, superiores, de uma certa forma, eles acabam colocando as mulheres muito

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de você. "Por que você tá fazendo isso? Ele é seu marido! Respeita! Tem que respeitar, tem que fazer aquilo que o marido manda". Essa é a dificuldade que a gente tem. Imagina uma mulher brasileira vivendo no país que é o dela, com dificuldade. Agora, imagina uma estrangeira que mal fala português ou ainda nem fala, porque quando eu cheguei aqui, eu nem falava português. Não tem como provar suas capacidades. Tipo, eu estudei e tudo que eu tenho para provar é só a minha palavra; tem que provar, tem que ter documento, mas muitas pessoas saem sem documento. Você ainda pode trazer, mas está na sua língua; ninguém entende aquilo, então, não vale. Você não tem como conseguir emprego. No Brasil eu sou estrangeira, negra e refugiada. Cara, é muito difícil. Porque no Brasil ser negra já é um problema. Brasileira negra. Ser mulher é um problema… e ainda falar mal português...! Eu consegui um emprego. Foi bem difícil para mim no início. Mas graças a Deus eu consegui na Cáritas². Eu sempre agradeço à Deus por colocar no meu caminho essas pessoas maravilhosas que acreditaram em mim e me ofereceram esse trabalho que eu faço hoje. Mas tem muitas pessoas que passaram por uma situação bem ruim. Você anda na rua, às vezes as pessoas te olham de um jeito diferente. Uma vez aconteceu comigo dentro do ônibus. Eu saí do trabalho, estava voltando para casa. Eu entrei no ônibus e só tinha uma cadeira, do lado de uma senhora. Ela deveria ter mais ou menos setenta anos. Ela viu que eu estava indo sentar do lado dela, eu tive que passar por ela para sentar. Aí eu fui e ela não fez nada para me deixar passar. Eu pedi licença: “dá licença, senhora? A senhora poderia me dar licença?”. Ela se afastou e me deixou passar. Quando eu

“EU SEI QUE ELA NÃO SABIA QUE EU NÃO ERA BRASILEIRA. ISSO EU SEI QUE ELA NÃO SABIA. SÓ QUE ELA ME TRATOU ASSIM PORQUE EU ERA NEGRA.” passei, sabe o que ela fez? Ela saiu do lugar onde ela estava, ela se afastou do banco. Deixando espaço entre nós duas. Ela poderia até cair, era uma senhora. Eu sei que ela não sabia que eu era estrangeira. Ela me tratou assim porque eu era negra. E ela era branca. Mas no meu país eu nunca passei por isso. Porque não existe isso. Desde que eu cheguei eu ouvia que isso acontecia. Mas nunca tinha acontecido comigo. Eu entendi, e depois ela falou: “não quero que seus cabelos toquem em mim! Cara... eu olhei... não disse nada. Abri a minha bolsa, peguei meu celular. Liguei para uma amiga e comecei a contar minha história, só que falei na minha língua, em lingala. Fiz isso para ela ouvir que eu não sou brasileira... O que ela fez é errado. Falei com a minha amiga. Ela me acalmou. As pessoas que estavam ao lado ficaram olhando... As pessoas perceberam, né? Depois eu vi que uma pessoa estava se levantando, que ia saltar. Aí eu falei: “Senhora, pode me dar licença? Pronto eu vou deixar a senhora em paz. Eu vou sentar ali para te deixar em paz.” Ela não disse nada. Se afastou de mim e eu saí, fui sentar em outro lugar. Fiquei muito chocada. Aquilo acontece muito. Isso aconteceu também comigo quando eu cheguei aqui. Eu era recém-chegada havia dois meses. Algo assim. E aí eu fui procurar trabalho em Copacabana. O encaminhamento foi feito na Cáritas. Eu cheguei, não fui só eu. Tinha várias pessoas, já que era uma seleção. Quando a gente chegou, o moço falou para a gente: “esse emprego não é para estrangeiro, é só para brasileiros”. Tinha entre a gente algumas pessoas que falavam português melhor. E que poderiam trabalhar. Mas ele não quis oferecer essa oportunidade para a

²Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, que atua na busca pela proteção e promoção social dos direitos de refugiados(as) e solicitantes de refúgio.

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gente. A porta se fechou por sermos estrangeiras. Refugiadas e negras. Entendeu? Então não é fácil, é bem difícil. Mas fazer o quê? Eu estou no Brasil há quatro anos. Eu ainda estou aprendendo. Aprendo todos os dias. A minha força vem primeiramente da minha personalidade. Eu acho que não há diferença entre a gente, entre as pessoas; todos somos iguais. Primeiramente, eu acredito em mim. Eu estou determinada a fazer. Desde que eu era criança. Eu sempre fazia e eu faço de tudo para conseguir o que eu quero. Eu batalho. Quando eu estudava por exemplo, eu era pequena, nunca vou esquecer dessa imagem: a primeira vez que eu escrevi. Eu fui a primeira da minha sala a escrever. A primeira que conseguiu escrever a letra A, a letra B na minha sala, sozinha. A professora segurava nossa mão. E eu consegui fazer sozinha, direitinho. E isso eu nunca esqueci, por quê? Porque quando eu me dedico à alguma coisa, eu vou até o final. Eu sou uma batalhadora. Eu luto. Porque, sabe, na vida, se você desiste ninguém vai fazer no seu lugar. Tem que se levantar, tem que ter força, tem que ter determinação e seguir em frente para conseguir. Senão você nunca vai conseguir nada na vida. Se não fosse essa força eu não estaria aqui. Eu estou aqui porque tomei uma decisão. Algumas pessoas que desistiram no caminho, algumas ficaram... Algumas morreram. Sim, tem pessoas que morreram no caminho. Mas a gente se fortaleceu e batalhou até chegar aqui. E quando cheguei aqui, tudo que eu sei, tudo que eu aprendi, eu coloco à disposição. Eu não me fecho, eu me abro. Eu converso. E quando a gente fala, a gente descobre. E aí, dá força.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA SÍRIA por causa da guerra lá na Síria, tem muitas mulheres que saíram do país e estão morando em outros países e vendo como as mulheres vivem neles. Elas não precisam ficar aguentando as besteiras dos homens que estão vivendo com elas. A violência que, infelizmente, as mulheres não falam sobre isso. Porque às vezes a própria família fala para a mulher “ah, não, é seu marido, ele pode fazer isso”, “ele tava com raiva, ele bateu em você, mas não deixa isso destruir sua vida”. Tipo, as mulheres escutam isso das próprias famílias, que deveriam apoiar elas nesses casos, mas infelizmente não é assim… No começo da guerra, eu estava totalmente com a revolução. Eu sou totalmente contra o governo. A gente fazia manifestações pacíficas. Eu saí em pouquíssimas, na verdade, por causa de medo. Porque realmente quem entra lá, some, infelizmente. Ainda mais como mulher, ser presa num país com uma ditadura militar. Daí nas pouquíssimas vezes que saí estava muito tranquilo, muito pacífico. Eu saí só no começo.

A Síria é um país bem machista. Eu sempre achei errado aquela ideia de que desde que a gente começa a crescer a gente aprende que o homem pode, mas a mulher, não. O homem pode tudo. Tem um ditado em árabe que fala que não há nada que um homem faça que possa destruir a sua reputação... mais ou menos isso. Daí eu sempre me questionei, especialmente porque minha mãe me ensinou a ser uma mulher forte. Ela sempre questionou, sempre ficou contra o machismo. Hoje eu considero que o meu pai era um homem mais aberto. Ele me mostrava que eu poderia ocupar um espaço maior como mulher do que o lugar que as mulheres em geral tem lá. Por causa dos meus pais, então, desde criança eu sempre me perguntava “por que isso é assim na sociedade?”. Enquanto eu crescia comecei a ver como o machismo interfere em cada parte, em cada momento da vida das mulheres lá. E a gente não pode falar nada. Eu sempre fui revoltada por causa disso. Não sentia que tinha um espaço feminino no qual podíamos discutir essas coisas lá; eu acho que a coisa que eu mais amo no Brasil são as mulheres, porque eu acho que elas são muito unidas, uma ajuda a outra. Infelizmente lá na Síria não é bem assim. As mulheres sempre pensam sobre o que os homens vão pensar sobre elas. Elas sempre querem que os homens as vejam de um jeito que eles gostem, sabe? Um jeito que os agrade. Elas não pensam no que elas querem mesmo. Isso é muito triste, eu acho. Eu acho que agora isto está mudando um pouco, eu falo isso pelos comentários, por exemplo, que eu vejo no Facebook. Eu vejo que as mulheres estão ficando um pouco mais abertas. Também

“ESSA NÃO É A REVOLUÇÃO QUE EU REALMENTE QUERIA. ISSO NÃO ME REPRESENTA. ENTÃO, DEPOIS QUE FICOU MUITO VIOLENTO, EU QUIS SAIR.” Tinham muitas mulheres nas ruas em Damasco. Mais ou menos metade dos manifestantes. Só que depois começou, o governo reagiu com violência. Daí as pessoas também; eu ficava pensando, o que as pessoas vão fazer? Vão ficar morrendo na rua? Eu sou totalmente contra o uso de armas. Eu estou falando de Damasco, que foi menos afetada por isso.

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Então, imagina as outras cidades que famílias inteiras morreram. Daí quando começou a ficar assim… o que eu queria era muito diferente do que muitas pessoas queriam lá. Tinham pessoas que queriam a liberdade religiosa, mesmo já tendo lá. Mas não tinha uma liberdade, talvez, para alguns extremistas e para alguns muçulmanos normais que eram mais conservadores. Então isso, não sei, eu estava totalmente com essas pessoas que estão sofrendo, mas ao mesmo tempo essas pessoas queriam que eu morresse porque eu não uso hijab, por exemplo, porque eu sou ateia, eu sou lésbica… Eles achavam que o certo era matar pessoas como eu. Isso não era a revolução que eu queria. Isso não me representa. Então, depois que ficou muito violento, eu quis sair. Eu sempre quis sair da Síria, para ser honesta. Um país que deixa a mulher oprimida o tempo inteiro. Você anda na rua, você não se sente livre. Aí depois eu pensei em ir para o Líbano, que era mais tranquilo. Fui para lá, fiquei três meses, depois fui para Malásia, fiquei por um mês. Eu acho que eu não consegui me adaptar muito porque lá também era um país muçulmano. Eu ficava com medo de comprar uma cerveja no supermercado e alguém, uma blitz, me parar na rua e ver que eu tinha cerveja comigo. E aí olhar meu passaporte, porque meu sobrenome é muçulmano, parece muçulmano. Então eu acabei achando que não é o país que eu quero. Eu saí da Síria em 2013, mas eu fiz essa volta. Depois voltei para Síria, depois fui para o Líbano. Depois voltei para Síria. Daí no final, eu fiquei pesquisando sobre um lugar para eu sair de vez. Europa, porque o caminho era muito perigoso, eu não queria fazer isso. Eu fiquei procurando… aí um amigo me mandou um artigo sobre o Brasil. A presidente ainda era a Dilma e estava falando que o Brasil estava de braços abertos. Estavam dando vistos muito tranquilamente para os sírios. Daí eu fui para Turquia para conseguir trabalhar e juntar dinheiro. Trabalhei lá por cinco meses e comprei a

passagem para vir pra cá. Eu não tenho muito contato com outras mulheres sírias. Das pessoas que ainda falo tem algumas na Síria, e a maioria na Europa. Tenho uma amiga aqui, que veio pra cá. Ela está morando em São Paulo, mas ela está passeando aqui no Rio agora. Ela veio dois anos atrás. Mas realmente, as mulheres são… eu não sei, falando disso eu fico muito triste. Quando alguém me fala que não tem mulheres sírias com quem podem falar, ouvir sobre. Uma entrevista, por exemplo. Tem pessoas que mandam pra mim pedindo pra eu fazer entrevistas. Eu nem sempre quero, é cansativo também ficar falando o tempo inteiro. Se eu abrir isso, não vou parar de fazer entrevistas. Mas elas falam “ah, mas a gente não tem uma representação feminina aqui no Rio de Janeiro”. Daí eu fico triste e vou à entrevista. Eu acho que tem mulheres sírias, mas elas não podem falar. Essas mulheres existem, mas elas não vão falar nada. Porque elas ainda têm aquele medo, estão traumatizadas por causa disso, por causa da vida que elas viviam, por causa dos maridos que estão aqui, dos irmãos que estão com elas. Infelizmente, não tem muita mulher que está sozinha aqui, que veio sozinha. “ESSAS MULHERES EXISTEM, MAS ELAS NÃO VÃO FALAR NADA. PORQUE ELAS AINDA TÊM AQUELE MEDO, ESTÃO TRAUMATIZADAS POR CAUSA DISSO, POR CAUSA DA VIDA QUE ELAS VIVIAM (...)”. Minha família não é muito religiosa. Meu pai não ligava muito e minha mãe também não. Ela fala que é muçulmana, mas ela não pratica. Até ela não sabe muito sobre o Alcorão. Mas pra mim eram sempre aquelas histórias que a gente escutava lá na escola... sobre o que Deus vai fazer com a gente se a gente não acredita, aquelas coisas. (...) Não é um país laico, não. É um país religioso que finge que é laico. A gente não estuda nada sobre a evolução, por exemplo. Tipo, Deus que criou a gente. A gente não sabe nada sobre essa ciência. Daí para você saber só pela internet. Eu fui pesquisando e pesquisando quando eu tive

