O barco, o tempo e o espaço na ação cultural

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O barco, o tempo e o espaço [na ação cultural] Adriana Amaral Coordenadora de Equipe de Artes Visuais

“... o barco é um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que existe por si mesmo, que é fechado dentro de si mesmo e ao mesmo tempo é uma descontinuidade da infinitude do mar e que, de porto em porto, de mudança em mudança, de cais em cais, de bordel em bordel, ele vai tão longe quanto as colônias na procura dos mais preciosos tesouros que elas escondem em seu jardim...”. Michel Foucault ¹

Minha reflexão parte das relações de tempo e espaço nas ações que permeiam o nosso trabalho, na verdade, todo o trabalho que parte de uma relação de encontro entre sujeitos e seus territórios. Tempo e espaço são elementares na configuração de lugares e subjetividades. Este ano para mim estas relações se manifestaram com muito mais veemência. Deslocar-me pelas regiões, deparar-me com distintas realidades, mas todas sobre perspectivas muito próximas de trabalho, sendo o fazer e o criar o elo entre o estar aqui e lá, manifestandose como trânsitos de pensamentos, vontades, quereres, não quereres, conflitos, aproximações e dissonâncias. O barco, enquanto metáfora desse trabalho em seu navegar, parece tentar adentrar territórios e em muitos momentos quando nos colocamos de fora a olhar pelo mirante, vemos não um velejar, mas direções desordenadas, barcos sem leme em alto mar. Em Heterotopias, Foucault (1967) coloca o barco, ao concluir seu pensamento sobre as relações de tempo, espaço e distância na constituição de espaços entre, como uma metáfora da potência do homem enquanto criador de espaços e tempos outros, que permite deslocar-se ou suspenderse do já estabelecido social e culturalmente. A metáfora do barco ressalta o potencial do homem enquanto ser criador, inventivo, que se lança para o desconhecido, que permite se aventurar entre territórios, criando fendas em seu percurso, em que ele mesmo torna-se um espaço-tempo outro. Entre realidades e utopias surgem espaços de desvios, impróprios, ilícitos, sacros e de suspensão. Neste sentido, o barco é o que transita, é o que permeia e transforma caminhos na transitoriedade do tempo, trás consigo a natureza do não fixo, mas ao mesmo tempo preserva o seu estado de integridade, o lançar-se inteiro para que novos espaços possam ser adentrados, percebidos e descobertos para si, ou em si mesmo.


Isso me traz algumas questões sobre o estar, agir e criar no Programa Vocacional. O quão barco pode se efetuar em nossas ações coletivas, compartilhadas ou individuais? Ou, o quão barco é ou se propõe o próprio Programa? Como podemos pensar a ação cultural, enquanto ação criadora de tempos e espaços entre? Não tenho respostas, mas ainda muitas inquietações, que espaços são esses que abruptamente adentramos, serão apenas demografias? O que envolve a constituição desses lugares? Mas não será o próprio programa já um lugar? Não será ele este barco flutuante e transitório, criando outros espaços, ou será que somos apenas uma colisão? Em que ponto, nós mantemos a nossa inteireza para que o navegar possa manter-se contínuo? Fico pensando que nos equipamentos onde atuamos, devido à própria estrutura, temos que criar espaços entre. Se pensarmos nesses espaços como casa, diria que ocupamos aquele canto do despercebido, aquele canto sem acesso aos cômodos, sem acesso às relações íntimas da casa. É como se sempre tivéssemos que criar aberturas, cavar fendas para que de alguma forma, ou meio, seja possível transitar. Estamos sempre criando fluxos e passagens de outros tempos e espaços que são carregados por cada um de nós. O programa vocacional é este espaço do transitório, mas que precisa fazer-se inteiro para que os fluxos aconteçam. Manter-se inteiro, talvez seja se perceber não como inquilino da casa, ou ocupante de espaços, mas como um espaço já em potência, que não atua no tempo da colisão, mas no tempo do velejar, na condução integra do leme, para que todo acaso possa vir inocente. Neste breve refletir, eu tenho muito mais indagações do que afirmativas, mas talvez, a potência da ação do nosso trabalho esteja no ato de criar, na efetuação de uma ação criadora. Pertence à natureza do afetar e de ser afetado, aquilo que reside em mim e que ao atingir o outro toca a mim mesmo. Nesse sentido, identifico-me muito com a maneira como Fuganti ² coloca a ação cultural, como criação de meios, sendo o encontro o terreno da efetuação da experiência e da ação criadora sensível. Ao colocar-me neste trânsito, entre o ir e vir, entre permear e distanciar-se ao mesmo tempo, o que me passa é que o espaço entre das nossas ações, configura-se como um espaço de encontro, aquele que potencializa o tocante a cada singularidade e que reverbera em si mesmo uma ação transformadora, que ativa ao navegar a capacidade de ser afetado.

¹ FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Heterotopias, 1967. Excerto retirado de seu texto apresentado em conferência no Cercle d’études architecturales em 14 de março de 1967. ² Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto, professor, escritor, ministra cursos desde 1986. Criou um movimento, a Escola Nômade de Filosofia, resultante das práticas de pensamento que vem realizando. Em 2012, participou como palestrante convidado do Vocacional Apresenta com o tema: A ação cultural como produção de subjetividade.


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