A reprodução A técnica diminui os riscos assistida é a de contaminação do parceiro solução
É preciso fazer Em algumas regiões do Brasil a transmissão vertical o teste o HIV está aumentando
A vida com o HIV Com o passar do tempo, pessoas que nasceram com o vírus conseguiram sobreviver e levam uma vida normal, mas sem escapar das consequências da doença
DIRETOR GERAL Frederic Zoghaib Kachar DIRETOR DE MERCADO ANUNCIANTE Gilberto Corazza DIRETOR DE ASSINATURAS Renato Barbosa Filho
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HIV/AIDS
O HIV SOB UM NOVO OLHAR Esses jovens nasceram com o vírus HIV e, hoje, levam uma vida normal SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS É preciso fazer o teste...................................20 HIV/AIDS A reprodução assistida é a solução...............21
ENTREVISTA DA SEMANA
DIRETOR DE REDAÇÃO: Helio Gurovitz epocadir@edglobo.com.br REDATOR CHEFE: David Cohen DIRETORES-EXECUTIVOS: Guilherme Evelin, Ivan Martins DIRETOR DE ARTE: Marcos Marques DIRETOR DE INFOGRAFIA E MULTIMÍDIA: Alberto Cairo EDITORES: Alexandre Mansur, Diego Escosteguy, Juliano Machado, Luís Antônio Giron, Marcelo Moura, Marcos Coronato, Ricardo Mendonça REPÓRTERES ESPECIAIS: Adriana Gonçalves, Bárbara Jardim, Luíza Garcia, Thais Cunha EDITORAS-ASSISTENTES: Luciana Vicária, Marcela Buscato COLUNISTAS: Christopher Hitchens, Fareed Zakaria, Fernando Abrucio, Mauro Halfeld, Marcio Atalla, Paulo Guedes, Paulo Moreira Leite, Paulo Rabello de Castro, Ruth de Aquino REPÓRTERES: Adriana Gonçalves, Bárbara Jardim, Luíza Garcia, Thaís Cunha Estagiários: André Jorge Reitz de Castro, André Sollitto, Camila Neves Camilo, Danilo Thomaz, Keila Cândido, Letícia Fenili, Luíza Karam, Matheus Paggi Pereira SUCURSAIS | RIO DE JANEIRO: epocasuc_rj@edglobo.com.br Praça Floriano, 19 - 8º andar - Centro - CEP 2003-050 Diretor: Leonardo Souza; Editora assistente: Martha Mendonça Repórteres: Hudson Corrêa, Nelito Fernandes, Rafael Pereira; Estagiários: Leopoldo Mateus, Maurício Meireles | BRASÍLIA: epocasuc_bsb@edglobo.com.br SRTVS 701 - Centro Empresarial Assis Chateaubriand - Bloco 2 - Salas 701/716 - Asa Sul Chefe: Eumano Silva; Editor: Leandro Loyola; Repórter Especial: Andrei Meireles; Editora-Assistente: Isabel Clemente; Repórteres: Leonel Rocha, Marcelo Rocha, Murilo Ramos FOTOGRAFIA | Editor: Adriana Gonçalves; Assistentes: Bárbara Jardim, Luíza Gomes, Thais Cunha, Michel Brandão DIAGRAMAÇÃO E INFOGRAFIA | Editor de Arte: Adriana Gonçalves; Chefes de Arte: Bárbara Jardim, Luíza Garcia, Thais Cunha; Diagramadora: Adriana Gonçalves; Chefes de infografia: Adriana Gonçalves, Thais Cunha; Infografistas: Adriana Gonçalves, Renato Belluomini SECRETARIA EDITORIAL | Coordenador: Marco Antonio Rangel REVISÃO | Coordenador: Chico Bicudo; Revisoras: Adriana Gonçalves, Bárbara Jardim, Luíza Garcia, Thais Cunha ÉPOCA ONLINE | epocaonline@edglobo.com.br Editor: Sérgio Lüdtke; Editores-Assistentes: José Antonio Lima, Liuca Yonaha; Repórteres: Danilo Casaletti, Laura Lopes, Lucas Hackradt, Renan Dissenha Fagundes; Tecnologia Online: Carlos Eduardo Garcia (gerente), Valter Bicudo (coordenador); Editor de Multimídia: David Michelsohn; Desenvolvedores: Leandro Paixão, Márcio Espósito, Fábio Marciano, Jean Fernandes, Jeferson Mendonça; Infografista digital: Gerardo Rodriguez; Vídeo: Pedro Schimidt; Web Designers: Daniel Mack, Renato Tanigawa, Raphael Fabeni CARTAS À REDAÇÃO: Anna Carolina Lementy epoca@edglobo.com.br Assistente-executiva: Jackeline Damasceno; Assistentes: Gisele Felix, Leandro Alves de Medeiros, Tiago Leal da Rocha; Pesquisa: CEDOC/Globopress ------------------------------------------------------------------------------------------DIR. DE PUBLICIDADE CENTRALIZADA: Alexandre Barsotti, Eduardo Leite, Tida Cunha; Executivos de Negócios: Andréia Santamaria; Arlete Sannomya; Flávio Pires; Letícia di Lallo; Luciana Palato; Megh Bertinelli; Sandra Melo; Thais Eboli Haddad; João Meyer; Rafael Cataldi; Cintia Cristina de Oliveira; DIR. DE PUBLICIDADE SP: Demetrio Amono Netto; Gerente de Publicidade SP: RosangelaFernandes; Executivos de Negócios SP: Ana Costa; Bruno Teixeira; Claudio Castellari;Eduardo Raci; Marisa de Souza; Neusi Brigano; Viviane Vieira Diniz; Wagner dos Santos; Ana Paola Nardi; Gerente de Publicidade Online: Samuel Braga; Executivos de Negócios Online: Carla Dubinskas Marques, Carlos Eduardo Valverde, Fernando Monis, Patricia Leal; OPEC Online: Everton Parra, Rodrigo Oliveira, Caíque Toledo; ESCRITÓRIOS REGIONAIS: Marcelo Barbieri (diretor), Carlos Manuel Jr (gerente); Rio de Janeiro: Ricardo Rodrigues (gerente), Alessandra Young, Carol Romano, Flavia Paranhos, Marcia Torres, (executivos de negócios); COORD. OPEC: Sonia Dias Brasília: Fernanda Requena (gerente); DIR. DE PROJETOS ESPECIAIS E EVENTOS: Reginaldo Andrade; GER. DE EVENTOS: Sabrina Salgado; COORD. DE EVENTOS: Paola Massari; COORD. DE PUBLICIDADE: José Soares ------------------------------------------------------------------------------------------GER. DE CAPTAÇÃO - PRESTADORES DE SERVIÇO: Rosemery Brito; GER. DE VENDAS CORPORATIVAS: Reginaldo Moreira da Silva; GER. DE ATENDIMENTO AO CLIENTE: Arlete Grespan; GER. DE TELEVENDAS TERCEIRIZADA: Nelson da Silva Guerra; COORD. DE TELEVENDAS ATIVO INTERNO: Rodrigo Roque; GER. DE FIDELIZAÇÃO, RENOVAÇÃO E DATABASE: Cristiano Soares Santos; COORD. DE VENDAS ONLINE: Ana Carolina Soler ------------------------------------------------------------------------------------------DIR. DE VENDAS AVULSAS: Regina Bucco; COORD. DE VENDAS AVULSAS: Elisa Campos; CONSULTORIA DE VAREJO: Rosana Strozani; MARKETING: DIR: Cláudia Fernandes; CRIAÇÃO: Paulo Ferrari; PESQUISA: Dina de Oliveira
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RAUL FELICE “Os portadores do vírus da Aids têm mais dificuldade para serem adotados”
2 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
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Da Redação: Músicas que representam a Aids
O tempo não para
O
mundo perdeu muitos ídolos por conta da Aids. Entre eles, em 1991, Cazuza morre aos 33 anos e no mesmo ano Freddy Mercury, aos 45. Um pouco depois, 1996, Renato Russo nos deixa aos 45 anos, ano em que o Ministério da Saúde começa a fazer a distribuição dos medicamentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Os três batalharam
Fred Mercury, do Queen, Cazuza e Renato Russo fizeram discos com canções relacionadas à Aids
pela cura e pela melhoria de suas condições de vida, mas com medicamentos extremamente caros, era difícil até para um artista manter o tratamento. Infelizmente eles sofreram muito e tiveram diversos efeitos colaterais. Morreram muito magros e quase irreconhecíveis. Nesta edição, trazemos uma reportagem que mostra como a Aids foi devastadora nesta época, levando nossos artistas e destruindo famílias, deixando muitos órfãos (soropositivos ou não). Esses jovens são conhecidos como filhos da primeira geração, e hoje, nos mostram como os medicamentos melhoraram, os efeitos colaterais diminuíram e, o mais importante, como a sobrevida aumentou. Alguns conseguiram uma nova família, foram adotados; outros tiveram que morar em casas de apoio e aprenderem “na marra” a ser independentes. Trazemos dados e uma entrevista com um Juiz da Vara da Infância e da Adolescência que esclarece bem esse quadro. Mostramos também que a ciência evoluiu a tal ponto que um soropositivo pode vir a ter uma família “normal”. A chamada reprodução assistida é a responsável por transformar esse sonho em realidade. Então, boa leitura. Thaís Cunha Bárbara Jardim Adriana Gonçalves
