A Terra como Cura. Org. Ana Virgínia Alves de Santana. Proext UFBA. 2019.

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A TERRA COMO CURA?



A TERRA COMO CURA?



A TERRA COMO CURA?

ACCS GEOD34 - A Terra como cura: geologia e saberes tradicionais Proext UFBA Salvador, 2019


2019, organizadoras Ana Virgínia Alves de Santana, Maira Larissa Ramos da Rosa, Priscila Regina Rodrigues Jorge (Rubi Raio) Projeto Gráfico e Capa Rubi Raio Diagramação Rubi Raio CNPJ 27.718.772/0001-10 Fotografia s Flora Wiering e Sabrina Filha da Terra Revisão Ana Virgínia Alves de Santana, Maira Larissa Ramos da Rosa, Rubi Raio

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ACCS GEOD34 - A Terra Como Cura: Geologia e Saberes Tradicionais Reitor João Carlos Sales Pires da Silva Vice-Reitor Paulo Cesar Miguezde Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima

PROEXT UFBA Pró-Reitora de Extensão Universitária Fabiana Dultra Britto


Este livro ĂŠ dedicado a toda comunidade PataxĂł, de Aldeia Velha, Porto Seguro, BA.


AGRADECIMENTOS EEPECIAIS

À Permissão. À Pajé Jaçanã. Aos cacique Anehõ Pataxó e vice-cacique Ytapuã Pataxó, Araticum Pataxó, Arnã Pataxó, Jacirema Pataxó, Katiré Pataxó , Nawá Pataxó, Tapurumã Pataxó, Tiguim Pataxó. E ainda, Escola Indígena Pataxó de Aldeia Velha, e ao Grupo de Cultura Aldeia Velha. Colaboradoras Alba Armua Benites, Marieta Reis e Odalici do Carmo. Carlos César Souza Santos (motorista) e Neguinha (cozinheira). Institucionais: Instituto de Geociências Colegiados dos cursos de graduação em B.I de Artes, B.I de Saúde, Dança, Enfermagem, Medicina. Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS), Pró-Reitoria de Extensão, Universidade Federal da Bahia – universidade laica, plural, pública, gratuita, inclusiva e de qualidade.




SUMÁRIO PREFÁCIO Aana Virgínia Alves de Santana

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A VERDADEIRA CURA Clara Njambela, David Jesus, Sabrina Filha da Terra

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ARTES E HUMANIDADES 16 Bernardo Santos 18 Clara Njambela 20 Flora Wiering 22 Lucas Riskadiño 24 Rubi Raio (Monitora) 26 Sabrina Filha da Terra 28 Uiliane Monteiro 30 CAMPO DA SAÚDE 32 Clarice Soares 34 David Jesus 36 Ellen Fernanda Silva Moura 38 Maira Larissa Ramos da Rosa (Monitora) 40 Nathalia Guilhermina Santana Silva 42 Rafael Arcanjo 44 Raynan Monção 46 CIÊNCIAS DA TERRA 48 Annays Gottschalk 50 Brenda Viana 52 Gabriel Oliveira 54 Milena Costa 56 Rodrigo Cabral 58 POSFÁCIO Marieta Reis 60


PREFÁCIO

“todo o homem é uma ilha (…) é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, se não saímos de nós próprios” Trecho de “O Conto da Ilha Desconhecida”. José Saramago

A publicação ora apresentada é o resultado final do componente curricular GEOD34 - Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS): A Terra como cura - geologia e os saberes tradicionais. O objetivo da disciplina foi identificar diálogos que permitam a construção de uma articulação entre o conhecimento técnico e científico, calcado nas Ciências da Terra, e os saberes e fazeres, associados às rochas e minerais e amplamente utilizados para promoção de saúde em povos tradicionais. Para a sua execução, as colaboradoras externas Marieta Reis – mestra em Antropologia da Saúde -, Odalici do Carmo (Ialorixá do Terreiro Ilê Axé Odé Yeyê Ibomin) e, principalmente, as e os representantes do povo indígena Pataxó da Aldeia Velha foram fundamentais. No semestre de 2019.1 – primeiro em que ocorre a oferta da disciplina – se inscreveram estudantes de cursos de graduação das áreas de Artes, Geociências, Humanas e de Saúde.

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“A Terra Como Cura?” inicia-se com um prólogo que nos presenteia com o tom da cura. A cura necessária. Seguem-se relatos em textos argumentativos, poesias colagem e áudios (acesso por QR Code e Hiperlink) – separados em grupos por áreas de conhecimento – apenas por nos parecer melhor à pesquisa, à rápida procura por uma referência/área, contudo, é necessário frisar, o que as leitoras e leitores lerão/verão/ouvirão não pode ser circunscrito em um credo, religião, gênero, etnia, área de conhecimento, ou quaisquer outras divisões habituais – necessárias, ou não. Cada palavra, contribuição reflete um anseio universal, nosso, seres humanos, e também reflete as nossas limitações. Reflete busca, necessidade de encontro e, de forma latente, a nossa necessidade de conhecer, conectar e estar na Terra. É importante destacar o processo de construção, e também os desafios, para a proposição dessa disciplina, e tudo que abarcou. Houve um primeiro momento, “pré-vivência”, em que temas como Sistema Terra, sensibilidade seres humanos/ rochas/minerais, DecolonialIdade, Etnologia e Etnomedicina foram tratados em encontros semanais através de aulas expositivas e dialogadas, oficinas e rodas de conversa. Esse momento consistiu na preparação para a vivência em comunidade, entretanto, a comunidade que iria nos receber ainda não tinha sido delineada, de forma clara. Havia possibilidades. Concretizar a ida para a Reserva Pataxó Aldeia Velha foi um presente nessa jornada, por vários motivos, mas destaco a verdade e amorosidade com que fomos recebidas/os. A vivência de dois dias pretendia inicialmente tratar sobre a “Medicina do Barro” – vide objetivo da disciplina – mas como estar alheias e alheios à causa indígena, a não demarcação dos territórios, melhor, como estivemos alheias e alheios a tudo isso?! Como seguir alheias e alheios?! Como estivemos longe de nós mesmos, da nossa ancestralidade, por tantos imemoriáveis tempos?! A questão da demarcação indígena aflora porque se avizinha retrocesso cruel e potencialmente ordinário. Mas, conforme lerão, essa foi apenas uma das inúmeras questões que vieram à tona. A “pós-vivência”, por sua vez, constou de confecção dessa publicação e também da organização de uma mesa-redonda realizada no Instituto de Geociências cujo tema foi “A Terra como cura”. Participaram, como convidadas Alba Armua Benites (Serviço Médico Universitário Rubens Brasil Soares SMURB), Ytapuã Pataxó, vice-cacique da Reserva Pataxó Aldeia Velha, e Odalici do Carmo.

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A execução da disciplina na UFBA, por meio do programa Ação Curricular em Comunidade e Sociedade - ACCS -, reitera o compromisso em promover contribuição à formação das e dos estudantes e cumpre o papel de transformar. Essa é uma atividade de extensão que não deseja se ater a “levar” a universidade à comunidade, ainda que necessário seja, porém, acredito que os moldes como isso irá ocorrer serão indicados pela comunidade e em uma próxima promoção da disciplina. Mas, mais do que “levar” a universidade à comunidade, acredito que a oferta da disciplina possibilite transformação da universidade. O quê deve ter “extensão”, leia-se, o quê deve ser incluído nas nossas mais diversas formações, é a inserção das falas há muito invisibilizadas. Essas têm que ser ampliadas e amplificadas.

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De fato, a promoção da disciplina está vinculada à prática extensionista da universidade em que se remete muito ao “trocar”. Mas o “trocar” pode ser substituído por tocar/sentir? Acredito que sim. O quê é sentido, de forma uni-, ou bilateral, tem potencial transformador. Quando há o desarme de expectativas, conceitos e retóricas, consolidadas ou não, do dual certo/errado. Quando há o silêncio, quando há o olhar, quando o ouvir é atencioso e isento de opinião. Quando alma com alma se veem, e se reconhecem únicas em todo o seu potencial, e em dor. Esse parece um caminho a seguir, ainda que saiba que o estradar é longo, e que apenas estamos começando. O quê nos foi cerceado, o sentir, estará mais facilmente disponível quando conseguirmos nos desvincular do quê há muito nos encarcera (cegueira, mágoas, expectativas irreais, surdez, vaidade, egoísmo...) e convém buscar e humildemente clamar pela ajuda da Sabedoria dos povos ancestrais que resistiram, e resistem, à remoção do Ser, que são íntegros, e por isso inteiros em essência, e que se reconhecem Terra. Sim, são eles que nos guiarão e, quiçá, possibilitarão a nossa reconstrução. A Terra é generosa, e cura.


