A BÍBLIA FALA HOJE
A Mensagem dA
MISSão A Glória de Cristo em todo o tempo e espaço
Howard Peskett e vinoth ramachandra E D I T O R A
A MENSAGEM DA MISSÃO Traduzido do original em inglês The Message of Mission Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra Direitos reservados pela ABU Editora S/C Caixa Postal 2216 - 01060-970 – São Paulo, SP E-mail: editora@abub.org.br Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a permissão escrita da ABU Editora. Tradução: Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra O texto bíblico utilizado neste livro é segundo a Nova Versão Internacional (NVI), da Sociedade Bíblica Internacional, exceto quando outra versão é indicada. Foram citadas, sempre que possível, as versões da Bíblia em português que mais se aproximam do sentido do texto bíblico em inglês. Nos casos em que não há uma correspondência, foi feita a tradução da citação, com a menção da fonte original. 1a. Edição: 2005. A ABU Editora é a publicadora da ABUB - Aliança Bíblica Universitária do Brasil. A ABUB é um movimento missionário evangélico interdenominacional que tem como objetivo básico a evangelização e o discipulado de estudantes (universitários e secundaristas) e de profissionais, com apoio de igrejas e profissionais cristãos. Sua atuação se dá através dos próprios estudantes e profissionais, por meio de núcleos de estudo bíblico, acampamentos e cursos de treinamento. A ABUB faz parte da IFES – International Fellowship of Evangelical Students –, entidade internacional que congrega movimentos estudantis semelhantes por todo o mundo.
Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Peskett, Howard A mensagem da missão : a glória de Cristo em todo o tempo e espaço / Howard Peskett, Vinoth Ramachandra ; [tradução Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra] . — 1. ed. — São Paulo : ABU Editora, 2005. — (A Bíblia fala hoje : temas bíblicos) Título original: The message of mission. ISBN 85-7055-066-9 1. Missões - Ensino bíblico I . Ramachandra, Vinoth. II . Título. 05-9106 Índices para catálogo sistemático: 1. Evangelização : Missões : Cristianismo 266 2. Missões : Ensino bíblico : Cristianismo 266
CDD-266
Índice Prefácio Geral Prefácio
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Parte 1. Horizontes mundiais 1. A glória de Cristo (Colossenses 1:15-23) 2. Vida e domínio (Gênesis 1:26-31; 2:15-20) 3. O Deus incomparável (Isaías 44:24 - 45:25) 4. A Palavra feita carne (João 1:1-18)
15 17 31 51 65
Parte 2. Os propósitos internacionais de Deus 5. Escolhidos para abençoar (Gênesis 12:1-4) 6. Um povo distinto (Deuteronômio 10:12-20) 7. Um servo ressentido (Jonas 1-4) 8. Um servo disposto (Isaías 49:1-26)
81 83 99 115 129
Parte 3. Missão triúna 9. A liberdade trazida por Jesus (Lucas 4:16-30) 10. O mandato dado por Jesus (Mateus 28:16-20) 11. O caminho ordenado por Jesus (João 12:20-26; 13:34-35) 12. O Espírito da missão (Atos 2:1-47) 13. O modelo de missão (Atos 19:8-41)
141 143 157 175 191 207
Parte 4. Doxologia 14. A consumação da canção da criação (Salmo 104) 15. Certezas do novo pacto (Apocalipse 21:1-22:5)
221 223 239
Guia de Estudo
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Prefácio Todas as missões cristãs têm raiz e fonte no Deus que adoramos, revelado na Escritura como Pai, Filho e Espírito Santo. Antes de qualquer envio humano (e a raiz da palavra “missão” significa “envio”) nos maravilhamos com gratidão perante o Deus que mandou seu Filho por nós e perante o Filho que nos mandou seu Espírito. Foi Javé, o Senhor, o Deus do pacto com Israel, quem chamou todas as nações a si com as palavras “Voltem-se para mim e sejam salvos, todos vocês, confins da terra; pois eu sou Deus, e não há nenhum outro” (Is 45.22). O privilégio e a responsabilidade da igreja é testificar por sua vida e testemunho de Jesus Cristo, o Filho único de Deus, crucificado, ressurreto e glorificado, cumprindo as profecias do Antigo Testamento. A igreja pode cumprir sua missão apenas ao ser dinamicamente capacitada pelo Espírito Santo, presença vivificadora de Deus; e a igreja é mais efetiva em sua missão quando seus membros estão em contato contínuo e vivificante com o Espírito Santo, e quando esses encontros com Ele são integrados à vida da igreja. E a igreja é, em seu próprio ser, uma igreja missionária, ao compartilhar a vida divina de um Deus que envia. Este livro está fundamentado no desejo de que Jesus Cristo seja glorificado mais e mais na igreja e no mundo, e na expectativa ansiosa de que um dia toda a criação será consumada nele, e Deus será tudo em todos. Outra convicção que nos baliza é que a grande narrativa da Bíblia é corretamente resumida na frase “Deus cria e escolhe um povo para si, para que seja glorificado em todo o mundo”. Assim, é perfeitamente apropriado que escolhamos quinze trechos bíblicos, de acordo com o projeto desta série, todos convergindo de algum modo para este tema. Assim nos opusemos àqueles que negam a existência de alguma grande narrativa, e que acreditam que a Palavra é um piquenique ao qual o intérprete pode trazer qualquer significado que queira. Não negamos que todos os leitores tragam à sua leitura certos pressupostos que podem ser mais ou menos adequados. Mas acreditamos que os leitores podem pressupor que com certeza há mais no texto que o reflexo de suas próprias faces. Estruturalmente, o livro é organizado de modo bastantes simples. Quatro capítulos na parte 1 estabelecem os horizontes mundiais de nosso tema. Duas passagens extremamente importantes do Antigo Testamento estão contidas
A mensagem da missão
Peskett e Ramachandra