Os momentos de dificuldade diante do enfrentamento da Aids ficaram marcados em canções escritas pelos músicos Fred Mercury, do Queen, Cazuza e Renato Russo Queen O álbum Innuendo foi lançado em fevereiro de 1991, ano em que Fred Mercury morreu, e ficou conhecido como o mais triste por estas e outras canções relacionadas a Aids e por mostrar o músico fraco . Trecho de Innuendo:
Enquanto o sol estiver no céu e o deserto tiver areia Enquanto as ondas quebrarem no oceano e encontrarem a terra Enquanto houver um vento as estrelas e o arco-íris Até as montanhas desmoronarem dentro da planicie Oh sim nós continuaremos tentando Passando naquela corda fina Oh nós continuaremos tentando Trecho de The Show Must Go On:
O show deve continuar, sim Por dentro meu coração está se partindo Minha maquiagem pode estar escorrendo Mas meu sorriso permanece... Cazuza Do álbum O tempo não para, de 1988 - quando a doença começou a se manifestar Trecho de O tempo não para:
Mas se você achar Que eu tô derrotado Saiba que ainda estão rolando os dados Porque o tempo, o tempo não pára Renato Russo O HIV foi deixando Renato Russo descrente da vida. Ele se fechou em seu apartamento nos últimos dias de vida. A Tempestade ou O Livro dos Dias, lançado em 20 de Setembro de 1996, mostra a melancolia do músico diante da doença. Trecho de O livro dos dias:
Todos se afastam quando o mundo está errado Quando o que temos é um catálogo de erros Quando precisamos de carinho
23 de maio de 2011 ÉPOCA > 3
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
Um novo olhar sobre o HIV Muitos achavam que eles não iriam sobreviver. Conseguiram. Hoje vivem normalmente, não fosse pelos medicamentos que tomam desde que nasceram e que ainda terão que tomar por muito tempo, e o estigma da doença, que ainda persiste
N
Thais Cunha e Bárbara Jardim
atasha Ferreira Braz, 18, só descobriu que tinha uma família aos 7 anos de idade. Foi encontrada pela avó materna em uma casa de apoio para crianças portadoras do HIV, o vírus causador da Aids, na região metropolitana de São Paulo, onde morava desde os 3 anos. Não chegou a conhecer o pai, de sua mãe biológica só restam lembranças ligadas à doença. “Quando comecei a ter contato com minha família, vi que minha mãe estava muito debilitada, muito doente e sem condições físicas, emocionais e até mesmo financeiras para me visitar”. Com ajuda de voluntários da instituição que a acolheu, Natasha passou a visitá-la em média 3 vezes por ano até 2007, quando a mãe faleceu. Atualmente, a jovem mora com a família adotiva, mas ainda mantém contato com a família biológica, apesar de pouco frequente. 4 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
EM CASA Natasha, com o cachorro Milk, em frente à vista de sua casa em Cajamar
Foto: Adriana Gonçalves/ÉPOCA
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
As lembranças de Karina Ferreira da número de jovens saudáveis Cruz Paré, 24, não são muito diferentes. infectados (a imensa maioria do “Lembro que a minha mãe ficou bem sexo masculino, homossexuais, doente, com pneumonia e perda de visão vivendo em grandes centros temporária devido ao citomegalovírus, urbanos) a doença ficou conhecida mas ninguém sabia que por trás de como “Câncer Gay”. Somente entre tudo isso estava o HIV”. Em meados os anos de 1982 e 1984 o vírus foi dos anos 1980, a Aids se alastrava pelo descrito pelo pesquisador francês mundo, o seu diagnóstico era muito Luc Montagnier e chamado de HIV complicado e não existia o coquetel (vírus da imunodeficiência humana de medicamentos que hoje é usado – por atacar o sistema imunológico) no tratamento da doença. Tanto é que e a doença por ele causada de Aids na certidão de óbito da mãe de Karina (Síndrome da Imunodeficiência consta morte por pneumonia. A causa Humana Adquirida). A epidemia verdadeira só foi identificada alguns chegou ao Brasil em 1983 com meses depois quando a menina começou dois casos também registrados a adoecer. Os médicos suspeitavam em homossexuais. Em 1987, a de pneumonia ou tuberculose, então Organização Mundial de Saúde tentaram tratar dessas doenças, mas (OMS) relatou que 62.811 pessoas nenhum procedimento surtia efeito. (homossexuais ou não) viviam com Então, por causa da epidemia, os Aids e esses números não paravam médicos decidiram fazer o teste anti- de crescer, bem como o número de HIV. Depois de muito relutar, a avó mortes registradas. Só no Brasil, da menina autorizou. E o diagnóstico ainda hoje, morrem cerca de 11 mil confirmou a suspeita. pessoas por ano. Órfã de mãe aos 7 anos e de pai aos Também filha de pais soropositivos 16, Karina sempre e órfã de ambos morou com a desde os 6 anos avó materna e de idade, Micaela nunca soube com Cyrino, 22, tentou detalhes a história morar com uma de seus pais. tia, na região Oeste Tem impressões da cidade de São e informações Paulo. “Ela tinha vagas. “Sei que um filho da mesma o meu pai usava idade que o meu drogas injetáveis e irmão, 6 meses, e mantinha relações como eu era mais sexuais com a velha, ela não minha mãe sem tinha condições de camisinha, e que cuidar de mim e me ela namorou um mandou para uma cara que se matou. casa de apoio”. Algumas pessoas Seu irmão ainda afirmam que ele ficou um tempo era soropositivo, com a tia, mas hoje Padre Valeriano Paitoni mas isso nunca está na mesma casa foi provado”. de apoio em que No início dos anos de 1990, a Aids Micaela morou. atingiu o maior número de infectados Já Juliano Scorzo, 22, perdeu pelo mundo e o preconceito se firmava a mãe quando tinha 4 anos. “Não consolidando o estigma que se tornava sei nada da minha mãe, só que ela cada vez mais forte. Ao mesmo tempo, era soropositiva e que teve muitos cientistas buscavam entender como parceiros, pois tenho irmãos que o vírus agia no organismo e como são de outros pais”. Como o pai combatê-lo. era alcoólatra e usuário de drogas, Os primeiros registros de pessoas Juliano não se adaptou a morar com com Aids apareceram nos Estados ele e pediu para viver em uma casa Unidos em 1981. Devido ao grande de apoio. “Quando eu fui ao médico
“No início, receber o resultado de ser HIV positivo era a mesma coisa que a sentença de morte”
6>ÉPOCA, 23 de maio de 2011
Fotos de arquivo pessoal
PAIXÃO PELO ESPORTE Juliano é campeão no futebol (acima) e é técnico do Olaria Esporte Clube, em Itaquera, Zona Leste de São Paulo (ao lado)
pedi para a enfermeira me levar a um abrigo, foi aí que ela ligou para a Casa Siloé”. Localizada na Zona Norte de São Paulo, a instituição que acolhe crianças e jovens portadores do HIV recebeu Juliano quando ele tinha 8 anos de idade. O menino arteiro ainda não sabia de sua condição sorológica, mas já desconfiava.“Desde os meus 6 anos, meu pai me levava para fazer o tratamento, mas nunca me contou o por quê. Depois que eu me mudei para a casa ele me visitou umas 3 vezes, mas depois sumiu e eu não sei dele desde então.” Contaminados pelo HIV por meio do que se chama Transmissão Vertical (quando o vírus é passado de mãe para filho, durante a gravidez, na hora do parto ou na amamentação), nossos entrevistados foram vítimas de uma das consequências mais graves que a Aids pode deixar: a orfandade. “Era uma situação muito devastadora, sem nada para dar, para fazer o tratamento paliativo do HIV. Muitas pessoas acabaram morrendo, com isso muitas crianças ficaram órfãs e tiveram que ir para as casas de apoio”, lembra Marinella Della Negra, infectopediatra do Hospital Emílio Ribas em São Paulo e pioneira nos cuidados com crianças infectadas. No início da epidemia este era um cenário comum para os soropositivos filhos da primeira geração da Aids, ou seja, filhos das primeiras pessoas que contraíram a doença. “No início, receber o resultado de ser HIV positivo era a mesma coisa que receber a sentença de morte. De um dia para o outro as pessoas perdiam amigos, colegas de trabalho e familiares. Com isso muitas crianças, soropositivas ou não, acabaram ficando órfãs”, lamenta o padre Valeriano Paitoni, fundador da Casa Siloé e de mais duas outras instituições que acolhem estas crianças na Zona Norte de São Paulo. Muitas pessoas acabaram morrendo sem saber da sua condição sorológica. Quem descobria tinha que enfrentar a rejeição, o preconceito, a solidão, às vezes assumir uma possível homossexualidade ou uma vida promíscua, além de ter que lidar com a morte súbita. Por isso, saber da sorologia dos pais era muito difícil, não apenas para a criança soropositiva, mas, também, para todo o conjunto 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 7