Escrevo em uma Salvador chuvosa. É junho. Lembro do compromisso firmado ainda na Aldeia Velha. É preciso multiplicar o quê nos foi ofertado. Rezo para que esse seja um veículo que encontre solo fértil e receptivo. Prospere. Prosperidade - é o quê desejo para as ideias e reflexões contidas nessa publicação, e é o que desejo a cada uma, cada um envolvida/o nesse projeto.

Salvador, BA Solstício de inverno, 21 de junho de 2019

Ana Virgínia Alves de Santana Professora da disciplina GEOD34 ACCS: A Terra como cura - geologia e os saberes tradicionais

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A VERDADEDEIRA CURA Curar pode ser empregado tanto no sentido de tratar, cuidar, como no sentido de debelar uma enfermidade, de restituir a saúde, de sarar. A cura é um processo intermitente, cultural, potente. Atravessa os sentidos e ressoa no nosso mais íntimo lugar, a cura exalta a fortaleza que todos temos de poder. A cura é sobre poder ser e sentir, a cura é existir. É somente através da vida, da experiência, que alcançamos o entendimento de nós mesmos e do mundo, o processo de cura integral é o mesmo do autoconhecimento. Todo processo que desafia e nos imprime em outro lugar, toda forma de essência que nos possibilita estar. A cura desafia a própria cultura e se coloca como escudo, processo de acolhida e ataque do nosso ínfimo lugar. Há em nós o incômodo de existir e nisto cremos estar fazendo com a maestria que se perpassa pela história, os povos em si possuem um jeito tenro de se curar elevam se as memórias e reforça em nós a potência da história dos lugares, precisamos fazer sentido, tomando banho, passando folhas, usando a Terra, se comunicando se permitindo, sendo...A verdadeira cura ocorre quando descobrimos as nossas raízes, que por conseguinte nos levam a descobrirmo-nos a nós mesmos

Clara Njambela e David Jesus, membros do Terreiro de Candomblé. Sabrina Filha da Terra, indígena.

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ARTES E HUMANIDADES



BERNARDO SANTOS B.I. Artes

VOCÊ É A SUA CURA * agradeço; agradeço; agradeço as energias do passado, as presentes e as que virão. Natureza, Natureza, Natureza, Que viaja dentro de mim er poderoso e luminoso Eu canto para a Mãe Natureza Para o seu mistério invisível Eu canto para a força que alimenta Nossa dança para esta vida Eu canto para a força que está abrindo O caminho dos nossos sonhos

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__________________ Eu sou uma árvore bonita Eu sou um pé de fruta-fé Minha esperança é. __________________ Estou aqui, aqui com a minha dor Num mundo sofredor dentro da ilusão Estou aqui para aprender O mistério do meu ser Estou aqui para curar Estou aberto para caminhar.

Estou Estou aprendendo Estou aprendendo a Estou aprendendo a me Estou aprendendo a me curar a deixar a ilusão a me firmar eu sou nuvem passageira.

Meu passarinho meu cantador. Me leve na estrela do amor.


ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

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TRACKLIST

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Ditti - Sammã Marlui Miranda - Mito - Metumji Iarén Peter Power (remix) - Da Gota ao Oceano BirdZzie - Pipapapífaro Marlui Miranda - Festa da Flauta Marlui Miranda - Kworo Kango Marlui Miranda - Araruna Danit - Naturaleza Phillip Glass - Purus River Rainer Scheurenbrand - Taita Anti Mawaca - Canção Kayapó Rainer Scheurenbrand - Passarinho Marlui Miranda - Ñaumu Hermes Aquino - Nuvem Passageira Luedji Luna - Eu Sou uma Árvore Bonita Rainer Scheurenbrand - Cura https://www.mixcloud.com/beetcetera/voc%C3%AA-%C3%A9-sua-cura/

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CLARA NJAMBELA B.I. Artes

Sinto-me tocada pelas experiências que a ACCS me proporcionou, mesmo aquelas em que não pude estar presente, os vívidos relatos dos colegas me tocaram também. Me tocaram no sentido de que mudaram minhas relações, percepções e me trouxeram também esclarecimentos. Nunca antes havia experienciado uma oficina de imersão e conexão como a que fizemos no início da matéria com as rochas. Sempre gostei muito de rochas, pedras e cristais, mas nunca parei de fato para me conectar com essa partícula do planeta, me perguntar como e onde ela surgiu e, principalmente, como esse encontro me afeta, me perpassa. Quando me dei conta, saí dali sem ser mais a mesma e certamente a rocha com a qual me conectei também gravou em si um pouco de mim. Em alguma parte de mim, também sou rocha.

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ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

Essa vivência me abriu um leque de questionamentos e reflexões que nunca antes haviam chegado até mim. O modo de vida que levamos parece que nos distancia da noção de que somos seres pertencentes a este planeta, que o constituímos e que isso nos conecta à todas as outras coisas que o constituem também, e que desde seu centro até a última camada atmosférica, o planeta nos oferece o sistema perfeito para que nossa vida nele seja possível como é. A Terra nos provê com tudo o que precisamos para existir e ser. O avanço dos saberes ocidentais nos distanciou dos saberes ancestrais e tribais, conhecimentos estes que estão intrinsecamente conectados com o planeta, que nos percebem como parte desse ecossistema. A noção de doença e cura trazida pelos pataxós expandiu minha mente. Por educação de casa sempre tive alguma noção de que remédios não são o caminho da cura, mas nunca tinha olhado com a percepção de que eles tratam os sintomas e não a doença em si, sendo esta conectada com o estado da alma da pessoa doente. Isso falando muito superficialmente.

Creio que ainda estou no processo de entender e absorver todo o aprendizado que essa disciplina me proporcionou, não sou da geração que acredita que o leite vem da caixinha, mas estou muito perto disso, e agora carrego a noção ativa e consciente de que apesar de tudo aquilo que é criação humana, eu vivo neste planeta e deste planeta, e sou parte dele tanto quanto uma nada simples rocha. É muito fácil ser presunçoso quando se é humano, difícil é olhar para uma rocha, reconhecer sua complexidade e que ela também faz parte de você. É muito fácil sentir uma dor e tomar um remédio que vai enganar o corpo pra que a dor não seja sentida, difícil é viver essa dor e olhar para dentro de si e procurar na própria alma o que dói. É muito fácil olhar para o indígena e achar que ele é inferior porque a sociedade em que ele vive é diferente do padrão que vivemos nessa cultura homogeneizada e massificada, difícil é olhar para ele e reconhecer que ele carrega conhecimentos tão legítimos quanto os nossos e que a sociedade dele é tão tecnológica e funcional quanto a nossa, difícil é reconhecê-lo como um semelhante. Não somos todos iguais, mas somos parte de um mesmo todo.

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FLORA WIERING B.I. Artes

Da série “grandes diferenças nos pequenos detalhes” Capítulo “sobre o quê -e de que jeito- pisam os nossos pés?” Os nossos pés, pés do neocolonizador, desproporcionalizados e desenraizados, protegidos e confinados, pela espessa sola de uma estimada bota, que custou o trabalho (mal pago) de inúmeros seres humanos desconsiderados; estes pés não sentem a terra. E, no entanto, suportam os corpos que a estudam, com a ponta do lápis mais caro ao intelecto ocidental: o lápis da academia, o lápis que firma as teorias mais relevantes, presentes nas teses de doutorado, nos livros, nos artigos premiados, nos antigos slides shows desatualizados dos professores, senhores da verdade. Noto, ao observar estes pés, tão importantes, tão seguros de si, que tudo isso não passa de uma ilusão, e que somos tão donos de nossas vidas quanto àqueles anteriormente citados, que atuam como massa de manobra no mundo do trabalho escravizado das grandes empresas capitalistas. Igualmente, senhoras e senhores, estamos presos! mas o cabresto em análise é menos suspeito, ele não se nota logo de cara, em nossas caras... Não, mas talvez estejam nos próprios pés! Pensem, e vejam que contradição, aquilo que se crê livre é justamente instrumento da dominação; nossos pés, guiados pela cega razão de que conhecimento é diploma, é título, é atuação profissional, é retorno em capital... Nessa lógica apressada, que não sobra espaço para pensar em mais nada a não ser na própria competição, vamos seguindo, explorando, dominando, reforçando os padrões coloniais que nos foram impostos em primeiro lugar; quanto mais melhor, certo? Mas, calma, para onde estamos indo nessa marcha egoica?