ou ressaltar significados em particular. Esperamos que o leitor sempre leia o texto bíblico antes e durante nossas exposições. Missão não é um “extra” opcional para alguns poucos voluntários que “gostam desse tipo de coisas”. A igreja militante é o povo de Deus, o corpo de Cristo neste mundo, chamado a ser agentes e representantes de Deus, uma comunidade a quem se ordenou reproduzir e crescer para que Jesus Cristo seja mais e mais glorificado. Devemos também enfatizar que a missão cristã nos leva vez após vez aos pés da cruz: toda missão cristã deve ser moldada pela cruz; a cruz nunca deve estar atrás de nós, mas sempre à nossa frente. Por isso, chamamos a atenção vez após vez para a missão dos desfavorecidos, a conexão entre missão, sofrimento e mesmo martírio; e a importância da missão vinda da fraqueza, maneira pela qual ela foi conduzida na maior parte da história da igreja. Este é um livro de exposições bíblicas, não um documento de estratégia missionária. Executivos de missões não encontrarão aqui quaisquer planos detalhados de ação, embora interajamos com importantes temas consagrados da missão efetiva; por exemplo, a importância da identidade e sensibilidade culturais, grandes cidades necessitando de Deus, a importância da missão integral, a conexão da missão com a ética, o poder da comunicação coloquial das boas novas. Embora não sejamos pluralistas teológicos, enfatizamos a necessidade de conhecimento detalhado das pessoas que seguem outros credos (e simpatia para com elas), e o entendimento dessas crenças em si. Também interpretamos o termo “missão” amplamente, mais amplamente que algumas agências missionárias e evangelísticas acharão confortável. Fomos levados a essa amplitude de interpretação por uma reflexão leal sobre as próprias passagens bíblicas. Assim, falamos do valor do ser humano e de direitos humanos, de igualdade social e valor do trabalho humano, da mordomia da terra e da integridade da criação, da terra de Israel, das distinções de cor e casta na igreja, e de ecumenismo evangélico. Acima de tudo, escrevemos com esperança, um caminho estreito com perigo de ambos os lados. De um lado está o perigo de cair na arrogância, a certeza prematura de que somos os donos do nosso futuro e de que podemos controlar o método e o momento de alcançá-lo. Do outro lado está o perigo do desespero, onde, sob a pressão de muitos tipos de tensões, dificuldades e desapontamentos, pode-se duvidar de que o futuro desejado jamais chegará. Contra esses perigos precisamos, de um lado, de humildade – porque Deus é o Senhor de nossos futuros e de todos os futuros – ; e, de outro, precisamos de uma visão mais ampla de Deus como o Deus de braços abertos e como o Deus que nunca nos desapontará, porque todas as suas promessas serão cumpridas. Nossa esperança é pela cidade de Deus, pela qual passa o rio da água da vida, e na qual cresce a árvore da vida, produzindo fruto todos os meses, cujas folhas são para a cura das nações. No meio dessa cidade está o trono de Deus 6
Prefácio
nos dois capítulos do Novo Testamento que refletem sobre a preeminência de Jesus Cristo, a imagem dos Deus invisível, agente e fim desta criação, fonte e começo da nova criação e cabeça de seu corpo, a igreja. A parte 2 considera quatro trechos do Antigo Testamento que estabelecem os propósitos internacionais de Deus, e o esboço do povo que ele chamou para ser instrumento no cumprimento desse propósito; esses capítulos também mostram as reações variáveis ao chamado de Deus em padrões que se têm repetido até o presente. Nesses capítulos discutem-se questões teológicas críticas; por exemplo, sobre a missão e identidade cultural; o caráter distinto do povo de Deus; pobreza; nacionalismo; e a questão difícil do território e da justiça perturbadora e imprevisível de Deus. A parte 3 explora cinco trechos do Novo Testamento, refletindo sobre a liberdade trazida por Jesus (de acordo com o assim chamado “Manifesto Nazareno”), o modo como ele comanda e a famosa Grande Comissão que deu a seus discípulos depois da ressurreição; e considerando também o significado de Pentecostes e como missão foi executada em um estudo de caso de Atos. A parte 4 consiste em dois capítulos que trazem o livro a um clímax de adoração e contemplação, que é onde toda teologia e ciência deveriam chegar, refletindo sobre a consumação da canção da criação e sobre a vinda da Cidade Santa de Deus no fim dos tempos. Então a missão de Deus e a missão da humanidade estarão completas nos novos céus e nova terra nas quais habita a justiça. Por mais de vinte anos Vinoth trabalhou no Sri Lanka, onde nasceu, e na maioria dos países do sul e sudoeste da Ásia; e por vinte anos Howard trabalhou em Cingapura com homens e mulheres de muitos países do Extremo Asiático. Não será difícil ao leitor detectar diferenças de estilo em nossos capítulos, e não achamos necessário igualar o estilo de cada seção, porque cremos que a verdade deve ser esclarecida para o entendimento, mas que também deve ser gloriosa para a imaginação! Às vezes usamos histórias pessoais, com o pronome “eu”, e assim cremos que pode ajudar os leitores saberem que Vinoth escreveu os capítulos 1, 2, 4, 6, 9, 11, 13 e 15, e Howard os capítulos 3, 5, 7, 8, 10, 14. Convidamos o leitor a ver este livro como um exercício de parceria Leste-Oeste em exploração missiológica. Temos geralmente trabalhado com o texto da Nova Versão Internacional em Português; às vezes reproduzimos o texto integralmente, ou fizemos nossa própria tradução quando quisemos, por alguma razão específica, chamar a atenção para a estrutura de um trecho
* Nota do Editor: Apesar do termo “missões” ser mais difundido no contexto evangélico brasileiro, optamos por usar a expressão ‘missão’ para traduzir a palavra inglesa ‘mission’. Isso porque é um conceito mais abrangente pelo fato de incluir também a idéia de ministério missionário transcultural. Seguimos a concepção dos autores por entender que este seja mais apropriado para abarcar o conceito de “missão” – mais amplo e mais condizente com a ordem de Jesus à igreja.
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A mensagem da missão
Peskett e Ramachandra
Howard PESKETT Vinoth RAMACHANDRA
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e do Cordeiro, e todos os servos de Deus o adorarão lá. “Não haverá mais noite. Eles não precisarão da luz de candeia nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os iluminará; e eles reinarão para todo o sempre” (Ap 22.5). Agradecemos a Deus por tudo que nos tem permitido provar antecipadamente dessa cidade e reino em nosso compartilhar com muitas comunidades em muitos países do mundo. E convidamos nossos leitores a se juntarem a nós na jornada inacabada, para a qual as passagens sobre as quais escrevemos neste livro são simultaneamente um mapa e um desafio.