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
familiar. “Minha avó materna falava que podia imaginar qualquer pessoa com HIV, menos alguém da sua família”, conta Karina. Segundo o Ministério da Saúde, o primeiro caso de transmissão vertical do Brasil foi notificado em 1985. Desde então, até junho de 2010, foram oficialmente registrados 19.203 casos em crianças de até 12 anos. Na ausência do tratamento, 25% das crianças, filhos de mães soropositivas, se contaminam; destas transmissões, de 15% a 25% ocorrem na gestação, 60% durante o trabalho de parto e um risco variável de 7% a 20% na amamentação. De outra forma, se a mãe fizer o pré-natal, tomar os antirretrovirais durante a gravidez e no trabalho de parto, e mantiver uma carga viral indetectável, esse índice que hoje é de 2% pode chegar a menos de 1%. Para Luiza Harunari Matida, coordenadora dos casos de transmissão vertical do HIV e da sífilis do Programa Estadual de DST/ Aids de São Paulo, esses números são muito gratificantes. “Estamos falando de uma epidemia ainda sem cura, mas que teve um aumento do tempo de sobrevida (uma média que diz quanto tempo a pessoa tem de vida), um aumento na qualidade de vida e uma grande diminuição na transmissão vertical.” No período de 1980 até junho de 2010 o Ministério da Saúde registrou 592.914 casos de Aids no Brasil. As mulheres são mais contaminadas por relação heterossexual, forma de transmissão responsável por 87,5% dos casos anotados. Nos homens, as razões se diversificam: 20,1% por conta de relações homossexuais, 11,5% nas bissexuais e 30,5% nas heterossexuais. As transmissões do vírus da Aids em transfusões de sangue são muito baixas – menos – de 1%. Mas a taxa de contaminação entre usuários de drogas injetáveis surpreende, cerca de 7,3%
em mulheres e 17,2% em homens. Ver matéria pág. 20).
Segundo dados da OMS há
atualmente cerca de 33 milhões de pessoas no mundo contaminadas pelo HIV e aproximadamente 16 milhões de pessoas morreram desde o início da epidemia planetária. A proporção, que era de 20 homens para cada mulher infectada, hoje caiu para uma mulher a cada dois homens infectados. Foi essa chamada feminização da doença que fez com que muitas crianças – soropositivas ou não – ficassem órfãs ou fossem abandonadas pelas famílias, por não saberem como cuidar delas. “Devido à falta de informação e de tratamento, a única coisa que você sabia era que a vida daquela criança ia ser, provavelmente, muito curta”, lembra Della Negra. Com isso houve uma movimentação muito grande de religiosos e da sociedade civil, que resolveram se organizar de modo a criar estratégias para amparar essas crianças e famílias que tinham pouco ou nenhum recurso. As chamadas casas de apoio passaram a oferecer cuidados à saúde, moradia para órfãos ou não, suporte emocional e principalmente ajuda na reestruturação familiar, para que Micaela Ciryno se essa criança atingisse a maioridade pudesse então voltar ao convívio da família. (Ver entrevista pág. 22) O padre Valeriano, pároco da Igreja Nossa Senhora de Fátima, localizada na Zona Norte de São Paulo, é o fundador de três casas de apoio. Em 1994, uma das primeiras instituições dessa natureza a surgir no Brasil foi chamada de Casa Siloé. Com espaço para acolher 14 crianças, faz parte do grupo Sociedade Padre Constanzo Dalbésio que implementa serviços de assistência social na comunidade. “Sempre considerei o HIV e a Aids como uma
“Muitas
crianças morriam na casa de apoio e isso sempre me destruía”
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questão missionária, diante da qual não podíamos ficar de braços cruzados. Ainda mais perante as crianças”, conta o padre, que completa: “A solidariedade é muito importante, o nosso trabalho é fazer com que essas crianças percebam que há pessoas que as aceitam como elas são, independentemente de terem o vírus.” “Eu sempre fiz parte da comunidade e quando o padre Valeriano perguntou
VIDA TRANQUILA Karina é casada há 4 anos com um soronegativo, pensa em ter filhos e ter sua casa própria
Foto de arquivo pessoal
na missa se queríamos arregaçar as mangas e receber essas crianças que estavam ficando órfãs eu fiquei muito receosa, porque a gente não conhecia a doença, não sabia em que condições pegava, o mundo estava uma bagunça danada misturada ao preconceito. Mas mesmo assim resolvi abraçar a causa”, lembra Marlene da Silva Ribeiro, atual coordenadora das três casas. A segunda casa de apoio à criança soropositiva do grupo foi inaugurada em 1998, graças à mobilização da comunidade em prol da menina Suzanne, que nasceu com um problema de saúde sério e precisava fazer um transplante de fígado. O procedimento era muito caro, e a comunidade, por meio de doações, obteve o dinheiro necessário para a família pagar o transplante, mas a menina veio a falecer antes da operação. Os pais acabaram doando o dinheiro recebido de volta para a Sociedade Padre Constanzo Dalbésio. “Naquele momento a Casa Siloé estava lotada e os pedidos continuavam chegando. Com o dinheiro e a ajuda da comunidade compramos um terreno, construímos essa casa e demos o nome de Lar Suzanne”, conta o padre Valeriano. Morador da casa de apoio Siloé desde os 8 anos, Juliano não dava sossego para ninguém, vivia atormentando as crianças da casa. “Na época eu assistia a novela Chiquititas e achava que iria para um orfanato igual ao delas. No início, tive um pouco de dificuldade para me adaptar, era briguento, mas depois ganhei o meu espaço”, conta. Juliano passou pelas três casas da Sociedade, inclusive a Vila Vitória – para portadores com mais de 18 anos, como última etapa de preparação para a vida pós-casa. Ele ia à missa, fez catequese, crisma, e hoje acredita em Deus, mas não em religiões. “O padre Valeriano era como um pai para mim e me ensinou a acreditar em Deus, não só nas horas de necessidade, mas nos bons momentos também. Se eu tivesse tempo, gostaria de ser voluntário em alguma das casas. Graças a eles eu estou vivo e sou o que sou hoje.” Para as crianças que moram nas casas da Sociedade Padre Constanzo Dalbésio, o padre Valeriano é visto como um pai, e as voluntárias e funcionárias como mães. “Isso é muito positivo e revela 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 9
que nós conseguimos estabelecer um relacionamento com eles de confiança e carinho”, comenta o padre. Marlene completa: “A gente nunca vai chegar a ser uma família de verdade, mas a gente tenta, se precisar eu dou bronca também.” No entanto, há divergências, e muitas pessoas acreditam que as casas de apoio não preparam a criança para uma vida pós-casa. “O abrigo, ou casa de 10 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
apoio, nunca vai ser como uma família. A criança nunca vai estar totalmente preparada, pois só pelo fato de estar lá a mente já é um pouco abalada. Eu me lembro de muita gente desanimada e acomodada”, comenta Natasha. Quando essas casas de apoio foram criadas ninguém acreditava que as crianças chegariam a sair de lá um dia. “Eles não acreditavam que a gente ia viver muito, fomos criados para morrer
VIDA NORMAL Micaela Ciryno gosta de usar a criatividade na hora de se vestir (esq.), e tem um namorado peruano, que veio para o Brasil para ficar com ela (dir.)
