JUREMA ROEHRS TRINDADE
A DUALIDADE NA IDADE MÉDIA O PLATONISMO E O ARISTOTELISMO NA ICONOGRAFIA ROMÂNICA E GÓTICA
Porto Alegre 2003
UREMA ROEHRS TRINDADE
A DUALIDADE NA IDADE MÉDIA. O PLATONISMO E O ARISTOTELISMO NA ICONOGRAFIA ROMÂNICA E GÓTICA
Dissertação de Mestrado em Filosofia Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Roberto Hoffmeister Pich
Porto Alegre 2003
AGRADECIMENTO
Agradeรงo ao meu orientador Prof. Dr. Roberto Hoffmeister Pich que soube me encaminhar em minha pesquisa; Agradeรงo aos meus professores pelo apoio, em especial ao Prof. Dr. Luis Alberto De Boni; Agradeรงo a minha colega Joice Beatriz da Costa pelo carinho com que me acolheu no Curso.
DEDICATÓRIA
Ao meu marido Inei e minhas filhas Josiane e Tatiéle, pelo estímulo que me ofereceram durante a elaboração desta pesquisa, dedico-lhes este trabalho. .
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1 O SENTIDO DA ARTE MEDIEVAL 1.1 A Tradição antiga 1.1.1 A techne 1.1.2 A mimesis 1.1.3 Considerações acerca da techne e a mimesis 1.1.4. A proporção como beleza
7 19 22 22 26 28 34
2 A DUALIDADE FILOSÓFICA NA ARTE MEDIEVAL 38 2.1 O simbolismo na estética medieval 2.2 A estética dos vitorinos 2.2.1 Os fundamentos ontológicos da estética vitorina 2.3 A Escola de Chartres e a filosofia escolástica 2.4 O inteligível e o sensível na arte da Idade Média 59 2.5 A estética da luz na iconografia do século XIII 69 2.5.1 A origem do pensamento medieval sobre a luz 2.5.2 A estética da luz em Grosseteste 2.5.3 A representação da luz nas catedrais góticas 2.5.4 Considerações acerca da estética da luz no século XIII 3
A ESTÉTICA EM SÃO TOMÁS DE AQUINO 3.1 O belo em São Tomás de Aquino 3.2 A palavra e a imagem para São Tomás de Aquino 3.3 A intuição e a arte na Idade Média 3.4 Aristóteles e São Tomás de Aquino 3.5 A ontologia da forma artística em São Tomás de Aquino 3.6 A realidade vista por São Tomás de Aquino
38 52 54
69 75 81 85 86 86 89 90 93 107 109
4 LEITURA DA ICONOGRAFIA MEDIEVAL 110 4. 1.Processo de leitura de imagem em Edmund Feldman 110 4.2 Leituras comparativas entre a arte românica e gótica 115 4.2.1 Leitura da arquitetura medieval 4.2.1.1 Igreja de Stº Ambrósio. Arquitetura românica 4.2.1.2 Sainte-Chapell. Arquitetura gótica 4.2.1.3 Quadro comparativo da arquitetura românica e gótica 4.2.2 Leitura da escultura medieval 4.2.2.1 Fachada da Igreja de Stº Trophime. Escultura românica 4.2.2.2 Ekkehard e Uta. Escultura gótica 4.2.2.3 Quadro comparativo da escultura românica e gótica 4.2.3 Leitura da pintura medieval 145 4.2.3.1 Leitura de iluminura. Pintura românica 4.2.3.2 Leitura de iluminura. Pintura gótica 4.2.3.3 Quadro comparativo da pintura românica e gótica 4.2.3.4 Leitura do vitral de Notre-Dame dela belle verrièrre 4.3 Considerações gerais acerca das leituras iconog. românica e gótica CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA GLOSSÁRIO LISTA DE FIGURAS Figura 01 - Igreja de St° Ambrósio 116 Figura 02 - Interior da Igreja de S° Ambrósio 117 Figura 03 - Motivo escultural da Igreja de S° Ambrósio 119 Figura 04 - Baixos-relevos da Igreja de Stº Ambrósio 119 Figura 05 - Exterior da Sainte-Chapelle 121 Figura 06 - Interior da Sainte-Chapelle 121 Figura 07 - Fachada a Igreja de Stº Trophime 129 Figura 08 - Baixo-relevo da fachada da Stº Trophime 129
116 116 121 126 128 129 137 142 145 149 154 156 158 167 178 183
Figura 09 - 1ª parte da capa do livro do séc. V - cenas do Evangelho 132 Figura 10 - 2ª parte da capa do livro do séc. V - cenas do Evangelho 133 Figura 11 - Escultura Ekkerard e Uta 138 Figura 12 - Iluminura Anunciação 145 Figura 13 - Iluminura de um saltério manuscrito de Bonmont 149 Figura 14 - A lamentação de Cristo – Giotto 152 Figura 15 – Notre-Dame dela belle verrière – vitral 156
INTRODUÇÃO
A filosofia traduz em idéias o pensamento e o espírito do homem pelas vias da reflexão, fazendo deles uma noção; a arte concebe o mesmo em imagens, resultando uma visão. A par dessas constatações, nosso encaminhamento de investigação busca resposta à seguinte problematização: de que forma o aristotelismo contribui para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII? Questionamos a influência do aristotelismo na arte, porque a repercussão da doutrina aristotélica chega à Escolástica após a arraigada infiltração do pensamento de Platão, desde Santo Agostinho, este último, responsável pela cristianização do platonismo e que impera até meados do século XII.
Nossa hipótese é de que a entrada dos textos de Aristóteles, em meados do século XII, traduzidos pelos árabes, tenha sido a causa da concretização de uma dualidade medieval, repercutindo na arte. Entendemos, no decorrer da investigação, entretanto, que este fato não justifica que evidências aristotélicas tenham necessariamente recaído sobre a iconografia, como decorrência de uma filosofia que passa a ser assimilada pelos medievais. O que fica claro é que o teor filosófico dos textos, em termos de entendimento da realidade, de Deus, da forma inteligível e sensível, da arte como mimesis, de conceitos de beleza e de bem, estes sim, envolvidos por uma filosofia cristã, passam a ter uma participação efetiva na condução da arte do trecento. Não só estes fatores filosóficos são responsáveis pela nova direção da arte medieval. Certos elementos arquitetônicos, na construção das igrejas, são inventados para solucionar problemas de distribuição de peso, como é o caso de arcos ogivais e botantes nas catedrais góticas, superando antigas preocupações evidenciadas nas igrejas românicas, monumentais e pesadas. A questão toda está centrada na forma como as
idéias aristotélicas influenciam a iconografia medieval, onde idéias e arte resultam um pensamento diverso. A contribuição de Aristóteles ao gótico é indireta. Defendemos esta idéia, porque a arte românica resulta de uma dedução, isto é, através de leis préestabelecidas antigas. Já, a arte gótica, vai se formando por indução, ou seja, adapta-se a uma nova forma de pensar e agir, mesmo que também voltada à religião cristã. Enquanto a iconografia românica explicita uma filosofia platônica, a filosofia aristotélica é assimilada em São Tomás de Aquino, por exemplo, auxiliando na compreensão do estilo gótico, imbuído de aristotelismo. Verificamos que são posicionamentos diferentes. Aspectos aristotélicos explicam e complementam ações artísticas, como, por exemplo, do monge Suger, idealizador da Saint-Denis já em 1140, considerada a primeira igreja gótica.
Para Aristóteles, o belo e a arte não são vistos sob a mesma área de conhecimento. O belo é tratado no campo da metafísica, enquanto a arte é vista pelo lado psicológico, juntamente com as ações, contudo as ações são consideradas práticas e a arte, técnica. Este fato faz com que São Tomás de Aquino separe as artes plásticas da música e da poesia. Ele inclui o belo entre os transcendentais, portanto, sendo tratado num campo diverso do da arte.
Aristóteles segue Pitágoras, quanto à concepção da beleza pela proporção, uma visão quantitativa, sintetizada em conformidade com as leis, simetria e determinação. São Tomás de Aquino caracteriza beleza como proporção, integridade e claridade. A característica da claridade, entendida como esplendor formal, faz o diferencial do gótico, com relação ao românico. A arte românica, por ser simbólica deixa dúvidas quanto à claridade, pois os signos não são ícones, entendidos como representações verdadeiras de algo; são índices e símbolos divinos, ideais, manifestações da idéia perfeita, na visão platônica. Os significantes possuem significados arbitrários, caracterizando um realismoideológico. O estilo gótico caracteriza-se pelo realismo-naturalista, evidenciando uma representação da natureza por ela mesma. Assim, a arte também assume, no gótico, os atributos de proporção, integridade e claridade, sendo a arte participante da luz. Este esplendor que compõe as coisas é representado na arte pela luz sensível, através dos vitrais.
O simbolismo, na Idade Média, adquire duas conotações adversas. Até meados do século XII, coincidindo com a arte românica, o símbolo, que é religioso, está no lugar da forma ideal que não pode ser mostrada. O vidro utilizado no gótico, contudo, é um símbolo diferente, substancial, quando este é comparado à função da Virgem Maria; ambos emprestam o corpo para passagem de um ser divino: a Virgem, escolhida para ser a mãe de Jesus, e o vidro, emprestando seu corpo para a entrada da luz, Deus, no recinto das catedrais. Isto significa que a arte gótica, especialmente a do vidro, também apresenta o simbolismo de uma forma peculiar, evidenciando uma influência aristotélica, isto é, o símbolo está na substância.
O século XIII também é um período de curiosidade científica em cima de conceitos tanto platônicos quanto aristotélicos, que suscitam estudos e pesquisas. Um exemplo é a questão da dualidade da luz, como origem de tudo o que existe, e como elemento sensível, a partir dela resultando a cor e a possibilidade de vermos as formas palpáveis. Neste sentido citamos Grosseteste, filósofo, teólogo e matemático, que desenvolve uma teoria óptica, baseada nos princípios da física, explicando fenômeno da luz, através da refração.
No século XIII, a forma do sentir e do agir dos medievais é devida às novas concepções instituídas. O conceito de Deus, por exemplo, repercute na iconografia, no que tange à forma de representação. No platonismo, Deus é visto como o Bem e unidade suprema, elevando-se acima da unidade mesma, o Uno no neoplatonismo de Plotino; no aristotelismo, Deus é incluído nas categorias das substâncias e lhe é atribuído entendimento e vontade. No período românico, Deus é simbolizado pela própria construção da igreja, monumental, fria, pesada, e quase sem luz interna, desprovida de muitos enfeites, representando um Deus distante, autoritário, inatingível.
A concepção de forma, em Platão, é vista como conceito normativo, captado intuitivamente das coisas, a idéia, primeiro princípio das coisas; estas são imitação da idéia precedente, portanto, as coisas são meras cópias das idéias. A arte, como algo criado pelo homem, é considerada cópia da cópia ou imitação da imitação. A caracterização do estilo românico é denominada realista-ideológica, pois representa ao mesmo tempo, a idéia, por meio de figuras reconhecíveis.
Na doutrina aristotélica, a idéia é captada da forma das coisas, unida à sua matéria; entretanto as representações artísticas até meados do século XII, são aceitas apenas como simbolismo do divino, enquanto que, a partir daí e por todo o século XIII, os motivos iconográficos passam a ser valorizados por si mesmos. Neste sentido, a arte gótica é realista-naturalista, já que representa a natureza pelo seu próprio valor. São Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, centra a questão na matéria pura. A forma visível, sendo bela e boa, apresenta duas conotações: uma objetiva, ligada ao desejo e outra subjetiva atrelada ao prazer.
Além dos aspectos aristotélicos evidenciados na visão da forma visível, observamos uma forte analogia entre a postura escolástica e a construção das igrejas; tanto a arquitetura, quanto a escolástica é encarada do ponto de vista de representação de um processo racional. Não queremos garantir que realmente haja uma sintonia entre escolásticos e mestreconstrutores. Nem Panofsky consegue argumentar suficientemente em favor desta idéia, porém não podemos nos furtar de mencionar que, de uma forma ou de outra, tanto uns, quanto outros, utilizam processos de lógica idênticos.
O que caracteriza o gótico é o exagero de arabescos, enfeites e colorido que extrapolam o funcional: o brilho, o deleite, o admirável. Diferentemente de um autêntico humanista, o escolástico do século XIII, prima pela expressividade além da harmonia e proporção, integridade e claridade. A luminosidade provocada pelos vitrais é a materialização desta beleza, que é assimilada pelo monge Suger, vinculado ao movimento analógico, a combinação de paredes mínimas e áreas máximas de vidro, coincidindo com
interesses de mestres construtores como Villard de Honnecourt e Pedro de Montreuil. A claridade, como atributo das coisas, conduz a uma estética de qualidade, pois sendo a luz simples, não é medida. A qualidade é somada à quantidade, ao número. Estas duas estéticas dão à arte gótica um atributo aurático até então inconcebível.
O belo é incluído entre os transcendentais e com ele é aceito o prazer estético. Já não é mais pecado o fiel deleitar-se diante da beleza dos relicários, das esculturas e das pinturas, contrapondo-se à postura agostiniana, imbuída de platonismo.
Pintura e escultura, subordinadas à arquitetura, esta última representando o poder, aos poucos, começam descer das paredes e tetos das igrejas e adquirem movimentos e articulações próprias, retratando a condição humana, mais independente.
Em suma, a par do que propomos averiguar neste trabalho, a forma como o aristotelismo influencia a arte é indireta através de diversos pensadores, em especial, de São Tomás de Aquino, seus seguidores e Grosseteste. São Tomás de Aquino consegue sintetizar várias idéias, textualizando um pensamento que a arte também contribui. Filosofia e arte, reguladas pela Teologia - concomitantemente e de forma a se complementarem, passam a confiar mais na razão para resolverem seus problemas, evidenciando o aristotelismo na iconografia gótica e a concretização da dualidade medieval, ao mesmo tempo filosófica e estética.
Através de nossa investigação, concluímos que a forma de contribuição dada pelo aristotelismo na formação da dualidade na Idade Média e repercussão na iconografia ocorre de duas maneiras: pelo uso da razão, da logicidade e da cientificidade; outra forma é pelo modo de o homem ver a natureza e Deus. A idéia platônica, onde o ideal é simbolizado na arte passa a integrar-se à forma visível, valorizando a natureza por ela mesma, e Deus passa a ser visto na substância, através da luz, de onde tudo participa. Neste sentido não há uma contraposição total e irrefutável com o platonismo, mas uma nova forma de ver, sentir e
representar a realidade: uma dualidade filosófica e estética, representada pelo inteligível e o sensível, no românico e gótico, respectivamente.
1
O SENTIDO DA ARTE MEDIEVAL
Geralmente compreendemos a primeira metade do século XIII como essencialmente agostiniana e a segunda metade caracterizamos por aristotélica.
Estudos recentes,
entretanto, dão conta que, desde o final do século XII, já se faz presente uma filosofia influenciada por Aristóteles, porém indecisa, superficial, eclética, e, sobretudo neoplatonizante. Na escolástica, há a preocupação de conseguir bons textos do Filósofo. A própria influência aristotélica é possível através da ajuda do neoplatonismo grego, árabe e judaico. Uma das divergências a ser notada é entre a filosofia e a teologia. Geralmente entendemos a primeira oriunda de um saber pagão e a segunda, resultante de uma revelação cristã, entretanto, temos notícia de ter havido uma teologia pré-socrática. Outro fato peculiar, que ocorre no início do século XIII, é a participação crescente de artistas, os quais são mais bem vindos numa doutrina aristotélica do que agostiniana, mesmo que contaminada de neoplatonismo. A partir daí, personalidades notáveis realizam sínteses doutrinais, que abrem caminho para uma filosofia, cada vez menos platônica e agostiniana, como: São Boaventura (1221-1274), Alberto Magno (1190-1280) e, especialmente, São Tomás de Aquino. São Boaventura, filósofo e teólogo de espírito religioso, inteligência penetrante e estilo elegante, participa decisivamente para a erradicação do pensamento aristotélico. Ele investe num prolongamento e complementação do aristotelismo, mais pela teologia do que pelo racional: um “...aristotelismo agostiniano”1. Em Alberto Magno e São Tomás de Aquino, especialmente este último, encontramos as mais influentes doutrinas para a expansão do aristotelismo na Idade Média e, conseqüentemente, a formação de um novo paradigma, que se infiltra na arte, em relação à qual ainda retomaremos neste capítulo.
1
STEENBERGHEN, Fernand Van. História da Filosofia. Período Cristão. Tradução J. M. da Cruz Pontes. Lisboa: Gradiva, 1984, p., 109.
O tema tratado, portanto, é a arte na Idade Média, mais especificamente, uma investigação da forma como o aristotelismo contribui para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII. Sabemos que os conceitos não vêm sozinhos e, sendo assim, temos de nos deter também sobre o fenômeno que viabiliza a arte: a estética. Mesmo que o nosso foco primordial seja entender a arte, em determinado momento da Idade Média, é imprescindível que partamos da concepção de arte dos gregos. Nosso propósito é cercarmo-nos de subsídios para melhor penetrarmos na realidade e no pensamento deste período. A partir daí, valemo-nos da filosofia da Arte, inclusive, tentando realizar contrapontos entre comentadores,
visto
que
a
estética
envolve
nuances
muitas
vezes
passadas
inconscientemente por uma época, como é o caso da passagem do românico para o gótico. Com referência a esta mudança de pensamento e estética, Huygue ressalta: Pode dizer-se, com efeito, grosso modo, que a Idade Média até cerca de 1200 viveu de acordo com o pensamento de Santo Agostinho e que, a partir do século XIII, foi dominada pelo de São Tomás de Aquino. O primeiro está profundamente penetrado pela Filosofia de Platão, como o segundo o estará pela de Aristóteles. Duas visões antagônicas do mundo se chocam: para Platão, o universo físico, o das aparências individualizadas, é o não-Ser; (...) No momento em que a arte românica finda, em que a aurora do gótico se ergue em Saint-Denis, em meados do século XII, o abade Suger [(1085-1151)], que por este monumento decidiu do impulso novo, professava ainda a fórmula célebre: “Mens hebes ad verum per materialia surgit”. O espírito, na sua fraqueza, só por meio das realidades materiais atinge a verdade2. [grifonosso]
É evidente que Huygue trata, acima, de concepções adversas e estas são resultantes de formas diferentes de ver a realidade. Acreditamos que este seja o ponto chave que culmina com o inteligível, refletido no estilo românico e o sensível no gótico, respectivamente. Basta-nos, então, verificar de que forma ocorre esta transposição de pensamentos, repercutida na arte.
2
HUYGUE, 1960, p.189.
O pensamento estético medieval é constituído de um caráter próprio. Devemos esta constatação aos estudos mais recentes3. Tratamos de incluir, aqui, o exemplo de Maritain, considerado por Eco (1972) um neoescolástico e ao mesmo tempo um paleotomista, ao interpretar o problema da arte e do belo, com vistas às categorias da escolástica, sem, no entanto, esquecer definições bergsonianas.
Cabe-nos deixar claro o que significa para nós o que seja neoescolástico e paleotomista: entendemos como neoescolástico alguém que num tempo posterior à Escolástica e imbuído de idéias do seu tempo, procura dar sustentação teórica à verdade da teoria cristã, tentando reconciliar posicionamentos contrários da teologia, a partir de um método de investigações filosóficas e teóricas; como paleotomista, compreendemos aquele que se posiciona defensor das idéias de Aristóteles, idéias estas que, mais tarde, seriam o cerne da doutrina de São Tomás de Aquino, denominada tomismo.
Citamos Maritain para justificar o nosso posicionamento frente a uma tentativa de penetrarmos no pensamento medieval, contudo, conscientes de que somos fruto de uma concepção contemporânea sobre arte. Ao mesmo tempo em que procuramos vislumbrar a dualidade filosófica na Idade Média, nosso olhar está impregnado de um conceito estético pós-moderno. Isto nos conduz a refletir sobre o sentido da arte medieval, baseado, inclusive, na visão de certos autores atuais.
3
De Bruyne, com relação às discussões de Grosseteste sobre a luz, como revelação de uma visão estética do universo, sobre a qual abordaremos no sub-capítulo sobre a Estética da Luz; de Panofsky ou Simson, mostrando a ligação não causal das metafísicas neoplatônicas de energia luminosa com o trabalho dos construtores de catedrais e dos vitrais; também deveras à contribuição de Pouillon, quanto à atribuição do Belo aos Transcendentais, como um processo de distinções. Entre os autores, nomeamos Eco, Huygue, Maritain, De Bruyne, Panofsky, McLeish, Lacoste, entre outros, os quais nos passaram uma visão mais moderna e ampla acerca da estética da Idade Média.
Nosso propósito é discorrer sobre a dualidade medieval, repousada na decisiva contribuição de São Tomás de Aquino, mas também de outros teólogos e filósofos. Esta dualidade filosófica, refletida na arte, tem sua efetivação no século XIII, devido a um novo paradigma sobre o sentido da arte e a uma nova forma de ver a realidade. Parece-nos imperativo que façamos um contraponto entre o platonismo que perdura até por volta de 1200 e o aristotelismo, que tem entrada a partir de meados do século XII. Nossa postura, portanto, obriga-nos a ultrapassar a atitude do primitivo, para o qual as distinções não existem, para assumir uma postura semelhante a do cientista, identificando distinções. Entendemos distinções uma contribuição sistemática através da historiografia. Desta forma, apresentamos, então, nosso problema investigado num contexto de distinção, qual seja: de que forma o aristotelismo contribuiu para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII? Parece-nos que, conforme já fora explicitado na Introdução deste trabalho, que o pensamento aristotélico em São Tomás de Aquino na escolástica, tenha sido responsável pela concretização da referida dualidade, influência esta, que muda o sentido da arte medieval, passando do românico ao gótico. Nesta investigação, contudo, precisamos nos deter mais nas reflexões acerca da filosofia e a sua influência na estética medieval, buscando subsídios, inclusive, nas questões voltadas à arte desde a Antigüidade.
1. 1. A Tradição antiga
1. 1. 1. A techne
Para designar arte e artesanato, os gregos antigos usam o termo techne e para artista e artesão, technites. Na verdade, techne, não é entendido no sentido prático, porém na conotação de um modo de saber.
Origina-se de Platão a concepção de que, fazer com arte, não seja só algo manual e mecânico, mas inclusive, intelectual isto é, um saber. Techne, para os gregos significa uma habilidade que implica conhecimento. E até hoje comumente usamos os termos arte de viver, arte de vestir-se, arte de escrever, etc. Na verdade, a arte em Platão, é vista como techne; mas, ao mesmo tempo em que trata a arte como técnica, Platão busca a essência da beleza no diálogo Hipias, fracassando, como relata Lacoste4. No Banquete5, revela-nos como o amor dos belos corpos é suscetível de purificar-nos como amor da beleza. Desta forma, os elementos estéticos estão implícitos em Platão, sem que, contudo, sejam mencionadas obras de arte. Encontramos a subjetividade da acepção platônica no que entendemos como arte, a partir do século XVIII, na ligação de beleza a produções artísticas e ao prazer estético. Assim, ao mesmo tempo em que a filosofia da arte inicia através de Platão, as belas-artes, no seu sentido moderno, não são consideradas por ele. Segundo Lacoste6, a palavra “artista” significa primeiramente, a união entre gênio e arte manual. Como abordamos arte, entretanto, no sentido antigo e medieval, tratamos artista e artesão como análogos, quando estamos nos referindo ao produtor de arte na Antigüidade e na Idade Média, já que, nestes dois períodos, a arte é vista de forma semelhante. É sabido que as operações manuais, na Idade Média, pertencem às artes mecânicas, ficando desvinculadas das operações do espírito, estas últimas voltadas às artes liberais. Embora, apenas no século XVIII tenha ocorrido a distinção entre artista e artesão, e as belas artes tenham passado a ser autônomas, desde Giotto já é cogitado que a pintura, por exemplo, seja comparada à poesia, por seu poder de criação e de imaginação.
Discorrer, contudo, sobre o aspecto dual na Idade Média e as implicações do aristotelismo nesse processo, é algo que nos força a penetrarmos diretamente no pensamento platônico, imediatamente anterior ao de Aristóteles na escolástica. A dualidade, a que nos referimos, é justamente resultante da penetração desses dois pensamentos, num momento e noutro, visivelmente detectados na iconografia medieval. Iniciemos, então, nossa investigação no que se refere à arte e estética medievais, pelo que nos apresenta Platão, numa passagem do diálogo Teeteto: 4 5 6
LACOSTE, 1986, p. 10. Ibidem, p.10. Ibidem, p. 8.
Sócrates - Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza? Teeteto - De forma alguma. Sócrates - Não compreenderá, pois, o conhecimento do sapateiro quem não souber o que seja conhecimento. Teeteto - Sem dúvida. Sócrates- Logo, não compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte, quem não souber o que seja conhecimento. Teeteto- Exato. Sócrates- É por conseguinte, ridícula a resposta de quem é perguntado o que seja conhecimento, sempre que acrescenta o nome de determinada arte. Falou em conhecimento de alguma coisa; porém não foi isso que lhe perguntaram. Teeteto- Realmente7.
Platão, através do diálogo entre Sócrates e Teeteto, trata explicitamente sobre conhecimento e, implicitamente, sobre arte. Vamos nos deter, primeiramente, ao sentido que ele dá à arte. Na primeira parte desta passagem, Sócrates relaciona um fabricante de bonecas com o ofício de artesão e, mais adiante, trata a arte do sapateiro em relação a outras artes. Fica visível a ligação que há, entre artesanato e arte, entre artesão e artista. “A criação de uma obra exige por si mesma a habilidade manual”8. O autor continua explicitando que techne, para os gregos, não significa arte, nem artesanato, assim como técnica, hoje, não está ligada a “...um modo de execução prática” 9. A essência do saber, para os gregos, está na desocultação do ente. Desta forma, a atividade artística está relacionada ao artesanato, mas não provém da experiência artesanal; ela é determinada pela “...essência da criação”10, o “...ser-obra da obra”11. É na própria obra que se revela a verdade. Esta verdade está oculta enquanto não-obra; o fenômeno de desocultação da verdade na obra é o que chamamos criação e é o que estabelece o status de obra de arte na obra. A ligação desta concepção com o entendimento grego, mesmo sendo tratado como 7
PLATÃO. Diálogos - Platão. Teeteto - Crátilo. Tradutor Carlos Alberto Nunes. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973, p.26. 8
HEIDEGGER, Martin. A Origem da obra de arte. Tradução Maria José Rago Campos. Belo Horizonte: Kriterion, 1992, v. 86, p. 114-133. 9 Ibidem, 1992, loc. cit. 10 Ibidem, 1992, loc. cit 11 Ibidem, 1992, loc. cit
techne, o artesanato, no sentido de imitação, diz o que a coisa é, reconhecendo o ser, a que Platão identifica por essência, forma ou idéia. Se o artesão não produz a idéia das coisas, apenas as imita em sua aparência, é porque ele não produz a verdadeira realidade que é a idéia. Para Heidegger12, a techne, como saber, para o grego, é uma produção do ente, quando retira e produz o presente, “(fora) da sua reserva para a eclosão (não ocultamente) de sua aparência”13. Conforme este autor, techne não pode significar fabricação e o artista não é considerado um technites, “...porque a pro-dução (...), acontece na produção, que, desde o princípio, deixa aparecer o ente em sua presença”14. “...produção é entendida como o ato de eclodir, de alguma coisa, se fazer presente a partir de sua própria reserva” 15. Entendemos que o fenômeno que possibilita a arte está vinculado ao ato da criação e não à experiência artesanal. A “coisa artística” é o ente produzido no fenômeno artístico. Se na Idade Média há a eclosão do ente através de uma criação, é porque existe a arte e o artista. Para entender a essência da criação, Heidegger investiga o que seja a obra e a sua essência, pois ambas, essência da criação e da obra, são determinados pelo ser-obra da obra. A verdade da obra, enquanto não (des) coberta, pertence ao ainda-não e, portanto, está no domínio da não-verdade. Esta reflexão nos leva a crer que toda a questão da verdade está intimamente ligada à criação e evidentemente à alma do criador. A criação não existe sozinha; há de ter alguém que a proceda. Nesta fase de nosso estudo, é importante reatarmos a ligação com o que pensam os escolásticos, pois nossa investigação sobre o sentido da arte medieval nos conduz a um melhor entendimento sobre a forma como o aristotelismo influenciou a iconografia na Idade Média. Desta maneira, pensemos acerca de como os medievais lidam com a questão da idéia expressada através dos artefatos: a forma artificial (forma accidentalis) não manifesta a idéia em si, mas um conceito humano; apenas a forma substantialis, isto é, a idéia da matéria que constituiu a forma artificial é que expressa a verdadeira idéia 16. Assim, 12 13 14 15
16
Ibidem, 1992, loc. cit. Ibidem, 1992, loc. cit. Ibidem, 1992, loc. cit. DUARTE, Rodrigo. O Belo Autônomo. Textos Clássicos de Estética. Belo Horizonte: UFMG, 1997, p.222. SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e representação. Tradução Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora Abril, 1974. Livro III, parág. 38 a 42, p. 25-39.
se ligarmos idéia e verdade, e artefato para o medieval, no sentido de obra de arte como entendemos hoje, observamos que a verdade da obra, quanto à idéia, é posta visivelmente através da forma artificial por meio da criação humana. Uma obra de arte é, portanto, uma forma artificial, a qual pode levar à contemplação pela forma substancial que encerra, ou seja, a verdade ou a idéia (des) coberta.
Segundo Huygue17, David Hume não acredita na linguagem da alma, visto que para comunicar novos sentimentos uns aos outros, teríamos que corrigir as aparências momentâneas, isto é, despojarmo-nos da nossa individualidade para então mostrar o que a coisa é, sua essência, sem mácula. Huygue 18 esclarece que, no século XIX, Delacroix estabelece a diferença entre duas linguagens: a falada, que pode exprimir as idéias, e a arte que é a verdadeira linguagem da alma, aquela que transcende a própria inteligência. Se a arte é a linguagem da alma, ela certamente existiu na Idade Média, pois tanto no românico, quanto no gótico, há uma inserção da alma do homem medieval: religiosidade, criação, imaginação.
Entendemos que o que dá validade à obra de arte é o seu aspecto indizível, aquilo que só a imagem traduz, o que vai além do finito; e isto o simbolismo da Idade Média demonstra. A imagem tem um poder tão forte de persuasão como a poesia. Quando a primeira usa a segunda, mesmo que possibilitada pela imaginação, consegue assemelhar-se ao atributo de convencimento e deleite do visual. “O mérito do quadro é o indefinível: é justamente aquilo que escapa ao rigor”19.
Segundo Santaella (1994) a Filosofia platônica é sempre um ponto de partida para o estudo da arte e da estética de todas as épocas, embora o sentido pós-moderno da arte seja diferente daquele dado na Antigüidade. O entendimento de Platão sobre a arte como sendo techne, um conhecimento, um saber fazer bem, também é responsável pela
17 18 19
HUYGUE, 1960, p. 15. Ibidem, 1960, loc.cit. HUYGUE, 1960, loc. Cit.
supervalorização do trabalho intelectual, pois este é considerado trabalho que envolve o pensamento, “uma natureza mais nobre e transcendente”20.
Nossas reflexões, sobre o fenômeno que traduz a arte medieval, são nuances importantes, não só para entendermos como ela se desenvolve, mas também para consolidar nossa idéia de que arte e artista realmente existem na Idade Média, mesmo que confundidos com ars e artesão.
1. 1. 2. A mimesis
A questão da mimesis como imitação imperfeita da realidade ou imitação de segunda ordem deve merecer, de nossa parte, uma análise mais cuidadosa, pois costumamos supervalorizar em Platão, a Teoria das Idéias ou das Formas.
A arte, porém, representa, a partir dos modernos, um sentido que tem origem na concepção platônica de arte, quando ela é fruto da imaginação, visto que outrora, a mesma possuía semelhança com a poesia e as artes liberais, ou seja, uma ligação com o saber. Na República21, Platão suscita a reflexão sobre beleza, freqüentemente, iniciando pela questão da mimesis. A definição de arte como mimesis liga-se à concepção do ser e verdade, mais do que a poesia como imitação. A “essência, forma ou idéia, para Platão, significa aquilo que é naquilo que está diante de nós. O artesão, portanto, não fabrica a idéia do objeto, mas considera“...a idéia, a qual o seu trabalho está subordinado”22. Assim, o artesão é um imitador. A realidade é a idéia e o que o artesão produz é um análogo. Na imitação platônica, o belo não é atingível, pois a beleza permanece no campo sensível, enquanto a verdadeira beleza continua no plano inteligível. “A arte platônica do belo procura purificar o prazer e substituí-lo pela apreensão intelectual das essências”23. Cabe aqui distinguir o 20 21
22 23
SANTAELLA, Lúcia. Estética de Platão a Pierce. São Paulo: Experimento, 1994, p.25. PLATÃO, República, X, 595 A. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora Universidade do Pará, 1975. LACOSTE, 1986, p.11. Ibidem, p. 20.
ofício do artesão e do pintor, por exemplo, e estabelecer o que os diferencia na imitação. Para entendermos melhor este raciocínio, seguiremos o argumento de Lacoste sobre uma passagem da República:
Mas o filósofo, pela consideração de uma cama única, descobre três camas diferentes; a cama “natural” (597 b). A cama em verdade, a Idéia de cama, depois a cama individual que o artesão fabrica e, finalmente, a cama pintada pelo pintor (zographos), tal a cama pintada por Van Gogh. A idéia de cama e determinada uma cama “natural”: (...) a natureza em questão, designa o modo que a Idéia tem de se manifestar por si mesma, de desabrochar, de se fazer presente. (...) Platão recorre a idéia misteriosa de um deus “operário natural” da essência da cama, da cama única. Os artesãos encarnam essa Idéia nas múltiplas camas fabricadas, e o pintor imita, por sua vez, a obra dos artesãos 24.
Analisando o trecho acima, fica deveras claro que a questão da mimesis, com relação ao artesão e ao pintor, possui dimensões diferentes: enquanto o primeiro imita a cama verdadeira, considerada a real, multiplicando a Idéia, o segundo imita o real em sua aparência, ou seja, o pintor reproduz um ângulo daquilo que já fora fabricado pelo artesão. Lacoste25 diz também “...que techne, em Platão, não designa a arte na acepção moderna do termo, nem mesmo uma técnica”, mas um saber. A essência da mimesis, em Platão, como já vimos, permite definir, modernamente, as belas-artes.
No caso, porém, de imitarem, deverão fazê-lo desde a meninice o que lhes convier para se tornarem corajosos, temperantes, santos, livres e tudo o mais do mesmo gênero, não devendo praticar nem procurar imitar o que não for nobre nem qualquer modalidade de torpeza, para que por meio de imitação não venham a encontrar prazer na realidade. Já não observaste que a imitação, quando começada em tenra idade e prolongada por muito tempo, se transforma em hábito e se torna uma segunda natureza, passando para o corpo, para a voz e até para a própria inteligência? 26.
Platão alerta, contudo, quanto ao perigo que as pessoas se submetem pela imitação da arte como arte, mas como imitação, ilusionismo, naturalismo, no momento em que, tornando-se um hábito, o artista poderá sentir prazer através dela. Neste sentido, poesia e pintura ficam 24 25 26
Ibidem. p. 11-12. Ibidem, 1986, p. 12. PLATÃO, A República. L. III, 134-135.
na vala comum. Cumpre salientar também que Platão não inclui, na sua acepção sobre a pintura, a imitação da paisagem e, sim, a das coisas fabricadas. Na mesma obra, Platão trata, inclusive, da distinção entre graciosa ou desgraciosa, comparando ao ritmo ou à falta dele. Ainda nesta passagem, ele discorre que, na arte de falar, por exemplo, a beleza do estilo, a harmonia, a graça e o ritmo decorrem da simplicidade da alma. Insiste quanto ao sentido de proporção como graça, ritmo e harmonia, comparando à ponderação e retidão de conduta, enquanto que desgraciosidade é próxima da linguagem viciosa e de maus costumes.
1. 1. 3. Considerações acerca da techne e a mimesis
Cumpre-nos realizar um paralelo entre Platão e Aristóteles acerca de seus posicionamentos. Verificamos, portanto, que Aristóteles segue princípios platônicos da techne e mimesis para explicar o fenômeno da arte. A diferença é que o poder de criação platônico está no divino e Aristóteles transfere essa força para o artista. Aristóteles parece reunir todo seu pensamento com relação à teoria da arte na Poética, mas encontramos também sustentação em outros textos, como na Metafísica, Ética, Retórica e Política. Embora a Poética trate da arte poética trágica, seus pressupostos valem para arte em geral. Para Aristóteles, o belo é “resultado do domínio que o artista tem sobre a techne, tendo em vista a simetria, harmonia e completude”27. São esses requisitos que a estética de São Tomás de Aquino resgata no século XIII. A mimesis aparece em Aristóteles, mas diferente da concepção platônica: a cópia passa a ser considerada representação e transformação, isto é, criação ou poesis. A criação 27
SANTAELLA, 1994, p.29.
de algo novo, como se fosse real28. Na Poética, a mimesis é um estágio de verossimilhança, representações convincentes acerca da natureza e da vida, através da intervenção do homem. Compreendemos que esta nova realidade da natureza e da vida, só seria corrigida pela arte, junção do ato de fazer bem com a criação. O efeito catártico, que da arte decorre, é também a intervenção do espectador na obra de arte. O conceito, portanto, dado à mimesis por Platão e Aristóteles é chave da questão e o que os diferencia. Mimesis para Platão era a cópia da natureza; para Aristóteles há uma “correspondência e complexibilidade criativa e reveladora”29. Santaella (1994) dá o exemplo da música, que para Aristóteles era considerada a arte mais mimética. A música, como sabemos, é uma criação do homem, pois não passa pela compreensão da cópia da natureza como as artes visuais. Neste aspecto fica claro que para Aristóteles, a mimesis não trata simplesmente de imitação da natureza, mas inclusive de criação. Apresentamos algumas colocações a respeito do pensamento de Aristóteles, via São Tomás de Aquino, baseados no texto de Mc Leish30. Ao contrário de Platão e de outros filósofos gregos, Aristóteles dedica-se mais a pesquisas e lógica indutiva do que discursos de inspiração intelectual31. Mc Leish inicia suas reflexões sobre a poética, pelo ataque que Platão dá às artes no décimo livro d’A República, salientando que mais parece uma representação à comunidade artística, porém sem incomodar os filósofos. Dizia Platão: um artista é “...o terceiro na fila para o trono da verdade, (...) enquanto Deus faz cama e um carpinteiro faz uma cama, um artista faz a representação de uma cama” 32. Os dramaturgos mostram personagens distorcidos, quando permitem que pessoas dêem livre expressão às emoções. Enquanto a filosofia define, a arte apenas descreve.
Aristóteles, através da Poética, de alguma forma responde em 340 a.C ao seu mestre, quando este convida a quem ame as artes “...defendê-las, tendo como base em que 28 29 30
31 32
Ibidem, p. 30. Ibidem, p.31. McLEISH, Kenneth. Aristóteles: a Poética de Aristóteles. Tradução Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 2000, p. 9. Ibidem, p. 9. PLATÃO, República, X, 597, b.
elas trazem não só prazer, mas algum tipo de benefício à vida e sociedade humanas; se isso não puder ser feito, as artes serão banidas da sociedade ideal” 33. O filósofo dedica-se a defender que, a arte, por meio da mimesis pode conter uma possibilidade de efeito moral. O ensinamento moral grego é resultado de um processo evolucionário, reforçado por mitos recontados, elaborados e revisados para dar validade a atitudes e comportamentos; diferentemente é o ensinamento moral europeu posterior, que se baseia numa ação aprendida anteriormente. Assim, a mimesis não representa uma doutrina moral que pretende ensinar, mas a própria realidade que é imitada, podendo ser de cunho físico, e, inclusive, de realidades de pensamentos, emoções, idéias de qualidade como beleza ou nobreza. Conscientemente ou não, essas imitações têm um cunho também moral. O prazer artístico, tão recriminado por Platão, em Aristóteles, é tomado de uma nova roupagem, pois para ele, nossas mentes são curiosas e ao admitir um objeto artístico, realizam conexões, avaliações e comparações. Estas promovem prazer através da nossa participação intelectual, levando a uma mudança moral e ética para melhor. Para Aristóteles, a arte que não leve a uma mudança para melhor, é pior que uma arte sem função moral alguma34.