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Estamos passando por cima dos saberes ancestrais, que também nos compõem, se olharmos para trás; estamos destruindo o mundo, a nossa casa, alicerçados nos saberes científicos que nos foram concedidos pelo próprio sistema de ensino. Não é possível, isso não é educação, isso é obediência. Ah, mas já que estamos tratando de pequenos detalhes, cito mais um, capaz de gerar enorme diferença: sempre foi, e sempre será possível sair pela tangente, exercitar a força do livre arbítrio e dizer “não, eu não vou por aí”, desviar-se da marcha e caminhar macio, quem sabe, aprendendo em outras partes, por outra gente. Olhar o mundo como ele é, nu e cru, sem o advento das palavras sofisticadas inventadas pelo homem para tentar explicar o que, muitas vezes, não tem explicação. A minha recusa a tudo isso se fez sentir e fez sentido quando pude experimentar a vida do lado de lá, ao lado dos outros personagens que atuam nessas imagens, e que, por sua vez, têm os pés descalços, conectados, firmes ao chão; identifico nesses aprendizados motivos para reconstruir tudo que me foi forçado goela abaixo até então. Todos os livros de história, até hoje guardados, serão resinificados, toda essa noção hierárquica de que o que fazemos aqui, nos domínios da civilização, é representação máxima da evolução, será abolida. Pelo contrário, a seta evolutiva agora aponta na outra direção, pois para crescer é necessário fincar os pés ao chão, sensibilizar as vistas para enxergar o que nutre, o que acrescenta, independente do valor que isso carregue (ou não); em outras palavras, em um exercício didático filosófico mínimo, descalçaremos as botas, sairemos do meio e deixaremos que passem, os que há tempo demais ficaram nas margens.

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LUCAS RISKADIÑO TERRA, CURA E RELIGIOSIDADE Cura, do latim cura, significa ato de cuidar, está associado ao processo de recuperação do corpo, da alma, mas também está ligado às questões socioeconômicas. A cura tem uma história milenar. No candomblé se tem as “curas” que são os cortes feitos no corpo com o objetivo principal de proteção e ligação do indivíduo com o seu Orisa, Nkise e Vodun. Muitas pessoas procuram essa cura em remédios, tratamentos e muitas vezes não se lembram da medicina tradicional e da cura através daquele elemento que nos originou: A terra. A terra, na terra e pela terra, é através dela que muitas curas se dão. Elementos naturais que possuem uma importância em tudo que, hoje, é tido como essencial. O que seria dos seres humanos se a terra não tivesse sido usada em várias etapas da história da humanidade? Essa pergunta tem respostas diversas, mas traz consigo uma certeza: todos, indistintamente, dependem da terra. Uma viagem para um encontro com a terra fortalece a conexão com a essência e nos aproxima do cuidado.

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O cuidado com a terra e com o todo é uma extensão do cuidado consigo mesmo, nesses elementos que se encontram ensinamentos e sabedoria para aprender o que é necessário, para colocar em ação o amor que se merece. É a permissão para refletir sobre diversos sentidos, principalmente o da própria existência, da missão nesse mundo e da colaboração que se pode dar. Participar de uma viagem em que se prioriza a cura pela terra, ou pelo que vem dela, permite uma vivência ímpar, um reencontro com o interior. É um momento de renovação. O ar, a água e a terra podem ser considerados remédios naturais que por muito tempo ajudaram e ainda ajudam as pessoas. A água do mar é uma importante fonte para renovação da pele. O ar é um elemento fundamental da meditação que nos conecta conosco mesmo. Quando se respira, se acalma a mente. A argila pode curar muitas enfermidades quando da eliminação das toxinas do corpo, a atuação como cicatrizante e anti-inflamatório. Esse uso da terra para a cura de doenças sempre esteve presente nas tradições indígenas, onde os mesmos a aplicava como uma espécie de filtro, capaz de renovar as energias dos órgãos.


ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

Levando-se em consideração o saber biomédico, centrado na doença, e compreendendo que o indivíduo é um corpo, uma alma, um espírito e o que materializa a integração destes é o sopro, o pneuma ou o Espírito Santo, que tudo move, anima e transcende (HENNEZEL; LELOUP, 2003), é que se verifica a busca de estudos, sobre religiosidade e espiritualidade, relacionados ao processo de cura, construção de crenças e culturas locais em saúde (CAVALCANTE, 2010). Na cura de enfermidades, a religiosidade popular pode ser favorável na adoção de comportamentos saudáveis, como por exemplo, a adesão às práticas preventivas e tratamentosas, porém se comparado com a “medicina oficial”, os devotos unem fé a ciência e assim buscam elaborar um conjunto de saberes e crenças. Daí se vê a cura como sinônimo de saúde, mas também atribuída a uma divindade. As religiões que possuem como base a terra costuma dar uma importância grande aos elementos que se originam dela. Não que as outras não deem a importância devida, mas no caso das de matriz africana, por exemplo, ou a umbanda que também carrega consigo a sabedoria da cura através de elementos energéticos e da terra, essa importância se dá em função da valorização dos elementos terra, ar, fogo e água nos seus processos de cura, bem como de limpeza.

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RUBI RAIO

LIicenciatura em Danรงa (monitora)

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A casa da quietude é arquitetada no silêncio. O corpo nas ruas são gritos ecoando no concreto não transversal dos muros da vida na cidade. Estive só, na arcada do meu corpo - e as retinas filtrando o vento em sua geometria exibida no balanço dos galhos. O vento é dentro do meu oco, do meu côncavo. Como estar sutil em uma cidade construída sobre o choro das rochas?

A lágrima que não penetra o solo não encontra cura. A cidade adoece o que é bonito dentro da gente e a gente adoece o bonito que botamos as mãos porque são mãos cheias de calos do esforço de amaciar a vida. Mas a quietude é ainda possível.

AUDIO-ENTREVISTA COM ARNÃ PATAXÓ Mulheres, cura e territorialidade (via WhatsApp) http://rubiraio.bandcamp.com/album/arn-patax-mulheres-cura-e-territorialidade-entrevista-por

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SABRINA FILHA DA TERRA B.I. Artes

Quando eu descobri a disciplina e vi sua intuição e descrição fiquei curiosa e ao mesmo tempo esperançosa, resolvi dar uma chance, tanto para mim -entendendo todas as problemáticas da viagem- quanto pra ela. Com o passar dos dias eu vi que o objetivo previsto pra matéria se tornou muito pessoal para todas (os) da sala, pensar em si próprio é a chave da auto descoberta e realização interna, se dar a chance de lembrar que fazemos parte da natureza, lembrar da nossa respiração e seu movimento em nosso corpo (como Rafael Arcanjo, nos fez vivenciar), lembrar de fazer arte como forma de expressão dos pensamentos (como Priscila Jorge, trouxe), são os primeiros passos para uma adaptação da disciplina fora dos padrões acadêmicos deixando um pouco mais humana, assim dizendo. Tudo isso, só se realizou por conta da abertura e presença de diferentes cursos, se essa presença não fosse possível e nisso se traz ainda outras questões sociais diversas como etnias/vivências/gêneros e sexualidades, se essa pluralidade não fosse permitida, grande parte das coisas que aconteceram seriam vistas por ângulos e visões muito similares. Certa vez ouvi uma palestra da escritora Chimamanda Adichie sobre os riscos de uma única história contada, e levo isso pra disciplina (e vida) quando vi a reação de pessoas ao ouvirem as histórias sobre os povos indígenas sendo contadas pelos próprios e não pelos brancos (não indígenas), mas, infelizmente, o reflexo de uma vida inteira ouvindo falar sobre os povos indígenas de uma forma animalesca, folclórica e desumana pela visão do branco -leia o texto “Que índios são esses?” Feito pela escritora Eduarda Tuxá disponível em aldeialiteraria.blogspot.com- , afeta os pensamentos e ações mesmo quando a realidade está em sua frente, o que fez com que o objetivo da disciplina decaísse para mim. Sem a consciência interna pessoal não se faz o objetivo coletivo, mas quando o pessoal prevalece e a empatia devaneia e voa pra longe...daí o problema começa. A transição do objetivo pessoal para o coletivo ao buscar a terra como cura não saiu tão bem, num todo. A falta de prioridade do retorno para comunidade foi a principal peça que faltou para uma experiência prazerosa e coletiva para mim na ACCS.

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ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

Essa falta de prioridade histórica semestral refletiu diretamente nas aulas e viagem no convívio entre mim e minhas (meus) colegas e professora. Esse tal “deslize” (como queira chamar) não é por acaso, essa falta de humanização e respeito por uma comunidade não-branca é histórica, principalmente no Brasil (e mundo) em relação aos povos indígenas. É agora que tiro uma parcela de culpa das únicas histórias em relação as pessoas e professora da minha sala, por eu trazer minha visão de dentro (origem Tupinambá e reafirmando sempre), em todas as aulas reforcei sobre o retorno pra comunidade e a tentativa de evitar o repasse de estereótipos e as verdades irreais que elas(e) acreditavam. Quando você fala uma coisa muitas vezes na vida, cansa. Se você faz parte de uma minoria social você provavelmente vai entender, por exemplo, mulheres! Sabem quando um homem acaba de explicar exatamente o que você disse? Agora ao invés de usar o termo mansplaining(macho explicador) use branco(a)(x) explicador ou síndrome do colonizador, pra entender. Basicamente era o que acontecia quando eu falava sobre a viagem, que a professora tanto desejava para uma aldeia indígena e a necessidade de levar algo em troca que trouxesse beneficio pra comunidade, a professora/outros nunca entendiam direito o que eu queria dizer, “Não entendo? Ora! Mas... Vamos fazer uma roda de conversa!” Ela dizia, até que colegas repetissem a exata mesma coisa que eu tinha acabado de dizer e aí sim ela compreendia sem um pingo de dúvidas. Você pode estar se perguntando que eu talvez não deva me expressar bem, se você chegou até aqui entendendo tudo ou com pouca dificuldade ... Bem, você tem sua resposta.