Fotos de arquivo pessoal
felizes e em paz, agora que eles estão vendo que as crianças estão crescendo, o pensamento está mudando”, desabafa Natasha. E as crianças estão crescendo mesmo, segundo dados do Ministério da Saúde, a possibilidade de uma criança sobreviver cinco anos depois do diagnóstico saltou de 24% no final dos anos 80 para 86% no ano de 2007. Assim que completam 18 anos de idade, as crianças tem que deixar os abrigos e voltar a morar com a família ou ter uma vida independente, criar a sua própria rotina, correr atrás dos seus interesses e continuar o tratamento por conta própria. “A gente tenta criar cidadãos
que realmente vão conseguir enfrentar a vida lá fora, mas nem sempre a gente vê essa realidade, não sei se a gente protege demais, mas com toda certeza, quando isso acontece, foi um erro bem intencionado”, defende Marlene. “Eles não preparam mesmo, lá tinha uma tia que cozinhava, uma que lavava a roupa, uma que arrumava as camas, era uma super proteção imensa, ninguém tinha responsabilidade. Tem que deixar eles serem independentes, dentro da casa mesmo”, lembra Natasha, que foi adotada por uma voluntária da casa. “Fui adotada com 16 anos, mas antes eu já frequentava a casa da minha mãe adotiva, que era minha madrinha
dentro da casa de apoio e por isso eu já frequentava a casa dela, já conhecia suas regras, então a adaptação foi tranquila.” Depois que saiu da casa de apoio Juliano foi morar com os tios e irmãos na Zona Leste de São Paulo e até hoje tem alguns problemas de convivência. “Mas família é família. Qual família não tem problemas ou discussões?”, afirma. Apesar de ter morado um tempo com a tia, depois que saiu da casa de apoio, Micaela decidiu ser independente e hoje mora com amigas na Zona Oeste da capital paulista. Karina não morou em casa de apoio, mas conhece muita gente despreparada. “Conheço gente que não sabe pegar ônibus, não sabe fritar um ovo. Tem casas de apoio que oferecem certo conforto que muitas vezes a família não tem como manter, e aí a pessoa fica meio perdida.” “A casa de apoio em que eu morava era linda, grande, uma mansão, a gente sabe que para se ter tudo isso você tem que trabalhar, estudar, conquistar. Muitas vezes isso não é construído na vida da criança.”, concorda Natasha. Já para Juliano isso depende muito. “Eu tenho muito a agradecer, estudei em uma boa escola, fiz inglês, curso de contabilidade e através de pessoas que ajudam a casa eu consegui o meu emprego. Quando fui para a Vila Vitória, era a gente que cuidava da casa, cozinhava e tal. Tínhamos uma relação de família, onde o meu pai Valeriano me cobrava, dava broncas, pedia satisfação de onde eu ia e com quem eu ia e me mostrava o que era certo e errado.” Para Micaela o que falta é uma preocupação singular para cada morador. “Todo mundo é tratado muito igual, íamos para a escola junto, tínhamos os mesmos direitos, os mesmos deveres, os mesmos horários para os medicamentos e para dormir. Todo mundo era tratado com um só”. Maria da Graça Fernandes Albuquerque, coordenadora da Casa Pequeno Príncipe Tim, do Grupo Aliví, que cuida de crianças e adolescentes vítimas do HIV, soropositivas ou não, diz que na casa eles tentam ao máximo evitar essa super proteção. “Essas crianças são vítimas sociais, a gente tenta prepará-los para a vida lá fora, mas já tive adolescentes com 20 anos e mentalidade de 15, outros com 15 e super maduros. Por isso a gente vai 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 11
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
soltando as rédeas devagar, vendo a situação de cada um.” Certo ou errado, com contradições e questionamentos, a convivência com outras crianças que sofrem dos mesmos males pode ajudar a enfrentar melhor a condição sorológica e tudo o que ela traz. Muitas vezes é dentro da casa de apoio que a criança descobre o que é ser portadora do HIV, como é a doença e como ela age. “Quando o meu pai me levava ao Emílio Ribas para fazer tratamento, eu achava que era uma coisa normal e até me sentia especial. Mas fiquei sabendo mesmo quando tinha 9 anos porque as crianças da casa de apoio ficavam comentando”, lembra Juliano. Micaela não se recorda de como soube da sua sorologia “Sempre tive a rotina de ir ao hospital e tomar medicamentos, depois que fui para a casa de apoio eu fazia isso com outras crianças”, lembra. Já para Natasha a descoberta foi mais complicada: vítima de bullying na escola. “Lembro no intervalo que algumas meninas ficavam gritando que ninguém podia chegar perto de mim por que eu era aidética, algumas falavam que se ficassem perto de mim poderiam morrer. Eu sabia que tinha um probleminha, dos bichinhos (vírus)
30 anos de epidemia de Aids no mundo
“(...) Fomos
criados para morrer felizes e em paz, agora que eles estão vendo que as crianças estão crescendo, o pensamento está mudando” Natasha Ferreira Braz
e dos soldadinhos (sistema de defesa), mas não sabia que ninguém podia ficar perto de mim ou que eu podia matar alguém”, lembra a garota, que na época tinha 9 anos, e desde então se interessou
a trabalhar com a psicóloga da casa de apoio para esclarecer as dúvidas dos outros. “Eu dou palestras desde os 10 anos de idade e isso me ajudou também para enfrentar melhor a minha sorologia.” A mãe de Karina só foi diagnosticada soropositiva depois de morta, quando a menina de 8 anos começou a adoecer e nenhum medicamento a fazia melhorar. “A minha avó materna soube sobre nós duas no momento em que eu tive que fazer o teste anti-HIV, mas mesmo assim ela não me contou. Eu fui uma das primeiras a tomar o coquetel e ela me falava que eu tinha problema de crescimento.” Para a psicóloga Galano, especialista em revelação diagnóstica pediátrica do Centro de Referência e Treinamento de DST/Aids (CRT) em São Paulo, esse é um problema recorrente que envolve outras questões. “A doença pode ser controlada do ponto de vista clínico, mas é todo o entorno que torna difícil e trabalhosa a revelação diagnóstica, como o preconceito, estigma, isolamento social e a história dos pais. Sempre falamos com eles primeiro para prepará-los para possíveis perguntas dos filhos. E contra tudo isso não tem remédio.” Karina lembra que soube sozinha,
Os principais momentos que marcaram a epidemia
1981
1982
1983
1985
1986
Os primeiros registros de casos da AIDS foram identificados em homossexuais nos Estados Unidos
Luc Montagnier conseguiu isolar o vírus, o qual foi chamado de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana)
No Brasil, em setembro, foi identificado um Sarcoma de Kaposi (tipo de tumor característico dos primeiros infectados) em um artista plástico homossexual
Primeiro caso de Transmissão Vertical do vírus no Brasil
Surge o primeiro medicamento contra a AIDS, o AZT ou azidotimicina. A droga ajudou a aumentar a sobrevida dos pacientes com HIV
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Fonte: Ministério da Saúde/ Fotos: Reprodução
assistindo a um programa de TV que mostrava o avanço dos medicamentos. “Eles mostraram um remédio que eu reparei ser igual o que eu tinha na geladeira, mas não falei nada. No outro dia, quando tive consulta, ouvi minha avó comentar com uma pessoa na sala de espera que eu tinha HIV e estava fazendo tratamento. Ela não tinha me visto e a assustei quando perguntei o que era o HIV. Ela ficou desnorteada e quem acabou me contando foi a médica”, comenta. Pensando na dificuldade que é contar para uma criança ou adolescente sobre a sua sorologia, Galano criou um kit com bichinhos e soldadinhos, com muitas cores e divertido, no qual ela mostra de forma bem educativa e lúdica, como o vírus age no organismo e como os remédios ajudam os “soldadinhos” do corpo a “mandá-los embora”. “A gente não usa a idade cronológica como critério. Primeiro fazemos uma análise psicológica para ver se a criança consegue guardar segredo e se devemos fazer uma revelação completa ou parcial – sem a nomeação. E vamos aos poucos. Antes de chegar à adolescência ele já deve saber, caso não ocorra, usaremos uma abordagem diferente e mais de acordo, respeitando o seu momento.”