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acesso à internet com 13 anos, eu acho. Daí eu fiquei assim. Aos poucos eu perdi isso, eu perdi essa... Eu não estava acreditando mais. Nunca tive muita oportunidade de falar abertamente sobre a minha sexualidade. No Líbano, na verdade, é que eu tive mais abertura. Sobre ser ateia, na verdade eu tinha alguns amigos que eu falava sobre isso, mas é muito perigoso sair falando… a minha mãe tinha medo mais por causa disso, não por ser ateia, mas sobre a reação das pessoas; então ela falava “não fala pra ninguém, faz o que você quiser, mas não fala pra ninguém”. Então sobre isso eu tinha uma bolha muito pequena dos amigos que eu conseguia falar, mas sobre homossexualidade eu não tinha essa abertura, não; eu tive essa abertura lá no Líbano, porque lá tem algumas organizações que ajudam com isso. Daí você tem um pouco mais de direitos, porque lá na Síria você vai pra prisão por três anos se for homossexual. Quando eu cheguei aqui levou um tempo pra perceber o machismo daqui. No começo as pessoas me falavam que tem muito machismo, tudo isso, mas pra mim era muito mais “escondido”. Na Síria ser machista é uma coisa boa, é ser “macho”. Aqui, eu acho que como tem mais feministas, elas estão mudando isso, tornando isso uma coisa feia, de ser machista. Eu acho que eu percebi isso mais quando comecei a falar português e ler as notícias; comecei a ver que realmente não é a mesma coisa. Eu vi uma coisa esses dias, que nos anos 50 as mulheres precisavam de uma autorização pra viajar, então isso agora não acontece mais. Isso ainda acontece na Arábia Saudita, infelizmente. Mas têm países que precisam de mais tempo… a Síria, eu acho, vai precisar de uns 50 anos pra chegar onde o Brasil está. Eu acho que só a representação feminista pode ajudar nisso. Eu sou totalmente contra essa coisa de falar “ah, questão de feminismo não é prioridade”. Eu acho que os homens que ensinam as pessoas a falarem isso “ah, sua questão não é importante agora, a gente

tem tanta coisa”. Não! A minha questão é importante, eu quero mudar a minha vida pra conseguir lutar por outras coisas depois. Porque a mulher não tem voz lá, ela não consegue falar o que ela realmente quer. Eu tenho um amigo sírio aqui que chama A., ele é muito legal. Sobre a questão de ter contato com sírios, eu não sou uma grande fã. Porque eu tenho problema com as pessoas que tem problema comigo. Isso é o básico. Imagina pessoas ter problema com você por você ser como é, e você gostar delas. Eu não vou falar assim “ah, eu não vou falar com os sírios”. Não, eu dou uma oportunidade para ver como ela pensa, o que ela acha. Tipo o A., no primeiro dia que eu o conheci, eu adorei ele. Ele é maravilhoso. Mas até mesmo uma pessoa muçulmana, o M. que também está aqui. Eu gosto muito dele, ele é muito fofo (…) a minha mãe é muçulmana, eu não tenho essa coisa de que se a pessoa que é síria ou muçulmana, eu não vou falar com ela. Se a pessoa é aberta, por que não? Se a pessoa não tem problema com quem eu sou... Existem muitas mulheres que eu admiro. Uma vez eu conheci a Marielle Franco. Eu tava sentada num bar em Botafogo, com a C., a T., e alguns professores. Daí a Marielle tava lá distribuindo adesivos. Eu não sei o que tava acontecendo naquela época, eu acho que eram eleições para prefeito, daí eu perguntei quem é ela, porque a C. ficou tirando fotos com ela, e eles me falaram um pouco sobre a Marielle. Eu adorei ela. Fiquei muito triste quando ela foi assassinada. Claramente têm outras mulheres que também admiro… Tem uma escritora chamada Nawal El Saadawi. Ela é muito feminista e por isso as pessoas odeiam ela… E, claro, a minha mãe. Ela sofreu tanto machismo também… A gente tinha essas conversas, ela falava pra mim sobre isso. Ela tava sempre lutando contra isso. Mesmo que ela não fale que é feminista, porque ela não tem essa referência, ela já sabia que a maneira que era imposta de se viver lá não é certa.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA COLÔMBIA Eu sou da Colômbia. Uma vez por mês eu participo da Feira Chega Junto³, que já funciona há mais de dois anos. Ela aconteceu de um jeito mágico porque abriram o espaço por acaso, e depois se transformou em uma coisa superespecial para todos nós que fazemos comida. Para mim, por exemplo, fico esperando esse dia todo fim de mês, esperando esse dia para vender, porque é um dos lugares que eu mais vendo. Eu guardo 100% desse dinheiro que eu faço para pagar o aluguel. Não só o aluguel, mas coisas que ficaram pendentes eu consigo pagar. Então é uma feira muito boa. Eu também vendo artesanato na Tijuca e vendo comida em restaurantes, centros comerciais, feiras, eventos, casa de família, é o meu trabalho. Eu sou comerciante. Comecei com aquela ideia que a Cáritas teve de oferecer artesanato que eu aprendi em algumas aulas. Fiz alguns cursos, comprei revistas e assim comecei a fazer, comecei a vender. Mas realmente, viver no Rio de Janeiro, como artesã, é difícil. Então não dá pra eu levar o artesanato de um jeito tão profundo. E tenho que ser mais comerciante que qualquer coisa senão eu não consigo viver aqui, não consigo morar aqui, a vida aqui no Brasil é difícil. Estou aqui há sete anos e quatro meses. E não dá para parar de trabalhar; você não consegue tirar férias, porque quando você para de trabalhar três dias, você já vai vendo que a necessidade está chegando, então não dá. Eu cheguei aqui em fevereiro de 2012 e creio que não tirei

férias mais de duas, três vezes. E as férias que tirei foi de uma semana, que fui com minha neta e a minha filha para algum lugar barato de ir e voltar rapidinho, porque não dá pra ficar muito tempo. Então férias de verdade eu não tiro porque não tenho condição econômica para isso. Não existe. Quando eu saí da Colômbia, eu tinha sido escolhida por um grupo das Nações Unidas, de pessoas que oferecem um terceiro país para se refugiar. Ofereceram um terceiro país pra mim pela condição que estava e simplesmente porque emocionalmente eu não conseguia ficar mais lá, entrei em uma situação de pânico, de angústia. Ou me tiravam de lá ou eu ia morrer. Quando comecei a juntar os documentos para mostrar quais seriam meus familiares, me falaram que só poderiam sair do país os meus dois filhos menores, que estavam dentro do conflito armado, a minha mãe, que era uma mulher de 65 anos, e eu. Mas não tenho só dois filhos, eu tenho cinco. Se meus filhos não vão, eu não vou. Não aceitei. Falei pra meus filhos que poderiam ir, é uma oportunidade que qualquer mãe ia querer para seus filhos, seria ótimo eles terminarem de se educar na Europa. Eles poderiam ir para lá, eu viria para o Brasil. Eu já tinha uma filha que morava aqui e ela tinha tido uma filha aqui, no Brasil. Eu saí da Colômbia por causa dos conflitos armados, por causa das FARC. Depois de duas semanas meus filhos decidiram que todos deveriam ir para o mesmo lugar, ficar juntos. Decidimos vir todos

³Um projeto que acontece geralmente no formato de feira e une produtores refugiados e gente de todo mundo para uma celebração étnico-cultural-gastronômica, rompendo todas suas fronteiras.

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fazendo artesanato, e minha filha saía para vender e oferecer nas lojas. Vi que esse seria um negócio bom pra mim. Comecei a vender e a fazer bijuterias já que era um tipo de artesanato diferente ao que todo mundo fazia na época. E começamos assim, ela se motivou porque vendia muito bem. Eu estava mais feliz de ver que aquelas coisas que eu fazia, as pessoas gostavam. Então foi tudo assim, um trabalho de família realmente, na parceria com a minha filha mais velha. Um tempo depois comecei a sentir que poderia sair. Comecei a ir ao cinema com as crianças, a sair para fazer as compras eu mesma, e a querer sair de vez em quando. Comecei a me sentir um pouco mais segura. Já tinha quase um ano trabalhando em casa e focando em como não trazer o passado para o presente, como tirar um pouco desse peso. Aprendi a canalizar esses pensamentos de um jeito melhor, sem que me machucasse tanto. E ganhar essa luta.

para o Brasil. Mas as Nações Unidas me falaram que para o Brasil não me ajudariam, eles não traziam pessoas para cá. Na última época em que estava na Colômbia, eu comecei a passar mal de saúde. Fiquei mais de um ano de cama, sem trabalhar, sem nem escutar o telefone porque eu entrava em pânico. Foi uma tensão emocional muito forte de medo, de angústia, de incerteza, de medo de descobrir, de medo de sentir, de escutar, de estar. E minha cabeça não deu mais. Então eu fiquei doente. Quando eu cheguei aqui, eu ainda estava passando mal, ninguém sabia o que era. Me falaram que a Cáritas é a entidade que acolhe e que oferece documentação, e todas essas coisas. Quando eu cheguei aqui eu estava morrendo do coração. Já cheguei com um diagnóstico do cardiologista, tomando medicação, fazendo terapia, fazendo tudo que o médico mandava porque meu coração se expandia, aí eu desmaiava, ficava com taquicardia. Era uma sensação horrível, todo mundo falava que era o coração. Só que quando eu cheguei aqui a médica falou que viu meus exames e que meu coração estava perfeito. Fui diagnosticada com ansiedade generalizada, síndrome do pânico, fobias a tudo, aos espaços amplos, aos espaços fechados, às cores, à natureza, ou seja, eu tinha fobia da vida. Tudo fazia com que eu ficasse mal. Eu entrava em pânico por qualquer coisa. Era muita ansiedade. Bom, pouco a pouco eu fui recebendo ajuda psiquiátrica, terapias e todas essas coisas, e estava medicada todo dia e toda noite. Eu estava sempre cansada, sempre indisposta, não queria viver, estava passando por um momento de depressão, foi uma série de acontecimentos. É como aprender a deixar um pouco o passado pra lá para poder tirar todo esse peso que eu trago dia a dia no presente, aquilo que mais me afeta. As as crises pioraram, persistiram, e eu já não conseguia sair de casa. Era muito difícil para mim, não conseguia abrir a porta da minha casa. Comecei a fazer o tratamento mais a sério. Foi um ano que fiquei em casa aprendendo e

