Aceccine | Revista Movimento | Edição 1 | Agosto/2017

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aceccine — Associação Cearense de Críticos de Cinema

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capa O Estranho que Nós Amamos p.40 cinema cearense A Atual Fase do Cinema Cearense p.10 / Trilogia da Morte, de Petrus Cariry p.16 / Os Pobres Diabos p.22 — cinema brasileiro Corpo Elétrico p.24 / Xale p.32 / Baronesa p.34 — especial Twin Peaks p.36 — cinema estrangeiro O Ornitólogo p.46 / Lady Macbeth p.50 / Na Vertical p.52


UNIFOROFICIAL

UNIFORCOMUNICA

*Segundo o Ranking Universitรกrio Folha (RUF) 2016, considerando universidades particulares.


Cinema e Audiovisual é na Unifor LIBERDADE PARA CRIAR E EXPERIMENTAR Os processos de formação são orientados no sentido da experiência criativa, com professores mestres e doutores que constroem com os alunos percursos de partilhas de saberes, numa troca permanente de conhecimentos. AMBIENTES DE CRIAÇÃO Ambientes integrados de criação, com laboratórios digitais, estúdios, salas de exibição e biblioteca, que favorecem o desenvolvimento de ideias e projetos.


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cinema brasileiro Corpo Elétrico marcelo caetano / Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava fernanda pessoa / Mulher do Pai cristiane oliveira / Animal Político tião / Xale douglas soares / Baronesa juliana antunes

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cinema cearense

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A Atual Fase do Cinema Cearense / Eu Luto daniella previtera / Trilogia da Morte petrus cariry / Trem da Alegria francis vale / Os Pobres Diabos rosemberg cariry

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cinema estrangeiro

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Especial Twin Peaks david lynch / O Estranho que Nรณs Amamos sofia coppola / Afterimage andrzej wajda / O Ornitรณlogo joรฃo pedro rodrigues / Okja Joon-Ho Bong / Lady Macbeth william oldroyd / Na Vertical alain guiraudie / Frantz franรงois ozon / Ao Cair da Noite trey edward shults

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aceccine

Associação Cearense de Críticos de Cinema

diretoria 2016/2018 presidente Diego Benevides vice-presidente Daniel Herculano

membros honorários Enondino Bessa LG de Miranda Leão Tavares da Silva Wilson Baltazar

secretário André Bloc

1ª edição — agosto/2017

tesoureiro Ailton Monteiro

editor Diego Benevides

conselho fiscal George Pedrosa Marcelo Ikeda Thiago Siqueira

autores Ailton Monteiro, André Bloc, Arthur Gadelha, Beatriz Saldanha, Bruno Albuquerque, Camila Vieira, Daniel Herculano, Diego Benevides, George Pedrosa, Marcelo Ikeda, Pedro Azevedo, Pedro Martins Freire, Thiago Sampaio e Thiago Siqueira

associados Adriana Martins Ailton Monteiro André Bloc Arthur Gadelha Arthur Grieser Beatriz Saldanha Bruno Albuquerque Camila Vieira Daniel Herculano David Arrais Diego Benevides Érico Araújo Lima George Pedrosa Marcelo Ikeda Pedro Azevedo Pedro Martins Freire Thiago César Thiago Sampaio Thiago Sena Thiago Siqueira

projeto gráfico Carta&Carta www.cartaecarta.com realização Associação Cearense de Críticos de Cinema — Aceccine apoio institucional Universidade de Fortaleza — Unifor

agradecimentos Ana Quezado, Luiz Carlos de Carvalho, Bete Jaguaribe, Wolney Oliveira, Marcelo Caetano, Paula C. Ferraz, Felipe Goes, Bárbara Cariry, Pedro Azevedo, Janaína Rodrigues, Cinema do Dragão, Vitrine Filmes, California Filmes, Universal Pictures, Espaço Z, Cine Ceará e Universidade de Fortaleza - Unifor Distribuição gratuita 2017 Todos os direitos dessa edição reservados à Associação Cearense de Críticos de Cinema impressão Gráfica Unifor tiragem 500 exemplares fortaleza – ce – brasil aceccine@gmail.com www.aceccine.org facebook.com/aceccine

A Revista Movimento é uma publicação independente da Associação Cearense de Críticos de Cinema - Aceccine

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pensar o que nos move

editorial

A Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine) surgiu de um interesse natural de reunir e respaldar o trabalho dos profissionais da crítica no Ceará, criando um canal de comunicação entre eles para dialogar, em especial, com o cinema que é feito no Estado. A partir dos modelos de sucesso existentes em outros estados, como Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e ancorado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), instituição nacional, a Aceccine passou a atuar em diversas frentes do pensamento, respeitando a diversidade de perfis e opiniões que engrandecem a entidade em seu primeiro ano de existência. Assim como a produção audiovisual cearense tem dado saltos significativos na identidade Entre os destaques da edição está o texto de abertuartística brasileira, a boa crítica de cinera, uma análise detalhada sobre as conquistas do ma pensa na permanência dos filmes como cinema cearense nos últimos anos, evidenciando algo essencial para o amadurecimento da a inquietação criativa dos cineastas locais, bem linguagem e das propostas fílmicas concomo as políticas culturais que despertam no temporâneas. A Aceccine tem como objetivo Estado. O especial dessa edição é uma homenaprimordial a preservação da identidade do gem ao legado de Twin Peaks, de David Lynch, cinema cearense e brasileiro, sem excluir as que tanto influenciou uma geração de cinéfilos, múltiplas experiências estrangeiras ofertarealizadores e, claro, de críticos. das aos montes nas telonas. A entidade tem A capa foi dedicada a um dos principais lançamentos se aproximado dos realizadores e do público, do segundo semestre do ano. A obra de Sofia Cotanto por meio de oportunidades de diáloppola iniciou sua trajetória no Festival de Cannes go que surgiram, quanto pela presença em e, muito além de sua premiada participação júris, curadorias e consultorias de eventos na mostra competitiva, reforçou um debate nerelacionados à Sétima Arte. cessário da produção contemporânea, que é a Existe um mundo de ideias por trás de uma descentralização de uma indústria dominada associação recém-criada, que se modela aos por homens e o papel fundamental da mulher poucos para que aconteça. A Revista Movino cinema. Os espaços precisam ser ocupados e mento é uma delas. Em sua primeira edição, discutidos, inclusive na própria Aceccine, onde a publicação oferece um panorama plural de ainda há uma representatividade feminina inreflexões sobre o cinema, dividido nos pilares: ferior ao que a entidade deseja. cinema cearense, cinema brasileiro, espe- A escolha por uma publicação impressa em tempos cial e cinema estrangeiro. O planejamento de digitalização de ideias traz diversos desafios editorial deste número buscou contemplar de viabilização, reconhecida pela Aceccine como alguns filmes importantes que já passaram uma oportunidade para pensar também sobre pelas salas de exibição em 2017, bem como a resistência dos espaços de comunicação e da outros que ainda são inéditos, mas que já mídia. A ideia é que a Revista Movimento circule foram exibidos em mostras e festivais imem pontos de cultura dentro e fora do Ceará e que o tatear de uma publicação feita com mais portantes no Brasil e no exterior. A Revista Movimento também tem o compromisso de vontade do que orçamento possibilite momentos dar progressão às obras a partir de análises construtitvos de leitura para quem gosta de ciaprofundadas pelos associados, que buscam nema e reconhece que sua força permanece viva, mergulhar em novas perspectivas e desafiar mesmo no meio de um turbilhão de incoerências a reflexão crítica. que o mundo enfrenta hoje. Até a próxima edição! Diego Benevides presidente da associação cearense de críticos de cinema — aceccine

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cinema cearense 8

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2016 Comédia

O Shaolin do Sertão de Halder Gomes

cinema cearense

De Vento em Popa na Terra do Sol por Marcelo Ikeda

O cinema cearense passa por momento de excelentes perspectivas, com uma articulação entre as ações institucionais (a política pública, os cursos de formação) e o potencial criativo dos artistas e realizadores cearenses, com filmes de expressivo reconhecimento tanto em termos comerciais quanto artísticos

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2016

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Documentário

Abissal de Arthur Leite

cinema cearense Vando Vulgo Vedita de Andreia Pires e Leonardo Mouramateus

2016 Drama

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os últimos anos, o cinema cearense vem passando por um momento de contínuo amadurecimento de suas realizações, formando um singular ambiente criativo na cinematografia brasileira. Apenas em 2016, 10 longas- metragens cearenses tiveram primeira exibição pública no País. O número de filmes produzidos vem aumentando, mas também a repercussão dessa filmografia, com mais exemplos de inventividade artística e apontando para uma diversidade nos seus modos de produção. De um lado, um conjunto de filmes cearenses obteve amplo alcance comercial, com bons resultados de bilheteria. Os quatro longas-metragens nordestinos mais vistos nos últimos 20 anos foram produzidos no Ceará: Bezerra de Menezes - O Diário de um Espírito (2008) e As Mães de Chico Xavier (2011), obras espíritas produzidas pela Estação da Luz, e os dois longas de Halder Gomes, Cine Holliúdy (2012) e O Shaolin do Sertão (2016), todos na faixa entre 400 e 600 mil espectadores. Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, surge em quinto lugar, com 350 mil espectadores. Os dois filmes produzidos pela Estação da Luz criaram o nicho das produções espíritas no Brasil, com grande repercussão comercial. Bezerra de Menezes - O Diário de um Espírito, dirigido por Glauber Filho e Joe Pimentel, foi o primeiro filme realizado no Nordeste distribuído por uma major (a FOX). As Mães de Chico Xavier, de Glauber Filho e Halder Gomes, foi lançado pela Paris em 441 salas em todo o País. Os filmes dirigidos por Halder Gomes o alçaram a uma expressão nacional, com um mote cearense, tradicionalmente um forte berço de comediantes. A singularidade de Halder é propor um estilo de comédia popular, com um acento fortemente nordestino, influenciado pela chanchada e pelos Trapalhões, diferentemente das comédias urbanas com personagens de classe média. Cine Holliúdy, realizado com um edital de Baixo Orçamento do MinC, surpreendeu como um caso de sucesso no Ceará, um fenômeno que se tornou mais visto que Titanic (1997). Com uma estrutura de produção mais robusta, com a coprodução da Globo Filmes, O Shaolin do Sertão foi distribuído em todo o País pela Downtown/ Paris, consolidando o nome de Halder como um dos principais diretores de comédia no País. Além

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O número de filmes produzidos vem aumentando, mas também a repercussão dessa filmografia, com mais exemplos de inventividade artística e apontando para uma diversidade nos seus modos de produção

Misteriosa Morte de Pérola (2014) e O Estranho caso de Ezequiel (2016), dois singulares filmes autorais exibidos em festivais como o Janela de Cinema, em Recife, e o Olhar de Cinema, em Curitiba, e finaliza O Clube dos Canibais, desta vez com recursos do Edital Secult-Ceará/Ancine. A Tardo Filmes também produziu o primeiro longa de Luciana Vieira, o delicado documentário Porque Era Ela (2016), em que a realizadora filma sua avó. Um dos mais badalados realizadores da jovem cena contemporânea brasileira, Leonardo Mouramateus realizou seu primeiro longa em Portugal. Ainda inédito no Brasil, Antonio Um Dois Três (2017) teve sua estreia no Festival de Rotterdam, em janeiro deste ano. Mouramateus realizou curtas exibidos e premiados em importantes festivais de cinema no Brasil e no exterior, como Mauro em Caiena (2012), Lição de Esqui (2013), com Samuel Brasileiro, A Festa e os Cães (2015), História de uma Pena (2015), entre outros. Ainda em 2017, ele estreou o curta Vando Vulgo Vedita, codirigido com Andréia Pires, recebendo o prêmio de melhor curta-metragem na Mostra de Tiradentes (Mostra Foco). Nessa mesma edição do festival também foi exibido, na concorrida Mostra Aurora, Corpo Delito (2016), primeiro longa de Pedro Rocha. Com uma proposição francamente política, o documentário acompanha os passos de Ivan que, mesmo em liberdade condicional, tem sua vida afetada pelo uso compulsório de uma tornozeleira eletrônica. O cinema cearense também tem se destacado na produção de curtas-metragens, formato que é naturalmente celeiro de jovens talentos e fonte de experimentação de linguagem. Abissal (2016), de Arthur Leite, um íntimo retrato autobiográfico sobre sua avó, foi laureado com o prêmio de melhor curta no tradicional É Tudo Verdade. O cyberpunk Janaína Overdrive (2016), de Mozart Freire, foi exibido com destaque no Festival do Rio e em outros

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disso, é importante dizer que o longa foi todo produzido e finalizado no Ceará, com uma equipe técnica prioritariamente cearense, contando com a expressiva participação de Marcio Ramos (nos efeitos especiais) e Érico Paiva (na pós-produção de som), entre outros profissionais cearenses. Em ritmo intenso de trabalho, no momento o diretor finaliza Cine Holliúdy 2 e prepara as filmagens de Os Parças, com grande elenco de comediantes. Outro conjunto de filmes cearenses se destaca por sua repercussão artística, selecionados para importantes festivais de cinema no Brasil e no exterior. Os filmes dos sempre ativos veteranos Rosemberg Cariry e Wolney Oliveira são acompanhados por uma geração intermediária (Glauber Filho, Joe Pimentel, Jane Malaquias, Marcus Moura) e convivem com a juventude dos filmes do (agora extinto) Alumbramento, da Tardo Filmes, de Petrus Cariry, de Leonardo Mouramateus (Praia à Noite), do Coletivo Nigéria, de muitos outros. Petrus Cariry lançou no Festival do Rio de 2016 seu terceiro longa-metragem, o sombrio Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, com intensa presença de Sabrina Greve como protagonista. Nesses três longas (O Grão, 2007; Mãe e Filha, 2012, e Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, 2016), Petrus vem desenvolvendo um cinema intimista de poucos diálogos, calcado em uma paisagem interior, com personagens opacos e de forte rigor estilístico. Seus últimos dois filmes dialogam, de forma tênue, com o cinema de terror, mas compondo-o em uma geografia humana de grande introspecção, com notável presença da fotografia (do próprio realizador) e das ambiências sonoras. O Coletivo Alumbramento, presença constante em qualquer antologia sobre o “novíssimo cinema brasileiro”, e que já teve filmes exibidos em importantes festivais no exterior, como Rotterdam, Locarno e Veneza, prossegue seu ritmo intenso de produções, calcadas na ousadia e no experimentalismo formal. Seu último longa, O Último Trago, foi exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2016 e Com os Punhos Cerrados (2014) foi finalmente lançado comercialmente nos cinemas neste ano. Guto Parente, um dos fundadores do Alumbramento, montou com Ticiana Augusto Lima a Tardo Filmes. Em pouco tempo de existência, a Tardo já foi contemplada no edital de Núcleos Criativos do FSA/Ancine. Guto Parente realizou, sem recursos públicos, A

