ESTE FOLHETO É PARTE INTEGRANTE DO ACERVO DO BEHETÇOHO EM FORMATO DIGITAL, SUA UTILIZAÇÃO É LIMITADA. DIREITOS AUTORAIS PROTEGIDOS.
INFORMAÇÕES SOBRE O PROJETO O Acervo Eletrônico de Cordéis do Behetçoho é uma iniciativa que pretende dar consequências ao conceito de (com)partilhamento dos artefatos artísticos do universo da oralidade, com o qual Behetçoho e Netlli estão profundamente comprometidos.
INFORMAÇÕES SOBRE A EQUIPE A equipe de trabalho que promoveu este primeiro momento de preparação e disponibilização do Acervo foi coordenada por Bilar Gregório e Ruan Kelvin Santos, sob supervisão de Edson Martins.
COMPOSIÇÃO DA EQUIPE Isabelle S. Parente, Fernanda Lima, Poliana Leandro, Joserlândio Costa, Luís André Araújo, Ayanny P. Costa, Manoel Sebastião Filho, Darlan Andrade e Felipe Xenofonte
SALETE MARIA
O MILAGRE TRAVESTHRILLER: A HISTÓRIA DA TRAVESTI QUE (COM FÉ) ENGRAVIDOU
2010
Subindo a Serra do Horto Ao som do 'baby pirei' Com seu olhar absorto Curtindo seu happy day Ao lado da comitiva Desfila ela, a diva Orgulho da causa gay De baby-look brilhosa E mini-saia rendada Com sua bota estilosa E a cabeleira dourada Beijando o seu amor Ela entoa um louvor No meio da romeirada Parando nas Estações E agradecendo com fé Balbuciando orações Cumprimentando Seu Zé
Jogando beijos no ar Ela acena sem parar Pra bicha, home e muié O filme é encenado Nas ruas de Juá City O povo tá encantado Com o tal enredo beat O roteiro é a história Da neta de Dona Glória E filha de Idelzuíte Trata-se duma promessa Que Shirley Dayanna fez Assim a cena começa Em Dois Mil e Dezesseis O Milagre Travesthriller É dirigido por Muller E fala de gravidez
Shirley está preocupada Com a vida conjugal Se sentindo inadequada Etecétera e coisa e tal Tudo que ela queria: Era aumentar a famía, Como faz todo casal Pediu para sua anja Senhora da Conceição -Eis uma santa que manja Do tema concepção!Mas nada lhe aconteceu A menstruação desceu E seu apelo foi vão Então meio delirante Shirley de vela na mão No quarto teve um rompante Qual uma alucinação
Entendeu que poderia Conceber como Maria Sob santa inspiração Daí rogou ao Senhor Que enviasse um sinal Por meio dum protetor Um ente angelical Chamado de Gabriel Gerente dalgum motel Messenger neonatal E não cessava de orar Sempre com muito fervor Prometendo jejuar E dizimar com rigor Mas uma voz estridente Repetia, renitente: Não me tente, por favor!
Ela argumentou então: Eu também tenho direito! Não fiz catecismo em vão! Decorei todo o preceito! Fui crismada, batizada! Hoje sou mulher casada! Qual é mesmo o meu defeito? E a voz, peremptória, Dizia: Assim não dá... Você burlou a história Pra me desmoralizar Quem já viu um travesti Pensar que pode parir Para Eu abençoar? Vendo que não conseguia Convencer a Deus do Céu Lhe ocorreu que poderia Falar com um bacharel
Pra ele peticionar Requerer, protocolar Um write, vulgo créu! Todavia, infelizmente Mesmo por muito dinheiro O doutor mui competente Conhecido em Juazeiro Disse que não poderia: Pois não há cidadania Para travesti fuleiro Ela disse: mas Doutor Seu prestígio pode tudo Eu lhe pago o que for Pois confio em seu canudo Preciso de seu trabalho Expert em quebra-galho Me ajude que eu te ajudo
Realmente eu sou o tal E não quero me gabar Mas o seu caso é banal E violação não há Falta interesse de agir E eu volto a repetir: Não há chance de ganhar Mas tudo que seu birô Apresenta pro juiz Ele apõe um ''sim senhor'' -Segundo seu aprendizE quando há recompensa Tudo quanto é Excelência Dá o seu... e pede bis Data vênia, ele disseAb ovo, ipso facto Erga omnes, sub-vice Outrossim, pague o pato
Dura lex, sede lex Isto eu li na Consulex Se traduzir eu lhe mato! Shirley diante do não Em seu cross-fox saiu Telefonou pra João E rapidinho seguiu Para a sede do Galosc -Se sentindo muito lostAli chegando insistiu: Eu preciso ter um filho Para me realizar Já fui rainha do milho E também miss Ceará Já desfilei na fanfarra Agora chega de farra Eu quero é amamentar!