“EU NÃO TINHA TIDO OPORTUNIDADE DE VER UM MUNDO DIFERENTE. ENTÃO VER ARMAS, MORTES, ASSASSINATOS CRUÉIS, COISAS QUE SÓ SE VÊ EM SITUAÇÃO DE CONFLITO, DE GUERRA, ERA NORMAL PARA MIM.” Eu nasci num estado que se chama Meta, e nesse departamento a polícia, o exército e o Estado não tinham muita presença. O Estado estava simplesmente nas cidades mais conhecidas, maiores. As FARC nasceram lá. Cresceram e se fortaleceram nesse território. Então o primeiro grupo de poder armado que eu vi não foi a polícia, o exército; não foi o Estado colombiano, foram as FARC. Eu cresci vendo uma bomba, podia pegar um fuzil e brincar, uma faca deles. Era uma coisa normal, eu não tinha medo quando eu via aquelas granadas, aquela quantidade de armas em uma mesa... Falavam que eu ia ser uma guerrilheira quando crescesse. Eu tinha três, quatro, cinco anos e vivi isso. Eles não começaram só na parte urbana, na parte rural também. Utilizavam sequestro como uma tática com as pessoas mais influentes e ricas. Eles não matavam, sequestravam e obrigavam as pessoas a pagar certas quantias de dinheiro para se sustentarem ou 35


mesmo fazer com que essas pessoas endinheiradas contribuíssem com eles. Como organização, eles não tinham um sonho de luta por um povo. Eles queriam tirar o campesino e plantar, trazer as pessoas obrigadas para fazer plantios de drogas, de cultivos ilícitos. Para mim era uma coisa normal, porque não conhecia outra vida. Eu não tinha tido oportunidade de ver um mundo diferente. Então ver armas, mortes, assassinatos cruéis, coisas que só se vê em situação de conflito, de guerra, era normal para mim. Como desmembrar uma pessoa, como tirar um bebê do ventre da mulher, como decapitar uma pessoa, como fazer qualquer coisa horrível para chamar a atenção da sociedade, para que a comunidade ficasse nervosa, obedecesse, se assustasse para ver que eles são as pessoas com poder. E nós realmente não tínhamos a quem recorrer, então eles eram tudo. Eles eram quem nos ajudava quando você precisava, quando você estava sendo roubada ou atropelada por outras pessoas; você falava e eles agiam como mediadores. Mas também eram os que matavam, então eles eram tudo, eram a lei e foi a única lei que eu conheci. Assim fui crescendo, e quando eu estava com sete, oito anos, me lembro que eu só queria ser guerrilheira. Meu sonho era estudar medicina, mas não era medicina para ficar em um hospital ou numa clínica. Era para proteger eles das mortes e as coisas que aconteciam sem ajuda médica. Era essa fixação que eu tinha por eles. Meu pai decidiu que eu teria que sair de lá para poder continuar a vida, foi um pai presente demais, então ele me mandou para a capital. Comecei os meus estudos e uns quatro anos depois eu já não queria ser guerrilheira porque eu conheci o mundo, conheci a vida normal de uma adolescente. Eu queria estudar não só para ser médica guerrilheira, queria crescer e dar o melhor para meus filhos quando chegassem, porque sempre sonhei com uma família numerosa. Eu venho de uma família grande, então para mim isso foi uma coisa que me marcou muito. Mas meus filhos não seriam criados como eu fui, não ia dar aos meus filhos o

que eu recebi por ignorância, por abandono do Estado, por ignorância da família. Eu queria romper com aquela realidade e mostrar um mundo diferente para a família quando chegasse. Então terminei sendo mãe na capital, mas compartilhando o final de semana investindo todo o tempo na minha família porque eu queria ajudar meus irmãos mais novos, tirá-los de lá. Eu já havia descoberto outro mundo que não era aquele mundo de armas, de morte. Fiquei muito nervosa com os que ficaram lá. Eu estudava de noite, de dia, fazia todos os cursos que apareciam e comecei a trabalhar como docente. Tempo depois eu me apaixonei e fiquei grávida da minha primeira filha – que é mãe da minha neta –, e comecei a viver aquela ilusão de mulher, de mãe, de trabalho, de poder e comecei a trazer a família. Fui trazendo um a um dos meus irmãos para a capital. Então eu criei meus filhos e meus irmãos. Meus três irmãos pequenos eu criei como filhos, porque meu pai morreu e meus irmãos ficaram sem documentação. Minha mãe não era casada então ela não teria direito a dar o sobrenome aos filhos. Peguei as crianças, levei para Bogotá e comecei a dar estudo para eles. Consegui registrar meus irmãos como filhos meus. Consegui trocar aquela história, ver que meus irmãos não se tornaram guerrilheiros nem paramilitares. “AGORA, AQUI, EU POSSO PASSAR SEMANAS, MESES SEM PENSAR NA MORTE. É UMA COISA MUITO BOA.” Essa proximidade dia a dia com a morte não é boa. Você não tem tempo para ser feliz, não tem tempo para ver a vida, porque você tem a morte vinte e quatro horas presente. Eu fui a terceira filha. O primeiro morreu, o segundo também e eu sobrevivi. A quarta morreu, a quinta sobreviveu. Sexto e sétimo morreram. Sobreviveram os que eu criei. Mas também não era aquela dor de ver morrer meus irmãos todos os anos, porque a cada ano era uma morte. Eu estava na escola e meu pai me levava para a casa, me sentava na cama e colocava meu irmão agonizante 36


no meu colo e ele ficava uma hora, duas horas, três horas até morrer em meus braços. Mas ninguém perguntou o que aconteceu com essa menina que ficava com uma criança agonizando no colo... Não posso acreditar que foi maldade de meus pais, porque com eles fizeram a mesma coisa. Daquele jeito a pessoa vai morrer mais tranquila e mais rápido, quando está próxima de um ser que ama. A morte para mim é algo que conseguiu machucar, conseguiu arruinar parte da minha vida. Agora aqui eu posso passar semanas, meses sem pensar na morte. É uma coisa muito boa. Sei que em algum momento eu vou morrer, mas não vou para cama e fecho os olhos imaginando que vai ser a última noite. Vou para cama planejando, penso no que vou fazer ainda. Tenho problemas como mulher, de extrema proteção. Sou muito protetora. Quando conheço alguma mulher eu começo a ser sua mãe. Meu marido falava que eu tinha um poder de manipular as coisas para que tudo fosse do meu jeito. É amor, proteção, porque eu não consigo não enxergar o perigo. Eu vejo, por exemplo, meus filhos e sou orgulhosa, feliz. Vejo a vida de cada um deles, tão capazes, tão fortes, centrados. Pessoas tão responsáveis. Me enchem de orgulho e força, e isso me permite imaginar que valeu a pena. Cada momento, cada luta, querer mudar a história valeu a pena. “(...) AGORA QUE EU TRAGO TODO ESSE PASSADO, EU NÃO TENHO IRMÃOS GUERRILHEIROS, TIOS GUERRILHEIROS, PRIMOS GUERRILHEIROS PORQUE FORAM MULHERES FORTES QUE ESTAVAM 24 HORAS TOMANDO CONTA DE SEUS FILHOS, HÁ MAIS DE 20 ANOS. ENFRENTANDO ESSAS PESSOAS, NÃO DEIXANDO QUE LEVASSEM SEUS FILHOS. DISPOSTAS A DAR A VIDA PARA DEFENDER SEUS IDEAIS E DAR O MELHOR.” Nós, como mulheres, sempre estivemos em desvantagem… Porque a guerra é para machos, para homens. A maioria das pessoas em um conflito são homens. As meninas sequestradas inicialmente iam para ser prostitutas, e para fazer o trabalho que os homens não faziam, como cozi37

nhar, limpar uma arma, tomar conta da roupa. Quando lembro do passado, das mulheres da minha família, eu trago de recordação os momentos mais lindos porque a minha mãe foi uma guerreira. Minhas tias, primas, todas essas mulheres tiveram muito caráter porque elas conseguiram que seus filhos não fossem atrás do conflito armado. Puderam fugir de todas as tentações diárias. Eles entravam nas escolas, estavam nas praças, onde você estivesse. Então não havia como fugir. Essas mulheres cheias de valores impediram isso, por isso falo que eu tenho uma fortaleza imensa, uma base muito forte de mulheres capazes, porque agora eu trago todo esse passado, eu não tenho irmãos guerrilheiros, tios guerrilheiros, primos guerrilheiros, porque foram mulheres fortes que estavam 24 horas tomando conta de seus filhos há mais de 20 anos. Enfrentando muitas vezes essas pessoas, não deixando que levassem seus filhos. Dispostas a dar a vida para defender os ideais e dar o melhor. Então eu vejo toda essa quantidade de mulheres da minha vida que são muito fortes. Eu não tenho como ser mais fraca. Quando eu me sinto fraca, lembro delas. De onde eu vim tem muita coisa linda, são muitos valores e muitas mulheres capazes de tudo, de mudar. Eu mudei a minha história do jeito que eu achei que tinha que ser, mas elas ficaram e mudaram a história também. E eu continuo aqui nessa correria, nessa vida, dando graças a Deus por cada momento de vida, por me permitir estar em um país que não me dá aquela sensação de guerra. Eu tenho vontade de voltar algum dia, mas não será agora. Eu acredito que é necessário estar muito preparada para poder aguentar. Eu ainda tenho muitas coisas para trabalhar em mim. Então, estou bem. Aqui é onde eu quero estar. E nos momentos quando tenho vontade de ir embora daqui… Eu trato de não desistir. Enxergar uma luz… E essa luz são meus filhos, meus netos. Eu me apego a eles quando entro nesses estados depressivos, naqueles momentos tão difíceis que passo.


mento surgiram outros refugiados vendendo comida. Surgiu o Chega Junto. Foi o esforço de Cáritas que sempre foi superimportante para mim. Cheguei com muitos medos, angústias, perdida. E comecei a me sentir segura, a sentir que realmente as pessoas se importavam comigo, e que valia a pena lutar. As pessoas esperavam que eu ficasse bem. Realmente, vender comida para mim é o momento que eu consigo estar com toda a família, é o momento que consigo trazer o passado para o presente sem angústia, sem medo, mas com prazer, com sabor. Eu consigo lembrar da receita de uma tia que sempre me cobrava por não querer aprender a cozinhar, da reunião de família, de primos, de crianças. Fazer comida é um momento no qual me sinto completa. Nesse momento eu não fico cansada, só quero fazer e oferecer para as pessoas, contar porque eu faço a comida desse jeito. Porque faço assim, como eu vi minha tia, primas, todo aquele passado... É desse jeito que eu consigo e quero continuar. Funciona como um tipo de terapia. É um dia de trabalho no qual eu não sou refugiada, eu sou simplesmente eu. Comida para mim é uma coisa linda, que me emociona, que me enriquece, que me enche como mulher, como ser humano. Porque consigo mostrar através dos temperos, das texturas e dos cheiros de onde eu sou e da onde eu não quero esquecer que sou.

Eu não me imaginava vendendo comida. Eu trabalhei 20 anos como docente em Bogotá, e depois vendi o que tinha, queria ser fazendeira. Aí fui comprar uma fazenda, ficar tranquila e pouco tempo depois meus filhos iam ser recrutados por um grupo das FARC. Então eu decidi escapar no meio da madrugada com eles, fugi. Recebi o meu documento de deslocada dentro da Colômbia. Tenho esse documento que milhões de colombianos também têm, pessoas deslocadas pela violência morando dentro do país. Isso foi tudo que eu recebi: uma ficha, um código, e um documento onde falava que eu era deslocada. “COMIDA PARA MIM É UMA COISA LINDA, QUE ME EMOCIONA, QUE ME ENRIQUECE, QUE ME ENCHE COMO MULHER, COMO SER HUMANO. PORQUE CONSIGO MOSTRAR ATRAVÉS DOS TEMPEROS, DAS TEXTURAS E DOS CHEIROS DE ONDE QUE EU SOU E DA ONDE EU NÃO QUERO ESQUECER QUE SOU.” Voltando ao Brasil, um dia a A., da Cáritas, me ligou e me convidou para vender comida em um evento. Alguma coisa fácil de comer na hora, e a primeira coisa que pensei foi em empanadas. Eu nunca tinha feito empanadas. Eu fui mãe solteira. Eu não tive apoio econômico nem emocional do pai dos meus filhos. Eu trabalhava para sustentar uma casa muito numerosa. Então aquela coisa de comida sempre foi como que, eu pago para que as pessoas façam ou vou ao restaurante e compro porque não há tempo para fazer. Ela disse que estavam esperando muita gente no evento. Fui no mercado e comprei tanto milho… eu não fazia ideia da quantidade. No dia eu cheguei com os meus filhos e as empanadas. Uma experiência muito linda, não esqueço. Todo mundo na expectativa de que eu estava chegando, uma refugiada vendendo comida do seu país. Então foi assim, a primeira refugiada vendendo comida típica aqui. E eu nem sequer sabia se elas estavam boas. Em 20 minutos acabaram as empanadas. E foi assim que começamos. Foi uma experiência linda e a partir desse mo38


DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA ANGOLA Já moro há nove anos aqui no Brasil. Aqui no Rio há cinco… Eu morei em São Paulo e depois eu vim para o Rio. Eu gostei mais do Rio que São Paulo. São Paulo é muito fechado, sabe? Aqui parece a Angola. Tem um outro clima, diferente de São Paulo. Aqui eu me sinto bem. A verdade é que aqui eu estou começando a construir a minha vida nova. Aqui é meu lugar. Eu gosto muito do Rio porque eu trabalho com cabelo afro e aqui tem muitas pessoas com cabelo assim. Sou de Angola, de Luanda. Eu nasci e cresci lá. Depois vim direto pra cá. Na época, o meu primo morava aqui, aí eu vim, mas eu não gostava muito de ficar no Rio, preferia São Paulo, pois foi onde eu encontrei amigos da Angola, e aí eu estava bem. Mas quando todo mundo viajou, foi para Europa, aí eu fiquei um pouco isolada, então eu preferi viver aqui no Rio. Eu trabalho em Madureira. Eu fiz curso de tranças em Angola, mas eu tava trabalhando com comércio de cabelo, de roupa, sapato… Aqui tô trabalhando sempre com cabelo. Eu adoro o trabalho que eu faço. A mulher tem que ser respeitada. Pra nós, no meu caso que sou transsexual, de onde eu vim acho que as pessoas entendem um pouco que o homossexual não é uma coisa que ele inventou, quis ser assim. É uma coisa natural; a pessoa nasce assim. Mas há outras pessoas que não entendem. Por exemplo, na África tem a Angola e tem outra parte que a gente é chamada de bruxa; é sério o preconceito. Tacam até pedra. Em algumas partes da África, os homossexuais são tratados com muito preconceito. Pra ter um pouco de liberdade, andar na rua, ir pra boate, pro baile, tem que ir pra Angola. Lá tem discri-

minação, mas é um pouco mais liberado, você vai andar um pouco mais à vontade. Aqui eu senti que eu nasci de novo, parece minha casa, sabe? Não tenho família aqui, mas eu me sinto bem. Eu prefiro ficar aqui que ficar na Angola. Me sinto bem, ando na rua, vou a um bar, em qualquer lugar. Um monte de gente respeita e poucos discriminam. Não é como na Angola. É diferente aqui, eu me sinto bem. Aqui eu tenho mais oportunidade de sair, de me divertir um pouquinho, de dançar, andar, eu me visto de mulher o dia inteiro. Mas aqui no Brasil é diferente; no Brasil você vai em qualquer lugar, não vem ninguém... aquela coisa de xingar, assim. Os que xingam às vezes são malucos, não batem bem. Eu acho que todo mundo respeita. Aqui é muito bom. E tem lei também, que não pode mexer com os homossexuais. As pessoas na rua, talvez um grupo de pessoas malvadas que passam, podem fazer algo, mas eu acho que aqui não acontece tanto; acho que aqui é mais controlado. Em Angola, você é agredida às vezes na rua, na frente do bar, vindo da boate, aquela coisa toda. Aqui é diferente. Em Angola eu tava passando na rua, eu com a minha amiga, e um cara tacou pedra, cortou a mim e minha amiga. Eu tenho uma cicatriz até hoje. Bom, com a minha família, na verdade, não tive muito preconceito quando me assumi homossexual e travesti. Eu não sou a única na minha família que veio assim do meu jeito. Na época eu não conhecia esse meu tio, que era o caçula da família da minha mãe, ele era homossexual, então na minha família não era uma coisa estranha. É uma coisa que a pessoa já tava ali, já tava acostumado. Mas em outras famílias isso é estranho. Minha mãe já falava, “Não 39



chama ele de homem não, ele é uma mulher!”. Minha família sempre me defendeu. Sempre. O preconceito com a gente acontecia na rua. A partir dos meus oito anos já era menininha, me vestia de mulher. Quando eu completei 10 anos, já comecei a entender a vida, como que é um pouquinho; com 12 anos já me vestia completamente de mulher, já usava meu cabelo trançado, um monte de coisas só de mulher. Eu moro com um cara que é meu namoradinho. E tem outro que tá junto comigo, parece casado, há seis anos já, mas ele tá preso. Eu visito ele em Água Santa, mas moro com esse outro já tem quase um ano. Mas meu coração tá na cadeia. Eu visito ele de 15 em 15 dias. Quando eu vim para o Brasil, eu morava em São Paulo. Eu tinha uma amiga que sempre que ela ou eu íamos para Angola, levávamos coisas uma pra família da outra. A gente fazia essa troca, se ela não vai eu levo a mala dela e deixo na família. Em uma dessas vezes, foi 2010 eu acho, ela fez uma coisa que a minha família ficou... até hoje eles não falam mais com a família dela. Porque eu fui presa por uma coisa que eu não fiz; eu não sabia o que estava dentro da mala. Afinal, a mala que ela me dava toda vez que eu levava, ela botava droga lá dentro, e eu levava pra ela. Sem eu saber. E nessa vez, em 2010, eu vim de São Paulo, cheguei no Rio, fiz check-in e a coisa toda. Não tinha nenhuma ideia que ia ser presa. Então eu fiz o check-in, depois a gente fica na sala de embarque pra esperar pra embarcar. Estava aguardando o meu embarque e eu vi a Polícia Federal vir e perguntar meu nome. Eu dei o meu passaporte e acompanhei eles. Eu não sabia o que tava acontecendo. Quando eu cheguei, eu vi que as minhas malas estavam de lado. A polícia começou a abrir e eu vi uns saquinhos. Era droga. Eu fui presa no aeroporto, fui presa no lugar da minha amiga. Quando a polícia foi procurar por ela, já não estava, já tinha sumido. Eu nunca mexi com droga, nunca vendi droga, não sabia como que era. Só vi naquele dia. Fiquei no presídio de Água Santa

quase dois anos e depois eu fiquei doente, com tuberculose. Fui internada no sanatório penal. Quando eu saí, tinha entrado um cara novo na minha cela. Foi assim que eu conheci ele, que estou há quase seis anos. Ficamos juntos dois anos em Água Santa, depois eu fui transferida pra Bangu. Em Bangu fiquei um ano. Quando saí descobri que minha mãe tinha morrido. Morreu de pressão alta, do coração, o que eu tenho também. Morreu um mês antes de eu sair da prisão. Liguei para minha irmã e ela queria que eu fosse para Londres, ficar com ela. Mas meu passaporte tinha sido confiscado e nunca me devolveram, então eu não tinha como ir. Sem passaporte não tem como viajar. Aí fiquei. Fiquei lá em Belford Roxo na casa de um amigo meu. Logo depois ele me deu um dinheirinho para alugar uma casa. Fui morar em Irajá, consegui uma kitnet perto de uma amiga e aluguei. Não tinha cama, não tinha nada. Só ganhei um colchãozinho pequenininho, mas foi bom que eu dormia. Não tinha ventilador. Eu comecei a dormir nessa casa, mas eu passava o dia mais na casa da minha amiga pra comer. E depois eu comecei a trabalhar, comecei a ganhar meu dinheiro, até hoje. Hoje eu ganhei um terreninho, fiz uma casinha pequenininha onde eu moro. É quase Pavuna. Então eu ganhei um terreno lá, uma amiga minha que ganhou, ela passou pra mim, ela mora em apartamento. “Esse terreno aqui, fica pra você; você faz alguma coisa aqui”. Na época eu não tinha muito dinheiro, fui comprar Madeirit. Fiz uma casa de barraco, mas um barraco grande. Fiquei assim uns quatro meses, depois eu consegui um dinheirinho, que eu tava trabalhando então economizava um pouco. Dei uma parte do dinheiro, eu fui vendo material e uma amiga minha também me ajudou. Ela comprou os materiais e eu fiquei devendo. Levou areia, levou ferro, levou pedra, um monte de coisas. Aí no dia seguinte o pedreiro já veio em casa e fez. Uma semana e a minha casinha já tava pronta. Onde eu moro até hoje. Foi rapidinho. Aí primeiro eu fiz um quarto, o banheiro e a cozinha. No ano passado eu botei mais um quarto à frente, 41


botei mais um banheiro, e a sala. Agora tem dois quartos, dois banheiros e uma salinha. Eu acho que o Brasil me abriu os caminhos, porque fiquei com muita depressão por causa da morte da minha mãe, eu... quase que eu morri também. A minha mãe, ela morreu de depressão. Porque eu estava presa, ela não queria que eu ficasse presa. Quando ela soube que eu estava presa, ela chorava todo dia, toda vez que eu conversava com ela eu também chorava, assim eu não aguentava. Aquilo ali que ela escutava que a gente passava na cadeia, mata a gente, a gente não tem uma alimentação. Ela botou na cabeça que eu estava sofrendo. Mas eu falava com ela assim “Fica tranquila, tudo vai dar certo”. Mas toda vez eu chorava. Quando recebi a mensagem do falecimento de minha mãe, entrei em depressão; fiquei magrinha. Eu saía de onde eu morava para Madureira a pé porque eu não tinha dinheiro para pagar ônibus. Demorava duas horas. Para chegar lá, cansada, e não ter cliente e tinha que voltar tudo de novo a pé. Mas depois tudo começou a mudar. Mudei de salão, comecei trabalhando no salão de uma amiga. Ela me deu muita oportunidade porque só de ganhar um pouco de dinheiro, dava pra melhorar a vida. Eu passava o dia inteiro sem comer nada, mas tinham outros congoleses que trabalhavam comigo e faziam as compras. E jantava na casa da minha amiga. Minha vontade era morrer também, chorando todo dia na casa dos outros, eu me sentia mal. Aí eu decidi ficar aqui.

Antes de ser presa, eu vinha ao Brasil para comprar as coisas. Eu viajava pelo Brasil, comprava algumas coisas e voltava de novo. Tinha uma lojinha onde eu vendia as coisas do Brasil na Angola. Muita gente de lá vem comprar as coisas aqui. Eu sempre fui uma pessoa que gosta de conversar muito com minha mãe, minhas tias, minhas amigas. Então quando eu fiquei presa, minha mãe não sentiu mais vontade de viver. Se eu voltar para Angola, eu não vou me sentir bem, não. Nenhuma coisa me faria mais ficar lá. Eu posso ir, tenho vontade de ver o túmulo da minha mãe, pra acalmar o coração, e tem a minha irmã também que está com saudade de mim. E depois volto pro Brasil, não quero mais ficar lá. Esse moço que tá na prisão, vou esperar ele sair porque ele disse que a gente vai se casar. Eu acho que eu quero me casar. Eu penso que se eu sair do país vou primeiro para Angola, depois volto ao Brasil, vou lá e volto pra cá. Lá eu não me sinto bem como aqui. Aqui tenho muitas amigas, uma família budista que me abraçou; eu me sinto segura também. Em Angola não tenho mais quase ninguém. Lá é meu país, adoro Angola, lugar que nasci, tenho família, mas não tenho com quem ficar mais por lá. Eu não tenho mais ninguém.

“SE EU VOLTAR PARA ANGOLA, EU NÃO VOU ME SENTIR BEM, NÃO. NENHUMA COISA ME FARIA MAIS FICAR LÁ. EU POSSO IR, TENHO VONTADE DE VER O TÚMULO DA MINHA MÃE, PRA ACALMAR O CORAÇÃO, E TEM A MINHA IRMÃ TAMBÉM QUE ESTÁ COM SAUDADE DE MIM. E DEPOIS VOLTO PRO BRASIL (...).”