Mc Leish35 diz que o grego, na Antigüidade, não atribui impulso didático e terapêutico à arte. Quando a Poética fala na catarse de emoções não se refere ao propósito intrínseco da arte, mas a um efeito possível da tragédia. Escrever peças teatrais ou poemas épicos é análogo ao artesão que faz uma mesa; esse e os autores de ficção literária não se preocupam com a função final do que fazem. Aristóteles lida, na Poética, com a questão de que o poder de mudar as pessoas pelas imagens depende da seleção e articulação do que é mostrado à audiência; esta posição de Aristóteles contrapõe-se à de Platão, este último acreditando que “...a ficção é moralmente inferior ao fato”36. Mas, o cerne da questão entre Platão e Aristóteles, nesta abordagem, é a mimesis.
33 34 35 36
Mc LEISH, 2000, p. 12. Ibidem, p. 14. Ibidem, p.12. Ibidem, p. 15.
O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [dirão], por exemplo, “este é tal”. Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie.37
Na passagem acima Aristóteles fala de imitação, como reprodução minuciosa, e isto requer descoberta através da habilidade. Desta forma, o prazer vem do ato de fazer. E o Filósofo ainda vai mais longe, ao referir-se ao prazer pelo estilo e outros aspectos estéticos. Ele deixa claro que o sensível pode agradar desde a execução, o que contradiz Platão, que liga apenas a arte ao conhecimento. Este esclarecimento é como o nó de nossa pesquisa, ao investigarmos a forma como o aristotelismo influenciou a iconografia do século XIII. Ora, se sabemos e já ficou claro que até o século XII há uma ligação do platonismo com a arte e que, após, inicia-se a infiltração do pensamento de Aristóteles na mesma, nos parece que vai se tornando cada vez mais evidente que o aristotelismo influencia os artistas medievais, através da forma como passaram a ver a realidade, isto é, por um prisma sensível, iniciando pela emoção e prazer sentidos na imitação e logo após, pelo encantamento pelo visível.
A arte, como mimesis, contudo, é a imitação da realidade e não representação ou simulação, por isso deve ser o mais perfeitamente possível. Mc Leish esclarece as distinções acerca das traduções de mimesis:
...o desenho de uma figura humana, ou um humano fingindo deliberadamente o outro(...) Um graveto ou letra do alfabeto podem 37
ARISTÓTELES. Poética, Coleção Pensadores, São Paulo: Editora Abril Cultural,1973, IV, 1448b, 4 - 19.
ser declarados como representação; (...) Uma simulação (...) é mais exata: a intenção é remover a iniciativa criativa do espectador, fazelo acreditar que a simulação é realidade. Aristóteles, falando das artes, deixa claro que mimesis, para ele, significa imitação38. A mimesis, não só para Aristóteles, mas para Platão como para todos os gregos, significa a imitação. As conotações de representação e simulação são dadas à arte, posteriormente. Mas, para Aristóteles, a imitação envolve aspectos diferenciados, pois tem que possuir uma “...semelhança com diferença suficiente para prender a mente do espectador”39. Conforme Mc Leish40, a semelhança valida a imitação e a diferença possibilita a cumplicidade das três vias que envolvem a arte: do artista, do espectador e da obra de arte. O que faz a arte atingir o status de arte é o envolvimento do espectador com a obra de arte, mesmo que este seja o próprio artista. Entendemos que a diferença, a qual enriquece a própria semelhança, é a inserção da alma do artista e até de um povo, na arte. Aristóteles abre caminho para uma certa libertação do artista às regras pré-estabelecidas. Na mimesis, a arte tem que ser irônica e essa ironia envolve o espectador, diferentemente do cientista. Podemos dizer que arte, enfim, se completa, a partir da relação que estabelece com o objeto artístico. “Se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao reproduzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam”.41 Mc Leish salienta que, aqui, Aristóteles trata de absolutos. Concordamos com o autor, enquanto imitação de realidades, contudo suspeitamos de uma certa pitada de relativismo, quando o Filósofo defende uma melhoria de vida dos personagens, como podemos notar, na exaltação da ética na tragédia. Esta possibilidade abre uma brecha para a participação do artista na obra, mesmo que, para os gregos, a arte também serviria como instrumento de retificação das distorções da própria natureza.
Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas uma seja a imitação, quando o seja de um objeto uno, 38 39 40 41
Mc LEISH, 2000, p.18. Ibidem, p. 18. Ibidem, p. 19. ARISTÓTELES. Poética. XV, 1454b, 8 -10.
assim também o mito, porque é imitação de ações, deve imitar as que sejam uns e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado cada um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo42.
Ao mesmo tempo em que o Filósofo trata da tragédia, aborda, inclusive, as artes visuais ao referir-se a outras artes imitativas. Entendemos, então, por unidade, uma pintura, escultura ou arquitetura, numa seqüência única de ações de harmonia, beleza e ritmo das partes, compondo o todo. Assim, concluímos que Aristóteles preocupa-se com a forma, não apenas como aspecto comparável ao perfeito do divino, porém como beleza agradável de se ver.
Com o tempo, a imitação passou a designar também a reprodução das obras de arte. Vejamos, a seguir, o que nos apresenta Walter Benjamim em Magia e técnica, arte e política: na obra, ele apresenta o texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e revela que,“...em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível”43. Cita a reprodutibilidade técnica desde a prática dos discípulos imitando seus mestres, bem como terceiros interessados em comércio de obras. O autor ainda refere-se à reprodução de imagens a partir da xilogravura, litografia e fotografia alegando que o conteúdo na autenticidade não se reproduz, porque há a ausência do aqui e agora do original. A reprodução manual, contudo, é, em geral, considerada mais falsa do que a técnica, pois, esta ainda possui o recurso de acentuar elementos do original. Benjamin salienta que a técnica de reprodução coloca no lugar da “...existência única da obra, uma existência serial”44, atrofiando a sua aura e prejudicando a tradição. O autor nos oferece uma definição de aura:“...uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: uma aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” 45. Realizando uma transposição do que seja aura para o objeto de nosso estudo no que se refere à iconografia medieval, 42
Ibidem, VIII, 1451 a, 28 –38. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.166 -167. 44 Ibidem, p. 168. 45 Ibidem, p. 170. 43
observamos que toda arte daquele período fascinou e continua deslumbrando pela aura que a impregnou. Admirar um conjunto arquitetônico medieval - esculturas, pinturas e adornos simbólicos - é como envolvermo-nos na sua aura, naquilo que lhe é único e inaudito, porque faz parte apenas de um determinado espaço e tempo; qualquer réplica em outro lugar e em outro período, certamente, estaria desnuda de sua singularidade. Há nas igrejas românicas, quanto góticas, uma função ritual -religiosa- que lhes dá um status aurático, semelhante às obras antigas. Desta forma, a reprodutibilidade técnica, desencadeada mais tarde, desvencilhará a arte do seu comprometimento com o ritual, isto é, a arte será feita com a intenção de ser reproduzida: esta nova forma de representação ligará a obra de arte a um sentido político e não mais ritual.
Na Idade Média, a arte, ainda possui o seu valor de culto. Esse valor faz com que as obras de arte sejam pouco acessíveis, diferenciando-se dos tempos modernos, quando elas passam a ter um valor de exposição. “À medida que as obras de arte se emancipam do seu valor ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas” 46. A grandeza das obras medievais dá a elas um lugar de destaque no âmbito das artes, cujos exemplares são únicos e autênticos, porque, além da técnica perfeita, revestem-se de sua aura religiosa; esta posição peculiar dada à arte medieval foi-lhe concedida bem antes de as artes iniciarem o seu declínio como artes dissociadas do seu valor de culto à magia ou à religiosidade.
1. 1. 4. A proporção como beleza
Notamos que a proporção é uma característica primordial na arte da Antigüidade. Ela vai dar conta da beleza do estilo, da harmonia, da graça e do ritmo. Constatamos que o belo está inserido no conjunto da arte, através da proporção. Esta concepção, inclusive, perdura durante toda a Idade Média, influenciando as construções religiosas e as artes a elas ligadas. 46
Ibidem, p. 173.
O belo, comparável a amável e verdadeiro, é manifestado pelo conjunto harmonioso das linhas, da estrutura da edificação, do ritmo, da graça e do impecável, resultante da proporção. O inverso também é verdadeiro. Quando não há proporção, há falta de ritmo, de harmonia e graça, afastando-se do sentido de beleza. Platão também trata, porém, do prazer instigado pelo belo, como perturbador da alma. Sobre o belo, Plotino (204-270) investiga, em trecho de Sobre a Beleza: “Porque tudo imediatamente ligado à alma é de alguma maneira belo? Todas as coisas belas o são por uma mesma e única beleza, ou a beleza do corpo é diversa da beleza dos outros seres”47? Plotino parte da premissa dos estóicos, calcada na simetria e proporção. Por esse motivo, segundo ele, a beleza seria própria do mundo material. Argumenta, contudo, em favor de que a verdadeira beleza é inteligível, seguindo Platão, mas diz que são evidentes também elementos aristotélicos, como a forma. Assim, passamos a entender melhor a questão da proporção, tão apreciada pelos gregos, desde Policleto, quando o artista respeita as proporções e simetria do corpo humano para realizar o seu ícone.
Plotino revela que a semelhança das belezas depende da participação de uma idéia, faculdade esta que estaria na nossa alma. O feio ou feiúra, segundo ele, seria quando algo se torna privado da idéia e não participa da sua idéia exemplar, ficando fora do plano divino. Por conseguinte, ao contrário, tudo o que receber a idéia, que é bela, impregna também suas partes de beleza. Plotino exemplifica a beleza do fogo, como o belo em si mesmo. Este resplandece e brilha; a beleza da cor provém de uma forma ou idéia, que é a sua luz incorpórea. Assim, o que não resplandece, deixa de ser formoso, pela não participação da cor. Verificamos neste argumento de Plotino, claramente, a estética do feio. Ele concorda com Platão, ao conceber somente à idéia a atribuição de beleza, ou a uma matéria, quando ela absorve absolutamente a sua beleza. Esta não se transfere a uma forma material, sensível, caso não se unifique por completo à idéia. Se este processo não ocorrer, fica implícita a não beleza, o feio. Ainda em Plotino: 47
PLOTINO. A alma, a beleza e contemplação. Trad. Ismael Quiles. São Paulo: Associação Palas Atena, 1981. Sobre o Belo. Eneada 1,6. p. 54.
Tem-se de procurar, pois, por meios parecidos, o belo e o bem, o feio e o mau. Deve-se estabelecer desde um princípio que o belo é também o bem; deste bem, a inteligência tira imediatamente sua beleza, e a alma é bela pela inteligência: as outras belezas, a das ações e a das ocupações. Provém de que a alma lhes imprime sua forma. Esta faz também tudo o que chamamos corpos; sendo divino, e como parte da beleza, faz belas todas as coisas que toca e que domina, enquanto lhes é possível participar da beleza48.
A par desta citação e do que já vínhamos desenvolvendo acerca do pensamento sobre a arte, relativo à tradição antiga na Idade Média, como primeiro elemento da dualidade medieval, observamos que Plotino estabelece uma síntese da tradição filosófica grega: uma união da teoria das idéias e da participação, com elementos aristotélicos da forma, e a teoria pitagórica da harmonia, principalmente com aquela que trata da essência inteligível no mundo sensível. Nesta passagem, Plotino refere-se, inclusive, às relações entre bem e o belo com a alma e inteligência. A alma, como pertencente ao divino, é a origem da beleza; portanto é da alma que provém toda a beleza. Se a inteligência liga-se à alma e se o bem se dirige a ela, como algo superior, bem e belo pertencem ao mesmo gênero, assim como mal e feio incluem-se nas coisas inferiores. Concluímos que beleza e fealdade, para Plotino, inseremse em realidades diferentes, sendo que beleza é a verdadeira; o bem e o belo estão no inteligível. É imprescindível que, a esta altura, façamos um contraponto com o que nos apresenta Aristóteles na Poética quando trata de substância e magnitude: Além disto, o belo _ ser vivente ou o que quer que se componha de partes _ não deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa 48
Ibidem, Eneada 1, 6. p. 59.
quando se olha por tempo quase imperceptível): também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão dd conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade: imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios...). Pelo que, tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.49
Notamos três aspectos presentes na passagem citada: o primeiro é a ratificação da beleza, ainda através da proporção, entendida como magnitude, quando o Filósofo se refere a que cada coisa deve obedecer a um tamanho adequado, nem tão grande, nem tão pequeno. O segundo aspecto é que ele trata de um arranjo ordenado de partes, o que entendemos como harmonia. O terceiro ponto nos leva a refletir quanto a não considerarmos bela uma pintura difícil de se ver por se tratar de ser muito grande ou muito pequena. Esta observação de Aristóteles nos remete a estudos mais recentes da psicologia da percepção da forma, ou seja, da gestalt. As dimensões de uma obra serão como que pré-requisitos para a sua visibilidade, ou seja, pequena para ser vista de perto e maior para ser admirada à distância. Estes fatores, a que Aristóteles já se refere na Poética, constituíram-se, no nosso entendimento, nos princípios da pregnância na gestalt. O pensamento do Filósofo no que se referiu ao aspecto sensível da arte foi repassado, à Idade Média, via São Tomás de Aquino. Todas estas constatações são deveras imprescindíveis para o nosso entendimento sobre a estética e sentido da arte na Idade Média. O pensamento platônico perdura até o século XII através de um neoplatonismo, via Plotino, e, mais tarde, por intermédio de Santo Agostinho, portanto, não podemos nos furtar a dedicar toda esta influência platônica também ao pensamento de Plotino sobre as questões de belo e bem, de feio e mal. Em se tratando de proporção, como vínhamos desenvolvendo o nosso pensamento, o conceito de beleza na linha Platão e Plotino é de suma importância, para que possamos confrontar com as idéias racionalistas de Aristóteles que chegam ao século XIII. São Boaventura fala do prazer, da proporção e do número: “...porque todas as coisas são belas e de certo modo agradáveis, porque beleza e prazer não podem existir sem a proporção e porque a proporção se encontra principalmente nos números, é necessário que em todos as coisas se encontre o número”50. É por analogias que São Boaventura descobre a proporção na criação; por 49 50
ARISTÓTELES. Poética. VII, 1450b, 34 - 44; 1451 a, 1 - 5. SÃO BOAVENTURA, Itinerário da mente para Deus.Cap. II, 10. São Boaventura, obras escolhidas. Tradução Luis Alberto De Boni e, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
analogia na proporção tudo se relaciona e se vincula a Deus51. São Tomás de Aquino também inclui a proporção nas três condições para a beleza e que deleitam a inteligência: “integridade, porque a inteligência ama o ser; proporção, porque a inteligência ama a ordem e ama a unidade, finalmente e, sobretudo, brilho ou claridade, porque a inteligência ama a luz e a inteligibilidade”52. A proporção, portanto, não é eliminada após o século XII, pois ela continua como uma estética de quantidade, aliada a uma estética de qualidade, vinculada à claridade.
Liv. Sulina Ed; Caxias do Sul: Ed. Da Universidade de Caxias do Sul, 1983, p. 179. BOUGEROL, Jacques Guy. Introduccion a San Buenaventura. Tradução Jose Carrillo. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1984, p. 177. 52 MARITAIN, Jacques. Arte y Escolástica. Tradução de Juan Arquímedes Gonzáles. Buenos Aies: La Espiga de Oro, 1945, p. 38. 51
2 A DUALIDADE FILOSÓFICA NA ARTE MEDIEVAL
2. 1. O simbolismo na estética medieval
Tanto inteligível como sensível, na Idade Média, são traduzidos através de símbolos e alegorias. Em tempos modernos e contemporâneos, a tradição realiza facilmente a distinção entre alegoria e simbolismo, mas até o século XIII os termos são usados como sinônimos. A distinção entre alegoria e simbolismo seria, no entanto, que a primeira “...transforma o fenômeno em um conceito e o conceito em uma imagem” 53, enquanto o segundo “transforma o fenômeno em uma idéia, a idéia em uma imagem”54.
Eco fala com relação aos místicos e ascetas da Idade Média. Estes conseguem sentir o atrativo do sensível com maior intensidade do que os demais. Assim, tanto místicos, ascetas e pessoas comuns contribuem para a formação de uma sensibilidade estética na Idade Média.Os cistercienses e cartuxos, através de um estatuto (séc. XII),
53
LEIPZIG, apud ECO, 1989, p.76. MARITAIN, Jacques. Introdução Geral à Filosofia. Tradução de Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado. Rio de Janeiro: AGIR, 6 Ed., 1963, p.76. 54
levantam polêmicas com relação ao uso da seda, ouro, prata, vitrais coloridos, esculturas, pinturas e tapetes. Estes materiais serviriam, segundo eles, para desconcentrar as pessoas.
A propósito, Hugo de Fouilloi fala em mira sed perversa delectatio (um prazer maravilhoso e perverso).O perverso , como em todos os rigoristas, é ditado por razões morais e sociais: isto é, questiona-se se deve decorar suntuosamente uma igreja quando os filhos de Deus vivem na indigência. Mas o mira manifesta um ascenso indiscutível às qualidades estéticas do ornamento 55.
O prazer perverso de que trata Hugo de Fouilloi é um prazer sensível que causa medo ao espírito do cristão. No fundo do seu ser, ao admirar o belo, ele se sente culpado e pecador, pois apreciar a beleza visível e através dela sentir prazer ou êxtase é algo que deva ser reprimido. A decoração suntuosa de uma igreja, mesmo causando este prazer maravilhoso é, ao mesmo tempo, uma afronta àqueles que nada possuem e esta condição moral e ao mesmo tempo de cunho social, reforça o sentimento de culpa do fiel.
Na verdade, o místico, desconfiado da beleza exterior, volta-se à beleza da alma. Assim, místicos, quando ascetas e religiosos, ao reagirem contra o supérfluo nas igrejas, embutem na atitude o convencimento de que existe uma estética sensível nestes ornamentos. O conceito, inclusive, do belo sensível aparece em textos bíblicos, quando sugerem o ideal de beleza feminino:
Mas quando os ascetas e eclesiásticos comentam o “Cântico dos cânticos” e discutem a beleza de esposa...(...) E pensemos no elogio que Balduino de Canterbury faz aos cabelos femininos convincente da beleza de tal penteado, e a explícita admiração do fim exclusivamente estético de tal uso (...) Ou ainda no singular texto de Gilberto de Hoyland, que (...) define quais devam ser as justas proporções dos seios femininos para que resultem agradáveis56.
55 56
ECO, 1989, p. 17. Tractatus de beatitudinibus evangelicis, PL 204. COL. 481, apud ECO, p. 24.
Entre leigos e escolásticos, a atração pela beleza sensível é mais convincente. Segundo Eco, Suger, abade de Saint Denis, cujo tesouro é rico em objetos de arte e ourivesaria, revela seu apreço por toda pedra preciosa, a sardônia, o topázio, o jaspe, o crisólito, o ônix, o berílio, a safira, a granada, a esmeralda, ao se referir aos ornamentos sobre o altar. Fato curioso é que os colecionadores dispunham de objetos de arte luxuosos, mas também peças raras, como relata Eco: “...frente a coleções de três mil objetos,entre os quais setecentos quadros, um elefante embalsamado”57. Isto prova que o medieval faz relação do belo com o bom. Na realidade, há uma fusão agregada à consciência crítica do valor material no contexto da obra de arte.
As artes plásticas criam alegorias derivadas. As artes visuais, mais que a poesia, passa a ter cada vez mais lugar por si mesmas, diminuindo o alegorismo da divindade. São Tomás de Aquino “... diria que é próprio da poesia representar a verdade de forma figurada”58, ressalta Eco. A alegoria evolui, no entanto, no gótico, quando ela representa a própria natureza, como um meio de comunicação. Enquanto o simbolismo faz parte do românico, a alegoria domina o gótico. A arquitetura, os adornos e portais das catedrais góticas são a própria representação da natureza e história humana. A alegoria passa a ser a poética e o discurso plástico da catedral gótica, inclusive mostrando a ligação do Antigo com o Novo Testamento, como por exemplo:
...os profetas serão reconhecíveis por um dado chapéu que a tradição lhes atribui, a rainha de Sabá, lendariamente conhecida como rainha “Pé de Ganso”, teria um pé palmado.(...) Em Chartres, sobre o portal da Virgem, sobressaem, dos lados do ingresso, as estátuas-colunas dos patriarcas. Samuel é reconhecível porque está com o cordeiro do sacrifício de mão esquerda. Abrão pousa os pés sobre o bode, e Isac, defronte dele, cruza resignadamente os braços.(...) Estes personagens exprimem a espera de toda uma geração de precursores do Messias59. 57 58 59
Eco, 1989, p. 27. ECO, 1989, passim. Ibidem, p. 95.
Na realidade, a alegoria realizada nestas catedrais resume uma história, repleta de indícios, onde as imagens passam a ter um papel semiótico e, como expressa Eco, é uma comunicação didascálica. Fazendo uma relação com a própria semiologia como a entendemos hoje, podemos definir estas representações da seguinte forma: o conjunto das imagens é a própria alegoria, dando índice de fatos religiosos ou não; os recursos que cada imagem assume como adereço, são símbolos, os quais já se tornaram convenções. O próprio Säo Tomás de Aquino concorda com esta realidade. A alegoria sempre se fez presente na história sagrada, até porque Deus conta história através de signos, isto é, índices; histórias que significam outras e que necessitam de interpretação de senso espiritual, mais do que do entendimento literal. Ao contrário, a história profana é essencialmente entendida no sentido literal, justamente porque ela não tem cunho metafísico, sendo, porém, puramente factual. Assim, conclui-se que a alegoria e o símbolo a primeira mais que o segundo - fazem parte necessária na didascálica da Idade Média, por esta estar totalmente voltada à religião. E o simples fato de a filosofia humanista já começar a se esboçar no final da Idade Média, faz com que a alegoria, por mais ligada ao espiritual, desse lugar ao símbolo. Este se adapta melhor na representação de fatos, idéias e coisas mundanas e vai tomando espaço, através de convenções humanas.
A participação de Säo Tomás de Aquino, com a introdução do aristotelismo na Idade Média, muito contribuiu para um novo paradigma do sensível. As alegorias passam a tratar das coisas como são na realidade. A representação do Uno através do sensível é substituída pela representação da própria natureza como ela é. E muito se deve também à participação de São Francisco de Assis (ver glossário). A própria catedral gótica passa a mostrar, em sua ornamentação, cachos de uva, um ramo, folhas, flores, tendo, então, um significado real. Esta é a discussão que Säo Tomás de Aquino realiza, quando reflete, em seus discursos, sobre a questão da utilização de figuras simbólicas e alegóricas. Esta nova postura de ver o mundo e a natureza dá impulso a um novo modelo na filosofia e na arte.
SäoTomás de Aquino realiza uma análise sobre o alegorismo litúrgico, o qual não se entendia apenas por palavras, mas de gestos, cores ou imagens. Diz que este alegorismo à luz de uma visão fabulosa e alegórica universal, poderia dar evasão à interpretação múltipla. Ao defender um alegorismo naturalista, em que as coisas significam o que elas são. Esta concepção é encontrada no gótico, quando as coisas valem por elas mesmas e não pelo que significam. Eco ainda relata “...que a criação divina não consiste em uma organização de signos, mas em uma produção de formas”60.
Até a arte figurativa gótica _ que representa um dos ápices da sensibilidade alegórica _ ressente-se deste novo clima. Ao lado das grandes idealizações simbólicas encontramos minúsculas complacências figurativas que revelam um fresco sentimento da natureza e uma atenta observação das coisas. Ninguém jamais havia observado verdadeiramente um cacho de uvas, porque o cacho era, antes de tudo, seu significado místico; nos capitéis, agora, notam-se ramos, hastes, folhas, flores; nos portais aparecem as descrições analíticas dos gestos cotidianos, dos trabalhos agrícolas e das profissões61.
Acreditamos que não estamos diante de uma simples transposição de estética, que ocorre através das transformações no campo representacional, mas de uma mudança de pensamento profundo. É neste momento que ocorre a verdadeira dualidade filosófica na Idade Média, quando um pensamento até então platônico é deixado de lado para dar lugar a um pensamento aristotélico. Sem sombra de dúvida, a contribuição de São Tomás de Aquino é relevante para a formação deste novo paradigma, através da adoção de textos de Aristóteles na escolástica, contudo não é o único. A filosofia aristotélica, calcada mais no sensível do que no inteligível é, na verdade, o que possibilita a característica de dualidade na Idade Média. Entendemos esta dualidade como duas correntes de pensamento, não opostas, mas diferentes, onde o valor sensível abre as portas para outros horizontes jamais imagináveis pelos platônicos, como podemos vislumbrar o humanismo e o individualismo. Assim, em parte, devemos a Santo Tomás de Aquino a efetivação da dualidade filosófica medieval, propriamente dita, bem como a ele podemos dedicar uma importante 60 61
Ibidem, p. 100. Ibidem, p. 100.
contribuição pela dualidade artística, conseqüência da própria dualidade filosófica. Esta contribuição é devida ao esclarecimento, através de uma síntese de doutrinas, do momento artístico que já vem se formado, desde a catedral de Saint-Denis.
Durante toda a Idade Média, a teologia subordina a filosofia. Neste sentido, podemos dizer que, embora a doutrina pagã do platonismo esteja evidente na forma de conceber a realidade e o mundo transcendental, a maior evidência é ressaltada pela fé cristã. Influenciado por Santo Agostinho (354-430), responsável pela cristianização do platonismo em sua conversão, no entanto, a concepção do Uno (Plotino) e do mundo das idéias (Platão) mescla-se ao conceito de Deus, como perfeito, bom e belo.
Tudo deriva de Deus e d’Ele toma a significação na Idade Média. Em se tratando de arte, é óbvio que as representações assumem significados, inseridos neste contexto de religiosidade. Os medievais não são tão salientes, visto que a originalidade é considerada um pecado de orgulho. Justamente por esta repressão, seus feitos artísticos são considerados engenhosos e geniais, pois sempre há algo intrínseco na obra criada e que a identifica como obra de arte.
Há na obra de arte, o reflexo de tudo aquilo que o artista pensa, das suas concepções sobre a arte, tanto como sobre a vida, da sua própria filosofia, como há a manifestação subterrânea dos seus mais inconscientes instintos. Finalmente, aquilo que o artista deixa conhecer de si não é apenas a sua personalidade individual; é a alma coletiva de que é parte constituinte, a de um povo como a de uma época62.
Assim, a arte manifesta, além de outros significados, o pensamento de um povo. Com a arte medieval não é diferente. A Idade Média não é desprovida de uma identidade e de uma sensibilidade estética. Ao contrário, trata-se de uma cultura dos discursos teóricos, filosóficos e teológicos. Neste contexto, a arte está presente, imbuída dos pensamentos e 62
HUYGUE, 1960, p. 169.
conceitos, que se impregnam na iconografia da época. Até por volta de 1200, o que predomina é uma arte ligada ao ideal platônico, isto é, voltada ao inteligível, ao conceito de beleza como perfeição.
A tradição clássica de que a beleza do mundo vem de uma beleza ideal, sendo desta um reflexo, é uma concepção platônica reforçada pelos padres medievais. Assim, os objetos ornamentais são bem vistos e bem vindos, desde que representem um reflexo ontológico da virtude de Deus. Então, não é esta atitude, uma justificativa convincente para o apreço, sem culpas, pelas coisas sensíveis? Ligando o valor estético do objeto, ao bom e belo, numa perspectiva do inteligível, o homem medieval não está livre do pecado pela atração ao sensível? Neste sentido, o inteligível está salvando a consciência do homem transgressor que ousa admirar a riqueza, o luxo e a preciosidade. Assim, está, inclusive, justificada a presença dos símbolos na arte. Algumas ordens religiosas, no entanto, preferem o despojamento na decoração de suas igrejas, para não desviar atenção ao mistério da presença do Cristo na Eucaristia. Algumas comunidades monásticas, como por exemplo, os cistercienses chegam a alguns exageros e vêem com maus olhos qualquer decoração. Alguns edifícios são privados, quase por completo de esculturas e pinturas. É o que ocorre, por exemplo, em Portugal, com o mosteiro de Alcobaça. Quando os cistercienses chegam a Alcôa, por exemplo, ainda no século XII, o estilo da sua arquitetura é austera, sólida e funcional, visivelmente obediente a princípios românicos, opondo-se ao luxo e à opulência; o templo era despojado de todos os ornamentos que considerava supérfluos. São Bernardo proíbe o uso de sedas, de ouro e manda que as cruzes sejam de madeira e os candelabros e incensórios, de ferro.
Nem todas as coisas são signos, mas todos os signos são coisas. O signo representa ou está no lugar de uma coisa. Se os símbolos são a representação do Uno este pode ser aceito, justamente porque cumpre uma função divina e, como tal, também deve ser belo e bom. O símbolo medieval é maneira de acesso ao divino. O simbolismo metafísico tem raízes na Antigüidade. O uso dos símbolos durante a Idade Média é um enraizamento iniciado já na era cristã primitiva. Os cristãos perseguidos pelos romanos são obrigados a se
comunicar de forma a não serem flagrados. Os desenhos e pinturas encontrados nas catacumbas mostram o simbolismo.
Inicialmente essas pinturas limitavam-se a representações dos símbolos cristãos: a cruz—símbolo do sacrifício de Cristo; a palma - símbolo do martírio; a âncora símbolo da salvação; e o peixe, o símbolo preferido dos artistas cristãos, pois as letras da palavra “peixe”, em grego (ichtys), coincidiam com a letras inicial de cada uma das palavras da expressão Iesous Christos, Theou Yios, Soter, que significa “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”63.
Este costume torna-se comum durante toda a Idade Média. Mais tarde são usados também a avestruz (símbolo da justiça), o unicórnio (o Filho unigênito de Deus). Segundo Eco (1989), estabelece-se inclusive o curto-circuito do espírito, delegando, por exemplo, que o branco, o vermelho, o verde sejam cores benignas, enquanto o amarelo e o preto signifiquem dor e penitência; ou indica o branco como símbolo da luz e da eternidade, da pureza e da virgindade. Assim, a forma visível é a imagem da beleza invisível. O visível, ou seja, o sensível, aquilo que deslumbra os sentidos, só é permitido com o objetivo de melhor amar a Deus. Também a beleza do mundo é vista como um reflexo e imagem da beleza ideal. Este, inclusive, é um conceito de origem platônica, desde Santo Agostinho. É a doutrina do aptum, isto é, quando algo é belo em função de outro (doutrina transmitida pela Antiguidade e passada de Cícero a Santo Agostinho, e dele à escolástica). Assim, o simbolismo medieval serve para representar o Uno, o inteligível, através do sensível; já o alegorismo, serve-se, na maioria das vezes, da escritura litúrgica.
Durante a Idade Média, os símbolos e as alegorias têm significados semelhantes. Isto somente veio a se modificar mais recentemente. Na verdade, a alegoria encerra um objetivo imediato. O simbolismo valia-se de uma convenção, a qual, com o passar dos tempos, torna-se universal, como o caso dos ícones que servem como representações signas.Tanto símbolos como alegorias, porém, têm aspectos arbitrários em relação ao real, justamente para dar complexidade e suscitar interpretações por parte das pessoas. Isto 63
PROENÇA, Graça. História da Arte. São Paulo: Ática, 1995, p. 45.
ocorre mais especificamente, quando se tratam de símbolos escultóricos e pictóricos. Na verdade, o sentido contraditório não está no significado, mas no significante. É o caso do simbolismo do Uno, pois ele, em si, não é arbitrário, mas o seu significante, que é o símbolo, pode ou não ser contraditório, pois o que vale é a convenção. O Uno transcendente é diferente de nós, que somos feitos de massa diferente. Na realidade, a criatura humana, como melhor representação de Deus, não passa de um símbolo arbitrário. A própria idéia de Deus, sendo representado como bom e belo, é maior do que a compreensão de bom e belo. Isto explica porque, na Era Medieval, costuma-se simbolizar Deus, inclusive, por figuras monstruosas, ursos, panteras e etc.
Tratamos de esclarecer estes conceitos referentes ao alegorismo e ao simbolismo, justamente porque utilizaremos, neste trabalho, os símbolos, os quais farão parte de toda a estrutura das catedrais da Idade Média, pela pintura e escultura, mas, principalmente pela organização das partes do edifício, que identifica a própria forma humana, sendo que esta última seria a representação de Deus. É importante salientar que estas significações atuam de modo diferente na iconografia e na poesia (literal). Enquanto que as figuras podem assumir signos alegóricos in factis, a escritura quando se refere a Deus como um bode, o faz no sentido figurado, ou seja, alegoria in verbis. Na verdade, as alegorias podem exprimir idéias, não apenas através de palavras e figuras, mas também por meio de cores e sons. Atualmente, estas correspondências signas podem ser detalhadamente estudadas pela semiótica - ramo da semiologia - que por sua vez, tem origem na lingüística. A semiótica, segundo Pierce, é uma ciência que estuda os signos, “ uma conseqüência natural, naturalíssima, das descobertas que ele foi fazendo dentro da própria lógica 64
Até o momento em que o alegorismo e o simbolismo cósmicos prevalecem, como um mundo surreal e fabuloso (no sentido de fábula), podemos dizer que a Alta Idade Média utiliza uma representação voltada ao neoplatonismo. Usa o sensível para expressar o Uno, o divino. Assim, a beleza do mundo, como reflexo e imagem da beleza ideal, é um conceito 64
SANTAELLA, Lúcia. Estética de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento, 1994, p. 156.
de origem platônica. O símbolo vai perdendo o seu sentido arbitrário somente a medida em que o platonismo começa a diminuir, para dar espaço ao aristotelismo. O próprio conceito de beleza, enquanto persiste como uma identificação com o Uno, com o perfeito e o divino, é semelhante desde os gregos antigos: uma beleza imaculada e ligada ao transcendental.
A beleza inteligível envolve, na Idade Média, uma realidade moral e psicológica, inclusive. Ligado a uma beleza metafísica, o medieval possui uma visão mais ampliada da própria beleza sensível, das coisas e da natureza, já que esta está no lugar daquela. A consciência de estética, portanto, é mais abrangente do que a nossa. O feio passa a ter um valor estético hoje, justamente porque o homem moderno e pós-moderno afastou-se do belo inteligível, apregoado por Platão na teoria da forma.
Quando o medieval passa a utilizar o naturalismo, como suporte do simbolismo, este fato vai dando lugar a um conflito de pensamentos, que causa também um conflito de estéticas. Assim, observamos que a inclusão do sensível, na arte, inicia bem antes do que acreditávamos.
Na literatura, há vários textos que tratam do esplendor das catedrais, vilas e castelos. Um exemplo é dado por De Bruyne, quando este se refere a Gregório I:
Diante de tudo se tem uma visão de conjunto da vila: o que primeiro nos impressionará será a grandeza e o número de monumentos. O prazer da visão é a união de um sentimento de profunda estupefação.(...) Porém o sentimento é contaminado por uma emoção religiosa: toda a beleza divina, toda a obra humana eleva a alma em um hino de reconhecimento à sabedoria do Artista divino, que deu ao homem o poder de criar a arte.(...) O belo não se define, se vê; (...) Belo é o admirável. Porém o admirável não se expressa,
nem se compreende.(...) E o admirável não só é o conjunto arquitetônico, mas também sua decoração 65.
O sentimento que envolve o homem medieval, ao admirar um conjunto arquitetônico, por exemplo, não se limita apenas ao encantamento proporcionado pelo visível, mas pela emoção religiosa que esta contemplação oferece. A beleza estabelece-se no sentido de belo e bom, porque está ligada à representação do divino. O belo na arquitetura, por exemplo, não se compreende em separado, mas num conjunto, com a decoração, pintura e escultura. As duas últimas servem à arquitetura e esta não teria todo o seu esplendor, se não estivesse vinculada aos simbolismos das pinturas, das esculturas e decorações.
A escultura, mais que a pintura, mantém uma relação íntima com a arquitetura na Idade Média. Neste contexto, é importante uma reflexão acerca do papel desta linguagem visual, nos séculos XII e XIII, no que se refere às suas implicações com a filosofia platônica e aristotélica, respectivamente. É sabido que a escultura, por si mesma, quase que inexistiu no início da era medieval. Isto foi sendo modificado no decorrer dos séculos. De Bruyne66 cita algumas causas do não uso da escultura, no princípio da Idade Média. Uma delas é a dificuldade de técnica, o que já não acontece com a pintura e as artes menores, inclusive por razões morais. O retrato de modelagem redonda, totalmente tridimensional, é visto com olhos de desconfiança, já que Deus não tem corpo. Assim sendo, o corporal, inclusive, não poderia simbolizar o inteligível e a beleza divina. Assim, os artistas preferem representar o corpo humano no edifício religioso de uma forma mais sutil. Além disso, o templo indica a casa de Deus. No período românico, o templo é o próprio Deus, por uma questão de simbolismo. Já, no gótico, a catedral assume a condição de Deus e homem, pela humanização de Deus, a partir do entendimento dos textos aristotélicos, divulgados na escolástica. Também por este motivo, encontramos alusões referentes a analogias do corpo humano com a estrutura da catedral gótica. 65 66
DE BRUYNE, Edgar. Estúdios de estética medieval. Madrid: Gráficas Condor, 1959, p.83 e 85. DE BRUYNE, 1959, passim.
Também não é comum encontrar bustos de personagens profanos na Idade Média, pelo motivo de a escultura redonda envolver mais sensualmente o fiel do que a pintura. Isto por ela ser considerada mais concreta do que a pintura. Verificamos, neste fato, a clara preferência dos medievais pela pintura para representar o Salvador; além disto, a arte em geral só é bem vista se retrate simbolicamente o poder maior, ou seja, o espiritual.
A idéia de beleza medieval ainda estava ligada ao conceito de belo e com o ser concebido da Antigüidade. Aqui, cabe salientar a filosofia de Platão, que tenta realizar uma síntese doutrinal do pensamento grego. Embora mesclada de certos erros, esta síntese é considerada de grande valor. Não faremos alusões a estes equívocos, visto que não é nossa intenção, mas nos deteremos a reforçar a questão da teoria das idéias.Talvez no ímpeto de reunir tantos e profundos argumentos, Platão tenha voado alto e muito rápido. A sua contribuição é fundamental, contudo, para uma reflexão em nosso propósito, visto que, em toda a Idade Média, a filosofia platônica está presente, mesmo quando nos deparamos com influências antagônicas, como é caso da entrada da filosofia de Aristóteles no século XIII.
Nossa análise sobre o inteligível e o sensível e suas implicações na iconografia medieval, entretanto, principia efetivamente na doutrina platônica. A magnitude e a monumentalidade das construções românicas sustentavam um pensamento pagão, mesmo sendo igrejas cristãs. Aí também estava presente o platonismo, quando algumas ordens religiosas proíbem totalmente a decoração exagerada ou, até mesmo, quando estas aparecem, com o pretexto de identificar a beleza suprema: Deus. Para Platão, o ser é o belo; o sensível é o não-ser67. Desta forma, a decoração, a utilização do ouro, da prata e pedras preciosas seria, sem o sentimento religioso, o não-ser. O fato, no entanto, é que com sentimento religioso ou não, as coisas sensíveis se fazem presente e existem.
...o não-ser, que Platão via no mundo material, é a falta do ser, único real. Para atingi-lo, a “visão intelectual” deve transcender não apenas a dos sentidos, mas a do pensamento racional, do 67
HUYGUE, 1960, p. 182.