Digo isso tudo para dar um contexto sobre porque eu coloco culpa e digo que foi uma falta de responsabilidade essa viagem. O modo que essas pessoas agiram na aldeia foi um modo que nunca aconteceria na casa de um desconhecido ou até de um amigo de um amigo, a falta de senso e de limite dos espaços e pessoas era nítido, a falta de compromisso com os valores e responsabilidade com a parte financeira também. Tudo isso não é do nada, surge por um pensamento colonizador de obter conhecimento e intelecto da comunidade e achar que somente a presença do acadêmico é um retorno válido para ela, grande engano e preconceito. Acredito que com isso tudo, minha experiência e de outros foi comprometida pelos preconceitos. Vejo potencial na disciplina, nada disso é anulado e dói tão quanto. Pra mim (já que é um relato pessoal) faltou diálogo entre a própria turma e a própria professora (ou docente, como preferir) sobre como humanizar nossos pensamentos e sair do pensamento privado para um pensamento público/coletivo e empatizador, que haja uma preparação de todes, sem hierarquização, que seja um aprendizado coletivo, além do pessoal. Finalizando, digo que das tantas magoas que tirei da minha vivência, tirei minha resistência e força também. Minha terra como cura foi saber que meus sentimentos não eram exceções e que eu não estava sozinha. Minha terra como cura foi saber que mesmo vindo de outras instâncias/vivências, quem vem do povo ancestral se une e se fortalece mesmo com todas suas diferenças. Minha terra como cura foi a conexão feminina que nos uniu, 3 guerreiras sob testemunho do luar, sol, solo e mar. Minha terra como cura foi chegar no território dos meus parentes e ser acolhida. Minha terra como cura foi saber que eu sempre fiz parte da terra e ela de mim. Kwêkatu reté Pachamama e as minhas ancestrais, aos meus parentes Pataxó da Aldeia Velha e pela experiência num todo me lembrando sempre que precisamos estar preparados pra luta.

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UILIANE MONTEIRO LIicenciatura em Dança

Cura de que? Em tempos de enfermidades físicas, psicológicas e sociais, fala de cura é falar de muitas coisas, mas qual a cura mais emergente?. Confesso que ao escolher o componente, tive vários questionamentos sobre qual cura se trataria. Foi uma surpresa e também uma preocupação saber que estudaríamos a cura através da terra, a partir da cosmovisão e saberes indígenas e Candomblecista. Como pesquisadora de dança com ênfase na cultura indígena e nas artes de Terreiro de candomblé, simultâneo a ACCS participei como bolsista pesquisadora de um projeto também de extensão “Universo dos Terreiros – ProCEAO/UFBA”, nesse projeto pude aperfeiçoar minha forma de lidar com o “meu objeto de pesquisa” que é sagrado para o outro, mesmo fazendo parte de tal realidade, eu sou acadêmica e esse lugar de poder, também pode me colocar em um lugar de opressão e exploração, se a pesquisa não for cuidadosamente conduzida. Precisamos estar atentos, não só para adquirir saberes e experiências, mas para respeitar e agregar ao outro. Na ACCS a condução deixou em falta a escuta de vozes do lado de fora da acadêmica, pois essa é a intenção de um projeto de extensão. Gostaria muito de ter ouvido mais as vozes indígenas e candomblecista. tínhamos uma colega indígena e pouco foi ouvida, um colega Candomblecista e pouco foi ouvido. Penso muito se isso não se deu por nossos colegas serem acadêmicos e não aldeada? A fala e a credibilidade são perdidas nessas situações? Não falo que essas falas deve ocupar o lugar de fala de um Candomblecista que vive o terreiro por mais tempo, ou de Indígenas aldeadxs, mas na falta de tal, o lugar de fala pertencia a essas pessoas. Que não foram devidamente escutadas. Questionando os porquês da ACCS ter tido direcionamentos vazios, cheguei a uma palavra. Fetiche. Será que o fetiche pelos esteriótipos é mais forte que a real intenção de troca? Não respondo, deixo a reflexão.

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ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

Penso que a ACCS – A Terra Como Cura, tem uma potencia inovadora e necessária, não só por promover interdisciplinaridade entre os cursos, mas por ter capacidade de contribuir para a formação humana , sendo assim capaz de provocar desconstrução de problemáticas enraizadas em diversos cursos na UFBA. Mas para isso acontecer, deixo aqui registrado que é essencial manter a diversidade de cursos na ACCS. Nessa experiência piloto faltou condução sólida ao que se tratava a ACCS, entregar a sorte não é o correto a se fazer, tivemos a prova viva na experiência de campo que a formação de consciência ela precisa existir desde do primeiro dia encontro, para que os estudantes possam ser guiados a se refletir como sujeito pertencente a um mundo de diversidades e o número de falhas ser mínimas.

“ Precisamos refletir que “par de olhos” colocamos para enxergar a realidade dos outros, principalmente as realidades de saberes popular. A pesquisa é um instrumento de fala poderosa para academia, por muitas vezes eu vi o pesquisador ter mais credibilidade que o pesquisado. Por isso insisto em dizer que é preciso se despir para pesquisar, para se estar em campo popular o Lattes, o pensamento branco e o ego acadêmico não pode estar debaixo do braço.....” ( MONTEIRO, Uiliane, 2019)

Conhecer a Aldeia Velha, sem dúvidas foi um divisor de águas na minha vida. A reflexão trazida a mim como mulher, mulher negra, artista, educadora, pesquisadora e acadêmica foi muito importante para trilhar meus próximos passos, rumo a minha construção como profissional. Os colegas que tive a oportunidade de conhecer melhor durante a viagem, cada um contribui grandiosamente para coisas boas em minha vida. Por isso falo da importância de uma ACCS diversificada, pois acredito que construir pensamento, é pensar em conjunto, escutar a fala de quem pertence e observar mais do que perguntar. Só quando se compreende que não somos todos iguais é quando somos capazes de aprender com o outro. Discursos vazios de origem humana e igualdade perante a criação divina não vai salvar os indígenas e candomblecista do genocídio, etnocídio e de barbáries. É preciso aniquilar o pensamento de branquitude ou farsa continua e a cura não existe. Adoecemos a terra, e ela também precisa de cura, e a cura da terra, se encontra em cada um de nós, na forma que escolhemos nos relacionar com as pessoas presente na terra. A minha terra como cura é as muitas buscas que tenho feito a partir da ACCS, em busca da cura através da terra. Os resultados dessa busca? Só o tempo.....

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CAMPO DA SAÚDE

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CLARICE SOARES B.I. de Saúde

“Como o vaso, que ele fazia de barro, quebrou-se na mão do oleiro, tornou a fazer dele outro vaso, conforme o que pareceu bem aos olhos do oleiro fazer. Então veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o Senhor. Eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel.” A Bíblia (Jeremias 18:4-6)

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Desde os tempos mais remotos, o barro é tratado como símbolo de utilidade, humildade e maleabilidade. Não é por acaso que na passagem de Jeremias 18 do versículo 4 ao 6 a nação de Israel é comparada como o vaso de barro nas mãos do oleiro que pode ser transformado de acordo com o querer de quem molda o utensílio. No período de 16 a 19 de maio de 2019 participamos de uma vivência única, centrada em uma visita a Aldeia Velha – Arraial D’Ajuda-BA, onde o sentido e o significado da “Terra como cura” foram reafirmados em nossas vidas. Trazendo para nós reflexões profundas sobre o poder da simplicidade e do amor que é cultivado na grande Família Pataxó que nos acolheu no Sul baiano. Atualmente a academia nos impõe um padrão de conhecimento que desqualifica os saberes não científicos. Sendo assim, para José Carlos de Paula Carvalho “O etnocentrismo consiste em privilegiar um universo de representações propondo-o como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos e culturas diferentes” (1997, p.181). Porém, ao desfrutar de culturas tão ricas e importantes o sentimento que predomina não coexiste com a coisificação das pessoas que a ciência produz. Refletindo em nossos arcabouços o amor, cuidado, acolhimento, respeito, união, pluralidade, luta, resistência e a Cura, que pode não exatamente ser física, mas uma cura mental que quebra estereótipos, reafirma saberes e limpa a alma da poluição do absinto onde estamos. Só me resta agradecer pelo amor recebido nos poucos dias em vivência, que se manifestou nos alimentos consumidos, nas pinturas realizadas, em toda cultura compartilhada e principalmente na paz transmitida. Aldeia Velha permanecerá eternamente na minha memória e no meu coração. Gratidão!