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA COLÔMBIA Meu nome é N., tenho 39 anos (...). Não saí procurando ser refugiada, não saí procurando vir morar no Brasil, a vida escolheu que eu ficasse aqui. Mas não tem problema nenhum, eu gosto muito do Brasil, mas estou um pouco presa. Como se estivesse em uma cadeia, aqui no Rio. Mesmo que eu goste do Rio, mesmo que eu queira por enquanto estar aqui, eu não escolhi o tempo que eu estou morando aqui. Quando eu saí da Colômbia, eu não tinha o objetivo de chegar aqui no Rio, nem ao Brasil, nem a nenhum lugar do mundo. Eu sou artista plástica, meu esposo também, nós gostávamos muito de viajar. A gente teve que sair por causa do trabalho da gente, mais especificamente do meu esposo. Ele estava participando de oficinas em comunidades onde têm crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, como tem aqui também. Porque nós acreditamos muito na arte. Tivemos a oportunidade de criar nossos filhos com a nossa arte. É muito difícil fazer as pessoas acreditarem que se pode viver de arte. Muitas pessoas falam pra mim que preciso “procurar um emprego de verdade”. É difícil, mas dá! Nossa ideia, quando a gente saiu da Colômbia, era percorrer o mundo inteiro e depois de conhecer milhares de lugares, a gente ia escolher um, o melhor para nós, para morar. O problema é que quando nós chegamos aqui (problema e não problema, pois foi isso que nos levou a ser refugiados), o Brasil abriu as portas para nós. Pela condição e pelo motivo da gente ter saído da Colômbia, que foi por fazer oficinas em comunidades, a gente foi acusado de fazer parte de grupos de esquerda. Realmente foi meu esposo, mas quando um membro da família se envolve em um problema

assim, se envolve a família toda. Foi aí que a gente conheceu a palavra refúgio, aqui no Brasil. Chegamos a morar na igreja, que tem ali em Botafogo, o que foi bem difícil porque mesmo que tenhamos tudo que qualquer pessoa precisa – uma cama limpa, um lugar tranquilo –, comida, você primeiro fica assustado com a palavra refúgio. Você a princípio não sabe como é. E aí era conviver com pessoas de todo o mundo. Sírios, africanos... (...) Eu morei lá quase um ano. Foi um ano de aprendizado com meus filhos, mas foi lindo. A gente teve que ficar por causa do nosso carro. Porque a gente não queria ficar aqui no Rio. No Brasil, sim, mas no Rio, não. (...) Quando a gente solicitou o refúgio, falaram para nós que poderíamos manter o carro. Porque quando nós saímos da Colômbia, nós saímos em nosso carro. Atravessamos o Equador, Peru e Bolívia em nosso carro e falaram que conseguiríamos ficar com ele. Foram três anos e meio esperando. Fizemos o processo na Cáritas, que foi lá que nos acolheram na primeira vez. Mas quando fizemos a solicitação falaram que não poderíamos. Então o carro passou a ser ilegal. Agora o processo já tem três anos e meio, foi para a Defensoria Pública, depois para a Defensoria Federal e agora está no STF. Ainda não tem solução porque não existe uma legislação para quem chega de carro e solicita refúgio. Nós somos a primeira família na história que chegou ao Brasil de carro e solicitou refúgio. “HÁ CINCO ANOS EU ESCUTAVA A PALAVRA REFUGIADO E PENSAVA QUE SERIA LÁ NA SÍRIA, NO MEDITERRÂNEO, NOS BARCOS. AGORA EU VEJO O TEMA DE PERTO E VIREI UMA REFUGIADA.” 43



(...) O carro não foi comprado para aquela viagem. A gente teve que sair de um dia para outro. A Colômbia é o país que tem o maior número de deslocamentos internos no mundo. Você não tem nem medo, nem pena, nem nada, eles fazem parte da paisagem. E é feio, porque não é assim, são humanos como você, como seus filhos. Mas acontece lá. Os deslocados fazem parte da paisagem. Há cinco anos eu escutava a palavra refugiado e pensava que seria lá na Síria, no Mediterrâneo, nos barcos. Agora eu vejo o tema muito de perto e virei uma refugiada. Eu falo sempre para todo mundo: você pode ser também um refugiado. Por exemplo, nós, colombianos, faz 10 anos, a gente ia para a Venezuela. Agora nós estamos cheios de venezuelanos lá na Colômbia. Tudo pode mudar. Tava falando de deslocamento na Colômbia. Lá temos uma guerra há mais de 60 anos, entre militares, paramilitares, guerrilheiros, que não são só as FARCS. Muitos grupos. Eu, por exemplo, sou da capital, de Bogotá. Eu nunca achei que ia me deparar com o tema, assim, de refúgio, eu achava que era lá para as pessoas que moram na floresta. Mas, não. O L., meu esposo, ele sempre pintou. Ele já ganhou concursos de pintura, é um pintor maravilhoso. E ele tem muito reconhecimento lá. Tinha, já são cinco anos que a gente saiu. Mas ele tinha certo reconhecimento. Fez vários concursos, ganhou nome. Ele tinha um convite para participar como professor de pintura. Tinham danças, teatros, música, pintura... Ele ia dar voluntariamente oficinas de pintura. Ele deu duas ou três oficinas, mas o grupo, a galera, eles tinham vínculo político. Só que a gente não participava disso. Todo o grupo foi ameaçado. Primeiro, a gente se deslocou internamente e depois de um ano a gente voltou, achando que não tinha mais problema. Voltamos a fazer oficinas e então recebemos ameaças de novo. Foi meu esposo que recebeu. A princípio ele não me falou. Só me contou depois de um ano, porque a pessoa que havia feito o convite para ele

participar das oficinas foi morto perto da nossa casa. Então saímos com quatro mudas de roupa em uma mala e um carrinho menor. A gente tinha dois carros. Uma caminhonete maior, que era familiar, e o carrinho pequenino que era o meu, e que agora a gente perdeu. A maior era melhor para carregar os quadros, mas só tinha lugar para dois passageiros. Então, saímos com o carrinho. Atravessamos o Equador em 24 horas. No Peru, a gente ficou três meses. Bolívia foram seis meses. Entramos no Brasil. Aqui no Rio conhecemos a palavra refúgio. Aí falaram para nós “Refúgio é para pessoas como vocês, vocês fugiram da violência, né?” pra gente era tão natural que a gente não achava que era tão grave. A gente sofreu muito. Por exemplo, para tentar manter nossos filhos inocentes da preocupação. Quando você tem uma filha adolescente e dois meninos em um carro com muitas horas de silêncio, dirigindo e olhando, se questionando o que vamos fazer, com o pai calado... O J., que estava na escola e me perguntava: “mãe, mas por que vamos para tão longe? Mãe, como vamos fazer exposição se vocês não estão trazendo quadros?”. Mas bom, isso já faz três anos e meio. (...) O carro é mais o símbolo da liberdade no momento da luta, daquela viagem. Eu fico triste de deixar ele “morrer” nos pátios. Eu sei que ele não vai andar mais, mas ele nos trouxe até aqui, é muito. Eu queria muito pegar ele de novo, não sei, levar para um museu e fazer uma instalação com ele. Adoraria. Eu sei que muitas pessoas não compreendem isso, mas para nós, para nossa família, é importante isso. (...) ele trouxe a gente até aqui. As coisas materiais... eu falo sempre para meus filhos que eu era uma mulher que tinha uma parede só de sapatos. Se eu tivesse botas de couro amarelo, tinha que ter a bolsa amarela da mesma cor. Eu nunca tive muito dinheiro, mas sou vaidosa, então eu queria sempre ficar bonita. Agora eu tenho essas sandálias e eu sou feliz! Com jeans, com sandália, com vestido para ir à praia. E assim aprendemos todos a viver com o necessário. O que a gente perdeu 45


do. Eu estou muito orgulhosa da minha família e do que sou agora. Ser mulher e ser artista, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, vai ser sempre igual, porque isso eu já trazia desde menina. Mas o agregar da palavra refugiada traz a vontade de transmitir para outras pessoas a minha própria experiência e de outras mulheres refugiadas. (...) Porque a palavra refugiada, como já falei, pode ser um rótulo ruim, mas também pode ser uma forma de falar de sua própria experiência para outras pessoas. Como realmente é.

era uma ganância para todos; meus filhos tinham muitos brinquedos. Agora fazemos os brinquedos. E não é por ser refugiada e em uma situação vulnerável, eu consigo com meu trabalho comprar brinquedos para eles (...) é mais a forma que queremos que eles aprendam, que não precisam daquele monte de coisas para estar bem. Sobre o reconhecimento da minha arte no Brasil, na verdade, eu tenho mais reconhecimento aqui por ser refugiada que por ser artista. Eu não quero que me chamem de refugiada. Eu sou “Eu”. Sou mãe, sou artista, sou mulher. Eu sou muitas coisas. Eu não quero ter o rótulo de refugiada. Porque alguém me convidou para fazer uma matéria na época que eu morava na igreja e falou: “Estamos aqui com a refugiada...” E eu: “Não! Não fale isso. Porque eu passei a minha vida inteira tentando me fazer como uma artista. Eu não sou só esse status”. Eu acho que se eu tivesse a oportunidade de expor minhas obras em uma galeria, eu teria um reconhecimento bem maior, pela qualidade. Você pode achar até um pouco presunçoso o que eu estou falando… Mas sair e expor na rua não é fácil. Não é fácil só aqui, não, em todo lugar, eu acho. “PORQUE A PALAVRA REFUGIADA, COMO JÁ FALEI, PODE SER UM RÓTULO RUIM, MAS TAMBÉM PODE SER UMA FORMA DE FALAR DE SUA PRÓPRIA EXPERIÊNCIA PARA OUTRAS PESSOAS. COMO REALMENTE É.” O mais difícil, sabe o que foi também? Começar na rua, e subir. E nós fizemos o contrário. Na Colômbia tínhamos um certo conhecimento, e agora vendemos na rua. Mas agora somos melhores pessoas. Eu adoro a minha família como está agora. Eu adoro os meus filhos tocando violão, tocando violoncelo, o outro desenhando… Com a autonomia que precisam para estudar sozinhos. Agora eu estou feliz com o que os meus filhos estão se tornan-

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA ANGOLA Sou a G. e sou angolana. Cheguei aqui dia 21 de fevereiro de 2016, e grávida de quatro meses. Quando cheguei, vim passear com o pai da minha filha, mas decidi que ia ficar por causa dela, que estava dentro da minha barriga. Porque o que eu passei na minha infância, eu não quero que minha filha passe. A gente não morava em um bom lugar. A gente morava no Congo, em Kivu, a gente andou muito debaixo do sol. Quero uma vida melhor, em paz. Em 1992 tinha muita guerra em Angola e aí a gente foi pro Congo. Meu tio que nos levou. Enfrentamos muita dificuldade, a gente viveu muita coisa. Meu pai não tinha trabalho, minha mãe não tinha trabalho. Só que minha mãe fazia trança pra conseguir pagar o aluguel, pagar a escola, ela pagava tudo com as tranças que fazia. Ela chamou a gente, todo mundo pra ficar lá só pra olhar e aprender. Minha mãe falava “você pode não estudar, mas você tem que aprender alguma técnica para trabalhar”. No sábado e domingo minha casa ficava muito cheia, porque a gente fazia as tranças lá. Todo mundo fazia no mesmo modelo, chamado “nagô”. Aí a gente aprendeu. Só que quando tinha 10 anos, minha mãe fazia a maioria. Eu fazia uma e minha irmã uma, assim a gente conseguiu manter a minha família, a gente pagava a escola. A gente enfrentou muita dificuldade. Só depois que acabou a guerra voltamos para Angola. Mas em todo lugar que a gente ia chamavam a gente de estrangeiro, porque a gente falava francês, “você não é daqui”. Só que o que me levou até aqui foi que mataram minha irmã na frente da nossa casa. Pediram o celular dela, mas ela só falava francês, não

dava pra entender o que ela falava; eles pensavam que ela era estrangeira porque falava francês. Eles ficaram muito irritados com ela e mataram ela. Minha irmã tinha 18 anos e era muito inteligente. A família ficou muito chocada. Então a gente pensou onde é que a gente vai? Estávamos com medo. Esse tempo todo que a gente voltou do Congo minha família estava muito triste, então decidimos que tínhamos que passar algum tempo fora e depois voltar. Aí eu vim para o Brasil e pensei em tudo que passei na minha infância; eu não quero que a minha filha passe pelo que eu passei. Aí decidi ficar aqui. “(...) EU NÃO IA MAIS VOLTAR PARA ANGOLA, EU NÃO QUERIA QUE MINHA FILHA PASSASSE PELO O QUE EU PASSEI LÁ.” Aí meu marido falou que eu tinha que voltar, mas eu falei que não ia voltar! Eu consegui uma vaga na creche para minha filha quando ela tinha dois meses e disse que não ia voltar porque a minha filha já tá estudando. Aí ele ficou dois anos fora e acabou de chegar no Brasil, há três meses. Ele só conheceu a filha dele agora, porque ele não queria voltar para o Brasil, mas eu não ia mais voltar para Angola. A minha filha já estuda aqui, estuda de manhã e de tarde. Ela vai fazer três anos e está indo bem aqui. Minha família está toda na Angola. Eu estou no Brasil sozinha com a minha filha. Quando cheguei, passei por dificuldades, o que é normal; com essa dificuldade eu também aprendi muito. O tempo que eu tô aqui me fez aprender muito, como imigrante, com o povo brasileiro; aprendi muito com tudo. Aqui

