Fichamento - Modernidade Líquida - Bauman

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1. Indicação bibliográfica Bauman, Zygmunt – Modernidade Líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2001. Capítulo 3 – Tempo/espaço - páginas 107 a 149. 2.

Tópicos principais

‘Comunidade’ é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora; o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras de convívio. ‘Comunidade’ é um bom argumento de venda. É um território vigiado de perto, onde aqueles que fazem algo desagradável são logo punidos e postos na linha. Os desocupados, vagabundos ou intrusos “não fazem parte”, são impedidos de entrar ou são expulsos. Nas comunidades atuais há olhos vigiando por todos os lados (câmeras) e seguranças armados. Muitos acreditam que existam conspirações contra eles. Isso sempre atormentou muitas pessoas em todas as épocas. Nunca faltou gente para encontrar uma lógica para sua infelicidade, frustração ou derrota colocando sempre a culpa nos outros. Hoje, são os “assaltantes” (e outros estranhos ao lugar) que levam a culpa. O medo de ser assaltado tornou-se uma epidemia que assola nossos contemporâneos. O dinheiro público vem sendo destinado cada vez mais para caçar os assaltantes, vagabundos e outras versões do terror moderno. Sharon Zukin, citando City of quartz (1990), de Mike Davis, diz que o perigo mais tangível para o que chama de ‘cultura pública’ está na ‘política do medo cotidiano’. O espectro apavorante das ruas ‘inseguras’ mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca da arte e habilidades necessárias para a interação social. A comunidade passa a ser definida por suas fronteiras vigiadas de perto (e não por seu conteúdo). Cidade é um “assentamento de humanos em que estranhos têm chance de se encontrar” (definição de Richard Sennet). Estranhos se encontram em sua condição de estranhos, saindo como estranhos do encontro casual que termina tão rapidamente como começou. O encontro de estranhos é um evento sem passado, e quase sempre, sem futuro (isso é o esperado). É uma história para ‘não ser continuada’. Não há espaço para erros, nem aprendizado ou expectativa de outra oportunidade. A civilidade não pode ser privada. Deve ser uma característica da situação social. O entorno urbano deve ser ‘civil’ para que seus habitantes aprendam as difíceis habilidades da civilidade. É necessário que haja espaços disponíveis para que as pessoas compartilhem sem serem obrigadas a “tirar a máscara” e expressar-se. Muitos lugares recebem o nome de ‘espaço público’. São de vários tipos e tamanhos, e a maioria possui características que se afastam do modelo ideal do espaço civil em direções opostas, mas complementares. Um exemplo é a praça La Défense, em Paris, circundada por edifícios enormes, imponentes e inacessíveis, pois estão lá para serem admirados, e não visitados. Não há bancos para descansar, nem árvores para se abrigar do sol – apenas o uniforme e monótono vazio da praça. Outra categoria de espaço público, mas não civil, se destina ao consumo – ou melhor, a transformar o habitante da cidade em consumidor. São locais que encorajam a ‘ação’ e não a ‘interação’. Qualquer interação entre os protagonistas poderia afastá-los das ações (compras) que estivessem realizando, e isso constituiria um prejuízo. A tarefa é o consumo, um passatempo absolutamente individual. Nesses espaços, os encontros devem ser breves e superficiais: não mais longos nem mais profundos. Os templos de consumo são vigiados e guardados, livres de mendigos, desocupados, assaltantes – como uma ilha de ordem. É isso o que se espera e supõe desses locais.