“pensamento discursivo”. Pela contemplação fundir-se-á, identificar-se-á com o objeto; é o movimento que Plotino exige do espírito que quer conduzir pelo entusiasmo (...) o abandono de si (...) o encantamento à visão inefável e indescritível, ao êxtase, onde atinge o Uno e Deus68.
É interessante que nos detenhamos na análise de alguns aspectos referentes a esta citação de Huygue. A questão do ser e do não-ser, uma possível herança oriental no pensamento platônico, bem como o contraponto inteligível e sensível é relevante para compreensão do nosso propósito de pesquisa. Iniciemos pelo sentido que Platão dá ao nãoser como a falta do ser. Em primeiro lugar, ao se referir ao não-ser, Platão já está admitindo a existência deste não-ser, a ponto de identificá-lo como mundo material. Assim sendo, o sensível, representado pelo não-ser, confirma a sua própria existência através da natureza e da sua imitação, inclusive por meio da arte. Ora, se o ser é, o não-ser também é, adquirindo um sentido ontológico. Entendemos que o sentido ontológico, aqui, fica claro, enquanto ser e o não-ser pertencem a um mesmo campo de compreensão. Também há um sentido ôntico embutido no não-ser, enquanto mundo sensível, pois este não-ser existe na forma sensível. Desta maneira, acreditamos que Platão, mesmo inconscientemente estaria abrindo caminhos para um novo pensamento, confirmado mais tarde, pela racionalidade e categorias de Aristóteles.
Na Idade Média, até por volta dos séculos XII e XIII, também podemos constatar esta contradição, quando os religiosos utilizam-se de decorações nas igrejas, ou seja, de coisas sensíveis para representar o Uno, o real ser, na qualidade de ser divino. Na verdade, agindo desta forma, o medieval está se valendo do não-ser, para identificar o ser e desta maneira, validando os sentidos, ontológico e ôntico, do não-ser. Isto é semelhante ao que já fora realizado pelos gregos na Antigüidade, pois, como o grego, o artista da Idade Média admite a existência do não-ser através do sensível, ou seja, por meio do simbolismo, por exemplo.
68
Ibidem, p. 182.
Há, inclusive, aqui uma mescla do pensamento platônico com a herança oriental. Enquanto Platão reconhece o indizível, o inteligível, por meio do próprio homem, usando seus sentidos associados à razão, o oriental aspira a vida universal, ultrapassando os limites do homem.
Para os gregos, o belo tem íntima relação com a verdade. As formas e as proporções do seu próprio corpo como módulos deste mesmo universo, decomposto à sua estrutura, dá conta deste pensamento. Assim também é o edifício medieval, estruturado como um corpo e representando a proporção, a qual identifica o belo. Neste ponto, encontramos um outro ponto digno de reflexão. Trata-se da utilização daquilo que é material, a pedra, a madeira, o metal, o vidro e outros com o intuito de chegar mais próximo à imagem daquilo que é transcendental. A iconografia medieval dá uma mostra visível de todo esse processo. Citamos o estilo românico como típico da concretização deste pensamento. O edifício sagrado - pela sua monumentalidade e peso - define o belo entendido como Uno e divino. Este Uno, entretanto, está num mundo de idéias, enquanto o edifício pertence ao mundo sensível. Mesmo adquirindo um valor simbólico, entendemos toda a manifestação artística como expressão humana, portanto impregnada de não-Ser. Esta atribuição é negada por Platão. Neste sentido, a arte da iconografia, além da finalidade a que já nos referimos, atua também como um elo do homem com a espiritualidade.
Lanz, faz uma retrospecção ao pensamento antigo, cujo entendimento julgamos de imensa importância, para então podermos nos situar na Filosofia medieval. Assim, ele declara:
Pouco a pouco, desta vez olhando de fora, os gregos constaram, não mais como vivência meio consciente e tampouco como conclusão lógica, que havia por trás dos acontecimentos e das coisas uma ordem racional, uma lógica intrínseca a qual deram o nome de nous O nous era algo objetivo, com existência própria, sem necessidade do sujeito pensante. O próprio pensar, porém, era considerado pelos gregos como algo bem diferente do que é a filosofia moderna. Hoje, o homem que pensa é considerado produto dos seus pensamentos. Na antiguidade, pensar
era perceber uma realidade existente, repetí-la e reproduzí-la. (...) raciocinar significava ligar objetivamente os conceitos entre si69.
Refletindo sobre as palavras do autor, compreendemos que o cerne da questão enunciada é o conceito de pensamento e razão, dado pelos povos, em diferentes momentos da História. Percebemos a distinção entre a forma de ver o raciocínio dos antigos e dos modernos. Enquanto na Antigüidade, pensar é chegar à percepção da realidade, isto é, o pensamento é uma produção do próprio homem e por isso não tem implicação direta com o nous, pois este é independente. Já, num conceito moderno, é o inverso, isto é, o homem é considerado produto do seu pensar. Neste interim, devemos nos deter na forma de ver a realidade dos medievais, que herdam pensamentos de filosofias como o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo, o epicurismo e o neoplatonismo, inseridos numa fé cristã.
Alguns historiadores argumentam que não há uma filosofia propriamente dita na Idade Média, comparada à Antigüidade e ao Renascimento, isto porque a teologia teria tirado o seu brilho, e quando existiu, foi num sentido diferente e impregnava o cristianismo. O cristianismo apresentou-se no seio do helenismo e do judaísmo, contrapondo-se ao primeiro e aperfeiçoando o segundo. O nascimento de Cristo marca o início de uma filosofia. Ora, sabemos também, que o pensamento pagão convive com o cristão, no mínimo, durante dois séculos, resultando posturas opostas.
O movimento de estudos patrísticos e medievais desenvolveu-se no século XIX. Ora, desde as origens deste movimento, uma cisão radical aparece entre historiadores racionalistas e historiadores crentes; estabelece-se um debate permanente entre estas duas escolas, que propõem interpretações do pensamento cristão radicalmente opostas70.
69
LANZ, Rudolf. Passeios através da História: à luz da Antroposofia. São Paulo: E Antroposofia, 1985, p. 70. 70 STENBERGHEN, Fernand Van. História da Filosofia. Período Cristão. Tradução J. M. da Cruz Pontes. Lisboa: Gradiva, 1984, p. 21.
Os racionalistas são radicais e acreditam não ter existido filosofia no período intermediário, identificado como Idade Média e como um período obscuro e bárbaro que distancia o humanismo antigo do humanismo moderno. Do lado dos crentes, há a defesa de filosofias cristãs. Segundo Stenberghen, o que leva os racionalistas a desdenhar a Idade Média é precisamente aquilo que constitui o interesse excepcional deste período.
Com a difusão da imprensa imprimem-se obras de Aristóteles e de seus comentadores, Avicena e Averróis; há também uma publicação de teologias; para os crentes, o que resta é decifrar o que é puramente filosofia e o que é teologia. Assim, a filosofia escolástica tem importância relevante em todas as áreas do conhecimento medieval.
A Filosofia Escolástica não desempenhou um papel capital somente na formação e na evolução da Teologia e das ciências de observação; (...) É impossível decifrar o simbolismo das catedrais, os seus baixos-relevos, as suas estátuas, os seus vitrais, sem conhecer o pensamento filosófico e religioso que inspirou os arquitetos e seus colaboradores71.
Cumpre-nos salientar que a filosofia escolástica está ligada à teologia, mas que também influencia o trabalho dos criadores das obras artísticas da Idade Média, dirigindo uma forma especial de pensar à iconografia e norteando técnicas renovadas para bem construir algo que esteja à altura das ciências maiores.
A transformação da escolástica marca o fim da Idade Média, porém, fica claro que ela contribui para um enriquecimento da consciência filosófica e uma maturidade do espírito. 71
Ibidem, p.24 e25.
2. 2. A estética dos vitorinos
Uma síntese dos acontecimentos e juízos do século XII pode ser encontrada nas obras de Hugo de São Vitor, o primeiro esteta da Idade Média e seu discípulo Ricardo de São Vitor. A questão da beleza é tratada numa teoria de inspiração mística e dá sugestões sobre uma beleza formal. Hugo de São Vitor é sensível, quanto ao sentido alegórico das coisas, qualidades formais, mas ainda insiste que por si mesma, cada uma nos expressa algo de ideal divino.
2. 2. 1. Os fundamentos ontológicos da estética vitorina.
De Bruyne expõe o ponto de vista de outros autores de São Vitor: o fim supremo de toda a atividade humana, neste mundo, é prover as necessidades da vida e restaurar em nós a imagem de Deus. Isto é, as necessidades materiais se subordinam às ciências profanas e às artes mecânicas, ao passo que a restauração da imagem divina conduz à sabedoria e atos morais. A restauração da imagem é possível pela sabedoria e virtude; a sabedoria é adquirida através da filosofia, da teologia e da mística, juntas, com o objetivo de revelar o invisível. Assim, temos dois caminhos para se chegar a este objetivo: um de ordem da natureza e outro por graça da fé. Sendo que a operação humana tem um duplo objeto, o conhecimento e a atividade, e que o primeiro vem também de uma outra fonte dupla, a natural e a sobrenatural, tanto pensamento quanto meditação e contemplação, podem versar
sobre a natureza, quanto sobre o texto da Escritura, culminando com a experiência moral. Assim, para a aquisição da sabedoria, é inegável que nas etapas do pensar, meditar e contemplar, estejam presentes emoções também estéticas, pois, principalmente por ordem da natureza, o homem necessita do visível e/ou palpável para chegar ao entendimento mais plausível do invisível. Por isso, o visível é imperativo no transcurso da aquisição da sabedoria, como simbolismo do invisível, do divino. Neste sentido, tanto as representações da arte românica, as quais refletem o transcendental, quanto da gótica, cujas decorações mostram valores em si mesmas, o prazer estético é semelhante. Em ambos os casos, a contemplação do visível leva, inclusive, ao conhecimento. Segundo De Bruyne, na Escritura também há dois sentidos: o histórico, natural, literal; e o alegórico, espiritual, sobrenatural.
Na beleza da natureza sensível, há dois aspectos ontológicos, ou seja, duas atitudes estéticas: uma interior e outra exterior; a primeira relaciona-se ao espiritual e pela fé, uma beleza pura por ser divina, transcendental. A segunda é da natureza sensível, seja através de alegorismo ou simbolismo.
Por dentro está dotada de razão, orientada pela contemplação do invisível; por fora, está dotada de sensibilidade que goza pela contemplação do mundo visível.(...) Porque a forma visível e, por conseguinte símbolo, o signo e a imagem da invisível beleza de Deus: (...) Do mesmo modo que a beleza sensível corresponde a una beleza ideal de imagem é o símbolo de um prazer infinito que o anima secretamente72.
Conforme a visão de De
Bruyne, Hugo de São Vitor, ao mesmo tempo que
recrimina o prazer sensível, alegando que este afasta o fiel da contemplação divina, na realidade ele era um simbolista, pois defende o visível, quando admite o esplendor de Deus através de efeitos formais, isto é, sensíveis. Na verdade, para ele, a forma em si não é bela, 72
De BRUYNE. 1959, p. 221 e 223.
no sentido de que não pertence ao mundo inteligível. Isto, de acordo com o pensamento platônico seria considerado feio e, portanto, o não-Ser; contudo, a mesma forma dita feia, torna-se bela, para São Vitor, quando representa o sensível, desde Santo Agostinho, estampado na visibilidade do simbolismo. A mudança que ocorre a partir de Santo Tomás é que este sensível passa a ser utilizado na arte, de forma mais escancarada, não mais como representação do inteligível, porém identificando a própria forma visível da natureza.
Em relação à estética, Ricardo de São Vitor diz que a razão e a inteligência se distinguem pela maneira de conhecer. A primeira discerne, julga, distingue entre o visível e o invisível, isto é, entre o do verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Já a segunda é a visão contemplativa, sintética e intrínseca, possuidora da verdade. De Bruyne esclarece que ambos os vitorinos concordam que há três tipos de conhecimento espiritual: o pensamento fugitivo (cogitatio), meditação (meditatio) e a visão contemplativa (contemplatio). Para Hugo de São Vitor, a razão constitui-se numa ciência, enquanto a inteligência, através da contemplação, eleva-se à sabedoria. Neste sentido, para ele, a contemplação, em seu sentido estrito, é sempre religiosa, pois tem como objeto chegar a Deus. Nem Hugo de São Vitor nem Ricardo de São Vitor se detêm em estabelecer definições em função da contemplação sensível, em si mesma. Portanto, mesmo fugindo da valorização do sensível, os vitorinos admitem a presença dele e, inclusive, o fascínio pela beleza sensível, quando a defendem como símbolo do divino. Neste sentido, podemos constatar que a natureza sensível sempre fez parte da arte na Idade Média, mesmo em templos platônicos.
2. 3. A Escola de Chartres e a filosofia escolástica.
A Escola de Chartres, mais especificamente no século XIII, constitui-se num centro de encontro de dois pensamentos filosóficos: o platonismo e o aristotelismo. O primeiro firma-se a partir da evidência de duas correntes da civilização ocidental, ou seja, a herança greco-latina e o impulso judaico- cristão. O segundo apresenta-se através do uso da razão. A Escola de Chartres, através de Fulberto (+1029), contudo, torna-se o centro mais conhecido do ocidente, já no século XII. É ele, inclusive, que consagra um caráter matemático à música, encantando a todos.
A Escola de Chartres teve como protagonistas um grupo de eclesiásticos da recém -fundada ordem dos cistercienses, (...) entre eles Alanus ab Insulis (Alain de Lille), Bernardo Silvestrre, Bernardo de Chartres e João de Salisbury (...) Os filósofos (...) ensinavam, todos, um platonismo cristão. Estavam, de certa forma na tradição dos antigos mistérios pré-cristãos 73.
A Escola de Chartres contribui com uma mudança de pensamento na Escola de Cister, pois alguns de seus componentes estudam e lecionam em Chartres e, ao mesmo tempo que levam uma tradição platônica, também recebem os novos textos aristotélicos ali interpretados.
Segundo Lanz, os pensadores pertencentes às sete disciplinas da Escola de Chartres escrevem todo o tipo de literatura. Juntamente com obras de discussão filosófica e religiosa, também elaboram poesias; seus temas evidenciam as forças atuantes, e os seus espirituais nada são senão as antigas idéias platônicas, não como alegorias, mas imaginadas como possuindo existência espiritual fora do mundo criado.
Com a chegada e impacto dos pensadores árabes, cabe à filosofia escolástica lidar com essa realidade. Assim, as universidades recém-fundadas de Paris, Oxford e outras, têm de renovar seus conceitos para argumentar a favor ou contra Aristóteles. Entre os dominicanos, o choque de opiniões é violento. Eles têm, no entanto, algo em comum: a profunda religiosidade ligada à vontade de usar o intelecto e a razão para o entendimento de problemas. Compreendemos, assim, um ponto a favor de Aristóteles, quando tanto 73
LANZ, 1985, p. 140.
platônicos, quanto aristotélicos concordam em usar a razão e o intelecto para resolver questões de discordância. Lições de lógica e racionalismo produzem-se até entre os que argumentam mais em relação à fé do que à razão. Ora, sabemos que não existe uma contradição entre fé e razão, por isso não nos parece um antagonismo tentar demonstrar pela razão a validade das revelações da fé. Temos notícias que alguns nomes da Patrística já haviam iniciado a utilizar a razão, o que segue Anselmo de Cantesbury, que usa argumentos e provas lógicas para demonstrar que Deus deveria existir.
O conflito se forma, entretanto, entre pensadores defensores do pensamento platônico e aristotélico. Como já foi exposto neste trabalho, também Platão era pagão e nem por isso deixa de ser estudado pelos escolásticos desde Santo Agostinho, filósofo responsável pela cristianização do platonismo. É neste ínterim que Alberto Magno e São Tomás de Aquino exigem que Aristóteles seja consultado e comparado com a doutrina cristã. São Tomás de Aquino escreve duas obras importantíssimas no que se refere à ligação dos ensinamentos da Igreja e as idéias de Aristóteles: a Summa Theológica e a Summa contra Gentiles, esta última para refutar os árabes.
Um detalhe nos faz refletir sobre a reação, por parte de alguns escolásticos, à entrada de estudos de Aristóteles na Idade Média. Este fato nos faz pensar em duas hipóteses: a primeira é justamente a da inclusão de textos aristotélicos na escolástica, num momento em que o platonismo, revestido de cristianismo, já se tornara um pensamento convencional. É compreensível que as idéias platônicas inseridas nas ordens religiosas, as quais podemos resumir na Escola de Chartres, não tenham se firmado de um momento para o outro, e sim que isto tenha ocorrido após séculos de lenta absorção pela própria Igreja. A segunda hipótese seria, justamente, a de uma exigência repentina pelos estudos de textos aristotélicos, também o impacto que esses causariam e na realidade causam, ao tentar usar o instrumento do pensamento e da razão para elevar-se a Deus e conhecer as coisas transcendentais. O próprio Säo Tomás de Aquino reconhece, honestamente, que o intelecto
tem seus limites e que alguns aspectos do divino só seriam percebidos através da Revelação.
...a escultura e a arquitetura dos gregos eram a projeção visível da atitude mental deles. Algo semelhante aconteceu com a filosofia da Escola de Chartres e com o pensamento escolástico, projetados na arte com a arquitetura românica e gótica. Pela primeira vez na história da arte, o espaço interior ficava no centro dos anseios. Ou antes: a harmonização do aspecto exterior com o espaço interior. O templo grego, hindu ou chinês era vivenciado de fora. Para se compreender a catedral, é necessário entrar nela. Na penumbra do espaço, no encontro das colunas e dos arcos, nas alturas, no jogo das linhas e dos volumes há um elemento de imaterialidade, não obstante o peso do material empregado. Há muita “fé” no ambiente interior e exterior da catedral, mas também muita racionalidade. Costuma-se falar em elevação da alma dentro das catedrais góticas; houve também uma maravilhosa elevação da alma na filosofia de Tomás de Aquino74.
Se compararmos a catedral românica com a gótica, encontramos algo comum, a espiritualidade, a monumentalidade, a imponência, o convite a penetrar nela; mas também vamos nos deparar com particularidades que as diferenciam, como o aspecto sombrio das românicas e a luminosidade do gótico. O interior da igreja românica favorece ao recolhimento do fiel, em um ambiente próprio a uma meditação consigo mesmo, pela característica arquitetônica do edifício: pouca luz, paredes espessas, escassez de janelas, pouca ou quase ausência de decoração, um eficaz reaproveitamento de construções antigas pagãs, pelas quais, mais tarde o estilo vai receber o nome de românico, justamente por se assemelhar às edificações romanas. Em contrapartida, na catedral gótica, vamos encontrar uma luminosidade fantástica proporcionada pelas coloridas rosáceas e vitrais nas paredes leves, compostas pelos arcobotantes. Estes dão suporte às pilastras, contribuindo para a efetivação da verticalidade, por meio das torres pontiagudas e dos arcos ogivais. A espiritualidade do cristão, ao penetrar numa catedral gótica, é diversa daquele que se recolhe ao recinto da românica. A gótica, repleta de decoração, onde o sensível surge como uma apologia à natureza e às coisas que rodeiam o próprio homem, proporciona um ambiente de elevação espiritual, estimulado pelo esplendor da arte. A respeito desta mudança de atitude estética, Huygue ressalta:
74
LANZ, 1985, p. 145 e 146.
Que impõe a filosofia nova senão uma razão que funciona, por indução, a partir da experiência sensível, em vez da razão que funciona, por dedução, a partir de verdades estabelecidas? E não é isso a inversão de situação que a passagem do românico ao gótico representa na arte75?
Huygue questiona que o estilo gótico seria o resultado de uma vivência através do sensível, isto é, uma arte, que representa uma filosofia. Diz que esta seria a conseqüência de etapas, as quais vão tomando força aos poucos. No nosso entendimento, o gótico forma-se por indução, porque se aplica através de posturas novas, que vão sendo experienciadas, combinadas e concluídas: a que chamamos de estética do sensível. Quando o autor, através de uma interrogação, manifesta-se sugerindo que o românico seria uma razão que funciona por dedução e a partir de verdades estabelecidas, nosso parecer é que o românico, ao contrário do gótico, não chega a ser uma culminância de um pensamento que vai tomando corpo; porém é o retrato de uma verdade já formada em uma outra cultura e que apenas é ratificada: ao que denominamos a estética do inteligível. Neste sentido, a transformação, pela qual passa a arte medieval, é uma mudança de visão por meio da razão, ou seja, é a razão que toma nuances diferentes em um momento e outro e que faz a estética assumir o papel de testemunho de uma filosofia. Há, no entanto, algo em comum na arte românica e gótica, além do fator razão, o espírito cristão. Na verdade, somente na Idade Média temos uma ciência que abarca, inclusive, a filosofia: a teologia. É ela que marca o ponto de união entre dois momentos filosóficos e artísticos tão distintos: na Filosofia temos o platonismo e o aristotelismo; na arte deparamo-nos com o românico e o gótico.
A fé na Idade Média arrebata toda a alma, coração e inteligência; daí provinha o prodigioso equilíbrio da arte gótica, na qual simultaneamente se satisfazem os sentidos pelo realismo, a razão pelo vigor e a lógica construtiva e pelo simbolismo das aparências, a sensibilidade enfim pelos seus arrebatamentos mais elevados76. 75
76
HUYGUE, 1960, p. 192 e 193.
Ibidem, p. 371.
Para entendermos o verdadeiro sentido da arte gótica, devemos compreender a filosofia que a resulta, bem como precisamos perguntar-lhe, qual o seu significado. Quanto a questioná-la, deixaremos por conta das leituras de imagens, as quais farão parte do último capítulo deste trabalho e das quais faremos alusões, no momento certo. Acreditamos, contudo, que seja a hora de nos manifestarmos acerca do que realmente a arte gótica representa para o homem medieval. O que Huygue declara acima é que a imponência e equilíbrio da arte gótica arrebatam o homem como um todo, pois a sua estrutura física vai além do visível, iluminando a alma, envolvendo o coração e satisfazendo a razão. A sensibilidade chega ao seu ápice de encantamento. O conjunto majestoso de uma catedral, ao mesmo tempo em que, impressiona o contemplador, arrebata-o para as alturas e este chamamento é visível, através de seus arcos ogivais e da verticalidade de suas torres pontiagudas. Os arcobotantes, além de serem um recurso arquitetônico, possibilitam toda a leveza rendada das nervuras internas, bem como a inclusão dos imensos vitrais coloridos, formando paredes translúcidas, das quais resulta a luz. Nos seus portais, compostos de trifórios, representando a Santíssima Trindade, há um carregamento de baixos-relevos. Estes enaltecem a natureza, a sua beleza própria, fazendo com que o fiel não se esqueça de que o mundo é belo.
A arte gótica resume-se na satisfação dos sentidos pelo uso de ricos materiais, pela técnica da feitura da iconografia e pelas representações do próprio mundo sensível. A expressividade é a característica comum a todas as linguagens artísticas, como meio de deleite.
2. 4. O inteligível e o sensível na arte da Idade Média
Percebemos até aqui que a implicação do inteligível e do sensível é visível em nosso trabalho. É uma questão de dois pensamentos distintos: o platônico e o aristotélico. Mesmo que nosso foco principal seja a forma de como o aristotelismo influenciou estética medieval, não podemos fugir a entrar em reflexões platônicas, visto que o período, até 1200, é norteado pelas idéias de Platão e conseqüentemente de Plotino e Santo Agostinho, como já vimos no capítulo anterior. É imperativo, portanto, que nos detenhamos um pouco em Platão, especialmente sobre a questão da arte do trompe-l’oeil quando ele a designa, como skiagraphia, aparência enganadora que dá ao espectador a ilusão de profundidade, seja por meio da perspectiva, do controle da luz e sombra ou jogo de cores.
Com efeito, o trompe-l’oeil deve ser visto de uma certa distância (Teeteto, 208e) e de um certo ponto de vista. Se se estiver perto demais, a impressão desaparece e a ilusão dissipa-se na conclusão, como os falsos prazeres (República, 586 b, c). Platão condena, portanto, essa arte moderna cuja essência é a mimese, porque gera o sentimento do real, mas segundo um único ponto de vista ao passo que a contemplação Idéias, das verdadeiras realidades, evoca o movimento de um homem que admira estátuas. Uma vez que, por definição, a imitação não pode ser perfeita, porquanto a perfeição destruiria a imagem e redundaria na identidade (Crátilo, 432 b). A imitação bem sucedida do trompe-l’oeil é, pois, simultaneamente verdadeira e falsa; ela é e não é (Sofista, 240 b, c): consiste num perturbador entrelaçamento de ser e de não ser, um me ón. (...) Assim, Platão reúne o pintor, o poeta e o sofista numa mesma definição do trome-l’oeil, da aparência enganadora e dúplice77.
Desta forma, a pintura, como a poesia, distancia-se do verdadeiro ser em Platão, produzindo simulacros, isto é, uma simulação da realidade, um mundo falso. Esta idéia de simulação assume um caráter mais atrativo do que o real e é exatamente este o ponto da concepção que vai repercutir, mais tarde, na Idade Média, culminando com as proibições ao uso de decoração ditados pela Igreja e assumidos por certas ordens religiosas, como a cisterciense. Esta última proibia totalmente o uso de decoração nas igrejas românicas, até por volta de 1200. A cristianização do platonismo, através de Santo Agostinho, veio 77
LACOSTE, l986, p. 15.
impregnada deste simulacro, o qual não era aceito pela religião católica, visto que, além de não representar o inteligível, também tinha a função de distrair os fiéis em oração, embora que, quando aceito era justamente com o pretexto de identificar o inteligível, o Uno. É por este motivo que não vamos encontrar muitas pinturas e adornos exagerados nas igrejas românicas, diferenciando-se das góticas. Nestas últimas, a decoração e o uso de pinturas já são bem aceitos, pois o sensível, ou seja, o não-ser veio substituir o inteligível. Neste momento, deparamo-nos com o problema da beleza ligado à questão do ser e do não-ser.
A beleza e seus análogos são o que permite tornar a imitação verdadeiramente a reprodução da Idéia, da forma, do modelo. Na verdade, enquanto Platão condena a arte ilusória, ele reconhece, também, o poder da estética, o fascínio que ela desperta no espectador e, por esse motivo, atribui-lhe uma ontologia inferior. Trata-se da mesma atração que vamos encontrar entre os medievais. Por estas razões todas, temos que tratar da estética a partir de Platão, embora ele a condene. É na estética, porém, que encontramos os argumentos platônicos para a sua concepção de que o ser é o belo e o não-ser é a imitação da imitação. Neste ponto, porém, concluímos que, ao admitir a existência do não-ser, Platão dá-lhe um valor ontológico, mesmo que inconscientemente.
Segundo Maritain, e com relação ao pensamento platônico, esta é uma forma preciosa de transição, mas são justamente os seus equívocos - tratados por meio de metáforas ou símbolos, ou até mesmo passando por cima ou abandonando temas – os pontos abordados por São Tomás de Aquino. Por reunir o pensamento platônico e o aristotélico a outras filosofias, São Tomás de Aquino é considerado um filósofo e teólogo sintetizador de doutrinas na Idade Média, evidenciando uma mudança de paradigma. Maritain defende que a filosofia platônica poderia ser considerada em estado embrionário ou em estado de vir-a-ser, desenvolvendo-se em Aristóteles, o qual consegue estabelecer “...a posse da realidade pela inteligência humana”78. Aristóteles coloca, junto às coisas, as 78
MARITAIN, 1963, p.57.
substâncias destas mesmas coisas. Há, sim, nas coisas, um elemento inteligível e imaterial, a que Aristóteles chama forma, que não está separado das coisas. Por isso, as coisas individualmente são a realidade e não ilusórias como Platão assegurava. É neste momento que entra em cena o sensível, como realidade mais próxima ao homem, e o inteligível encarnado nesta realidade. O mundo sensível não é apenas uma imagem que substitui imperfeitamente um ser divino, mas um ser que se assemelha a outro ser. Assim, surge com Aristóteles a ciência da realidade sensível: a física.
É imprescindível que nos detenhamos no cerne do problema: a entrada do pensamento de Aristóteles e a concepção da realidade sensível, transformando a visão dos artistas da época se queremos saber de que forma o aristotelismo contribui para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII. Enquanto o estilo românico volta-se a um platonismo, onde a decoração só é aceita se mostre o inteligível, o sensível passa a conquistar espaço, através da representação da natureza, enfeitando os capitéis e portais das igrejas góticas. Um outro fato a ser considerado, é a atração dos medievais pela luz, o que possibilita a criação dos vitrais multicoloridos, cujo tema será abordado ainda neste segundo capítulo.
Evidentemente, não podemos mencionar a dualidade na Idade Média, sem lembrar o processo e o momento em que um pensamento filosófico passa a ocupar espaço do outro, isto é, quando o aristotelismo substitui o platonismo, no século XIII. Por este motivo, tratamos, no início deste capítulo, sobre o pensamento platônico impregnado no cristianismo, firmado a partir da influência de Santo Agostinho o qual, em seu itinerário realiza uma relação entre o Espírito Criador, Deus, com o mundo inteligível. A partir disto, passamos a realizar uma reflexão com o pensamento de São Tomás de Aquino, que evidencia uma tendência com Aristóteles e com o mudo sensível. Vale ressaltar, contudo, que não é nosso propósito dissertar sobre a vida de Santo Agostinho e de sua filosofia, mas sim sobre a sua influência no pensamento medieval, especificamente no que se refere à síntese do platonismo com o cristianismo, até 1200. É evidente a revelação de Santo Agostinho em alguns trechos de Confissões. Influenciado pelo neoplatonismo, ele mostra
como esta Filosofia permite uma aproximação com o cristianismo, atribuindo uma importância ao mundo abstrato e espiritual. Santo Agostinho mostra, no entanto, a forma como um saber é superado pela revelação e pela fé do cristão. Em A Cidade de Deus, ele tenta responder às críticas daqueles que rejeitaram o Cristianismo, considerando que os homens fiéis pertenceriam à “cidade de Deus” e os outros comporiam a “cidade dos descrentes”.
A cristianização do platonismo reflete-se, mais tarde, no pensamento dos vitorinos, dos cisterciense e dos cartuxos. Os vitorinos propagam o estudo e o ensino teológico com relação à reflexão sobre como provar a existência de Deus, por meio de Santo Agostinho.
Pelos sentidos, não se vai além da opinião. Mas a inteligência é capaz de certeza, e a primeira de todas tem por objeto o ser pensante.(...) Por outro lado, a inteligência tem por objeto o mundo inteligível; conhece verdades eternas, necessárias e imutáveis, os princípios da lógica, das matemáticas, da estética, da moral, etc.; ora, o espírito humano, contingente mutável, não poderia dar-se conta destes caracteres da verdade objetiva, que tem manifestadamente um valor transcendente ao próprio pensamento; estas verdades, portanto, só podem encontrar o seu fundamento em um Espírito Superior do espírito humano, fonte primeira de todo o pensamento, enfim em um Espírito criador, a que chamamos Deus79.
É evidente que a cristianização do platonismo, desde Alexandria e através de Santo Agostinho, especificamente, ocorre lentamente e de forma a constituir um pensamento filosófico. Ocontece que uma tradição pagã é embutida numa doutrina cristã, unindo o inteligível a Deus, ou seja, o transcendental ao divino. Neste sentido é imperativo que nos reportemos a investigar o próprio pensamento agostiniano: uma das melhores realizações históricas da filosofia da participação, sintetizando o mundo criado como uma participação deficiente de Deus, Ser supremo, Pensamento de Amor subsistente. 79
STENBERGHEN, 1984, p. 46.
Platäo possui, na sua filosofia, um caráter conservador. O idealismo da sua doutrina se “...enraíza na sua aristocrática da vida”80.
A elite espiritual a qual, em seu entender se deveria confiar a administração e a direção do Estado pertence`a velha classe superior privilegiada. O povo vulgar, a seu ver não tem o mínimo direito a tomar parte nessa direção. A sua teoria das idéias é a expressão filosófica clássica do conservadorismo, o padrão de todo subseqüente idealismo reacionário. Todo o idealismo que separa o mundo de formas intemporais, de normas puras e de valores absolutos do mundo da experiência e da prática corresponde, de certo modo, a uma renúncia à vida, no sentido de contemplação, e como tal envolve o desistir de toda as tentativas de alterar a realidade (...) O conservadorismo político de Platão é em larga medida, responsável pela sua arcaizante teoria de arte (...) Opõe-se a tudo que há novo em arte, como a toda a inovação em geral, suspeitando em tudo que é novidade, sintomas de desordem e decadência81.
Entendemos a arte como sendo também, o reflexo do pensamento de um povo. Assim, a Teoria das Idéias de Platão, privilegiando o absoluto, em detrimento do trivial e sensível, repercute na vida social do povo antigo, da mesma maneira como torna a invadir a forma de sentir e agir do povo medieval, embora que amenizado por um neoplatonismo, vindo através de Plotino e posteriormente por meio de Santo Agostinho. O autoritarismo, representado pela classe dominante na época de Platão, que deveria dirigir o Estado no tempo românico é substituído pela Igreja. A rejeição dos poetas por parte de Platão tem o mesmo significado quanto à exclusão da arte, dita sensível, pelos medievais, até 1200. Os pintores e decoradores medievais, assim como os poetas gregos da Antigüidade, representam, através de sua arte reflexiva, uma ameaça ao poderio reinante em cada época, que paira sobre a massa, considerada vulgar.
80
81
HAUSER, Arnold. A História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre JOU, 1972. p. 142.
Ibidem, p. 142.
É contra uma insistência autoritária, que a filosofia de Aristóteles, ainda em Atenas e mais tarde na escolástica, via São Tomás de Aquino, leva a uma reviravolta em termos, inclusive sociais. O que a tragédia deixa claro, em Atenas, é que o elemento emocional está prestes a tornar-se dominante, servindo de purificação, por meio do sofrimento e do terror. Quando Aristóteles é retomado, em seus textos, já em meados do século XII e se firmado no século seguinte, há a consolidação do propósito do Filósofo, por meio da valorização do sensível, do emprego do naturalismo e da arte popular. Entendemos que, em São Tomás de Aquino, Aristóteles pode concretizar o seu intento.
O conceito de dignidade do aristocrata grego é diferente do nobre medieval. Digno, para o antigo, está atrelado à idéia de heroísmo, enquanto que o nobre da Idade Média, recebe da nova classe burguesa que surge, um outro conceito de dignidade, isto é, baseado na valorização do trabalho. Desta forma, o sentido intrínseco de trabalho também possibilita que a arte, tida como habilidade, adquira nuances diversas, num momento e noutro. A arte, na Antigüidade é “... considerada como uma simples profissão manual e o artista como um artífice vulgar, que não participava do valor espiritual do saber ou da educação”82. Verificamos que no desabrochar da burguesia, ainda na Alta Idade Média, e enquanto o trabalho passa a ser visto como fator de dignidade do homem, também a arte adquire um status privilegiado na escala de valores do povo. Esta é uma razão social e filosófica de a arte passar a ter um lugar de destaque, ainda na Idade Média, preparando um terreno fértil para ela em tempos vindouros. Assim, o sentido metafísico intrica-se no social, pois além, de a arte retratar o modo de o medieval ver a realidade, manifesta, inclusive, a sua forma de viver. Existe, na verdade, um grande contraste entre a arte paleocristã e a da alta Idade Média. Enquanto a primeira possui um caráter espiritual e psicológico, a segunda adquire formas artísticas ricas em cunho filosófico e social. Costumamos dizer que a arte, para os gregos, significava um conhecimento e que para os medievais, uma habilidade, entretanto, constatamos que ela não perde o seu atributo antigo, em detrimento do recebido na Idade Média. A arte assume a posição respeitada 82
HAUSER, 1972, p. 173.
durante o período gótico, justamente porque, à idéia de saber, lhe é agregado o conceito de habilidade, tanto que, na Escolástica, existem disciplinas denominadas artes mecânicas e artes liberais.
Não deveríamos, contudo, esperar que nos primeiros séculos do cristianismo houvesse sínteses filosóficas puras. Elas estão integradas na visão de mundo dos padres e são utilizadas em obras de cunho teológico. A constituição do pensamento cristão, através destes religiosos, ocorre, principalmente, pela harmonia entre sabedoria divina e humana. É o caso de Santo Agostinho, que reconhece a sabedoria divina, mas coloca a filosofia a serviço dela, preparando os espíritos para a fé. Sua doutrina, entretanto é tão peculiar, que influencia, inclusive a forma de representar a arte até por volta de 1200. Outro caso é o de São Tomás de Aquino, que realizando uma síntese doutrinal, alia a ela a filosofia que lhe é mais apreciada, sem, contudo, abandonar outras idéias. Sua doutrina, como já foi exposto neste trabalho, acaba por nortear o pensamento e estética do século XIII.
A Idade Média, como um todo, constitui-se a partir de um pensamento filosófico, mesclado à religiosidade cristã. Não podemos fugir disto, mesmo porque nosso propósito neste trabalho é mostrar essa influência na sua iconografia. É sabido que, em se tratando de arte, a estética vincula-se à filosofia e à teologia. Mesmo que tenha surgido uma nova estética, a partir da fenomenologia artística no século XIII, com a filosofia aristotélica apresentada por São Tomás de Aquino, fica claro que não é relevante uma arte, a qual poderíamos denominar profana. As causas do desenvolvimento da estética são, contudo, provenientes de tempos anteriores. Uma delas consiste na coexistência do princípio do bem e do mal, influenciados pelos cátaros e albigenses. O conflito caracteriza-se, por um lado, pela luz, o bem, o espírito e a beleza e, por outro lado, o mal, a matéria e a fealdade.
Ao iniciar-se, a Idade Média repousa num grande princípio unânime, que é a fé religiosa. O catolicismo constitui a estrutura de uma gigantesca administração espiritual, onde todos vêm tomar o seu lugar e a sua hierarquia, desde as mais elevadas concepções teológicas até ao ritmo das acepções quotidianas. Nada que
não esteja integrado nos seus quadros pode viver. Qualquer afirmação de não conformismo implica a rejeição prevista da comunidade: a excomunhão83.
Este sentimento religioso, na Idade Média, abrange todas as camadas da sociedade. Enquanto castelos são freqüentemente destruídos nas batalhas, a arte religiosa, de um modo geral, é respeitada. Não devemos imaginar, porém, que toda a arte medieval existe exclusivamente para servir idéias religiosas, pois os barões e senhores feudais, a quem os castelos pertencem, empregam também artistas.
As épocas platônicas aspiram às regras, repelem a concepção; estão, portanto, ligadas às formas sociais autoritárias, uniformizadas por ação de uma força comum, que integra a pessoa numa coletividade dominadora; (...) Com as épocas aristotélicas, manifestam-se, inexoravelmente, as tendências privadas, os parlamentarismos, a expressão do subjetivo. (...) ...assim se eleva e amplifica, a partir do século XIII, um individualismo que a arte românica ignorava84.
O período que antecede o século XIII reveste-se da filosofia platônica aliada a uma religiosidade cristã tão forte que estabelece uma união de fé e obediência. É a partir daí, entretanto, que a filosofia aristotélica passa a influenciar as idéias dos escolásticos de tal forma que a obediência vai sendo substituída por uma racionalidade, mas ainda muito ligada à fé cristã. Devemos esta mudança à entrada de textos de Aristóteles na escolástica, que foram traduzidos pelos árabes, conforme já foi explicitado neste trabalho. Aqui verificamos uma forte influência de São Tomás de Aquino, cujo argumento, a partir de Aristóteles, transforma a filosofia da Idade Média e, conseqüentemente, a estética; isto porque a arte, como já dissemos, também reflete o pensamento de um povo e de uma época. Neste contexto, as idéias de racionalidade e naturalismo, como conseqüência de uma valorização do sensível faz surgir o interesse por um estilo de arte diverso do românico: o gótico.
83 84
HUYGUE, 1960, p. 362. Ibidem, p. 204.