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Prefácio
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A mensagem da miss達o
Parte 1 - Horizontes Mundiais
Parte 1
Horizontes mundiais
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A glória de cristo
Colossenses 1:15-23
Colossenses 1.15-23
1. A glória de Cristo Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, 16 pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele. 17 Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste. 18 Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia. 19 Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, 20 e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz. 21 Antes vocês estavam separados de Deus e, em suas mentes, eram inimigos por causa do mau procedimento de vocês. 22 Mas agora ele os reconciliou pelo corpo físico de Cristo, mediante a morte, para apresentá-los diante dele santos, inculpáveis e livres de qualquer acusação, 23 desde que continuem alicerçados e firmes na fé, sem se deixar afastar da esperança do evangelho. Este é o evangelho que vocês ouviram e que tem sido proclamado a todos os que estão debaixo do céu, do qual eu, Paulo, me tornei ministro. 15
H.G. Wells, o visionário escritor de ficção científica, era um oponente amargo do cristianismo. Entretanto, numa festa em 1937 por seu septuagésimo primeiro aniversário, comentou com seus hóspedes: “Cavalheiros, faço 71 anos de idade hoje e nunca encontrei a paz. O problema com pessoas como eu é que o homem da Galiléia, Jesus de Nazaré, era grande demais para meu pequeno coração”.1 Quem era Jesus de Nazaré? Não se pode fazer pergunta mais importante. É uma pergunta que nos salta das páginas do Novo Testamento. “Jesus de Nazaré”, observa um dos muitos estudiosos que dedicaram suas vidas profissionais 11
Parte 1 - Horizontes Mundiais
ao assunto, “é um daqueles eternos pontos de interrogação na História, que a humanidade nunca liqüida. Com um ministério de dois ou três anos ele atraiu e enfureceu seus contemporâneos, começou um movimento que fez o mesmo desde então, e assim mudou para sempre o curso da História.”2 Jesus de Nazaré é, portanto, uma figura controversa. Mas a controvérsia sobre ele não é a mesma que observamos em outros homens e mulheres famosos. Para estes, a controvérsia gira em torno do conteúdo e relevância de seus ensinamentos. Por exemplo, hoje os hindus da Índia debatem se Mahatma Gandhi sancionou o sistema de castas, e ativistas políticos discordam entre si sobre quanto dos princípios de Gandhi de resistência não-violenta aplicam-se a regimes mais brutais e repressivos que o Império Britânico. Marx e Freud caíram em algum desprestígio ultimamente, mesmo porque suas teorias perderam seu domínio persuasivo sobre indivíduos e sociedades inteiras. Note que todos esses são debates que giram em torno da avaliação das idéias de uma pessoa, ou de sua “mensagem” para o mundo. Aplicam-se a qualquer um que queiramos mencionar, seja Confúcio, Maomé, Darwin ou Nietzsche. Mas isso não se aplica a Jesus. A controvérsia sobre Jesus é a respeito de quem ele é. A afirmação cristã histórica sobre Jesus de Nazaré é que nenhuma categoria humana, nem a de “profeta carismático”, nem a de “gênio religioso”, “exemplo moral” ou “vidente apocalíptico”, pode fazer justiça ante suas palavras e ações. É a afirmação de que, na pessoa humana de Jesus, Deus mesmo veio entre nós de modo irrepetível e decisivo a ponto de até se constituir em ofensa a uma sociedade religiosamente plural. É isso que provoca o desprezo do ateu, a confusão do hindu e a indignação do muçulmano. A mesma variedade de reações era encontrada no mundo greco-romano no qual os primeiros seguidores de Jesus habitavam. Um eminente historiador resume o desafio extraordinário que esses seguidores de Jesus enfrentaram, de onde emergiu uma concepção radicalmente nova de Deus como Triunidade: Desde o começo o Cristianismo carregou em seu seio duas convicções: há apenas um Deus e Jesus Cristo é divino. Durante três séculos recusouse a negociar a questão do monoteísmo; recusou terminantemente fazer quaisquer concessões ao politeísmo tolerante da cultura do Império Romano tardio em que viveu, e milhares de cristãos sofreram e morreram por causa dessa convicção. Mas também profundamente enraizada no coração do Cristianismo estava a adoração a Jesus Cristo: não o culto a um homem divinizado (que era bastante comum no Império Romano) mas a adoração ao Filho de Deus que tomara a si a natureza humana na 1
Citado em Jaki, Stanley, The Purpose of it All (Regnery Gateway, 1990), p. 234.
2 Meier, JP, The Mission of Christ and His Church: Studies in Christology and Ecclesiology (Michael Glazier, 1990), p. 31.
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A mensagem da missão
A glória de cristo
Colossenses 1:15-23
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Encarnação. Essas duas convicções tinham de ser reconciliadas.3 Muitos estudiosos do Novo Testamento crêem que Colossenses 1.15–20 cita um fragmento dum antigo hino cristão, por causa da cadência rítmica. O texto desse hino pode ser derivado da literatura judaica de Sabedoria: por exemplo, trechos como Provérbios 8 e Jó 28 na Bíblia hebraica eram hinos louvando a sabedoria como atributo de Deus. Tal literatura foi, num estágio inicial da vida da igreja, aplicada a Jesus. Portanto, é provável que o apóstolo Paulo tivesse adaptado um hino, provavelmente conhecido de seus leitores colossenses de meados dos anos cinqüenta de nossa era, para ressaltar o significado teológico de Jesus Cristo para sua vida e missão. O Ele com o qual o verso 15 começa é o “Ele” de quem Paulo falara nos versos precedentes; a saber, “seu Filho amado” em quem está “a redenção, a saber, o perdão dos pecados” (v. 14). Ele agora se detém sobre a glória dessa imagem em relação a Deus, o mundo e a igreja. 1. Cristo e a criação Primeiramente, ele é a imagem do Deus invisível, tornando-o visível. Sabemos pelo primeiro livro da Bíblia que a humanidade foi criada à imagem de Deus, dependente dele assim como o resto da criação mas chamada a um relacionamento pessoal com ele. Além disso, a imagem física dum rei na Antigüidade representava sua soberania sobre o território onde fora erigida: a imagem do Criador na Terra é a humanidade, homem e mulher, que juntos representam e refletem seu governo sobre ela. Mas nossa imagem do governo de justiça e liberdade de Deus foi corrompida, descaracterizada por nossa rebelião; portanto nós, seres humanos, não mais refletimos a Deus para o restante da criação. Mas em Cristo vemos o verdadeiro Adão, a humanidade restaurada. Ao vê-lo percebemos o que o ser humano foi chamado a ser; e, porque fomos criados à imagem de Deus, também vemos, em Cristo, como Deus é. O conceito de imagem tem uma ambigüidade intrínseca, permitindo-lhe servir como ponte entre o divino e o humano, o transcendente e o imanente. Em segundo lugar, ele é o primogênito de toda criação (v. 5). O que se segue no poema esclarece que isso se deve entender nem tanto como precedência no tempo (nascido antes de todas as criaturas de Deus) como de preeminência de posição (sobre todas as suas criaturas). Israel no Antigo Testamento é às vezes chamado de primogênito de Deus (Êx 4.22, Jr 31.9). E em Salmo 89.27 o Ungido Filho de Davi é chamado de “primogênito” de Deus, Rei sobre todos os reis da Terra. Lembre-se também de que no Novo Testamento o primogênito de uma 3 Hanson, RPC, “The Achievement of Orthodoxy in the Fourth Century AD”, in R Williams (ed.), The Making of Orthodoxy (CUP, 1989), p. 149.