Referencias: A BÍBLIA. O vaso do oleiro. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross Publicações, 2008. 1022 p. Velho Testamento e Novo Testamento CARVALHO, José Carlos de Paula. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas. São Paulo: comunidade, saúde e educação, 1997.

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DAVID JESUS Enfermagem


ELLEN FERNANDA SILVA MOURA Medicina

CURA PELA TERRA

Adentrei a ACCS a fim de conhecer o novo Algo que me trouxesse novos olhares Ă Medicina Como curar pela Terra ?

Gente diferente Cada um com suas peculiaridades Singularidades

Buscava algo alternativo

Cabelos coloridos Piercings Roupas legais

E foi ao observar cuidadosamente que pude encontrar A cada quinta-feira pude conhecer mais do universo da minha turma

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Pude ver a beleza da diversidade E uma parte de mim foi curada por poder vivenciar um pouco do espaço que abriga a diferença

Foi a cura da alma pelo contato com o extraordinário Onde cada um pôde ser com a sua simplicidade belo e extraordinariamente único.

Que acolhe Que escuta Que encontra sentido em apenas ser

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MAIRA LARISSA RAMOS DA ROSA Enfermagem (monitora)

“Nossas histórias se agarram a nós. Somos moldados pelo lugar de onde viemos”. Chimamanda Ngozi Adichie

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Carta para quem (me) construo

Lembra daquele projeto que te brilhou os olhos ao ler, pois já não sabia que sentido dar à Terra e a Cura. E dos tantos outros questionamentos que se surgiram já no final do componente. A tua reflexão base foi de que nossas atitudes, seguindo o curso normal, refletem as nossas construções de vida. A tua construção não nega cor, gênero e a tua periferia do sul do país. Não entendeu bem a força da relação profunda entre humanos e humanas e minerais, mas soube que para alguém teve sentido, achou bonito. Apreendeu que compartilhamos elementos com a Terra, o que existe em nós. Se a Terra é casa então porque não usamos o nosso maior CEP? Correu logo no teu pensamento a ideia de lembrar esse endereço também nas práticas de saúde. Viu que a ciência não vai ter interesse próprio nas narrativas que fogem à explicação dicotômica “funciona ou não funciona” a menos possa usá-la para sua promoção. É preciso buscar as origens das práticas terapêuticas e valorizá-las, autoria não é só colocar no papel. De onde vem? Com as e os Pataxós aprendeu que o Barro é de uma força espiritual, enérgica, porque os antepassados também passaram por ritual com ele e, portanto, é uma ligação reavivada. Não somente ao nível espiritual o barro tem função, a cerâmica de produção artesanal, por exemplo, é também fonte de renda, sobrevivência e resistência para os pataxós. Olhar para “o outro” exige tanto mais que respeito; admite que já é intercultural. Agora você já pode ler epistemicídios, repense a interculturalidade. E de novo. Cada pessoa é um universo e cada universo tem sua cura. Multiplique-as! Há universos e curas que se cruzam para formar fontes e transbordar no que precisa renovar, foi a tua cura. Antes de tudo: responsabilidade com as bandeiras que hasteia, é necessário estar preparada para o embate. Escuta: estar ao lado da luta das comunidades tradicionais é entender que atuaremos como suporte somente, dando força para que suas vozes sejam ouvidas.

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NATÁLIA GUILHERMINA SANTANA SILVA B.I. de Saúde

A visita à Reserva Pataxó Aldeia Velha, localizada no município de Arraial D’ajuda foi um acontecimento singular. Foi preciso entender que nossos saberes acadêmicos são limitados para poder compreender com profundamente o que nos esperava. Logo na chegada uma lição sobre viver em comunidade e o quanto viver naquela terra contribui para aqueles indivíduos se sentirem pertencentes ao seu povo, o povo Pataxó. A partir da exibição do documentário “Celebrando o barro, Celebrando a vida” produzido na aldeia Pataxó da Jaqueira no Sul da Bahia, pude perceber a relação do barro e do povo pataxó. É uma relação tão íntima que abrange o conhecimento sobre a criação do povo, cultura, cuidado e espiritualidade.

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O barro é elemento da criação. No documentário, a narrativa sobre a criação do povo pataxó se assemelha a história contida na bíblia cristã sobre a criação do homem, que se encontra no livro de Gênesis. Os personagens recebem nomes diferentes, mas a essência é a mesma. Yamissum e Deus, Txõpay e Adão... os últimos com a missão de serem guardiões de tudo que havia sido criado. É interessante, pois esses traços deixam evidente a proximidade que os não indígenas possuem com os indígenas. Foi uma bela surpresa que fez sentido quando em um dos discursos proferidos surgiu a palavra parente, para além disso, trouxe respostas para questões como a existência de indígenas fazendo parte de diversas denominações religiosas cristãs, pois se há uma mesma origem não tem motivos para existir distanciamentos ou mesmo impedimentos. O barro é fonte de fortalecimento espiritual. Se o homem foi criado do barro, nada mais justo do que procurar nele a fonte de alimento não só do corpo como também da alma. É através do barro que são feitos rituais de energização do sujeito, do ambiente, do contato entre o homem e o meio. Ao participar de um ritual durante a imersão, foi interessante perceber como tocar a terra auxiliava na centralização do Eu e da purificação do indivíduo. Experiência transformadora, porque me fez ter um novo olhar sobre a terra e a relação com ela. O meu andar descalço ganhou um novo significado.

O barro é fonte de cultura. Apesar da maioria das casas da aldeia ser de alvenaria, ainda existem construções de barro. Visitamos uma construção durante a caminhada na trilha dentro da reserva. Além disso, é meio de resgate de um povo, que carrega na fala a dor de ter tido suas terras invadidas e quase sucumbir a agressividade do colonizador, através dela os pataxós contam a história de um povo guerreiro e sobrevivente, expondo-a para a os seus descendentes bem como para a comunidade externa, através de suas cerâmicas e suas pinturas. Sempre bem pintados e enfeitados, transpareceu a vaidade e a beleza desse povo. O barro é elemento do cuidado. Um cuidado que na aldeia é realizado pela primeira pajé mulher da região, Dona Jaçanã, que também acumula a função de parteira e associa as suas realizações à bençãos de Deus. Apesar de carregar um sofrimento do passado, tem no seu sorriso a marca de quem sabe viver e usa seus dons para trazer outras vidas ao mundo ou a resgatar doentes. É tão sábia que sabe suas limitações e não tem receio algum de encaminhar os seus para serem cuidados por médicos não indígenas, quando a necessidade ultrapassa seu alcance. Uma das falas da pajé responde a tudo “se nós viemos do barro, é só colocar barro que cura”. E aí voltamos e percebemos como o saber curativo da argila está associado à cultura, e tudo está entrelaçado. Não se pode pensar em nenhum elemento separadamente.


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Na UFBA, no Ambulatório de Práticas Integrativas e Complementares (PICS), localizada no Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES), também é usada a argila como método terapêutico, conhecida como Geoterapia, que apesar de estar sendo mais difundida como prática terapêutica atualmente, é uma terapia milenar. Com essa vivência na Aldeia Velha, foi possível entender que a terra não cura apenas feridas abertas na pele, mas feridas abertas na história e na alma. Foi uma experiência enriquecedora e elucidativa, pois permitiu a compreensão de que nada vale a manutenção de individualidades, segregações e guerras. Precisamos cuidar de nós mesmos e uns dos outros. Afinal, SOMOS UM.

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RAFAEL ARCANJO

B.I. de Saúde

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Mãe-d’água e da subsistência, a Terra é ainda rica em anorgânicos e metais, cujas propriedades terapêuticas são largamente utilizadas na Geoterapia – técnica natural que acode-se principalmente à argila, ao barro, às pedras e aos cristais para tratar conturbações físicas e afetivas, restabelecendo o equilíbrio nato do corpo e da mente. Uma cura que está literalmente aos nossos pés. Técnica essa bem difundida pela população Indígena Pataxó. Entre os dias 16 a 19 de Maio/19 participei da atividade extraclasse, realizada pela Universidade Federal da Bahia, mais gratificante da minha caminhada estudantil. Fora feita uma excursão a campo para a Reserva Pataxó Aldeia Velha na qual fica localizado em Arraial D’Ajuda, município de Porto Seguro, sul da Bahia. A aldeia é gerenciada pelo cacique juntamente com as lideranças que tomam as decisões junto à comunidade e vivem do artesanato, agricultura e outros prestam serviços à rede de turismo na região.