Preciso de tua ajuda De tua compreensão Por favor não me iluda Diga logo sim ou não! E Joãozinho extasiado Com cara de assustado Prostrado fez oração: Minha Santa Lady Gaga! Virgem Madonna, oh não! Beyoncé, oh minha fada! Não rogo por Deus em vão! Shirley Dayanna, amada Me tire dessa parada Não me meta em confusão! De repente se lembrou Da velha Dona Da Guia: Uma prima de seu avô Parteira da cercania
Que no Mercado Central Benze e vende enxoval Vela, santo e agonia Shirley disse: bate, bicha! Rodando uma bolsa prata E girando à largartixa Mostrou as unhas de gata Chegando em Dona Da Guia Sorrindo disse: bom dia! E a velha danou-lhe a lata De uma queda foi ao chão! Mostrando sua calcinha Ensaiou um palavrão Mas viu que não lhe convinha Mordeu seu indicador E entre dentes gritou: Ai que ódio, mulherzinha!
Da Guia disse: o que é? Bicha da cara de lia! Tu pensa que é muié? Credincruz, ave maria! Ói as trêis noite de escuro! Teu lugar é no monturo! Vai timbora logo, avia! Shirley pediu uma imagem De Padim Ciço Romão: Quero render homenagem E pedir sua benção Será que ele me entende? E meu desejo atende? Me dando um bucho, ou não? A velha empalideceu E suando frio caiu Um homem disse: morreu! Shirley Dayanna fugiu
Foi pra casa duma amiga Feminista entendida Que assim lhe advertiu: Shirley, você tá pirada Perdeu a noção de tudo Deixe dessa palhaçada Deus pra você está mudo E o Padre Ciço Romão Não lhe dará atenção Tudo isso é absurdo! Para que engravidar? Nestes tempos pós-modernos! Todas querem abortar! Leia aqui nos meus cadernos! Quando eu penso que vocês São as radicais da vez... Defendem mitos eternos
Já que quer ser genitora Porque não faz adoção? Hoje a lei é promissora Basta uma petição... Minha filha, se oriente Seja mulher diferente Deixe de esculhambação Shirley disse: queridinha É meu desejo e pronto! Você já ta passadinha Mas eu inda tô no ponto Vê se me ajuda a viver Chega de teretetê Me deixe ler este conto! Então Shirley arrancou Um livro de uma estante E a feminista ficou Pálida naquela instante
Era um texto de magia Carregado de heresia Uma peça alucinante As Bichas Madres de Aurora? Não é possível, menina! Eis a caixa de Pandora! Isso muda minha sina! Tenho que levar pra casa! É hoje que eu crio asa, Peito, bunda e vagina! O livro é baseado No Segredo das Raimundas Um grupo organizado De beatas moribundas Que no século dezenove Praticavam meia-nove Dentro duma catatumba
Eram cinco travestis Que viviam no sertão E viraram colibris Depois duma maldição Pois com o poder da mente Foram mães precocemente Hoje são assombração Raimundas se travestiam Em noite de lua cheia E pelas ruas saíam Uivando como sereias E dentro dum cemitério Ali se dava o mistério Que todo corpo incendeia Fingiam-se de beatas Para vestido usar Mas, às vezes, de gravatas Iam pra missa rezar
E depois da cerimônia Perdiam toda a vergonha E transavam sem parar E para encher de cores As vestes tradicionais Elas chupavam as flores Dos altares principais Colorindo suas bocas E ficando muito loucas Para os grandes bacanais Porém uma destas cenas A população flagrou E a dança da macarena Que o grupo reinventou Irritou a Dona Helena Que sem ter dó e nem pena Uma a uma matou