O que acontece num shopping Center tem pouca ou nenhuma relação com a vida diária, fora dos portões. É como se a pessoa estivesse em outro lugar; uma espécie de intervalo de tempo. Diferente da loja da esquina do passado, o templo do consumo pode estar na cidade, mas não faz parte dela. Não representa o mundo comum temporariamente transformado, mas é um mundo completamente “outro”. Eles nada revelam da natureza do real cotidiano; oferecem o que nenhuma realidade externa pode dar: equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança. Dentro dos ‘templos’, os consumidores têm o sentimento de pertencer, fazer parte de uma comunidade – sensação que não encontram fora. É o “estar junto” por semelhança. A imagem se torna real, e todos se aproximam do ideal de comunidade – sem ter de se envolver em negociações, esforços por empatia ou concessões: todos estão lá com o mesmo propósito, unificados. De acordo com o antropólogo cultural, Claude Lévi-Strauss, foram utilizadas duas estratégias nas sociedades humanas para enfrentar a alteridade dos outros: a antropoêmica e a antropofágica. Na antropoêmica, os que são considerados estranhos ou alheios são “vomitados”, “cuspidos”, impedindo-se qualquer contato físico, diálogo ou interação social. As variantes extremas da estratégia ‘êmica’ são o encarceramento, a deportação e o assassinato. As formas mais ‘elevadas’ consistem em realizar uma separação espacial, como os guetos urbanos, acessos ou impedimentos seletivos a espaços determinados. A estratégia antropofágica significa a ‘desalienação’ de substâncias alheias – é como ingerir corpos estranhos e fazê-los, pelo metabolismo, corpos idênticos aos que os ingerem. Trata-se da assimilação forçada: guerras declaradas contra costumes locais, dialetos, cultos e tradições ‘diferentes’. A primeira estratégia visava o exílio ou aniquilação dos ‘outros’; a segunda quer a suspensão da alteridade alheia. A praça La Défense (Paris) é um exemplo de estratégia ‘êmica’, com seu espaço interdito, enquanto os centros de consumo representam a ‘fágica’. Ambas respondem ao desafio de se encontrar estranhos, tarefa típica da vida urbana. Esse enfrentamento requer medidas ‘assistidas pelo poder’ quando não há práticas de civilidade. Os “não-lugares” são ostensivamente públicos, porém, enfaticamente “não-civis”. Eles desencorajam a ideia de estabelecer-se, tornando a colonização ou domesticação daquele espaço público quase impossível. Um “não-lugar” é destituído de identidade, relação ou história: são aeroportos, autoestradas, quartos de hotel anônimos, transporte público. São espaços que “sobram” depois da reestruturação de espaços importantes. Os “não-lugares” não necessitam da difícil arte da civilidade. As diferenças tornam-se invisíveis ou difíceis de serem percebidas. Cada habitante das cidades possui um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios – as pessoas ‘excluem’ determinados lugares em suas mentes, e isso permite que o restante brilhe e se encha de significado. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido, vulnerável ou aterrorizado. A principal característica dos lugares “não-civis” é a de estar dispensado de interagir socialmente. Se a proximidade não puder ser evitada, pode-se ao menos evitar um contato mais estreito. Quanto maior a tendência a homogeneização, esforçando-se para eliminar a diferença, mais difícil se torna sentir-se à vontade em presença de estranhos. A ideia do bem comum é vista com reservas, ameaçadora ou confusa. A busca da segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados surge como uma forma sensata, eficaz e lucrativa de proceder. Escavar um ‘nicho’ implica separar territorialmente – um espaço que necessita de defesa. Por isso é cercado e permite a entrada apenas de pessoas da ‘mesma identidade’. No espaço polifônico ninguém sabe se comunicar com ninguém. O ‘nicho’ é seguro – todos são parecidos, há pouco sobre o que falar e o ato de conversar é mais fácil. No espetáculo da política, o que interessa é a identidade, e não os interesses. Ou seja, o que se é prevalece sobre o que se está fazendo.