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A mensagem da missão
Parte 1 - Horizontes Mundiais
família judia herdava tudo o que ela possuía, portanto, ao falar de Cristo como o primogênito de toda a criação, o texto diz que toda a criação lhe pertence. Ele é o primeiro em preeminência e, portanto, o legítimo proprietário. O pensamento aqui expresso não é que Jesus de Nazaré existiu em forma humana antes da criação, mas que aquele que agora conhecemos como Jesus de Nazaré originou-se mesmo antes da criação, e que lhe era totalmente adequado tornar-se homem. Um comentarista britânico faz uma analogia: “A rainha nasceu em 1926” — isso não significa que ela já então era rainha, mas que aquela que agora conhecemos como rainha nasceu em 19264 . Em terceiro lugar, ele é o agente da criação: nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra (v. 16). Mais uma vez pensamos no capítulo inicial de Gênesis onde lemos que Deus falou sua Palavra ao vazio e, por sua Palavra, uma criação veio a existir. Há uma rica tradição judaica que atribui à Sabedoria um papel de agente pelo qual Deus criou o Universo (Pv 3.19, Sabedoria 8.5, Sl 104.24). Assim como o conceito de imagem acima discutido, o conceito de sabedoria serve para transpor o abismo entre Criador e criatura, sendo a articulação em linguagem da auto-revelação divina. Mas a preposição seguinte (eis, “para” na última linha do v. 16) nunca é usada para a Sabedoria na literatura judaica. Porque em quarto lugar, Cristo é também o alvo da criação. No contexto deste hino, a obra redentora realizada “em Cristo” (v. 14) é apresentada como a chave que desvela o mistério do propósito divino da criação. Ele está tanto no começo como no fim da história cósmica. Em Cristo, a criação e a redenção são uma. O que Deus criou encontrará seu significado último na glorificação de Jesus, o Cristo. Essa criação, que pertence a Cristo e o tem como fonte e alvo, inclui todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades (v. 16). Não apenas os seres humanos e a ordem física que servem aos propósitos de Deus em Cristo, mas também os poderes invisíveis, não humanos e super-humanos, do Universo. Os estudiosos debatem a que se referem esses termos abstratos do poema. Seriam “principados pessoais de anjos que influenciam o destino das criaturas mas sujeitam-se a Deus”.5 Ou “estruturas de existência terrena”, uma “desmitificação” da literatura apocalíptica judaica pré-cristã que projetava no cosmos os determinantes reais da existência humana, ou seja, as forças físicas, psíquicas e sociais que atuam entre e dentro de nós.6 Outros notaram que alguns dos termos usados por Paulo são termos praticamente técnicos nos complexos sistemas metafísicos do ambiente pagão e helenístico no qual se encontrava a igreja de Colossos.7 O que quer que digamos sobre esse assunto não pode ser mais que provisó 4 Wright, NJ, Colossians and Philemon: An Introduction and Commentary (Eerdmans/IVP, 1986) p. 69. 5
Barth, M e Blemke, h, Colossians (Doubleday 1994) p. 202.
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A glória de cristo
Colossenses 1:15-23
rio, uma vez que os estudiosos ainda não se decidiram. Mas inclinamo-nos a concordar com os que observam: (1) embora claramente cresse na existência de “anjos, demônios e espíritos pessoais”, assim como os outros autores do Novo Testamento, Paulo mostra uma notável falta de interesse neles — sua terminologia preferida ao lidar com o “reino espiritual” é abstrata e impessoal; (2) é difícil achar precedentes autênticos para a linguagem paulina sobre “poderes” na literatura apocalíptica judaica pré-cristã — esta normalmente atribui nomes, cargos e encargos a seres espirituais, ao contrário de Paulo; (3) não devemos importar idéias dos Evangelhos e Atos ao interpretar a linguagem de Paulo, que freqüentemente personaliza os poderes espirituais que a humanidade enfrenta, principalmente a Lei, o Pecado e a Morte, sendo estes realidades existenciais invisíveis; e (4) em Colossenses, Paulo escreve a uma igreja atraída pela sofisticada propaganda de um judaísmo místico no qual termos da filosofia grega meso-platônica devem ter tido um papel importante. Paulo, portanto, para demonstrar a superioridade de Cristo, faz o que todos os bons comunicadores fazem: apropria-se da linguagem da audiência. Sua preocupação não é arranjar esses poderes cósmicos em alguma hierarquia ou distingui-los cuidadosamente entre si, mas afirmar a superioridade de Cristo sobre todos eles. Todos os “poderes de plantão” do Universo devem sua origem a ele, e foram criados para servir a ele. Em quinto lugar, ele é o centro integrador de toda a criação: ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste (v.17). Noutras palavras, se não fosse por Cristo todo o Universo se dissolveria no caos. Ele é o centro em torno do qual tudo gira. O poeta polonês Czeslaw Milosz emergiu do horror da II Guerra Mundial dizendo: “nada poderia abafar minha certeza interna de que existe um ponto brilhante onde todas as linhas se cruzam”. E é por isso que apenas a fé cristã pode falar coerentemente de um Universo, porque por trás de toda diversidade e mesmo caos do mundo está o mesmo conjunto de leis morais e físicas que ordenam e valorizam o todo. O mundo tem uma ordem inteligível e razoável mantida em existência pela ação criativa de Cristo. Não apenas o Universo mas também nossos egos humanos precisam de um centro integrador, porque sem isso nossas vidas deixam de ter sentido. Friedrich Nietzsche (1844–1900), talvez o filósofo mais influente no século XX, acabou sua vida num asilo psiquiátrico, de onde escreveu a sua irmã: “enquanto escrevo, um louco berra no quarto ao lado e, por dentro, berro com ele, berro por minha integridade perdida, separado de Deus, do Homem e de mim mesmo, arruinado de corpo, mente e espírito, ansiando por mãos postas que tragam o grande milagre — a unidade de meu ser”.8 Também por isso talvez apenas cristãos possam falar coerentemente de uma 6 Berkhof, H, Christ and the Powers, 2ª ed. (Herald, 1977); Wink, W, Naming the Powers (Filadélfia: Fortress, 1986). 7 Forbes, Chris, “Paul’s Principalities and Powers: Demythologizing Apocalyptic?” in Journal for the Study of the New Testament 82 (2001), pp. 61-88.