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eventos. Mozart também dirigiu mais um curta de destaque, Cinemão (2015). Curtas como Antes da Encanteria (2016), Carruagem Rajante (2016), ambos do Coletivo Osso Osso; Santa Porque Avalanche (2016), de Paulo Victor Soares, e Superdance (2016), de Pedro Henrique, são alguns exemplos da melhor tradição recente do cinema contemporâneo cearense, em combinar, de forma irreverente e criativa, elementos da cultura pop e kitsch, com influências da dança, da performance e das artes visuais. Panorama

cinema cearense

Esse cenário de amadurecimento da produção audiovisual cearense é potencializado por ações institucionais, que se complementam ao trabalho criativo dos realizadores. O Ceará vive um forte movimento de formação, com cursos ligados ao audiovisual. Fortaleza sedia duas graduações em Cinema e Audiovisual: uma pública, na Universidade Federal do Ceará (UFC), e outra privada, na Universidade de Fortaleza (Unifor). São egressos do curso da UFC realizadores como Leonardo Mouramateus, Samuel Brasileiro, Luciana Vieira, entre outros. Pela Unifor destacam-se Salomão Santana e Arthur Leite. Além dos universitários, outros cursos de audiovisual se destacam. A Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, mantida pela Prefeitura de Fortaleza, é parte fundamental da formação da nova cena cearense, em especial o Alumbramento, tendo alunos como Pedro Diógenes, Guto Parente, Marina Mapurunga, Ticiano Monteiro, Mozart Freire, Diego Akel, entre outros. Nos últimos anos, o Porto Iracema das Artes, escola ligada ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, vem apresentando um conjunto de cursos ligados ao audiovisual, além de um laboratório de desenvolvimento de projetos, o Cena 15. Coordenado por Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado, o Cena 15 desenvolve projetos de longas-metragens e de séries. Além disso, o Ceará vive um momento de aprimoramento das políticas públicas para o audiovisual implementadas pela Secretaria de Cultura (Secult), alavancadas pelo Governador Camilo Santana, que transformou a cultura em um dos pilares estratégicos de seu governo, aprovando o Plano Estadual de Cultura que, entre outras medidas, destina um escalonamento crescente de recursos até atingir, ao final de seu governo, o patamar de 1,5% do orçamento

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do Estado para a pasta da Cultura, o que representa mais de cinco vezes o que era gasto na gestão anterior. A Secult, sob o comando inicial de Guilherme Sampaio, e agora sob o de Fabiano Piúba, estruturou um conjunto de políticas voltadas ao audiovisual. A cereja do bolo foi O Ceará vive um o lançamento, em maio de 2017, forte movimento do Ceará Filmes – Programa de de formação, com Desenvolvimento Estadual do Audiovisual do Ceará, em con- cursos ligados corrida cerimônia no Cinema ao audiovisual. do Dragão, com a presença de Fortaleza sedia autoridades como o Governador duas graduações Camilo Santana e o então Direem Cinema e tor-Presidente da Ancine Manoel Rangel, entre outros. A partir Audiovisual: de sete eixos (Produção, Distri- uma pública, na buição, Exibição, Preservação, Universidade Formação, Rede Institucional e Legislação), o Programa já con- Federal do Ceará ta com investimentos de R$59,5 (UFC), e outra milhões apenas em 2017 (R$40 privada, na milhões da Ancine e R$19,5 miUniversidade de lhões do Governo do Estado), em três iniciativas concretas: o Edital Fortaleza (Unifor) de Cinema e Vídeo da Secult, o Programa Cinema da Cidade e o Edital Ceará Inédito. O Edital de Cinema e Vídeo continua sendo o principal instrumento de fomento para o audiovisual cearense. Em sua última edição (de 2016, ainda em processo de análise), o edital prevê investimentos de R$17 milhões na produção (curtas, longas, séries), distribuição, desenvolvimento e formação do audiovisual cearense. Com o aporte dos Arranjos Regionais da Ancine (que permitiram mais do que duplicar o montante investido pelo Estado), está prevista a realização de 12 longas-metragens, sendo quatro de ficção, seis documentários e duas animações (possibilitando o que será provavelmente o primeiro longa de animação cearense).

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Esse conjunto de ações permitiu que o Ceará participasse do Rio Content Market, principal feira de negócios audiovisuais da América Latina, com uma delegação oficial, por meio de um stand exclusivo montado no evento, de forma a potencializar o intercâmbio entre os produtores e realizadores cearenses com possíveis parceiros. Com uma articulação entre as ações institucionais (a política pública, o movimento de formação) e o potencial criativo dos artistas e realizadores cearenses, é possível dizer que o audiovisual cearense passa por um momento de excelentes perspectivas. Os ventos sopram a favor na “terra do sol”.

de vento em popa na terra do sol

O Edital Ceará Inédito prevê a realização de obras audiovisuais de produção independente para integrar a grade de programação da TV Ceará, televisão pública ligada ao Governo do Estado do Ceará, com investimentos de R$10,5 milhões, por meio da linha PRODAV 02, do Fundo Setorial do Audiovisual. Trata-se de uma iniciativa inédita de edital público visando aprofundar a relação entre a televisão pública cearense e a produção independente, especialmente obras seriadas. Pois se falamos basicamente em obras cinematográficas, é preciso ressaltar a produção de séries no Ceará. Os editais do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine, especificamente voltados à produção televisiva, também aprovaram projetos cearenses, como duas séries de animação – Astrogildo, de Neil Armstrong, e Um Conto a Cada Ponto, de Telmo Carvalho. Além disso, segue em produção a série de ficção Lana e Carol, de Samuel Brasileiro e Natália Maia, que também preparam Os Herdeiros, cujo episódio-piloto já foi gravado. Já o Programa Cinema da Cidade prevê a construção de 20 salas de cinema em 10 municípios do interior do Ceará. Elas se juntarão às duas já em operação: o Cineteatro São Luiz, um dos mais antigos “palácios do cinema”, instalado na Praça do Ferreira, no coração do Centro da cidade, restaurado e reaberto ao público em 2015; e o Cinema do Dragão, com uma programação voltada ao melhor do cinema de arte, instalado no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Essas 22 salas de cinema formarão uma rede de exibição cinematográfica no Ceará, com destaque à cinematografia nacional, nordestina e também cearense. O programa liderado pela Secult contou também com a ampla participação da sociedade civil e do setor audiovisual cearense, organizados em duas associações: a Câmara Setorial do Audiovisual Cearense (câmara consultiva oficialmente criada pela ADECE – Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará) e o Fórum Cearense do Audiovisual.

A Misteriosa Morte de Pérola de Guto Parente

2014 Fantasia, Mistério

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2017 Curta Documentário

Eu Luto de Daniella Previtera

Do Luto à Luta Cotidiana por Diego Benevides

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cinema universitário é um espaço de experimentação que dribla os vícios do cinema de mercado, ainda que preserve um olhar cinéfilo como referência sobre o que se produz. Os jovens realizadores encontram suas próprias maneiras de fazer, quase sempre sem orçamento e disponto de um espaço limitado de tempo. Com o surgimento de cursos de graduação e técnicos no Ceará, a produção universitária tem contribuído para movimentar a cadeia criativa com propostas diversificadas. No curta-metragem Eu Luto, produzido pela Universidade de Fortaleza (Unifor), a diretora Daniella Previtera adota o tom de diário para contar um pouco sobre a sua vida. A melancolia está impressa nos recursos escolhidos para a realização do projeto, desde a narração suave da cineasta, até a reprodução ficcional dos fatos. A autobiografia faz um recorte a partir da infância da realizadora, quando ela começou a perceber que o mundo ao redor é uma questão de sobrevivência. Ao se dispor a abordar a morte, Daniella elenca as experiências que viveu, seja diretamente ou de pessoas próximas. São histórias que trazem uma carga dramática natural e, felizmente, nunca descamba para o exagero ou sensacionalismo. A diretora tem a intenção de contar sua versão para torná-la orgânica, dentro de um processo de ressignificação das coisas. É como se ela enterrasse suas tristezas para seguir em frente, enquanto coloca o espectador em uma posição desconfortável de sofrimento e, principalmente, impotência. Isso porque, ainda que se proponha a descarregar suas dores pessoais, Daniella retrata a montanha -russa global das problemáticas que vários jovens enfrentam nos dias de hoje. São discutidos assuntos delicados, como relações familiares turbulentas, abuso sexual, suicídio, depressão e papel feminino na sociedade. Não chega a ser uma abordagem assumidamente política, até porque a conclusão do filme interessa antes de tudo à própria diretora, mas ela acaba transformando sua intimidade em algo universal, que acontece aos montes e, infelizmente, nem sempre se torna público.

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A partir desse universo particular, Eu Luto se torna efetivo por servir de ferramenta de diálogo sobre tais temáticas, ainda que como forma não saia da zona de conforto ao que se propõe. A diretora utiliza atores para representar os fatos que são narrados por ela, às No curta Eu Luto, vezes sendo redundante com o que produzido pela se diz no texto e o que se mostra Universidade na imagem. Aqui, o texto tem uma importância maior, já que a con- de Fortaleza, a dução dos fatos narrados é bem diretora Daniella elaborada e pode surpreender. Previtera adota o A imagem, por sua vez, se restringe tom de diário para à reconstituição dos fatos, o que perde um pouco na inventividade contar um pouco do que se poderia criar para cobrir o sobre a sua vida roteiro. Guardadas suas respectivas proporções e intenções, o cearense Leonardo Mouramateus utilizou-se de uma pegada semelhante ao desenvolver Mauro em Caiena (2012) a partir de suas memórias afetivas e foi ambicioso ao não prender a imagem ao que seria mais previsível de fazer. Mouramateus transforma suas lembranças em um filme, que também importa mais para ele em primeiro lugar, enquanto faz uma provocação para que a imagem seja vista como complemento ao conteúdo. Ao desnudar sua história pessoal para as câmeras, Daniella Previtera faz de Eu Luto uma experiência amarga de acompanhar, deixando a certeza de que é impossível mudar o passado, mas cabe a cada um de nós transformar as dores em força para que a vida possa seguir. A exposição de suas fragilidades, no fim das contas, se transforma em alívio e esperança de que, um dia, tudo realmente possa ficar bem.

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eu luto

A morte é uma consequência da vida. No curta documental Eu Luto, a realizadora Daniella Previtera revisita o seu passado para mostrar com as perdas podem ensinar a viver


2016 1h24min com Sabrina Greve, Everaldo Pontes, Veronica Cavalcanti, David Wendefilm Mistério

Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois

cinema cearense

Morte e Vida em Petrus Cariry por Beatriz Saldanha

Os três longas do diretor cearense propõem reflexões sobre a morte como renovação, retratando vidas miseráveis que lutam para adquirir significado em uma jornada de autoconhecimento

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A

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trilogia da morte

s temáticas da solidão e do oblívio fazem parte da obra do cineasta cearense Petrus Cariry desde os curtas-metragens que ele realizou em meados dos anos 2000, quando iniciava na carreira de diretor. A Velha e o Mar (2004), sobre uma idosa que vive sozinha em uma ponte abandonada, sintetiza estas ideias que permeariam o cinema de Petrus no futuro, enquanto que Dos Restos e das Solidões (2006), documentário filmado na cidadefantasma de Cococi, funciona como uma espécie de ensaio para o seu segundo longa-metragem, Mãe e Filha (2011), ambientado na mesma cidade. Em 2007, Petrus realizou o seu primeiro longa-metragem, O Grão, lançado comercialmente em 2010, em que sobrepõe às suas reflexões a temática da morte, cujo assunto aprofundou através de diferentes abordagens nos dois longas que viriam a seguir, Mãe e Filha e Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2016). Filmado no município de Itaiçaba, no Ceará, O Grão é um conto moral sobre uma família cuja matriarca (a anciã de uma casa onde moram ainda seu filho, a esposa dele e os dois filhos do casal) está muito adoentada. Vivendo na miséria e, sabendo a fatalidade que a espera, a mulher compartilha com o neto, um pouco a cada dia, a história de um rei e uma rainha que, inconformados com a morte de um filho que fora tão sonhado, terminam por se dar conta de que a dor da perda vem para todos, pois a morte é tão certa quanto a vida. Petrus filma o presente como algo estancado; o que quer que aconteça, acontecerá sempre em um tempo futuro. A família está estagnada, presa a um marasmo, estéril como aquelas terras, de onde não é possível obter sustento. Com a avó moribunda e o pai alienado na bebida e em pequenos serviços que pouco rendem dinheiro, nenhuma daquelas pessoas dá sinal de prosperidade, exceto a filha mais velha, uma moça que tem planos de se casar com um rapaz da região e deseja deixar a casa em que vivem para morar em Fortaleza, contrariando a vontade dos pais. O Grão inaugura algumas das marcas que fariam parte do cinema de Petrus, como a inserção de uma cena de estrada nos minutos iniciais, o que traz uma ideia de afastamento para lugares poucos usuais, onde histórias muito pessoais devem ser contadas e demô-

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2011 1h20min com Zezita Matos Drama

Mãe e Filha

cinema cearense

nios expurgados. O flerte com o cinema de horror, a ser percebido com mais clareza em seus filmes posteriores, também se faz presente neste longametragem, com as cortinas da casa serpenteando nos cômodos vazios e sugerindo uma estranha presença metafísica. Não seria exagero afirmar que o retorno às regiões mais rurais do Ceará também compõe uma característica do cinema de Petrus, sempre carregado pela ideia da volta à terra, às origens, o que implica em uma viagem de autodescoberta e o confronto com algo que ficou para trás, mas que precisa ser enfrentado para que se dê prosseguimento. Uma característica peculiar para um diretor cujo próprio sobrenome remete às suas origens artísticas, regionais e familiares (Petrus usa o “Cariry” de seu pai Rosemberg, nascido na região do Cariri, no sul do Ceará). O encerramento de O Grão encontra força com a sugestão da renovação do ciclo natural da vida: no lugar da estagnação e esterilidade, a esperança e a fertilidade, em um marcante plano final.