Na fluidez (e fragilidade) dos laços sociais, são necessários esforços para manter longe o diferente, o estrangeiro, o estranho, por meio da decisão de se evitar qualquer comunicação ou compromisso. “Não fale com estranhos” tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta. A exceção seria apenas a troca de frases rotineiras que não geram controvérsia, e principalmente, não criem comprometimento. Espaço é o que se pode percorrer em certo tempo, e tempo é o que se precisa para percorrê-lo. A maioria das coisas que fazem parte da vida são razoavelmente compreendidas até que se precise defini-las; e, a menos que solicitados, não precisaríamos fazer essas definições. Atravessar distâncias cada vez maiores tomará cada vez menos tempo. O tempo é diferente do espaço porque, ao contrário deste, pode ser mudado e manipulado. O tempo se tornou dinheiro depois de ter se transformado em ferramenta (ou arma) voltada especialmente para vencer a resistência do espaço – encurtar distâncias, derrubar as barreiras à ambição humana. A modernidade nasceu sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras. A relação entre tempo e espaço deveria ser de agora em diante processual, mutável e dinâmica, não predeterminada, estagnada. A conquista do espaço significou máquinas mais velozes, igual a ampliação desse espaço. Para Max Weber a “racionalidade instrumental” sugeria afiar os instrumentos para maximizar o valor. Era o princípio operativo da civilização moderna: o modo de realizar mais rapidamente as tarefas a fim de evitar tempo ocioso, improdutivo. A diferença entre fortes e fracos está em um território formado como no mapa – vigiado e controlado – e um território aberto à invasão, ao novo desenho das fronteiras e à projeção de novos mapas. A era do hardware, ou modernidade pesada, era obcecada por volume – quanto maior, melhor; tamanho é poder, volume é sucesso. O território era a maior obsessão moderna, e sua aquisição era urgente. A riqueza e o poder estavam na terra. O que estivesse entre postos avançados dos domínios imperiais de competição era visto como terra de ninguém (espaço vazio). Isso representava um desafio à ação e uma censura à preguiça. Aventura, felicidade, riqueza eram conceitos geográficos, propriedades territoriais. Isso exigia muros altos, vigília constante e localização secreta. O espaço só era possuído quando controlado – significava “amansar o tempo”. O tempo congelado na rotina da fábrica imobilizava o capital e o trabalho. Com o capitalismo de software, ou modernidade leve, as carreiras tendem a ser feitas por pressões coordenadas de espaço e tempo. Por meio da viagem à velocidade da luz o espaço pode ser atravessado em “tempo nenhum” – é o fim da diferença entre perto e longe – não impõe limites. Como todas as partes do espaço podem ser atingidas ao mesmo tempo, nenhuma dessas partes é privilegiada ou tem valor especial. O tempo instantâneo e sem substâncias é um tempo sem consequências. Instantaneidade significa realização imediata, mas também exaustão e desaparecimento do interesse. Pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com as mãos atadas; a liberdade das primeiras é a causa da falta de liberdade das últimas. A busca da proximidade das forças da incerteza reduziu-se ao objetivo da instantaneidade. Os que se movem com mais rapidez são os dominantes. Aqueles que são mais lentos, ou não têm a liberdade de deixar seu lugar quando querem, são os que obedecem. Antes, só se podia alugar e empregar trabalho junto com os corpos dos trabalhadores. A inércia dos corpos alugados punha limites à liberdade dos empregadores. Hoje vivemos uma transformação que supõe a “descorporificação” daquele tipo de trabalho humano. O capital é extraterritorial, volátil, inconstante – está confiante de que não haverá escassez de lucros ou de parceiros com quem compartilhá-los. O capital pode viajar rápido, e sua leveza e mobilidade se tornam fonte de incerteza para todo o resto. Atualmente, essa é a principal base de dominação e fator de desigualdade social.


A administração da era do capitalismo leve consiste em manter afastada a mão-de-obra humana, ou até em forçá-la a sair. O capital mantém o trabalho que emprega sob controle, e se isenta da responsabilidade sobre os efeitos devastadores das sucessivas rodadas de redução de tamanho – essa é a face da dominação contemporânea. É necessário praticar o desapego, e não assumir compromisso duradouro com nada, inclusive as próprias criações. Bill Gates, por exemplo, declarou diversas vezes “preferir colocar-se numa rede de possibilidades a paralisar-se num trabalho particular”. (SENNET, 1998). A indiferença em relação à duração de um momento transforma a imortalidade de uma ideia numa experiência e faz dela um objeto de consumo imediato – a forma de viver o momento faz dele uma experiência imortal. A instantaneidade (anulação da resistência do espaço) faz com que cada momento pareça ter capacidade infinita, não havendo limites para o que possa se extrair de qualquer instante – por mais breve que possa ser. O curto prazo substituiu o longo prazo, fazendo da instantaneidade seu ideal. Atribui-se aos objetos duráveis um valor especial, sendo eles desejados por sua associação com a imortalidade. O oposto ocorre com os bens transitórios – destinados a serem usados, consumidos e a desaparecer em seu próprio processo de consumo. A modernidade fluída permitiu a capacidade de encurtar o espaço de tempo da durabilidade, esquecer o longo prazo e enfocar a manipulação da transitoriedade em vez da durabilidade. Abre-se espaço para outras coisas transitórias, que deverão ser utilizadas instantaneamente. A nova instantaneidade do tempo altera radicalmente a modalidade do convívio humano – e o modo como as pessoas cuidam (ou não) de seus afazeres coletivos, ou a maneira como transformam (ou não) certas questões em questões coletivas. A “escolha racional” na era da instantaneidade consiste em buscar a gratificação evitando as consequências, e particularmente as responsabilidades que essas consequências podem implicar (teoria da escolha pública – o homem político). Corpo esguio e adequação ao movimento, roupas leves, telefones celulares (para os “nômades” que têm de estar em constante contato), pertences portáteis ou descartáveis – são os principais objetos culturais da era do instantâneo. O território da instantaneidade é ainda inexplorado – a maioria dos hábitos aprendidos para lidar com afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido. Vivemos em um presente que quer esquecer o passado e parece não mais acreditar no futuro.