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Parte 1 - Horizontes Mundiais
universidade, porque o que é que une as diferentes disciplinas de Biologia e Geologia, Astronomia e Medicina, História e Arte? É Cristo. Não é por acaso que na Europa Ocidental as universidades tenham se originado de mosteiros, centros de aprendizado e também de oração. A Teologia é o empreendimento de relacionar todo o conhecimento humano e nossas atividades cotidianas em Cristo. O Deus triúno que trabalha no mundo corriqueiro da vida econômica é o mesmo que sustenta o mundo misterioso explorado pelos físicos nucleares. Se a educação perde essa visão, se Cristo não é mais o centro de integração, então ciências e humanidades se desintegram, a comunicação entre disciplinas seca. À medida que aumenta a quantidade de informação, os especialistas perdem o senso de uma estrutura maior que dá significado às subdivisões estreitas de conhecimento que criaram para si. Seria radical demais dizer que a decadência da universidade em fábricas de diplomas, produzindo profissionais incapazes de comunicarem uns aos outros os frutos de seu treinamento, deve-se não somente às forças fragmentadoras da industrialização mas também à perda de uma visão compartilhada sustentada por e responsável perante Alguém além de nossos sistemas estanques. Mas a natureza odeia o vácuo, como notou Pascal, e o lugar deixado vazio na universidade pela visão bíblica é tomado por alguma outra disciplina. Outros deuses levantam-se para substituir o Deus da criação. Apesar da retórica popular de uma “suspeita contra todas as metanarrativas” na pós-modernidade, os anos recentes testemunham um renascimento das tentativas de explicar todo o comportamento e crenças humanas num paradigma naturalista e evolucionário, ou de medir o valor humano em termos de “utilidade”, ou de reduzir todo discurso moral a uma linguagem universal de direitos, ou de avaliar os sistemas educacionais meramente por seu impacto na competitividade econômica nacional. 2. Cristo e a nova criação O texto que consideramos continua, falando de Cristo em relação à nova criação de Deus, e esse é o ponto fulcral do poema. O ele do verso 18 é o mesmo do 15; a igreja — essa corporação mundial de homens e mulheres que abraçaram a palavra da verdade, o Evangelho (1.5, 6) e, portanto, experimentaram o perdão do pecado, liberdade dos poderes do mal e o começo de uma nova vida submissa a Cristo (1.13, 14) — está agora organicamente relacionada a Cristo, dependendo dela para ter vida e direção. A imagem de corpo e cabeça expressa a verdade de que a igreja é o lugar onde se efetuam tanto a soberania reconciliadora de Cristo sobre o mundo quanto sua solidariedade com o mundo em sua peregrinação rumo à redenção. Ressalta-se isso ainda mais nas imagens que se seguem: Cristo é a “fonte” ou 8
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Nietzsche, F, My Sister and I (Bridgehead, 1951), p. 233.
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A mensagem da missão
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A glória de cristo
Colossenses 1:15-23
o princípio (arche) duma nova criação, o primogênito dentre os mortos (v. 18). A ressurreição de Jesus naquela manhã de Páscoa foi a consumação da criação, a afirmação da ordem criada. Foi uma antecipação e inauguração da nova ordem mundial de Deus na qual a tirania do pecado e da morte foi quebrada. O corpo ressurreto de Jesus é uma prévia dos tipos de “corpos espirituais” (1Co 15.44) em que nos tornaremos no dia em que Cristo vier “ter em tudo a supremacia” (v. 18b). É como se um pouco do futuro fora cortado e plantado no presente. A Páscoa revela o propósito de Deus de que Cristo, o soberano de jure sobre o cosmos, venha a se tornar soberano de fato através da cruz; e também que todos que confiaram nele serão ressurretos para compartilhar sua vida ressurreta. Portanto, a Páscoa revela não apenas o reino triunfante de Deus em Cristo, mas também nosso futuro como cidadãos da ordem mundial redimida por Deus. Além disso, Cristo não alcançou preeminência apenas como um indivíduo qualquer que Deus levantou dos mortos, mas por causa daquilo que ele sempre foi e por aquilo que Deus realizou por sua vida e ministério. Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude (v. 19). Aqui afirma-se a plena divindade do homem Jesus sem implicar qualquer rivalidade com Deus, que tem prazer em que tudo o que faz de Deus, Deus, resida permanentemente em Jesus (cf. 2.9). E tem prazer também em reconciliar consigo mesmo por meio de Jesus todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu (v. 20). Os grandes eventos da encarnação e da redenção não foram impostos ao Criador por alguma necessidade externa, porém são seu mover livre, amoroso e alegre em direção à sua criação. Observe nos versos 19 e 20 como o poema ecoa a mesma seqüência nele… por meio dele… consigo que encontramos no 16 e no 17. Todas as coisas do verso 20 são evidentemente as mesmas do verso 16; a saber, todas as estruturas de poder ou esferas de autoridade do Universo. Os ‘poderes de plantão’ são criados por Deus, em e para Cristo, mas também precisam de reconciliar-se com Deus. Descreve-se o ato de reconciliação com o verbo composto apokatalasso, repetido em 1.22 e encontrado também em Efésios 2.16, mas em nenhuma outra citação do grego literário. Pressupõe um estado de alienação ou hostilidade no mundo. Teologicamente, o que se pressupõe na transição do poema do versículo 16 ao 20 é a realidade da Queda. O mal estragou a criação divina. Os poderes caíram da boa intenção de Deus, portanto, não são mais servos de Deus para o desabrochar humano. O poder dado por Deus para trazer ordem e estabilidade ao mundo é distorcido e usado para dominar e manipular outrem. Embora tenham sua origem em Cristo, exercem seu poder independentemente dele e, portanto, contra seus propósitos. A conseqüência de suas atividades pode ser vista em seus sistemas de crenças vazios (Cl 2.8; 2Co 10.4, 5), opressão e perseguição políticas (Cl 2.15; 1Co 2.6, 8; At 13.27; Ap 13), e em ritos e práticas religiosas fúteis (Cl 2.20ss; Gl 4.3, 8-11). O Universo, portanto, precisa de pacificação. E o meio de paz, o caminho pelo 17
