IDEIAS & DEBATES
ARBÍTRIO E INFÂMIA NO TRIBUNAL PLENÁRIO Os anos cruéis da repressão de Salazar e Caetano vistos através de processos do Tribunal Plenário do Porto, postos a nu numa rara mostra documental organizada pelo Arquivo Distrital
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ra de dia e levaram-no. Apesar de padre. Era de noite e levaramnos. Apesar de jovens. Corria a manhã e cercaram-nos. A tiro. Como todos os outros, acusados de conspirar. Acusados de atentar contra a segurança do Estado. Acusados de perturbar a ordem. Acusados de espalhar ideias subversivas. Acusados de perturbar a tranquilidade pública. Acusados. Com esse estatuto colado à pele, num tempo em que ser suspeito era já uma forma de ser culpado sem remissão, chegavam a tribunal para uma encenação teatral chamada julgamento. Não passava de uma etapa de um percurso iniciado com torturas, confissões arrancadas após horas de uma violência indizível. Muitos resistiam. Outros soçobravam. Falavam. Prestavam testemunhos intermináveis, à medida das necessidades da polícia política. Ao longo de anos e anos, homens e mulheres, às vezes muito jovens, chegavam assim aos Tribunais Plenários do Porto e de Lisboa, uma invenção de Oliveira Salazar posterior à II Guerra Mundial. Criados em 1945, eram, como o disse o historiador e resistente antifascista António Borges Coelho numa iniciativa do movimento cívico Não Apaguem a Memória, dominados pela vontade e estratégias da PIDE/DGS. Naquele simulacro de justiça, o testemunho dos agentes policiais bastava para assegurar que nenhuma das eventuais confissões fora obtida sob tortura. Foram anos de arbítrio, com os democratas sujeitos à infâmia por 42 | ATUAL | 12 de abril de 2014 | Expresso
juízes que, por convicção ou por receio de represálias, prestavam-se a caucionar a política repressiva do fascismo. A dor, nua e crua, desse buraco negro da justiça em Portugal, retratado por Aquilino Ribeiro em “Quando os Lobos Uivam”, e por isso processado, é agora motivo para uma exposição no Arquivo Distrital do Porto. Através de documentos pertencentes a processos do Tribunal Plenário do Porto, é posta em relevo a atividade político-partidária ou as movimentações de uma sociedade vigiada em permanência pela PVDE/PIDE/ DGS. Estão ali postais manuscritos, dirigidos a agentes da PIDE, a exigir a libertação de Álvaro Cunhal, o histórico processo dos 52 do MUD Juvenil, os processos do padre Mário da Lixa e da prisão de Hermínio da Palma Carlos quando se preparava para ocupar militarmente a cidade da Covilhã, um poema porventura inédito de José Augusto Seabra, o auto de busca e apreensão ao quarto de Agostinho Neto, uma acusação de sevícias contra os presos, agendas minúsculas com marcações de encontros e reuniões, pins raros com fotos de Álvaro Cunhal e Bento Gonçalves, um cartaz de mobilização contra uma visita ao Porto de Américo Tomás, a cópia datilografada do romance “Cinco Dias de Viagem”, que anos mais tarde dará origem a “Cinco Dias, Cinco Noites”, de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal), e toda uma panóplia de documentos e objetos capazes de reconstruir o retrato de uma época de luta e resistência.
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Texto Valdemar Cruz
Através dos processos, é posta em relevo a atividade político-partidária ou as movimentações de uma sociedade vigiada em permanência pela polícia política. Estão ali postais manuscritos, dirigidos à PIDE, a exigir a libertação de Álvaro Cunhal, uma acusação com fotos de sevícias a presos políticos, ou o auto de busca ao quarto de Agostinho Neto
Como explica Maria João Pires de Lima, diretora do Arquivo Distrital do Porto, “trata-se, na sua grande maioria, de processos designados como crimes contra a segurança do Estado, onde constam alguns dos principais intervenientes oposicionistas” do Estado Novo. O acesso a estes documentos é condicionado, até por imposição legal, pelo que, prossegue a diretora, “a mostra será uma oportunidade única de contactar e visualizar algumas evidências documentais da nossa História contemporânea”. Aqueles tribunais criminais, criados em Lisboa e no Porto em outubro de 1945, eram presididos por um desembargador, acompanhado de dois vogais, também eles desembargadores. Tal como o representante do Ministério Público, eram escolhidos e no-
Antes e depois dos julgamentos nos Tribunais Plenários de Lisboa e do Porto, os presos políticos eram remetidos para Peniche
meados pelo ministro da Justiça, a partir de critérios de confiança política. Num espaço onde reinava o arbítrio absoluto, não poucos presos chegavam a ser espancados enquanto decorria o julgamento, perante a passividade dos juízes, por aproveitarem aquela tribuna para denunciarem a tortura e o regime repressivo. Por vezes, as vítimas eram os próprios advogados dos presos políticos, com os juízes a darem-lhes voz de prisão, como aconteceu a Manuel João da Palma Carlos, um dos advogados de Álvaro Cunhal no processo desencadeado após a prisão no Luso do dirigente comunista.