1994 Iniciaram-se os testes de um novo grupo de drogas para o tratamento da doença, os inibidores da protease (ver infográfico da pg. 16). Fosse sua utilização isolada ou combinada ao AZT, essas drogas apresentaram bons resultados no combate ao vírus
“A doença
pode ser controlada do ponto de vista clínico, mas é todo o entorno que a torna difícil” Eliana Galano
Mesmo assim, com todo esse cuidado, algumas crianças apresentam dificuldades em aceitar sua condição, e isso pode acabar prejudicando o andamento do tratamento. “Depois
1996 Foi anunciado ao mundo o “coquetel”, nome dado à combinação das novas drogas ao AZT. Ter o vírus deixa de ser uma sentença de morte
Sistema Único de Saúde (SUS) distribui gratuitamente essas drogas aos portadores do vírus
da revelação o paciente passa por um momento de negação, ele pode se revoltar. Por isso só contamos quando os pais permitem, lhes damos orientação de como agir em casa e fazemos um acompanhamento para ajudá-los a elaborar essa nova realidade, mas leva um tempo. E algumas não conseguem mesmo”, conta Galano. “Muitas crianças morriam na casa de apoio e isso sempre me destruía, pois era a hora em que eu mais me questionava, foi então que eu aprendi que as pessoas escolhem se querem morrer ou não. Tive um amigo que escolheu não tomar mais o remédio, estava cansado, não queria mais, ele sabia das conseqüências dessa escolha”, lembra Micaela. Já Natasha e Juliano, que também moravam em casa de apoio, não tem muitas lembranças dessa época. “Nós sempre vivemos isso juntos, deixamos as crianças irem ao velório e isso é bom para que eles vejam que todos sofremos com a perda de um amiguinho. Isso faz com que eles se sintam mais fortalecidos, sabendo que podem contar com a gente nos momentos bons e ruins”, lembra o padre Valeriano. O tratamento sempre foi muito complicado, os primeiros medicamentos muito fortes. Alguns médicos
2003 O Programa Nacional de DST/Aids é considerado por diversas agências de cooperação internacional como referência mundial.
2007 O Brasil quebrou a patente do Efavirenz, passando a importar o medicamento genérico, o que, segundo as estimativas do governo, resultariam em uma economia de US$ 30 milhões por ano até o final de 2012.
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tinham receio de receitá-lo, tanto para as crianças como para as gestantes. “As grávidas não podiam tomar esses remédios porque a gente não sabia o que ele poderia fazer para o bebê, então para diminuir um risco você acabava aumentando outro”, lembra Jorge Senise, infectologista e coordenador do Núcleo Multidisciplinar de Patologias Infecciosas na Gestação (Nupaig). Muitas dessas primeiras mortes, em crianças, foram causadas pela manipulação incorreta do medicamento, o que era muito comum no início da epidemia.
O AZT foi o primeiro medicamento a
ser usado contra a Aids, em 1986, mas os seus resultados não eram satisfatórios. O medicamento se mostrou muito tóxico ao organismo humano, trazendo efeitos colaterais fortes, o que ajudou a firmar o estigma da doença. Em 1994, o AZT foi combinado com outras drogas que melhoraram os resultados no combate ao vírus e aumentaram a sobrevida dos pacientes. O responsável por essa nova combinação foi o virologista David Ho que, também, descobriu como medir a quantidade de HIV que circula no corpo da pessoa e a comprovar que, mesmo sem se manifestar, o vírus continua a se reproduzir no organismo. Essas descobertas trouxeram os avanços, mas o tratamento era para poucos, por ser muito caro. Por essa razão, a combinação, chamada de Coquetel, passou a ser distribuída gratuitamente no Brasil em 1996, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Nestes mais de 25 anos da epidemia, a ciência avançou na luta contra a doença, os medicamentos evoluíram e o Brasil passou a ser visto como referência internacional no tratamento da doença, pois é um dos poucos países que fazem a distribuição gratuita dos remédios. Chegou até a quebrar patentes, sendo o Efavirenz o primeiro deles, em 2007, pois, na época, 38% dos soropositivos o usavam no tratamento. Atualmente o Brasil produz 8 dos 18 medicamentos usados no combate ao HIV, diminuindo assim os gastos. “Os meus custam no total 6 mil reais por mês. Aqui a gente tem de graça, né?”, reconhece Micaela. Para Matida o programa brasileiro é referência não apenas por distribuir
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DIDÁTICA A psicóloga pediátrica especialista em revelação diagnóstica montou um kit lúdico para explicar o que é o HIV aos pacientes do CRT
Foto: Centro de Referência e Treinamento (CRT)
os medicamentos, mas também por conta de seus profissionais. “O programa nacional é reconhecido internacionalmente como o melhor, pois está sempre atualizado. Hoje há remédios distribuídos pelo SUS, há um acordo com os hospitais particulares e temos também o atendimento multidisciplinar e interdisciplinar, onde todas as áreas trabalham juntas. Psicólogos, assistente social, infectologistas, ginecologista, nutricionista, entre tantos outros”, explica. Essa atitude do governo brasileiro trouxe resultados positivos: os portadores do vírus tem uma boa qualidade de vida e os médicos, que antes ficavam de mãos atadas ao ver alguém morrer, começaram a ter um melhor prognóstico. Atualmente, Della Negra reconhece que é menos traumático e que até consegue se sentir feliz em dar a notícia que se “hoje uma criança nasce com HIV, você pode dizer para a mãe que não sabe até que idade o filho dela vai viver, mas que provavelmente ele será um adulto feliz e que poderá lhe dar muitos netos se quiser”. Mas, para que isso se concretize, o portador do HIV não pode se esquecer de tomar os remédios todos os dias e na hora correta. E é preciso estar sempre muito atento e alerta, pois com a chegada da adolescência, que não é tranquila para ninguém, por ser marcada pela rebeldia, pelas descobertas e pela perda da inocência, o tratamento pode ser danificado ou até mesmo interrompido. “Tem hora que cansa... Uma coisa é você tomar remédio pra gripe, que você toma por um tempo e sabe que vai ficar bom. Outra coisa é você ter que tomar um remédio para a vida toda e sempre que for tomar lembrar que ele vai te dar azia, que vai dar diarréia”, lamenta Micaela. “Eu trabalho, estudo, saio com amigos e, às vezes, esqueço de andar
com o remédio na bolsa. Mas é que tem hora que não dá mais. Depois paro e penso. Mas mesmo assim não vou parar de tomar, só quando o médico me mandar”, desabafa Natasha. Karina lembra quando a avó lhe dava o remédio. “Tinha vezes que eu colocava na boca e não engolia, jogava na rua, na privada... Mas também tinha dia que eu batia o pé e falava que não ia tomar mesmo. Por isso eu acabei ‘queimando’ muito medicamento e já tomei quatro tipos diferentes de coquetel.” Quando o soropositivo para de tomar o medicamento ou esquece e fica muito tempo sem tomar, o vírus cria resistência àquela composição e então os medicamentos devem ser trocados, pois perdem a eficácia. Sidnei Pimentel, infectopediatra do CRT explica o por quê. “É necessário você manter o nível de droga estável no seu organismo para inibir o vírus. Se você parar de tomar ou tomar em horário errado, vai acabar provocando flutuações da droga, e com isso Eliana Galano há a possibilidade de o vírus se multiplicar.” O vírus age dentro da nossa célula de defesa que tem em sua superfície (membrana) um receptor chamado CD4. Este receptor por sua vez serve para intermediar as respostas imunológicas do nosso corpo. “A superfície do vírus, infelizmente, se encaixa perfeitamente nessa ‘portinha’. Quando gruda na célula, ele libera para dentro dela o seu material genético, o RNA, junto com uma enzima que é a chamada transcriptase reversa”, explica Pimentel. O HIV é um retrovírus e por isso ele possui RNA no seu interior e não DNA, não podendo se reproduzir por si mesmo. A enzima, que entrou junto com o RNA na célula, vai utilizar substâncias da mesma para duplicar
“Depois da
revelação o paciente passa por um momento de negação”
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SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