RAYNAN MONÇÃO

B.I. de Saúde

A Bíblia nos revela no livro de Gênese no capitulo dois e versículo sete: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra [...]”. Diante disso, fica claro que não somos uma parte; e sim, barros. E sabiamente os Indígenas têm esse habito de curar através da Terra.

Foi nos apresentada, após vista a Escola, a Pajé Jaçanã, senhora bastante sábia e elegante. Durante o diálogo a Pajé afirma ter sido escolhida pela comunidade para exercer essa função, devido a sua sabedoria em fazer partos, grande força espiritual e conhecimentos com ervas medicinais para o tratamento de doenças. Em vinculação ao parto, a Pajé explica que as mulheres vão para os hospitais para terem os bebês, e lá não recebem os devidos cuidados, pois em diversas vezes o bebê esta em uma posição que não é favorável para o parto normal o que leve consequentemente a morrerem não raras. Ainda relatou que os profissionais envolvidos na situação não acompanham todo o processo para obter a criança. E, em casa, a parteira tem todo o cuidado de acompanhar a paciente até o momento final do parto. Afirmando que é preciso ter bastante conhecimentos Nessa Escola foi apresentado o documentário intitulado de “Celebrando o Barro, com ervas, para ser feito os banhos que precisam, para alívio de dores durante Celebrando a Vida”. Além de trazer as curiosidades sobre a rotina da População e após o parto. Após o dialogo foi servido o almoço, confesso que nunca me Indígena, nos revela o real significado que o “barro” representa para eles assim alimentei tão bem e de uma forma bem simples, estavam ali todos os macro como a utilização, tanto para a purificação espiritual quanto física. Confesso que e micronutrientes provenientes da Terra Mãe. À noite, participei do ritual, e o nunca tinha parado para analisar até que ponto as informações passadas tanto dançar descalço naquele momento me fez tão bem a ponto de curar uma cefaleia pela escola na qual eu estudei quanto por pessoas próximas a mim fazem sentido na qual estava sentindo. Provando mais uma vez que a Terra cura, como está exclamado no titulo. em relação ao manuseio do barro. Ao chegar pela manhã do dia 17 na respectiva Aldeia, logo foi materializada e desconstruída, ao mesmo tempo, toda a teoria discutida em sala de aula. Pisando em solo, logo percebi a energia radiante daquele espetacular lugar, mesmo estando com os pés calçados a maior parte do tempo, e confesso que se eu soubesse o quanto é prazeroso andar descalço eu não teria levado a sandália. Fomos convidados a visitar a Escola Indígena Pataxó da Aldeia Velha, localizada no centro da aldeia e composta por com 04 salas de aula, uma biblioteca, espaço administrativo, almoxarifado, cozinha e banheiros. Tudo me chamou atenção, porém o que mais me impressionou nesse momento foi justamente a valorização da cultura local e o ensino da língua Patxohã.

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Pela manhã do dia 18 participei de uma caminhada pela trilha e foi nos ensinado e demostrado vários elementos, dentre eles algumas ervas que são utilizadas para fins medicinais. Sentir a natureza, e seus elementos foi libertador e radiante trazendo para a alma alimentação essencial e enriquecedora. Diante disso, tive a experiênciade aprender, reaprender e construir e desconstruir, e para isso foi preciso ter a dimensão que a terra é deles, despir de conceitos impostos pela sociedade dita branca e reaprender outros valores, outros conceitos. Diante disso, vivemos no Brasil um período extremamente delicado para comunidades tradicionais e povos indígenas. Políticas governamentais recentes colocam em risco direitos básicos desses povos, como a demarcação de terras e o direito ao território. A mobilização de cada um de nós é fundamental nesse momento, para assegurar a integridade das Terras Indígenas, a preservação de nossos ecossistemas e riquezas naturais e a continuidade de povos e expressões culturais centenárias. Em relação ao discurso questionador acerca da extensão e demarcação dos territórios indígenas, por que querem que os indígenas usufruam de um território pequeno? Por que tanta morosidade em demarcar os territórios indígenas? A população acaba acreditando no que a mídia expõe, sem refletir, sem entender o contexto, inclusive de território. Questiona o porquê dos indígenas desejarem um território grande, mas desconhece que a questão do território esta estreitamente ligada à cultura e a identidade dos povos indígenas. Durante a conversa no percurso da trilha, só fez me confirma a frase do Filosofo Sócrates: Só sei que nada sei. Diante de tanto conhecimento e sabedoria que nunca iremos encontrar nos livros, principalmente da forma que nos é apresentado. Sendo assim, diante do exposto, as características terapêuticas da argila e do

barro são determinadas pela sua composição química e geológica, cada uma muito específica, uma vez que o solo é invariavelmente influenciado por vários fatores. A população indígena provou que algumas das substâncias químicas encontradas na Terra são diretamente responsáveis pela cura e restauração do tecido celular humano – a argila revelou-se um anti-inflamatório, antisséptico e cicatrizante 100% natural. Agradeço a Deus em primeiro lugar, e a posteriori ao Cacique Anehõ, Vice-cacique Ytapuã, a Pajé Jaçanã e a todos que fizeram desses dois dias de imersão um dos melhores da minha vida, tenho a certeza que esse conhecimento partilhado só me fez crescer em todos os sentidos possíveis, e que precisamos conservar este legado cultural para as futuras gerações, assim como desconstruir a todo o momento as informações colonizadoras, brancas e eurocêntricas. Gratidão é a palavra que melhor define a minha vivência!

Referencias: PORTAL BEM ESTAR. Geoterapia: a cura que vem da terra. Disponível em: https://bemtratar.com/artigos/geoterapia-cura-que-vem-terra. Acesso em: 24 de junho de 2019. BLOG ALDEIA VELHA. Quem somos. Disponível em: https://aldeiavelha. wordpress.com/quem-somos/. Acesso em: 24 de junho de 2019.

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CIENCIAS DA TERRA



ANNAYS GOTTSCHALK Geologia

“Não se deve temer o próprio destino”. Entre tantos ensinamentos com os quais fomos agraciados no decorrer da nossa viagem à Aldeia Velha, este sem dúvida foi o que mais marcou. Qual seria nosso destino como ser humano e sociedade diante deste contexto assombroso que nos cerca, e que há alguns, sempre cercou? Qual seria o nosso destino como estudantes que tiveram a oportunidade única de fazer este campo, mesmo diante do caos político/ econômico e inércia intelectual que vemos tomar conta de toda uma nação? A universidade, como um dos centros onde se faz ciência (lê-se humanas, exatas, artes e saúde, pois tudo que exige investigação, pesquisa e dedicação é ciência), tem a obrigação de servir à natureza e ao bem estar social.

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É impossível conseguir isolar-se de uma sociedade envolvente, e isto torna a luta do “ser indígena” diária e complexa, resultando numa constante reafirmação do ser o que se é. Em algum momento da tragédia humana, o elo entre a natureza e o ser humano foi perdido, e este insiste em enxergar-se fora do meio ambiente, idealizando uma dicotomia entre o ser Selvagem x Social e automaticamente caminhando para uma sociedade doente que se esqueceu de onde veio e para onde retornará.

Poder vivenciar um pouco desta cultura, conhecer um pouco da sua gente e da sua história, contados fora da perspectiva eurocêntrica equivocada que há muito encontramos nas escolas e em seus livros, é como descobrir um Brasil que há muito esteve/está esquecido e segue perseguido há mais de 500 anos. Filhos da Terra, que não têm medo de enfrentar seus próprios demônios, abordam o Machismo de frente e ver suas lideranças femininas marcando presença é como poder retomar o fôlego nesta sociedade sufocante. Creio que o único modo de recuperarmos nossa sanidade e humanidade seja olhando para nossas origens, a eterna busca por quem somos direcionou-se para o externo e esqueceu que a resposta está dentro de cada um e das conexões que insistimos em negar. Cabe a nós, privilegiados pela possiblidade de ser universidade e mais ainda de questioná-la, fazermos alguma diferença para garantir que ainda tenhamos algum futuro digno de coexistência com a nossa divindade mais palpável: a Terra.

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Como geocientista investigo o corpo humano e o corpo Terra buscando os fractais, a geometria se repete e expande. Conhecer mais de perto nossa cultura e ancestralidade na Aldeia Velha Pataxó, lugar onde a conexão com a Mãe Natureza e sua geoterapia tem espaço para atuar é mais um despertar. Suas medicinas e vivências trazem para perto a sabedoria ancestral, aquela que já curou tantas dores e hoje permite que esse corpo físico cure a sua própria. A natureza em sua sacralidade nos presenteia com elementos, o possuímos e utilizamos conforme precisamos de suas forças. Sua energia vital se propaga em meios distintos, atuando individualmente em cada corpo de forma sutil e física. Ela é cíclica, podemos sentir os fluidos das raízes para os topos das árvores de forma sincrônica com os astros. A força da lua sobre as águas dos rios, mares e oceanos chegam até nossas lágrimas e o sangue que corre em nossas veias e pulsa no nosso ventre, fala sobre a ciclicidade, a ida e a vinda, a sombra e iluminação, a morte e a vida. O despertar espiritual é também o despertar da criatividade sagrada, praticar o silêncio e sentimento inspira nosso corpo a liberar energia por meio da arte. O contato com a arte aguça a visão, a geometria sagrada aparece para contar a história da Terra, ela aflora de forma intuitiva em movimentos sobre um corpo dançando e em desenhos sobre a pele e papéis.