O estilo gótico brota antes do tempo de Francisco de Assis, São Tomás de Aquino, de Dante, de Petrarca, quando têm, parcialmente se afastado as incursões de eslavos, normandos e árabes, reabrindo-se estradas do Império Romano, dando acesso à circulação de pessoas, mercadorias e também idéias. Neste sentido, não podemos afirmar que a arte gótica seja uma conseqüência de uma filosofia aristotélica. A esta altura de nossa pesquisa, é mais provável acreditarmos que ambas - filosofia aristotélica e arte - se completam para darem demonstração de um pensamento que usa a razão para solucionar problemas.
As igrejas românicas fazem parte do cenário de Portugal, quando as primeiras manifestações góticas surgem ainda no século XII, mas as novidades como elementos arquitetônicos conhecidos como capitéis trabalhados, arquivoltas, e rosáceas aparecem somente no século XIII. O gótico não é um românico aprimorado, pois os princípios são distintos. Assim entendemos também os pensamentos platônico e aristotélico: são diferentes filosofias, e não podemos denominar o platonismo como platonismo evoluído e nem de um platonismo-aristotélico. Existem os estilos românico e gótico, respectivamente e não há um românico-gótico, como alguns autores acreditam. O que ocorre muitas vezes é que pela demora de execução das construções, uma edificação tenha iniciado no período românico e tendo acabado no gótico; à planta e aos pilares românicos juntam-se abóbadas ogivais e rosáceas na frontaria, constituindo dois estilos diferentes e contraditórios, num só edifício. O mesmo acontece com o pensamento cisterciense em Portugal, no final do século XII e início do século XIII, quando o aristotelismo surge, ainda num tempo em que platonismo impera dentro da ordem religiosa. Na realidade, a arte é um típico exemplo de retratação do pensamento filosófico de Portugal, desta época.
O gótico é o estilo mais livre da Idade Média, pois permite variantes e soluções inéditas, não se prendendo ao passado. Após ter nascido na Normandia, conquista reis, príncipes, nobres, abades e homens do campo.
Já no século XII, Abade Suger de Saint Denis idealiza, em gótico, a cabeceira da sua abadia real. As igrejas por sua vez:
...perderam os pesados muros laterais que se abriram para permitir a entrada da luz a jorros, através de vitrais coloridos. Os pilares estreitaramse e foram erguidos a uma maior altura. As abóbadas de berço, pesadas, que descarregavam os impulsos sobre as paredes dos flancos, foram substituídos por esqueletos de ogivas cruzadas com linhas policêntricas e os lunetos triangulares esféricos cheios com blocos de bem talhada cantaria... Essas massas que se elevavam a muitas dezenas de metros de altura caíam agora parcialmente sobre os arcos botantes que vinham buscar as pressões às zonas de intersecção das curvas com as retas e as descarregavam nos pregões gigantes... Luz verticalidade, amplidão, tais eram as principais características dessas igrejas85.
De acordo com o estudo do aparecimento do gótico, é de se salientar que verdadeiramente vem dar testemunho do novo espírito filosófico, é mais com relação à luz e à cor, ao passo que a característica da verticalidade, primeiramente se deve à questão de economia com a possibilidade da substituição dos arcos romanos pelos ogivais.
Em
Portugal, por exemplo, as primeiras construções são realizadas por ordens mendicantes. E apenas no gótico flamejante, o estilo recebe como atributo o verticalismo ligado às questões filosóficas. Aí, a torre pontiaguda adquire o simbolismo da evolução da espiritualidade. Até então, esta representação é destinada ao esplendor da luz e da cor. Sobre este tema, voltaremos a tratar na estética da luz.
A arte gótica mostra apego também ao naturalismo. A escultura, a qual é tímida no românico, ganha espaço e aparece enfeitando portais, fachadas e torres. As igrejas de madeira, mais simples, pequenas e de estruturas baratas não apresentam arcobotantes, já que não necessitam. O naturalismo no gótico se deve a alguns fatores: um deles é o sensível substituindo o inteligível, através de figuras visíveis, representando a elas próprias, o que já foi mencionado neste trabalho; outro é a que na época da Idade Média, o verde, os bosques, a natureza enfim, faz parte do cenário da vida cotidiana e pela influência de São Francisco 85
DIAS, Pedro. A Arquitetura Gótica Portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 17.
de Assis, as pessoas vão tomando gosto, admiração pelas coisas que as rodeiam, até sentir o desejo de representá-las através de ícones.
O gótico se espalha por toda a Europa com grande suntuosidade, chegando a acontecer competições entre as cidades, quando cada uma quer possuir torres mais altas em suas igrejas. Diferentemente ocorre na Península Ibérica. As construções imponentes só surgem na Espanha cem anos após o seu surgimento na Europa. Em Portugal elas nem ocorrem, permanecendo em geral um estilo gótico mais barato e em muitas vezes de madeira com pequenas aberturas envidraçadas e coloridas. Aparecem também alguns exemplares de igrejas góticas do tipo médio, já no século XIII, construídas por ordens mendicantes, mesmo assim os arcobotantes são raros. Exceções são as construções de Alcobaça e da Batalha, em Portugal. Paralelamente são realizadas, inclusive, edificações de cunho civil, no gótico: castelos e cercas das cidades e vilas. Entretanto, a arquitetura religiosa, civil e militar é pobre e espelha a realidade de Portugal no período do gótico: além de cidades menos populosas, ordens religiosas modestas, poucos religiosos, ausência de indústrias e senhores ricos, a filosofia ainda se perpetua num pensamento platônico. Com esta realidade, o gótico demora-se mais a se impor, já que a filosofia aristotélica também encontra empecilhos para se instalar no norte e centro interiores, onde o românico permanece. Alguns edifícios apresentam elementos goticizantes, mas as estruturas pesadas e os espaços são claramente românicos. Obras, tipicamente deste período, são a igreja abacial de Santa Maria de Alcobaça e a igreja do Mosteiro da Batalha em Portugal.
Desta forma, podemos definir que o gótico estabelece-se, principalmente, na França, bem como aparecem também construções na Inglaterra e Alemanha. Na Península Ibérica, onde o românico é muito bem aceito, o gótico demora-se para se instalar; e quando chega é de forma lenta. Um dos prováveis motivos deste fato é que as ordens religiosas, encarregadas das construções das catedrais ficam, em especial, nos arredores de Paris.
2. 5. A estética da luz na iconografia do século XIII
As discussões sobre a luz, desde a Antigüidade como origem de tudo o que existe, desperta o interesse dos medievais. Esta postura resulta numa série de abordagens em relação às questões teológicas, filosóficas, históricas e físicas sobre o fenômeno da luz, por parte de estudiosos no século XIII. A investigação mais científica é conseqüência da entrada da doutrina aristotélica na escolástica, a partir de textos traduzidos pelos árabes. O estudo possibilita que a luz seja vista, além do seu atributo espiritual, também como um elemento sensível. Entre os que se destacam podemos citar Grosseteste; com sua pesquisa óptica influencia outros teólogos e filósofos da época, chegando até São Tomás de Aquino.
A filosofia da luz repercute na estética medieval, especialmente na iconografia gótica, entre meados do século XII e por todo o século XIII, na França, Inglaterra e Alemanha. Esta influência, entretanto, já é sutilmente observada na arte do período românico.
2.5. 1. A origem do pensamento medieval sobre a luz
O interesse dos medievais pela luz não é repentino, pois temos notícias de que desde o Paleolítico, a luz já toma um valor como essência, mesmo sendo confundida com o ar. Sobre este aspecto nos relata Huygue: “há uma contraposição entre a luz e a treva, e para que uma exista é preciso que a outra desapareça”86. Aquilo que não flui pela sua luz própria torna-se denso. Quando o homem, através de um traço, realiza seu primeiro desenho na parede da caverna, ele retira da luz, a forma. A seguir ele mancha este desenho, tornando-o 86
HUYGUE, 1960, p. 86.
uma sombra, uma silhueta escura, de modo que esta não seja confundida com o restante. A forma densa, a massa contrapõe-se com a luz. Os gregos também aceitam essa idéia e continuam a pintar vasos com figuras negras e opacas, contrastando com fundos claros. A partir deste relato de Huygue, podemos nos deter em duas reflexões: o primeiro ponto é de cunho moral, já esboçado na distinção oculta do bem e do mal. Assim a matéria se opõe à luz, atribuindo a esta última, um sinal de espiritualidade, da alma, de Deus. Esta união de Deus com o bem possibilita que a treva tenha um significado contrário, isto é, com o mal. Assim, a espiritualidade tem ligação com a luz e, as coisas visíveis com as trevas. O segundo ponto de reflexão é de que a sombra, a opacidade, a densidade, entretanto, ainda está rodeada de luz e se o que é denso parte da luz, tudo vem da luz. As duas visões, ou seja, da contraposição da luz e a treva, e da luz como origem de tudo o que existe, influenciam várias culturas, chegando até a Idade Média.
Encontra-se o dualismo das forças antagônicas na mitologia e filosofia de muitas culturas – por exemplo, da China e da Pérsia. O dia e a noite tornaram-se a imagem visual do conflito entre o bem e o mal. A Bíblia identifica Deus, o Cristo, a verdade, a virtude e a salvação como luz, e o ateísmo, o pecado e o diabo como a obscuridade.87
“O livro da Gênese consta que a criação da luz produziu o primeiro dia, enquanto o sol, a lua e as estrelas foram acrescentados no terceiro”. 88 Conforme Arnhein, para o nosso olho, o céu é luminoso pela sua própria virtude. Este fato entra em contradição com a explicação dos físicos que dizem que a luz vem do sol, causando conflitos entre matemáticos, filósofos e teólogos medievais, desde meados do século XII, estendendo-se pelo século XIII.
Quando lemos sobre a estética da luz e observamos as catedrais góticas com seu esplendor luminoso e colorido, somos forçados a investigar esse suposto interesse repentino dos medievais por esta estética. Sabemos que a estética da proporção, identificada por uma estética da quantidade está arraigada desde os tempos gregos. Ao nos embrenharmos na
87 88
ARNHEIN, Rudolf. Arte e Percepção Visual. 2 ed, São Paulo: Pioneira, 2000, p. 293. Ibidem, 2000, p. 293.
história da filosofia dos antepassados, entretanto, vamos encontrar origens muito remotas para a questão da luz. A oposição da luz e da matéria assume desde então uma força simbólica. O homem primitivo sente que o negro, que a sombra, exprimem a matéria, aquilo que é opaco, aquilo que é denso, enquanto a luz traduz o vazio, aquilo que é sutil, aquilo que é imaterial. Dos afrescos pré-históricos do Levante ibérico ou do Saara até as figuras negras dos vasos gregos, a mancha sombria equivale à massa. (...) Plotino limita-se a pôr a profundidade e o engenho do seu pensamento ao serviço desta velha evidência: a luz permite fugirmos ao nosso destino físico. A matéria é trevas: as cores são espécies de luzes, testemunham o acesso à alma invisível. A luz é o sinal do espírito, (...) e chega a dizer dela, dirigindo-se ao leitor: Tu és completa, tu, tu verdadeira, luz verdadeira/ só luz (...) Para Plotino, para Platão já, Deus é luz. Para a Idade Média, ainda Deus é luz.89 Plotino também descobre a beleza da luz. Para ele, as cores seriam como espécies de luzes. Esta idéia é transmitida à Idade Média através de seu seguidor, Santo Agostinho e um outro anônimo, que, segundo Huygue, teria sido Pseudo Dionísio, o Aeropagita.
Huygue90 também trata do aspecto dual da luz. A luz visível é o sinal, no mundo da forma, de uma outra luz, que, pela sua condição, é inacessível. Esta luz tem o poder de criação. Entendemos então, se há dois tipos de luz, uma é o reflexo da outra. Assim, a luz física, que pela sua condição, possibilita que enxerguemos as coisas é possibilitada pela luz, de onde provêm tudo o que existe. Santo Agostinho, em consonância com a doutrina, diferencia qualquer coisa corpórea – sensível – da faculdade sensitiva – espiritual. Esta teoria agostiniana está ligada à questão da distinção entre o objeto sensível e a sensação que temos dele, pois para Santo Agostinho o primeiro é sensível, enquanto o segundo pertence ao conhecimento espiritual. O objeto sensível é incapaz de sensação e sim é a causa da mesma91, portanto o
89 90 91
HUYGUE, 1960, p. 107 e 111. Ibidem, p. 88. Ibidem, p. 185.
conhecimento, pela sensação é espiritual, e conseqüentemente, possibilitado pela alma, pela luz.
O interesse pela luz chega aos medievais, também, pela poesia. Os poetas salientam tanto a beleza exterior, quanto interior, por meio de figuras e imagens luminosas. Qualquer detalhe luminoso é detalhadamente expressado. Termos como resplendor, luz do sol, claridade e cor, foram utilizados para manifestar, por exemplo, a beleza feminina. Esta mesma luz, também, passou a fazer parte da composição dos quadros, mostrando limpidez, inclusive apresentando um céu claro pela luz solar estampada.92 A luz, contudo, desenvolve-se em duas linhas, uma cosmologia físico-estética e uma ontologia da forma. Eco93 salienta que a primeira é representada por Grosseteste e a segunda por Alberto Magno e São Tomás de Aquino. Embora os filósofos e teólogos, especialmente do século XIII, se inspirem em Aristóteles para elaborar suas doutrinas, há diferenças. No caso de Grosseteste, este se dedica mais a um estudo sobre a luz, no campo da física, enquanto que Alberto Magno e São Tomás de Aquino voltam-se à questão ontológica, sendo que o segundo ultrapassa o seu mestre. Quanto à forma e substância, segundo Eco94, o ponto de vista é diferente de Alberto Magno; este se refere à posição de forma aristotélica, que põe em ato as potencialidades da matéria e se compõe com ela (...) em substância. São Tomás de Aquino embute à forma, as três características de beleza: claridade, integridade e proporção. No caso, o que nos interessa neste momento, é o elemento claridade, que somado à integridade e proporção, sintetiza a substância, isto é, a soma de matéria e forma. Se para São Tomás de Aquino, a claridade é parte integrante da beleza de todas as coisas, podemos dizer que irradiando luz, todas as coisas inteiras e proporcionais são belas. Ontologicamente, a luz é a expressão do organismo. Assim, concluímos que toda coisa é ontologicamente, predestinada a ser bela, pela luz que irradia.
92
93
94
Já quanto à poesia, basta lembrar o Paraíso dantesco para se ter um exemplo perfeito do gosto pela luz, em parte devido a inclinações espontâneas do homem medieval (acostumado a imaginar o divino em termos luminosos e a fazer da luz “a metáfora primígena da realidade espiritual”), e em parte a um conjunto de sugestões patrístico-escolásticas (ECO, 1989, p.64). ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Tradução Mário Sabino Filho. São Paulo: Ed. Globo, 1989, p. 65. Ibidem, p. 133.
Até o instante em que o medieval passa a ser atraído pela cor e a luz, há uma estética que rege toda a arte, tanto na Antigüidade, quanto na Idade Média: a estética quantitativa, representada através da proporção, a beleza transcendental. É uma estética do belo. Quando a beleza assume sua união com a luz surge a estética qualitativa, pois sendo a luz simples, ela é bela em si mesma, isto é, sua beleza não é medida. Aparentemente parecem estéticas adversas, porém é no conjunto que elas se completam, reunião esta que ocorre na construção da catedral gótica. Quando a Idade Média elaborar completamente a teoria metafísica do belo, então a proporção, como seu atributo, participará de sua transcendentalidade. Também no campo literário, no século VIII, Beda, no De Artemetrica, elabora uma distinção entre metro e ritmo, entre métrica quantitativa e métrica silábica, notando como os dois modos poéticos possuem, cada um, um tipo de proporção própria (...) Quando se chegar à homologação teológica e metafísica de tais experiências, então a proportio se tornará categoria capaz de complexas determinações, como veremos no contexto tomista da forma. Mas a estética da proportio continuava a ser estética quantitativa. E não conseguia justificar completamente um gesto qualitativo pelo prazer imediato que a Idade Média manifestava diante da cor e da luz.95
No momento em que surge uma estética, não calcada na proporção, e sim inspirada na sensação e no prazer, fica deveras complicado tentar explicar um súbito fascínio baseado, não na quantidade e sim na qualidade.
Segundo De Bruyne96, a estética da luz no século XIII, também é conseqüência do conflito de teólogos e filósofos de Paris com o pessimismo meridional, resultado do movimento de cátaros e albigenses, influenciados por idéias orientais. Estes acreditam em forças opostas do bem e do mal, ligadas ao belo e à fealdade, respectivamente. Desta forma, o bem e o belo estão ligados à luz, enquanto o mal e a fealdade, às trevas. Entre cristãos estão: Guilherme de Auvergne (+1231), Felipe, o Chanceler (+1236) e Guilherme de Auvernia (+1249). Em suma, estes cristãos são, juntamente com Pseudo Dionísio, adversários deste dualismo, defendem e incluem o Belo ao conjunto de propriedades dos transcendentais. O belo é a harmonia e, portanto, o belo é a luz, seguindo idéias de Santo
95
96
Ibidem, p. 58 e 59. DE BRUYNE, Edgar. Estúdios de estética medieval. Vol. I e II. Madrid: Gráficas Condor, 1959, p. 9.
Agostinho, Boécio e Pseudo Dionísio97. Este pensamento vem dar respaldo aos teólogos e filósofos que têm pendores pela beleza sensível. Esta constatação, juntamente com o encantamento de autores do século XIII por São Francisco de Assis, admirador da natureza, resulta no otimismo estético.
Nada há mais belo que o universo que realiza a máxima da beleza sensível: e a sinfonia suprema, o mais admirável Poema que existe num quadro de perfeita harmonia. Todo quadro encerra o belo em si mesmo e, sobretudo, em função do conjunto: nos mais repulsivos insetos e monstros tem sua beleza própria. A mesma matéria, a morte e o diabo em pessoa não podem ser excluídos do universal império de beleza 98.
Neste momento, podemos analisar três pontos importantes. O primeiro é o fato de os teólogos e filósofos do século XIII terem se inspirado ainda nos ensinamentos de Santo Agostinho, validando o platonismo e tratando a beleza como algo universal, supremo e indispensável à harmonia do universo. O segundo ponto é a discussão da dualidade medieval: entre o bem e o mal, inteligível e sensível, otimismo e pessimismo, beleza e fealdade. Assim, para os otimistas que acreditam ser o universo belo e visto como bem, o mal e a fealdade não têm lugar num mundo perfeito. Ocorre que para os otimistas, a fealdade não existindo no seu sentido metafísico99, a beleza resplandece em todo o ser, inclusive nos monstros, etc. Esta idéia constitui-se num prenúncio da estética do feio, mais tarde, na arte moderna. O terceiro ponto de análise é o fato de a natureza, como forma representacional da verdadeira harmonia, começar a ser vista e valorizada por ela mesma. Este aspecto, somado ao pensamento de São Francisco de Assis e Aristóteles, via São Tomás de Aquino, foi tomando vulto na Idade Média.
97 98 99
DE BRUYNE, 1959, p. 10. Ibidem, p. 12. Ibidem, p. 12.
Não podemos nos furtar a estabelecer uma reflexão sobre a influência dos textos aristotélicos no pensamento medieval. A estética do sensível chega imbuída de um prazer, aquele entusiasmo tão defendido por Aristóteles na sua Poética. Evidentemente que o prazer estético faz parte do deslumbramento causado pela luminosidade que arrebata os sentidos. A par de todo o interesse de filósofos e teólogos pelo fenômeno da luz fica claro, inclusive, um vestígio do efeito catártico, proporcionado pelo envolvimento direto do homem com Deus, através da luz.
Para os sábios do século XIII, a fonte de todas as coisas é a luz e tentam demonstrála através da ciência da época. Diz De Bruyne 100 que, antes de o corpo ser princípio do mal e da fealdade, é um corpo metafisicamente bom e belo, pois tudo deriva da estrutura luminosa. Tudo isso resulta uma questão moral, pois cabe ao homem decidir como usar devidamente a matéria. Esta doutrina, evidentemente, se opunha a dos albigenses e é determinada por três fontes filosóficas principais. Resumimos, aqui, estas fontes, expostas pelo autor. A primeira fonte é de origem grega, pois Platão já era admirador do bem, do sol e das Idéias. Os estóicos, alexandrinos, e gnósticos homenageiam a luz, preparando o neoplatonismo de Plotino e Proclo. Este pensamento é repassado à Idade Média por Santo Agostinho e Pseudo-Dionísio. A segunda fonte é latina, e vem diretamente de Santo Agostinho, dotada da doutrina cristã, onde Deus é luz como o sol eterno de Justiça e ilumina todo o homem. Os homens medem a sua nobreza, no seu sentido moral e espiritual, pela luminosidade, já que esta é a substância mais sutil no universo. Aqui temos a explicação para que certos pintores medievais retratem santos e religiosos com a cabeça envolta em uma auréola. O fascínio pela luz influencia Alcuíno, Rabano Mauro, Anselmo, chartrenses e vitorinos. Deparamo-nos, aqui, com uma demonstração, que a presença e encantamento pelo sensível por meio da luz já existia, mesmo antes das igrejas góticas imporem-se com seus vitrais multicores. Esta é uma contradição não muitas vezes entendida pelos comentadores. A terceira fonte filosófica, da qual origina-se a estética da luz é judeu-árabe. A filosofia da luz árabe resume-se no princípio do bem e do mal.
100
Ibidem, p. 24.
Entre os estudiosos da luz no século XIII, citamos Grosseteste, que desenvolve uma teoria baseada em Aristóteles, mas superando-o, através da física.
2. 5. 2. A Estética da Luz em Grosseteste
Como conseqüência de tantas correntes de pensamentos, surgem, já no século XII e se estendem pelo XIII, três correntes. A mística de Tomás de Verceil, a metafísica de Guilherme de Auvernia, Alexandre de Hales, Alberto Magno e Ulrico de Strasburgo e o positivo e científico de Grosseteste, Rogério Bacon, Dietrich de Freiberg, Bertoldo de Mosburgo, entre outros. A mistura de tais correntes resulta um pensamento que influencia São Boaventura e Guilherme de Moerbecke e São Tomás de Aquino. Assim, na Idade Média, a luz chega como uma multiplicação, dotada de uma difusão para todas as direções, já que para os medievais, o movimento de propagação da luz não significa mutação e nem alteração da matéria, ela é espontânea e substancial. Deus, então, é pura luz, portanto, a luz relaciona-se mais como espírito do que com o corpo, mas os medievais passam a entender que o corpo também vem da luz. De Bruyne 101 ressaltou que o esplendor da matéria é uma participação do esplendor de Deus. Sabemos de pintores e poetas medievais que incluem na sua arte as maravilhas de um céu iluminado, em conjunto com a natureza. Em contrapartida, o elemento terra é mais opaco, porém dele se retira as pedras e os metais preciosos que brilham, e dele emana o fogo. Grosseteste defende:
...que a luz, portanto, é o princípio de toda a beleza (...) a luz é, enquanto princípio de cor, beleza e ornamento de todo o visível (... ) O mundo sensível é , inicialmente, uma massa de matéria formada por energia luminosa. As partículas materiais dominadas por uma força de luz, e as menos rebeldes à difusão são rechaçadas em todos os sentidos até os limites do campo de força; as partículas mais resistentes permanecem no centro da esfera imensa para constituir a terra. Na medida em que a luz impregna a matéria e a faz luminosa e indefinidamente explodida, o corpo se faz mais ligeiro, mais tênue, mais sutil, mais simples e brilhante; na medida em que, pelo contrário, a matéria detém a multiplicação, a expansão e o movimento da luz, o corpo é mais opaco, mais composto, mais espesso e mais limitado. Quanto mais simples é o corpo, melhor se estende102.
101
102
DE BRUYNE, 1959, p.25. GROSSETESTE, Apud De BRUYNE, v. 3, 1959, p.30. e 32.
Entendemos que o que determina a densidade ou sutileza dos corpos é a propriedade de expansão e movimento das partículas luminosas que as originam. Sendo assim, as que se expandem são sutis, mais transparentes e luminosas. As resistentes à multiplicação são mais opacas. O que nos interessa, a par dessas constatações, é saber, que o entendimento medieval, no século XIII, é de que todo o corpo, sutil ou denso, se compõe de luz. Sobre o tema da luz, os medievais discordam em alguns pontos, como São Boaventura e Grosseteste. Segundo De Bruyne103, o primeiro acredita que o poder da luz é limitado, porque a difusão de luz que forma a esfera é uniforme, ou seja, cada fonte luminosa compreende a uma zona de irradiação determinada. Para o segundo, o firmamento é pura luz. Esta idéia é resultado de um raciocínio matemático, o que leva Grosseteste a concluir que a luz é simples e por este motivo, ilimitada, pela sua multiplicação. O autor ainda salienta, que para São Boaventura, o céu é o corpo maior e mais poderoso, enquanto que, para Grosseteste, o firmamento é a pura luz.
São Boaventura e São Tomás de Aquino compreendem o céu em três zonas. O empíreo, o cristalino e o firmamento. O empíreo é luminoso e imóvel, o céu; o cristalino é uniforme e móvel, o aquoso; e o firmamento (no sentido estrito) é diforme, com parte luminosa e parte diáfano. De Bruyne104 explica, que diáfano é a propriedade dos corpos, que do éter ao fogo são todos, mais ou menos, transparentes. O autor ainda apresenta três conotações diferentes que São Boaventura e São Tomás de Aquino dão à luz. A luz é luz, quando se considera em si mesma, difundida indefinidamente e invisível. É luminosidade, quando ilumina, com seus raios, os espaços, formando uma imensa zona luminosa. É esplendor ou cor, quando a luz se choca com um corpo, que a reflete, surgindo o seu colorido. A cor, portanto, surge do encontro dos corpos com a luz. É a luz que torna as formas visíveis. Neste sentido, cor e luz são inseparáveis: a cor é luz. Vale dizer, ainda que, referindo-nos à iconografia medieval, o estilo românico simboliza a luz pelo seu esplendor e o gótico acrescenta, através da arquitetura e vitrais, o aspecto da luminosidade.
103 104
DE BRUYNE, 1959, p. 32. Ibidem, p. 33.
A distinção entre luz e fulgor-colorido permite a todos filósofos, cientistas e teólogos medievais, estudiosos da luz, conciliar o neoplatonismo e o aristotelismo. Para os estudiosos dos aspectos científicos, a luz consiste numa forma substancial e para os teólogos, a luz é considerada uma qualidade acidental. Em estado puro, a força luminosa é a energia fundamental e substancial da corporeidade como tal. Quando esta energia incide nos corpos individualizados, entretanto, sob a forma de esplendor e cor, a luz é considerada como uma qualidade acidental. Assim, podemos dizer que a luz, como forma substancial é a fonte de tudo, seguindo o pensamento de Grosseteste, e como São Boaventura e São Tomás de Aquino que a luz, como qualidade acidental é resultante do seu poder de esplendor e cor ao tornar visíveis as cores. Neste sentido, as duas teorias se fundem na estética da luz, visível na arte gótica. O esplendor e cor, através dos vitrais, são uma ratificação do sentido substancial e, ao mesmo tempo, acidental da luz.
Grosseteste105 utiliza-se da terminologia aristotélica pormenorizando os corpos, contudo, dá um sentido não aristotélico, à medida que explica o fenômeno, enquanto Aristóteles apenas o elucida. Assim o corpo e matéria são inseparáveis, mas se juntar corporeidade (primeira forma) à matéria, esta se estende, resultante de uma ação ativa e baseada na sua essência. Por isso, à primeira forma ou corporeidade dá-se o nome de forma luminosa. Podemos considerar a luz como substância e acidente. Substância, enquanto se aproxima ao incorpóreo, mais sutil, situando-se entre o espírito e a matéria; acidente, enquanto forma e ativa, através da propagação e difusão dela mesma, criando o espaço. A força ativa dos corpos é a luz. Assim sendo, “... as atividades naturais dos mesmos devem ser reduzidas à atividade da luz; em última análise, pois, a Física se reduz à óptica”
106
.O
autor ressalta que Grosseteste afirma que há mudança e não movimento quando a luz se difunde sozinha, sem mover consigo a corporeidade da matéria. Ao contrário, se a luz incorpora com a matéria, expandindo ou se concentrando com ela, resulta uma rarefação ou condensação da matéria, respectivamente.
105 106
Apud, BOEHNER e GILSON, 1991, p.371. Ibidem, p. 371.
As constatações levam o estudioso de Oxford a afastar-se da física finalista de Aristóteles, contudo, Grosseteste107 acrescenta que há, a par do estudo sobre a luz, um empenho em passar ao mundo latino as idéias aristotélicas, idéias estas que são assimiladas também por São Boaventura. Esta contribuição de Grosseteste acerca de Aristóteles não é algo passivo, mas ativo, pois ele assume uma postura crítica sobre o Estagirita. O seu argumento parte do que prova Aristóteles, isto é, que a multiplicação partindo de algo simples não chega a gerar uma extensão; o simples multiplicado infinitamente produz um resultado finito. Assim, “... a força difusa infinita da luz não leva a um orbe infinito ou ilimitado”
108
e sim limitado, isto porque a matéria luminosa original não se estende,
simplesmente porque se a luz parte de um ponto luminoso, uniformemente distendendo-se para todas as direções, ela acabará formando, forçosamente, uma forma esférica. Sendo assim, o efeito é finito. Pela aproximação ou distanciamento do ponto original, os elementos são densos ou rarefeitos de luz, formando esferas. Estas recebem luz da imediatamente anterior; e para Grosseteste109, a mais pura é o firmamento. Esta doutrina baseia-se no neoplatonismo na concepção do Universo como hierarquia de substâncias. A importância de Grosseteste é que ele consegue aproximar a doutrina cristã da criação com a doutrina neoplatônica da emanação.
Refletindo sobre a teoria de Grosseteste, constatamos que pela filosofia da luz, ele consegue conciliar Aristóteles, Plotino, concepções árabes e a doutrina cristã, contribuindo para a síntese de São Tomás de Aquino.
Em nota de Mendoza110, o que fascina o franciscano de Oxford é o fenômeno óptico, isto é a forma de contato entre o objeto visível e o órgão visual. A tradutora de Óptica esclarece que o interesse do franciscano parte, primeiramente, de sustentações de Demócrito, Epicuro e Lucrécio onde “... a cor percebida do objeto depende da luz iluminante e que ela causa contração na pupila”
111
, teoria esta chamada de intromissão ou
centrípeta é pouco referida por Aristóteles. Uma outra teoria contrária é a que o olho envia 107 108 109 110 111
Ibidem, p. 372. Ibidem, p. 373. Ibidem, p. 373. MENDOZA, apud GROSSETESTE, 1985, p. 08. Ibidem, p. 08.
um raio ou potência até o objeto, denominada centrífuga ou extramissão, exposta por Euclides (300 a.C.) e Hiparco (160-125 a.C.). Esta teoria supõe que os olhos vêem uma imagem refletida pelos objetos, cujo estudo matemático compreende experiências sobre os ângulos de refração e determinando algo razoavelmente percebido por analogia. Assim, o fator psicológico de associação era muito importante no momento de detectar a visibilidade dos objetos; ilusões ópticas, assim, seriam causadas por defeitos de analoga e não no órgão da visão. As duas teorias são um ponto de partida para o princípio da sinaugeia de Platão, que consiste em haver uma postura de compromisso entre raios do olho e o médio (espaço, distância). Aristóteles já vai mais longe, afirmando que o contato entre o objeto e o olho ocorre através do médio, atribuindo passividade ao observador. A autora explica que para o Estagirita a luz é um estado de um medio transparente, proporcionado pelo fogo ou corpo luminoso e que a luz não é, ela mesma, visível, a não ser através do médio que permite ver as cores. A cor existiria só em potência. Nesta mesma linha, seguem Lindberg e Galeno com a teoria mediumnística, mas considerando o médio um instrumento que modifica a atividade visual do observador, contudo, conforme Agostinho, “esta distância não pode ser medida”
112
. Daí surge o interesse dos medievais pelas leis matemáticas, utilizando a
geometria para dar explicação à percepção do espaço pela perspectiva.
Conforme comentários de Mendoza113, no século XIII, Grosseteste é um sintetizador das idéias de opositores e defensores da teoria aristotélica, que vêm da ciência islâmica. AlKindi, opositor, defende as leis matemáticas da perspectiva; Ai-Raz, Alfarabi e Avicena concordam com Aristóteles no que se refere ao medio. Assim, a concepção conciliadora de Grosseteste, como o representante de uma nova filosofia da luz, reflete-se no pensamento de Alberto Magno, Rogério Bacon e João Pecham. Grosseteste dá um teor metafísico à óptica físico-matemática, passando a uma obra científico-filosófica, fundamentada em duas linhas fundamentais: a agostiniana-platonizante e a aristotélica. Também fizeram parte do seu aposto intelectual, a metafísica, a gnoseologia e a teoria da ciência. A metafísica veio de Santo Agostinho, através da concepção central da luz como origem de tudo o que existe; em termos aristotélicos “... há uma relação entre matéria/forma e potência/ato com a teoria
112 113
De Trinitate XI, 4. Apud, GROSSETESTE, 1985, p. 10.
da luz” 114. A gnoseologia de Grosseteste leva à teoria da iluminação: “... as coisas têm um exemplar eterno na mente divina e também na mente humana”
115
. Entende que os
princípios são tidos em potência ativa, podendo atualizar-se. Aí está a ligação com a teoria platônica da reminiscência ou da atualização do novo conhecimento. Quanto à teoria da ciência, Grosseteste volta-se à analítica, ocupando-se de uma proposta metodológica, baseada na matematização.
A obra óptica de Grosseteste explica os princípios ópticos sob o aspecto da física da refração, antecipando-se a Teodorico de Freiberg (considerado o autor da mais elaborada obra sobre a luz de todo o período) e aos estudos da cor de Newton. A Teoria da Perspectiva e a da Física de Grosseteste é denominada Arco Íris e considerada qualitativa e não experimental. Mendoza116 salienta que a questão do espectro e o teor geométrico de Grosseteste já iniciam em Aristóteles, sem que este último desse uma explicação plausível, mas advertindo para ela. Desta forma existem adeptos de Aristóteles, como Rogério Bacon e Alberto Magno, e seguidores de Grosseteste, sendo o primeiro João Pecham.
2. 5. 3. A representação da luz nas catedrais góticas
A estética da luz, entretanto, surge com vigor, nas catedrais góticas, através das rosáceas e paredes feitas com vitrais coloridos. Evidentemente que esta atração do medieval pela luz já havia aparecido na igreja românica, cuja concepção ainda era um reflexo do pensamento platônico, apenas limitando-se a representar o divino, combinando o brilho do ouro, da prata e das pedras preciosas.
A influente filosofia do neoplatonismo, baseada inteiramente na metáfora da luz, encontrou sua expressão visual no da iluminação pela luz do dia e velas nas igrejas da Idade Média. (...) O simbolismo religioso da luz era, naturalmente, 114 115 116
Ibidem, p. 26. Ibidem, p. 26. MENDOZA, apud GROSSETESTE, 1985, p 57.
familiar aos pintores da Idade Média. Contudo, os fundos dourados, auréolas e figuras geométricas de estrela – representações simbólicas da luz divina – apareciam aos olhos não como efeitos de iluminação, mas como atributos brilhantes.117
Conforme Arnheim, o objetivo de os medievais, de início, representarem a luz não com efeitos de iluminação, mas de simbologia, justifica que o interesse estético só surge mais tarde, através do gótico, e absorvido com toda força pelos renascentistas. O românico dedica-se em referenciar caracteres brilhantes, como simbolismo de Deus, sem, contudo, ressaltar a beleza dos objetos, mesmo que estes suscitem encantamento pelas suas condições de riqueza e brilho. Este fato nos faz acreditar que embutida num pensamento platônico, de simbolismo inteligível, a beleza sensível já teria lugar antes do gótico, mesmo que sutilmente camuflada.
De Bruyne refere-se a alguns textos, que colocam em primeiro plano as idéias de riqueza, brilho e luz. A seguir exemplificaremos cada um deles:
Evidentemente que a luminosidade e o colorido derivam, em primeiro lugar, dos vitrais, como disse S. Humberto (...) Porém, também dos mármores multicores - dos tapetes, tal como estão descritos no tesouro de Maguncia, das pinturas, dos mosaicos, e das esculturas que dá um brilho de riqueza e de vetustas à arquitetura.118
A pintura, assim como a escultura esta a serviço da arquitetura. Alguns autores são atraídos por estas artes, justamente porque elas completam o conjunto. Analisando a iconografia da Idade Média, observamos que ao conjunto, a luz está presente de uma forma ou de outra. É impossível pensar-se em uma igreja medieval sem a sua decoração, iniciando pelos baixos relevos nos trifórios, que representam cenas religiosas, tanto no românico quanto no gótico. Até o século XII, contudo, o medieval vê no tesouro das igrejas um luxo singular. Estas declarações acerca da beleza, da suntuosidade estonteante e das descrições
117
118
ARNHEIM, 2000, p. 313.
DE BRUYNE, 1959, p. 90 e 91.
em conjunto realizadas pelos medievais, dão conta de que o sensível sempre existiu, mesmo que escondido pela idéia de simbolismo divino, ainda no período românico.
O intrigante, a par de tais comportamentos, é perceber que o homem medieval, no fundo, admira a beleza do sensível. Não sabe resolver, na prática, a questão de desvencilhar-se de materiais preciosos, pois somente através deles poderia dar sinal da luz divina, como cristão, ou do inteligível como adepto do platonismo, ou ainda do Uno como remanescente do neoplatonismo, lembrando Plotino e Santo Agostinho. Certos autores descrevem coisas curiosas sobre objetos preciosos e brilhantes, como o que segue: ...um presente que ofertou a Rainha da França ao Rei da Inglaterra, “ una fonte em forma de pavão real, em ouro e prata, toda ornada de safiras e pérolas”. Villehardouin, deslumbrado por Constantinopla, descreve nada mais que as riquezas incomparáveis da cidade; Froissart pinta quadros de cores brilhantes repletos de belos navios. Marco Polo não vê no palácio do Klan mais que metais preciosos, tapetes e sedas, diamantes e pedras deslumbrantes.119
Desta forma, também, passamos a compreender melhor a implicação da luz com a filosofia aristotélica. Ora, se para Aristóteles, Grosseteste e São Tomás de Aquino, a beleza sensível faz parte do mundo da forma, devemos à luz, a possibilidade do deleite pela beleza, através do sentido da visão.
Ao acompanharmos a trajetória da filosofia e da estética da luz passamos a compreender o empenho dos construtores medievais ao realizarem as igrejas góticas. Ocorre que a luminosidade destes recintos anuncia que a espiritualidade ainda existe, aliada a um novo conceito, de que ela também é responsável pela visibilidade do mundo sensível. O recurso da abóbada em arcos ogivais e o arcobotante, como elementos arquitetônicos para dar sustentação a finas pilastras, resumem-se numa solução para diminuir a densidade do edifício. As janelas com vidros multicoloridos, além de iluminar o ambiente servem para propiciar um clima de deleite aos fiéis. Arnheim120 nos relata que é preciso substituir as janelas esverdeadas e amareladas da igreja do início da Idade Média, por vidros, pois a cor 119 120
Ibidem, p. 77. ARNHEIM, 2000, p. 225.
daquelas são translúcidas, porém não transparentes. Desta forma, os problemas de resolução de aspectos antagônicos como luz e escuridão, são pensados em termos de leveza, transparência, luminosidade e cor.
Na verdade, a luz adquire um cunho racional, acrescido ao divino. Este fato serve, no entanto, para aumentar o interesse dos medievais pelas possibilidades que a luz pode proporcionar em termos de deleite, encantamento e beleza. A comparação da luz a Deus dá respaldo às investidas incessantes, atrás de recursos que viabilizem a retenção e deslumbramento dos raios solares em um recinto religioso e fechado. É o caso das pesquisas e aplicação de conhecimentos dos arquitetos e construtores do final do século XII e de todo o século XIII. Deus, através da luz, estaria mais próximo dos fiéis.