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qual o Universo reconcilia-se com Deus, é o seu sangue (v. 20b). O sangue fala de morte sacrificial e renovação do pacto entre Deus e a humanidade. Na cruz são derrotadas de uma vez por todas a rebelião do pecado e o rompimento, causado pelo pecado, da harmonia da criação. Os poderes que se opõem aos propósitos de Deus para toda a sua criação são vencidos, e agora os efeitos dessa vitória pela cruz devem espalhar-se como ondas para todos os cantos do mundo, até que tudo que continua hostil a Deus seja pacificado, todos os ídolos derrubados. Então toda a criação compartilhará da paz do governo divino (Rm 8.18–25). O amplo escopo desse texto não deve ser usado para afirmar que, no fim dos tempos, todo homem será reconciliado com Deus não importando seu relacionamento atual com ele. Essa interpretação parece ser excluída pelo contexto de toda a epístola, assim como da maior parte do Novo Testamento. Os versos seguintes (1.21–2.7) evidenciam que a reconciliação efetuada por meio da cruz deve ser proclamada e recebida em fé (1.23; 2.6); é manifestada naqueles que pertencem ao corpo de Cristo, a igreja (1.24), e continuam firmes na fé (1.23) até alcançarem maturidade em Cristo (1.28). A ênfase no verso 20 é no escopo universal da salvação de Deus: inclui nada menos que renovação e reorganização totais da criação. Não se limita ao homem. Desde que a reconciliação entre agentes pessoais requer o reconhecimento do mal por quem o tenha perpretado, e a aceitação do perdão, não pode ser um processo automático que prescinda da decisão humana. Paremos para considerar o sujeito dessa passagem notável. Paulo fala de alguém executado fora dos muros de Jerusalém duas décadas antes da carta. No Império Romano, a crucificação, embora difundida, era universalmente vista com horror e desgosto. Era cruel e degradante; a vítima freqüentemente era açoitada e torturada antes de ser pendurada numa cruz em encruzilhadas movimentadas e apinhadas, como exemplo para o povo. Era a forma mais humilhante de morte no mundo antigo, a pena reservada para escravos rebeldes e o que hoje chamaríamos de “terroristas” contra o Estado. Nenhum cidadão romano podia ser crucificado. Os romanos nem discutiam o assunto — fingiam que nem existia. O grande senador e orador Cícero declarou que “a própria palavra ‘cruz’ deveria ser afastada para longe não somente da presença de um cidadão romano mas de seus pensamentos, olhos e ouvidos”.9 É nesse mundo que encontramos um grupo de homens e mulheres indo de um lado para outro no império romano e anunciando que entre esses “ninguéns” crucificados e esquecidos houve um que era nada menos que o Filho de Deus, o salvador do mundo. Paulo, no trecho que consideramos, vai além. Esse crucificado é Aquele através de quem o Universo veio a existir e também Aquele pelo qual o Universo será restaurado a seu funcionamento próprio. A loucura de tal mensagem não pode ser superestimada. Se você quisesse converter o povo educado e piedoso do império a sua causa, qualquer que fosse essa causa, a pior coisa que poderia fazer seria associá-la a alguém recentemente 18
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crucificado. Para sermos moderados, seria um desastre de relações públicas. E associar Deus, a fonte de toda vida, a esse criminoso crucificado era convidar à zombaria e à total incompreensão! E foi exatamente essa a experiência dos primeiros cristãos. Essa mensagem, se verdadeira, subvertia o mundo da religião. Porque afirmava que se você quisesse conhecer como Deus era, e entender os propósitos de Deus para este mundo, tinha de ir não às altas especulações dos filósofos ou aos inúmeros templos ou grutas sagradas que coalhavam o império, mas a uma cruz nos arredores de Jerusalém. Para os judeus, um Salvador Ungido crucificado era uma contradição em termos, por expressar não o poder de Deus mas sua incapacidade de liberar Israel do jugo romano. Para os pagãos, a idéia de que um deus ou o filho de um deus morreria como um criminoso condenado e que a salvação humana dependeria desse evento histórico em particular não era apenas ofensiva: era total loucura. Essa mensagem, se verdadeira, subvertia também o mundo político. Dizia que a própria salvação de Roma viria dessas vítimas silenciosas do terror de Estado. César mesmo teria de se ajoelhar perante esse judeu crucificado. Implicava que pela crucificação do Senhor do Universo, a propalada civilização romana estava radicalmente condenada. Não espanta que a “boa nova” dos cristãos fosse rotulada de “perigosa superstição” pelos romanos educados da época. Entretanto, é a loucura dessa “palavra da cruz” que nos impele a levá-la a sério. Há algo tão tolo, tão absurdo, tão confuso sobre a boa nova cristã que acaba quebrando nossas defesas: acaba parecendo verdade. Ninguém pode dizer que foi alguma invenção piedosa, porque contradizia toda noção de piedade. E ninguém ganhava nada com isso. 3. Desafios missiológicos Quais as implicações das verdades que temos explorado neste texto para o pensamento e a missão cristã? Primeiramente, o pensamento cristão é sempre cristocêntrico. Muitos em nossas igrejas, para não falar no mundo, têm uma visão muito pequena de Jesus. Quando falam dele — se chegam a fazê-lo — é geralmente como seu salvador pessoal, ou amigo, ou o “fundador do Cristianismo”. Jesus não veio fundar alguma religião, mas cumprir os propósitos de Deus tanto para Israel como para toda a sua criação. E sendo, de fato, nosso salvador pessoal e amigo íntimo, também é muito, muito mais. É apenas em relação a ele que Deus, o mundo e a humanidade podem ser corretamente entendidos. Ele torna visível o Deus invisível; ele é o agente da criação e da redenção; é o único ser verdadei 9 Cícero, Marco Túlio, Pro Rabirio 5.6, in “Orações”, citado por HENGEL, Martin em The Crucifixion of the Son of God (SCM, 1996), p 134.