esse RNA e incluí-lo agora no DNA da pessoa que está sendo infectada, como esclarece Pimentel. “Com isso, outra enzima, chamada de integrasse, vai levar essa dupla fita para se encaixar no nosso código genético. Por isso, o vírus não se multiplica, na verdade ele gera novos vírus, através do nosso próprio código genético.” Desde 1996 foram lançados mais de 20 tipos diferentes de coquetéis, o que deu muita esperança para os soropositivos. Os medicamentos mais utilizados são os inibidores da transcriptase reversa e também os inibidores da integrasse, que procuram justamente interromper a reprodução do HIV, “Isso são possibilidades de coquetel, mas a resposta de eficiência depende de cada pessoa”, afirma Pimentel. Conferir infográfico na pagina xx Para as crianças demorou um pouco mais, mas hoje esses remédios são acessíveis. “Antigamente a criança tinha muito menos opção de tratamento do que o adulto, a dosagem e o acompanhamento são diferentes. Existem alguns remédios que podem causar efeitos colaterais seriíssimos numa criança, podendo até comprometer o seu crescimento”, afirma Yu Shing Lian, pediatra do Hospital Emílio Ribas. Segundo Pimentel, somente alguns remédios são liberados para uso pediátrico. “A criança e o adulto vão metabolizar o remédio de maneiras diferentes, por isso as doses não podem ser iguais. Pegar um remédio adulto e dar metade para a criança é absurdo. Infelizmente não temos estudos suficientes e por isso temos poucas opções terapêuticas.” Mesmo quando há esse medicamento, o gosto é muito ruim ou os comprimidos são muito grandes e uma criança não consegue ingerir. Por esse motivo, as casas de apoio criaram um método, como conta Maria da Graça. “Fazemos uma pequena chantagem, a gente sempre dá uma bala, um docinho, um pirulito depois que eles tomam o remédio. No fim deu tão certo que até as crianças que não tem o vírus começaram a querer ficar doentes para poder ganhar um doce, então acabou se tornando um trabalho em conjunto.” Outro problema é a resistência do 16 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
vírus ao tratamento. Mesmo que o paciente tome os remédios de forma regrada, de tempos em tempos é preciso trocar a combinação. Aos 17 anos, Juliano passou por momentos complicados devido a essa mutação do vírus. “O remédio que eu tomava não estava fazendo efeito, meu CD4 chegou a 1, fizeram muitos testes até que o T-20 foi lançado no exterior, ainda estava em fase de teste e muita gente não queria, mas eu aceitei.” Só que o processo de vinda do medicamento não foi tão simples, foi preciso a ajuda da comunidade, de advogados e do empenho do padre Valeriano para que Juliano conseguisse
Como os antirretrovirais funcionam no organismo O HIV não se reproduz sozinho, ele precisa do material genético de uma célula para se reproduzir (um linfócito T4, responsável pela defesa do organismo), destruindo o sistema imunológico. Os medicamentos atuam impedindo essa reprodução
Fonte: infectopediatra Sidnei Pimentel
sobreviver. “O vírus dele tinha ficado resistente a todas as combinações de remédio que tínhamos no Brasil, então tivemos que comprar um remédio que nos custava dois mil reais por mês. Entramos com um processo contra o governo pedindo que eles fornecessem o medicamento e a resposta só veio depois de seis meses, mas graças a Deus conseguimos e hoje ele está bem”, comenta padre Valeriano. “É ai que você tem a mão de Deus, né? Sair da lama e se reerguer assim”, agradece Juliano que hoje só tem um efeito colateral, a lipodistrofia – uma alteração na distribuição da gordura corporal. “Algumas pessoas são mais
sensíveis que outras com relação ao medicamento, tanto que tem gente que toma remédio há mais de 10 anos e não tem efeito colateral nenhum. No geral, os efeitos colaterais mais comuns são diarréia e enjôo. E há ainda outros efeitos mais graves como a lipodistrofia”, explica Pimentel. Quem apresenta este efeito colateral fica com os braços e pernas bem finas, acumulando gordura na região da barriga e seios. Alguns ficam com uma corcova na região da nuca chamada, de “Giba de búfalo”.
Ter uma alimentação balanceada, rica em frutas, legumes, alimentos
integrais e carnes magras, evitar frituras, gorduras e açúcares são muito importantes na vida de qualquer pessoa. Para um soropositivo isso não pode ser diferente. Além disso, fazer atividades físicas também ajuda a ter uma boa saúde e amenizar os efeitos colaterais dos medicamentos. “Eu tenho uma alimentação que toda mulher gostaria de ter, com pouca gordura e com poucas calorias. Pratico muito exercício jogando bola nos finais de semana (risos)”, brinca Juliano que tinha acabado de sair de um jogo. Assim como ele, Natasha já foi atleta, e por sempre ter sido muito alta, jogava vôlei. Como precisava estudar e
trabalhar acabou saindo do time e hoje não pratica nenhuma atividade. “Mas me cuido muito na alimentação, até por que tenho diabetes e problema na taxa de triglicérides. Estou sempre fazendo exames e me controlando”, conta. Micaela é vegetariana. “Lá na casa de apoio a gente tinha bastante coisa variada e por isso não comíamos carne todos os dias, aprendi esse hábito lá mesmo.” Até há alguns anos, Micaela fazia aula de circo. Adorava, mas teve que parar. “Os remédios começaram a me dar problemas nos ossos, eles são muito fracos e não posso fazer movimentos bruscos ou carregar peso”, lamenta a menina. Apesar de quase não ter efeitos colaterais, Karina, que não foge de um hambúrguer, aprendeu a maneirar. “Hoje eu costumo usar azeite, óleo de girassol, faço muitas verduras e sempre deixo frutas na geladeira”. Para a nutricionista do CRT, Amélia Santos, eles acabam se preocupando mais por conta dos medicamentos, mas todos deveriam ter esse tipo de cuidado. “Para ter uma alimentação equilibrada é preciso variar nos tipos de alimentos e consumir com moderação. No caso das pessoas que vivem com HIV, a boa alimentação ajuda a diminuir os problemas com diarréia, enjôo, perda da massa muscular, lipodistrofia e alguns outros sintomas que podem ser minimizados ou revertidos.” Os cuidados de um soropositivo certamente envolvem a preocupação para não esquecer de tomar os medicamentos, ter uma boa alimentação e fazer atividades físicas. Mas não se limitam a isso. É preciso estar sempre atento para não passar o vírus para outras pessoas. E, nesse sentido, o uso da camisinha pode até ser visto como o maior dos cuidados que eles devem ter e que não podem esquecer nunca. “Há uma tendência nas relações de se tornarem mais íntimas, e com a isso a camisinha pode oferecer um obstáculo. A questão da paixão e do erotismo não é facilmente conciliável com a sorologia. A pessoa vai ter que administrar uma relação que deveria ser de entrega em uma entrega diet, por que vai ter que usar camisinha sempre, ou seja, vai ser uma sexualidade toda monitorada e balizada por cuidados”, explica o psicólogo e coordenador de saúde 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 17
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
mental do CRT, Ricardo Martins. Juliano sempre teve consciência do que tem e nunca deixou de usar o preservativo. Chegou até a ficar com fama de gay, porque uma menina não queria usar camisinha e ele se negou a transar com ela, mas não se importou. “Deus me livre se um dia eu passar isso para alguém. Sempre fiquei com muitas meninas e sempre usei camisinha. Para algumas eu não contava por não ser nada sério, mas para as que eu gostava de verdade eu contava antes de chegar a fazer alguma coisa, antes da hora H”, conta. Quando tinha 12 anos, Juliano teve a sua primeira namorada, e no momento em que os pais dela foram viajar surgiu a oportunidade. Ele foi até a casa dela com uma caixa de camisinha e contou para ela da sua sorologia “Ficamos conversando por horas e eu esclarecendo as dúvidas dela. Só depois que ela compreendeu é que fomos para a cama. Ainda bem que ela entendeu e o nosso namoro durou 4 anos.” Para Karina, começar essa nova vida foi mais complexo. Ela teve o
“(...)Percebi que
o HIV é uma das coisas que tem em mim, mas não muda quem eu sou”
Micaela Ciryno
seu primeiro namorado com 15 anos, tiveram várias oportunidades de fazer sexo, mas ela não teve coragem de fazer nada com ele. Só quando tinha 17
anos que o seu tabu foi quebrado, pois participava de uma Ong juntamente com psicólogos, assistentes sociais e sexólogos. “E foi aí com 17 anos que perdi a minha virgindade, nós usamos camisinha, mas só consegui contar para ele depois. Expliquei tudo e ele falou que não queria me ver por um tempo. Creio que ele usou esse tempo – cerca de uma semana – para pesquisar, porque depois entrou em contato comigo, falou que queria me ver e me chamou para ir até a casa dele. Ele foi o meu segundo namorado.” Também graças a uma Ong, Micaela se viu bem resolvida com relação a sua sexualidade. “Tive contato com muitos profissionais que me deixaram super esclarecida com isso, então eu percebi que o HIV é uma das coisas que tem em mim, mas não muda quem eu sou.” Por ter uma criação mais religiosa, hoje Natasha é evangélica e ainda não teve a sua experiência sexual. “Eu tenho alguns princípios e pretendo mantêlos. Quero me casar, ter um montão de filhos, um carro cheio deles.” Carinhosa