Tal como Grodecki, para seu governo, observou também, o vitral é chamado a desempenhar um papel proeminente nas igrejas, porque é como santificado pela luz, que se limita a iluminar a pintura, ao passo que, no caso dele, ela o atravessa, faz corpo com a sua coloração e se lhe une. Certos teólogos viram nisso uma relação com o Espírito Santo ao visitar a Virgem para a Imaculada Conceição. 121
Ao analisar as palavras de Boehner e Gilson verificamos que, o vitral possui um valor, inclusive, sagrado. A analogia do vitral com a Virgem, recebendo os raios luminosos como se fosse a presença do Espírito Santo, concede-lhe endeusamento. A luz, por ser ao mesmo tempo visível e invisível, marca através dos vitrais coloridos, o encontro do sensível com o inteligível.
O vitral passa a assumir o papel de um corpo, escolhido pela sua transparência, para deixar-se atravessar pela força da luz. E esta forma de ver e sentir a luz na Escolástica, não se dilui por completo no final da Idade Média, pois a luz continua a exercer um fascínio entre os artistas. Eles tratam em representar a luz da alma humana através de suas pinturas, prenunciando os clássicos do Renascimento.
121
BOEHNER e GILSON, 1970, p. 108.
No gótico, portanto, a luz é o ponto de união entre o Absoluto, o bem, o divino, o inteligível e o verdadeiro com a possibilidade da visibilidade das coisas sensíveis. A arte do vitral que, segundo o monge Teófilo, nos relata De Bruyne122 , sobressai-se na França e embeleza os grandes vãos abertos proporcionados pela delicada estrutura das ogivas, nas catedrais góticas e que, ao mesmo tempo, encenam um jogo de luzes e cores quase que imaterial.
Eco123 trata da luz inseparavelmente da cor - o que já vimos em Plotino 124 - e como constituinte de uma estética de qualidade, visto é, pois não pode ser medida, opondo-se à estética da quantidade (proporção). Inicialmente, o gosto pela luz e cor na Idade Média é uma reação espontânea e simples, diferentemente da relação com a beleza entendida pela proporção, ligada a leis pré-estabelecidas, vinda dos gregos. O que fascina Suger, por exemplo, é em primeiro lugar, a transparência dos vitrais. É a partir de Suger que os medievais intensificam a inclusão dos vitrais nas igrejas, posteriormente denominadas góticas.
Na Idade Média, o interesse de filósofos e teólogos pela luz acaba por influenciar o trabalho dos engenheiros e construtores das igrejas, preocupados em adotar visivelmente a teoria da luz. Podemos nomear, entre os mais citados, Villard de Honnecourt, arquiteto do século XIII, que acompanha canteiros de obras, iniciando em 1210 em Réims e chegando até a Suíça e a Hungria. Nestas construções, Villard deixa marcas de sua criatividade em termos de projetar estruturas que sirvam para melhor expandir a luminosidade nos recintos sacros, através dos vitrais multicoloridos e reunindo a filosofia com a estética da luz.
122 123 124
DE BRUYNE, 1959, p. 17. ECO, 1989, p. 63. HUYGUE, 1960, p. 107.
Além de Réims, entre as principais igrejas góticas construídas por volta dos séculos XII, XIII e XIV podemos citar Sant-Denis, Chartres, Laon, Notre-Dame, Sain-Étienne, Saint-Chapelle e Bouges na França; Centesbury e Salisbury na Inglaterra e Elisabethkirche na Alemanha.
2. 5. 4. Considerações acerca da Estética da Luz o Século XIII
A filosofia da luz, não se resume num capítulo à parte sobre a estética na Idade Média. Como percebemos, resulta de uma caminhada e uma referência perfeitamente compreensível entre o simbolismo inteligível e o sensível. A forma de entender e sentir a luz no século XIII, culminando com o estilo gótico, não é algo considerado repentino, nem tampouco, uma continuidade do pensamento românico. É uma estética, resultante de uma filosofia que, aos poucos, cria peculiaridades sensíveis, por uma nova maneira de ver o mundo, Deus e a natureza, possibilitando a dualidade da luz. Por um lado, nos deparamos com idéias pré-estabelecidas da própria filosofia da luz, vindo das correntes antigas e que podemos resumir dizendo que, ela é a fonte e origem de todas as coisas, ligada também ao belo e à imaterialidade. Como, inclusive, já vimos, a luz adquire, junto ao aristotelismo medieval, um cunho científico e ao mesmo tempo sensível, pois ela age sobre a natureza, possibilitando maior suscetibilidade ao deleite da beleza. Assim, a dualidade está presente na estética da luz que caracteriza a Idade Média, pela influência neoplatônica e aristotélica, respectivamente, e em especial, através das catedrais góticas. A contribuição de Grosseteste é decisiva para novas reflexões de teólogos e filósofos da época sobre a luz, inclusive deixando um estudo de teor mais científico para a posteridade. A iconografia medieval, especialmente a gótica, resume o verdadeiro sentido teológico, filosófico e científico da estética da luz. O gótico é a própria luz expandida de si mesma. Enquanto o românico absorve o crepúsculo, o gótico, resplandece o dia.
3. A ESTÉTICA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO
Optamos, aqui, em refletir a estética em São Tomás de Aquino, vinculada à sua filosofia e teologia. Nossa postura é, inclusive, refletir, além da sua participação decisiva na repercussão de Aristóteles na escolástica, mostrar a postura do Teólogo diante do tema por nós pesquisado: investigar como o aristotelismo influencia a iconografia gótica, no século XIII, contrapondo-se com a arte românica e contribuindo para a formação da dualidade medieval.
3. 1. O belo em São Tomás de Aquino
Retomando o conceito de beleza, trataremos dele na visão de Santo Tomás de Aquino. Com o intuito de explicitar melhor a filosofia de São Tomás de Aquino e as
intricações ao sentido da arte no século XIII, vamos encontrar na Suma Teológica125 o seu ponto de vista diferenciado em relação ao belo e o bom, igualando-os, mas, ao mesmo tempo, diferenciando-os racionalmente. Ocorre que bom liga-se à idéia de relação com a virtude cognitiva, voltando-se mais aos sentidos como palavras, olfato e tato. Já o belo está intimamente relacionado com o aspecto ou no seu conhecimento, usando as faculdades de conhecer, a saber: a visão e o ouvido, que são como que os ministros da razão. São Tomás de Aquino ressalta ainda que, o belo e o bom são uma mesma coisa no sujeito, porque eles repousam sobre a forma, sendo um predicado do outro, porém o belo consiste numa justa proposição, pertencendo propriamente à idéia de causa formal.
As idéias de belo e bom, primeiro em Plotino e após em São Tomás de Aquino, são pertinentes para que compreendamos o verdadeiro sentido do belo para os medievais e a concepção que este passou a ter, a partir do século XIII, adquirindo uma conotação mais próxima ao formal e, por este motivo, voltada ao sensível. Acreditamos que, neste exato momento, foi eminente e visível a importância de São Tomás de Aquino, no contexto da Filosofia e da Estética deste período.
São Tomás de Aquino introduz, na Idade Média, uma outra concepção do belo, seguindo uma visão aristotélica. Começa, então, a vislumbrar um mundo novo, passando, inclusive, pelos transcendentais. Esta discussão inicia com Filipe, o Chanceler, na Summa de bono “...primeira tentativa de fixar uma noção exata de transcendental e determinar um esboço de classificação com base na ontologia aristotélica, no que se refere ao Uno e ao verdadeiro, no primeiro livro da Metafísica”126. A partir daí, há uma série de categorias, atribuindo visões diferenciadas que se estendem das traduções do texto grego de Pseudo Dionísio (827) e João Sarraceno, três séculos depois.
São Tomás de Aquino ultrapassa seu mestre Alberto Magno ao tratar bem e belo num sentido mais subjetivo e aceitando a inclusão do belo entre as propriedades 125 126
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. IIª , XXVII, I. ARISTÓTELES, Metafísica, III, 8; IV, 2; X, 2.
transcendentais. Seu posicionamento parte da diferença e identificação entre pulchrum e bonum:
O bem concerne à faculdade apetitiva, sendo o bem aquilo que todo ente deseja, e, portanto, tem o caráter de objetivo, pois o desejar é como um mover-se em direção a alguma coisa. O belo, ao contrário, concerne à faculdade cognoscitiva; belas, com efeito, são chamadas as coisas, que vistas, despertam prazer. Por isso o belo consiste na devida proporção, pois nossos sentidos deleitam-se nas coisas bem proporcionadas, como qualquer coisa a eles semelhantes; de fato, o sentido, como qualquer outra faculdade cognoscitiva, é uma espécie de proporção. E como o conhecimento se dá por assimilação, e a semelhança, por outro lado, concerne à forma, o belo une-se, propriamente, à idéia de causa formal127.
Para São Tomás de Aquino, o bem tem uma conotação objetiva porque é algo desejável e não está atrelado a mais nada. É como algo que se encontra a uma certa distância e o desejamos porque o aceitamos e nos sentimos atraídos pelo que ele é. O belo é subjetivo porque depende da faculdade cognoscitiva, que pelos atributos de proporção deleitam os sentidos e causam prazer. Quando trata de belo e do bem, contudo, num mesmo objeto, eles se fundem na forma, coisa que não é nenhuma novidade, pois já fora aceita anteriormente por outros. Esta idéia de fusão entre o belo e o bem na forma suscita, entretanto, outra questão. Se o bem está ligado à forma e se o desejamos, almejamos também a forma. Entendemos que neste fato, São Tomás de Aquino coloca a explicação do apetite e desejo de posse do objeto, enquanto que o belo, também inserido na forma dá prazer, pela relação com o puro conhecimento. Desta maneira, a forma, se boa e bela, resulta desejo de posse e prazer ao mesmo tempo. Neste contexto, podemos compreender o termo visio, contendo o belo, entendido por São Tomás de Aquino como conhecimento a respeito da causa formal e imanente da forma substancial, não apenas como visão de aspectos sensíveis. O que faz com que a coisa bela suscite prazer e deleite não são os aspectos visíveis, mas o olhar conhecedor, que entendemos como uma apreciação, uma admiração com conhecimento. Neste aspecto, encontramos vestígios da forma como os antigos viam a arte. Também Santo Agostinho conclui “que as coisas deleitam porque são 127
St. Th. 1,5,4 a 1; tr. It. 1, p. 144.
belas”128. O conhecimento estético possui a mesma complexidade do conhecimento intelectual, pois ambos relacionam-se ao mesmo objeto, que é a realidade substancial. Na ontologia tomista o que vale é o ato concreto de existência; a união entre forma e matéria é a composição de essência e existência. Havendo esta união, o ser não é uma simples determinação acidental, mas um ser vivente em si mesmo, pois a substância traduz a essência de coisas em virtude da participação divina129. Sendo assim, para São Tomás de Aquino, os laços entre forma e substância são tão íntimos, que não podem existir indistintamente, pois quando ocorre uma referência a um deles, entende-se pelo outro, inclusive.
3. 2. A palavra e a imagem para São Tomás de Aquino
São Tomás de Aquino toma posições definidas com relação à imagem e à palavra. Em Definição da Arte, Eco (1972), faz referência à acepção de Maritain, acerca do simbolismo. Na verdade, devemos iniciar pela poesia, a qual São Tomás de Aquino destaca como inferior, mas porque a compara com as sagradas escrituras e com a Teologia; além disto, a poesia é algo não científico ao realizar metáforas com a intenção de deleite. O conhecimento através da poesia é “...por contextualidade afectiva à realidade”130, e nela está inserida a subjetividade do sujeito, portanto, este conhecimento vem do espírito e por isso factível ou operativo. É deste mesmo processo que resulta a obra de arte.
A poesia e a obra de arte, para São Tomás de Aquino, são desvalorizadas parcialmente, justamente pela presença do signo-imagem que as compõe. Ele prefere as 128 129 130
AGOSTINHO. De Vera Religione, 32,19. TOMÁS DE AQUINO. Contra Gentiles, II, 54. Ibidem, p. 108.
profecias, e que estas fossem comunicadas através de palavras, menos inequívocas e ambíguas. Cumpre, aqui, salientar que a posição de São Tomás de Aquino deve-se aos meios de comunicação, preferindo o mais seguro, no caso, a linguagem falada, e não um caso estético ou teológico. Este fato nos tranqüiliza como investigadores da estética medieval, já que insistimos na contribuição do Teólogo, no processo de influência do aristotelismo, na iconografia desde meados do século XII e por todo o século XIII. A estética do simbolismo, tanto é reconhecida, na Idade Média, que os hermeneutas da época tratam de definir o significado figural e conceptual dos símbolos, retirando-lhes o máximo de ambigüidade. Entendemos que, se há esta preocupação, é viável que ocorre, também, a valorização da poesia, conseqüentemente, da iconografia, já que poesia e artes visuais são vistas de um mesmo prisma, desde a Antigüidade, embora que concebidas de forma diferente, num período e noutro, como já discorremos neste trabalho.
3. 3. Intuição e arte na Idade Média
A arte, contudo, sempre foi imbuída de uma intuição, embora não admitida e imaginável na Idade Média; não uma intuição como fantasia dos modernos e pósmodernos, mas uma intuição mais ligada aos tempos platônicos, a uma filosofia clássica dos primeiros princípios, uma operação lógica, resultante do funcionamento da própria razão. A intuição vista sob a concepção antiga era vinculada mais ao nous do que ao próprio pensamento, portanto algo autônomo da razão.
Eco (l989) apresenta sua discordância com Maritain, a respeito de dois tipos de inconscientes. Maritain chama a um de inconsciente espiritual e a outro, de inconsciente da matéria, o freudiano, onde estariam os instintos, complexos e desejos, duas espécies
distintas e que se relacionam. A intuição teria origem no primeiro. É o mesmo lugar que nasce o conhecimento poético, onde se busca a essência do ser. Vemos, neste pensamento, uma presença sutil do inteligível e embora os escolásticos não se preocupem com a vida inconsciente da alma, também inconscientemente contribuem para que outros estudos sejam realizados, a partir das nuances profundas em que o conhecimento signo-imagem se processa. “A Idade Média não é uma ilha histórica, mas uma dimensão do espírito”131. Evidentemente, se este período é uma dimensão do espírito e, conseqüentemente, tem implicações filosóficas e psicológicas, compreendemos que um autor, ao refleti-lo, poderá, posteriormente descobrir nuances estéticas inimagináveis pelos medievais. É o caso que ocorre com Maritain, segundo Eco132, ao interpretar textos de São Tomás de Aquino, com relação a visio, por exemplo. O teólogo a vê “...como um acto complexo de juízo, penetrado de inteligência, posterior à abstração primária de simples “apprehensio” e logo, mediato, processual e complexo”133. Maritain conclui a visio como um processo fulminante e inédito, que capta a forma de imediato, sem nenhum esforço de abstração. Concordamos com Eco, quando ele se refere ao exemplo citado, de que a conclusão de Maritain está imbuída de modernidade. Qualquer medieval refutaria ou não chegaria a compreender este ato. Neste caso, observamos, na acepção deste último, ao manifestar-se sobre a visio, que há um envolvimento da psicologia da percepção da forma, uma maneira gestáltica de ver, como já discorremos no primeiro capítulo, ou seja, um olhar sintético e imediato, contrapondo-se ao esforço mediato e complexo de São Tomás de Aquino.
Nosso intento é tentar entender, com mais clareza, os medievais, expandindo os temas até nossos tempos. Assim, vamos nos deter, ainda, na definição de São Tomás de Aquino com relação a habitus operativus, não permanecendo, apenas, num contexto medieval. A escolha deste procedimento decorre do fato de acreditarmos que é mais viável tratarmos da arte da Idade Média, do ponto de vista do olhar de outros autores e do nosso, a partir dos conceitos medievais, do que tentarmos entendê-la apenas através dos 131 132 133
ECO, 1972. p. 101. Ibidem, passim. Ibidem. p.102.
escolásticos. Quanto a este nosso posicionamento, já foi explicitado na Introdução deste trabalho.
Sobre a questão do ato produtivo em São Tomás de Aquino, como salienta Eco, os paradigmas modernos dão conta que existiu nele “...uma idéia interior original como núcleo do processo criativo”134. Esta acepção vai além da doutrina clássica tomista, não só como uma reunião de regras objetivas e antigas, mas como razão seminal, intuição e finalmente schéma dinamique. Podemos ir mais longe, a partir da teoria de Benedetto Croce 135, acerca da intuição. Atualmente foi suplantada, em linhas gerais, por uma teoria da estética, mas muito embora tenha surgido uma onda de crítica a essa teoria, a arte fica perfeitamente definida quando simplesmente definida como “intuição”, revelando-se muito mais esclarecedora do que qualquer uma outra teoria anteriormente formulada. A dificuldade tem consistido em aplicar uma teoria que depende de termos tão vagos com “intuição e lirismo”. Mas o que se deve notar imediatamente é que esta teoria complicada e compreensiva das artes não precisa lançar mão da palavra beleza.
Sem sombra de dúvida, tachar a arte medieval ou qualquer outra de apenas intuitiva seria uma ingenuidade. A percepção passa pela intuição e o intelecto136, embora Descartes perceba a intuição mais confiável do que a dedução. O que deduzimos destas concepções em relação à arte é que, embora São Tomás de Aquino não se aperceba, a sua estética está imbuída de intuição. Isto é possível entender, se seguirmos as reflexões de Maritain. Nesse sentido, consideramos a estética do Teólogo a mais viável do nosso ponto de vista, visto que, desta forma, mesmo que inconsciente, ele consegue elevar a arte ao seu patamar intuitivo e intelectual. Vejamos, então, o que São Tomás de Aquino nos revela em trecho de Contra Gentiles. Ele declara “...que a felicidade não se encontra na arte”137, porque ela é prática e não possui um fim último, já que esta é constituída da própria vida humana. Mais adiante, no mesmo texto, ele ressalta: 134
Ibidem. p.103. READ, Herbert. O Sentido da Arte.São Paulo: IBASA, 1978, p.21. 136 Ibidem, p. 21 – Cf. ARNHEIN, Rudolf. Intuição e Intelecto na Arte. Tradução Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 137 TOMÁS DE AQUINO. Contra Gentiles, 2. Cap. XXXVI. 135
À toda a obra de arte está suposta a obra da natureza, e paralelamente a essa obra de Deus criador, pois a matéria da obra de arte vem da natureza e essa de Deus por meio da criação. Mas o que se fabrica se mantém no ser graças à resistência, como a casa graças à natureza de seus tijolos. Toda a natureza é, portanto, conservada no ser pela virtude divina”138.
Na passagem acima, São Tomás de Aquino revela que as coisas são sustentadas por Deus, dado que estas sejam, necessariamente, impregnadas do divino. A arte é feita com matéria que provém da natureza. Sendo assim, o ser permanece na obra de arte devido à resistência dada pela natureza, também sustentada por Deus. Observamos, neste ponto, uma visão contraditória a Platão e Plotino. Ao mesmo tempo em que São Tomás admite que a obra de arte é uma imitação da natureza, também lhe dá um status ao assimilar a virtude divina, já que, tanto natureza quanto a arte provém de uma ordem natura. Neste trecho, o sensível, mesmo que sutilmente, adquire seu valor com relação à hierarquia do bem e do belo, pois as formas, incluindo a arte, são sutilmente sustentadas do divino.
3. 4. Aristóteles e São Tomás de Aquino
Para entendermos o posicionamento de São Tomás de Aquino, quanto à arte e o belo, é necessário que voltemo-nos a analisar alguns aspectos aristotélicos, visto que o Teólogo, visivelmente, tem preferências por Aristóteles.
138
Ibidem, 4. do Cap. LXV.
Para Aristóteles, “as ações e as obras de arte estão submetidas ao mesmo princípio da causalidade que a natureza”139. São causas psicológicas: prática para ação, e técnica para a arte. O belo e o bem, em Aristóteles, têm um valor cósmico ou metafísico e não prático, nem técnico, portanto a discussão da arte e do belo estão em campos separados, em Aristóteles. Há uma doutrina das artes, como técnica. Assim, Aristóteles coloca as artes plásticas fora do
contexto das outras artes. Para, então, reconstruir uma estética em
Aristóteles, devemos buscar subsídios, não nas artes, mas na Metafísica140.
As formas supremas do belo são a conformidade com as leis, a simetria e a determinação, e são precisamente essas formas que se encontram nas matemáticas, e como essas formas parecem ser a causa de muitos objetos, as matemáticas tratam numa certa medida duma causa que é a beleza141.
Há uma relação entre matemáticas e beleza, pois esta última é a causa das primeiras, e dos objetos. Segundo Bayer, para Aristóteles “o belo moral é uma estética do bem” 142. Este bem é apresentado por bem cósmico, bem prático e bem útil. Sintetizando, o bem cósmico é a causa última. “Tudo o que se produz na natureza e na arte só tem um fim, o bem”143. Bayer diz que Leibniz chamará Deus, mais tarde, o bem a que Aristóteles se refere144. O bem prático é a vontade humana, princípio da atividade. Desta forma, podemos detectar um certo relativismo no Filósofo, visto que há um bem para cada ser, pois o valor deste depende da intensidade com que se realiza o seu fim próprio145. O bem útil é aquele que é meio, é determinado para o sujeito que age. O bem prático é uma ação desinteressada, que é boa e bela. O desinteresse, portanto, é a beleza. O interesse na ação caracteriza o bem útil. Essa discussão é vista pelo campo da ética, pois o belo depende do bem que é moral. Entra no campo da estética, quando intervem uma grandeza, quando há desinteresse na
139 140 141 142 143 144 145
BAYER, Raymond. Teoria da Arte. Lisboa: Estampa, 1995, p. 48. Ibidem, p. 48. ARISTÓTELES, Metafísica, XII-3-1178-1. BAYER, 1995, p. 48. Cf. Metafísica, I-3-983-31. BAYER, 1995, p. 49. Ibidem, p. 49.
própria ação. A diferença entre bem e belo em Aristóteles consiste em que bem possui uma finalidade, ao contrário de beleza.
A par do belo moral, refletiremos, a seguir, o belo formal, onde Aristóteles tem influência de Pitágoras e matemáticas. Já vimos que conformidade com as leis, simetria e determinação são categorias matemáticas de beleza, com grandeza em si. Para o Filósofo, a beleza é a razão em leis, é, em última instância, uma estética racionalista. É a razão que fixa essas leis, tornando-se condição geral do belo.
É, ao mesmo tempo racional, e uma
preocupação naturalista, em Aristóteles. Este ponto é assimilado pelos medievais, isto é, o valor racional do belo formal. Já constatamos este fato, quando há um espantoso interesse pela luz no século XIII, evidenciando a preocupação em comprovar cientificamente o aspecto físico da luz, inclusive. Por simetria, em Aristóteles, entendemos o símbolo do perfeito. A determinação é uma ordem sem limitação. É um belo positivo, onde todos os elementos se unificam pelo racionalismo; é uma especificação qualitativa que define o objeto pelos seus caracteres essenciais.
Passemos, agora, a refletir o pensamento de São Tomás de Aquino, quanto à recepção da Filosofia de Aristóteles, para, então abordar questões da arte e do belo. Para tanto, realizaremos uma reflexão sobre o posicionamento do Teólogo, a partir de seus textos, e após voltaremos aos pontos aristotélicos que São Tomás de Aquino se afina em sua doutrina.
Em Contra Gentiles, é que o Teólogo faz alusão a que “...toda forma de atividade varia com o fim ao qual se propõe e os elementos próprios da operação: uma arte é exercida diversamente de acordo com o propósito assinalado e a matéria trabalhada"146. Fica claro o posicionamento de São Tomás de Aquino, no que se refere a diferenciar a arte de preparar soldados para a guerra e o trabalho dos artesãos, contrapondo-se ao pensamento platônico, que iguala a arte mecânica à intelectual. A filosofia é aprofundada em seus princípios, tanto por Aristóteles, Alberto Magno e São Tomás de Aquino. Estes dois últimos imbuem-na de 146
TOMÁS DE AQUINO. Contra Gentiles, 2. Cap. XXXVI.
uma tradição latina e cristã. Afinal, o que resulta dessa união é uma teologia que usa a filosofia como instrumento da ciência sagrada. Desta forma, o teólogo eleva a filosofia acima de si mesmo, “...transpondo-a à luz superior que faz resplandecer a verdade de maneira mais divina do que humana”147. É este o ponto de divergência entre Aristóteles e São Tomás de Aquino, uma diferença que não chega a ser contraditória, mas sutil e embebida de fé, por isso, o pensamento do Teólogo é considerado, por Maritain, mais como filosofia tomista e menos como filosofia aristotélica.
Segundo Maritain, podemos resumir a filosofia de Aristóteles e São Tomás de Aquino como filosofia natural do espírito humano, a filosofia da evidência, a filosofia do ser, a filosofia da inteligência e a filosofia universal, perdurável e una. Trata-se de filosofia natural do espírito humano, quando desenvolve e aperfeiçoa o que há de mais profundo na nossa inteligência. É da evidência, ao unir a experiência pelos sentidos e a “...evidência intelectual dos primeiros princípios”148. Diz-se filosofia do ser, porque se baseia naquilo que é; da inteligência, no sentido da confiança quanto à faculdade do verdadeiro; universal, quando é expressão e resultado da razão, sempre a mesma; perdurável, porque sempre existiu em seu estado pré-filosófico, graças à inteligência e razão; e una no momento que é a única a garantir ao ser humano a harmonia e a unidade que lhes são características. Quanto à filosofia de Aristóteles e São Tomás de Aquino, Maritain assim expressa:
A filosofia e o conjunto das outras ciências possuem o mesmo objeto material (tudo o que é cognoscível). Mas a filosofia considera formalmente as causas primeiras e as outras ciências consideram formalmente as causas segundas.(...) Os princípios das ciências particulares estão subordinados aos da filosofia, mas somente de modo indireto. Como tal, a filosofia dirige as outras ciências, direção que poderíamos denominar política (as ciências particulares são autônomas). O estudo da filosofia primeira (metafísica) não deve colocar-se no início, mas no termo da investigação intelectual.149. 147
148 149
MARITAIN, Jacques. Introdução Geral à Filosofia. Tradução de Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado. Rio de Janeiro: AGIR, 6 Ed., 1963, p.65. Ibidem. p. 65. Ibidem, p.71.
A filosofia é considerada o mais alto dos conhecimentos humanos. Deixar claro o que é filosofia para Aristóteles e São Tomás de Aquino é deveras importante para o argumento que estamos elaborando, quando pretendemos descobrir o modo como o aristotelismo contribuiu para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII. Ora, se tratamos sobre a dualidade de pensamento de um povo e de uma época, especialmente a filosofia pode nos subsidiar rumo à resposta ao problema proposto. Então, o conceito de filosofia para Aristóteles e São Tomás de Aquino, bem como suas ligações com outras ciências e até mesmo com a teologia, como ciência própria de Deus, nos interessa. Embora nossa pesquisa refira-se a um período, onde a teologia é considerada a ciência maior, inclusive submetendo a filosofia em suas conclusões, as duas são independentes em seus princípios: a filosofia é voltada às verdades primeiras, impostas pela inteligência, enquanto a teologia é ligada às verdades reveladas por Deus. O pensamento que impregna a arte medieval do início do século XIII, através de Aristóteles, via São Tomás de Aquino, é resultante de uma filosofia por excelência, sendo regulada pela teologia. Falamos de influências diretas da filosofia, quando a arte passa a ser produzida através de uma visão de realidade refletida, totalmente diversa do platonismo, onde o sensível se contrapõe ao inteligível. Referimo-nos a uma influência indireta da teologia porque, sendo ela fiscalizadora das conclusões dos filósofos, não há como os artistas medievais desvencilharem-se de uma iconografia basicamente sacra e revestida de religiosidade cristã.
Há a filosofia dos que negam a filosofia, ao defenderem que não existe ciência superior a outras, pois os princípios destas não são subordinados a uma ciência mais elevada. Maritain salienta, inclusive, a Filosofia de Descartes, ao colocar que a “...filosofia (metafísica) deve vir no início da investigação intelectual”150, dirigindo diretamente as outras ciências. Observamos, nesta acepção de Descartes, pontos em comum e também outros divergentes com a concepção de São Tomás de Aquino. O que é comum é que os dois concordam que os princípios das ciências particulares sejam subordinados aos da 150
Ibidem, p. 75.
Filosofia, sendo o primeiro, defensor de que este processo ocorre de modo direto e o segundo de forma indireta; para São Tomás de Aquino, a metafísica é integrante do processo de investigação intelectual. Assim, concluímos que realmente existe uma filosofia em São Tomás de Aquino, regulada, sim, pela teologia, mas, segundo ele, toda a investigação realizada já é, por princípio, a própria filosofia. Reiteramos, então, nossa investigação no sentido de que a influência do aristotelismo, na iconografia do século XIII, tenha ocorrido por meio da filosofia de São Tomás de Aquino. Até o momento, acreditamos que a influência aristotélica, na arte medieval, esteja indiretamente ligada a São Tomás de Aquino. Este fato não impede que a arte do século XIII, também seja resultado de outras influências. Considerando a arte uma ciência particular, esta está subordinada a uma outra maior: a filosofia. A arte, portanto, recebe influência da filosofia de São Tomás de Aquino e, ao mesmo tempo, é controlada pela teologia. Esta supervisiona a arte e a filosofia, regulamento a que podemos denominar mais moral e ético do que racional. Para o Teólogo, a filosofia é sabedoria, é o mais alto dos conhecimentos humanos e independentes da teologia - esta vista como ciência de Deus e, por isso, considerada superior.
Basta-nos prosseguir, então, em nosso desenvolvimento, refletindo sobre a filosofia especulativa, relativa à natureza sensível, deixando de lado a filosofia do número ou da matemática. Esta última se envolve com coisas corpóreas no primeiro sentido, acreditando que a filosofia do ser móvel ou sensível, que trata das coisas corpóreas no segundo sentido, será de mais valia para nosso estudo sobre os aspectos da arte, da estética e da iconografia no século XIII, especialmente em São Tomás de Aquino. A filosofia da natureza sensível trata dos problemas da filosofia natural. Iniciemos, então, pelo hylemorfismo em Aristóteles, para entender São Tomás de Aquino: a substância corpórea é composta de duas partes, que se complementam: “...uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (matéria), outra ativa e determinante (forma)”151. Maritain diz que a matéria é a matériaprima, aquilo de que são feitas as coisas, um princípio que não existe por si só, mas que, através da forma, é capaz de existir. Esta forma é o que Platão chamou de uma espécie de não-ser.
151
Ibidem, p.108.
Aristóteles afirma que os indivíduos são compostos de matéria (hylé) e forma (eidos). A primeira é o princípio de individualização e a segunda, a maneira como a matéria se organiza152.
É como se, de certo modo, Aristóteles jogasse o dualismo platônico para dentro do indivíduo, da substância individual. Matéria e forma são, entretanto, indissociáveis, constituindo uma unidade (sentido literal de “indivíduo”): a matéria só existe na medida em que possui uma determinada forma, a forma por sua vez é sempre forma de um objeto material concreto. Não existem formas ou idéias puras como no mundo inteligível platônico (...) A estratégia básica de Aristóteles em sua crítica tanto a Platão quanto aos pré-socráticos consiste em grande parte em considerar que esses filósofos enfrentaram certas dificuldades e problemas porque não fizeram determinadas distinções acerca das noções que discutiam, provocando, portanto, confusões conceituais. Aristóteles defende assim a necessidade de formular distinções claras de modo a superar essas dificuldades, desenvolvendo sua teoria sobre o ser, sua metafísica, com base nesse propósito, [como] o problema do ser e a teoria da causalidade153.
O que podemos concluir desde já é que Platão e Aristóteles se contrapõem, em seus posicionamentos, à questão da forma. Enquanto o primeiro coloca a forma num mundo inteligível, como uma idéia primeira, a que podemos chamar de sutil ou acima da nossa inteligência humana, o segundo embute a forma no indivíduo, ligando-a à substância. Acreditamos que este seja o ponto chave de nossa investigação com referência à forma como se processou a inclusão do aristotelismo na estética medieval, especialmente no século XIII.
Para que possamos discorrer sobre o pensamento de São Tomás de Aquino, é necessário que entendamos porquê o Teólogo prefere Aristóteles mais que Platão, conseqüentemente firmando sua doutrina visivelmente mais no mundo sensível do que no mundo inteligível. A questão da forma é extremamente importante para que possamos nos posicionar acerca do tipo de forma que estamos nos referindo, no último capítulo, em nossas leituras formais da iconografia românica e gótica, respectivamente: se platônica ou aristotélica. Ora, a esta altura já podemos ter uma idéia de que fatalmente recairemos numa 152 153
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica Z e H. MARCONDES, Danilo. Introdução à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 72 [grifo nosso].
opção, quase forçada pelas circunstâncias, de utilizar como parâmetro, a forma vista por Aristóteles, visto que tratamos de arte visual e, portanto, de substância e forma inseparáveis. Assim nos deteremos mais na reflexão sobre o problema do ser e da teoria da causalidade. Seguiremos, portanto, algumas idéias trazidas por Marcondes154. O autor salienta que devemos retirar certas confusões sobre o termo ser, em grego einai. O modo de existência da substância individual é diferente do das qualidades, quantidades, e relações, pois estas dependem das substâncias, o que Aristóteles desenvolve no seu Tratado das Categorias. Esta mudança causa reações apenas nos nominalistas por suscitar a interpretação de que o ser é e não é. Marcondes apresenta uma distinção entre o ser identidade e o ser atributo ou predicativo, dando a característica de um objeto.
P. ex.: “Sócrates é sábio” (uso predicativo), o que consiste em um uso diferente de “Sócrates é [ou existe]” (uso existencial, meramente afirma a existência), e “Sócrates é Sócrates” (afirmação da identidade – todo o objeto é igual a si mesmo - , mas que não acrescenta nada ao conhecimento de Sócrates)155.
As constatações de que o uso do termo ser pode causar interpretações dúbias, levam-nos a acompanhar reflexões realizadas por Marcondes, a partir da Metafísica de Aristóteles, como: “essência e acidente; necessidade e contingência; ato e potência”156. A partir das idéias do autor, podemos sintetizar que essência é o que faz com que a coisa seja, um substrato dos predicados, de onde se origina o termo substantia, tradução latina de ousia aristotélica. Acidentes são características mutáveis, variáveis da coisa. Essência e acidente podem ser entendidos nos seguintes exemplos: “Sócrates é um ser humano”, o que designa essência; “Sócrates é calvo”, é uma característica acidental, porque Sócrates não foi sempre calvo157. A segunda distinção corresponde à necessidade e a contingência, as quais têm correlação com essência e acidente, respectivamente. Quanto a ato e potência, é uma distinção referente ao aspecto uno e múltiplo da coisa, isto é, permite a explicação da 154 155 156 157
Ibidem, p. 73. Ibidem, p. 73. [grifo nosso]. Ibidem, p. 73. Ibidem, p. 73.
transformação, enquanto a coisa é em ato e aquilo que ela poderá ser, o que está na sua potência. Assim observamos que ao colocar a essência nas coisas, Aristóteles possibilita a variabilidade do ser, enquanto que na Teoria das formas platônica o ser é imutável. A propósito da noção de causa (aitia)158, Marcondes159 faz seus comentários a respeito das distinções; dos sentidos das dimensões da causalidade, distinguimos a causa formal e a causa material, por julgarmos de maior relevância para nosso trabalho. A causa formal trata da forma ou modelo, que faz com que a coisa seja o que é, e a causa material é a matéria de que a coisa é feita. Quanto a estes dois aspectos, voltaremos a tratar no último capítulo, na oportunidade da realização de leituras formais da iconografia medieval.
A forma é que permite alguma coisa ser o que é, dando-lhe a sua natureza específica. Feitas essas constatações, advém o problema da origem das idéias. Sendo essas imateriais e objeto de estudo da filosofia natural como os corpos, é chegada a vez de entrar em cena uma filosofia especial, que trata da inteligência e razão humanas: a Psicologia. Vários estudos foram realizados acerca da operação intelectual do homem, mas vamos nos deter no que Aristóteles estabelece e São Tomás de Aquino assimila, a respeito do fenômeno das idéias. Aristóteles pensa diferentemente de Platão. Enquanto Platão admite que já nascemos com nossas idéias, assim como a alma e, por isso, é incluído entre os filósofos chamados inatistas, como Descartes e Leibniz, Aristóteles defende que: “Nossas idéias vêm dos sentidos (e, portanto, das coisas), mas pela atividade de uma faculdade espiritual e são essencialmente diferentes das sensações e das imagens”160. Nesta passagem reside uma diferença substancial entre o platonismo e o aristotelismo. Platão exclui as sensações, as imagens e os sentidos das idéias, Aristóteles abstrai as idéias, via espiritual, dos sentidos e das coisas.
Na Idade Média, as concepções de Platão e Aristóteles são distintas, reforçadas a partir do século XII, pela disputa a propósito da natureza dos universais. Segundo Pannenberg, o que diferencia a concepção platônica da aristotélica é que enquanto Platão 158 159 160
ARISTÓTELES. Física II, 3, 194 b16. MARCONDES, 1998, p.73. MARITAIN, 1963 p. 113.
concebe eidos como uma idéia transcendente, acima do mundo sensível, onde as coisas são meras cópias, Aristóteles contempla a forma (eidos) das coisas como uma forma unida a uma matéria e que constitui sua substância161. Assim, a linguagem das escolas medievais distingue três possibilidades, a saber: - universalia in re – o da postura aristotélica, segundo a qual os conceitos estão realizados no objeto da percepção; - universalia ante rem – postura platônica, onde as idéias antecedem as coisas e estas são simples cópias; - universalia post rem – postura nominalista, onde os conceitos universais são nomina, idéias criadas pelo homem e que necessitam da realidade objetiva. Quanto às concepções dos filósofos, cabe acrescentar que ambos “conceberam o universal conceitual como um momento de sua concepção da realidade das coisas, sendo aí onde está a plausividade interna dos dois”162. A idéia em Platão é um conceito normativo que deve ser objeto de uma captação intuitiva, onde as coisas são imitação da idéia. Idéia, para Aristóteles, é o elemento formal presente nas coisas que existem de maneira concreta. Assim, o pensamento aristotélico entende a natureza da alma e suas relações com o mundo corpóreo diferente de seu mestre. Para o Filósofo, as idéias não antecedem à encarnação do corpo, nem a alma é motor de seu próprio movimento, pois entendia que todo movimento se reduz ao movimento corpóreo no espaço163. Aristóteles, contudo, identifica, na alma, a causa do movimento do corpo; a alma está unida ao corpo, mas é a forma do corpo vivente que faz do corpo um ser vivo. O corpo tem vida segundo a sua potência (dynamis). A alma, portanto, é o ato (enèrgeia) do corpo natural, que tem vida. Platão não deixa claro como a alma move o corpo; Aristóteles introduz o binômio conceitual potência e ato, concebendo o movimento como ato de algo em potência. O fim a que se orienta e nele se atualiza o ser vivo, se encontra na ação: -1ª enteléchia - existência da alma, como ato do corpo animado; -2ª enteléchia - consiste na atividade desempenhada pela alma. 161
162 163
PANNENBERG, Wolfhart. Una historia de la filosofia desde la Idea de Dios. Teología y Filosofía. Tradución de Rafael Fernándes de Mururi Duque. 2ed, Salamanca: Síguime, 2002, p. 82. Ibidem, p. 83. Ibidem, p. 83 e 84.
Na Metafísica, Aristóteles resumiu este pensamento: Porque a obra é um fim, e este ato é a obra; por isso também a palavra ato (enèrgeia) está diretamente relacionada com a obra (ergon) e tende à enteléquia (entelechia)164. Entendemos que Platão coloca uma condição de preexistência da alma, como princípio motor do corpo, e que Aristóteles, coloca a existência da alma, como ato do corpo animado. A concepção platônica, portanto, é transcendente e a aristotélica está fincada nos entes sensíveis. É imperativo, nesta reflexão, que salientemos o conceito de ente concreto para Aristóteles: “ente concreto (ousia) [substância, algo determinado] se compõe de matéria e forma, porque a forma (eidos) está atualizada na matéria, a qual é que permite a atualização”165. Aristóteles dá um exemplo de uma segunda forma de movimento, aquela a que um artesão dá forma a um material. Há nela quatro causas, a saber: o artesão que é a causa eficiente do movimento; o fim que o artesão tem em mente; a constituição da forma mesmo; e a matéria que a ela se imprime para realizar nela o fim. Compreendemos que matéria e substância possuem a mesma conotação para Aristóteles.