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ramente humano e o arquétipo da nova criação; e aquele através de cuja morte e ressurreição o cosmos será reconciliado e reintegrado. O pregador americano A.W. Tozer disse certa vez que o que pensamos de Deus determinará o que pensamos de tudo o mais. E o que pensamos de Deus dependerá do que pensamos de Cristo. Se nossos pensamentos sobre Deus não forem centrados em Cristo, então escorregaremos de volta ao monoteísmo monolítico ou ao paganismo. Este último é visto, por exemplo, nos prolíficos escritos do teólogo John Hick, cuja assim chamada “revolução copérnica” em Teologia é um apelo aos cristãos para que vejam Cristo como simplesmente uma de muitas testemunhas planetárias orbitando em torno da experiência universal de “Deus”.10 E para que tal teocentrismo seja aceitável também para crenças não teístas como o budismo ou o taoísmo, ele ainda propõe que o “Deus” no centro desse “universo de crenças” seja chamado de “Mistério” ou “Real” impossível de se conhecer. O “Real além de Deus” não é uma pessoa nem um processo, nem bom nem mau, nem um nem muitos. Sobre esse Real não podemos nem pensar nem falar. Podemos apenas mitologicamente falar de nossas reações culturalmente condicionadas a esse Real, que são as tradições religiosas da humanidade. Em Jesus Cristo tudo o que vemos é uma dessas muitas reações ao Real, neste caso mediada pelos mitos do pensamento religioso judaico. Observe que, ao contrário da revolução copérnica original que removeu a Terra do centro do sistema solar, o sistema religioso de Hick coloca o homem no centro de tudo. Apesar de sua hospitaleira acomodação das religiões do mundo, tende fundamentalmente contra as tradições teístas, descartando a priori a possibilidade de que o Real seja essencialmente, e não apenas em alguma de suas evocações, pessoal. Porque ao considerar-se essa possibilidade ter-se-ia também de se aceitar a possibilidade conseqüente de que esse Deus deseje se revelar e relacionar-se pessoalmente com sua criação humana. Hick efetivamente excluiu qualquer conceito significativo de revelação divina de sua meta-religião de religiões, silenciando Deus. Tudo que nos resta são tentativas humanas distorcidas de alcançar a realidade, e escritores como Hick acham que ocupam uma posição superior por reconhecer as distorções cometidas por outros. Desde os primeiros tempos a igreja tem combatido filosofias religiosas parecidas com essa forma moderna de pluralismo. O neoplatonismo, por exemplo, separava o deus da criação, ou Demiurgo, do Deus incompreensível e impessoal. Alguns comentaristas crêem que, do contexto pagão da carta aos Colossenses faça parte uma doutrina filosófica semelhante a essa e às escolas gnósticas do segundo século. A “plenitude” (pleroma) desse Ser estava difusa pela cadeia 10 Primeiramente proposta em God and the Universe of Faiths (Macmillan e St Martin’s Press, 1973). A exposição mais completa pelo próprio Hick de sua tese pluralista é An Interpretation of Religion (Macmillan e Yale University Press, 1989). Uma versão popular e recente, incluindo respostas a críticas, encontra-se em The Rainbow of Faiths (SCM, 1995). Para a crítica mais completa pelo presente autor a Hick, veja RAMACHANDRA, Vinoth, The Recovery of Mission (Paternoster e Eerdmans, 1996), pp 120–125.
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cósmica do ser, com a matéria física no nível mais baixo de existência. Falar do Cristo encarnado como aquele em quem “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (2.9) é explodir com a cosmovisão antiga, e também confrontar face-a-face as tendências gnósticas modernas dos pluralistas religiosos como Hick. A missão cristã depende de Cristo ser absoluto, ele cuja glória é revelada através das boas novas de proclamação cristã (cf. v 23), porque não importa quão maravilhosa possa ter sido, e o quanto Deus possa ter estado presente por meio dela, se Jesus não tivesse sido mais que humano, a igreja cristã teria vivido uma mentira, tendo seus credos e práticas baseadas na falsidade. Teria elevado um mero ser humano ao nível de Deus e o teria adorado. Nós seríamos culpados da mais monstruosa idolatria e os críticos judeus e muçulmanos estariam certos em nos condenar. Em segundo lugar, a missão cristã é integral e universal. A visão da criação e reconciliação final de todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, por meio da cruz de Jesus Cristo foi resumida pelo grande filósofo e estadista holandês Abraham Kuyper: “Não há uma polegada quadrada em todo o domínio de nossa existência humana sobre a qual Cristo, que é Soberano sobre tudo, não diga: ‘Meu’.”11 A preocupação de Deus abrange não apenas homens, mulheres e crianças individuais, mas também o ambiente físico e biológico que sustenta suas vidas, e as estruturas sociais, econômicas, políticas e intelectuais que definem as formas de sua existência. A missão, portanto, é primariamente uma atividade de Deus. Ele busca este mundo por meio de Cristo e de seu Espírito, engajado na liberação do cosmos e da humanidade de seu cativeiro no mal, e seu propósito é ajuntar toda a criação sob o Senhorio de Cristo. O amor de Deus é centrífugo, espalhando-se até toda a criação, e “enviar” e “ser enviado” é parte integrante de Sua natureza como uma comunidade de pessoas divinas. Na verdade, até o século XVI o termo “missão” era usado exclusivamente para referir-se à Trindade: o envio do Pai pelo Filho, e do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho. Os jesuítas foram os primeiros a usar “missão” para descrever a difusão da fé cristã entre as pessoas (inclusive protestantes) que não eram membros da igreja romanista.12 Esse uso do termo infelizmente coincidiu com a expansão colonial das potências européias, resultando na sua aquisição duma conotação desagradável de hegemonia cultural e conquista agressiva, que permanece até hoje. A ênfase no Deus triúno como agente da missão liberta a igreja tanto de um egocentrismo idólatra quanto de um estreitamento do escopo da missão. A missio Dei aponta para Deus buscando toda a criação em redenção e reconciliação amorosas. A missio Dei abrange tanto a igreja quanto o mundo, e a 11 Do discurso inaugural da Universidade Livre de Amsterdã, a 20 de outubro de 1.880, in Abraham Kuyper: A Centennial Reader, editado por Bratt, James (Eerdmans e Paternoster, 1998), p 461.