Mas na cauda de Bisonho Elas deixaram um segredo Que através de um sonho Aprenderam muito cedo Dizia: Pra ser feliz Ouça o que o coração diz E nunca mais tenha medo! Sentada dentro do carro Com olhos arregalados Shirley fumou um cigarro Apreciando o babado Parecia onipotente Criando em sua mente Um insight arretado Lendo fervorosamente Logo tudo entendeu O poder do inconsciente! E todo seu apogeu
Viu que para engravidar Bastava ela imaginar E assim lhe ocorreu Sorriu genuinamente Para as deidades fiéis Sentindo estranhamente Da cabeça até os pés Transformação corporal - Algo sobrenatural! E assim contou até dez Um: estou engravidada! Dois: Isto é fenomenal! Três: Me sinto iluminada! Quatro: Hoje é natal! Cinco: Viva a putaria! Seis: Tô cheia de energia! Sete: Benedito pau!
Oito: Tudo é permitido! Nove: Eu quero voar! Dez! Ouviu-se um estampido E algo estranho no ar Shirley estava flutuando Sobre a cidade pairando E a multidão a olhar Assim se deu o milagre Travesthriller sensual E cachaça com vinagre Foi a poção magical Shirley Dayanna feliz Foi à missa da matriz Numa entrada triunfal Desceu as ruas do centro E o povo todo aplaudindo Ela sentia por dentro O menino se bulindo
Era sua apoteose Nem lembrava da neurose Que antes vinha sentindo A notícia se espalhou Como água na ladeira Shirley mal engravidou E o boato já na feira Todo mundo interessado No novo mito gerado Nesta terra milagreira Virou capa de jornal Da Palmeirinha ao Sudão Na mídia internacional Rádio e televisão Até o Barack Obama Enviou um telegrama Festejando a ocasião
O prefeito da cidade Mandou congratulações Mais de mil autoridades Fizeram bajulações Ouviu-se o bispo dizendo Que o feito era tremendo Digno de celebrações A gravidez mais falada Desta era milenar Muita tese elaborada Tentando tudo explicar Cafuçu fazendo intriga Falando mal da amiga Mas querendo o seu lugar A vovó Idelzuíte Fofa, paba e orgulhosa Curada da homofobite Gritava cheia de prosa
Dizendo: é minha filha! Eita bicha maravilha, Santa, linda e corajosa! A bisavó, Dona Glória Beata só cem por cento Espalhou logo a história Que Shirley era anjo bento E que sempre foi mulher Por isso Deus é quem quer Que ela tenha um rebento! Sendo o fato destacado Em nível internacional Ninguém falou em pecado Tudo era sensacional O objetivo agora Era contar a história Com viés episcopal
Atribuíram o feito Ao Patriarca Maior Que se remexeu no leito Onde voltamos ao pó E sob o slogan 'Pra Frente': Fez-se a marcha-penitente: Shirley, você não tá só! Com todo este alvoroço De notícia alvissareira Foi marcado um almoço Pra traveca parideira Onde a cúpula do poder Deseja escolher Um nome para a herdeira Mas Shirley disse baixinho: Não quero saber o sexo Meu bebê tem meu carinho Este será nosso nexo
Humano fundamental Sem padrão inaugural Pois todo ser é complexo! Dentre os vários convidados Seus amigos mais queridos Todos muito emocionados Falaram ao pé do ouvido: Shirley, você arrasou! Fez escola, inaugurou! Tudo agora faz sentido! Uma revista propôs Que Shirley nua posasse Mas sua família impôs Que ela muito cobrasse Mas ela assim decidiu: Só poso pra Globo-news Ou então para Prima Facie