A questão da vinculação da forma com a matéria é fator determinante com relação ao interesse dos medievais por Aristóteles no início do século XIII. O conhecimento, das formas, realizado nos objetos materiais deve ser extraído por abstração, a partir de imagens percebidas, processo semelhante ao produto da atividade do nous na alma. O nous “ativo” é entendido como separado da alma, vem do exterior e é imortal como a luz Aristóteles destaca que alma unida ao corpo perece com ele, igual ao nous “passivo”, que combina as formas conceituais abstraídas das imagens perceptivas166. Quanto a este tema, a concepção aristotélica está muito próxima à descrição platônica do conhecimento das idéias por “iluminação”, pois nela o nous “ativo” age na alma como uma luz; é desta maneira como imprimem na alma as formas conceituais contidas nas imagens 164 165 166
ARISTÓTELES. Metafísica, 1050 a 021-23. PANNENBERG, 2002, p. 86. [grifo nosso]. Cf. ARISTÓTELES, De anima. III, 5.
da percepção. Desta forma, entendemos que este é um ponto de ligação entre os dois filósofos, no entanto, a divergência continua quanto à forma de ver a questão do particular e do universal. Em Platão, os gêneros universais continuam significando os princípios (archai) das coisas mesmas. Em Aristóteles, os conceitos universais não foram concebidos e sim como princípios do ente, como, formas mais gerais, que aparecem nos enunciados ou juízos; as “categorias”. Os enunciados se referem aos objetos da percepção que possuem o modus essendi da forma atualizada em uma matéria. A idéia de que Platão insinue que o conhecimento parta das coisas sensíveis e da percepção, como defendem, inclusive Plotino, Porfírio e Santo Agostinho, faz com que os primeiros padres medievais não coloquem distinções extremas entre Platão e Aristóteles; mas em um ponto os pensamentos divergem, o fato de que as categorias sejam apenas para tratar das coisas do mundo sensível e não do mundo espiritual. A questão é discutida a partir da posição de filósofos do platonismo médio e neoplatônicos que colocam que o “divino é o bem e unidade suprema (...) se eleva para cima da unidade mesma” [semelhante ao nous que transcende à razão]
167
. Esta afirmação fecha mais com a
doutrina cristã e afasta-se da teoria das categorias aristotélicas. O próprio Aristóteles inclui a Deus nas categorias das substâncias168. Assim, os platônicos não aceitam a recaída de Deus ao mundo corpóreo. No século XIII, as idéias de Aristóteles passam a satisfazer curiosidade da época por um saber lógico e empírico. A partir do século XI, a lógica aristotélica penetra entre os escolásticos através de textos traduzidos pelos árabes, embora As categorias, o De Interpretatione, bem como os comentários, especialmente de Boécio aos escritos lógicos aristotélicos, já fossem conhecidos há mais tempo. Assim se seguem os demais textos de Aristóteles: Século XII –
De Anima e partes da Metafísica;
Ano 1200 _ A Física, restante dos escritos sobre a Filosofia Natural e fragmentos de Ética a Nicômaco; Século XIII _ Restante da Metafísica e Ética a Nicômaco. 167 168
Paid. I, 8,71, 1. [grifo nosso]. ARISTÓTELES. Eth. Nic., 1096 a 24.
A princípio os textos não são bem aceitos pela Igreja, mas no período de Alberto Magno, da metade do século XIII em diante, a autoridade do Filósofo se impõe. A comunidade medieval, então, reconhece o caráter normativo da Metafísica, graças aos Comentários de Alberto Magno e São Tomás de Aquino, na defesa da “concepção aristotélica de que nossa formação de conceitos se origina na abstração do conteúdo conceitual a partir de imagens percebidas”169. Daí em diante, houve a necessidade de se responder ao questionamento “pela natureza do entendimento agente, cuja atividade (a maneira da luz) libera os conhecimentos conceituais das imagens percebidas”170. Alberto Magno rechaça a idéia de Alexandre de Afrodisía quanto à vinculação da doutrina aristotélica com a agostiniana da iluminação, argumento baseado na doutrina de Teologia Cristã da imortalidade da alma, ao entender que esta não perece com o corpo, como insinua a teoria dos filósofos citados. Síger de Brabante contraria Alberto Magno, alegando que a posição de Aristóteles não é, na verdade, colocar o entendimento agente como parte da alma humana. A interpretação de Alberto Magno e São Tomás de Aquino, contudo, é a que permanece, aquele em que o entendimento humano é apresentado como o sujeito ativo e produtor de seus atos de conhecimento. Guilherme de Auvergne, no começo do século XIII, alega que Aristóteles desconhece a força imperativa do Verbo Criador e sua liberdade em criar desligada de toda sujeição prévia. Os teólogos, em contrapartida, defendem que se Deus tem entendimento, tem que ter também vontade. Surge, então, uma teoria do entendimento e vontade, vinculada a Deus. Os aristotélicos árabes colocam em dúvida que a providência divina possa intervir nos acontecimentos particulares. Este pensamento tem correspondência com a concepção aristotélica da essência da Inteligência divina que intelege a si mesma171 e move de maneira mediata os astros e o cosmos. São Tomás de Aquino contraria esta idéia, argumentando que 169 170 171
PANNENBERG, 2002, p. 94. Ibidem, p. 94. ARISTÓTELES. Met., 1074b 345.
o “entendimento divino se conhece a si mesmo como causa das criaturas que serão criadas e que esse conhecimento, como sua causa, não só se estende às características gerais das coisas (gêneros e espécies), bem como às suas propriedades particulares” 172. Fica evidente, por conseguinte, a contribuição do pensamento de São Tomás de Aquino no século XIII, com relação à idéia de homem, natureza e Deus.
São Tomás de Aquino chega a uma filosofia de senso comum, chamada animismo, para explicar as relações entre alma e corpo humanos. Nesta, o humano é composto de dois princípios incompletos e complementares, um dos quais é a alma racional, o espiritual. Aristóteles dá à filosofia uma nova feição, ao afirmar que nossas idéias não são inatas, mas que procedem dos sentidos. A faculdade chamada razão, por meio da atividade do espírito, é o que condiciona o conhecimento humano. Aristóteles trabalha mais em profundidade do que em amplitude. Sua capacidade de liberdade de espírito somente é superada por São Tomás de Aquino, que une a sabedoria humana à fé, à verdade divina. Devemos a São Tomás de Aquino a transmissão da intelectualidade de Aristóteles à Idade Média, já iniciada por Alberto Magno. O Teólogo ocupa-se da visão subjetiva do belo, ao retomar as noções estéticas propostas por Alberto Magno. São Tomás de Aquino, aceitando a inclusão do belo entre as propriedades transcendentais, elabora uma definição que extrapola em novidade, a de seu mestre. Este pensamento é refletido por Eco, a partir de Maritain, em Art et Scolastique. Segundo Eco, Maritain aborda o conceito de claritas, a partir de um pensamento medieval mais relacionado à concepção de Alberto Magno do que de São Tomás de Aquino:
Em Alberto Magno há um acento platônico, uma dialética de “esse e essentia”, na qual a forma, refulgando sobre a matéria que organiza, não se identifica completamente com ela, conservando uma proeminência ideal. Em São Tomás, pelo contrário, no âmago de uma dialética entre “essência” e “acto concreto de existir”, a forma só se torna forma particularizando-se numa substância concretamente existente173.
172
173
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, 22,2. ECO, 1972, p. 104.
A respeito da citação acima, observamos que, na acepção de Alberto Magno, há um princípio de inteligibilidade, quando o ser e a essência não são identificados na coisa e, sim, na sua origem. São Tomás de Aquino, pelo contrário, vê a forma numa substância concreta. Enquanto Alberto Magno nos leva a conceber uma clareza metafísica, São Tomás de Aquino, deparando-se com o mistério da participação, onde as formas unem-se ao divino, explicita, na sua teoria, a “possibilidade intelectual do conhecimento do ser”174. Ele acentua mais a clareza no concreto do que no metafísico e misterioso: forma e matéria. A característica da claritas, do esplendor, da luz, para São Tomás de Aquino é diferente da que significa para os neoplatônicos. Enquanto que para estes últimos, luz vem do alto, para o Teólogo ela vem de baixo e sobe. Ocorre que, em São Tomás de Aquino, claridade, juntamente com integridade e proporção, constitui uma característica de beleza. A claridade não
significa
necessariamente
luz,
mas
um
esplendor
formal,
princípio
de
inteligibilidade175.
3. 5. A ontologia da forma artística em São Tomás de Aquino
No século XIII, e mais especificamente para São Tomás de Aquino, a diferença ontológica entre os organismos da natureza e a arte está na questão acidental em que a forma é induzida na matéria pelo artista, enquanto que a natureza é substancial 176. Neste sentido, a arte continua num plano inferior ao da natureza. A questão é que os
174 175
176
Ibidem, p.104. MARITAIN, Jacques. Arte y Escolástica. Traducción de Juan Arquímedes Gonzáles. Buenos Aires: La Espiga de Oro, 1945, p.39. ECO, 1989, p. 134.
materiais usados pelo artista, como mármore, bronze, argila, vidro, já são vivos, em virtude de serem participações divinas e estes sustentam a arte177.
Eco apresenta um exemplo de São Tomás de Aquino sobre como usa o cobre para fazer uma estátua. Este cobre possui já uma potência da figura que lhe será dada, é infiguratum e é privatio formae, mas a forma artística que o faz estátua modifica-o na superfície, porque seu ser cobre não depende da forma acidental 178. Podemos dizer que a forma dada pela arte é uma das possibilidades da substância. Este pensamento vai bem ao encontro de São Boaventura.
[Há] três forças [que] operam no mundo: Deus, que opera do nada, a natureza, que opera no ser em potência, e a arte, que opera na natureza e pressupõe o ens completum. O artista pode ajudar ou apressar o ritmo produtivo da natureza, não podendo competir com ela179.
O pensamento de São Boaventura e SãoTomás de Aquino, outrossim, é reforçado pelo que escreve o poeta João de Meun em Roman de la rose, após a redação da Summa tomista, fazendo referência à natureza e à arte. O poeta citado manifesta que a arte não abraça a realidade em suas figuras, mesmo imitando a natureza180; arte não cria coisas vivas, elas não caminham, não ouvem, não falam. Eco complementa ainda dizendo que tanto João de Meun como São Tomás de Aquino vêem o aspecto científico do fenômeno e não o estético, e desta forma é supervalorizado o primeiro. Vale, entretanto definir que o poeta defende a alquimia como algo acima da arte, porque pode modificar a substância, enquanto que a arte transforma apenas na sua superficialidade. Esta ontologia da forma artística, na Idade Média, faz com que se ligue o estético e o artístico, sem, contudo, definir especificamente o segundo, devido a já conhecida desvalorização do estético. A separação da estética e do artístico só ocorre quando, na modernidade desenvolve-se uma Teoria das
177
TOMÁS DE AQUINO. Contra Gentiles. III, 64. ECO, 1989, p. 134. 179 BOAVENTURA. II Sentença, 7,2,2,2. apud ECO, 1989. [grifo do autor] 178
180
ECO, 1989, p. 135.
belas-artes, dando a noção de arte como entendemos hoje, ou seja, uma produção de obras, como objeto primeiro, a fruição estética.
A dificuldade de separar, subdividir e classificar as atividades produtivas na Idade Média resultou apenas na divisão de artes mais nobres e manuais. As nobres foram denominadas liberais, ou seja, aquelas que usavam apenas o racional sem se sujeitar ao corpo. As servis, em contrapartida, eram chamadas mecânicas, porque no entendimento dos medievais afastavam-se da alma, esta superior ao corpo.
A arte é um fazer, para o medieval. A arte nasce quando a razão interessa-se por algo a fazer, e, quando mais tem a fazer, mais é arte. Observamos, contudo, que na medida em que ela mais se aproxima deste objetivo, menor ela se torna. Este fato constitui-se numa contradição entre o que pensam os intelectuais da Idade Média e a divisão realizada entre artes liberais e manuais. São Tomás de Aquino não pensa tão diferente, pois, conforme Eco, ele “percebe que às artes liberais faltam algumas características fabris da arte definida em abstrato, mas considera que também elas podem ser chamadas de artes...”181. Assim, o trabalho manual, como na Antigüidade, continua entre os medievais a ser considerado uma atividade inferior. Enquanto que para os antigos gregos esta teoria está calcada no pensamento oligárquico, na Idade Média é ligada à ideologia de uma sociedade feudal, portanto duas posições aristocráticas, onde a mentalidade intelectual se sobrepõe.
3. 6. A realidade vista por São Tomás de Aquino
181
ECO, 1989, p.136.
Segundo o texto A Igreja e o Poder: representações e discurso de Silva Gomes, “... A cristandade era dominada pelo imperativo da salvação cristã, pelo poder institucional da Igreja e do Império”182. A mudança inicia-se já no século XII com a laicização ou secularização, juntamente com a crescente autonomia das realidades criadas e profanas, aprofundando-se no século XIII, graças ao conceito de natureza. Asssim “...o mundo natural, profano, das realidades criadas”183, progride, emancipando-se das categorias cristãs. O autor ressalta, ainda, no mesmo trecho do texto que “...os séculos XII e XIII foram a passagem do agostinianismo político carolíngio para o naturalismo do Aquinate”184.
Com a difusão da política de Aristóteles, o Estado não tem mais como causa o pecado, não mais uma instituição convencional, mas natural. Como o homem é naturalmente sociável, é, por natureza, um animal social e político (zoon politikon). A sociedade humana está contida na sociabilidade primordial, não é remédio para o pecado e para as incapacidades da natureza. O Estado é, pois, natural, bom em si, necessário para que os homens levem uma “vida boa” neste mundo. (...) Já no século XII, o naturalismo emergia em João de Salisbury com o seu Policraticus. Para ele, o Estado é uma obra-se-arte que imita a natureza. O homem é um artífex que imita a natureza no exercício das artes liberais, das artes manuais e também na arte de governar. O Estado é, pois uma obra-de-arte humana imitando a natureza, mas não é diretamente obra da natureza. Os sucessores do pensamento de Tomás de Aquino descreveram a gênese do corpo social como a passagem da ordem natural à instauração de uma ordem humana185.
Fica evidente que as transformações ocorridas durante os séculos XII e XIII, têm implicações com a natureza, sendo ela imitada pelo homem na invenção do Estado, tornando-o algo bom e necessário. A política de Aristóteles, em São Tomás de Aquino, abriu as portas para um novo pensamento, que influenciou a sociedade e a arte da Idade Média, em todas as suas linguagens e conotações. A natureza, por ela mesma, sem atributos inteligíveis, mas puramente sensíveis foi refletida na iconografia, através da sua imitação. 182 183 184 185
SILVA GOMES, apud BARROS RIBEIRO, 1997, p. 54 e 55. Ibidem p. 55. Ibidem p. 55. Ibidem p. 55
4 LEITURA DA ICONOGRAFIA MEDIEVAL
4. 1. O processo de leitura de imagem em Edmund Feldman
Nosso propósito, neste capítulo, é ressaltar evidências da dualidade filosófica refletida na iconografia medieval, românica e gótica. Também é nossa intenção buscar subsídios nas artes visuais acerca da forma de como o aristotelismo impregna-se na iconografia gótica, resultando a dualidade medieval. A par disto, optamos em realizar algumas análises de arquiteturas, pinturas e esculturas, fazendo uma comparação entre iconografias românicas e góticas, ressaltando elementos compositivos - estruturais e intelectuais - que evidenciem a influência do pensamento filosófico na arte da Idade Média. Voltando ao que já foi exposto, o platonismo e o aristotelismo são responsáveis por uma
dualidade filosófica e estética, que tem seu auge no século XIII, com a entrada de textos de Aristóteles na escolástica, somando-se a um sentido próprio medieval de ver Deus, a realidade e o homem. Neste contexto, o simbolismo tem o seu papel de significação, assim como a estética da luz, formando uma união entre o conceito antigo, o teológico e o científico.
Vários são os autores que oferecem sugestões de leituras de imagens. Optamos, contudo, por aplicar a de Feldman, um dos pesquisadores do Projeto Zero de Harvard, por entendermos ser ela, ampla, profunda e, por isso, a que mais se adapta a um tema estéticofilosófico por nós desenvolvido. Assim, sigamos a própria explicação do autor para compreendermos o que seja ler uma imagem. É uma atividade simbólica que envolve compreensão, apreensão de informações, seletividade e reconstrução da imagem-objeto. Não basta decifrar, isto é, reproduzir, através da fala, o que vemos, mas decompor e recompor para apreender a imagem, que pretendemos conhecer. Ler imagens significa interpretar e para isso, além de ir na busca do pensamento do artista, o qual reflete uma época, temos que confiar em nós mesmos, no nosso poder de entendimento e de apropriação da imagem, num modo próprio e especial.
Feldman ressalta que as
representações são compostas de propriedades dos seus referentes, mas que eliminam outras. Essas exclusões, no entanto, reaparecem na fase de interpretação, portanto, a leitura de imagem de Feldman, possibilita-nos reconstruir significados inauditos, e, partir em busca de significantes (ícones, símbolos e índices), que nos forneçam subsídios da identidade da arte medieval.
A leitura de imagem de Feldman envolve quatro estágios, não necessariamente evolutivos, mas podem acontecer concomitantemente. Estes níveis de leitura são fundamentados em Kant e pela teoria psicogenética de Piaget. São eles: descrição, análise formal, interpretação e julgamento.
O primeiro estágio da leitura de imagem de Feldman, a descrição, consiste numa listagem dos elementos que vemos na imagem. Para isso, a observação deve ser atenta para
que nenhum detalhe visível fique alheio na leitura. Juntamente à observação, verificar por quem foi construído o trabalho, lugar, época, linguagem e material utilizado. Nesta fase, devemos tentar neutralidade e usar vocabulário específico e objetivo, evitando expressões de sentimento e de pontos de vista. No caso de descrevermos uma obra de arte medieval, não nos importam, neste primeiro momento, os estudos que realizamos sobre a filosofia e estética daquele período, pois estes fatores farão relevância, juntamente com o desenrolar dos demais itens desenvolvidos durante toda a leitura imagística. Os elementos enumerados servirão, juntamente com o conjunto formal, para elaborar uma filosofia, no julgamento da imagem. Impressões pessoais, nesta primeira fase, ainda ficam ausentes, portanto, devem ser utilizadas palavras como vertical, horizontal, circular, plano, escuro, que combinadas resultam o espaço, as formas, os volumes, os planos, a composição.
O segundo estágio da leitura é a análise formal. Nesta fase elaboramos relações entre os elementos descritos e verificamos o que as formas criam entre si, com referência ao espaço, volume, contexto, figura e fundo, cores e contrastes resultantes. Cabe-nos verificar o que significa esta análise formal na iconografia e nos posicionarmos com relação ao conceito de forma, se platônico ou aristotélico. Optamos, então, por uma visão aristotélica. Esta teoria se enquadra aos nossos propósitos porque analisamos imagens visíveis, que são suscetíveis ao problema de identidade, isto é, quando o ser é ou não é. Em se tratando de arte, questões como “...essência e acidente, necessidade e contingência, e ato e potência” 186 estão presentes no momento da interpretação e julgamento de uma obra de arte. Na forma das imagens podemos detectar acidente, necessidade e potência, quando o conjunto da imagem possibilita interpretações e julgamentos individuais, podendo ser algo para uns e possuir significados diferentes para outros.
Para tanto, cumpre-nos recorrermos a
Aristóteles, que dá a sua explicação sobre forma:
Aristóteles afirma, entretanto, que os indivíduos são, por sua vez, compostos de matéria (hylé) e forma (morfé). A matéria é o princípio de individualização e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza (Metafísica Z e H, Física I, II). Assim, todos os indivíduos de uma mesma espécie teriam a mesma 186
ARISTÓTELES, apud MARCONDES, 1998, p. 73.
forma, mas difeririam do ponto de vista da matéria, já que se trata de indivíduos diferentes, ao menos numericamente. É como se, de certo modo Aristóteles jogasse o dualismo platônico para dentro do indivíduo, da substância individual. Matéria e forma são, entretanto indissociáveis... 187
Se a forma, para Aristóteles, é o que faz com que a coisa seja o que é, e a matéria é o elemento de que ela é feita, sendo, as duas, indissociáveis, a leitura formal, da qual tratamos, deve envolver os aspectos da matéria ou substância das imagens, ou seja, também o material do qual se compõem. Por exemplo, na arquitetura, a matéria é a pedra, o vidro, o revestimento; a forma é a organização destes elementos e que fazem, juntos, ser uma igreja. Já, o significado desta reunião aparecerá nos itens seguintes: a interpretação e julgamento.
Podemos dizer que o importante é o conjunto visual, elementos implícitos e explícitos, que nos fornecerá subsídios para enquadrar a imagem numa filosofia formalista, no estágio de julgamento. Por este motivo devemos estabelecer as combinações ou diferenças entre tamanhos, texturas, espaços, volumes, luz e sombra dos ícones medievais, selecionados para leitura. Estas relações dependem de suas propriedades, pois as posições dos elementos vão resultar combinações ou contrastes diversos, com objetivos diferentes.
O terceiro estágio da leitura da imagem, proposta por Feldman é a interpretação. Segundo este autor, podemos definir a interpretação de uma imagem, como uma síntese do que o artista quis dizer, somando-se com o ponto de vista do apreciador. É nesta altura da leitura que retornam pontos excluídos no momento da criação. Esta fase, o apreciador testa idéias, coloca seu parecer emocional, baseado ou não na descrição e na análise. Como nossa suposição é, por si só, relativa, convém usar termos como: parece-me, sinto, imagino, etc. Na interpretação, as observações realizadas criam sentido e significações; “é o mais difícil, o mais criativo e o mais gratificante” 188. Podemos, também, considerar um momento 187
MARCONDES, 1998, p. 72.
188
FELDMAN, Edmund. Becoming Human Through art. New Jersey: Prentice Hall, 1970, p.362.
de risco, mas, inclusive, uma oportunidade de participação na obra. É uma contribuição que depende da base e da experiência estética do apreciador. Ousamos incluir às idéias do autor, que para interpretar, temos que somar ao intento do artista, o nosso conhecimento filosófico, com relação ao povo e ao seu tempo. Enfim, uma interpretação deve buscar respostas às suposições, embasando-as e não, simplesmente, modificando fatos presentes para que se adaptem ao sentido que lhes queremos impor. A interpretação de uma arte medieval vai necessitar de nós um desprendimento peculiar, pois raríssimos são os casos em que temos notícia dos autores das obras, mas, por outro lado, temos idéia do que os motiva na criação das obras. Com relação ao que sentimos, no momento da apreciação da imagem, também nos exige transportarmo-nos a uma época diversa à nossa, e novamente teremos que recorrer aos autores da Idade Média, seus antecessores e comentadores. É neste ponto, entretanto que voltamos a cogitar um posicionamento aristotélico, quando, através da nossa visão sobre a imagem, damos abertura às questões de acidente, contingência e potência, ao possibilitarmos uma mudança nas características, ou seja, a respeito da identidade ou do ser da obra.
O quarto e último estágio da leitura da imagem, ora apresentada, é o julgamento. Este se baseia na filosofia da arte e na própria filosofia, portanto decide quanto à qualidade da imagem. Feldman deixa claro que qualidade, em arte, é o conjunto de atributos que farão com que a obra adquira seu valor de excelência. Concordamos com o autor, quando defende que “as razões para julgar a excelência ou pobreza de um trabalho tem que estar baseadas numa filosofia da arte, não em autoridades pessoais”189. Aqui está a nossa defesa em optar por uma leitura de imagem que trate das implicações da obra com a filosofia. Desta forma, a própria leitura das obras medievais, nos servirá de suporte para melhor discernirmos acerca da excelência da iconografia, num contexto peculiar.
Assim, Feldman apresenta três filosofias da arte, para justificar a excelência do ícone, devendo a obra estar vinculada a uma ou mais delas. As filosofias da arte são: formalista, expressivista e instrumentalista. 189
Ibidem, p. 372.
A filosofia formalista está vinculada aos aspectos formais, como se dispõem e se organizam no conjunto. Dizemos que a excelência de uma obra de arte é justificada pela filosofia formalista, quando seus elementos formais (linhas, cores, textura, volume, perspectiva, planos, etc.) pesam mais que o sentimento em nós despertado na apreciação e o próprio propósito da imagem. Na filosofia formalista, o prazer estético vem da beleza do conjunto visual. Desta forma, descrição e análise formal são imprescindíveis numa leitura que se enquadra à filosofia formalista. Quanto à leitura de imagens medievais nos deteremos nos elementos compositivos, ressaltando seus potenciais, com vista a um todo inerentes aos períodos românico e gótico, respectivamente.
A filosofia expressivista valoriza o aspecto da emoção e por este motivo está ligada à interpretação. Uma arte pode enriquecer emocional e intelectualmente aquele que a aprecia, aliando-o ao que o artista quis transmitir. “A filosofia e expressivista ressalta a profundidade da experiência que se tem quando se observa uma imagem” 190. Uma obra de arte expressivista é bela, quando está vinculada, inclusive, com necessidades e intenções do homem. Como sugere o temo, a filosofia expressivista realça a expressão, os significados da vida e dos sentimentos. Acreditamos que, para os expressivistas, a arte atinge a alma, as sensações. Podemos mostrar estas evidências, através da iconografia medieval, impregnada do espírito de religiosidade; e se formos mais longe, sabemos que os ícones da Idade Média estão imbuídos de um pensamento filosófico, que, por si só, causam emoção a quem decide embrenhar-se na sua estética. Assim a filosofia expressivista possibilita um exercício emocional, que resulta num melhor entendimento acerca do propósito da arte.
A filosofia instrumentalista, por sua vez, investe na serventia da arte, isto é, descobre o seu propósito, o qual pode ter a capacidade de mudar comportamentos. Estes objetivos intrínsecos e extrínsecos podem se apresentar sob a forma social, política, moral e econômica. Sendo assim, a arte adquire proporções tais, envolvendo instituições, a serviço de causas maiores. Na Idade Média, como já vimos, esta causa é a Igreja. Nesta filosofia, as 190
Ibidem, p. 374.
imagens adquirem o papel de servirem de instrumento, ou seja, de documento de entendimento e estudo de uma determinada finalidade. A filosofia instrumentalista alia-se às formas, com a intenção de competência técnica para melhor expor o significado ditado pela causa maior.
A leitura de imagens, portanto propicia a constatação visual das implicações filosóficas e estéticas que envolvem nosso objeto de pesquisa, ou seja, investigar a forma como o aristotelismo influenciou a iconografia do século XIII, contribuindo para a formação da dualidade medieval. Esta investida possibilita a culminância de todo o nosso trabalho, resultando uma espécie de álibi concreto para nossas investigações acerca do pensamento platônico e aristotélico na Idade Média.
4. 2. Leituras comparativas entre a arte românica e gótica.
Nosso problema inicial, neste trabalho, está calcado, principalmente, na questão da influência do aristotelismo no estilo gótico, entretanto, não podemos nos furtar de realizar certas conexões com o românico. De que forma o aristotelismo contribui para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII? Este é o problema a que nos propomos solucionar neste trabalho. Nosso objetivo, portanto, é buscar subsídios estéticos suficientes para argumentar a forma como o aristotelismo penetra na arte medieval. A dualidade na Idade Média ocorre, justamente com a contraposição de dois movimentos artísticos, como reflexo visível e tangível da filosofia de Platão e Aristóteles, respectivamente. Apresentamos, portanto, evidências estruturais e intelectuais, simbólicas ou não, da incidência da filosofia aristotélica na iconografia da iconografia gótica, em comparação com a românica, visivelmente influenciada por Platão. Entendermos o momento de transição entre um período e outro é deveras importante, para estabelecemos os pressupostos para a efetivação de uma influência aristotélica na arte medieval. A comparação será realizada pela leitura das imagens da arquitetura, escultura e pintura românica e gótica.
4. 2. 1. Leitura da arquitetura medieval
2. 2. 1. 1. Igreja de Santo Ambrósio (ver figuras nº 01 e02) (Milão) – Estilo românico
Fig. 01. Igreja de Stº Ambrósio (Milão)
Fig. 02. Interior da Igreja de Stº Ambrósio (Milão)
Descrição e análise formal da arquitetura românica da Igreja de Santo Ambrósio – Ao observarmos a Santo Ambrósio na sua parte externa (ver figura 01), deparamo-nos com a mais característica expressão do estilo românico. A igreja é precedida por um átrio de quadripórtico em abóbadas em cruzeiro, onde aparece o contraste do vermelho-tijolo e a pedra cinza dos pilares. A entrada para o pórtico se dá por um trifório, marca do românico que representam o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Este trifório se põe em perspectiva com os portais esculturados. Na parte superior há águas duplas. Toda a estrutura evidencia valores de integridade compositiva e dá um aspecto de muralha, característica do românico lombardo. É possível ver três naves encimesmadas pelo matroneu. Na igreja medieval, em especial a românica, o elemento principal é a cobertura. Chegar à abóbada foi uma solução necessária e simples, pois, grosso modo, uma abóbada é um conjunto de sucessivos arcos. Ora, o arco e a abóbada já são elementos conhecidos desde a arte romana pagã. O uso do arco e suas pressões fazem com que as estruturas prolonguem até o chão em forma de pilares compostos de várias colunas.
Na análise da parte interna (ver figura 02) da Igreja de Santo Ambrósio, observamos cores claras nas paredes, contrastando com detalhes alaranjados que molduram as colunas, nervuras e acabamento dos arcos. Estes e as abóbadas fazem o jogo das forças e dos pesos que evidenciam funcionalidade. Há esculturas em baixos-relevos ligadas à arquitetura nos portais e nos capitéis das colunas e pilares. O ambone angular, datado da primeira metade do século XII é contemplado com cariátide, isto é, figuras femininas que fazem às vezes de colunas ou pilastras, uma herança da Antigüidade. “O interior, do fim do século XI, possui três naves. Sustentados por sólidas pilastras, os três vãos da nave maior evidenciam a cobertura com abóbada em cruzeiro...”191
A luz penetra no interior da igreja, tímida, escassa e indireta pelas janelas acima dos portais.O problema do peso da abóbada, exercendo pressão sobre os pés-direitos em que se apóia é resolvida, distribuindo-se às colaterais, também cobertos com abóbadas. Este recurso soluciona, em parte, a questão do peso, mas impossibilita a abertura de janelas maiores na parte inferior da igreja. O arco dá possibilidade de erguer um pouco mais o pédireito, sobrepondo arcos, mas também aumenta a pressão sobre as colunas e as paredes. Desta forma, a construção religiosa torna-se atarracada, pesada, fria e sombria.
Interpretação da arquitetura românica da igreja de Santo Ambrósio
Conforme leitura de imagem sugerida por Feldman, procuramos interpretar elementos arquitetônicos da Igreja de Santo Ambrósio, em primeiro lugar, do nosso ponto de vista e pela impressão que temos dela; em segundo lugar, nosso parecer é declinado a partir da pesquisa bibliográfica. Desta forma, iniciamos nossa referência, expressando nossas emoções, sensações acerca do que conseguimos visualizar na descrição e análise formal, anteriormente realizada.
191
PISCHEL, Gina. História Universal da Arte. Tradução de Raul Polillo, Vol. 1 e 2, São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1966, p. 56.
Nossa primeira impressão ao observar a igreja, como um todo, é uma sensação de solidez, monumentalidade, força e compactividade. Estes aspectos são evidentes pelo material pesado utilizado, planta e a estrutura da construção, sendo uma igreja maior do que realmente deveria. O interior sombrio da igreja suscita recolhimento e passividade, devido à atmosfera fria e sombria, separada do mundo exterior. Também ficamos surpresos, como contemporâneos, com as figuras fantásticas esculturadas nas paredes e colunas (ver figuras 03 e04):
Fig. 03. Motivo escultórico da Igreja de Stº Ambrósio (Milão)
Fig. 04. Baixos-relevos da Igreja de Stº Ambrósio (Milão)
O fragmento romano dos meninos vindimadores, aos nós e aos entrechos vimíneos de característica bárbaro-carolíngia; dos batentes lígneos e erosados dos portais com cenas bíblicas, aos monstros rampantes e às feras corpulentas, de angústia pré-românica – toda a pedra esculpida se anima e vive 192.
“Tantas e tão maravilhosas são as variedades de formas em cada artista, que nos sentimos mais tentados a ler no mármore do que em nossos livros”193. Percebemos que já na Idade Média se fazem leituras de imagens como estamos nos propondo neste trabalho, e nos certificamos que realmente a iconografia é uma linguagem interessante e que possibilita conhecimento em qualquer época em que seja lida.
Julgamento da arquitetura românica da Igreja de Santo Ambrósio
Ao seguirmos as etapas da leitura da Igreja de Santo Ambrósio, constatamos que ela é, ao mesmo tempo considerada uma obra de filosofia formalista, expressivista e instrumentalista. A primeira opção é dada pela estabilidade que os elementos estruturais e intelectuais proporcionam. Os elementos estruturais são vistos, como linhas quebradas na organização do conjunto em contraste com as linhas curvas dos arcos e das abóbadas, formando uma massa compacta, como que obedecendo a regras pré-estabelecidas. Estas leis são ditadas por uma força superior, representada pela Igreja, imbuída do inteligível. Os elementos intelectuais, entendidos como proporção, equilíbrio, simetria e ritmo são visivelmente percebidos, como que, se ausentes, não seria cumprida a missão da representação da fortaleza de Deus.
Também definimos a Igreja de Santo Ambrósio como fazendo parte de uma filosofia expressivista, já que ela é um típico exemplo da expressão da passividade, do recolhimento, da submissão, da força, da frieza e de um Deus autoritário e distante.
192 193
Ibdem, 1966, p. 57. CLARAVAL, São Bernardo de, apud LOYN,1997, p. 328.
Quanto ao terceiro item do julgamento, incluímos a Igreja de Santo Ambrósio na filosofia instrumentalista. O caráter instrumental aparece no momento em que a construção serve como documento de entendimento de uma época. Segundo Lopez194, o românico representa uma fase de enclausuramento social, econômico, religioso, político e artístico. Explica que o enclausuramento social se dá pela inexistência de oportunidades de mobilidade; econômica, porque o comércio é restrito: Europa bloqueada contra o Atlântico, e economia feudal autárquica; religioso, porque é considerado um claustro monástico; político, já que os feudos são fechados; artístico define-se pela horizontalidade das igrejas, seu aspecto compacto, pouca iluminação, estaticidade e peso. Acrescentamos ao claustro artístico, um fundamento filosófico, referindo-nos ao fato de a arte apenas ser reconhecida quando representando o inteligível, uma herança platônica; isto é percebido através do simbolismo da própria arquitetura, na decoração e baixos-relevos.
4. 2. 1. 2. Sainte-Chapelle (Paris) (ver figuras nº 05 e 06) – Arquitetura gótica
194
LOPEZ, Luiz Roberto. Sinfonias e Catedrais – Representação da história na arte. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS 1995, p. 14.
Fig. 05. Exterior da Sainte-Chapelle
Fig. 06. Interior da Sainte-Chapelle (Paris)
Descrição e análise formal da arquitetura gótica da Sainte-Chapelle – A SainteChapelle é um exemplo o estilo gótico francês do denominado “Rayonnant” (radiante), cuja característica “advém das hastes radiais do rendilhado das grandes rosáceas do período”195. É uma capela, dedicada a Luis IX da França (1214-1270), construída entre 1243 e 1246/48 no palácio real, em Paris, pelo arquiteto Pedro de Montreuil, a mais bela de todo o gótico. O rei, conhecido como São Luis, manda erigi-la com o objetivo de guardar a coroa de espinhos e um fragmento da Vera Cruz. O rei teria adquirido o fragmento de um imperador bizantino durante uma cruzada, porém questiona quanto à veracidade de uma coroa de espinhos ter durado treze séculos196. O prestígio político de São Luis, contudo, é impressionante, pois até um papa da época revela que o rei teria sido coroado com a coroa de Cristo, ao construir uma espécie de relicário. Na época é realizada uma comparação da capela com “o sacrário de cobre, prata e esmalte de São Francisco”197, confeccionado em metal repoussé no “século XIII, para a catedral de São Taurino, em Évreaux, na Normandia”198. A Sainte-Chapelle, inicialmente, contudo, é mais ornamentada que o sacrário descrito.
Na parte externa (ver figura 05), de cor clara, observamos uma fachada alta; a capela está “sobre uma cripta, a todo o comprimento da planta, como que para elevar-se no espaço”199. A entrada central, em arco ogival, está ladeada por seis torres que se erguem até a altura da rosácea em estilo radial. Acima da rosácea há um frontão centralizado com uma outra pequena rosácea, e ladeada por duas outras torres pontiaguda, com acabamento em pináculo. No alto ergue-se uma torre ala, elegante e rendilhada, que termina em um vértice e uma cruz. Nas laterais, os esguios colunelos interrompem os vitrais coloridos em predominância de tons azuis e vermelhos, fazendo quase desaparecer
195 196 197 198 199
SHAVER-CRANDELL, Anne. A Idade Média. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Zahar, 1988, p.80. Ibidem, p. 80. Ibidem, p. 80. Ibidem, p. 80. Cf História da Arte. Salvat, fasc. 50, Rio de Janeiro: 1979, p. 34.
as paredes. Até aproximadamente a altura da porta, a construção é maciça, constituindose, o restante, de janelas altas em vitrais.
Na parte interna (ver figura 06) especialmente, da cabeceira da capela voltada à leste, notamos o trabalho de pedra dourada até a altura da porta, acompanhando os suportes verticais e estátuas que ladeiam espécies de nichos. No interior da capela observamos a luminosidade proporcionada pelos imensos vitrais que tomam quase que a totalidade das paredes. O teto apresenta uma abóbada em nervuras ogivais. Por todo lado podemos notar o exímio trabalho dourado em formas geometrizadas e motivos florais. As pilastras acompanham um mesmo desenho dos vitrais. Consta que a coroa de espinhos devia estar no alto do altar, aureolada de cores, lembrando Erechteion, relicário da Atenea Polias de Atenas, em função, beleza e dimensões200.
Interpretação da arquitetura gótica da Sainte-Chapelle – A leitura da capela leva-nos a uma contemplação do sublime, do divino, pela singeleza e ao mesmo tempo imponência que apresenta. Não é uma obra para ser admirada somente da parte externa, pois a grande rosácea e a beleza dos vitrais, nos convidam a entrar e partilhar de uma esplendorosa sensação de deleite. A luminosidade colorida, maior do que a externa, certamente contribui para este êxtase. Sentimos a emoção e a integração direta e total com Deus, pois Deus é luz. A verticalidade experimentada no seu interior não concebida apenas pela altura das pilastras e pela abóbada em nervuras, mas também pela luz filtrada através dos vitrais em todas as direções. A luz se faz presente, visível e penetrante. Podemos inalar a luz. Através da Sainte-Chapelle a dualidade da luz se faz presente, aquela espiritual luz que é a origem de tudo o que existe e a física, sensível, que faz com que todas as coisas sejam visíveis.
Ao observarmos o interior da capela, sentimos que ela é um resumo de beleza, luminosidade e esplendor, porque reúne os efeitos encantadores de materiais como o vidro, a pedra e o ouro, pois sem eles seria praticamente impossível adaptar a 200
Ibidem, p.34.
representação iconográfica aos novos padrões de sensibilidade. Todos estes recursos, somados à criatividade e eficácia dos construtores e artesãos resultam na sensação da presença do divino no recinto religioso, Deus sentido e visto através da luz, elemento material e imaterial, visível e sutil. A Sainte-Chapell revela o sentido da arte do século XIII, uma arte voltada ao sensível, que contribui para o entendimento de uma espiritualidade que nasce no homem e se eleva, num sentido ascensional, como a luz que se eleva até os picos dos arcos ogivais da abóbada da capela gótica.