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Enquanto em O Grão a morte se apossa de uma mulher idosa, em Mãe e Filha o elemento que move a trama é um bebê natimorto, o que provoca uma estranheza imediata levando em consideração de que, para o senso comum, é natural que a morte chegue para alguém que já viveu bastante, mas é antinatural que uma pessoa morra antes mesmo de nascer. Mais uma vez tendo o Ceará como cenário, Petrus filmou no distrito de Cococi, localizado no sertão central dos Inhamuns. Um dia, Cococi foi uma cidade cheia de pompa, com muitos bailes. Em 1968, ao ser rebaixada à categoria de “distrito” após complicações políticas, foi abandonada pelos seus moradores, sendo conhecida até hoje como uma cidade-fantasma, em ruínas. Petrus havia filmado a cidade em 2006 no documentário Dos Restos e das Solidões, algo como uma gênese de Mãe e Filha, a história de uma mulher que abandonou aquele lugar para viver em Fortaleza, mas que agora precisa voltar com o filho natimorto para enterrá-lo próximo de sua mãe, avó da criança. A idosa vive sozinha na cidade-fantasma, contando com a bondade e os favores de quem passa por lá. É perceptível a maturidade e o cuidado de Petrus com os planos, os quais, sempre muito longos, dão espaço e respiro para que o espectador possa refletir e sentir o filme, com os pensamentos de suas personagens quase palpáveis. Mais uma vez, o diretor enfatiza o isolamento da cidade, com a protagonista ora tomando caronas, ora tendo que fazer longas e penosas caminhadas por uma estrada de terra. Mãe e Filha trata de um tema muito impactante e já visto no cinema brasileiro contemporâneo, mas com uma sensibilidade tremenda, e isso deve bastante à duração dos planos, o que torna a ação das personagens carregada de significados e potenciais

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trilogia da morte

reflexões. O telurismo surge com muita força neste filme; a viagem à terra de origem como uma jornada ao seu próprio íntimo, como se existisse dentro de si algo gritando para ser transformado. Trabalhando com apenas duas atrizes, Zezita Matos e Juliana Carvalho, o realizador consegue criar imagens poderosíssimas, como a avó embalando o neto morto, a mãe integrando o corpo do próprio filho às ruínas Petrus filma o de uma igreja, os animais em presente como algo câmera lenta ou os cangaceiros estancado; o que fantasmas que assombram a região. Essas imagens não elimi- quer que aconteça, nam o caráter regionalista do acontecerá sempre cinema de Petrus, mas também em um tempo futuro. o inserem em um panorama inA família está ternacional a partir do momento em que estabelecem diálogo estagnada, presa a com realizadores como o russo um marasmo, estéril Andrei Tarkovsky e o tailandês como aquelas Apichatpong Weerasethakul. terras, de onde Em Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, seu terceiro longa-metra- não é possível gem, Petrus encerra a chamada obter sustento “trilogia da morte”. Diferente dos dois primeiros filmes, protagonizados por famílias miseráveis, esse se passa no seio de uma abastada família cearense. A personagem do título, Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois tem algumas das composições de planos mais impressionantes da ciinterpretada pela atriz Sabrina Greve, é casada com um bem-sucedido empresário austríaco, além de nematografia brasileira recente, com um precioso ser herdeira da fortuna de seu pai (Everaldo Pontes), cuidado desde a iluminação à direção de arte. Petrus porém um mal-estar relacionado à misteriosa morte frequentemente faz referências às artes plásticas, cuja prematura de seu irmão assombra a família. O pai, citação mais clara aqui é a do quadro Marat assassinado já idoso, tem como passatempos a taxidermia e a (ou A morte de Marat), do pintor francês neoclassicista entomologia, sempre arrodeado pela morte. Jacques-Louis David, de quem as principais obras datam do final do século XVIII. Pode-se vislumbrar ainda uma ponte com uma outra geração do cinema de terror brasileiro, através de O Anjo da Noite (1974), O Grão de Walter Hugo Khouri, o principal representante intimista e metafísico que se instalava dentro dos lares no horror nacional. Claro que, voraz construtor de imagens, Petrus faz essas referên2007 cias não apenas pelo tema ou pelo clima som1h28min brio, mas principalmente de maneira imagética. com Leuda Bandeira, Como em todos seus filmes, a cena final de ClaNanego Lira e risse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois é combativa, Veronica Cavalcanti insurgente. O sangue, quase sempre associado à Drama morte, aqui representa a vida. A morte, afinal, não é o fim, mas um recomeço.

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por Arthur Gadelha

Os Trilhos da Liberdade Trem da Alegria de Francis Vale

2016 Documentário

cinema cearense

Documentário sobre histórico time de futebol encontra suficiência em um debate brevemente político

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trem da alegria

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mbora paraense, o cineasta Francis Vale é um desses nomes que sobrevoam os bastidores da cultura cearense; envolvido na criação de leis de incentivo estadual e um dos idealizadores do que viria a ser o Cine Ceará. Francis, porém, é um cineasta de poucos filmes – tanto que, aos 71 anos, concorreu na 40ª Mostra Internacional de São Paulo na sessão Novos Diretores. O documentário Trem da Alegria: Arte, Futebol e Ofício é o ápice em sua curta filmografia por estender essas reflexões que conseguem falar algo ainda “novo” sobre um trecho importante da história do futebol brasileiro, ao mesmo tempo que encontra um background político instigante. O filme retorna à ditadura militar para relembrar o início de um excêntrico time de futebol chamado “Trem da Alegria”. Diferente de outros times, esse reunia também esportistas que já estavam em fim de carreira e personagens que conhecemos da indústria musical brasileira, como Paulinho da Viola, Fagner, Moraes Moreira (que estava saindo dos Novos Baianos), Fausto Nilo, Gonzaguinha, entre outros. Essa união comovente de “música e futebol” tinha muito a dizer sobre a cultura do País, ainda mais em um período em que festejar se tornou um movimento cauteloso. O time fez turnês pelo Brasil (e até internacionais) compartilhando partidas e shows dos próprios integrantes – uma delas passando por Fortaleza na década de 70, chamada Setembro, que recebe destaque no filme. O retalho de Francis diante esses acontecimentos não cutuca, não invade ou sequer tenta refazer a história de um modo geral. Contenta-se em observar com poucas interações entre a direção e seus depoentes uma história que se declara sem burocracia. Em certos momentos, o filme tende a se repetir em algumas informações, mas é curioso que encontre motivos para isso. Em uma das histórias sobre o show Setembro, Fagner e Moraes evidenciam a autossuficiência da equipe, pela situação de Paulinho da Viola ter trazido o próprio som e tido que montar o equipamento sem a ajuda de qualquer técnico. O fato curioso e até cômico está nas distinções das falas. Fagner fala de um Paulinho inconformado: “Quem colocava as caixas de som era a gente, eu nunca esqueço o Paulinho da Viola falando: ‘Pô, eu tenho que botar a caixa de som?’”. Enquanto Moraes conta com mais amor: “Eu lembro bem, o Paulinho ficava montando o equipamento dele, microfone, passando o som. Ele mesmo fazendo isso. A gente

ajudando, era um time de futebol”. Quando o próprio Paulinho surge na tela, é com outra emoção que descreve o evento. E situações como essa tornam a se repetir com histórias que envolvem personagens como Pelé e o tão importante para a obra, Afonsinho, o prezado amigo Afonsinho. Aliás, esse é também um filme de estudo de personagem. O jogador Afonsinho (Afonso Celso Garcia Reis) é o centro dessa história tanto no documento, quanto no filme. A admiração dos depoentes diante a sua liderança é captada com frescor, o brilho nos olhos é real, palpável, emocionante. É um sentimento que não some da tela, sempre dignificando esse momento de alegria em um tempo tão confuso que vivia o País. Há uma aparência de produção independente, mas isso não sabota sua essência. Problemas de som e a ausência de materiais além de seus personagens evidenciam um filme realizado na garra, no calor do momento como se presenciasse o passado. Por isso, confia muito em quem conta sua história, desportistas e músicos, que transmitem a clareza com que o movimento ainda parece vivo. Francis, inclusive, faz questão de lembrar que as partidas acontecem até hoje (mesmo que sem a atenção e organização do passado) e traz durante o filme recortes de uma partida que acontece no presente; uma ideia que não se conclui, mas determina sua importância. É também uma obra animada; a música assinada por Rodger Rogério traz trilhas personalizadas para cada personagem (quando surge Afonsinho, o tema recria os toques de “Meio de Campo”, composição de Gilberto Gil dedicada a Afonso), moldando uma teia de sons distintos que invade com surpresa os relatos dessa pequena jor- em alguns nada de 80 minutos. momentos, o Dentre suas nove obras audiovisuais, das quais somente dois longas, a im- filme tende pressão é de que as tramas que Fran- a se repetir, cis se interessa seriam esquecidas se mas é curioso não contadas neste exato momento. que encontre O “Trem” foi um time de muito sucesso e permanecerá na história do motivos futebol brasileiro, essencialmente para isso pelo reboliço que causou. Mas Francis resgata essa história como algo novo para muitos da geração atual que não se recordam disso, ainda deixando gancho para as futuras. E para muito além da informação quantitativa, Trem da Alegria: Arte, Futebol e Ofício é o simplório recorte de um movimento libertário em meio a um tempo de coerção a felicidade; um grupo que encontrou na música e no futebol, sua liberdade. Essa história é tão atual quanto parece, e Francis sabe contar isso. 21


Os Pobres Diabos de Rosemberg Cariry

O Palco da Vida por Pedro Martins Freire

cinema cearense

Em Os Pobres Diabos, Rosemberg Cariry se utiliza de um circo mambembe como metáfora para compor o grande palco da existência em uma relevante obra filosófica cuja meta é celebrar a universalidade das causas humanas

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Lazzarino, Creuza, Zefferino, Isaura, Meio Quilo, Tarzan, Lindalva e Nicolau são alguns dos pobres diabos da jornada humana em tráfego na terra do sol entre a ficção e a realidade na eterna briga entre Deus e o diabo. O próprio Lúcifer, aliás, está em cena encarnado pela Rosemberg criou criatividade humana da literatura o seu próprio de cordel que vislumbra a chegada caldeirão. Podede Lampião e Maria Bonita em seu se particularizar reino, o inferno. Na verdade, os personagens reais e sur- cada uma das reais do Gran Circo formam uma questões postas grande metáfora da sociedade huali dentro, como mana. Estão lá os personagens da grande diversidade se digladiando a religiosidade com os seus desejos e insatisfações, e a literatura, o em busca de amor e desilusões, ci- cordel e a cultura úmes e traições, frustrações, pernordestina, a das e conquistas. O Gran Circo é também o reduto da arte em luta política e as com a sua necessidade de viajar, se relações humanas alastrar por aí como instrumento de consciência e sobrevivência. Um grande show que, assim como a vida, não deve e nem pode parar. Os Pobres Diabos é, em rápida análise, uma filosófica viagem na qual Rosemberg procura embarcar os espectadores para uma grande reflexão. Em uma das sequências mais brilhantes, a da chuva, tão pedida pelos sertanejos, se abate como uma tempestade sobre o frágil e mambembe circo a ponto de emergir todos os seus integrantes à cruel realidade da existência – uma nova metáfora da tragédia das enchentes e excessos de chuvas tão vividas pelos nordestinos. Como resistir a algo que exige o renascimento pela destruição? Coisa de Deus ou do diabo? Destino que nos leva a meditar o mundo como reduto do sofrimento e da expiação? Absurdamente, sim. Ao compor um grande palco teatral no qual os seres humanos sofrem como artistas e a arte é a grande expressão da comunicação da existência, o nordeste universal se salienta. Rosemberg Cariry faz de Os Pobres Diabos uma metáfora da nossa diversidade. Nada menos do que um filme memorável.

2013 1h33min com Chico Diaz, Silvia Buarque e Gero Camilo Comédia

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os pobres diabos

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inalmente, após anos desde a sua última exibição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2013, onde conquistou o Prêmio do Público de Melhor Filme, Os Pobres Diabos retorna às telas para ser devidamente apreciado em suas qualidades e na concepção de se oferecer como uma reflexão sobre a arte, o cinema e o circo, o palco e a metáfora, a representação e a universalidade das causas que nos caracterizam como humanos. Não tenho qualquer dúvida em apontar Os Pobres Diabos como o melhor trabalho do filósofo, poeta, pesquisador, historiador e o homem da cultura Antônio Rosemberg de Moura, o Rosemberg Cariry. Poucos cineastas conhecem, como ele, o cerne do Nordeste com a sua cultura, história e sua gente. De Comédia Profana (1975), feito em super8 e ponto de partida para uma filmografia sólida e expressivamente desbravadora da cultura e das histórias do sertão cearense e nordestino, Rosemberg é um dos mais importantes cineastas do País. Salientam-se em sua filmografia obras como O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1986), A Saga do Guerreiro Alumioso (1993), Corisco e Dadá (1996),  Juazeiro, a Nova Jerusalém (2001) e Patativa do Assaré – Ave Poesia (2007), entre outros. Em Os Pobres Diabos estão contidas as temáticas caras às suas criações. A partir de um microcosmo, o circo, a história de ficção da trupe mambembe do Gran Circo Teatro Americano que levanta a poeira das estradas do sertão é uma notável condensação das temáticas enfocadas pelo cineasta ao longo de sua carreira. Mas, há algo mais: há uma reflexão sobre a nossa diversidade, cultura, criatividade, vivência, amor, adversidades e infortúnios, registrando a realidade nordestina com a sua grandeza e riqueza - àquela que só encontra visualidade na mídia nacional mediante às grandes tragédias como a seca, o excesso de chuvas ou, mais recentemente, como novo item, os assaltos a bancos. Rosemberg criou o seu próprio caldeirão. Pode-se particularizar cada uma das questões postas ali dentro por ele, como a religiosidade e a literatura, o cordel e a cultura nordestina, a política e as relações humanas, o próprio circo como âmbito da cultura popular, o recomeçar pela tragédia, mas prefiro vê-lo como um microcosmo de um Nordeste universal, capaz de ser entendido por qualquer tipo de plateia ou linguagem.