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igreja é chamada ao privilégio de participar nessa missão divina.13 De fato, a correlação entre 1.28a e 1.20 implica em a igreja ser o foco e o meio principal para essa reconciliação cósmica, porque é a comunidade na qual essa reconciliação já começou (1.21–22) e cuja responsabilidade é praticá-la e proclamar seu segredo (3.8–15; 4.2–6). Para Paulo, é privilégio ter-se tornado arauto das boas novas da atividade pacificadora de Deus (v 23), que se estende aos poderes caídos da ordem criada. Vimos em nossa exegese que não devemos nem demonizar esses poderes, localizando-os em algum reino totalmente maligno e sobrenatural fora de nossa responsabilidade, nem identificá-los completamente com poderes humanos. Mesmo a atividade hostil de poderes inumanos é deste mundo, operando por meio de estruturas e instituições humanas; mas essas não são simplesmente materiais ou visíveis. Walter Wink refere-se à sua “espiritualidade interna, ou interioridade”, aquele “espírito interno, invisível que provê (a qualquer poder) legitimidade, legalidade, credibilidade e efetividade”.14 Todos sabemos dos poderes criados para servir a fins humanos que parecem tomar vida própria para além do controle humano, colocando-se como substitutos do verdadeiro Deus. Se a Torá, dada por Deus, e o templo puderam tornar-se ídolos, com um poder que cegava os contemporâneos judeus dos cristãos colossenses, quanto mais os dons de família, sexualidade, cultura, etnia ou governo. Muitos enfrentam desamparo face a gerações de relacionamentos familiares disfuncionais, práticas de opressão social ou sexual enraizadas na cultura, sistemas religiosos levando a um legalismo arrogante ou a um fatalismo corruptor, antigos ódios étnicos freqüentemente explodindo em ondas de brutalidade coletiva, ou regimes políticos tiranos que semeam terror e desconfiança. O Evangelho desmascara os ídolos da vida pública e pessoal, e subverte os poderes caídos por meio da fraqueza da cruz (Cl 2.15), dirigindo-se a indivíduos mas também a todas suas atividades, seja na vida familiar, nas artes, ciência ou tecnologia, empresas ou governos. A pregação do Evangelho anuncia a intenção de Deus de preencher o Universo com a glória de Cristo, e todos os cristãos têm a tarefa de descobrir o que isso significa nas áreas em que se envolvem: “nem uma igreja secularizada (quer dizer, envolvida apenas com as atividades e interesses deste mundo) nem uma igreja separatista (ou seja, envolvida apenas com a salvação das almas e a preparação dos convertidos para o além) podem 12 Bosch, David J, Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão (Sinodal, 2002), p 1. 13 O uso do termo latino missio Dei tem se tornado cada vez mais popular desde a conferência de Willingen no Concílio Internacional Missionário de 1952, às vezes mais como slogan do que como uma conceito bem articulado. Veja a discussão in Kirk, J Andrew, What is Mission? Theological Explorations (Darton, Longman & Todd, 1999), pp 25–26. 14 Wink, Walter, Unmasking the Powers: The Invisible Forces That Determine Human Existence (Fortress, 1986), p 4.
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articular fielmente a missio Dei”.15 Em terceiro lugar, a missão cristã é também escatológica. Paulo, definhando na prisão, sabia muito bem que o mundo se nega a reconhecer que sua reconciliação passa pela cruz. Mas a prova de que o futuro de Deus já atinge o presente encontra-se nas pequenas comunidades como a de Colosso e em outras partes do mundo mediterrâneo, onde homens e mulheres foram libertos de sua “separação e inimizade” (1.21). Essas são comunidades de esperança, uma prévia da reconciliação vindoura, e é através do seu viver (1.10) e pregação evangélicas (1.27) que o objetivo cósmico de renovação e transformação será alcançado. Toda a nossa atividade, nas artes, ciências, nos mundos da economia e da política — e mesmo na criação — participará no papel liberador de Deus, e essa visão ampla gira em torno da cruz de Jesus Cristo. É ali que uma visão de esperança se abre para o mundo, e não se encontrará nenhuma esperança para o mundo em qualquer sistema religioso ou filosófico da humanidade. Nenhuma fé oferece uma promessa de salvação para o mundo como fazem a cruz e a ressurreição de Jesus. A esperança é um dos maravilhosos dons do Evangelho, capacitando homens e mulheres a viverem vidas transformadas em antecipação da vitória final de Deus sobre todos os poderes do mal e da morte. A esperança cristã, nas palavras de Walter Brüggemann, é a “exultante convicção de que Deus não desistirá até que Deus tenha realizado o propósito de Deus no mundo”.16 Tal esperança baseia-se não no sucesso de nossos programas eclesiásticos e estratégias de evangelização global, mas na promessa divina de que todas as coisas serão reconciliadas com Deus pelo sangue da cruz de Cristo. Este é o evangelho que vocês ouviram e que tem sido proclamado a todos os que estão debaixo do céu (v 23; cf 1.6). Essa afirmação sonora lembra-nos mais uma vez da intenção eterna de Deus, e nos chama a atenção para o escopo cósmico da missão divina: Deus em princípio anunciou o Evangelho a toda criatura sob o céu. Embora, entretanto, a proclamação seja feita a seres humanos, estaríamos bastante enganados, à luz de 1.16, 18 e 20 e da reiteração enfática de “tudo” aqui e em outros trechos de Colossenses, se limitássemos seus efeitos a eles. De cachoeiras a cachalotes, a ordem criada foi toda reconciliada em princípio com Deus. Como a proclamação de um soberano enviando seus arautos aos rincões distantes de seu império, Deus tem, em Jesus Cristo, proclamado, de uma vez por todas, que o mundo por ele criado foi reconciliado com ele. Seus arautos, correndo para os confins da Terra com as novas, são simplesmente agentes, mensageiros dessa proclamação oficial.17 15 Bosch, Missão, p 11. Brüggemann, Walter, The Bible and Postmodern Imagination: Texts Under Negotiation (SCM, 1993), p 40. 16
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