Às penas de prisão eram quase sempre acrescentadas a perda de direitos civis por dez a quinze anos e medidas de segurança até três anos, renováveis tantas vezes quantas a PIDE/DGS o entendesse. Resultava daqui que uma pena de cinco anos podia transformarse em prisão perpétua. Estava nessa situação Álvaro Cunhal aquando da fuga de Peniche, em janeiro de 1960. Condenado a cinco anos de cadeia, estava preso há dez anos, e era notória a inexistência de qualquer intenção de algum dia o libertarem. Passaram por aqueles tribunais jovens estudantes, camponeses, militares, republicanos, comunistas, socialistas, anarquistas, homens e mulheres sem qualquer atividade política e até párocos. Como o padre Mário de Oliveira, conhecido como padre Mário da Expresso | 12 de abril de 2014 | ATUAL | 43
IDEIAS & DEBATES Lixa, cujo processo, onde se incluem cassetes com reprodução de homilias ou a transcrição de uma dessas pregações explosivas, encerra o circuito expositivo do Arquivo Distrital. A notícia da segunda prisão do padre Mário, em março de 1973, surge na página 3 do Expresso na edição do dia 31. O seu primeiro contacto com os calabouços da PIDE acontecera em 1970, após o que foi julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto. O Ministério Público acusava o padre de se aproveitar da sua qualidade de pároco da freguesia de Macieira da Lixa, Felgueiras, para, nas homilias dominicais, a partir de outubro de 1969, “apologizar” a desobediência coletiva às Leis da Ordem Pública e a “perturbação da tranquilidade pública”. O padre incomodava. De tal modo que a fação mais radical do regime nunca conseguira assimilar a absolvição de 1970. Esse grupo, que se exprimia através de jornais como “A Ordem”, “A Palavra” e “A Resistência”, chegou a mobilizar meia centena de pessoas para irem de autocarro do Porto à Lixa, onde, munidos de altifalante, organizaram uma manifestação feita de insultos ao padre, acusado de herege, sobretudo pelo modo como se referia à virgem de Fátima. O problema, porém, não era sobretudo religioso e muito menos se ancorava em questões teológicas. O problema era o modo como o padre Mário entendia o Evangelho e a sua divulgação ou o facto de responsabilizar o Governo português por uma guerra injusta. Foi condenado, claro, mas salvou-o o 25 de Abril. No dia 30 daquele mês de 1974 entra no Supremo Tribunal de Justiça o requerimento do Ministério Público para que se declare extinto o procedimento judicial. Começara um tempo novo. Um tempo distante, plausível, mas porventura ainda não mais do que um sonho para os 52 membros do MUD Juvenil presos e integrados num dos mais mediáticos e gigantescos processos guardados no Arquivo Distrital, datado de junho de 1957. As vitrinas mostram apenas o primeiro de um total de mais de vinte volumes riquíssimos pelo seu conteúdo e pelo modo como permitem estudar aquele tempo histórico, as questões ideológicas então levantadas e as ações concretas de agitação e propaganda concebidas e executadas no seio da organização. Entre os presos estão Agostinho Neto, Ângelo Veloso, Pedro Ramos de Almeida, Óscar Lopes, José
Postal enviado para a PIDE no Porto a exigir a libertação de Álvaro Cunhal e (à dir.) agenda com matrículas e características dos carros da polícia
Augusto Seabra, Maria Cecília Ramos de Almeida, Maria Luísa Marvão, Silas Cerqueira ou Alcino Soutinho. Criado em 1946 num contexto de alguma expectativa de uma nova dinâmica na luta antifascista, decorrente do final da II Guerra Mundial, o MUD Juvenil foi, no seu período de vigência, até 1958, porventura uma das mais audaciosas e consequentes organizações de unidade democrática emanadas a partir dos movimentos de juventude portugueses. Por lá passaram homens como Francisco Salgado Zenha, Mário Soares, Mário Sacramento, António Borges Coelho, Otávio Pato, ou Rui Grácio. Os movimentos de resistência abarcam a vida toda e todas as complexidades da natureza humana. Nesta longa viagem por um processo gigantesco cruza-se por vezes o olhar com situações de quebra. Jovens presos políticos que não resistem à tortura e passam a contar o que sabem e o que não sabem, para grande deleite da polícia política. São mais frequentes, porém, os casos de rapazes e raparigas que assumem uma posição firme e, quando muito, confirmam o nome e a idade. Nada mais respondem. Daí a chamada de atenção de Silvestre Lacerda, diretor em exercício da Torre do Tombo, para uma exposição que, nos seus múltiplos meandros, “evoca aqueles que foram capazes de resistir e de