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tem amor, recebem mesmo os imigrantes de braços abertos, com amor. Foi isso que encantou a gente, com essa alegria que todo mundo me recebe. Eu e minha filha, eles receberam a gente de braços abertos, me dá força, "G. isso vai passar, você vai estudar, a sua filha tem que estudar". Você pode não ter nada aqui, mas se você tem alguém que tá do teu lado aqui, que tem amor e companhia, você tem tudo! Porque se eu não tivesse a R., eu não ia chegar onde eu cheguei. Aí conheci a T.. Se a T. chega e diz “a G. tá lá, acho que tá passando mal”, aí a R. diz, “vamos lá, vamos saber o que aconteceu”. Aqui no Brasil tem uma segunda família que eu construí. Assim que cheguei foi difícil. Eu não conhecia a Cáritas. O dia que eu conheci a porta da Cáritas foi quando a minha vida mudou! A Cáritas é como meu pai e minha mãe. Você sabe que você pode contar com pai e mãe, que você tem tudo. Sou refugiada e a minha filha é brasileira, nasceu aqui no Brasil. Eles ajudaram a gente aqui. A Cáritas fez uma parceria com o SEBRAE para a gente estudar e conseguir certificado. Fiz o curso de empreendedora e depois fiz o curso de cuidadora de idosos. A maioria dos meus colegas, que estudaram comigo, acho que várias pessoas já estão trabalhando, só que eu não estava conseguindo porque precisavam de alguém para dormir no local e eu tava sozinha com a bebê. Só que para não ficar sem emprego pedi ajuda. Então como eu sabia fazer trança, eu comecei a fazer tranças, trabalhei no salão para ter dinheiro para passagem para levar a B. para a escola, para ter comida... Eu fui sentir o valor mesmo da mulher aqui, porque lá, no tempo da guerra, e até depois, você sabe que a cabeça da gente já não tava no lugar. E a mulher não é respeitada. Aqui a mulher tem muito respeito, você não pode bater na mulher. A polícia vai pegar você. Então isso me fez me sentir mulher porque todo homem africano que vem aqui tem que respeitar a mulher, ele não pode gritar,

não pode bater. Então o homem aprende que vai fazer isso, que tem que respeitar a mulher porque todo homem que é agressivo com mulher, ele é preso aqui. A polícia vai pegar você. Além disso, o brasileiro sabe respeitar uma mulher, uma criança. O pai e a mãe, sabe, têm carinho pelo filho. Acho que esse carinho não tem lá. A gente não conseguiu desenvolver isso nem em Angola ou no Congo. Depois eu entendi que isso que eu aprendi não é nada demais. Se você tem tempo para conversar com seu filho ou sua filha, perguntar como foi seu dia... A mãe conversa mesmo com a criança. Na minha terra não tem esse carinho, não tem essa conversa; tem muitas coisas mesmo que me fizeram ficar aqui. Eu também tô aprendendo como as mães brasileiras são com os filhos. Eu tô aprendendo para ser uma boa mãe, ser a mãe que eu idealizo na minha cabeça. Esse diálogo eu aprendi aqui, no Brasil. Eu quero ser uma boa mãe, quero ser amiga da B.; na rua, eu quero ser uma boa mulher, uma boa pessoa mesmo. Eu gostava da Angola porque você sabe que tem pai, tem mãe; acho que a família é tudo na vida da pessoa. Pode faltar tudo para você, mas você não pode faltar com a família. Se você não tem família, você não é ninguém nesse mundo! Só isso mesmo que me falta aqui; eu tô muito longe da minha família, mas o carinho que tô recebendo dos brasileiros consegue cobrir essa falta. Tá cobrindo tudo, comigo e com a B. Ela é bem-vinda na escola. A escola da B. é um presente na minha vida, eu não quero perder essa oportunidade. Ela estuda e eu a levo todo dia para escola, esteja chovendo ou não. É isso que eu quero para ela, está num bom caminho mesmo, essa é a minha felicidade. Ela vai fazer três anos, e ela fala português. Ela é um pouco tímida. Você pode falar o que for, mas a B. nasceu aqui; o português vai prevalecer na cabeça dela. E na escola também. A escola da B. também é minha família, é minha segunda família. Ali todo mundo conhece ela, todos os pais. Ela é muito inteligente. Cheguei aqui e eu senti muita 49


diferença nos serviços públicos. Porque na minha terra o meu pai pagava; tudo é pago. Se você vai para a escola, às vezes você passa o dia inteiro e você não come nada, não toma nem leite, nada. Você só come quando você volta meio-dia, e às vezes não tem. Às vezes você espera até cinco horas para comer, para segurar para dormir, mas a gente tava indo para a escola todo dia; chovendo ou não, a gente tava na escola. A maioria das escolas na África não tem comida incluída, não dá nada. Mesmo com essa dificuldade de não comer, a gente continuava indo para escola. Aqui o governo dá muita oportunidade; ainda tem que melhorar, mas dá muita oportunidade. Porque você não paga pela educação e nem pela comida. Você tem saúde de graça. Você tem essa oportunidade de graça, de levar sua filha para uma consulta médica... Você vai na escola, você não precisa pagar nada, o governo dá comida, dá tudo. (...) Você tem que ter muita paciência e tem que procurar muito as oportunidades. Eu pensei “minha filha tem que estudar, ela tem que ser uma mulher na vida; se eu não consegui chegar até lá, ela tem que conseguir”. Você tem que estudar muito para tirar esse complexo de inferioridade, para conhecer o mundo, para enfrentar as dificuldades. Não vou guardar minha filha em casa para botar na cabeça dela que ela é incapaz. Eu vou falar para minha filha que se ela estudar, pode ser tudo o que quiser; vai ser uma pessoa boa.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA GÂMBIA Eu acho que o que mais me chocou em relação às diferenças entre meu país de origem e o Brasil foi que aqui a mulher, independente de qualquer coisa, pode estudar se quiser, e também tem direito de escolher se quer casar ou não. Pra gente, lá, não tem isso, porque para os padrões da sociedade, para você ter valor, tem que ter o pacto matrimonial. Aqui a mulher pode fazer o que quiser, e eu já ouvi me dizerem que não é tão assim também, mas comparado a nós, eu senti que para a mulher, aqui, não tem idade para realizar o que quer. Para nós, gambianas, você pode querer uma coisa, mas a sociedade te obriga a entrar no sistema. “O MEU PROBLEMA NÃO É A DISPUTA DE QUEM VALE MAIS, SE É HOMEM OU MULHER, MAS QUE NÓS DOIS TEMOS OS MESMOS DIREITOS. A GENTE CRESCE PENSANDO EM QUANDO VAI CASAR E FAZER SEU MARIDO FELIZ, E ACABA NÃO SE IMPORTANDO COM VOCÊ MESMA, E EU TENHO ISSO DENTRO DA MINHA FAMÍLIA.” Na Gâmbia eu me sentia uma pessoa que nasceu dentro de uma cultura, mas que sempre quis questionar, não queria aceitar qualquer coisa. Sempre me perguntei por que as coisas precisavam ser apenas daquele jeito. No meu país o que me incomodava muito era a oportunidade nos estudos. O homem sempre era a prioridade e a mulher não tinha esse valor, o homem tem a opção de escolher e poder estudar, mas a mulher, não. Para casar, as pessoas falam, “a idade está passando, por que está solteira”? Seu valor é seu status matrimonial. Sempre me senti muito incomodada porque eu ficava me perguntando qual era a diferença da minha cultura para as das outras pessoas.

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A obrigação da mulher com o seu marido não era para ele me ensinar a ser boa esposa, mas a mulher também deveria ensinar ele a ser bom esposo. O meu problema não é a disputa de quem vale mais, se é homem ou mulher, mas que nós dois temos os mesmos direitos. Sua capacidade de fazer um trabalho, ou seja, você tem que ser reconhecido pelo que faz. A gente cresce pensando em quando vai casar e fazer o marido feliz e acaba não se importando com você mesma, isso foi o que ensinaram na minha família. Tem uma diferença em quem tem o mínimo de educação e quem não tem nem o direito de entrar na escola, então o mais doloroso é você ver as pessoas entrarem na zona de conforto, porque no meu país você é mentalmente criado para achar que se você quer sair daquilo, romper com o ciclo, você é uma pessoa má. Eu não tenho problema em me casar, ao contrário, eu gostaria de ter uma família, mas para mim o matrimônio não é o que o homem pode dar para mim, e sim o que a gente pode compartilhar. Sobretudo o respeito. Eu trabalho para pagar as minhas contas, não preciso me casar para alguém me sustentar. Uma coisa muito triste da Gâmbia é o nível de analfabetismo, principalmente nas famílias mais pobres, e se tem uma oportunidade de estudo quem vai ter é o homem. Se você é rico, você pode ter alguns privilégios. É muito complicado falar que conheço os meus direitos, seria mentira, porque antes de sair eu não tinha o conhecimento do que era o direito da mulher. Eu sempre fui ensinada que direito de mulher era ter muita paciência, era ter que ser uma pessoa perfeita para o marido. Só



saindo de lá eu tive a reflexão de que as coisas poderiam ser diferentes. Hoje estão tendo alguns movimentos, estamos querendo mudar, mas eu acho que o feminismo ainda é um tabu para os homens. Por exemplo, eu não conheço muitos movimentos de mulheres que falam desse jeito depois que saíram. Hoje tem mulheres que lutam de alguma forma, mas eu não conheço muitos movimentos feministas na Gâmbia. Eu aprendi a palavra “feminista” fora do meu país. Eu não sabia o que era ser feminista. Às vezes eu tenho esse problema de saber o que é feminismo, porque é muito amplo, mas o sentido pra mim se resume a uma coisa: eu quero o mesmo direito de qualquer outra pessoa. Eu não acho que eu deva ganhar menos que um homem, pois eu tenho a mesma capacidade de fazer o mesmo trabalho, e ainda somado com a condição de ser mulher, por exemplo, de ter que aguentar tudo… Assédio vinte e quatro horas por dia, por exemplo... É difícil ser mulher. Eu falo que ser mulher é muito difícil, mas também é muito gostoso. Eu amo ser mulher e não posso parar de ser feminista nunca. Aprendi que isso é um desafio e hoje eu ensino minha filha. Por exemplo, eu falo pra ela que você pode ser o que quiser na sua vida, mas tem que ir atrás disso, você não precisa de um homem para ser seu “príncipe”, pra te salvar, porque você é uma princesa também, que pode salvar um príncipe. Na nossa vida tem algumas situações que por ser mulher sofremos impactos maiores que os homens. Por exemplo, quando você sai de um país para outro sua necessidade financeira fica bem grande, e muitos homens acham que podem te oferecer algo em troca de… então, essas coisas foram muito chocantes para mim. Porque eu nunca vejo meu corpo como um instrumento de nada, só se fosse para dançar ou atuar, e não de outras formas. E isso é muito comum quando a mulher imigrante ou refugiada sai pra fora. Os homens falam: “Você é muito bonita, muito jovem, você está sofrendo porque você quer”. Me pergun-

tavam: “Por que você quer fazer o cabelo? Poderia estar fazendo outra coisa; ganha mais dinheiro”. Isso pra mim foi muito forte. A sexualização aqui é muito forte, por exemplo, “gostosa”, essa palavra me incomoda bastante. Não gosto de ser chamada assim. E ainda por ser uma mulher imigrante, refugiada, negra e, para completar, africana, é tipo… não vale um centavo. O valor de uma mulher negra no Brasil é triste, chocante e deveria ser falado. Até hoje me chocam as estatística de genocídio que bateram recorde. Não só com mulheres pretas ou brancas, mas os alvos também são os jovens negros que morrem com 15 a 24 anos, é assustador. Nós como mães de família, fico rezando pela minha filha; a gente sai e volta pra casa mas não sabe o que pode acontecer com a gente. E tem a negligência das autoridades também. No meu país a gente tem violência também, como bater em mulher, mas assassinato não é muito comum, e aqui é assustador. Matar uma mulher é tipo “Eu sou o cara” e ele é tratado assim… Isso é assustador. “EU APRENDI UMA COISA COM O MEU TEMPO AQUI, QUE A GENTE NÃO PRECISA SER FAMOSA PARA LUTAR CONTRA UMA COISA E QUE TODO MUNDO TEM ESPAÇO PARA LUTAR. E HOJE O QUE EU NÃO QUERO PARAR DE FAZER É LUTAR, QUERO LUTAR ATÉ O ÚLTIMO DIA DA MINHA VIDA. CORRER ATRÁS DOS MEUS SONHOS.” Hoje, o que tem muito a ver com quem eu sou foi pela Cáritas e pelo Abraço Cultural. Eu sou muito grata por esses espaços e por tudo que eu aprendi aqui, e pelas oportunidades que tive. Eu sei que é difícil inspirar os outros, eu sei que quero inspirar, mas uma coisa que eu aprendi é que nunca vou me calar. Porque eu me calei por muitos anos; toda a dor que eu tinha e nunca expus sobre a minha vida. Vivi muitas dificuldades e escondi um lado pela minha filha, mas eu escondi todo o sentimento e bullying que eu sofria, porque apesar de ser vítima, eu era malvista pela sociedade. Eu aprendi uma coisa com o meu