3.

Citações “Os eleitores e a elite – uma ampla classe média nos Estados Unidos – poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a política governamental para eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos em instituições públicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar proteção, estimulando o crescimento da indústria da segurança privada. Endurecer contra o crime construindo mais prisões e impondo a pena de morte são as respostas mais corriqueiras à política do medo. [...] Outra resposta é a privatização ou militarização do espaço público – fazendo das ruas, parques e mesmo lojas lugares mais seguros, mas menos livres.” (ZUKIN, 1995). Pág. 110. “[...] Usar uma máscara é a essência da civilidade. As máscaras permitem a sociabilidade pura, distante das circunstâncias do poder, do mal-estar e dos sentimentos privados das pessoas que as usam. A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso.” (SENNETT, 1978). Pág. 112. “Espaços vazios são lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente por cercas ou barreiras. Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis porque invisíveis.” (KOCIATKIEWICZ e KOSTERA, 1999). Pág. 120.


“[...] as cidades nos EUA cresceram de maneira que homogeneizou as áreas étnicas; não é por acaso, então, que o medo do estranho também cresceu à medida que essas comunidades étnicas foram isoladas.” (SENNETT, 1996). Pág. 123. “As pessoas se tornam expectadores passivos de uma personagem política que lhes oferece para consumo suas intenções e sentimentos em lugar de seus atos.” (SENNETT, 1978). Pág. 126. “Quem começa uma carreira na Microsoft não tem a menor ideia de onde ela terminará. Quem começava na Ford ou Renaut podia estar quase certo de terminar no mesmo lugar.” (COHEN, 1997). Pág. 135. “A credibilidade é o recurso mais valioso do político.” (LEWIN, 1994). Pág. 147. “Bill Gates parece livre da obsessão de agarrar-se às coisas. Seus produtos surgem furiosamente para desaparecer tão rápido como apareceram, enquanto Rockefeller queria possuir oleodutos, prédios, máquinas ou estradas de ferro por longo tempo.” (SENNET, 1998). Pág. 144. “[...] aquelas pessoas próximas do topo [...] podem garantir que seus próprios objetos sejam sempre duráveis e o dos outros sejam sempre transitórios... Elas não podem perder.” (THOMPSON, 1979). Pág. 145.

4. Comentários Em sua obra, Bauman pretende esclarecer como se deu a transição da modernidade sólida para a modernidade imediata, “leve, líquida e fluída”. O autor auxilia-nos a repensar conceitos e esquemas utilizados para descrever a experiência humana individual e sua história conjunta. Para definir os novos tempos, Bauman sugere o termo “líquido” como uma variedade dos fluídos, já que estes se movem facilmente, são filtrados, destilados – diferente dos sólidos, que são contidos, imobilizados. No capítulo 3, especificamente, há uma análise da questão tempo/espaço – os espaços públicos e privados, os “não-lugares”, o temor do estranho, do diferente. O autor discute a instantaneidade como forma de dominação e manipulação dos que estão no topo sobre aqueles que estão na base da pirâmide social; o controle do tempo e do espaço como urgência e objetivo final.


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