Porém ficou combinado Que um curta seria feito Nada de muito parado Tudo com muito efeito Livre manifestação! E muita demonstração De bunda, perna e peito Seria tudo filmado Registrado com requinte Tudo muito organizado Nada de século XX A cidade em polvorosa Totalmente vaidosa Da bichona ex-acinte Diversos comerciantes Quiseram patrocinar Muitos eram confiantes No filão que ia dar
Tinha até cordelista Querendo ter uma pista Do filme para narrar Foi uma equipe tremenda Pra trabalhar no local Pois para narrar a lenda Só mesmo profissional Designer-maquiador Roteirista e diretor Tudo homossexual Rosa Barros fez questão Enquanto cinegrafista De antes da gravação Tentar fazer uma lista De bicha, traveca e bofe Para um belo making of Ou tape alternativista
Pensava num musical Em estilo procissão Beat e banda cabaçal Numa perfeita fusão Bendito e música pop Dancing-gay pra dar ibope E muita vela na mão Entre os artistas cotados Alguns muito especiais Todos muito devotados Às temáticas marginais: Jânio, Mano e André Mauro, Sílvio e Dedé Joaquina e outras mais Até que chegou o dia Da primeira encenação Em Juá só alegria Muita cor e emoção
O set foi preparado Todo mundo maquiado Câmera, luz e ação: De braços dados com Eike -Seu Reinaldo GianecchineEla caprichou no make Para o evento sublime Poderosa e retumbante Estrela, mãe e amante Adentrou a limousine As fofoqueiras do mundo Todas presentes no ato Muitas querendo, no fundo Protagonizar o fato Procurando um defeito Uma disse desse jeito: Shirley tem cara de rato!
Uma pessoa gritou: Silêncio, maleducados! Ali passava um andor E caminhões enfeitados E na banca de cordel Vídeo e cd a granel Em rosários pendurados Assim é o Juazeiro Do Padim Ciço Romão Onde tem muito romeiro Muita fé e oração Bodega pra todo lado E véio amancebado Que chora e pede perdão É dia 20 do mês São seis horas da manhã Com uma saia xadrez E uma blusa de lã
Na calçada do Socorro Ela grita: eu mato e corro! É Zefa doida, anciã Agarrada numa rosa Com um envelope na mão Um tanto quanto nervosa Repetindo uma oração Está uma rapariga Imune a qualquer intriga Pedindo sua benção Gente que só formigueiro Vendo a cidade crescer Circula muito dinheiro -Pois tudo é pra venderUm misto de drama e fé Na terra onde Shirley quer Vê seu herdeiro nascer
Travesthriller objetiva Mostrar a diversidade E também relativiza Toda impossibilidade Põe a imaginação Pra cair em tentação E colorir a cidade O filme-cordel é isto: Absurdo teatrado! Escrito pra ser malvisto Quiçá mal interpretado A nossa proposta é esta: -Ambiciosa e modestaSubverter o pecado! Nossa cena derradeira Mostra um clip do lugar: Que vista mais altaneira! Vale a pena visitar!
Há um bar muito vistoso, O História de Trancoso Nos encontramos por lá! Aqui termino meu texto Não sem antes dedicar A Orlando, meu pretexto, Que me propôs versejar Sobre uma travesti Que vive, ama e sorri E nos ensina a sonhar. Autora: Salete Maria Post Script: As fontes bibliográficas? É simples, amigo meu... São as histórias fantásticas Que a vida me ofereceu
De bĂŞbo, puta e doutor Beato e embolador Viado, Ăndio e ateu! FIM