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tempo aqui, que a gente não precisa ser famosa para lutar contra uma coisa, e que todo mundo tem espaço para lutar. E hoje o que eu não quero parar de fazer é lutar; quero lutar até o último dia da minha vida. Correr atrás dos meus sonhos. A minha necessidade aqui é cuidar da minha filha e do meu irmão, e também das minhas irmãs que estão lá no meu país. A gente negligencia muito a importância da mulher na sociedade, as famílias africanas são movidas por mulheres. O poder e o respeito social é a verdade do homem, mas quem movimenta é a mulher, e hoje tendo essa consciência cada vez mais, eu sei que estou superando os meus medos e ainda tem muita coisa para lutar. É isso, vamos lutar contra todos e de todas as formas, não só pela violência, mas pelo nosso lugar de respeito. Ser mulher é ser o que mulher é aqui e lá na Gâmbia. As pessoas falam pra mim que eu não preciso me fechar pelas coisas que aconteceram na minha vida, mas às vezes para se abrir, pra mim, tem que valer a pena; eu não me abro para qualquer pessoa.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA VENEZUELA Sou uma pessoa simples, muito trabalhadora, que gosta de aprender. Sobretudo quando chegamos aqui no Brasil, foi quase um aprendizado por dia, coisas novas, porque aqui começamos a fazer coisas completamente diferentes do que fazíamos lá. Muitas pessoas aqui não conhecem, pensam que lá na Venezuela eu trabalhava com culinária, mas não; era só um hobby. Eu era técnica em informática, tinha minha loja e adorava meu trabalho. E outra coisa é que pensam que sou libanesa, não; eu sou venezuelana, nascida na Venezuela e sou filha de libaneses, a primeira geração. E sou muito grata com o que está acontecendo comigo aqui no Brasil. Chegamos em primeiro de outubro de 2015: há 3 anos e 8 meses. Sempre se sente saudades, da língua, dos amigos. E da sua família também, por mais que você esteja 100% aqui, você sente saudades da família. E da própria língua também, às vezes dá saudade. Eu já estou percebendo que às vezes, eu estou falando com eles lá e solto um, "Nossa Senhora, que é isso?". Estou falando portunhol, estou falando as duas línguas. E também as tradições que são completamente diferentes. Foi um processo que começou no início de 2015. Sabíamos que ia ser difícil, morávamos num povoado muito pequeno, então, chegar ao Rio já é algo muito diferente. Estávamos com nossos dois filhos. Quando pensamos que tínhamos que sair, foi um processo de nove meses, ajeitando documentos, legalizamos tudo, vendendo nossas coisas e sabíamos que seria algo totalmente diferente. Trocar nosso trabalho. Meu marido é engenheiro civil e eu técnica em informática, já pensávamos em trabalhar com culinária, já

estávamos nos preparando. E o maior temor era dos meninos não se adaptarem. O menor tinha só seis anos e iria pegar logo a língua e fazer amizade, porque nessa idade são como esponjas, aprendem tudo rápido. Mas o outro tinha 16 anos e não é meu filho, é filho do meu marido, mas aceitou vir com a gente. Graças a Deus deu tudo certo, não houve nada chocante, pois viemos preparados para a mudança. “O DINHEIRO ENTRAVA, MAS UM DIA EU LEMBRO QUE O QUE EU FIZ DE DINHEIRO NUMA TARDE NÃO DEU PARA COMPRAR QUEIJO E PRESUNTO. EU FIQUEI APAVORADA. (...) FORAM PEQUENAS COISAS QUE FORAM JUNTANDO, JUNTANDO... E TRANSBORDARAM.” Tínhamos visitado o Brasil em 2014 para a Copa do Mundo, nós quatro. Viemos os quatro por 40 dias. Eles gostaram muito e se sentiram livres. Nós ficamos sentados na praça só olhando as pessoas, a liberdade, a segurança que tinha naquela época. Meu marido disse que se nós ficássemos na Venezuela, nossos filhos não teriam futuro. Porque quando você está lá, você se acostuma ao dia a dia. Meu trabalho ia muito bem, mas houve uma virada econômica. Eu comecei a olhar as pessoas, os meus clientes de qualquer classe social que estavam na loja e se chegasse qualquer caminhão (porque perto havia mercados, muitas lojas de perfumaria) para descarregar mercadoria, as pessoas fugiam da minha loja porque elas preferiam fazer fila para comprar arroz, sabonete, shampoo. Então pensamos nos nossos filhos e depois as coisas foram piorando. O dinheiro entrava, mas um dia eu lembro que o que eu fiz de dinheiro numa tarde não deu para comprar

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queijo e presunto. Eu fiquei apavorada. É incrível que eu não possa comprar queijo e presunto com o dinheiro que eu fiz numa tarde. Foram pequenas coisas que foram juntando, juntando... e transbordaram. Ser mulher na Venezuela e aqui no Brasil é um pouco diferente, esta foi uma das coisas que me chamou muito a atenção. As mulheres são mais liberais. Muitas se desenvolvem, trabalham e são independentes, e de repente se querem ter 10 filhos têm; se não querem, não têm. Têm mais liberdade que lá. Elas vão em frente. Não esperam que um homem as mantenha ou que dependam deles financeiramente. Também tem muita proteção para as que sofrem maus-tratos, tem muito mais campo político e tem mais mulheres com voz política que lá. Tem mulheres em postos de gasolina, lá é muito difícil ter uma mulher trabalhando num posto de gasolina. Aqui há mais igualdade. Apesar de agora haver essas campanhas contra maus-tratos, essas coisas, elas se apoiam entre elas mesmas. Mais união. Meu esposo sempre dizia, "M. é filha de imigrantes, para ela é mais fácil". E eu lhe dizia: "isso não se passa pelo sangue, tu não és imigrante porque seu pai foi imigrante." Mas com o passar do tempo eu me pus a pensar, passei uns quatro ou cinco meses pensando nisso. De repente, as histórias que o papai contava de quando ele chegou à Venezuela, ele dizia que ele tinha que vender com mala, ir a povoados distantes... Eu quando saí da Venezuela, nunca pensei que seria para o ruim. Se ficássemos havia mais possibilidade de que fosse pior. Então, se meu pai com tudo que passou não sabia ler, não sabia escrever, não sabia falar a língua e levou toda a sua família para lá, por que nós que estamos preparados não podemos? Isso influenciou muito, meu pai ser imigrante, essa liberdade e essa coragem. É preciso coragem. Se você vai migrar não pode ir com uma mente negativa, não pode esperar que todas as pessoas ajudem somente

porque sou refugiada. É necessário ir dando passos pequenos e ir aprendendo, e não esperar que os brasileiros se adaptem a nós, porque é o refugiado que tem que se adaptar ao país, porque somos nós que estamos em outro país; então precisamos aprender a língua, as regras. Não somos imigrantes normais, não decidimos vir ao Brasil, depois à China, depois voltar para a casa. É um país que nos abriu as portas, estão nos recebendo. Chegamos aqui em outubro de 2015 e desde então renovamos o protocolo quatro vezes, podíamos ter CPF e carteira de trabalho, mas não podemos alugar um apartamento porque não temos RG. E o protocolo lamentavelmente não vale na prática. Abrir uma conta no banco também não é fácil, pois é necessário RG e a Declaração de Residência, e não temos nada em nossos nomes. Aguardamos também uma entrevista com o CONARE. De um ano para cá, os venezuelanos têm a opção de um visto temporário de dois anos no Brasil ou de solicitar refúgio. Meu filho mais novo, infelizmente, não tem documentação, pois só pode tirar RG com sete anos de idade na Venezuela, e o passaporte dele venceu. Por isso, não podemos desistir da solicitação de refúgio. Temos que esperar que o governo brasileiro aceite a solicitação. Aqui meu coração está mais em paz em relação aos meus filhos. Porque além dos problemas políticos com o governo Maduro, há graves problemas na educação. Tenho um sobrinho que é estudante na Venezuela e quando não há luz, não há aulas; quando não há água, não há aulas, a falta de segurança também é um problema. A universidade para, o transporte é caríssimo e nem sempre há transporte. Realmente na Venezuela eles não teriam futuro, porque sem luz não teriam como estudar ou jogar futebol. O problema não é mudar o governo, é mudar a mentalidade, os valores do venezuelano. Dizem também que para que a Venezuela seja como antes, precisa de ao menos 20, 30 anos. E mesmo com a ajuda econômica de outros países, são muitas coisas para mudar. Então não acho justo 57


tirar meus filhos daqui, já que estão encaminhados, para começar de novo na Venezuela sem as mesmas coisas que teriam aqui. Eles estão adaptados, será como um retrocesso para eles. Acho que, por enquanto, vamos ficar aqui. Acho que se eles voltassem para Venezuela agora, seria mais difícil para eles ficar na Venezuela do que foi para vir para o Brasil. O brasileiro é receptivo, muito receptivo. Se precisamos de ajuda para encontrar um endereço, fazer algum trâmite, para fazer alguma coisa, tentam nos ajudar. Aqui buscam uma maneira de ajudar, lá fora “não é não”. Aqui sempre dizem “vamos ver o que podemos fazer”. Eu sempre fui independente, tinha uma loja, um trabalho, casei com um venezuelano, nunca me achei limitada para fazer algo. Conheci meu marido pela internet. Aqui estou trabalhando com o que gosto como lá também estava. Meu marido sempre põe o meu nome, o empreendimento está no meu nome, mas é de nós dois. Me sinto independente e livre como me sentia na Venezuela, então não faz muita diferença, mas sinto que apesar disso, aqui tenho um pouco mais de liberdade. Tenho liberdade para trabalhar, facilidade de conseguir as coisas. Sinto que posso fazer qualquer coisa que imaginar. Liberdade também significa meus filhos estarem estudando e jogando futebol. São pequenas coisas que não tinha em meu país.

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DE UMA MULHER EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DA VENEZUELA Eu sou da Venezuela e saí no ano de 2015. Me formei na Venezuela, fiz faculdade de Biomedicina. Eu fiz a prática funcional lá e o exercício da minha profissão. O panorama político foi continuamente fechando portas e portas, obrigando as pessoas, realmente, a saírem de lá. Em 2014, teve uma manifestação lá no meu país. Eu não concordava com as ideias que eram propostas na época. No dia 12 de fevereiro se comemora o “Dia da Juventude” na Venezuela. Há mais de 300 anos houve uma grande batalha contra os espanhóis, na época da colonização, sendo que quem foi lutar nesse dia foram os estudantes, foram muitos jovens, por isso se comemora "O Dia da Juventude”. Foi uma vitória da Venezuela naquele momento. Naquele dia me chamaram para uma manifestação, uma concentração. Eu não participei, eu não estava no país naquele momento, mas o resultado daquilo foram vários dias de protestos na rua. Eu fui jogadora de futebol profissional, eu me formei na Venezuela e eu ganhei bolsa para estudar lá e continuar jogando. Joguei na seleção da faculdade e na seleção nacional. Três ou quatro dias depois do dia 12, eu cheguei à Venezuela. Quando peguei o jornal, uma das minhas companheiras tinha sido assassinada. Eu reconhecia as fotos de todos os meus companheiros de jogo. Quando a Venezuela começou a ser ainda mais reprimida, todas as redes sociais, a informação era muito dispersa. Eu acho que aqui eu sei muito mais do que acontece lá do que a pessoa que mora no meu próprio país. Tudo é muito controlado, quase

ninguém tem acesso à internet. Ter certeza, realmente, do que é certo e o que aconteceu, é muito difícil. Parecia mentira que poderia ficar pior, mas ficou. Nesse dia, eu fiquei muito chocada, porque eu sabia que se eu estivesse no país, naquele momento, esse episódio poderia ter acontecido comigo, com certeza absoluta. O governo do país admitiu que quem se manifestasse iria morrer. Foi um governador do Estado onde eu morava, e ele falou, em entrevista nacional, que quem fosse ao protesto era responsável pelo que pudesse acontecer. Em 2014 eu já tinha laboratório próprio, trabalhava com quatro clínicas e alguns médicos, porque me formei na área de pesquisa contra o câncer e você tem a possibilidade de supervisionar o seu próprio laboratório. Você pegava as amostras que eles faziam e você fazia as análises e entregava com o resultado, mas com tudo o que estava acontecendo, a parte da saúde foi bem afetada. Os insumos e tudo na área da saúde é pago em dólar. Na Venezuela não se vende dólar e não se consegue comprar em nenhum lugar. Assim, não conseguia abastecer e tinha 2.500 pacientes que precisavam do resultado e de acompanhamento. No final, eu não iria conseguir fazer tudo aquilo. A gente conseguiu se dividir entre vários colegas, porque o ganho econômico era o de menos; você se forma para crescer profissionalmente. Mas quando você está na área da saúde, você não somente fala de dinheiro, você tá falando de pessoas. Então. era muita responsabilidade. Profissionalmente, me senti muito limitada e muito frustrada. Eu estava lá pra fazer algo que eu poderia fazer, que sabia que podia, mas não tinha como. Pensar que 59