Ao fitar a capela pelo seu lado externo, somos acometidos por uma sensação de religiosidade, pois ela se assemelha a um sacrário. Sua cor clara nos leva a uma interiorização imediata de que Deus é luz, até mesmo antes de penetrarmos no seu interior e nos sentimos interpenetrados pela sua luz multicor. As torres pontiagudas nos indicam a verticalidade do nosso ideal religioso e a imensa rosácea na fachada, marca das catedrais góticas, nos seduz e nos convida a entrar na capela, Seu aspecto total é um prenúncio do encantamento que passamos a experimentar ao admirar todo o conjunto. Neste êxtase entendemos o que expressa São Tomás de Aquino o se referir ao belo como harmonia de conjunto e ao prazer estético.
Julgamento da arquitetura gótica da Sainte-Chapelle – Em termos de julgamento da Sainte-Chapelle, segundo o método de leitura de imagem de Feldman, a consideramos inserida na filosofia formalista, expressivista e instrumentalista.
O aspecto formalista da capela é entendido por nós pela riqueza da forma. Compreendemos a forma no sentido aristotélico, isto é, o que caracteriza o objeto. No caso da Sainte-Chapelle, forma é o conjunto de elementos estruturais e intelectuais (já explicitados neste capítulo) que compõem a arquitetura: volume, espaço, equilíbrio, cores, linhas, luminosidade, texturas, profundidade, perspectiva, etc. O tratamento que Pedro de Montreuil e seus construtores dá a estes elementos, tornando uma construção tipicamente gótica, por si só lhes dão a forma imaginada que, em caso contrário não teria a forma denominada ogival ou estilo francês (gótico). No trabalho artístico dos construtores
encontramos o fundamento aristotélico da forma acidental que se faz visível a partir da substância que são a pedra e o vidro. A forma é o estilo gótico. No momento em que os elementos estruturais e intelectuais deixarem de se reunir para dar ao espaço o espetáculo da verticalidade, o esplendor da luz multicolorida através dos vitrais e o requinte da decoração naturalista, o gótico, como estilo artístico, também não existirá; e, portanto, a forma, que é o que caracteriza o gótico desaparecerá.
Julgamos a obra pela filosofia expressivista por tudo o que é relatado no item interpretação desta leitura de imagem. O poder que a construção possui em transmitir emoção, êxtase e encantamento, resulta em um local onde bem e belo se encontram. Expressivista
porque
expressa,
transmite
sentimentos,
sensações,
reflexões,
contemplações e ao mesmo tempo recolhimento. Não chega causar o impacto de uma grande catedral, mas contém as dimensões e o deleite suficientes para atrair admiração e fé. Sentimo-nos abençoados por Deus, através da luz filtrada pelo vidro colorido. A sensação que a verticalidade transmite é de que podemos elevar nosso espírito e que Deus já está no meio de nós. Sentimos também um prazer diferente, livre de ameaças e culpas, um prazer estético que outrora fora tão camuflado e que no gótico se liberta com o deleite pelo sensível propagado por São Tomás de Aquino. Através do sentido acidental dado à luz, o fiel não se sente mais pecador ao admirar o belo. Assim o prazer sensível passa a ser justificado. Há uma relação comprometedora entre o sujeito e o objeto apreciado; e nesta ligação, os sentidos do homem exercem um papel primordial. Não existe deleite sem os sentidos e esta magia é aprovada por Deus, pois ele se faz presente através da luz no interior da capela. Sabemos que a expressividade, a que nos referimos, é intento dos construtores do gótico, quando partem para mudanças na estrutura do edifício românico, o qual exprime frieza, sombra e um Deus distante e temido.
Quanto à condição de instrumentalidade da Sainte-Chapelle, esta nos fornece um requisito muito importante no contexto filosófico da iconografia arquitetural gótica. Consideramos a capela um instrumento ou documento visual que representa o pensamento do século XIII. Iniciemos, então, pela questão óptica, a que Grosseteste identifica como
uma forma de contato entre o objeto visível e o órgão visual. Também sabemos que a cor percebida do objeto depende da luz iluminante e que ela causa contração na pupila, teoria referida por Aristóteles e desenvolvida por Grosseteste. Duas linhas fundamentais são encontradas na luz refletida no interior da Sainte-Chapelle: a agostiniana-platonizante e a aristotélica. A cor e esplendor dos vitrais unem o sentido substancial e acidental da luz. Como já discorremos no terceiro capítulo deste trabalho, a luz é um elemento substancial para os adeptos aos estudos científicos, à medida que em estado puro ela é a energia fundamental da corporeidade; para os teólogos ela é acidental, quando incide sobre os objetos dando-lhes esplendor e cor. Assim podemos reunir o pensamento científico relativo à luz de Grosseteste e o teológico de São Boaventura e São Tomás de Aquino que vêem a luz sob o prisma da qualidade acidental. A luz filtrada pelos vitrais acaba por definir que, mesmo os medievais acostumados a relacionar a luminosidade mais com o espírito do que com o corpo, também passam a entender que todo o corpo participa da luz, seguindo São Tomás de Aquino.
A própria instrumentalidade tem um cunho filosófico na arte gótica e por isso compreendemos porque os medievais consideram o vitral sagrado, pois este empresta seu corpo para ser transpassado pelo divino, a luz. O jogo de cores luminosas, resultante da interpenetração dos raios coloridos torna os objetos de decoração mais belos. Além da luz torná-la visível, a luz cumpre o seu papel de transcendência já que toda a beleza é vista sob a presença de uma luz, inclusive divina.
Encontramos também no fenômeno da luz refletida pelos vitrais, uma evidência da teoria de São Tomás de Aquino ao referir-se à claritas. Ao contrário dos neoplatônicos, ele acredita que a luz é qualidade ativa derivante da forma substancial. A luz solar ao bater no vidro da capela gótica, ela o transpassa e rebate o chão e a decoração, imediatamente refletindo-se para todos os lados, formando o espaço interno. Lembrando ensinamentos de São Tomás de Aquino, podemos definir que a luz do interior da SainteChapelle reproduz a teoria de que o espaço/luz é finito.
Podemos, aqui, refletir o conceito de belo e essência da forma em São Tomás de Aquino. Para ele, o belo seria a reunião da claritas, da integridade e da proporção. Isto se torna real na iluminação interna da capela e dos os seus ornamentos. Quanto à essência da forma, ela só é possível, segundo o Teólogo, no ato concreto de existir. Neste caso, forma existe quando é vista. A luz propicia a visibilidade dos objetos, portanto o objeto existe devido à luz, que contribui para o fenômeno no seu sentido espiritual e físico. No aspecto espiritual deparamo-nos com uma parcela de contribuição neoplatônica-agostiniana que defendia que a luz é origem de todas as coisas. Ao mesmo tempo encontramos evidências do que já constatava Alberto Magno, que acreditava num acento platônico de que a essência da forma conserva na forma visível uma proeminência ideal, representada na própria luz que a criou. Duas visões, portanto, se complementam.
4. 2. 1. 3. Quadro comparativo entre a arquitetura românica e gótica ROMÂNICA Arquitetura
GÓTICA
Equivalência
Arquitetura
Equivalência
estético-filosófica -espaço
interno -recolhimento
isolado;
estético-filosófica do -continuidade
homem;
espacial
-elevação do homem
entre
o pela sua razão;
interno e externo; ROMÂNICA
Equivalência
GÓTICA
Equivalência
Arquitetura
estético-filosófica
Arquitetura
estético-filosófica
-construção maciça, -opressão ligada
à
da
terra, para baixo;
templo/fortaleza,
alma -
vidro,
torres ascensão
da
alma
pontiagudas, leveza; humana; catedral de pedra;
bloco compacto; -aberturas pequenas -isolamento, e estreitas;
distante,
Deus -janelas em vitrais -abertura, Deus faz em amplos espaços;
imperturbável; -uso
de materiais -medo, recolhimento; -uso
parte da natureza, Ele vem ao homem;
de
materiais -encantamento,
frios e pesados;
transparentes;
-construção
-inteligível
-sinfonia
simbólica;
(influência
grandiosa;
emoção, magia;
plástica, -sensível (influência aristotélico-tomista);
platônica); -continuação construção
da -princípio
de -experimentação,
greco- dedução;
romana:
-
princípio
da
adaptação: criação de indução;
abóbadas
abóbadas em ogivas,
em arcos romanos,
arcos
colunas,
arcobotantes,
tímpanos,
monumentalidade;
ogivais
rosáceas,
vitrais
e e
pináculos; -linhas quebradas;
-contrição;
-linhas contínuas;
-verticalismo;
-conjunto simbólico: - simbolismo divino. - o conjunto real- deambulatório,
O ser (Platão). A naturalista;
valorização
do
sensível. A forma é o
trifório e o ambone; forma é a Idéia;
que
caracteriza
o
objeto (Aristóteles); -penumbra;
-Deus não deslumbra, -luz; aterroriza,
e
é
ROMÂNICA
Equivalência
GÓTICA
Deus presença, dentro do homem. O homem evolui pela sua luz interior; Equivalência
Arquitetura
estético-filosófica
Arquitetura
estético-filosófica
-solidez,
-proporção;
-leveza.
receado;
organização
dos
Proporção, -beleza expressiva;
integridade
elementos
e
claridade;
arquitetônicos; -simbolismos elementos arquitetônicos;
nos -conhecimento sensível;
- temas da natureza: -prazer estético; flores
estilizadas,
animais,
uso
de
material
precioso,
colorido
e
luminosidade; -o trifório;
-o
-representa o Pai, o -o trifório;
- representa o Pai, o
Filho e o Espírito
Filho e o Espírito
Santo;
Santo;
conjunto - Deus, o Uno, o -o
arquitetural;
divino, o inteligível;
arquitetural;
conjunto -Deus e a natureza, o sensível.
4. 2. 2. Leitura da escultura medieval
A escultura medieval, assim como a pintura, está subordinada à arquitetura, que desde tempos antigos, é considerada a arte maior das maiores. Referimo-nos à arquitetura como a maior das maiores porque arquitetura, escultura e pintura constituem o conjunto das artes maiores, enquanto cerâmica, xilogravura, tapeçaria, ourivesaria e outras são enquadradas como artes menores.
A escultura, contudo, não se apresenta igualmente no período românico e no gótico, como verificaremos nas leituras de imagens, a seguir.
4. 2. 2. 1. Leitura da escultura da fachada da igreja românica de St. Trophime (ver figuras nº 07 e 08), em Arles (Sul da França-1180)
Fig. 07. Fachada da Igreja de Stº Trophime (Arles - Sul da França)
Fig. 08. Baixo-relevo do tímpano da fachada da Igreja de Stº Trophime (Arles – Sul da França)
Optamos em realizar uma leitura iconográfica especificamente das esculturas da fachada da Stº Trophime por considerarmos a entrada das igrejas românicas muito significativas em termos de simbolismo, organização e riqueza de detalhes, sem desmerecer o altíssimo valor artístico, religioso e filosófico dos baixo-relevos do seu interior.
Descrição e análise formal da escultura da fachada da igreja românica de Stº Trophime – Seguindo o roteiro proposto na leitura da imagem de Feldman, passamos, então, à descrição e análise formal da fachada da Stº Trophime.
Observamos que há profundidade, pela própria condição de baixo-relevo, pelo trabalho do volume e claro-escuros. Não há perspectiva, pois as figuras estão ligadas a uma superfície, a uma parede, resultando um conjunto em um único plano.
Como um todo, a estrutura da fachada apresenta nítidas semelhanças com elementos arquitetônicos clássicos, como é o caso do tímpano acima da porta, em arco romano, centralizado a um triângulo, lembrando um frontão grego. Ao centro, Cristo é reconhecido, rodeado de quatro figuras fantásticas. São os evangelistas, simbolicamente representados por imagens aladas:
... o leão para S. Marcos, o anjo para S..Mateus, o boi para S. Lucas e a águia para S. João, foram derivados da Bíblia. No Antigo Testamento, lemos sobre a visão de Ezequiel (Ezequiel, 1,4 – 12) em que descreve o trono do Senhor sustentado por quatro criaturas com cabeça de homem, leão, boi e águia201.
Imagens idênticas encontramos no “tímpano do portal da abadia de São Pedro, perto de Moissac, no Languedoc, sul da França”202. Nele, como no tímpano da St Trophime, o Cristo é colocado no centro, numa mandorla, cercado pelos símbolos dos evangelistas. 201 202
GOMBRICH, 1972, p. 129. CONTI 1984, p. 41.
Esta simbologia já é realizada pelos artífices medievais desde o século V. Exemplos são os painéis capa de um livro, onde é combinado o rebuscado simbolismo cristão com cenas do Evangelho (ver figuras 09 e 10). Nesta capa observamos os evangelistas conforme o baixorelevo do tímpano da igreja de Stº Trophime e o Cristo centralizado, representado pelo Cordeiro. A exemplo do tímpano da igreja, as faces da capa do livro citado apresenta o Cordeiro também envolto em uma guirlanda com motivos florais e geométricos, assemelhando-se à mandorla. Nas duas faces da capa do referido livro, as figuras dos apóstolos também são circuladas por guirlandas.
O dintel da Stº Trophime é totalmente esculturado com figuras humanas, que são os doze apóstolos. Acima do dintel percebemos uma arquitrave, tipo friso contínuo, também com figuras humanas esculturadas. Ao centro da entrada, observamos o mainel ou parteluz, que é um elemento tipicamente românico, considerado o ponto de encontro entre a arquitetura e a escultura e empregado, sobretudo, em França.
A decoração do arco e que envolve o conjunto escultural, é realizada com motivos florais geometrizados. A figura do Cristo apresenta-se sentada, com um trono e sua mão direita está levantada, enquanto a esquerda segura um livro, gesto imitado pelos quatro evangelistas.
Todo o conjunto da fachada apresenta uma noção de profundidade pelos volumes e claro-escuros evidenciados no exímio trabalho artístico. Ao mesmo tempo, o aspecto de solidez se faz presente, pois continua a mesma massa sólida da escultura.
Descrever uma imagem medieval de tal significação é para nós um desafio. Certamente ela possui significantes, que são índices e que podem passar desapercebidos aos nossos olhos de leitor contemporâneo. O que nos resta, no entanto, é tentar captar o máximo de detalhes, para tentarmos nos aproximar do significado da simbologia. Neste
sentido, percebemos dois elementos importantíssimos: o arco ainda romano e a mandorla do Cristo.
O arco romano envolve todo o conjunto escultural, um visível elemento arquitetônico que demonstra que ainda o medieval está ligado ao antigo. A mandorla, entretanto deixa claro que Cristo é o centro, sinal de universalidade e glória, onde o poder preenche todo o universo.
Fig. 09. 1ÂŞ parte da capa de um livro do V sĂŠculo com cenas do Evangelho.
Fig. 10. 2ÂŞ parte da capa de um livro do V sĂŠc. com cenas do Evangelho.
Interpretação da escultura da fachada da igreja românica de Stº Trophime
A sensação que sentimos ao admirar a fachada de Stº Trophime é de solenidade, religiosidade, solidez, glorificação de Cristo e do poder. O elemento escultórico que mais nos chama a atenção, sem sombra de dúvidas, é o tímpano, pelo Cristo mandorlado e as figuras que o rodeiam. A nós, contemporâneos, o conjunto escultural desperta, inclusive, curiosidade, através do fantástico que representam as figuras. Imaginamos o que despertaria na alma dos fies medievais, que na sua maioria, são analfabetos e lêem as sagradas escrituras pelas imagens. Relata-nos Gombrich que os teólogos cristãos imaginam quão perfeito seria colocar como sustentáculos no trono de Deus, na entrada de uma igreja, os quatro evangelistas203. Assim, os ensinamentos acerca do objetivo final de nossa vida terrena são melhor elucidados. Podemos sentir que, assim como o ambone, referindo-se à arquitetura, representa um elemento primordial para levar a palavra de Deus aos fiéis, também o portal das igrejas românicas, tratando-se da escultura, é um destaque importantíssimo para a recepção da doutrina cristã entre os medievais.
Além das figuras do tímpano, no dintel da fachada de Stº Trophime, podemos perceber a contínua faixa de figuras que, segundo Gombrich204, é assim representada: à esquerda do Cristo há uma fila de figuras nuas e acorrentadas, identificando aquelas que vão para o inferno; à direita, vemos uma outra fila de figuras de bem-aventurados, voltada ao Cristo. Ao centro do dintel e na parte inferior do tímpano, percebemos figuras de santos, mostrando que eles podem interceder pelas almas no juízo final. Villon descreve o efeito destes simbolismos em versos escritos para sua mãe:
Sou uma pobre e velha mulher, Muito ignorante, que nem ler sabe. 203 204
Ibidem, p. 129 e 130. Ibidem, p. 139.
Mostraram-me na igreja de minha aldeia Um Paraíso pintado com harpas E o Inferno onde ferviam as almas danadas, Um enche-me de júbilo, o outro assusta-me205.
Ao lermos a poesia de Villon entendemos o sentido didático dos símbolos e ao mesmo tempo a influência deles no comportamento de pessoas menos esclarecidas. As figuras que representam a divindade, em destaque em um plano superior sugerem a condição de pequenez do fiel e a grandiosidade que a vida eterna pode lhe proporcionar; por outro lado, as cenas infernais, apavorantes fazem com que o cristão se recolha a uma obediência cega aos dogmas da Igreja, temendo castigo divino. Esta postura possibilitada pelo simbolismo resulta na crença de um Deus autoritário e temido.
Ao interpretarmos a escultura românica, em especial a fachada da Igreja de Stº Trophime, constatamos que ela é totalmente subordinada à arquitetura, por vezes não se conseguindo discernir quando é uma e outra. Nela, o simbolismo impera, revelando a supremacia da Igreja, do Cristo Redentor, dos apóstolos e do temor ao inferno. A grandiosidade e a imponência da construção religiosa dão evidências da certeza de que, o fiel que obedeça aos ensinamentos cristãos, lhe é reservado o céu.
Julgamento da escultura da fachada da igreja românica de Stº Trophime
Seguindo os tópicos da leitura de imagem de Feldman, julgamos filosoficamente a obra como formalista, expressivista e instrumentalista. O formalismo das figuras esculturadas mostra-se no trabalho exímio das linhas, dos volumes e do jogo do claro-escuro. Estes elementos estruturais constituem um realismo fantástico, ao qual poderíamos chamar de surrealista, pois as cenas revelam-se acima da realidade mundana que, por vezes encanta e por outras assusta. Os elementos estruturais e 205
Ibidem, 1992, p. 130.
intelectuais dos baixo-relevos têm a função, inclusive, de avivar a arquitetura. O arco que compõe o tímpano, o dintel e o mainel, totalmente trabalhados, todos comungam para o aspecto de solidez e solenidade de toda a composição. A escultura presa à construção representa a submissão do homem a Deus, já que a arquitetura é considerada, na Idade Média, a arte maior. Este aspecto também é percebido na falta de perspectiva na escultura, o que, ao contrário lhe daria um status independente como representação artística e como identificação da autonomia do homem. Assim entendemos a posição da arquitetura e escultura, pois a primeira representa o poder divino e a segunda, juntamente com a pintura, evidenciam a condição do homem.
A composição é inteiramente e clássica, ou seja, em forma piramidal ou triangular, com a figura principal centralizada. O formalismo ratifica o sentido platônico da obra e o mainel que é continuado pela figura do Cristo centralizado, e maior, indica que Ele é o centro de tudo. Assim fica evidenciado o divino e o inteligível. Observamos, também que há uma clara organização de elementos que são colocados estrategicamente para, cada um, cumprir o seu papel, artifícios vindos de uma estética antiga de representação, pois já os egípcios construíam suas estátuas em dimensões de acordo com o nível social.
O arco romano que forma o tímpano dá a impressão que restringe o espaço; mas, aqui, há uma contraposição, pois o fato de Cristo estar em uma mandorla significa que sua glória e poder preenchem e atingem todo o universo. A mandorla e o arco, portanto, dá a idéia de abertura, universalidade, onde sob a Igreja Cristo impera e avança seu poderio.
Por outro lado, definimos a fachada da Stº Trophime na filosofia expressivista, devido às emoções que elas suscitam aos fiéis e ao que sentimos ao admirá-la. A expressão da imagem, contudo, não pode ficar alheia ao conjunto arquitetural, pois o impacto dado aos olhos, também é resultado de uma escultura organizada sobre uma construção visivelmente planejada para alcançar seus objetivos religiosos e de poderio.
A sensação é de peso, pois os detalhes são maciços; não há vazado. É uma beleza contida, pois a leveza levaria ao deleite, o que seria um pecado.
No item julgamento, incluímos o instrumentalismo da obra escultórica da Stº Trophime, especialmente pelo cunho didático que representa. O caráter simbólico das figuras, como já vimos, caracteriza o aspecto documental de uma filosofia cristã. No caso dos baixo-relevos a que nos referimos, além de as figuras fantásticas representarem a religiosidade, a estrutura da composição, visivelmente clássica, revela o pensamento platônico ainda presente na Idade Média. O Cristo centralizado na mandorla e em uma posição superior, indica a referência do inteligível, do divino, Daquele que é inatingível, de onde podemos fazer uma ligação ao Uno neoplatônico. As figuras simbólicas que fazem as vezes de decoração são naturalmente aceitas, não como puro enfeite, mas como representação do poder divino. O ser platônico é manifestado no não-ser, isto é, no sensível, na arte. E esta arte é muito bem aceita, justamente porque envolve um significado maior, inteligível. Na escultura românica há uma imitação simbólica da Idéia, defendida na teoria platônica. Sabemos, pelo que já foi exposto nos capítulos anteriores, que o período românico é totalmente influenciado pela doutrina de Santo Agostinho, seguindo Plotino. Estes filósofos acreditam no conhecimento sensível e o simbolismo românico vem confirmar esta idéia. Neste sentido, podemos afirmar que o sensível já existe antes do gótico, mesmo que de uma forma camuflada por detrás das representações artísticas. Assim as idéias de Santo Agostinho, por sua vez de origem platônica dão tranqüilidade aos medievais em aceitar a arte, sem correr o risco de estarem cometendo o sacrilégio da admiração do sensível.
Além do fator artístico e filosófico, podemos ainda nos referir ao aspecto de a escultura, por estar totalmente subjugada à arquitetura, também manifestar à condição de submissão do homem ao poder da Igreja. Raríssimas vezes, até o século XII, tivemos notícias de esculturas redondas, completamente tridimensionais no sentido de serem vistas de todos os ângulos, a não ser que fizessem parte de objetos de arte, como relicários e castiçais e cálices. Estes objetos, verdadeiras esculturas, representam o esplendor, pois são
feitos de metais nobres, como ouro, prata e também pedras preciosas, evidenciando que o medieval do período românico já é atraído pelo brilho e a beleza sensível. Ainda não há uma luminosidade, mas um esplendor, pois a luz dos objetos não se espalha, mas lhes dá o fulgor-colorido. Entendendo a estética de qualidade como a inclusão da luz no conjunto, de uma certa maneira, podemos dizer que ela já se faz presente na arte românica, contrapondose sutilmente com a estética de quantidade – proporção.
Assim concluímos que a escultura românica é instrumentalista porque abrange um pensamento filosófico e ideológico –religioso.
4. 2. 2. 2. . Leitura da escultura gótica de Ekkehard e Uta (ver figura nº 11) da série de “Fundadores” do coro da catedral de Naumburgo ( Alemanha), cerca de 1260
Descrição e análise formal da escultura gótica de Ekkehard e Uta – Ao iniciarmos a descrição e análise formal da escultura gótica, especialmente Ekkehard e Uta, percebemos que, embora os personagens tenham vivido há mais tempo (1032-1046), apresentam caracteres e indumentária da época em que são esculpidos. Consta que o escultor fica conhecido apenas como mestre Naumburgo206. As imagens são realistas e de tamanho natural.
206
SHAVER-CLANDELL, 1982, p. 92.
Fig. 11. Ekkehard e Uta. Da série de “Fundadores” do coro da catedral de Naumburg. Cerca de 1260 (Alemanha)
Ekkehard apresenta-se corpulento e de meia-idade, cabelos encaracolados, presos à nuca e uma leve papada. Veste-se com uma capa ao longo do corpo, que cobre a vestimenta. Observamos que ele usa uma cinta trabalhada, prendendo a roupa à cintura. A maior parte da figura apóia-se sobre a perna esquerda. Sua mão esquerda empunha uma espada, a
qual encobre o escudo, onde está pintado o nome do margrave de Meissen, enquanto que o braço direito cruza o corpo e segura a capa. Os detalhes dos gestos e o pé direito mais à frente demonstram uma certa liberdade na retratação humana, mostrando uma certa subjetividade; estas características, diferente da posição solene do românico e do gótico primitivo, impõem às figuras uma presença física.
Uta transparece um gesto momentâneo. Seu rosto está em meio perfil, enquanto que seu corpo continua no eixo principal. Seus gestos são semelhantes ao de Ekkehard, porém mais delicados, pois com o braço esquerdo segura as dobras da capa que encobre seu corpo ao pescoço aos pés. O braço direito encoberto pela capa, aconchega a gola até a altura do rosto. Ela traz na cabeça uma espécie de capacete, em formato de coroa trabalhada. Usa um anel vistoso no dedo indicador da mão esquerda.
Das figuras escultóricas da Idade Média, evidentemente o conjunto de Ekkehard e Uta representam o “equilíbrio em sua combinação da idealização e do detalhe observado na natureza”207.
Percebemos também que as figuras estão sobre uma base e encostadas
levemente à parede do coro oeste da catedral, mas não totalmente presas à arquitetura. Se pudessem sairiam andando, pois nada as impede de fazê-lo. Há volume, claro-escuro, profundidade e tridimensão, resultado de uma arte que se liberta de leis pré-estabelecidas. Há perspectiva recessional, ou seja, aberta, dando a noção de distância, visualização do fundo. A escultura forma um conjunto harmonioso com o espaço interior do ambiente. A presença da perspectiva é observável, no momento em que as figuras principais não estão totalmente ligadas à construção. Podemos dizer que há duas perspectivas: uma é planar, composta de dois planos (o casal em primeiro plano e o pilar em segundo); a outra perspectiva é linear, representada pelas linhas da arquitetura interior. Se o conjunto escultural fosse um baixo-relevo, completamente colado a um plano, o efeito não seria de perspectiva, mas de profundidade, como vimos na fachada de Stº Trophime. Neste aspecto, em termos formais a escultura gótica apresenta características diversas da românica.
207
Ibidem, p. 93.
Interpretação da escultura gótica de Ekkehard e Uta
O que sentimos ao observar a obra Ekkehard e Uta é uma sensação de realismonaturalista, a nítida impressão de estarmos conhecendo a personalidade e a alma de duas pessoas. São como medievais, pois estão vestidos como um cavaleiro e uma graciosa dama do século XIII.
O trabalho do escultor deste conjunto é o retrato de um momento em que o artista abandona seus livros de modelos e passa a representar o que lhe interessa pessoalmente. A liberdade, a soltura, ainda que ingênua dos gestos, da expressão, das dobras das roupas é uma amostragem, também, de que o artista passa a se mostrar como gênio criador. Sabemos que esta genialidade ainda não era totalmente aceita. Raríssimas vezes o nome do autor é conhecido, mas já se observa, no período gótico, uma certa subjetividade daquele que esculpi, diferentemente do período românico que possui um caráter didático, puramente religioso.
Esta nova visão da escultura no século XIII demonstra, através da arte, que o homem começa a desvencilhar-se dos mandos da Igreja. Este fato é testemunhado pela representação visual, através de suas características voltadas ao profano e ao naturalismo.
Julgamento da escultura gótica de Ekkehard e Uta
Julgar a obra de Ekkehard e Uta em termos filosóficos é por demais incitante. A escultura gótica do século XIII marca uma mudança radical na forma de representação imagética. Por isso, consideramos a obra referida como filosófica formalista, expressivista e instrumentalista, seguindo as etapas da leitura de imagem sugerida por Feldman.
A escultura gótica de Ekkehard e Uta é considerada na filosofia formalista porque ela reúne todos os elementos estruturais – linha, volume, textura, profundidade e perspectiva, e intelectuais – ritmo, harmonia, luminosidade - da forma, com o objetivo de passar realismo-naturalista. Lembrando Aristóteles, via São Tomás de Aquino, a potência contida na substância, que é a pedra, se faz presente na forma, que é o que o escultor caracteriza como sendo Ekkehard e Uta. Se os elementos formais fossem tratados de uma outra maneira, deixariam de ter as características, pelas quais as figuras são identificadas como tais. A tridimensão da escultura gótica vista por inteiro, portanto, cumpre a condição de potência da substância, fazendo a forma vir à tona. Este aspecto não se revela na escultura românica, que ligada à construção, não apresenta perspectiva e o fato de simbolizar o divino, adquire uma relação com o inteligível, a idéia, a forma platônica.
A filosofia expressivista evidencia-se no conjunto, revela-se nas feições totalmente humanas, sem estereotipo, na espontaneidade dos gestos, na verticalidade sugerida pela postura das figuras. O verticalismo se reflete, a exemplo do que já observamos na arquitetura, dando indícios de que o homem pode chegar às alturas, a Deus, por seus próprios méritos, pela razão humana. Estas questões são defendidas por São Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles. Além disso, a escultura expressa individualismo, pois cada elemento mostra a sua identidade – masculinidade e feminilidade, respectivamente. Há o reflexo de uma certa subjetividade nas figuras trabalhadas e na expressão particular do próprio artista, quando ele deixa transparecer o interior de seus personagens.
A escultura de Ekkehard e Uta redescobre a beleza sensível, da natureza, daquilo que é real, palpável e visível. É uma mostra de que o ser platônico existe no não-ser, até porque, se Platão vê no sensível o não-ser, ele mesmo admite o ser contido no não-ser.
A expressão da escultura gótica transmite algo dela mesma, sem simbolismos divinos, e mesmo quando mostra a natureza, como em forma de flores e animais, a escultura representa a ela própria, dando-lhe independência. A escultura de Ekkehard e Uta, portanto, identifica-se com uma estética voltada ao sensível e ao que Platão denomina não-
ser. Volta-se, inclusive, a uma filosofia aristotélica, da forma sensível, de valorização da natureza e razão humana.
Defendemos, por fim, o julgamento pela filosofia instrumentalista, porque a escultura gótica nos remete a uma reflexão de um momento, de um pensamento que se contrapõe a antigas tradições; surge uma nova forma de ver o mundo, realidade, natureza, o homem e a Deus.
Na arte visual, verifica-se, muito cedo, que o interesse do artista está prestes a abandonar os grandes símbolos e as concatenações metafísicas, para representar o imediatamente experimentado, o sensível e o particular (...) Assim, em arte, também a concepção de um Deus inteiramente independente do mundo dá lugar a um poder divino que se manifesta nas coisas criadas208.
A natureza, portanto, passa a ter um lugar na arte. São Tomás de Aquino é um dos grandes responsáveis por esse pensamento, ao seguir as idéias aristotélicas sobre o sensível, que se opunham ao inteligível de Platão. Este fato coincide com as pregações de São Francisco de Assis; este ao defender a natureza e os animais como parte da manifestação de Deus, contribui, mesmo sem intenção, com o novo paradigma ligado à aceitação da natureza e do sensível. A arte, em especial a escultura, não pode ficar alheia a todas essas mudanças, e daí é um passo rumo a uma estética, a que poderíamos denominar humanista.
Também a obra Ekkehard e Uta está inserida na filosofia instrumentalista, porque ela retrata uma realidade, no caso profana, uma classe nobre, indumentária da época e um homem e uma dama respeitáveis. O gótico, como já discorremos, não é uma arte que representa a plebe, mas a nobreza e, inclusive, uma classe que inicia a galgar espaço: a burguesia; por isso, a escultura gótica representou uma e estética de requinte, luxo e poder.
208
HAUSER, 1972, p. 313 e 314.
4. 2. 2. 3. Quadro comparativo da escultura românica e gótica
ESCULTURA MEDIEVAL ROMÂNICA
GÓTICA
ROMÂNICA
Evidência estético-
GÓTICA
Evidência estético-
Escultura
filosófica
Escultura
filosófica
-profundidade, sem
-indivíduo retraído;
-perspectiva;
-indivíduo visionário;
-inteligível, o Uno;
-representação da
-sensível;
perspectiva; -figura de Deus, o Cristo glorificado;
natureza, do homem e dos objetos;
-figuras fantásticas;
-sentido didático;
-figuras reais;
-realismo;
-posição clássica
- tradição antiga;
-posição aberta,
-paradigma novo,
(piramidal ou
perspectiva
naturalismo;
triangular): moldes
recessional;
greco-romanos; -temas bíblicos;
-religiosidade;
-temas profanos;
-humanismo;
-eficiência no
-valorização da
-eficácia na
-valorização do
simbolismo;
criação;
habilidade;
artista;
-imagens envoltas em -submissão;
-imagens isoladas,
-integração, recepção,
arcos e mandorlas;
livres, espaço aberto; acolhimento;
-segue leis pré-
-dedução;
estabelecidas; -simbolismo divino;
-experimentação,
-indução;
criatividade; -a forma é a Idéia, o
-representação da
-a forma é o que a
Ser (Platão);
natureza por ela
caracteriza
mesma;
(Aristóteles e São Tomás de Aquino);
-figuras
-supremacia do
-figuras expressivas;
estereotipadas;
coletivo;
-proporção;
-finalidade didática -
-proporção,
teocrática;
integridade e
-individualismo, subjetividade;
claridade;
-beleza;
Escultura
Equivalência
Escultura
estético-filosófica -presa à arquitetura;
Equivalência estético-filosófica
-subordinação ao
-redonda,
-individualismo,
poder religioso;
tridimensional,
influência
independente;
aristotélico-tomista;
ROMÂNICA
Equivalência
GÓTICA
Equivalência
Escultura
estético-filosófica
Escultura
estético-filosófica
-uso restrito de
-conhecimento
-uso exagerado de
materiais nobres:
sensível (Santo
materiais nobres:
ouro, prata, pedras
Agostinho).
ouro, prata e pedras
preciosas;
Claridade;
preciosas.
-prazer estético;
Luminosidade; -escultura estática,
-passividade. Força;
maciça;
-escultura dinâmica,
-expressividade,
comovente e
emoção;
convincente; -figuras atarracadas;
-recolhimento;
-figuras alongadas;
-verticalismo, elevação.
A respeito da arquitetura e escultura românica e gótica, podemos destacar alguns pontos em comum, que dizem respeito ao pensamento medieval, bem como verificamos diferenças de estilo, que permitem peculiaridades de identificação.
Uma característica que une as duas linguagens e tendências artísticas é a aura revestida de cristandade que as envolve.Outro aspecto semelhante é a ligação com filosofias pagãs, platonismo e aristotelismo, respectivamente.
Ao mesmo tempo em que as semelhanças são visíveis, também as diferenças entre românico e gótico são, da mesma forma, marcantes. Entre elas, é o tratamento dado à questão da forma. Podemos dizer que o simbolismo românico evidencia a teoria das idéias de Platão, no momento em que a iconografia manifesta um divino considerado inatingível. O naturalismo e a expressividade que surge com o gótico, marca a valorização pelo mundo sensível, pensamento atrelado a Aristóteles.
4. 2. 3. Leitura da pintura medieval
4. 2. 3. 1. Leitura de uma iluminura românica. Anunciação (ver figura nº 12) - De um Evangelho manuscrito suábio, cerca de 1150. Stuttugard, Landesbibliothek
Fig. 12. Landesbibliothek.
Iluminura de um manuscrito “Anunciação”. Sttutgart, Cerca de 1150
Descrição e análise formal da iluminura Anunciação
Observamos um conjunto formado de duas figuras aureoladas: um anjo, evidentemente sendo São Gabriel, que realiza o ato da anunciação, e Maria. As duas figuras não apresentam realismo, suas feições são estereotipadas e apenas os gestos das mãos dão a idéia de ação.
Maria veste-se com três peças: a primeira cobre-lhe o corpo, dos ombros até os pés, parecendo um vestido; a segunda, sobre o que parece um vestido, vai dos ombros até a uma altura abaixo dos joelhos. Esta peça contém detalhes barrados na borda inferior e no sentido vertical frontal; por último, apresenta uma capa que lhe cobre os ombros, braços e o corpo
até a altura da segunda vestimenta, deixando aparecer à frente desta última. Na cabeça usa um turbante que lhe cai até o pescoço. Acima da cabeça de Maria, desce a figura da Pomba do Espírito Santo.O único sinal de espanto de Maria é demonstrado pela posição das mãos. Na realidade, qualquer pessoa a ser abordada por um anjo e repetisse o gesto das mãos da Vigem, fatalmente inclinaria o corpo para trás, como movimento simultâneo de susto. Além disso, sua face não ficaria tão serena e sem emoção como parece na pintura.
Em contrapartida, figura do Anjo Gabriel possui mais movimento. Seus cabelos são longos e encaracolados, voltados para as costas. Seu corpo apresenta-se em meio perfil; a mão direita está erguida, significando o ato de falar, enquanto outra, à altura da cintura, segura o manto estampado, solto sobre duas camadas de roupa farta, que lhe cobre em parte. Diferentemente da Virgem, o Anjo mostra seus pés que se equilibram sobre a parte inferior da moldura da iluminura; esta última está composta de figuras de flores estilizadas e de linhas quebradas, formando um zigue-zague.
Em termos de composição pictórica, percebemos uma preocupação com o desenho, através de contornos definidos. A profundidade é dada pelo contraste sutil do claro-escuro nas bordas das dobras das roupas das duas figuras principais, nas asas do anjo e da Pomba, no rosto e pescoço do Anjo Gabriel, e nas figuras da moldura. Não há perspectiva, pois o fundo parece uma parede, a exemplo do que vimos nos baixo-relevos. “Parece quase tão hirta e imóvel quanto um relevo egípcio”209.
Interpretação da iluminura românica Anunciação
Feldman diz que ao interpretar uma imagem, devemos em primeiro lugar expor o que sentimos em relação ao que vemos e logo buscar subsídios do que o autor quis passar através da composição plástica. Sendo assim, o primeiro momento é totalmente subjetivo e devemos comunicar o que realmente nos envolve interiormente. Desta forma, podemos 209
GOMBRICH, 1972, p. 134.
dizer que sentimos uma sensação de passividade por parte de Maria, visto a ausência de realismo da cena, o que já foi exposto na descrição e análise formal.
O realismo e o naturalismo não são, na verdade, uma preocupação do artista, pois o que lhe interessa é o sentido didático, evangelizador, através da “disposição de tradicionais símbolos sagrados, que era tudo o que ele necessitava para ilustrar o mistério da Anunciação...”210. O que falta em realismo, há em demasia em religiosidade. Podemos resumir nossa interpretação acerca desta pintura ao que já foi exposto sobre a escultura românica, na leitura interpretativa da fachada de Stº Trophime (ver figuras nº 07 e 08), em páginas anteriores, neste capítulo.
Julgamento da iluminura românica Anunciação
Diferentemente das obras lidas neste capítulo, definimos em primeiro lugar a Anunciação, como uma pintura inserida na filosofia instrumentalista, seguindo-se a expressivista e a formalista.
Nossa decisão em julgar a obra citada, primeiramente, no contexto filosófico instrumentalista, é justamente pelo seu aspecto documental. Ao analisá-la, observamos que o simbolismo religioso é o que causa mais impacto. Tanto a sutil expressividade, quanto a organização formal do conjunto agem em função da instrumentalidade da obra. Os elementos estruturais, como linha, desenho, volume, claro-escuro e profundidade, quanto intelectuais, como harmonia, proporção, simetria clássica, estaticidade, demonstram um objetivo único de evangelização. Além de servir como um recurso de leitura aos analfabetos da época (século XII), também serve de um instrumento aos interessados posteriores, sobre a temática e forma de pensar, agir e sentir dos medievais. O estilo da pintura românica, como um todo, não foge da intenção de testemunhar a condição de submissão do fiel aos dogmas da Igreja. A pintura assim como a escultura é ligada uma 210
Ibidem, p. 134.
superfície plana: às paredes e tetos das igrejas ou às páginas dos livros sagrados. O atrelamento da pintura à arquitetura ou aos livros, demonstra a supremacia da Igreja, representada como pano de fundo da pintura.