Corpo Elétrico de Marcelo Caetano

Corpos em Transformação por Diego Benevides

cinema br asileiro

Em Corpo Elétrico, Marcelo Caetano foge da narrativa convencional para se aprofundar nas nuances humanas e no espaço ocupado pelos personagens

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2017 1h34min com Kelner Macêdo, Lucas Andrade e Welket Bungué Drama, Romance

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O roteiro, escrito por Caetano com Gabriel Domingues e colaboração de Hilton Lacerda, mostra as aventuras sexuais casuais do protagonista com o mesmo peso com que reflete sobre seus relacionamentos afetivos. A paixão do passado por um homem mais velho não deu certo, mas eles se encontram quase em um contexto fraternal. O sexo ainda cabe entre os dois, mas não é o que motiva esse encontro. A sexualidade está ali como um instinto inerente, não como um simples elemento narrativo que justifica as atitudes do protagonista. Elias também se envolve com Wellington, papel de Lucas Andrade. Eles iniciam um relacionamento que desafia o conservadorismo que existe até mesmo dentro da comunidade LGBT. Caetano provoca ao questionar os conceitos de masculinidade e queer, em especial quando mostra a família de Wellington, formada por drag queens. Elias e Wellington ocupam o quadro não apenas como dois amantes “atípicos”, mas como dois homens interessantes que dialogam sobre o A união desses que acontece ao redor, sobre os seus corpos no sonhos e motivações, sobre o ser e decorrer da estar no mundo. Afinal, relacionamentos nascem da troca com o outro. trama revela Essa fluidez da história de Elias permite um desejo do que Caetano fuja de algumas conven- diretor de ções narrativas, como os fechamenminimizar tos dos arcos dramáticos. Durante a projeção, o que interessa ao cineasta a distância é construir uma ideia de tempo e es- entre eles, paço. As coisas parecem acontecer evidenciando na vida de Elias da forma como elas os lugares acontecem na nossa vida real, cheia de imprevistos, finais esquecidos e que ocupam arestas a serem aparadas. Não exis- na sociedade te o tradicional clímax, no qual os personagens passam por grandes reviravoltas. É uma história que faz da observação desses seres um trunfo inventivo de linguagem. Entre seus trabalhos paralelos, Caetano coescreveu e fez assistência de direção de Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert; foi assistente de direção e ator de Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro, e produtor de elenco de Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho. Com Corpo Elétrico, Caetano realiza, provavelmente, seu trabalho mais interessante até agora. O longa é sobre a identidade em processo de ser conquistada. É um filme que pulsa a competência do cinema brasileiro em contar boas histórias e desperta o desejo supremo pela imagem em movimento.

corpo elétrico

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corpo do homem é sagrado e o da mulher é sagrado, não importa de quem seja, é sagrado”. O americano Walt Whitman escreve no poema I Sing the Body Electric (1855), que inspirou o cineasta Marcelo Caetano, do premiado curta Na Sua Companhia (2011), a realizar seu primeiro longa-metragem, Corpo Elétrico. A obra fez uma ótima carreira em festivais internacionais, como Rotterdam, antes de ser exibido no Brasil, e colecionou elogios por onde passou. Fugindo de uma narrativa mais tradicional, o longametragem fala sobre os corpos que se encontram e desencontram no cotidiano. Há no protagonista Elias, interpretado com vigor por Kelner Macêdo, a inquietação de uma juventude constantemente em transformação. Ele tem 23 anos, é nordestino e gay. Seus casos amorosos se misturam com uma rotina na fábrica onde trabalha. Ele não é exatamente um privilegiado socialmente, ainda que ocupe um cargo superior aos colegas, mas tem um senso de liberdade, às vezes quase ingênuo, que eleva seu magnestismo natural. Ao seu lado, uma série de outros personagens estão representados em tela. A união desses corpos no decorrer da trama revela um desejo do diretor de minimizar a distância entre eles, evidenciando os lugares que ocupam na sociedade. Brancos, negros, mestiços, estrangeiros, heterossexuais, gays, transexuais, ricos e pobres formam o leque do filme. Juntos, eles se divertem, trocam confidências, se conhecem melhor e deixam de lado suas diferenças, seus julgamentos e preconceitos. A visão idealista de um mundo em simbiose proposta por Caetano torna-se possível pela naturalidade com que as situações são dispostas. Ainda que não saiba direito o que quer da vida, jogado ao acaso que deve ser aproveitado, Elias representa o frescor da juventude que está disposta a enfrentar todos os riscos. Mesmo alertado de que não devia misturar as relações pessoais com as profissionais, ele encontra justamente nessa fusão com os outros um lugar para existir.

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cinema br asileiro 2017 1h19min Documentário

Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava de Fernanda Pessoa

Espelho de Carne por Ailton Monteiro

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ma breve cena dá início a Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava: em Palácio de Vênus (1980), de Ody Fraga, um velho cliente de um bordel pergunta a uma jovem profissional vestida de colegial o que mais lhe interessa nas histórias; a garota logo responde, em tom desavergonhado: “as sacanagens”. Eis o ponto de partida desse jogo em que a sensualidade e a liberdade sexual do cinema daquele período dão o tom neste trabalho da cineasta Fernanda Pessoa, em que são discutidos política e comportamento e em que percebemos que o Brasil daquela época não era tão diferente assim deste que vivemos hoje. Logo em seguida, como que apresentando o “elenco”, vemos títulos de alguns dos filmes que serão mostrados no projeto. Quem conhece pelo menos um pouco desse cinema já fica salivando. Quem não conhece, fica intrigado e interessado em conhecer. Ou pelo menos deveria. O fato de esses filmes terem sido realizados durante o regime militar é um prato cheio para as cenas que brincam com a perseguição ao comunismo ou com qualquer ideia contrária à do regime instituído. A Copa do Mundo de 1970 e certos ufanismos servem para mostrar a complexidade desse país cheio de contradições. Quantos sentimentos emanam da cena em que um grupo de jovens canta Eu Te Amo, Meu Brasil, em Dezenove Mulheres e um Homem (1977), de David Cardoso? Mas o mais interessante, além de ver as cenas que mostram o espírito festivo, galhofeiro e malandro do brasileiro, é perceber como o trabalho de Fernanda Pessoa vai se costurando bem em eixos temáticos, às vezes inteligentemente mudados a partir de uma simples fala. Como quando um produtor de cinema grita que determinado filme está uma merda, que está faltando mais sexo. Eis o sinal de que o sexo passaria a desempenhar um papel ainda mais gráfico no cinema brasileiro, à medida que a década de 1970 ia se aproximando do fim. A venda do corpo e a mistura de classes sociais também são temas explorados, até por serem heranças do nosso País desde sua formação. A diferença é que saem os escravos e entram as empregadas domésticas assediadas – ou mesmo os empregados homens, caso de Gente Fina É Outra Coisa (1977), de Antônio Calmon.

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Dentro desse álbum de recortes históricos, não deixa de ser admirável a presença (e mesmo a existência) de uma obra como E Agora, José? (Tortura do Sexo) (1979), de Ody Fraga, possivelmente o primeiro filme brasileiro a mostrar de maneira explícita a tortura durante a ditadura militar. A questão do abuso do corpo da mulher também é passada a limpo e de maneira enfática no trabalho de Fernanda Pessoa, mesmo que os filmes originais tenham sido feitos para explorar o corpo feminino. Nesse sentido, o fato de a edição ter sido feita por uma mulher problematiza ainda mais a situação, fazendo toda a diferença, com as cenas de estupro incomodando ainda mais. Uma série de outros temas que seriam bastante discutidos naqueles anos, como o uso da maconha, a maior visibilidade de grupos gays, a chegada da discotheque, o divórcio, o aborto, a agitação feminista, as greves e o início da discussão sobre a anistia para os presos políticos, todos apresentados de maneira tão rápida, faz com que percebamos uma nova revolução cultural. E tudo isso visto pela ótica de filmes até então considerados menores ou vulgares. Ao final, fica a impressão de que poderia haver um segundo filme, uma o trabalho de continuação, contando a história Fernanda Pessoa do Brasil a partir dos filmes erótivai se costurando cos dos anos 1980, para narrar tanto os momentos de glória – como bem em eixos a redemocratização –, quanto os temáticos, às vezes de decadência social e artística – inteligentemente como o começo do fim do cinema mudados a da Boca do Lixo, com a chegada do sexo explícito, e a crise nos pri- partir de uma meiros anos da nova democracia. simples fala Mas, sabendo do trabalho que dá montar um projeto desses, é compreensível que a própria diretora talvez não esteja disposta a encarar empreitada semelhante. Fica a alegria de ter visto uma realização tão saborosa quanto provocante.

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histórias que nosso cinema (não) contava

Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava, de Fernanda Pessoa, apresenta a História do Brasil dos anos 1970 por meio de uma desconcertante colagem de imagens e sons das controversas pornochanchadas


Mulher do Pai de Cristiane Oliveira

As Dores do Crescimento por Beatriz Saldanha

cinema br asileiro

Com um premiado longa-metragem de estreia, a diretora Cristiane Oliveira aborda tema delicado neste drama intimista sobre uma adolescente amadurecendo na campanha gaĂşcha

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Tanto a casa quanto a estação de trem pontuam o isolamento daqueles personagens, que vivem afastados em uma vila que, por sua vez, parece afastada de tudo. É como se viajássemos para um tempo em que os adolescentes não conhecem o celular, nem o funk. Os trens não param mais naquela estação, a cidade grande parece muito distante, algo de que só se ouve falar. Afinal, é disso que trata Mulher do Pai: distâncias e fronteiras, que podem ser geográficas, mas também emocionais. O que Nalu se tornaria se ficasse lá? A mulher de alguém? A mulher do próprio pai? A subserviência que esta configuração implica é algo que ela 2016 rejeita, mas também existe algo que 1h34min a puxa de volta. Isso talvez tenha com Marat inspirado um dos planos mais boniDescartes, Maria tos da obra, quando o percurso de Galant, Amélia Nalu é interrompido pela travessia Bittencourt de uma boiada. Drama Na relação entre Ruben e “suas” mulheres, mãe e filha, há um quê de pureza, mas existe a interferência do desejo, que ele extravasa com uma prostituta, e Nalu com um garoto mais velho do que ela: é uma linha tênue entre o sagrado e o profano, a construção tardia de uma intimidade que há muito tempo deveria ter sido estabelecida. Rosario (Verónica Perrotta), a professora de artes de Nalu, se aproxima da família quando a avó morre e apazigua uma situação delicada que se estava começando a tomar forma. De espírito livre e transgressor, a mulher mostra a Ruben uma nova maneira de se expressar: através da escultura. Como no filme de Christensen, citado no início, Rosario é um elemento externo que serve como catalisador naquela família. Cristiane Oliveira levou, com esta coprodução entre Brasil e Uruguai, o prêmio de melhor direção no 18º Festival do Rio e o prêmio Abraccine na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o reconhecimento justo pelo trabalho de uma diretora promissora. O elenco principal, passando pelo experiente Marat Descartes até a jovem Maria Galant, parece atuar em todo o seu potencial, mas com naturalidade e leveza. E é assim que Mulher do Pai pode ser resumido: um filme de temática difícil, mas abordado com absolutos controle e sensibilidade por uma diretora consciente.

mulher do pai

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xiste uma tendência no cinema brasileiro contemporâneo de obras fundamentadas essencialmente nas relações entre personagens, muitas vezes confinados em um espaço restrito, um cenário principal, que serve tanto para a economia de produção quanto para pontuar uma relação claustrofóbica, imóvel ou estagnada. O drama gaúcho Mulher do Pai segue essa vertente, às vezes lembrando clássicos como A Intrusa (1979), coprodução Brasil-Argentina realizada por Carlos Hugo Christensen em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, com a qual Mulher do Pai reserva outra curiosa semelhança. A narrativa de Mulher do Pai se concentra no período de transformação pela qual pai e filha passam após a morte de Olga (Amélia Bittencourt), a matriarca. Ruben (Marat Descartes) tem 40 anos e viveu dependente da mãe desde os 22, quando perdeu a visão. À sua filha Nalu (Maria Galant), uma adolescente, são atribuídas as tarefas que eram de sua avó: cozinhar, lavar roupas; ou seja, todo o serviço doméstico. Por outro lado, Ruben precisa, pela primeira vez, assumir a paternidade e lidar com o fato de que a menina está crescendo e se tornando mulher, mas nenhum dos dois encara com facilidade a nova realidade: criados como irmãos, os papéis de pai e filha são difíceis de desempenhar e muitas vezes se confundem. Esse desencontro é representado de muitas maneiras, seja por meio do posicionamento dos atores em cena, com os personagens desconfortáveis ao dividir o mesmo quadro, ou quando Ruben revela que não conseguia perceber as mudanças físicas pelas quais passaram a mãe e a filha ao longo dos anos, até que ele as toca no rosto pela primeira vez em muito tempo. Trata-se, na verdade, de um filme muito sensorial: o tato é a maneira de Ruben perceber as coisas; além disso, existem as conversas entre Nalu e a amiga pelo telefone, que ele escuta secretamente ao encostar o ouvido na parede, as músicas como definidoras de tempo e espaço, o cheiro do cabelo, o sabor das ervas e das bebidas. A diretora gaúcha Cristiane Oliveira, estreante na direção de longas-metragens, demonstra uma forte sensibilidade para estes detalhes que fazem parte de cada um dos personagens e também da narrativa. Ela e sua equipe, de apurado senso estético, aproveitam a luz natural e compõem imagens potentes com o tom alaranjado do sol poente e até mesmo com a absoluta falta de luz, usando as janelas e portas da casa que, no contraste, enquadram a paisagem (inspiração fordiana, talvez?). A casa em que vivem os protagonistas é habitada de verdade por pessoas da Vila São Sebastião, o que confere certa espontaneidade e mostra o respeito da realizadora com a história daquelas pessoas e do lugar, localizado nos arredores de Dom Pedrito, na fronteira com o Uruguai.

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Filosofando no Caminho do Abatedouro por Thiago Siqueira

2016 1h16min Produção de Leonardo Lacca Drama

Animal Político de Tião

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Longa pernambucano Animal Político usa o fantástico como alegoria das classes sociais e, embora visual e esteticamente interessante, sua narrativa se perde em ruminações filosóficas cíclicas

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mesmo em uma obra tão experimental como esta, encontra-se presente um dos temas mais recorrentes do cinema pernambucano, que é o conflito com a identidade urbana

É nesse breve ínterim, no qual tom e fotografia rompem de maneira radical com aqueles estabelecidos na narrativa principal, que o filme consegue exprimir de maneira mais eficaz suas alegorias e realmente fazer sua mensagem chegar ao público de maneira efetiva, demonstrando quão afastada a “casta superior” brasileira se encontra da realidade e fazendo um belo retrato de sua evolução, desde as capitanias hereditárias até as atuais holdings multinacionais. As técnicas visuais experimentadas pela produção funcionam muito bem para criar as estranhas imagens idealizadas por Tião, com destaque para o robô Ice-Borg (um trocadilho inteligente com as tecnologias da Apple, o termo ciborgue e a frieza da tecnologia) e a triste e perturbadora imagem de engravatados sem cabeça vagando pelo deserto. O uso efetivo de diferentes técnicas de fotografia para retratar o presente e o passado da vaca (bem como o supracitado interlúdio) demonstram o domínio narrativo do cineasta. Entretanto, isso não é o bastante para resgatar a linha central do longa, que mesmo com as imagens fantásticas apresentadas em tela, começa a se tornar repetitivo enquanto a vaca continua com suas ruminações filosóficas sem chegar a lugar nenhum. Após sua experiência no deserto, a vaca retorna mais antropomórfica à sociedade, mais próxima da elite, passando inclusive a explorar as vacas comuns e a usar suas peles, mas continua em um vazio existencial. Sem chegar a lugar nenhum, volta a se prostrar como antes. Nem mesmo cultura ou iluminação a tiraram desse ciclo de ser um animal político destinado ao abatedouro.

animal político

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ristóteles colocava que o homem é um animal político, social, movido pelo desejo de ser cidadão e participar do crescimento e evolução de sua cidade (pólis) e sociedade. Séculos depois, George Orwell lançou seu romance satírico A Revolução dos Bichos, utilizando animais de fazenda como metáfora política; Sérgio Buarque de Holanda lança seu Raízes do Brasil, onde define o termo do “homem cordial” e traça uma árvore genealógica das relações sociais no nosso País; e Arthur C. Clarke lança o seminal 2001 - Uma Odisseia no Espaço, obra de ficção científica posteriormente levada ao cinema por Stanley Kubrick, que joga um olhar na evolução humana. Tudo isso leva a Pernambuco em 2016, quando o diretor e roteirista Tião realizou este Animal Político, longa experimental que bebe de todas essas fontes, além do cinema surreal de Luis Buñuel e David Lynch, para mostrar a busca de uma vaca de classe média por crescimento espiritual, em uma jornada de autoconhecimento e evolução, tentando entender o vazio de sua própria existência, seja este de origem extrínseca ou intrínseca. Ao representar a classe média como um bovino pacífico, Tião expõe essa fatia do povo brasileiro como gado, caminhando através de uma existência indolente até finalmente tentar alcançar alguma iluminação. Entretanto, a mensagem do filme não é das mais otimistas. A jornada da pobre vaca em busca de alguém que lhe dê alento (emocional, político e espiritual) sempre cai no vazio existencial. Interessante notar que, mesmo em uma obra tão experimental como esta, encontra-se presente um dos temas mais recorrentes do cinema pernambucano, que é o conflito com a identidade urbana formada no último século em oposição a uma vida agrária de outrora, acrescentando outra camada na escolha da vaca, animal típico de fazenda, como avatar da classe média. Um breve interlúdio acompanha uma desnuda abastada elite, representada por uma garota caucasiana (Elisa Heidrich), em uma ilha deserta, apegada a regras arbitrárias que uniformizam a apresentação dos pensamentos, representadas pelo livro de regras da abnt, alimentando-se de riquezas fúteis e da carne de negros e asiáticos perdidos e sentindo falta de sua ama seca, obviamente uma mulher afrodescendente, em quem montava na sua infância.