A exposição contém os processos dos 52 do MUD Juvenil, do padre Mário da Lixa ou da prisão de Palma Carlos 44 | ATUAL | 12 de abril de 2014 | Expresso
alguma maneira estão na luta pela liberdade que o 25 de Abril veio consagrar”. O processo não o diz em toda a sua extensão, mas sabe-se hoje que imperavam as torturas e a coação sobre os detidos. Não por acaso, a Associação Internacional de Juristas Democratas decide enviar de Paris para o Porto um representante com o objetivo de acompanhar as sessões deste julgamento. O tribunal acaba por absolver 30 dos arguidos e condena 22 a penas que vão até dois anos e medidas de segurança não inferiores a seis meses, o que permitia duplicar ou triplicar a pena. Os muitos volumes do processo contêm material apreendido durante as buscas. São exemplares do “Avante!”, um “Projeto de Programa do PCP”, uma carta ao bispo do Porto a questionar uma “Marcha do Silêncio” organizada pela Igreja, projetos de cartazes e de panfletos, poemas de incentivo à luta, rifas de um sorteio de livros de Almeida Garrett e Ferreira de Castro e até um opúsculo intitulado “Lutemos contra Espiões e Provocadores (Breve História de Alguns Casos de Provocação do PCP)”, onde se expõem, em letra muito pequena e em papel bíblia, casos de ex-militantes do PCP que acabaram por se passar para o outro lado da trincheira e, na linguagem da época, “traíram”. Maria João Pires de Lima realça, no entanto, a circunstância de o material exposto não conter “uma base de investigação sobre os Tribunais Plenários”. É antes de mais uma mostra “muito gráfica, com exibição de peças que fazem parte dos processos e cujo conhecimento pode ser interessante para o cidadão comum”. Aparecem, então, postais manuscritos em 1949 e dirigidos a agentes da PIDE do Porto a exigir a libertação de Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro, apontamentos escritos em letra minúscula recolhidos após o assalto pela PIDE a uma casa clandestina, um documento pouco conhecido, escrito a vermelho, sobre o “Tar-
Após o 25 de Abril, os juízes dos Plenários integraram o novo sistema judiciário sem jamais ter sido questionado o seu papel rafal, Campo de Morte Lenta”, caderninhos em papel bíblia com matrículas e caracterização dos carros da polícia, uma banda desenhada com mensagem política, o processo de Blanqui Teixeira, onde se inclui a cópia datilografada de “Cinco Dias de Viagem”, que dá origem a “Cinco Dias, Cinco Noites”, de Álvaro Cunhal, ou o processo de Hermínio da Palma Inácio, com os planos e a descrição da falhada operação de tomada da cidade da Covilhã. Preso a 20 de agosto de 1968, em maio do ano seguinte o fundador da LUAR fugia da sede da PIDE no Porto. Palma Inácio, tal como o perceberam outros antes e depois dele, sabia com o que podia contar caso chegasse a julgamento. Num tribunal em que os juízes surgiam aos olhos de todos como meros figurantes de um guião pré-escrito pela polícia política, os meios de prova aceites pelos magistrados eram inúmeras vezes os testemunhos dos próprios agentes da PIDE, como fica evidente em vários dos processos desta exposição do Arquivo Distrital do Porto. Decretavam uma pena, mas o seu cumprimento ou efetiva duração, com prolongamento indefinido da prisão, dependia dos critérios de avaliação da polícia política, sem que os juízes interviessem para fazer respeitar a decisão do tribunal. Após o 25 de Abril de 1974, os juízes dos Tribunais Plenários foram integrados na nova orgânica do sistema judicial sem jamais terem sido responsabilizados ou questionados pelo seu ativo papel na solidificação do aparelho repressivo do Estado Novo. A vcruz@expresso.impresa.pt
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