todos estavam lá para fazer o bem, mas não er a mais possível. No final do ano de 2014, eu saí da Venezuela. Meu irmão viajou primeiro que eu. Eu ainda fiquei passando os documentos pelos ministérios de lá. Eu consegui comprar a passagem dele e ele chegou no Brasil e comprou a minha. Só viemos eu e meu irmão. Se você não conhece ninguém, você sofre um pouco mais. A gente veio pra cá sem falar nada, sem nenhum tipo de contato com o português. A primeira vez que eu ouvi o português, eu nunca vou esquecer. Foi numa praia na minha cidade. Eu nunca vou esquecer, porque a menina falou “obrigada", e eu pensei, "isso tem que ser gracias”. Eu cheguei no Brasil só falando obrigada mesmo. Para tudo eu respondia “obrigada”. Quando eu cheguei, pesquisei sobre alguma quadra de futebol, para ter alguma compensação emocional, porque era a única coisa comum que eu conseguiria fazer, enquanto eu me adaptava, falar, arrumar um emprego, alguma coisa. Aí eu fui, e a menina falou, "você só concorda hein, não importa o que esteja falando, só concorda". Passei três meses concordando. Eu fui muito impactada por muita coisa no Brasil. Vocês são o coração da América do Sul, mas muito distantes! Vocês não sabem nada do que acontece fora; é um país muito grande. Vocês não sabem o que acontecem lá no norte do país, imagina nos outros países da América... A coisa que eu mais me impactei aqui foi o racismo. “(...) NESSE MOMENTO A GENTE NÃO PRECISA CONSTRUIR BARREIRAS, OS MUROS JÁ ESTÃO FEITOS E A GENTE PRECISA DESCONSTRUIR E NÃO CONTINUAR COM ELES.” Mas vocês são vistos como um país muito receptivo na mistura de raça de todo tipo, sendo que eu vi aqui uma classificação que não esperava. A única vez que eu precisei preencher um documento onde eu tinha que me identificar com tipo de raça foi aqui. Já

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preenchi muitos documentos e nunca preenchi isso. Então fiquei pensando “qual é a minha raça? Humana não tem aqui". Foi uma coisa que me chocou e passei muito tempo tentando entender. É muito fácil falar que no meu país não existe racismo. Mas acho que sempre existiu, só que antes eu não percebia. Não sei se é pra enganar ou dividir, mas com certeza foi feito pra alguma coisa. E nesse momento a gente não precisa construir barreiras, os muros já estão feitos e a gente precisa desconstruir e não continuar com eles. Eu vi uma grande diferença também entre o que é o feminismo e o que é o machismo. Aprendi com essas palavras, e o que significam certas lutas que são feitas aqui muito mais profundas do que lá, e que obviamente tem que ser feitas. Às vezes, eu como mulher sinto, sabe… eu fico muito emocionada! Lá esse tipo de movimento não existe tão profundamente ainda. Eu achava que era porque os direitos eram muito mais iguais, mas agora eu acho que não é! Eu penso um pouco diferente… Não é porque somos muito iguais, mas é porque não paramos para reparar na diferença real e quais são os números reais, porque tudo é baseado em números. É uma coisa que eu não sei até onde eu era inconsciente do que estava acontecendo. Alguém me falou uma frase, eu tinha menos de um ano aqui, e isso marcou minha vida, porque ela falou “K., você é mulher, preta, gay e estrangeira; você perdeu tudo!”. Nunca me passou que eu fosse um número. Eu me recuso totalmente a ser parte de um número! Tipo… Você pode classificar o que você quiser, como quiser, porque você foi criada e educada, socialmente e culturalmente, tendo que se classificar dentro dessas coisas; eu não sou parte disso. Analisando friamente, claro que sim. Agora que eu sei que eu sou negra, porque quando eu li naquele papel, eu pensei, "branca eu não sou". Eu sou negra! (...) Eu estou num lugar onde eu sou mulher - MINORIA, preta MINORIA, e ainda estrangeira; não tem como eu ganhar aqui.


“HOJE, EU NÃO TENHO UM LUGAR PARA VOLTAR, SIMPLESMENTE NÃO EXISTE! NO PAÍS QUE EU CONHEÇO, EU SOU APÁTRIDA, CONSIDERADA PARTE DA OPOSIÇÃO, EU NÃO TERIA POSSIBILIDADE DE VOLTAR PRA LÁ E TER UMA VIDA NORMAL.”

defeitos de latino-americano é ter a memória curta. Por isso que a gente repete os mesmos erros. Penso que toda vez que um deles cai ou morre, eu sempre penso que, com certeza, um deles seria eu. Meu pai falou pra mim, “eu prefiro você longe daqui do que morta”. Tem quatro anos que eu não vejo eles. Economicamente também é frustrante. Aqui eu não consigo validar meu diploma, então eu tenho que trabalhar apenas no que eu conseguir ter uma oportunidade. Eu acho que não voltaria, imediatamente, porque depois desse caminho andado até onde eu estou, preciso aprender muito mais. E a experiência de ter morado quatro anos, já é uma experiência grande, dá pra você acrescentar bastante dentro da sua cultura como tal. É uma coisa que agora já sei que não tá tão certo como eu achava, mas com certeza eu voltaria. Não imediatamente, ou talvez sim! Tem que valer muito a pena todo o sacrifício que foi feito nos últimos anos. Eu perdi tanta coisa, que eu só tenho que tentar dar mais do que eu perdi. Eu devo muito ao Brasil! Vocês precisavam conhecer a Venezuela que eu conheci, mas vocês não vão conhecer o país que conheci porque tudo mudou. Agora, em todo lugar do mundo tem um venezuelano. Todo país do mundo tem pelo menos uma pessoa falando que arepa é a melhor coisa do mundo. (...) E ainda há resistência na Venezuela. Porque tem uma galera que não tem muitas possibilidades. Eu tenho um orgulho enorme, orgulho e respeito total por essas pessoas. Porque às vezes, eu vejo quando fica aquela tensão, aquela coisa que você só vê no Twitter. A única rede onde conseguimos informações na Venezuela é o Twitter. Tem estados que passaram 60 dias sem luz. Eu tenho um amigo que se formou comigo, fez medicina, e ainda tá lá. Ele trabalha no hospital de neonatos. Foram 132 crianças recém-nascidas que morreram nas primeiras 24 horas... por falta de sonda, por falta de condições. A única forma de você saber isso era no Twitter. Eu

E depois de tanto tempo tendo tantos amigos e todas as pessoas que conheci na Venezuela, se eu voltar lá hoje, eu não acho ninguém. Todos estão fora! Meus amigos mais próximos não estão lá. Se eu volto pra lá, só vou ter meus pais. O resto, socialmente falando, não tem ninguém! Todos estão espalhados, não conseguiríamos tomar um café juntos, porque estão em continentes diferentes. Hoje eu trabalho numa loja de lembrancinhas do Rio, todos que entram são “gringos”. Uma ideia tão ridícula que tem alguns estrangeiros no Rio é que você pode vir para o Brasil e a mulher é parte das coisas que você pode tocar, ver, ou tomar. É revoltante! Agora eu sou parte desse conglomerado. Eu sou migrante forçada e meu plano de vida não tinha nada a ver com o que eu estou fazendo agora na minha vida! Se eu falar com alguém que eu tinha contato há uns 20 anos e dizer o que estou fazendo aqui, a pessoa vai falar que estou louca. Eu queria morar em outros países, mas era ir e ter um lugar para voltar; hoje eu não tenho um lugar para voltar, simplesmente não existe! No país que eu conheço, eu sou apátrida, considerada parte da oposição, eu não teria possibilidade de voltar pra lá e ter uma vida normal. Eu me sinto uma exilada! E até aquele panorama não mudar, eu não tenho casa pra voltar. São duas coisas totalmente diferentes, quem decide ficar num lugar por decisão própria, ou sair para ter uma melhor oportunidade. Esse não é o meu caso! Sair foi a minha melhor opção, porque simplesmente eu iria levar um tiro, com certeza! Cada vez que tem uma manifestação na Venezuela, TODA VEZ, TODO DIA, e tem alguma notícia de alguma pessoa… eu guardo notícias, porque eu acho que um dos nossos

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acompanhei vários acontecimentos até que deixei de acompanhar porque eu fiquei louca, passei quatro dias sem dormir. Porque era tão estressante; meu pai, minha mãe, minha família tá lá. Se acontecer alguma coisa com eles, simplesmente acaba. Não tem muitas opções. E o desespero aumenta, e a criminalidade aumenta. Imagina você tá no seu bairro, tem três dias sem luz, e você tem um gerador elétrico na sua casa, você tem luz. O que você acha que pode acontecer na sua casa? São coisas que infelizmente ficam na sua cabeça. A resistência são essas pessoas que sabem que não vão conseguir aguentar mais tempo. O que tá acontecendo agora lá é o final do final. Eu às vezes acordo pensando, “eu tenho que estar lá”. Por que qual é a luta que eu tô fazendo? Nenhuma. Eu sinto muito isso. Aí penso “como é que eu vou falar pro meu futuro filho que eu tava em outro lugar quando coisas estavam acontecendo?”. Você não pode tirar a vontade de alguém de fazer o que sabe que tá certo, porque eu fazia. (...) Sim, protestando, “o que houve?”, “nada”. E esse nada é uma dor no coração muito grande, porque parece que é nada, não avança. Não é de hoje para amanhã, uma luta tão grande, a gente está há tanto tempo esperando, há tanto tempo fazendo, tanto tempo lutando, que quando nada acontece... Foram dois milhões de pessoas na rua e não aconteceu nada. Aí penso que é um respeito tão grande, um orgulho tão grande que eu sinto pelas pessoas que ainda hoje saem na rua. Você sai porque ou morre de uma bala ou morre de fome. E isso aí não tem como você agradecer, por isso que falo que tenho que seguir aprendendo, porque eu tenho que retribuir de algum jeito, alguma coisa, eu tenho que inventar alguma coisa para retribuir toda a luta que eu não fiz nesse momento lá. E eu sinto orgulho das pessoas que saem para trabalhar. Meu país tem pessoas que ainda saem para trabalhar; meu pai sai para trabalhar, mas ele não ganha nada pelo seu trabalho, pelas suas

oito, nove horas de investimento, não ganha nada.. porque esse é o salário mínimo: dois dólares, oito reais. E o quilo de feijão tá valendo mais ou menos uns trinta reais. Como é que você compra feijão? O pior, o mais impressionante, é que a pessoa consegue fazer alguma coisa pra sobreviver. Isso é resistência. É uma possibilidade, sabe... Tem pessoas que ainda falam, acreditam nos processos. Quem ainda acha que tem democracia, acredita na diplomacia, acredita em não ter que dar um tiro no outro. Eu gostaria que qualquer pessoa que duvida do que está acontecendo na Venezuela fosse lá agora. Ela nunca mais vai pensar isso. Porque a ideia é boa, eu sei, eu conheço, eu leio. As ideias são boas, mas na prática não é isso. A prática inclui você querer que outras pessoas acreditem nelas da forma que você acredita. E às vezes você tem questionamentos. (...) se você não concorda, você é um opositor. Você é um inimigo. E eu me tornei um inimigo do meu país sem saber. Qual é a saída? É fazer guerra? Porque guerra já existe, o genocídio já existe. Milhões de pessoas morrendo. Não é humano. A história vai nos condenar por isso. Às vezes eu fico revoltada. Temos os mortos, temos privações, temos a perda da qualidade de vida, a perda humana, mas a gente nunca atirou em ninguém, a gente nunca quis tirar nada de ninguém, sabe? Acho importante pra todos nós falar do que acontece lá, e por que a gente chegou aqui. (...) a gente tem que aprender com o que a gente viveu. Não é possível que a memória seja tão curta.

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M &


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