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2016 1h18min com Araci Vanassian, Douglas Soares e Felipe Herzog HĂ­brido

Xale de Douglas Soares

O Passado Como Enigma por Camila Vieira

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O primeiro longa-metragem do realizador carioca Douglas Soares, Xale, parte dos vestígios do passado de sua avó, descendente do genocídio armênio, e se reconecta ao presente assombrado por memórias fragmentadas

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ale, de Douglas Soares, é um filme atravessado por uma busca. É a procura de um neto – o próprio realizador – pelas reminiscências entre avó e neto. Mesmo diante das dificuldades em pessoais e pelo passado de sua avó, Araci investigar os rastros do passado de Araci, Douglas Vanassian, herdeira da geração que sobreviveu ao espera. A carta é enfim traduzida graças à ajuda de Genocídio Armênio, durante a Primeira Guerra um anônimo, durante um encontro casual. Mundial. O gesto fílmico é de inclinação ao encon- No retorno ao Brasil, as lembranças dos antepassados tro de vestígios daquela conexão de outrora que ainda estão vivos nos objetos que povoam os côse perdeu no tempo, condensada em uma troca modos da casa de dona Araci, como os inúmeros de correspondências entre a avó e uma prima disretratos envelhecidos que decoram o quarto. A tante que jamais se completou. Enviado por Araci leitura da carta é feita em sua completude – ela já como presente de agradecimento à prima por uma não é mais um fragmento desconhecido de uma carta ainda não traduzida, o xale retornou de um história a ser desvendada. Da mesma missiva, a endereço não existente. frase de que “o amor do homem nunca A tessitura do filme procura laços entre Com uma câmera se tornará água” acena para a possibilifendas aparentemente inconciliáveis: a dade da concretude da relação afetiva portátil, o distância geográfica entre os países, a entre avó e neto, ainda que permeada realizador diferença de seus contextos históricos pela fantasmagoria de uma presença e a distinção das línguas. A viagem de captura imagens que nos interpela, ao mesmo tempo de um país Douglas à Armênia é a tentativa de que o próprio realizador. escavar uma história, que a própria A virada de Xale acontece quando o longínquo, avó não consegue descrever. Com uma peso do passado é deixado de lado e o acompanhado filme se permite absorver o presente. câmera portátil, o realizador captuapenas da ra imagens de um país longínquo, Nesta segunda parte, a obra produz carta e das acompanhado apenas da carta e das ressonância com outro belo longafotografias antigas de seus familiares. metragem, Porque Era Ela (2016), da fotografias Douglas procura localizações de ruas, realizadora cearense Luciana Vieira, antigas de seus indagando transeuntes, sem poder que faz um filme sobre sua avó Salete. familiares falar a mesma língua e se guiando Em Xale, o diretor retoma os cuidados apenas por indicações gestuais. O xale com a avó, em conversas no quarto e na cozinha. A equipe de filmagem é mantida preé o objeto retornado que, vez ou outra, se interpõe diante da lente da câmera, compondo a imagem sente em boa parte das cenas. Em casa, Douglas como uma camada opaca a se interpor nesta deriva não está sozinho. O gesto de construção do filme solitária por corredores, monumentos, espaços com a avó é também uma relação amorosa com vazios e paisagens sonoras de vozes sobrepostas. quem topou fazer parte desta jornada, com todos da Se a passagem por um território estrangeiro já evoca equipe que teceram laços afetivos com dona Araci. uma perda, a comunicação com a avó à distância é O xale é guardado no armário e a vida transborda sua plenitude no presente, sem passado e sem fupermeada pela falha: as ligações por telefone caem nas secretárias eletrônicas e os diálogos via Skype turo, como bem evoca a poesia de Fernando Pessoa, são entrecortados. Xale é marcado pela cisão da transcriada em carta pelo próprio realizador. palavra, pelo avanço do esquecimento – a notícia do início de Alzheimer de dona Araci é o índice da própria jornada do filme – e pela diferença geracional

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Com espontaneidade e empatia, o longa-metragem de Juliana Antunes aborda perspectivas femininas no universo da favela, em uma mistura de encenação e realidade

cinema br asileiro

2017 1h13min Documentário

Baronesa de Juliana Antunes

Entre Esperança e Realidade por George Pedrosa

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baronesa

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encedor da Mostra Tiradentes de 2017, Baronesa combina documentário e ficção num retrato do cotidiano de duas amigas em uma favela de Belo Horizonte prestes a ser tomada por uma guerra entre traficantes. Sem filhos, Andreia quer se mudar para o bairro que dá título ao filme, enquanto Leidiane, casada e com quatro crianças, prefere continuar onde está. O filme ofusca deliberadamente a linha entre realidade e ficção, de modo que algumas cenas retratam interações naturais entre os atores/personagens, enquanto outras parecem direcionadas pelos realizadores. Uma das consequências do caráter de docudrama é que a narrativa é quase toda preenchida por conversas, liberando o longa de abstrações estilísticas em favor de um olhar mais direto sobre a realidade em curso de suas personagens. A cena inicial – uma dança de funk em um plano fechado cujo recorte foge da sensualidade e foca na fisicalidade da dançarina – é exceção em uma obra que na maior parte do tempo opera sob uma lógica naturalística de câmera como espectador passivo. Mais leve, a primeira metade do longa reflete as alegrias prosaicas da vida na comunidade e o motivo de Leidiane se recusar a sair dali. Conversas sobre vaidade, sexualidade e relacionamentos dão a tônica das interações entre as amigas e outros moradores. Negão, um bem-humorado traficante que é a única voz masculina de destaque, também abre uma janela para o tráfico de drogas e a violência casual que empurra Andreia para longe. O companheirismo entre os três é um dos elementos mais envolventes do filme, que não dispensa juízo de valor às cenas em que os personagens cheiram cocaína ou brincam de roleta-russa com um colete a prova de balas. São recortes puros dessas existências. A história da mudança de Leidiane para o bairro Baronesa é, aparentemente, uma invenção (o bairro é fictício), funcionando como um esqueleto narrativo no qual as situações da obra – reais ou não – são projetadas. Ao centrar sua história em amizades femininas num contexto de dificuldades financeiras e passado de abuso, Baronesa remete a outra

obra exibida na Mostra Tiradentes de 2017, Estado Itinerante, de Ana Carolina Soares. Mas enquanto aquele curta retrata vivências mais tradicionalmente proletárias e se constrói em torno de imagens e encenações delimitadas, Baronesa é guiado por diálogos espontâneos, com um roteiro improvisado. Em filmes como esse, há sempre o risco de esbarrar nas limitações da mistura de formatos, de o caráter fictício subtrair um pouco da urgência e impacto das vivências capturadas em câmera e do elemento documental limitar o escopo da narrativa e das trajetórias. O fato de jamais se definir como um retrato da realidade ou uma narrativa controlada é o maior trunfo e a maior limitação de Baronesa: em certo momento, a cena em que Andreia e Leidiane cantam juntas é interrompida por um tiroteio de verdade (a câmera chega a ser derrubada no chão pelo operador), de forma que torna-se difícil ignorar a realidade dura dos personagens e o anseio de Andreia por sair dali. A violência do tráfico penetra no filme tão subitamente quanto na realidade. Mas há um desconforto e uma questão ética na forma como a obra invade as vidas reais de seus personagens, especialmente ao retratar um incidente privado e potencialmente grave entre duas crianças. Embora a favela seja um cenário já tradicional de obras cinematográficas brasileiras – chegando mesmo, é preciso dizer, a um esgotamento de abordagens –, ainda são incomuns as obras que observam a vida nas comunidades a partir de perspectivas femininas. O fato de jamais Baronesa nos traz um pouco se definir como dessa existência e, ainda que um retrato da não justifique plenamente sua metragem – a questão central e realidade ou o leque de experiências retrata- uma narrativa das parecem mais apropriados controlada é o a um curta –, é um filme pamaior trunfo e a ciente com duas protagonistas que envolvem com a honestida- maior limitação de Baronesa: em de de seus dramas.

certo momento, a cena é interrompida por um tiroteio de verdade

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1990-91 Série

especial

Twin Peaks de Mark Frost e David Lynch

Twin Peaks ou Como David Lynch Mudou a TV por Daniel Herculano

Entre 1990 e 1991, a série mudou a TV ao unir o suspense policial, caça a um serial killer, o sobrenatural, o sexy e o bizarro. E se tornou referência para as gerações seguintes

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Muitas de suas subtramas – ou núcleos – aparentemente nada tinham um com o outro, a não ser que se passavam na mesma cidade, mas se entrelaçavam de tal forma, a ponto de dar um nó no meu juízo. O xerife acima de qualquer suspeita (Michael Ontkean), que vivia uma paixão proibida com a viúva (Joan Chen) do dono da serraria, enquanto sua cunhada (Piper Laurie) David Lynch insistia em se desfazer do negócio e Mark Frost de olho em uma bolada. enlouqueceram A melhor amiga de Laura, Donna (Lara Flynn Boyle), que era apaixonada os americanos pelo namorado secreto da falecida, com Twin Peaks, James (James Marshall). Enquanto que havia isso, o “viúvo” oficial, Bobby (Dana invadido os Asbrook), era amante da garçonete, Shelly (Mädchen Amick), que sofria lares ianques de violência doméstica do marido, via televisão Leo Johnson (Eric DaRe). Outro que tinha mais que esqueletos no armário era Leland Palmer (Ray Wise), pai da garota assassinada, que era paciente do estranho psiquiatra Dr. Jacoby (Russ Tamblyn), que estão de alguma forma conectados ao crime. Além da luxúria, as drogas também se faziam presentes e outros personagens menores iam caindo, um a um. Traições, sonhos perturbadores (como esquecer da sala vermelha e do anão de fala incompreensível?), contatos imediatos de qualquer grau e uma alma à espreita... BOB... BOB... Enquanto sua investigação avança, o público mergulha nas profundezas do inferno de cada um. Ao desnudar seus personagens, sentimentos e ações reais, o íntimo despido se mostra o encontro do bizarro com o divino. E tudo soava tão cinematográfico, quanto ou melhor do que muita coisa que eu já havia visto no cinema ou em casa. E se ao final da segunda temporada, Laura Palmer (Sheryl Lee) sussurra um “te vejo em 25 anos” a Dale Cooper, já passou da hora de reencontrar o universo icônico criado por David Lynch e Mark Frost. Agora basta servir uma torta de cereja, acompanhado de um café quentinho, e saborear o retorno de Twin Peaks.

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asci em 1978 e, desde que me entendo por gente, sempre fui um cinéfilo. Na minha tenra passagem de criança à adolescência, meu mundo já era o cinema. Chegava cedo às salas de exibição para não perder nenhum trailer. Ficava petrificado a cada pôster novo colocado nas vitrines e não dispensava a locadora. Era época do VHS, das revistas mensais de cinema e nada de internet. Mas a TV também fez parte da minha formação cinéfila. Sim, a TV, mais especificamente quando mudou todas as regras em 1991. Da forma de se fazer, ao assistir. David Lynch e Mark Frost enlouqueceram os americanos com Twin Peaks, que havia invadido os lares ianques via televisão exatamente um ano antes, em 1990. Entre abril de 1990 e junho de 1991 foram duas temporadas com um total de 30 episódios. Ninguém apostava que ia ser um sucesso, nem mesmo a sua rede, ABC. Depois do piloto, mais sete foram encomendados. Virou obsessão entre o público. Mais uma temporada seria quase que imediatamente feita, mas com extrema interferência da direção da TV. Lynch foi obrigado a revelar o assassino – coisa que nem previa fazer – e ao final restou algum dissabor. Mas foi o suficiente para mudar as regras do jogo. As referências já estavam plantadas, a mistura de gêneros – que unia o suspense policial e a caça a um serial killer, ao sobrenatural, o sexy, o drama psicológico e o bizarro surrealista que descortinava o american way of live – desconstruía a forma tradicional de fazer um programa de TV. Para mim, quando a princesa do baile da pequena cidade americana apareceu morta, cinza e envolta em um plástico, minha mente se encheu com uma mistura de medo e fascinação. Afinal, quem matou Laura Palmer? O melhor era que aos poucos eu descobria que o seriado não era exatamente sobre isso. Caía a máscara da perfeita sociedade americana, com suas famílias típicas de porta-retratos e de jovens que pareciam ter saídos de comerciais de refrigerante. Quando o agente do FBI Dale Cooper (Kyle Maclachlan) dirige a caminho de Twin Peaks, ele não imagina que um lugar tão agradável – de cachoeiras paradisíacas, florestas sem fim, um relevo marcado pelos icônicos picos gêmeos, um idílico hotel de campo e uma torta de cereja inesquecível – guarda segredos muito maiores que a identidade de um assassino.