DEDICAÇÃO Padre Valeriano Paitoni, fundador de três casas de apoio, dedicou sua vida a crianças que nasceram com o HIV. Acima ele aparece fundando uma academia para a comunidade em prol dos portadores
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Foto de divulgação
e delicada, atualmente Natasha trabalha, faz curso de teatro na Escola Macunaíma e dá aula em uma Ong que tem parceria com um colégio. “Dou aula para crianças que estão na sexta, sétima e oitava séries. Sempre gostei muito de teatro e, graças a Deus, tive a oportunidade de trabalhar com isso. Não troco o meu trabalho por nada.” Micaela é estilosa. Já estudou moda e hoje estuda artes plásticas na Faculdade Santa Marcelina. Tem um namorado, também soropositivo. “Ele é militante que nem eu e nos conhecemos há dois anos em um evento no Peru. Ele é argentino e veio morar aqui no Brasil por minha causa. Vamos morar juntos, e trazer meu irmão para morar comigo. Depois, quem sabe, eu tenha os meus dois ou três filhos.” Ela trabalha como assistente de uma das suas professoras, também atua numa Ong e é uma das fundadoras da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/AIDS. A Rede, que funciona on line e tem o apoio da Unicef, promove a troca de informações e depoimentos entre os jovens, além de ter um viés político. Casada há quatro anos com um soronegativo, Karina é muito madura e responsável. “A mãe do meu marido é soropositiva e por isso ele frequentava o GIV (Grupo de Incentivo à Vida). Quando um amigo me levou para lá para participar de um grupo de ajuda mútua, eu o conheci, a gente começou a se paquerar, os amigos ajudaram e hoje estamos aí”. Também fundadora da Rede de Jovens, Karina trabalha num centro social que não está ligado ao HIV e no momento não pensa em ter filhos, quer fazer faculdade de psicologia e se focar em construir a sua própria casa. “Ele concorda comigo, afinal quem casa quer casa, né?” “Eu não estou namorando, mas sonho em me formar em logística, por causa do meu emprego, depois em educação física, que é o que eu amo mesmo. Quero ter uma família grande e meus filhos no colo”, sonha Juliano. Hoje ele trabalha no setor comercial de uma livraria e é técnico das turmas de 98/99 e 97/96 do Olaria Esporte Clube, em Itaquera, na Zona Leste da cidade. Mais do que esperar por uma cura, eles querem viver bem e sem preconceitos. “Tenho esperança de que
Dimensões da Aids no Brasil POR REGIÃO Do total de 542.914 casos registrados no Brasil o maior número registrado foi no Sudeste Casos de Aids acumulados (1980 a julho de 2010) Norte 4,2%
Nordeste 12,5%
Centro-Oeste
5,7%
Sudeste 58,0% Sul 19,5%
EXPOSIÇÃO AO HIV Casos acumulados 1980 a julho de 2010 HOMENS Homossexual
20,1% Bissexual
11,5% Heterossexual
30,5% Usuário de drogas injetáveis (UDI)
17,2% MULHERES Heterossexual
87,5% Usuário de drogas injetáveis (UDI)
7,3% Fonte: Ministério da Saúde
as pessoas cuidem umas das outras, a cura para mim é indiferente, é mais como uma consequência do que vier”, comenta Karina. Micaela compartilha da mesma opinião. “A cura da Aids a gente sabe que não vai ter, o importante mesmo é o respeito, não sei como ainda existe o preconceito que é camuflado. Era para sermos mais evoluídos e não somos. Só queria que o mundo fosse mais justo.”
O desejo de ter uma família
é frequente em todos os nossos entrevistados. Atualmente, isso é possível, graças à reprodução assistida. “Hoje em dia é possível e muito comum uma mulher soropositiva ter um bebê soronegativo. O que pode acontecer é a criança nascer com o anticorpo da mãe e ele desaparecer no período de 18 meses. Faz anos que eu não vejo uma criança nascer com o vírus”, explica Senise. (Ver matéria pág. 21) Em contra partida, especialistas estão muito preocupados com os jovens que estão na faixa etária de 15 a 24 anos. O Ministério da Saúde divulgou uma pesquisa em que 40% desses jovens ainda não usam camisinha nas suas relações sexuais. “A nossa campanha está focada nas meninas que estão em faixa etária reprodutiva, pois esse segmento apresenta uma leve ascendência no número de casos”, observa Matida. Para Micaela isso acontece por causa das evoluções que o tratamento teve. “Antes você via na cara da pessoa que ela tinha HIV. Já essa geração tem muito benefício e tem gente que não se cuida exatamente por não saber o quão difícil foi conseguir a distribuição dos remédios, cestas básicas e tantas outras coisas. Por isso não dão o verdadeiro valor.” Essa falsa segurança apresentada pelos jovens pode ter consequências muito graves. Não é porque hoje existem medicamentos eficazes e tratamento mundialmente reconhecido que a prevenção não deva existir. “Não há vantagem alguma em se ter HIV. Algumas pessoas falam que vão tomar um remédio e tudo bem. Mas não é um remédio, são vários que podem alterar o metabolismo da pessoa. Por tanto temos que tentar, ao máximo, evitar essa doença, que não é mais mortal, mas pode trazer consequências sérias para a vida dessa pessoa”, afirma Martins. 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 19
SAÚDE & BEM ESTAR HIV/AIDS
TRANSMISSÃO VERTICAL De 1998 a junho de 2010, houve uma queda na transmissão vertical do HIV no Brasil em menores de 13 anos
1200 1025 casos
1000 800 600 400 200 66 casos
0
1998
2001 Fonte: Ministério da Saúde
É preciso fazer o teste
A falta de exames anti-HIV no pré-natal está elevando as taxas de transmissão vertical em regiões brasileiras menos afetadas pelo vírus Adriana Gonçalves
D
esde meados da década de 1990, esforços têm sido feitos para combater a transmissão vertical do HIV – quando o vírus é passado de mãe para filho. De acordo com dados do Ministério da Saúde, de 1996 até junho de 2009, foram registrados 10.739 casos de Aids em crianças com até 5 anos, o que corresponde a 2% do total de notificações oficiais no país. Para enfrentar esse cenário, foi lançado em 2006 pelo Ministério da Saúde o Plano para Redução da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis. “Nós queremos alcançar a eliminação da transmissão vertical do HIV. A Organização Mundial de 20 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
Saúde (OMS) considera eliminação quando há duas crianças infectadas para cada 100 mães soropositivas”, explica Luiza Harunari Matida, coordenadora do Grupo de transmissão vertical do HIV e da Sífilis do CRT – Centro de Referência e Treinamento - em São Paulo. Quando se analisa os dados distribuídos pelas regiões do Brasil, identifica-se que o Sudeste, que responde por 58% dos casos de HIV/Aids, de acordo com o Ministério da Saúde, é a que apresenta a melhor resposta em busca de atingir essa meta. “São Paulo é um exemplo. Como foi o Estado inicialmente mais afetado, as pessoas se mobilizaram e se especia-
lizaram muito, e hoje aqui há um serviço muito bem organizado”, aponta Marinella Della Negra, infectologista do Hospital Emílio Ribas. Luiza tem a mesma opinião. “Atualmente, o Estado de São Paulo é o que tem a menor taxa de transmissão vertical, 2,7%. Estamos perto de atingir essa eliminação”. Comparativamente, nas regiões Sul e Centro-Oeste do país, em que as taxas de transmissão vertical figuravam entre as mais altas em 1998, com 12,5% e 4,8%, respectivamente, houve uma queda para 6,7% e 1,1%, respectivamente, em 2008. Já as regiões com as menores taxas apresentaram um aumento no período de 1998 a 2008, tendo o Norte passado de 1,5% para 4,9%, e o Nordeste de 1,1% para 2,5%. Jorge Senise, infectologista do Núcleo Multidisciplinar de Patologias Infecciosas na Gestação (Nupaig) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro Interdisciplinar de Moléstias Infecciosas em Gestantes (Cimig) do Hospital Ipiranga, explica que no Brasil, atualmente, 70% das grávidas fazem o teste de HIV, e que nessas regiões em que houve aumento da transmissão vertical ainda falta organização em relação à questão. “No Norte e no Nordeste, a realidade é diferente da nossa. Não é só preciso acabar com a transmissão vertical do HIV, mas também, as mulheres que estão grávidas precisam fazer o teste do HIV. Em grande parte dessas regiões as mulheres sabem que estão grávidas e não fazem o teste”. Ainda quando se observa os dados detalhados, verifica-se que o número de casos de crianças menores de 5 anos de idade contaminadas pelo HIV no Brasil atingiu seu auge em 2002, quando 1040 casos foram notificados. Desde então esse número vem diminuindo, por conta de iniciativas como acompanhamento e procedimentos corretos no pré-natal, no parto e depois dele. Dados do Boletim Epidemiológico 2010 apontam que, entre janeiro e junho do ano passado, foram registrados 140 casos de transmissão vertical, o que equivale a uma queda de aproximadamente 87% em relação a 2002.