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BRENDA VIANA Geologia

O corpo físico da Terra são as rochas, minerais e metais, argilas e cristais. Cristais e suas cristalografias oferecem a cristaloterapia. As estruturas das rochas falam por onde a água passa, e porque ali elas correm, as águas e os ventos se cruzam e constroem espirais fazendo a limpeza e purificação que precisamos. Os poderes dos elementos oferecem o que precisamos para a cura, vem do solo que nos dá frutos e ervas para nutrir nosso corpo e espírito, do barro que neutraliza nossas cargas negativas, bater o pé no chão restabelece esse equilíbrio. O ar dá combustível à luz, mostra os caminhos e refresca nossa própria atmosfera. A luz que vem do fogo aquece nossa alma e traz a chama do amor e a experiência da energização. Ela atua de dentro pra fora e de fora pra dentro, em todas direções, iluminando nossas sombras.

No entanto, a cura não é um processo confortável e nem sempre é um caminho fluido. Ela incomoda. É um remédio que arde a ferida esquecida, trazendo à tona o que deve ser trabalhado. Esse trabalho é extenso, podemos ignorar, inflar o ego pra nos auto-encobertar, e ao negarmos nossas falhas, tapando nossa visão examinadora, estagnamos o processo (progresso) de nossa própria evolução. Para o momento em que reconhecemos nossas fraquezas e desacertos, em que observamos aqueles padrões que não condizem com a manifestação natural de nosso ser, à cura atua nos direcionando para o nosso próprio perdão, nos libertando da culpa de sermos quem somos. A partir desse momento, buscar a força da natureza em suas medicinas traz de volta a lembrança para nossa alma de como o processo tem que ser.


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(Desenhos intuitivos de uma forรงa fluida que trouxe limpeza e cura sob a sombra da lua nova.)

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GABRIEL COSTA BARBOSA OLIVEIRA Geologia

PORTA PARA O SENSÍVEL

A história de criação Pataxó relata que o homem foi criado a partir do barro para cuidar da Terra. Percebe-se uma diferença gritante na relação do homem com a Falar sobre minha experiência na Aldeia Velha é difícil. É difícil evitar cair nas natureza para a história de criação cristã que diz “coloquem-na [a Terra] a seu armadilhas que a minha posição como homem citadino está rodeada. Como serviço e reinem sobre os peixes do mar e os pássaros do céu e sobre tudo que é relatar a experiência sem contribuir para a folclorização da questão indígena? vivo que a Terra proporcione!”. Como refletir sem exercitar o meu narcisismo? Não que eu esteja me propondo a encontrar essas respostas - creio não ser capaz -, mas faço isso para me situar Enquanto um pretende cuidar, o outro domina, essa comparação sempre me voltava durante as conversas em sala e em campo. Para você dominar algo (ou em um ponto de partida para o relato. alguém) é preciso um certo desprendimento emocional, assim, separando o hoNas discussões pré-vivência muito se falou sobre como que na criação dentro da mem da natureza torna-se mais fácil subjugá-la. O processo é inverso quando o sociedade atual, o nosso ser “sensível” é podado para dar lugar ao conhecimento ato é de cuidar. científico, ao ser “racional”. Eu não diria que o meu ser sensível foi podado, e sim amputado e completamente removido de mim, é aí que entra a frase que Parece-me claro que vem daí essa necessidade de “podar” o nosso ser sensível, para poder reinar e dominar sobre a Terra sem o sentimento de culpa. Eu não permeou todo o semestre de atividades da ACCS. quero reinar sobre nada, não quero ser o dominador, mesmo que tenha sido A Terra cura. criado para ser tal (ainda que subordinado ao homem branco), acho que o meu Não quero falar sobre a cura de doenças e feridas, coisas mais palpáveis e con- caminho para a quebra desse ciclo está sendo o (re)conhecimento dos saberes e cretas, mas dessa parte “sensível” dentro do nosso ser, como através desse conta- valores tradicionais, suas visões de mundo, suas filosofias, formas de tratar e se relacionar com o outro e com o meio que está inserido. Principalmente, a forma to com a Terra a gente pode resgatar esse pedaço que nos é negado. como você se posiciona e se afirma no espaço.

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ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

Assim, juntamente com a quebra, há o resgate dessa parte sensível sua que lhe é negada e a construção de um novo ser. Não que eu acredite que esse seja um processo que tenha um fim, e que um dia eu me livrarei de toda essa criação cristã-ocidental e alcançarei um suposto nirvana olímpico e sozinho. Creio que seja muito mais um processo contínuo, que dure enquanto estiver vivo e que, além de tudo, é coletivo. Daí, a principal questão passa a ser: como aplicar esses valores à minha realidade? Como estudante de geociências, a gente adquire um certo olhar sobre a Terra como um sistema integrado entre várias esferas e em constante mudança, um sistema complexo e deslumbrante e que a nossa passagem é um mero piscar de olhos dentro de um grande esquema. Mesmo assim, qual o olhar que o geólogo tem sobre a Terra? Parece que por olharmos tanto para o presente, tentando desvendar o seu passado, nos esquecemos de nos perguntar como que vai ser o futuro. A realidade é que esse olhar ainda é de dominação e exploração, eu não acredito que isso seja inerente à ciência e é algo que pode e deve ser confrontado. A maior lição que levo de todo esse processo é de sempre tentar conciliar essas visões de mundo. Como um possível futuro profissional, é muito fácil para eu tornar a ocupar a posição de dominador (ou talvez eu nunca tenha a deixado) e de exploração sobre a Terra, sei também que pode ser muito cômodo ocupar esse espaço. Mas é preciso sempre se questionar em como fazer diferente. Como pensar a geologia além do olhar cristão ocidental de dominador/explorador, mas como cuidadores da Terra? É uma pergunta que devo me fazer todos os dias.

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MILENA COSTA Geografia

A Terra cura? Sim, e como cura! Ela cura o corpo, alma e as energias, ela recarrega todas as vibrações que interligam os seres, fazendo assim todo o processo necessário de revitalização para o funcionamento da vida. A medicina tradicional seria o método mais conhecido para tratamentos de doenças, mas porque nos limitarmos tanto? A mãe Terra nos fornece o ar, a água e a terra, que podem ser considerados tratamentos naturais para o corpo e a alma. A palavra CURA já existia em latim com o sentido primitivo de “cuidado”, “atenção”, “diligência”, “zelo”. Havia também o verbo curo, curare, de largo emprego, com o significado de “cuidar de”, “olhar por”, “dar atenção a” e “tratar-se”. Se procurarmos atualmente a palavra CURA no dicionário acharemos resultados como restabelecer o estado normativo corporal, praticar medicina, praticar curandeirismo ou exercer funções de cura de almas. É possível vermos que existem muitas definições para o significado de cura, porém acredito que o que nos cura fisicamente e mentalmente seja um processo totalmente único e os seus métodos são extremamente vastos e particulares.

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O que te faz bem de verdade? Práticas convencionais ou algo totalmente natural? Há quem diga que ter os pés descalços, senti-los livres e com o solo em direto contato enquanto caminha, seja um processo de cura. Assim como a utilização do barro para curar doenças, algo que está presente em diversas culturas, existente também nas tradições indígenas, como foi possível vermos no decorrer da nossa jornada na disciplina. Devemos aprender que o mundo é repleto de possibilidades, possibilidades que muitas vezes não são conhecidas ou pouco usadas pela medicina convencional e até mesmo pela população, contudo é de extrema importância o conhecimento destas, para que haja então uma disseminação desses saberes, pois é necessário o desenvolvimento e a inserção dessas novas práticas no cotidiano da saúde.

A importância do barro para a comunidade da aldeia pataxó foi algo totalmente relevante para o nosso conhecimento de cura local. A utilização da terra para curar doenças sempre esteve presente durante as tradições deste povo, que colocavam argila em cima de órgãos que consideravam doentes, como por exemplo, a barriga. Ela atuava como uma espécie de filtro, capaz de renovar as energias do órgão e deixando-o mais saudável. E até hoje esse e outros costumes com o barro são utilizados.