Retomar Twin Peaks é Revisitar Imagens por Camila Vieira especial

Mais que retomar o projeto da série dos anos 90 criada por Mark Frost e David Lynch, a nova temporada de Twin Peaks aponta para o resgate do formalismo estético lynchiano e o limite de sua ressignificação

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o rever o agente Dale Cooper 25 anos após sua profecia no Black Lodge, Laura Palmer olha para o teto, grita e sua própria imagem estremece a ponto de se desintegrar no ar. A cena de Twin Peaks: The Return é uma emulação evidente dos closes de Laura Dern, em Império dos se quem imaginou que a retomada da série iria Sonhos (2006), que deformam o rosto, provocando esclarecer o que ficou suspenso na segunda temalterações perturbadoras no estado figurativo da porada. A saída do agente Cooper do Black Lodge imagem. Recorrer a tal estratégia de distorção – de e seu retorno ao mundo real são acompanhados forma tão direta e icônica – coloca uma questão do mistério de seus doppelgangers: o Mr. C ou Evil Cooper (que ainda encarna o Bob) e Dougie Jones para a volta da série: os novos episódios irão re(aparentemente criado pelo duplo mal). tomar a atmosfera e a mitologia própria de Twin Peaks – criada pela dupla Mark Frost/David Lynch Ao longo das sequências, é notável como a criação de cernos anos 90 – ou serão revisitações do conjunto de tas imagens remete à própria filmografia de Lynch. A formas da estética lynchiana, quase evolução do braço em formato de galhos como um apanhado autorreferente A atmosfera com uma cabeça monstruosa lembra as árvores de The Grandmother (1970) e Eraque assinala o limite da ressignificada série está ção de tudo o que Lynch já inventou serhead (1977). Os movimentos picotados mais sombria, no cinema e de seu estilo como autor? da cena do Mauve Zone e a recorrência à pesada, distante eletricidade no início do terceiro episódio Até o sétimo episódio (o último antes do fechamento desta edição), algu- da predominante remetem aos exercícios de montagem e a animação de The Alphabet (1968) e The mas diferenças são notáveis. A nova comicidade, atmosfera de Twin Peaks: The Return Grandmother. O estado de catatonia do leveza e tom está mais sombria, pesada e ralenagente Cooper no mundo real apontam paródico da para a temática do apagamento da metada, distante da predominante coprimeira e micidade, leveza e tom paródico da mória, presente também em Estrada Perprimeira e da segunda temporada da dida (1997) e Cidade dos Sonhos (2001). Até da segunda série. Não quer dizer que a retomada mesmo o quadro gigante com a imagem temporada da série abdique do cômico: há alguns de uma bomba atômica no escritório do bons momentos engraçados, como a FBI já estava presente como elemento da participação de Michael Cera como Wally Brando, cenografia de Eraserhead. filho do casal Lucy e Andy – uma sátira inusitada No geral, Twin Peaks: The Return parece abraçar uma ao personagem de Marlon Brando, em O Selvagem aura de grandiosidade e ambição ao ser alçado como (1953). No entanto, a ênfase da nova temporada projeto de maturidade de Lynch, que anunciou reside no bizarro e no desconhecido que, por meio publicamente sua aposentadoria e já vive um hiato da ampliação do uso de efeitos digitais, aprofundam de 11 anos longe do cinema. Por outro lado, em a ideia de que as forças do mal podem ser desmamomentos particulares, a série condensa a força de terializadas e/ou despersonificadas (a criatura de sua singularidade, principalmente pela presença borrão cinza da caixa de vidro, a evolução do braço, de personagens antigos, em especial a Senhora do a luz que emana do rosto de Laura Palmer) e menos Tronco (apenas no primeiro episódio), Bobby (agora incorporadas às figuras humanas (Bob e o anão). policial), o subdelegado Hawk, o doutor Jacoby De um episódio a outro, múltiplos eventos se sucedem (agora Dr. Amp), as garçonetes Norma e Shelly no com novos personagens – o próprio Lynch anunciou mesmo café Double R Diner. Ainda é cedo para que seriam 217 – a compor uma trama com fios chegar a alguma assertiva sobre Twin Peaks: The narrativos que parecem ser aleatórios ou demoram Return. Talvez a nova empreitada de Lynch aponte a se encadear. O esforço de dispersão narrativa já para outros enigmas dentro de seu formalismo se anuncia na decisão de expandir de um só espaço estético ou simplesmente seja o anúncio do esgo(Twin Peaks) para mais três lugares (Nova York, tamento de seu próprio gesto autoral. Dakota do Sul, Las Vegas e Buenos Aires). Engana-

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2017 1h33min com Nicole Kidman, Colin Farrell, Kirsten Dunst e Elle Fanning Suspense, Drama

O Estranho Que Nós Amamos de Sofia Coppola

capa — o estranho que nós amamos

Dormindo em Território Inimigo por Pedro Azevedo

Sofia Coppola revisita o texto que deu origem ao grande clássico dos anos 70 dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood em adaptação cheia de boas intenções, mas com pouco impacto

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os idos do século XIX, em meio à guerra civil americana, quando militares ianques e confederados se digladiavam em defesa dos interesses político-econômicos das regiões norte e sul do país, um soldado nortista é encontrado por uma garota de 12 anos após ser gravemente ferido na relva de uma floresta no estado de Virgínia, localizado abaixo da fronteira. Na urgência de salvá-lo, ela então o leva para o internato onde vive com outras seis mulheres. Após acaloradas discussões sobre qual será o destino do moribundo, as anfitriãs optam por tratar dos seus ferimentos antes de entregá-lo às autoridades sulistas. A cena de abertura descrita acima, constituída por um longo plano-sequência, captura a lenta caminhada da jovem Amy (Oona Laurence) em meio a uma paisagem idílica enquanto cantarola docemente e colhe cogumelos espalhados pela larga extensão de um solo pantanoso. Em oposição à beleza e paz de espírito evocadas pelo registro fotográfico, ouvimos ao fundo barulhos distantes de bombas sendo explodidas, reminiscências de uma guerra ainda em curso. Trata-se de uma bela introdução ao universo proposto por Sofia Coppola, que diferente da primeira versão de O Estranho que Nós Amamos, dirigida por Don Siegel, se concentra muito mais no microcosEm oposição mo do internato feminino à beleza e paz e nos conflitos dramáticos que podem emergir daquede espírito le espaço limitado do que evocadas em qualquer influência ou pelo registro ameaça do mundo exterior.

fotográfico, ouvimos ao fundo barulhos distantes de bombas sendo explodidas, reminiscências de uma guerra ainda em curso

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A composição do personagem de Colin Farrell é um dos pontos para entender a distância que há entre a adaptação de Sofia Coppola e a original dos anos 70

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Nesse sentido, fica clara a predileção de Coppola em estabelecer os personagens enquanto motores principais da narrativa, colocando os subtextos relacionados à disputa feminino x masculino e político-social como consequências naturais do jogo dramatúrgico que se desenrola na tela. Há, de forma evidente, um ato de resistência política quando a cineasta opta por transferir quase todo o protagonismo do filme às mulheres. Ainda assim, o resultado final acaba soando invariavelmente esquemático, plácido e distante, sem muito espaço para empatia ou envolvimento emocional de qualquer tipo. Toda a natureza do conflito presente em O Estranho que Nós Amamos pode ser resumida na tensão sexual e desconfiança causadas pela presença estranha do cabo John McBurney (Colin Farrell) no internato da madame Martha Farnsworth (Nicole Kidman). Essa inquietação, tangível na troca de olhares, micro gestos e disposição dos corpos em quadro, é cozinhada a fogo baixo enquanto a trama avança. Inicialmente execrado por ser um militar ianque em território inimigo, o soldado passa progressivamente a ser motivo de disputa entre as mulheres mais velhas da casa, encabeçada pela professora Edwina (Kristen Dunst), a jovem Alicia (Elle Fanning) e a Sra Farnsworth. A composição do personagem de Colin Farrell é um dos pontos para entender a distância que há entre a adaptação de Sofia Coppola e a original dos anos 70. Se no filme de Don Siegel tínhamos um Clint Eastwood vivendo John McBurney de forma enérgica

e bastante participativa, o que temos aqui é um personagem muito mais reativo do que propriamente ativo. Esse processo de “dessubjetivação” atua no sentido de fortalecer os papéis das atrizes principais e colocá-las sempre no centro das ações. A estratégia por si só é digna de aplausos, pois confere toda uma nova camada de apreensão à história. A execução, no entanto, transmite quase sempre a ideia de que as ações tomadas dentro da narrativa foram pré-programadas única e exclusivamente em prol do avanço da trama, e nunca para aprofundar personalidades e idiossincrasias, impedindo uma proximidade real entre espectador e personagens. Há também um sentimento bastante dúbio em relação à abordagem estética do filme, principalmente no que tange à fotografia. Se por um lado podemos admirar a eficiência do registro, que cria uma iconografia particularmente sombria do sul dos Estados Unidos, por outro somos enganosamente levados a crer que a panela de pressão criada pelo substrato de horror emanado na tela descambará numa inevitável catarse que nunca se concretiza de forma plena. Essa atmosfera de pouca variação tonal e a ausência de momentos de grande impacto acabam transformando O Estranho que Nós Amamos numa obra desconfortavelmente anódina que pouco tem a adicionar ao imaginário já estabelecido pelo longa de Don Siegel. Ainda que muito questionável do ponto de vista moral, a versão dos anos 70 pelo menos era assertiva em relação aos temas áridos que optava por abordar. Aqui, Sofia Coppola tem a oportunidade de levantar a guarda e colocar-se em posição de combate, mas parece se contentar em fazer um thriller de vingança cujas metáforas fáceis não compensam nem enquanto experimentação de gênero cinematográfico.

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cinema estrangeiro Afterimage de Andrzej Wajda

Por Uma Arte Política por Diego Benevides

Em sua obra final, o cineasta polonês Andrzej Wajda celebra uma carreira dedicada a discutir as marcas deixadas na história

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2016 1h38min Mesmo aos 90 anos, a vitalidade de Drama Wadja continua perceptível em tela. A mise-en-scène inventiva de suas obras traz um frescor às sequências, aliada à direção de fotografia eficaz. Em Afterimage, os planos lembram telas de pintura, onde a palidez das cores existe como recurso de denúncia ao se contrapor com a paleta mais quente das obras do pintor. Aqui, o vermelho simboliza a bandeira, a tinta que suja as mãos e o sangue derramado pela opressão. A história, escrita por Wajda em parceria com Andrzej Mularczyk, também mostra a relação do artista com a ex-esposa e sua filha adolescente, e uma possível paixão que surge pela admiração artística de uma aluna. São fragmentos abordados com sutileza, que surgem como adicional e não transformam este em um filme burocrático que se obriga a falar sobre tudo de seu personagem. Wajda tem a clara intenção de fazer o recorte mais político de Strzeminski ao acompanhar a luta que culmina em sua falência. O ator Boguslaw Linda encarna o pintor com a competência dos veteranos. A limitação do corpo, pela falta de um braço e uma perna, faz com que sua resistência seja ainda mais dolorosa, mas nunca vista como impedimento para trabalhar ou lutar pelo que acredita. A decadência de Strzeminski é levada às últimas consequências, coroada com um desfecho que reflete sobre a impotência das coisas, a crueldade dos poderes que nos rodeiam e a memória que se deixa quando vai embora. O engajamento de Wajda pela liberdade como canal essencial de existência da arte e a preocupação em jogar uma luz nos dramas poloneses no decorrer do tempo fazem com que o cinema que ele realizou seja fundamental para a compreensão de uma realidade que se transforma, mas deixa marcas. Wajda não usou apenas o cinema como arma política, mas se envolveu em debates públicos e se tornou um representante ativo da sociedade polonesa. Um artista que tem seu lugar reservado na história do cinema mundial e que ainda tem muito a contribuir para as gerações futuras com o legado que deixou.

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ndrzej Wajda morreu em 2016, após realizar aquele que não parecia seu último filme, Afterimage. Mesmo aos 90 anos, o cineasta nunca demonstrou cansaço ou desinteresse pelo cinema e sua sólida trajetória como realizador se tornou referência do cinema europeu. Foram mais de 50 filmes feitos, a grande maioria refletindo fragmentos históricos da Polônia, com poética e sem temer. Afterimage é a cinebiografia do vanguardista Wladyslaw Strzeminski (1893-1952), vivido de forma brilhante por Boguslaw Linda, um pintor reconhecido mundialmente que perdeu um braço e uma perna durante a Primeira Guerra Mundial e vive entre as aulas acadêmicas, endeusado por seus alunos, e a vida artística, subitamente massacrada pela censura comunista. Ao criar um diálogo entre liberdade artística e intervenção do governo, Wajda não retrata apenas uma memória do passado sombrio da Polônia, mas um assunto que está sempre em debate, a importância política da arte para a progressão da História. Strzeminski se opunha ao conservadorismo da época ao questionar o que se convencionou chamar de realismo socialismo, dentro de uma opressão stalinista aplicada às diversas manifestações artísticas e culturais soviéticas. A desobediência de Strzeminski não era pura birra política. Muito além disso, o artista mantinha o senso de preservação da arte, cuja expressão depende da visão de mundo de quem a coloca em prática. Ele negava a arte como propaganda partidária para atingir a população de baixo nível acadêmico. O roteiro passeia pelas tentativas de punição do governo a Strzeminski em paralelo à atuação do artista como professor universitário. Tudo ao redor dele passa a desmoronar e, assim como suas telas, ele precisa sobreviver dentro de uma realidade sem oportunidades. O pintor representa um de tantos que viram a vida ruir por pensar na arte como objeto essencial para discutir o tempo em que ela é desenvolvida. Tanto que, ainda que Afterimage se passe décadas atrás, é um filme que dialoga perfeitamente com a resistência dos artistas de hoje, que percebem a arte como espaço de diálogo.

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2016 1h57min Drama

O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues

cinema estrangeiro

O Exercício do Olhar por André Bloc

Religião, sexualidade, passado histórico e imposições do presente se interpõem na viagem surrealista do mais recente filme do português João Pedro Rodrigues

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o cinema de João Pedro Rodrigues, a criação é ato coletivo. Estabelecido no cinema contemporâneo global como um artífice moderno do surreal, o português atingiu maturidade criativa com O Ornitólogo, sua mais desafiante e fascinante obra. Partindo de um personagem cuja função inicial é observar, Rodrigues propõe pela histeria de uma mulher. A travesti que proesmiuçar o voyeurismo presente em todo cinéfilo. põe a viagem à China no terceiro dos filmes. A Já em seu primeiro longa, O Fantasma (2000), o cineasta religiosidade cresce com Rodrigues a cada filme. se propunha a convidar o espectador para interEm A Última Vez Que Vi em Macau, há um passado pretar as nuances surrealistas da trama. Em obras mitológico atrelado ao budismo da cidade chinesa lineares e narrativas, os filmes do diretor português de colonização portuguesa. O emblemático curta assumem curvas sinuosas rumo a um desenvolviManhã de Santo Antônio (2012), uma procissão cristã mento original. É como se o drama que mais parece um rito de fanáticos banal surgisse, de repente, embebido Cada referência condenados, visita também a relação de um furor surrealista. Na obra de pessoal funciona entre sagrado e profano que a visão de estreia, os impulsos sexuais de um Rodrigues traz ao catolicismo. como um lixeiro rompem as barreiras de reA partir do segundo ato, O Ornitólogo fractal dentro alidade e ficção e um tempo futuro, funciona como uma espécie de caleido roteiro, distópico, se impõe no longa. Já em doscópio, onde as contas coloridas são O Ornitólogo, um passado medieval e referências pessoais. De certa forma, o refletindo uma sacro recai sobre a existência de um grande mérito de João Pedro Rodrigues interpretação viajante acidentado. é a generosidade de oferecer parte do A nova obra parte de uma viagem de individual para o vigor criativo à iniciativa do especobservação de pássaros de Fernando desenvolvimento tador. É um convite a um mergulho (Paul Hamy). Na profissão/hobby de onde nada está errado ou certo. Cada da trama seu protagonista, João Pedro Rodrireferência pessoal funciona como um gues antecipa o centro da trama: a possibilidade de fractal dentro do roteiro, refletindo uma intertransformação a cada olhar. Em um momento, o pretação individual para o desenvolvimento da personagem se impõe no habitat de aves no entortrama. Cada pessoa, um novo filme. Essa camada no de um rio ao norte de Portugal. No outro, se vê de hermetismo é o que faz de O Ornitólogo um filme invadido pela estranha companhia de uma dupla de de reações antagônicas, mas a ambivalência traz devotas chinesas, que acreditavam estar percorrendo camadas de significado que pouquíssimas obras o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. tentam preencher. É a partir desse encontro que Fernando se descarac- Com uma abordagem muito mais mística do que reliteriza como observador e vira observado. Figugiosa, o longa apresenta, de forma surrealista, uma ras mitológicas, profanas e sagradas, começam a proposta alternativa de origem de Santo Antônio influenciar o destino do protagonista, que se vê de Lisboa, padre de tempos medievais e conhecido em uma jornada de martírio bíblico. O passado pela profundidade social dos escritos. A mistura mitológico, fundador de um pensamento clássido santo cristão do passado, o ornitólogo cético do co religioso, se sobrepõe ao contemporâneo de presente e da camada de perversão investida por Fernando. É, de certa forma, o encontro das duas João Pedro Rodrigues acaba tecendo um roteiro fundações do cinema de João Pedro Rodrigues. original e múltiplo. De quebra, temos ainda um Desde O Fantasma, passando por filmes como Odete Jesus sem voz, demônios pagãos e amazonas des(2005) e A Última Vez Que Vi Macau (2012), o portunudas, num pout-pourri teológico. guês trata, indiretamente, de questões de gênero Um claro ápice no impulso criativo do cineasta portue sexualidade. O protagonista do primeiro, cheio guês, O Ornitólogo é um desafio ao olhar. É ousadia de perversidade. O conflito do segundo, em que a estética, tanto quanto temática. É um filme que dor de um luto de um personagem gay é invadida afasta, mas fascina. Glorifica e satiriza. Aborda passado, presente e futuro não de forma intercalada, mas de maneira abertamente interposta.