A reprodução assistida é a solução A técnica é hoje a forma mais segura de os soropositivos terem filhos sem contaminar seus parceiros Adriana Gonçalves
S
e até meados da década de 1990 o HIV representava praticamente uma sentença de morte para os portadores, atualmente, com os avanços alcançados pelas pesquisas, os medicamentos mais eficientes e a consequente melhora na expectativa e qualidade de vida, homens e mulheres soropositivos planejam o futuro e pensam em ter filhos e constituir família. Quando essa decisão é tomada, a reprodução assistida representa o caminho mais seguro e recomendado pelos especialistas. De acordo com dados do Ministério da Saúde, 80% das pessoas que vivem com HIV estão em idade reprodutiva. Para Valdemar de Almeida Pereira de Carvalho, especialista em reprodução humana do Centro de Reprodução Assistida em Situações Especiais (Crase) da Faculdade de Medicina do ABC, a possibilidade de os soropositivos obterem ajuda para ter filhos é um fator que significa movimento de inclusão. “Eles olham para o futuro, imaginam que vão ter um filho e vão ter mais vontade e gana pela vida” Os casais sorodiscordantes (quando um tem o HIV e o outro não) são os que mais procuram ajuda para engravidar. “As estatísticas atuais revelam que 65% dos casais infectados são sorodiscordantes em HIV+”, aponta Carvalho, que completa: “A maioria é homem soropositivo. Isso porque, quando a mulher é positiva e o homem negativo, não precisa da lavagem do sêmen nem da inseminação. Na relação, tira-se o sêmen, coloca na seringa e ela mesma introduz na vagina.” Quando o homem é soropositivo e a mulher não, deve ser feita a lavagem do sêmen. O processo é o mesmo da inseminação artificial, em que os melhores espermatozóides são escolhidos para serem introduzidos no útero da mulher
quando ela está ovulando. Mas, segundo explica Carvalho, “a gente lava [o sêmen] uma vez mais, para que então seja submetido a uma dosagem da carga viral, por meio de um procedimento chamado PCR (Polymerase Chain Reaction - um exame muito sensível ao vírus)”, lembrando que o vírus se encontra no líquido espermático e não no espermatozóide em si. Caso o resultado ainda indique que há vírus no esperma, o homem deve acertar a medicação e baixar a carga viral no sangue para então tentar o processo de
novo. A infectologista Rita Sarti, coordenadora do Ambulatório de Reprodução do CRT - Centro de Referência e Tratamento de DST/AIDS de São Paulo, conta que o processo é rápido, pode ser feito em um dia. “Leva umas 4 ou 5 horas para ficar pronto, portanto o procedimento deve coincidir com o período fértil da mulher”. Quanto aos riscos, ambos os especialistas apontam que são muito baixos. “Não tivemos nenhuma transmissão até agora, mas risco zero não existe. Quando um casal tem relação desprotegida, o risco de transmissão sexual é de 4%; com o processo, seguramente é menor que 1%”, afirma Carvalho. O procedimento também é indicado para casais em que ambos são soropositivos. O Ministério da Saúde aponta que a técnica também diminui os riscos de reinfecção e transmissão de cepas (vírus) resistentes ao tratamento, contemplando assim as Recomendações para terapia antirretroviral em adultos infectados pelo HIV - 2008.
A inseminação artificial
No período em que a mulher está ovulando, o sêmen é introduzido na vagina por meio de uma seringa. O processo é rápido e pouco invasivo Óvulo Trompa Seringa com espermatozóides
Útero
Colo do Útero
Vagina
Fonte: Crase/FMABC
23 de maio de 2011 ÉPOCA > 21
SOCIEDADE CIDADANIA
ENTREVISTA
Raul Felice
“Os portadores do vírus da Aids têm mais dificuldades para serem adotados” O Juiz que tenta simplificar a burocracia sobre o processo de adoção comenta sobre as dificuldades de encontrar uma família para crianças soropositivas Luiza Garcia
R
aul Felice, juiz que há nove anos atua na Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Santana, na Zona Norte da cidade de São Paulo, analisa casos de possíveis adoções de crianças, problemas relativos às famílias de menores abandonados e daquelas que, além de órfãs, são portadoras do vírus da Aids. O principal objetivo desse trabalho é, quando possível, garantir a reinserção dessas crianças, por meio do auxílio de equipes sociais e da justiça, em novas famílias e fazer com que estas possam se preparar e reestruturar para acolher o filho ou a filha. Quando isso não é possível, as casas de apoio entram em cena e participam da criação da criança até uma possível adoção.
ÉPOCA - Como é decidido que uma criança deve ser levada à adoção? Raul Felice – É feito um panorama do quadro familiar pela equipe social da Prefeitura, que agrega os trabalhos de psicólogos e assistentes sociais. A partir disso eles chegam à um diagnóstico. Então o caso passa pelo Conselho Tutelar, até chegar à Justiça, que vai acompanhar o caso dessa criança, ver se o caso dela é de adoção ou se há condições de ela retornar para sua família. Essa avaliação é refeita a cada seis meses. Então se você não consegue fazer a reintegração da criança aos pais, você procura essa possibilidade com os avós, os tios... Mas ninguém é obrigado a cuidar de uma pessoa, mesmo que 22 > ÉPOCA, 23 de maio de 2011
“O desafio é
dar à criança (...) o máximo de condições para evolução pessoal e profissional”
seja seu parente. ÉPOCA - Em quanto tempo se dá esse processo? Felice – A lei põe um prazo de dois anos para que a gente passe por esse processo de reintegração da criança à família. Mas a gente procura fazer no mínimo tempo possível, porque dois anos é um tempo enorme para uma criança que às vezes não tem nem essa idade. ÉPOCA - E se esses dois anos não são suficientes? Felice – Se não conseguimos vai chegar uma hora que vamos ter que tomar uma decisão, apurar por quais razões nós não conseguimos tirar essa criança do abrigo e trazê-la de volta para a família. Depois disso verificamos se é caso de adoção. ÉPOCA - Quais as dificuldades encontradas nesse processo para que ele não possa acontecer no tempo estipulado? Felice – Muitas vezes a criança não quer ser adotada porque tem um relacionamento com os tios, avós e até pais ou mães e muitas vezes ela não consegue sair desses vínculos. Nós também não incentivamos. Acontece também de a própria criança rejeitar a idéia de adoção quando consegue se expressar. Não quer porque
dadas por intermédio das Casas de Apoio? Felice – Sim. Elas cumprem programas da lei relacionados à reintegração da criança à família e tem toda uma regulamentação para seguir. O meu trabalho é ver todos os aspectos da casa, desde as instalações físicas até mesmo o cumprimento dos programas. As casas têm um papel importantíssimo nisso. Então eles também recebem as famílias, fazem uma avaliação e desenvolvem um programa de atendimento individualizado de cada uma. Não é uma mera casa que cuida da criança, da comida, do banho, manda para a escola... Não é só isso, mas muito mais. São verdadeiros centros de cuidado com a família enquanto a criança estiver afastada, para que ela possa um dia retornar.
tem pai e mãe, então aquela é a família e acabou. Nesse caso, ela continua na casa de apoio, mas continuamos trabalhando o motivo da recusa. ÉPOCA - Quais os maiores desafios que essas crianças podem enfrentar? Felice – Os portadores do vírus da Aids têm mais dificuldades para serem adotados porque sua saúde é mais delicada, têm sempre o risco de desenvolver a doença e menos chance de adoção. As famílias dão preferência a crianças saudáveis. Então o desafio é dar à criança – se não há condições de retornar para a família – o máximo de condições para evolução pessoal, profissional, para um dia cuidar de sua vida, oferecendo cursos profissionalizantes e tratamentos com psicólogos, por exemplo. ÉPOCA - E essas condições são
QUEM É
Paulistano, de 58 anos, é formado pela Faculdade de Direito - Universidade de São Paulo, Largo São Francisco, turma de 1975 O QUE FAZ
É juiz e há nove anos trabalha na vara da infância do Fórum de Santana na cidade de São Paulo
ÉPOCA - O que falta para que esses programas possam gerar bons resultados? Felice – É preciso ter recursos financeiros e, consequentemente, ter apoio político para garantir essa verba. Depender disso faz com que esse trabalho das casas seja algo mais difícil de ser realizado. ÉPOCA - Por que é difícil conseguir verba para esses programas? Felice – Porque não tem recurso público para todo mundo. Eles não são suficientes. Muitas vezes também você tem verba para uma coisa um ano e no outro não dá para saber se vai ter justamente por causa da falta de apoio político. Muitas entidades por aí passam por necessidades. Às vezes uma instituição consegue o recurso e outras não. Mas essa falta de recurso não acontece só para os portadores do HIV. Também faz parte do cotidiano de moradores de rua – quanto falamos de acolhimento e suporte à eles –, pessoas com deficiência e outras que dependem do tratamento do SUS (Sistema Único de Saúde) para outros tipos de doenças. 23 de maio de 2011 ÉPOCA > 23