Para os Pataxós a vida vem do barro, sendo assim visto como algo de grande riqueza para tal. O barro é usado nos rituais, no artesanato e na cura algo que é muito comum na comunidade. No filme “Celebrando o Barro, Celebrando a Vida”, foi possível ver o resgate do uso dessa matéria prima tão importante para os Pataxós, assim como a sua relação totalmente intimista com a argila, utilizado Aldeia Velha é uma aldeia indígena da etnia Pataxó localizada em Porto Seguro. então com grande propriedade na área da saúde. Local este cheio de saberes, ensinamentos, pessoas de aura pura, branda e ao mesmo tempo forte conseguindo assim manter suas raízes preservadas. O povo Entrar em contato com o natural, andar descalço, alimentação totalmente orgâPataxó é cheio de riqueza, contudo não falo de riqueza material, mas de sabe- nica, ar puro, ritual, o balançar de árvores, intensidade, liberdade, união, soar dorias, sabedorias que devem ser muito valorizadas. Conhecimento este que se de pássaros e animais em seu habitat natural, tudo isso se resumiu em apenas mostrou muito vasto e amplo para ser totalmente absorvido em apenas dois uma palavra para mim, “CURA”, mas cura de espírito. A cura para que houvesdias, porém foi possível aprender muito nesse tempo que passamos por lá, co- se o descarrego de energias pesadas que deixei para trás em apenas dois dias, nhecemos um pouco deste novo olhar de cura por meio da ajuda da sábia Pajé momento totalmente singular e único. Cada pessoa estabelece uma forma bem Jaçanã e dos queridos indígenas que nos acompanharam nessa jornada, recebe- particular de lidar com as questões referentes à sua saúde e ao seu corpo. Assim, mos um punhado de sabedorias ricas em tradição e ancestralidade que devem independente dos diagnósticos médicos, a felicidade e cura de cada sujeito está relacionada às suas crenças individuais. ser levadas por gerações.

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RODRIGO CABRAL

Geografia

Porém, vivemos em uma sociedade capitalista onde o entendimento é exataO SER HUMANO E A TERRA mente o oposto, há uma nítida (e necessária) separação da sociedade da natureza, onde os homens devem seguir as leis da Entre os dias 16 a 19 de maio eu tive o privilégio e política-econômica e a natureza é um mero a oportunidade de conhecer um pouco do cotidiarecurso e meio de acumulação. Reclus, no da Aldeia Velha, comunidade Pataxó localizada como um grande militante anarquista que no município de Arraial D’ajuda. Essa vivência foi também foi, tinha a convicção que a conspossibilitada a partir do trabalho de campo de um Toda essa profunda relação com a terra, que fica trução de uma sociedade justa e em harmocomponente curricular da UFBA, denominada: nítida na cultura e nas práticas dos indígenas, me nia com a natureza deveria passar pelo proTerra como cura - Geologia e os saberes tradiciolevou a refletir sobre a grande dicotomia que temos cesso de superação da sociedade de classes nais. Nessa disciplina foram debatidos sobre os na cultura ocidental e capitalista entre a sociedade e (capitalista) que vivemos e reconstrução da diversos saberes que a humanidade tem sobre a a natureza, que são vistos como coisas distintas para sociedade a partir de valores humanizados e terra, desde o conhecimento científico ocidental até a ciência e também na nossa cultura. Em minha verdadeiramente libertários. os saberes dos povos indígenas e tradicionais. área de estudo, geografia, há um geógrafo francês do século XIX chamado Elisée Reclus, escreveu Dessa forma, o maior aprendizado que eu Em nosso primeiro contato com a comunidade, a frase “O homem é a natureza tomando conscilevo dessa vivência é mais uma constatação fomos recebidos pelo cacique, que fez a exibição de ência de si mesma”, que é uma frase carregada de de que a construção de um projeto alterum documentário chamado “Celebrando a terra”, significado e que dialoga muito com a visão Pataxó nativo de sociedade passa necessariamente onde foram expostas as várias dimensões de vasobre a natureza e sobre qual o papel dos indígenas pelo aprendizado e respeito a todos esses lor que a terra representa para os indígenas. Esses na terra. Para mim, ficou nítido que os indígenas saberes tradicionais. Saberes esses que são valores iniciam-se no religiosos e espiritual, onde o compreendem que eles vieram da terra e que para conhecimentos acumulados ao longo de Deus (Niamisu) cria o homem a partir da junção do lá irão retornar após a morte, uma compreensão de milhares de anos na busca por uma relação barro com as gotas d’água vindas da chuva, passan- profunda unidade e respeito com a terra e com os efetivamente harmônica com a terra e com do pelo valor artístico, com as pinturas corporais outros seres viventes nela, que também vem acom- o universo, e não movidos por valores merfeitas a partir do barro e chegando ao valor conspanhado de um profundo sentimento de responsa- cantis e individualistas. Devemos descolonitrutivo e de artesanato, com o uso dado ao barro bilidade com o meio ecológico, já que somos parte zar as nossas práticas e o nosso pensamento na construção das casas e dos diversos utensílios dele e precisamos dele para a nossa continuidade da para realmente poder avançar na construdomésticos criados a partir desse material. vida nesse planeta. ção de um novo futuro. Porém, diferente da cultura ocidental, esses valores não são dissociados no cotidiano dos indígenas, onde há uma intrínseca ligação entre o religioso, o artístico e as necessidades do dia-a-dia, em que o próprio andar descalço é uma forma de conexão com a terra e com a matéria que deu origem aos seus antepassados.

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ACCS GEOD34 - Terra como Cura: geologia e os saberes tradicionais.

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POSFÁCIO

AFETAR E SER AFETADO: OS ENCONTROS COM O “OUTRO” NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

Quando falamos em cura, pensamos em doença e no reestabelecimento da saúde. Pensamos em corpos. O corpo, locus dos nossos males mas com potência de se regenerar, se transformar, se curar a partir do contato com outros corpos e dos saberes e trocas gerados destes encontros. É o afetar e o ser afetado do qual falava Espinosa. O nome desta ação curricular é em si um convite ao encontro de dois saberes, desdobrados em diversos momentos e ações de novos encontros. Esta publicação é o resultado de muitos encontros e uma infinita possibilidade de tantos mais Olhar para o “Outro” quase sempre é olhar para nós mesmos. Será que conseguimos enxergar os rituais institucionalizados dentro do nosso sistema médico como tais? Enxergar as vestimentas usadas nos hospitais pela equipe médica com o mesmo estranhamento com que encaramos as roupas e pigmentações utilizadas para marcar o corpo daqueles que realizam práticas de cura? Perceber as hierarquias existentes das equipes de saúde e como estas podem ser semelhantes às das comunidades nas quais nos aproximamos? Nas diferenças sentidas como efeitos físicos e emocionais de um paciente que recebe o diagnóstico de um médico ou de uma enfermeira? Estranhar o familiar é exercício necessário para que os encontros possam nos afetar.

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Mas e quando o conhecimento do outro desafia o meu próprio sistema de compreensão do mundo? Como permitir ser afetado por algo tão distante do meu conjunto de crenças? Permitir a sensibilidade abre espaço para fugir da ingenuidade da realidade como algo sempre mensurável e visível. Captar a partir de outros sentidos as nuances de intenções nas relações e nas ações que conformam as interações humanas nos coloca em contato com as invisibilidades. Nos afeta. Nos transforma. Talvez seja desse processo que estes relatos, textos e produtos contam aqui: conhecimentos produzidos a partir de experiências singulares sentidas a partir do seu contato com o Outro. Além disso, é importante duvidar das nossas próprias certezas e buscar as noções de corpo, saúde, cuidado, doença e cura em outras referências, distintas das nossas. Será que podemos pensar o barro para além das suas propriedades químicas nas curas ofertadas? Se não estivermos dispostos a escutar ativamente nossos interlocutores, para além daquilo que se deseja ouvir e abandonarmos nossos próprios pontos de vista diante de testemunhos, cabe nos questionar inclusive qual o sentido das nossas práticas e da nossa produção de conhecimento. Por fim, e voltando a Espinoza, desse meu bom e breve encontro com a experiência da ACCS levo o sentimento de desejo de que estas práticas de extensão se ampliem e que os afetos alegres gerados a partir dele produzam noções comuns, ampliando nosso conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos. Marieta Reis

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A Terra Como Cura?, reúne relatos em textos argumentativos-reflexivos, poesias, colagem e áudios (acesso por QR Code e Hiperlink) versando sobre a nossa necessidade de conhecer, conectar e estar na Terra. A nossa necessidade de cura. As e os autoras/es são estudantes de graduação resididos nas áreas de Artes, Geociências, Humanas e Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Todo material aqui contido foi gestado e materializado na disciplina GEOD34 A Terra como cura: geologia e os saberes tradicionais. Essa disciplina está vinculada ao programa Ação Curricular em Comunidade e Sociedade – ACCS -, Pró-reitoria de Extensão da UFBA. Aqui estão refletidas as diversas etapas da disciplina, desafios e ganhos, e sobretudo a vivência realizada na Reserva Pataxó Aldeia Velha, Porto Seguro, BA.

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