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Okja de Joon-Ho Bong

Carnivorismo Selvagem (e criativo!) por Thiago Sampaio

cinema estrangeiro

Diretor coreano Joon-Ho Bong faz um grande ensopado de diferentes ingredientes com gosto que varia entre o leve, saboroso, até a digestão amarga que não deve ser rápida. Pode não ser fácil de digerir, mas é bastante recomendável

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Mas nem tudo é bizarrice, já que a relação entre a pequena Mikha (Seo-Hyun Ahn, grande revelação!) com o porco gigante Okja é o coração da trama. E nessa jornada de salvação, Joon-Ho Bong conduz cenas de ação que não deixam em nada a desejar a produções do gênero, além de um humor constante. A protagonista de apenas 13 anos foge totalmente do estereótipo da menina que sofre pelo bicho de estimação. Para reaver a companheira que ama, ela enfrenta os perigos, apanha, fica com cara marcada, 2017 com Jake quebra portas, não se rende ao show Gyllenhaal, midiático. A interação com a Frente Tilda Swinton, de Libertação dos Animais, liderada por Lily Collins e “K” e “J” (personagens de Steven Yeun Paul Dano e Paul Dano, com codinomes em aluAventura são a Homens de Preto), que se trata de uma gangue “politicamente correta”, garante momentos bem divertidos. Claro que o roteiro, escrito pelo próprio Bong, faz críticas ao capitalismo, à ânsia pelo capital e à banalização por meio das redes sociais. Característica essas que ele já demonstrava no terror O Hospedeiro (2006). Aqui, o dedo está apontado para a indústria alimentícia, colocando em questão a vida dos animais.  Para isso, Okja é feita através de uma computação gráfica eficiente, em uma fofura que consegue o objetivo de fazer o espectador se apegar a ela, sentir as dores e torcer até o fim. Ela tem expressões, tem o instinto protetor e o desespero de quem está perdida num mundo em que não confia em mais ninguém. Independente do vegetarianismo como posição partidária, o longa consegue o desejado nó no estômago. Okja não é um filme de criança, nem de ação, nem de comédia. É tudo isso junto, ambientado em um universo cartunesco habitado por seres de várias regiões. E por conseguir uma mistura tão exótica, adicionada a um terror “real”, Joon-Ho Bong faz desse, ao lado de Beasts of No Nation (2015), uma das melhores produções originais da Netflix. Obs: há uma cena pós-créditos.

okja

É

comum ao assistir Okja, produção lançada direto na plataforma de streaming Netflix, em determinados momentos, achar que estamos diante de uma animação. Pretensioso como sempre, o diretor coreano Joon-Ho Bong se aventura em um estilo diferente, não bem definido, alternando entre a ternura infantil e a violência física e social. Tudo em um universo fantasioso, como se imergisse dentro de uma obra de Hayao Miyazaki. A referência a Miyazaki não é mera percepção. Afinal, o mundo peculiar do diretor de Meu Amigo Totoro (1988), A Princesa Mononoko (1997) e A Viagem de Chihiro (2001), que mostra a afeição de crianças com animais/criaturas, mas com ar de melancolia, em que o medo é algo constante, recebe uma clara homenagem, agora com atores reais (e que elenco!). Na trama, Lucy Mirando (Tilda Swinton), a CEO de uma poderosa empresa, apresenta ao mundo que uma nova espécie animal, cuidada em laboratório. São enviados 26 bichos dessa espécie para países distintos, de forma que cada fazenda o receba possa apresentá-lo à sua própria cultura. A ideia é que 10 anos depois os bichos participem de um concurso que escolherá o melhor deles. Se em Memórias de um Assassino (2003), Bong entregou um thriller para lá de instigante e, na sua estreia em Hollywood, fez o sci-fi bem acima da média Expresso do Amanhã (2013), agora ele pisa em um terreno novo e multiétnico, que começa como uma produção leve e até boba, mas vai ganhando corpo ao longo dos 118 minutos, inserida em um contexto totalmente estranho, irreal. Logo na cena inicial percebe-se o tom satírico, quando a empresária Lucy Mirando apresenta o tal projeto do “Super Porco”, em uma performance exagerada, buscando o lucro e a visibilidade. Por sinal, a sempre ótima Tilda Swinton traz outra grande atuação, em papel duplo. Enquanto Lucy é escandalosa, de dentes falsos, e preza pela imagem acima de tudo, a irmã gêmea Nancy é ainda mais fria, pragmática, direta ao ponto. Mas de longe, o personagem mais artificial é o apresentador de TV vivido pelo também versátil Jake Gyllenhaal de maneira propositalmente caricata ao extremo, cheio de trejeitos e uma voz irritante, se assemelhando perfeitamente a um daqueles desenhos animados que esticam todas as partes quando afetados. E não deixa de ser uma pontada ao trazer um “ser humano” tão ridículo sendo idolatrado por milhões de mentes vazias.

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2016 1h29min com Florence Pugh Drama

Lady Macbeth de William Oldroyd

Amar, Verbo Proibido por Daniel Herculano

cinema estrangeiro

Belo e triste, Lady Macbeth descreve o horror machista do sĂŠculo 19, que trata a mulher como uma mera propriedade, com o objetivo apenas de procriar 50

movimento n.1 — aceccine


agosto de 2017

E em meio ao cansaço de não fazer nada, a tentativa de resistir à dor do desespero de não ser nada aparece em pequenas ações, com um sorriso de desprezo. Pode ser uma reação lenta, mas talvez haja alguma resistência por vir. E quando a incorreção dos empregados aparece, o mesmo uso da mulher como mercadoria mexe de novo com Katherine. Parece que finalmente ela lutará contra isso. Surge uma sensação de perigo. Vergonha, inquietação e desejo reprimido se misturam. Distante da postura de rigidez usual, ela solta o cabelo, faz contato visual com Sebastian (Cosmo Jarvis) e um trovão anuncia, ao meio de uma ventania, que as coisas podem mudar. Lady Macbeth é um filme de sentidos. Do olhar trocado que gera a fagulha adormecida da paixão. Da sua ausência gritante do toque à sua necessidade. O cheiro da luxúria que paira no ar, do paladar da comida e do gosto que a pele tem. Mas também de pulsações. De suspiros. De gemidos. De sussurros. Da respiração ofegante. E muito se deve à construção e entrega da jovem Florence Pugh, como a doída esposa. Nada de trilha sonora para embelezar ou mudar o que está posto em tela. Tudo ao natural. Como a sua fotografia precisa, que ajuda a acompanhar a mudança de comportamento da protagonista. Quando o não quer dizer sim, ela mesma deixa claro. Sempre foi assim nos relacionamentos humanos. E Katherine, no fundo, quer que a selvageria a domine. Ela precisa de carne, ela precisa de vida. Ao despertar, um sorriso pleno enche a casa de uma alegria até então inexistente. Uma pequena vitória interna abre para si um fio de esperança. Mas a sociedade machista não perdoa. O clima volta a ficar o drama mergulha pesado e a tragédia paira no com firmeza na ar, ao que parece, sem camiposição minimizada nho de volta. Em um mundo onde é comum uma empre- da mulher do século gada ficar de quatro para ser 19, onde os homens tratada feito um animal por são os provedores algo que não fez, e soar comda casa e seu papel pletamente normal, pode se supor que o mundo daquela se resume ao de época não estaria preparado procriar herdeiros para que uma mulher tivesse para a família seus desejos atendidos. Ao que parece, amar, era verbo proibido. E tudo que podemos fazer é sofrer junto com a protagonista. “Até a cruz, até a prisão, até o túmulo, até o céu”.

lady macbeth

“S

abe que não vou me separar de você enquanto eu viver? A qualquer custo, eu estarei contigo. Até a cruz, até a prisão, até o túmulo, até o céu.” (Lady Macbeth, 2016) Aprisionada ao seu véu de noiva, ela olha de canto de olho aquele ser estranho ao seu lado. Está ali por obrigação. Tem medo, receio do que pode acontecer consigo a partir dali. Logo na primeira noite, a situação fica bem clara. Tudo o que se espera dela é obediência – para não dizer subserviência. Ele adentra o quarto com passos de gigante, parece uma ameaça à pureza da moça. Parece até respeito, mas é medo, onde respirar um ar puro não é uma opção e o clima é mesmo o de pura opressão. Foi um casamento arranjado. Katherine (Florence Pugh) não sabia nem quem era Boris (Paul Hilton). Foi “comprada” junto com um pedaço de terra pelo sogro (Christopher Fairbank). Para os homens, a personagem principal de Lady Macbeth, de William Oldroyd, é apenas mais uma propriedade. No compasso da espera, ela vira prisioneira da sua própria casa e mais parece um animal de estimação. O tratamento da criada, Anna (Naomi Ackie), vira tortura. O cabelo é escovado com força. O corpete é muito apertado, o que a deixa sem ar. Ela respira com dificuldade. E escutamos isso. E esse é o resumo da sua vida (infeliz). Adaptação do romance russo de Nikolai Leskov (Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk), o drama mergulha com firmeza na posição minimizada da mulher do século 19, onde os homens são os provedores da casa e seu papel se resume ao de procriar herdeiros para a família. E, de preferência, dando luz a novos homens. Originalmente, a história se passa no interior da Rússia, mas a trama é levada aos confins da Inglaterra do mesmo período. Poderia ser, na verdade, em qualquer parte do mundo, infelizmente. Em um compasso ao mesmo tempo elegante e sufocante, o diretor William Oldroyd põe Katherine sempre ao centro da tela. Mas qual o papel que ela tem naquela casa? Na “família”? Na sociedade? Não participa das conversas, não tem vida própria. É um mero enfeite ao seu senhor. Imposta a não dormir até que o esposo volte aos seus aposentos, bêbado, é obrigada a se despir, e como numa execução sumária, que olhe para a parede enquanto ele tenta encontrar algum prazer sozinho.

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por Thiago Sampaio

cinema estrangeiro

Drama, Comédia

Na Vertical de Alain Guiraudie

movimento n.1 — aceccine

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Sem pudor e para além do sexoexplícito, o cineasta francês Alain Guiraudie transborda surrealismo nesta jornada pela busca do homem no seu lugar no mundo e os riscos que ele oferece

Um Estranho no Meio dos Lobos

1h40min

2016

Bonnard, India Hair

com Damien

e Raphaël Thierry


agosto de 2017

Tal naturalidade, por sinal, é uma marca do cineasta francês. A nudez e o sexo são abordados como obras de arte. É um mundo que não necessita de pudor

no cinema aos 54 anos), que sempre demonstra uma certa repulsa a Léo, atitude que vai se transformando ao longo da projeção por motivos nem tão difíceis de prever. Porém, não demora para entrar o surrealismo, cheio de situações que beiram o absurdo, remetendo mais a O Rei da Fuga (2009), antepenúltimo longa de Guiraudie. Em meio às escapadas de Léo, nos deparamos com loopings no tempo, em que nunca fica claro o momento em que tais cenas se contextualizam, como os tratamentos com uma médica de métodos nada ortodoxos (a ótima Laure Calamy) ou quando anda em um barco fugindo do produtor do filme em que está trabalhando. É normal imaginar que tudo se trata de um sonho (ou seria um pesadelo?!). Uma jornada de um homem deslocado no meio em que vive, com necessidades físicas e financeiras como qualquer um. E ao passo em que a narrativa vai para o espaço dando vez ao abstrato, o longa culmina em uma cena corajosa e já polêmica, de um suicídio assistido “inusitado” (para dizer o mínimo). Nesse caso, a canção Away, do grupo Wall of Death, com uma guitarra no melhor estilo Pink Floyd, não poderia ser mais adequada. No fim das contas, a impressão é que Guiraudie quer mostrar a eterna dificuldade do homem se encontrar em um mundo tão peculiar e rodeado de perigos. Para isso, é perfeita a metáfora das ovelhas que precisam ser protegidas dos lobos. Em um momento, Léo dorme abraçado com uma delas como se fosse o próprio filho pequeno. A lição final, quando Léo e seu sogro se veem numa situação de vida ou morte, enfim, ele explica o título: “Temos que nos manter em pé, não podemos cair. Temos que mostrar que somos mais fortes. Não podemos demonstrar medo. Não podemos sequer nos curvar”. Definitivamente não é para qualquer um apreciar. Mas certamente vai trazer reflexão por um bom tempo.

na vertical

Q

uem conhece as obras do diretor Alain Guiraudie, sabe que agradar o público em geral não é a maior das suas preocupações. Um Estranho no Lago (2012), que fez sucesso no Festival de Cannes, apresentava uma trama de mistério com ares de Alfred Hitchcock, mas com cenas de sexo explícito a ponto de deixar Pedro Almodóvar intimidado. Em Na Vertical, ele segue o estilo pouco convencional, abraçando de vez o subjetivismo. Na trama, Léo (Damien Bonnard) vaga sem rumo pelo interior da França. Um dia, encontra a filha de um pastor de ovelhas, Marie (India Hair), que deseja um dia deixar a fazenda do pai. Não demora muito até eles se interessem sexualmente um pelo outro. Por mais que esteja sempre com ela, de tempos em tempos Léo realiza misteriosas viagens, dedicadas a escrever um roteiro e também a rondar um jovem que mora por perto. De início, Guiraudie trata sua obra com um naturalismo básico. Apesar do título, a câmera acompanha o protagonista quase que em primeira pessoa durante boa parte da projeção. O caminho do carro ao chegar na nova cidade, a peregrinação pelo belo pastoral e até o órgão sexual da sua parceira são mostrados de maneira direta. Horizontal. E tudo é proposital. Tal naturalidade, por sinal, é uma marca do cineasta francês. A nudez e o sexo são abordados como obras de arte. Uma cena de parto em um plano fixo e demorado sob o bebê saindo da vagina é a prova disso. Trata-se de um mundo que não necessita de pudor para mostrar o que existe na realidade, com personagens cheios de necessidades e, pelo menos os que são aprofundados pelo roteiro (escrito pelo próprio Alain), sem orientação sexual bem definida. Tudo gira em torno de Léo (vivido de maneira silenciosa por Damien Bonnard, trazendo o mistério necessário), de modo que pouco sabemos sobre o personagem principal. Sabemos se tratar de um roteirista de cinema com dificuldades criativas, morando de favor na fazenda onde Marie a acolheu e tiveram filho, mas tem saídas sem destino especificado e uma obsessão por um jovem desde a cena inicial. Nesse lá e cá, surgem dois importantes personagens: um idoso viúvo e intolerante (Christian Bouillette, numa entrega impressionante), inclusive para as atividades domésticas, já que antes ele tinha uma mulher para isso, como ele mesmo descreve; e o pai de Marie (Raphaël Thiéry, estreando com propriedade

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cinema estrangeiro

2016 1h53min com Pierre Niney, Paula Beer e Ernst Stötzner Drama

Frantz de François Ozon

De Mentiras, Amor e Liberdade por Pedro Martins Freire

No extraordinário Frantz, François Ozon trata de segredos e mentiras, manipulação da realidade, amor e perdão entre homens, a essencialidade da arte e a liberdade para as mulheres 54

movimento n.1 — aceccine


pergunta Magda. “Sim”, diz ele. “E nunca o esquecerá?”, quer saber Anna. “Como poderia esquecê-lo?”, ele responde. A saída abrupta do Hans do ambiente salienta a sua percepção desse “algo” entre eles. anhador do Grande Prêmio do Cinema Europeu, do Oscar francês César e do Leão de Na sala, no entanto, as “recordações” continuam e as Ouro do Festival de Veneza, François Ozon imagens coloridas dos jovens no Louvre e posteriorocupa lugar de destaque entre os principais mente na troca de olhares enquanto dançam com cineastas da atualidade. Conhecido pelos cinéfilos mulheres revelam uma realidade não condizente por obras irrepreensíveis como 8 Mulheres (2008), com a narrativa de Adrien. Ele não fala de olhares; Swimming Pool – À Beira da Piscina (2003), Ricky (2009), as imagens, sim. A mentira e a manipulação da Dentro de Casa (2012) e Jovem e Bela (2013), Frantz é o realidade se salientam, confortando Magda e Anna, mais recente filme de Ozon. e ampliam a tristeza da saudade em Adrien. Anna, Frantz é belíssimo, refinado, um poema sobre o amor e mais tarde, também irá se apropriar da mentira a dor da perda, que perpassam por todo o filme em e da manipulação da realidade para traçar o seu paralelo com outra expressão humana, a mentira. destino de liberdade. Amor e mentira, segredos e realidade se misturam. Frantz é uma adaptação livre ou releitura da peça L’HomPara o leitor se ajustar à análise do filme, o francês Adrien me que J’ai Tué, de Maurice Rostand (1891-1968), draRivoire (Pierre Niney), em solo alemão pós-Primeira maturgo e pacifista francês que ousou declarar a Guerra Mundial (1914-18), é visto por Anna (Paula homossexualidade nos conturbados anos de 1940. A Beer) pondo rosas no túmulo de Frantz (Anton von peça, lançada em 1920, foi levada ao cinema 12 anos Lucke) – com o qual ela iria se casar. Frantz estudara depois por Hollywood em Não Matarás (1932), dirigida na França e lá morreu na guerra. pelo alemão Enst Lubitsch (1892–1947). Ozon parece querer contar “um seFrantz é belíssimo, Ozon altera a perspectiva do romance gredo” entre esses homens. Sugiro original entre o soldado francês em refinado, um pequenas observações para identibusca de perdão e a noiva desconsopoema sobre o ficarmos esse “algo”, conforme o lada que por ele se apaixona por uma amor e a dor comportamento e as afirmações de proposta mais realista, moderna e ouda perdA, que Adrien. Primeiro, quando ele procusadamente contemporânea. Aqui, é a ra o médico Hans Hoffmeister (Hans mulher, Anna, a protagonista de todos perpassaM por Stotzner), o pai de Frantz, e este, sem os acontecimentos e o personagem todo o filme em esconder a dor da perda (do filho), morto, Frantz, é o alvo da lembrança impede-o de falar a ainda o expulsa. paralelo com outra de todos eles. Mas, em outra perspectiexpressão humana, va, a narrativa é a de uma relação entre Na sequência, Anna o leva para casa, onde novamente Adrien se vê frendois homens contada por um deles. a mentira. Amor e te a Hans e Magda (Marie Gruber), Uma história de amor entre homens mentira, segredos nunca explicitamente revelada. a mãe de Frantz. Estabelece-se um e realidade interesse por parte das mulheres: Quanto a isso, a dúvida e todos os se misturam “saber” sobre Frantz na França. O mistérios de “Frantz” deixam de ser atormentado e triste Adrien quer segredos, pedidos de perdão e mencontar seu segredo, o qual aliviará o seu sofrimento, tiras nos diálogos entre a mãe (Cyrelle Clair) de mas as mulheres sempre o interrompem. A dor está Adrien e Anna. “Sabe, Anna, meu filho é um rapaz no ar: nele, a impossibilidade do “revelar”; nelas, a frágil. Não o atormente”. “Não sou eu que atormenta ânsia em “saber”. A dor em processo em vias cono seu filho, senhora. É Frantz”. Tudo entendido sem trárias. Como fruto disso, surge a mentira e, em frugalidades ou tormentos. seguida, a manipulação da realidade. Brilhante, não? Por fim, as opções de Anna: a mentira confortadora Diálogos revelam “pistas” do “segredo” e da “necessidade” para os pais de Frantz, a superação do passado na de Adrien em “revelá-los”. Magda quer saber da última viagem de trem e o encontro da liberdade diante do viagem de Frantz à França. “Você sempre pensa nele?”, quadro de Edouard Manet (1882-83), O Suicida (1877), concedendo à arte como o instrumento da compreensão das fragilidades, incertezas e tormentos da existência. O presente tem vida e cores.

agosto de 2017

frantz

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2017 1h57min com Joel Edgerton MistĂŠrio

Ao Cair da Noite de Trey Edward Shults

O Peso da Incerteza Constante por Bruno Albuquerque

cinema estrangeiro 56

movimento n.1 — aceccine


Sendo mais uma relevante obra de horror/ suspense, Ao Cair da Noite pode causar estranheza no grande público por não entregar o que se espera. E isso é excelente

agosto de 2017

ao cair da noite

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ma das coisas mais bacanas que o cinema pode nos proporcionar é a imersão. Quando vemos um filme romântico, é necessário que o ele nos transmita aquele amor e nos faça sentir parte daquele todo. Em um suspense, o fascínio e curiosidade pelo desconhecido, mesmo que acompanhados pelo medo do que pode acontecer no segundo seguinte, precisa ser sentido a todo instante pelo espectador. E Ao Cair da Noite faz isso brilhantemente, ao proporcionar que o público experimente outro sentimento: a dúvida constante. Na trama, acompanhamos uma família que vive reclusa em uma mansão no meio de uma floresta. As janelas são vedadas e, quando saem de lá, sempre usam máscaras de gás e vestimentas que cobrem quase todo o corpo, na tentativa de proteger-se de uma doença infecciosa que mata em poucos dias. Certa vez, um invasor surge e alega estar atrás de água para sua mulher e filho que, segundo ele, estão escondidos em uma casa abandonada ali próximo. Não se sabe se ele está falando a verdade, muito menos o que está acontecendo no resto do mundo. E o filme quer que você sinta o mesmo desconforto dos personagens em não saberem nada. Nosso ponto de vista é o mesmo de Travis. Jovem e sem muita experiência de vida, sua inocência representa a nossa: não podemos fazer nada para descobrir o que está acontecendo, muito menos como está acontecendo. Travis é perturbado por pesadelos, que a certa altura do filme complicam a nossa vida, pois se misturam com a realidade e fica difícil discernir entre um e outro. Mas tudo é proposital: Trey Edward Shults, diretor e roteirista do filme, quer nos colocar na pele dos personagens a todo instante. E como ele consegue fazer isso bem! A tensão é constante, as dúvidas não param de surgir e a conclusão da narrativa vai se tornando cada vez mais incalculável. Não só os pesadelos

de Francis estão lá para nos confundir, mas tudo relacionado ao personagem de Will, o invasor que supostamente quer salvar a própria família. O que ele fala não bate, assim como sua atitude também é altamente questionável. Nesse ponto, o roteiro do filme é acertadíssimo, tanto no tom como na abordagem, ao Não se sabe se ele criar uma situação de incons- está falando a tância que pode resultar em verdade, muito algo perturbador em seu final. menos o que está A fotografia é um espetáculo a parte. Com tons voltados para acontecendo no o verde e um contraste acen- resto do mundo. tuado entre as sombras e os E o filme quer que realces, visualmente o filme você sinta o mesmo é extremamente narrativo. Algumas cores possuem sig- desconforto dos nificados relevantes, como a personagens em “porta vermelha” que separa o não saberem nada lado de dentro do lado de fora da casa. Os enquadramentos nas cenas noturnas, sempre evitando revelar algo, mesmo que singelo, auxilia ainda mais no suspense. A câmera é (quase) sempre fixa, com movimentos perfeitos, sem tremedeiras e inconstâncias. A presença de takes longos causa ansiedade em quem assiste ao filme. Ao final da sessão, o sentimento de inconformismo com o longa é visível no público. “Ainda bem que eu paguei meia”, disse um. É triste ver como uma obra que se preocupa em tornar cada um de seus elementos vitais para o seu funcionamento seja tão mau recebido pela audiência, visto que suas qualidades são sutis, porém incrivelmente essenciais. Não se vê mais filmes como Ao Cair da Noite toda semana nos cinemas.

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cinema cearense

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índice

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O Shaolin do Sertão de Halder Gomes 2016, 1h40min, comédia com Edmilson Filho, Fabio Goulart, Bruna Hamú, Dedé Santana, Marcos Veras, Igor Jansen Fafy Siqueira, Falcão e Camila Uckers Abissal de Arthur Leite 2016, 17min, documentário com Arthur Leite, Rosa Alvina e Alba Leite Vando Vulgo Vedita de Andreia Pires e Leonardo Mouramateus 2016, 20min, drama A Misteriosa Morte de Pérola de Guto Parente 2014, 1h2min, fantasia, mistério com Guto Parente e Ticiana Augusto Lima Eu Luto de Daniella Previtera 2017, curta, documentário Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós de Petrus Cariry 2016, 1h24min, mistério com Everaldo Pontes, Veronica Cavalcanti e David Wendefilm

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Mãe e Filha de Petrus Cariry 2011, 1h20min, drama com Juliana Carvalho

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O Grão de Petrus Cariry 2007, 1h28min, drama com Leuda Bandeira, Nanego Lira e Veronica Cavalcanti

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Trem da Alegria Arte, Futebol e Ofício de Francis Vale 2016, 1h38min, documentário com Afonsinho, Morais Moreira e Paulinho da Viola

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Os Pobres Diabos de Rosemberg Cariry 2013, 1h33min, comédia com Chico Diaz, Silvia Buarque e Gero Camilo

cinema estrangeiro

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O Estranho Que Nós Amamos de Sofia Coppola 2017, 1h33min, suspense, drama com Nicole Kidman, Colin Farrell, Kirsten Dunst, Angourie Rice, Oona Laurence, Addison Riecke e Elle Fanning

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Afterimage de Andrzej Wajda 2016, 1h38min, drama com Boguslaw Linda, Zofia Wichlacz, Bronisława Zamachowska, Krzysztof Pieczynski e Aleksandra Justa

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O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues 2016, 1h57min, drama com João Pedro Rodrigues, Paul Hamy, Juliane Elting, Chan Suan e Xelo Cagiao

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Okja de Joon-Ho Bong 2017, aventura com Jake Gyllenhaal, Tilda Swinton, Lily Collins e Paul Dano

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Lady Macbeth de William Oldroyd 2016, 1h29min, drama com Florence Pugh, Cosmo Jarvis, Naomi Ackie, Paul Hilton e Christopher Fairbanks

52

Na Vertical de Alain Guiraudie 2016, 1h40min, drama, comédia com India Hair, Damien Bonnard e Raphaël Thierry

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Frantz de François Ozon 2016, 1h53min,drama com Pierre Niney, Paula Beer e Ernst Stötzner

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Ao Cair da Noite de Trey Edward Shults 2017, 1h57min, mistério com Joel Edgerton, Riley Keough e Carmen Ejogo

cinema brasileiro 24

Corpo Elétrico de Marcelo Caetano 2017, 1h34min, drama, romance com Kelner Macêdo, Lucas Andrade e Welket Bungué

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Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava de Fernanda Pessoa 2017, 1h19min, documentário

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Mulher do Pai de Cristiane Oliveira 2016, 1h34min, drama com Marat Descartes, Áurea Baptista, Amélia Bittencourt

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Animal Político de Tião 2016, 1h16min, documentário

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Xale de Douglas Soares 2016, 1h18min, híbrido com Raci Vanassian, Douglas Soares e Felipe Herzog

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Baronesa de Juliana Antunes 2017, 1h13min, documentário

especial 36

Twin Peaks de Mark Frost e David Lynch 1990, 1991, 2017, série com Kyle MacLachlan, Sherilyn Fenn, David Lynch, Sheryl Lee, Mädchen Amick, Naomi Watts, Laura Dern, Jennifer Jason Leigh, Amanda Seyfried, Ashley Judd, Tom Sizemore, Ana de la Reguera, Michael Cera, Monica Bellucci e Tim Roth

movimento n.1 — aceccine


UNIFOROFICIAL

UNIFORCOMUNICA

UNIFOR: A MELHOR DO NORTE NORDESTE* Cearense, você faz parte dessa história www.unifor.br *Segundo o Ranking Universitário Folha (RUF 2016), considerando universidades particulares.


Distribuição gratuita — 2017 Todos os direitos dessa edição reservados à Associação Cearense de Críticos de Cinema — Aceccine fortaleza – ce – brasil aceccine@gmail.com www.aceccine.org facebook.com/aceccine


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