Na Idade Média, pelo caráter simbólico e didático das imagens, elas obedecem a certos códigos e estes informam a verdadeira mensagem. Como as figuras são representadas geralmente estáticas, a comunicação é realizada pela postura das mãos. No caso da imagem Anunciação (ver figura nº12), a Virgem está com as mãos abertas e as palmas voltadas para frente e com o braço dobrado próximo ao corpo, o que significa uma adesão, um acordo. O gesto é muito semelhante ao que determina sofrimento aceito, mas não é o caso, pois para indicar tal atitude, Maria deveria estar com as mãos numa posição mais abaixo e uma próxima a outra. Já o gesto do Anjo Gabriel, com a mão direita com dedos estendidos e levemente dobrados, representa ação de abençoar, “dizer o bem”. Um outro fato interessante no código de simbolismo, é que os anjos sempre aparecem descalços, como na pintura que estamos julgando. Este gesto do Anjo Gabriel denota que este ser está acima do mundo terreno.
O que podemos definir em nosso julgamento é que os códigos não representam apenas sinais de comunicação, mas uma condição, um status que é dado a cada personagem, refletindo um pensamento filosófico-cristão da época. A supremacia das figuras sagradas, do divino, retrata a filosofia do inteligível. Embora constituídas de simbologia, elas manifestam o Bem supremo que é a Idéia. Neste caso fica claro que a arte da pintura é aceita entre os medievais porque serve de recurso para representar o divino. Este fato explica a valorização da criação e não do artista, pois até o século XII, Deus seria o único e verdadeiro Criador.
As figuras pintadas do período românico simbolizam o inteligível, o Uno, o transcendental, ao passo que a linguagem da pintura, ou seja, a arte da pintura, evidencia a condição do homem diante de Deus, Todo Poderoso. Isto é explicado pelo fato de a pintura e a escultura estarem subordinadas à arquitetura, e esta ser a arte maior representando o que
há de mais perfeito. O mesmo podemos dizer da pintura estar atrelada aos livros sagrados, através de iluminuras ou miniaturas, pois estes também são veículos da palavra de Deus. A arte da pintura é respeitada, somente pela sua condição de imitar o ser (Platão) e como instrumento e conhecimento sensível (Plotino e Santo Agostinho). Mas o que nos intriga é o fato de que os medievais deixam sem solução a questão de que as imagens, no caso das pinturas, mesmo simbólicas, são consideradas não-ser e, portanto, um elemento sensível. Desta forma, a arte pictórica, também é admirada, já no período românico, mesmo que sutilmente, contrariando um pensamento platônico e neoplatônico que impera nas ordens religiosas.
4. 2. 3. 2. Leitura da pintura gótica . O Sepultamento de Cristo (ver figura nº 13). De um saltério manuscrito de Bonmont. Pintado entre 1250 e1300, Besançon, Bibliothèque Municipale
Fig. 13. Iluminura de um saltério manuscrito. Bonmont. Cerca de 1250 e 1300.
Descrição e análise formal da pintura gótica O Sepultamento de Cristo A referida pintura é uma iluminura de um manuscrito do século XIII, que faz parte de um Saltério. A exemplo da iluminura românica Anunciação (ver figura nº 12), o tema, como não poderia ser diferente é bíblico. Observamos na pintura O Sepultamento de Cristo, uma cena de um padrão regular, composta do corpo de Cristo morto e amparado por servos,
que trazem à cabeça “estranhos chapéus pontiagudos como os usados pelos judeus da Idade Média”211.
O corpo da Virgem, debruçado sobre Cristo ao túmulo, abraça o Filho, enquanto São João permanece de pé e com as mãos apertadas. Na parte superior do quando, dois anjos, segurando incensórios descem das nuvens. Cristo, a Virgem e São João diferenciam-se dos demais personagens por estarem aureolados na cabeça. As figuras, as roupas e os objetos são muito bem definidos com contornos e cena principal é centralizada, formando uma cruz. Há muito movimento em toda a composição, através de linhas quebradas, onduladas e inclinadas que se misturam.
A tridimensão é insinuada por meio do claro-escuro das pinceladas e pela perspectiva planar, ou seja, as figuras menores de dois servos na parte inferior representam o primeiro plano; Cristo, Maria e os servos aos pés do túmulo formam o segundo plano; São João e as demais figuras constituem um terceiro plano. As linhas da cabeceira do túmulo e os suaves volumes dos corpos e objetos dão noção de profundidade ao quadro.
Quanto às cores, conforme costume já observado nos vitrais góticos, a pintura usa o azul, o vermelho e o ouro. A cor mais usada, no entanto, é o dourado, principalmente no manto da Virgem e no fundo. O estilo é gracioso, como resultado das poses, gestos agitados, drapeados das roupas e cabelos encaracolados dos personagens. A representação realista não é concebida pelo tratamento modular das formas humanas e dos santos, pois os dois servos da parte inferior são visivelmente menores que as demais figuras. O realismo, entretanto, é conquistado pela expressão intensa, representada nas feições e gestos.
No século XIII há indícios de um realismo-naturalista, que mais tarde, é observado na obra pictórica do gótico tardio ou pré-renascentista, representado, principalmente por Ambrogiotto do Bondone, Giotto. 211
GOMBRICH, 1972, p. 146.
Interpretação da iluminura gótica O Sepultamento de Cristo Evidentemente que o que mais nos chama a atenção na iluminura citada é a dramaticidade, a expressividade, contrapondo-se à iluminura românica Anunciação (ver figura nº 12). A dor pelo sepultamento de Cristo é observada nos semblantes das pessoas, deixando claro que são verdadeiras e humanas; A Virgem de O Sepultamento de Cristo é totalmente diversa da Virgem de Anunciação. Enquanto a que vê seu Filho morto é uma mãe como qualquer outra, com sentimento e dor, a Maria anunciada pelo Anjo Gabriel é estereotipada e sem emoção. Este aspecto humano, que as figuras adquirem na iluminura gótica, certamente é indício das características da pintura pré-renascentista que Giotto seguiu no final do século XIII e início do século XIV. Basta comparar a iluminura O Sepultamento de Cristo com Lamentação do Cristo (ver figura nº 14), do Mural na Capela dell’ Arena, em Pádua, provavelmente concluído em 1306. Logicamente que na obra de Giotto, as figuras são mais dramáticas e o realismo é melhorado, inclusive, com a paisagem que integra o quadro, mas podemos dizer que ambas as obras possuem características semelhantes, a nível psicológico e de pensamento filosófico: dramaticidade e humanismo. Estas peculiaridades são o que distingue a pintura gótica da românica e da renascentista; a românica preocupa-se com o simbolismo, sem dar atenção ao sentimento e ao realismo, pelos motivos que já discorremos na leitura de Anunciação; a pintura do Renascimento volta-se a um humanismo, baseado na razão e modelos clássicos, sem, contudo, usar de artifícios sentimentalistas.
A pintura gótica das iluminuras, no entanto, persistem no caráter religioso, no tema e no uso das cores, principalmente a dourada. Para simbolizar riqueza e luz, os medievais não economizavam o uso da folha de ouro.
A perspectiva, ainda que não tão bem assimilada como os renascentistas, sutilmente empregada em planos, dava indícios de que o medieval já estava interessado em mostrar a realidade como ela era, distanciando-se cada vez mais do simbolismo divino. Mais do que a cena real, o artista do período gótico estava preocupado em mostrar a emoção dos
personagens, dando uma condição humana, inclusive, aos santos. A pintura gótica, contudo, convence menos o fiel do que a escultura, pelo fator tridimensionalidade e profundidade.
Fig. 14. GIOTTO. Detalhe de “A Lamentação do Cristo”. Pádua. Concluído em 1306.
Julgamento da pintura gótica O Sepultamento de Cristo
Pelos motivos que já foram expostos na descrição, análise formal e interpretação, enquadramos a miniatura em uma filosofia, em primeiro lugar expressivista, em seguida instrumentalista e formalista. Nosso julgamento da obra, baseado nos tópicos da leitura de imagem de Feldman, induz-nos a julgar a obra pela sua expressão, num primeiro momento, justamente pela filosofia de um prazer estético que é visível. Nesse sentido, observamos
uma evidente influência aristotélica na iluminura O Sepultamento de Cristo, pela emoção que passa. Toda a imagem transmite um sentimento de dor e piedade, que não são evidenciados na pintura românica, porque o interesse é diverso. Enquanto que no românico, o simbolismo é o artifício principal de convencimento evangélico e filosófico, no gótico é o realismo-naturalista, evidenciado pela expressão. É uma busca de realismo diferente, não diretamente pela forma, mas no tocante à emoção humana. A influência aristotélica é refletida na catarse que se desenvolve a partir da cena e do sentimento que provoca ao fiel que a contempla. O fator naturalista surge no tocante a um comportamento de qualquer ser humano: olhos e feições de sofrimento, um amigo que crispa as mãos num gesto de desalento pela morte de alguém muito querido, e uma mãe que se debruça e tenta levantar o corpo inerte do filho. O quadro todo é composto de dramaticidade inerente a um lamento, próprio de seres humanos e não de figuras passivas, que parecem não ter coração, como as estereotipadas do período românico. Assim fica evidente que o naturalismo gótico, não se restringe apenas a esculturas e pinturas da natureza, o que também é uma de suas características; o homem, com suas peculiaridades verdadeiramente humanas, é mostrado como parte da natureza.
O fator instrumentalista da pintura gótica, especialmente O Sepultamento de Cristo, é que a obra prenuncia um pensamento humanista que se esboça a partir do tratamento humanizado dado às figuras de santos, deixando de serem representados por símbolos. Também o homem é visto como homem. Já não é mais pecado o fiel se emocionar, deleitarse com o que é natural. A beleza, inclusive, vem da forma que lhe é dada pelas suas características, e não por uma Idéia, que só poderia ser mostrada por um símbolo. A pintura assume a condição de ser em vez do não-ser. Para Platão, a pintura, simplesmente por ser algo visível e, portanto sensível, estaria no mundo das aparências, do não-ser. Aristóteles coloca o ser dentro das coisas visíveis, e esta é a verdadeira forma, o que a compõe, o ser. No momento em que a pintura assume o papel de mostrar a natureza por ela mesma, o estado visível e tangível, que lhe é próprio, lhes dá o status de ser e não de representação de uma idéia.
A pintura, contudo, ainda permanece a serviço de uma Igreja que necessita de imagens, cada vez, mais convincentes. Com este intuito, os pintores não hesitam em utilizar recursos compositivos: contornos bem definidos, jogo de claro-escuros, composição mais movimentada e dramática, cores como azul, vermelho e dourado, vindos do período românico. Esses fatores atribuídos à pintura fazem com que ela assimile, inclusive, uma filosofia formalista. Após lermos a imagem O Sepultamento de Cristo, definimos a característica da expressividade como um atributo novo, que define a peculiaridade da pintura gótica, diferenciando-a da pintura românica, anterior, e da renascentista, posterior, vinculadas ao clássico.
ROMÂNICA
Equivalência
GÓTICA
Equivalência
Pintura
estético-filosófica
Pintura
estético-filosófica
-figuras apenas
-divinização;
-figuras bíblicas, e
- individualização;
religiosas;
profanas;
- ausência de
- submissão ao poder -preocupação em
- conquista de um
perspectiva;
religioso e político;
espaço real;
evidenciar a perspectiva;
- feições
- simbolismo, o que
estereotipadas;
interessa é o tema;
- gestos com as
- convenção;
-feições humanas;
- gestos com o corpo; - espontaneidade,
mãos; - a iluminura é um
- realismo-naturalista;
emoção; - evangelização;
recurso didático;
- a iluminura é uma
- convencimento
obra de arte;
temático, através da emoção;
- figuras celestiais
- condição de
- figuras usando
descalças;
superioridade; o
acessórios da época;
- humanização;
divino; - estilo estático;
- passividade;
- estilo gracioso;
- sensualidade;
- feições
- massificação;
- feições particulares; - subjetividade;
semelhantes; - ausência quase total - ilusionismo;
- presença de volume - verdade.
de volume e claro-
e luminosidade;
escuros;
4. 2. 3. 3. Quadro comparativo referente à pintura românica ROMÂNICA GÓTICA
O vitral, na Idade Média, é considerado uma pintura, pelo colorido que apresenta e por substituir os imensos afrescos nas paredes e tetos das catedrais, constituindo uma
Pintura
Equivalência
Pintura
estético-filosófica -o sentido simbólico; -Filosofia
estético-filosófica -o prazer estético;
instrumentalista; -a pintura;
-aceita como
Equivalência -Filosofia expressivista;
-a pintura;
-aceita como arte. O
linguagem simbólica
belo está na forma
da Igreja.O
visível: integridade,
conhecimento
proporção e claridade
sensível (Santo
(São Tomás de
Agostinho);
Aquino);
-temas bíblicos
- o ser é a Idéia
-temas bíblicos,
- o ser é a forma
exclusivamente;
(Platão);
profanos e da
sensível;
natureza; - a arte;
- está a serviço da
- a arte;
Igreja; - o sentido da arte;
- valorização da
artista; - o sentido da arte;
criação; -linhas retas:
- estaticidade.
dedução;
- valorização do artista;
- linhas oblíquas,
composição clássica; Obediência a leis pré- circulares na estabelecidas:
- está a serviço do
composição;
- dinamismo, experimentação: indução;
das mais marcantes características do gótico. A execução dos vitrais13 é feita por artesãos, exímios na adição de produtos químicos como manganês ou o cobalto ao vidro derretido, enquanto este se encontra na fornalha. Outro processo conhecido como antique é realizado a partir de uma bolha soprada que adquire forma cilíndrica e após é colada nas duas extremidades; este cilindro oco é, posteriormente, aberto e achatado, resultando chapas. As duas peças são recortadas nos moldes com ponta de diamante, conforme os prévios, onde são pintados os detalhes em preto opaco. Finalmente as peças são coladas com perfis de chumbo flexível e em seguida, soldadas umas às outras. A colocação dos vitrais, por artesãos e pedreiros, é realizada com o auxílio de estabilizadores (caixilhos de ferro), já que vidro e chumbo – juntos - resultam muito peso, e os vitrais poderiam ser danificados com a ação do vento. Pelo que foi exposto, incluímos, a seguir, uma leitura de uma imagem em vitral.
4. 2. 3. 4. Leitura iconográfica da Notre – Dame dela belle verrière (Nossa Senhora do belo vitral )
Fif. 15 - Notre – Dame de la belle verrière (Nossa Senhora do belo vitral) – painel central do séc. XII e laterais do séc. XIII, da Catedral de Chartres. 1
3
Cf SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 62 e 63.
Descrição e análise formal do vitral Notre – Dame de la belle verrière (Nossa Senhora do belo vitral)
Observando o interior da Catedral de Chartres14, o que mais nos impressiona, pela harmonia e mistério, são os vitrais. O escolhido para a presente leitura é o vitral de NotreDame de la Belle Verrière, que sobrevive ao incêndio da cidade de Chartres em 1194 e que permanece, hoje, intacto. A imagem, como de outros vitrais, é lida de baixo para cima, visto que é a posição mais cômoda para o visitante que observa figuras numa parede muito alta. “As harmonias cromáticas baseiam-se em azuis profundos e vermelhos brilhantes que, reunidos projetam uma luz violácea e mosqueada sobre a pedra acinzentada do interior da catedral, suavizando aspereza do trabalho em pedra”15 . A cor violácea é resultado da mistura de duas cores primárias, azul e vermelha, dando como efeito uma terceira cor, a secundária. O amarelo e o branco são usados em menor proporção, mas contribuem para a formação de outras cores secundárias, como o verde (azul mais amarelo) e laranja (vermelho mais amarelo). Cores terciárias também surgem, resultantes das misturas de primárias e secundárias, suavizadas pelo branco. O efeito é multicor e luminoso, formando um arco-íris no interior da catedral, o qual reluz sobre os objetos de ouro e pedras preciosas.
A Virgem Maria fica na janela do coro, com halo e coroa, como rainha do céu; é colocada em tamanho maior e em destaque central, semelhante a uma mandorla, a exemplo do Cristo. Apóia ao colo o Menino Jesus, ladeada de anjos ajoelhados que seguram castiçais e balançam turíbulos. O símbolo do Espírito Santo, a pomba branca, voa acima da cabeça da Virgem.
A composição é simetricamente organizada. Alguns indícios românicos ainda são evidenciados na composição, como a centralização da Virgem, como se estivesse numa 1
4
1
5
Ibidem p. 64 e 65. Ibidem, p. 63.
mandorla, e simetria rígida; este fato é compreensível, pois o painel central é feito ainda em pleno século XII, quando o estilo românico ainda está arraigado. O que torna o vitral exuberante, entretanto, é a clareza do desenho e a cor-luz transmitida.
Interpretação do vitral Notre – Dame de la belle verrière (Nossa Senhora do belo vitral)
A imagem da Virgem Maria, com o Menino Jesus, e dos anjos denotam que ainda existe o espírito cristão no gótico. O conjunto central, formado pela Virgem e o Menino mostram a hierarquia espiritual da época, onde as duas figuras principais são destacadas pela dimensão e centralização.
A sensação de deleite é causada pela técnica do vitral, bem como pelo sentido de religiosidade. A técnica transmite uma luz translúcida e colorida, como se o fiel estivesse envolvido pela luminosidade do arco-íris. A religiosidade é sentida pelas imagens que contam cenas dos livros sagrados. Pela representação, esse vitral é sagrado duplamente. Em primeiro lugar por retratar a própria Virgem, e em segundo lugar pela ligação divina do vidro com a Virgem, mãe de Jesus. O vidro, assim como a Virgem, apresenta papel idêntico, pois ambos emprestam o corpo para a materialização de Deus. Como imagem, o desenho mostra a mulher imaculada que, através dela, o Filho de Deus se fez homem, e por isso santa. Como vitral, o vidro deixa que a luz, símbolo o divino, transpasse seu corpo, fazendo surgir luminosidade e a cor deslumbrante no recinto da catedral. Todos estes elementos favorecem um envolvimento muito forte do medieval cristão com o vitral. Esse dá conta da visibilidade de componentes de beleza, através de integridade, claridade e proporção, atributos dados à beleza, em especial, por São Tomás de Aquino.
Julgamento do vitral Notre – Dame de la belle verrière (Nossa Senhora do belo vitral)
Com referência ao julgamento da obra, que impõe uma filosofia, identificamos o vitral, ora em análise, como formalista, expressivista e instrumentalista.
A questão formal é evidenciada como uma composição de desenho para pintura, retirada de projetos anteriores para ilustração de livros sagrados. Há uma organização na distribuição dos elementos principais, destacados ao centro e em tamanho maior, bem como um arranjo das figuras secundárias, ao redor da representação do tema fundamental. O material, já citado e descrito anteriormente, neste capítulo, bem como as cores empregadas estrategicamente dão conta da preocupação formal dos artesãos e mestre-construtores medievais.
A expessividade é percebida através do deleite proporcionado pelo vitral como um todo: a luminosidade multicolorida refletida no recinto sacro, a sensação de ascensão e verticalidade, causada pela luz que entra através do vidro, espalhando-se pelo espaço e chegando até as abóbadas muito altas. O fiel medieval sente-se envolto numa espiritualidade diferente daquela sentida no interior de uma igreja românica, sombria e fria, pois percebe a presença de Deus no local, através da luz refletida. Todo o ambiente da catedral contribui para o encantamento do cristão e magia, pois a decoração, em materiais preciosos, brilha ao ser tocada pelos raios luminosos e coloridos.
Quanto ao fator instrumentalismo, não ousamos negar que, através do vitral Notre – Dame de la belle verrière, podemos estudar todo um contexto filosófico, religioso, estético e ideológico que perdura em meados do século XII e por todo o século XIII. Desta forma o referido vitral funciona como um documento de constatações, que complementam textos deixados pelos medievais referente ao seu modo de sentir e agir diante da realidade. O próprio vitral em si mesmo, antes de considerar as figuras nele contidas, constitui-se num livro, onde podem ser lidas as idéias da época. Percebemos no vitral um forte indício de aristotelismo, vindo da linha filosófica cristã de Suger, São Boaventura, Carlos Magno, São Tomás de Aquino e da linha científica de Grosseteste. Entendemos que a valorização do mundo sensível, colocando a idéia na substância de que tudo é formado, leva os medievais
a se interessarem pelo fenômeno da luz, pela sua ligação com o divino e fonte de tudo o que existe. Assim o vitral reúne visivelmente e magistralmente todo um pensamento, ao mesmo tempo aristotélico, mas também cristão e científico. O prazer estético, experimentado pelo medieval, ao envolver-se com a contemplação do vitral, mistura-se a uma atitude aliviada, por este prazer não ser mais considerado uma infração ou pecado. Além disto, a luz refletida no interior da catedral, por meio do vitral, denota que Deus está próximo, pois Ele de faz presente, representado pela luz. Estas constatações demonstram que o vitral assume um papel de instrumento, e que auxilia para o nosso entendimento sobre o pensamento que impera a partir de meados do século XII.
4. 3.
Considerações gerais acerca das leituras iconográficas românica e gótica
As leituras iconográficas realizadas mostram que a arte medieval esteve ligada a uma filosofia cristã. A filosofia cristã, por ser filosofia, não se fecha a nenhuma outra e por isso, a arte na Idade Média também está atrelada a uma filosofia pagã, platônica no período românico, e aristotélica no gótico.
É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue entre os domínios da Ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais, e não obstante vê na revelação cristã um auxílio valioso, a e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão212.
É imperativo salientar a influência da filosofia cristã na arte medieval, mais do que o próprio Cristianismo, pois este é uma religião. Nos séculos XI e XII, contudo, arquitetura, escultura e pintura voltam-se a uma filosofia cristã, imbuída de platonismo e neoplatonismo, evidenciada, principalmente pelo simbolismo e etimologia. Ainda em meados do século XII e por todo o século XIII, a arte assume, outrossim, a representação da natureza por ela mesma; por isso evidencia-se uma filosofia cristã, mas profundamente aristotélica. 212
BOEHNER e GILSON, 1991, p. 09.
Toda a filosofia tem seu ponto de partida no homem, apela principalmente ao seu intelecto, e trata de noções e problemas puramente naturais. Seu objetivo é proporcionar uma interpretação racional do mundo, da natureza, da sociedade, do homem e de sua vida interior, a fim de torná-lo verdadeiramente sábio e orientálo para a conservação de sua meta natural (...) A religião, ao contrário, e em particular a religião cristã, parte de Deus e se endereça à indigência espiritual e moral do homem, oprimido e infelicitado pela culpa, e, por conseguinte, impossibilitado de encontrar, por si só, o caminho de retorno a Deus 213.
A leitura iconográfica por nós realizada possibilita uma noção da filosofia e da religião impregnadas na arte. Por este motivo não nos bastaria apenas analisar e descrever ícones; seria necessário interpretá-los e julgá-los, para evidenciar o verdadeiro pensamento e ideologia contidos nas imagens medievais.
Para214 o medieval, especialmente até 1200, a essência das coisas esconde-se por detrás das aparências. Como aparências são entendidas as propriedades externamente observadas. Com o objetivo de entender a essências das coisas, o homem recorre a três graus de explicação, aprofundando o sentido da realidade: a etimologia, a analogia e o simbolismo. A etimologia compreende o conhecimento das forças místicas, ocultas nos nomes de animais e objetos. A analogia, ou correspondências entre as coisas diversas, encerrava as essências dos seres. Boehner exemplifica a analogia do homem como microcosmo, em correspondência com estruturas que compõem o macrocosmo ou universo. O simbolismo compreende o uso de um ser material sendo revestido de uma realidade espiritual. O próprio Criador manifesta verdades morais e religiosas nas Escrituras através da natureza. Sendo assim, podemos dizer que o grau mais utilizado pelos medievais, principalmente no período românico, é o simbolismo, por transmitir um sentido espiritual, inclusive, por meio de figuras grotescas e de animais.
213
214
Ibidem, p. 13.
Ibidem, passim.
Ao nos referir às leituras iconográficas fica evidente que o românico está voltado mais a uma arte simbólico-idealista, enquanto o gótico ao realismo-naturalista. Relembrando textos dos primeiros capítulos, podemos dizer que o primeiro estilo, por apresentar linhas retas e seguir modelos da secção áurea, está totalmente ligado a uma estrutura grega e, portanto, platônica; o segundo é mais maleável às linhas oblíquas e circulares, experimentando composições livres, mais próxima à composição romana do último período. Desta forma, o gótico atrela-se a um aristoelismo, onde a idéia vem dos sentidos e, por conseguinte, das formas visíveis.
O motivo de a arte românica ser totalmente ligada à ideologia da Igreja, não se deve ao fato de que haja uma ligação muito forte do povo com a Igreja, mas um motivo filosófico, pois o medieval sabe separar bem as coisas referentes à vida social da vida religiosa. Nesse caso, a Idade Média é diferente da Antigüidade, que considera “a tribo e família (...) não apenas como grupos sociais, mas como realidades e unidades religiosas”215
É interessante destacar que a transição do românico para o gótico não foi vista como revolução estética ou ruptura com o românico. Na época – séculos XII e XIII – o estilo gótico (chamado ogival ou francês) foi encarado como um modo de resolver certos problemas construtivos que o românico não lograra solucionar, como, por exemplo, erguer templos mais espaçosos e, sobretudo, mais iluminados (...) Na verdade, a transição do românico para o gótico foi uma revolução artística e exprimiu um primeiro momento de inovações sociais no interior do fechado e compacto mundo feudal 216.
A avaliação do papel ideológico e filosófico estabelece o nexo com o momento histórico. Estes pressupostos vêm mostrar como o românico funciona como representação visual de uma dominação, através do inteligível, enquanto o gótico identifica pelo sensível, o prenúncio do humanismo e valorização da natureza. Neste dois momentos – românico e 215
216
HAUSER, 1972, p. 258. LOPEZ, 1995, P. 15.
gótico - é visível a contribuição de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, respectivamente.
Iniciamos nossa leitura visual pela arquitetura, justamente porque esta, como já foi explicitado no decorrer da pesquisa, é considerada, pelos medievais, a arte maior. É imperativo que salientemos certos aspectos, que julgamos importante em nossas reflexões, por exemplo: em nossa pesquisa nos primeiros capítulos fica claro que a igreja, no sentido de construção, representa o divino, enquanto que a escultura e pintura mostram a condição humana. Este argumento é claro e compreensível, quando tratamos do românico, porém não se adapta totalmente para o gótico. Podemos explicar com mais clareza nossa afirmação. No período românico, a arquitetura volta-se mais à representação de Deus, justamente por apresentar um pensamento platônico, evidenciado no simbolismo-ideológico. O homem fica subjugado a um poder divino, através da representação escultórica e pictural totalmente presa à construção. O exemplo da fachada da Stº Trophime (ver figura 07). Por outro lado, no período gótico, que coincide com a divulgação dos textos aristotélicos, o homem assume uma ligação íntima com Deus e com a natureza. A catedral gótica, com sua magnificência e luminosidade, também representa o homem, que através da sua razão, luz interior, pode elevar-se. Deus e o homem comungam-se na luz, porque ela, representante de Deus, está também no homem. Desta maneira, tanto escultura, quanto pintura começam, vagarosamente, a separar-se das paredes, tetos e colunas das igrejas, para ocupar espaços independentes.
A igreja românica é homogênea e mais simples do que a bizantina e especialmente a carolíngia porque não é uma arte da corte. O período do românico, quando a classe média burguesa começa a surgir, dando origem ao capitalismo, o tema principal é o juízo final, até porque toda a humanidade estaria a julgamento, seria absolvida ou condenada217. Os tímpanos das igrejas são ornados em baixos-relevos com cenas do apocalipse. Com isto, a escultura é totalmente presa às paredes e colunas, e serve de propaganda da Igreja, já que ela é o único meio de sustentação da arte que resta. 217
HAUSER, 1972, p. 265.
Observamos que enquanto prevalece objetividade, ou seja, a subordinação do homem aos dogmas da religião católica, a estatuária também se conserva presa às paredes, portais e colunas das igrejas. No momento em que o homem inicia a conquista de sua individualidade, a partir dos textos de Aristóteles em São Tomás de Aquino, também a estatuária vai se desprendendo das construções e assumindo sua autonomia. É importante salientar que o gótico coincide com a escolástica. Os construtores, entre tantos Pedro de Montreuil, não estão estudando com os teólogos, mas certamente ouvem e conversam sobre o triunfo do aristotelismo. O espírito da escolástica está presente, tanto que em uma passagem do livro Estudos de iconografia medieval de Villard de Honnecourt, construtores realizam uma discussão com um conceito especialmente escolástico, a disputatio,com a intenção de resolver uma questão de
estrutura arquitetural218. Panofsky também faz
referência em seu livro Arquitetura Gótica e Escolástica: “trata-se da inscrição feita por um discípulo numa planta baixa existente no Livro da Corporação dos Mestres-Pedreiros (...) Villard e Pierre de Corbie inter se disputando”219. Além disso, por esta época, a França é considerada o centro da filosofia e da arquitetura. Os construtores não deixavam de visitar e conhecer as novidades empregadas nas catedrais góticas francesas, como a combinação de paredes mínimas com o máximo de vidro, para deleite do brilho do mundo terreno: o denominado movimento analógico. Além disto, a natureza é vista e representada por ela mesma.
Acreditava-se agora que a alma do homem, embora imortal, representasse também o princípio organizador e unificador do corpo mortal, não existindo independentemente dele. Uma planta florescia enquanto planta, não enquanto imagem da idéia de uma planta. Dominava a concepção de que a existência de Deus podia ser provada a partir de suas criações, não precisando ser postulada a priori220.
218
Ibidem, p.62. PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. Tradução Wolf Hörnke. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 115. 220 Ibidem, p. 05. 219
Este pensamento diverso daquele que predomina o período românico é responsável por uma forma mais criadora de construir, esculpir e pintar, até porque a própria arte é entendida como algo que pode suscitar o prazer estético. É importante que façamos interligações entre a arte predecessora, justamente para que possamos, através das leituras iconográficas realizadas, entender o processo de mudança e não de revolução artística.
A escultura na Idade Média desempenha um papel de subordinação à arquitetura, mais especificamente até meados do século XII. Enquanto a arquitetura representa o templo divino, bem como o próprio divino, a escultura figura como representação da condição humana. Segundo Gombrich, “foi na França que as igrejas românicas começaram a ser decoradas com esculturas, embora a palavra decorar também nesse caso seja um tanto enganosa”221. Entendemos que Gombrich refere-se ao fato de toda a arte tenha uma função precisa, ou seja, de expressar os ensinamentos da Igreja. Esta finalidade, no entanto, não ocorre em toda Europa, pois em Portugal, por exemplo, a igreja de Alcobaça, construída pela ordem cisterciense (contrária à decoração) é quase que totalmente desprovida de decoração, justamente para não suscitar deleite, o que seria pecaminoso. Decoração, portanto, não seria o termo correto para definir a presença de baixo-relevos nas igrejas românicas. Decorar possui o sentido de enfeitar, e no caso a que nos referimos, são esculturas que servem para um ensinamento relativo à Bíblia, já que a maioria dos fiéis é analfabeta.
A escultura gótica, diferentemente da românica, começa desprender-se das garras das paredes e colunas da construção, para galgar uma certa autonomia, própria do modelo filosófico que se esboça no século XIII. Um outro aspecto a ser observado é o fato de já surgirem figuras profanas, prenunciando as questões do humanismo renascentista. O artista quer “insuflar vida em suas figuras”222. Mesmo quando religiosas, as figuras expressam um olhar tenso e muitas vezes de sofrimento. As roupagens criam movimentos e as formas humanas se aproximam da aparência de carne e osso. Para melhor constituí-las, os artistas
221 222
GOMBRICH, 1972, p.128. Ibidem, 1972, p. 143.
medievais, a partir de meados do século XII, recorrem à observação, assim como fizeram os antigos greco-romanos, não como objetivo de mostrarem um corpo belo, mas contarem uma história sagrada mais convincente.
Isto também ocorre com a pintura, quando ela passa a ser feita também nas telas e não apenas em afrescos. A pintura na Idade Média, como a escultura, é subordinada à arquitetura. Ratificando nossos posicionamentos com relação ao tema, podemos dizer que escultura e pintura representam a condição humana, enquanto a arquitetura simboliza o poder religioso. Mesmo quando o medieval começa a dar os seus primeiros passos rumo a uma certa autonomia, os temas religiosos continuam, paralelamente aos primeiros temas profanos. A pintura, portanto, ainda aparece em forma de iluminuras, justamente para deixar evidente que existe espiritualidade tanto no período românico, quanto no gótico. O que muda de um momento e outro é que no românico a pintura é totalmente simbólica e no gótico já há indícios de um realismo-naturalista, prenunciando o humanismo.
A pintura demora mais do que a escultura para assumir as reais características do gótico. A realidade dada pela incidência da luz é mais fácil, através da escultura do que na pintura. A escultura, a exemplo de Ekkehard e Uta (ver figura nº 11), recebe luz natural e não necessita de um estudo intelectual e racional para trabalhar claro-escuro, o volume, e finalmente a profundidade. A Itália, por estar ligada à arte de Bizâncio, mais do que à arte da França, demora mais em assimilar o verdadeiro aspecto da pintura gótica. A Itália, contudo, voltada à arte clássica, é ela a responsável pela total transformação no trato da arte pictórica no final do século XIII. Este fato faz com que pintores com Cimabue, Duccio, Simoni Martini, Pietro Lorenzetti e Giotto, sejam os precursores da pintura renascentista, colocando a pintura como a primeira entre as artes maiores. Não podemos esquecer, entretanto, que estes pintores são visivelmente influenciados pelo trato mais humanizado dado às iluminuras, inclusive francesas, do século XIII.
Outro fato interessante que devemos considerar no românico, com relação à arte, é que a figura de Cristo, raríssimas vezes, é mostrada despida e caída na cruz, isto para não
melindrar as elites governantes, pois tais figuras colocariam em dúvida a submissão, por parte do povo, a uma autoridade que em vez de proteger traria sofrimento. Como a arte é financiada pela Igreja e pela aristocracia, é mais interessante que Cristo, como representação do povo, seja esculpido e pintado numa posição magistral, na sua ressurreição e/ou ascensão. O mesmo ocorreu com a figura da Virgem Maria que, no românico era representada como rainha dos céus e rodeada de anjos. Mais tarde, quando o gótico se firmara a partir da aceitação do prazer estético, via São Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, as representações tanto de Cristo, quanto da Virgem passaram a ser estátuas e quadros de sofrimento e dor, adquirindo aspectos humanizados.
Vários fatores contribuem para que entendamos que a transição do românico ao gótico não é uma ruptura total, mas uma mudança estética sob um pano de fundo ideológico e filosófico. Quanto à ideologia, fica claro que, na Idade Média, esta força é de fé, responsável pelo ponto de união européia. Quanto ao filosófico, torna-se evidente ainda uma influência de tradição antiga: no estilo românico, a representação artística é ligada ao aspecto da proporção e estética quantitativa; no estilo gótico, ela é atrelada ao atributo da claridade, uma estética também qualitativa, princípio de beleza tomista, mas anteriormente já assimilado pelo monge Suger em Sint-Denis.
CONCLUSÃO
Discorremos acerca de dois pensamentos filosóficos ligados à estética, especialmente no século XIII. A questão dual na Idade Média, manifestada pelo platonismo e o aristotelismo, fica evidente a partir da forma de o homem ver a realidade e conceber Deus, refletindo na maneira de sentir e agir, como indivíduo e como ser social. Sentimento e ação são refletidos na arte; por esse motivo optamos em discorrer, inclusive, sobre aspectos estéticos.
A filosofia traduz em idéias o pensamento e o espírito do homem pelas vias da reflexão, fazendo deles uma noção; a arte concebe o mesmo em imagens, resultando uma visão. A par dessas constatações, nosso encaminhamento de investigação buscou resposta à seguinte problematização: de que forma o aristotelismo contribui para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII? Questionamos a influência do aristotelismo na arte, porque a repercussão da doutrina aristotélica na Escolástica chega num segundo momento, isto é, após a arraigada infiltração do pensamento de Platão, desde Santo Agostinho, responsável pela cristianização do platonismo. Desta forma, entendemos que, entre a filosofia de Platão e a de Aristóteles, duas filosofias que dominam a Idade Média ocidental, o aristotelismo é a doutrina que marca e efetiva o caráter dual. Por este mesmo motivo, lançamos como hipótese à nossa pergunta que a entrada de textos de Aristóteles, via São Tomás de Aquino, tenha ocasionado a transformação de pensamento, já que a filosofia que impera, até meados do século XII, é a platônica.
Para podermos responder à indagação proposta é necessário que nos reportemos, inicialmente, a esclarecer o que é o aristotelismo no século XIII. Num segundo momento, antes mesmo de questionar sobre como ocorre a influência de Aristóteles na iconografia, é imprescindível averiguar se há, de fato, uma repercussão direta e incondicional do pensamento filosófico aristotélico na arte medieval, ou se outros fatores vêm contribuir para uma mudança na representação visual.
No decorrer de nossa investigação entendemos que o simples fato de chegarem textos de Aristóteles, traduzidos pelos árabes à escolástica, não justifica que evidências aristotélicas tenham necessariamente recaído sobre a iconografia, como decorrência de uma filosofia que passa a ser assimilada pelos medievais. O que é claro é que o teor filosófico dos textos, em termos de entendimento da realidade, de Deus, da forma inteligível e sensível, da arte como mimesis, de conceitos de beleza e de bem, estes sim, envolvidos por uma filosofia cristã, passam a ter uma participação efetiva na condução da arte do trecento. Não só estes fatores filosóficos são responsáveis pela nova direção da arte medieval. Certos elementos arquitetônicos, na construção das igrejas, são inventados para solucionar problemas de distribuição de peso, como é o caso de arcos ogivais e botantes nas catedrais góticas, superando antigas preocupações evidenciadas nas igrejas românicas, monumentais e pesadas. A par destas constatações, nossa hipótese de que os textos de Aristóteles, na Idade Média, são responsáveis pela influência do aristotelismo na iconografia gótica, não é de todo verdadeira, porém em parte. Acreditamos que estes textos tenham realmente contribuído para uma nova maneira de realizar a arte, mas apenas a entrada dos textos, via especialmente São Tomás de Aquino, não responde ao nosso problema: de que forma o aristotelismo contribuiu para a formação da dualidade filosófica medieval, evidenciada na iconografia do século XIII? A questão toda está centrada na forma como o aristotelismo penetrou na iconografia medieval. Tentando dar uma resposta de âmbito sintético, a contribuição de Aristóteles ao gótico é indireta, pois deixa marcas na iconografia, a partir de idéias imbuídas de cristandade.
No sentido de seguir uma filosofia, quase223 à risca, podemos dizer que o estilo românico está mais atrelado ao platonismo, do que o estilo gótico está ao aristotelismo. Defendemos esta idéia, porque a arte românica resulta de uma dedução, isto é, através de leis pré-estabelecidas antigas. Já, a arte gótica, vai se formando por indução, ou seja, vai se adaptando a uma nova forma de pensar e agir, mesmo que voltado, ainda, à religião cristã. Enquanto a iconografia românica explicita uma filosofia platônica, a filosofia aristotélica, em São Tomás de Aquino, por exemplo, auxilia na compreensão do estilo gótico, imbuído 223
O sentido do termo quase (à risca) é devido à posição do estilo românico, apesar de seguir o platonismo e/ou neoplatonismo, estar, inclusive, ligado à religião cristã.
de aristotelismo. Verificamos que são posicionamentos diferentes. Aspectos aristotélicos explicam e complementam ações artísticas, como, por exemplo, do monge Suger, idealizador da Saint-Denis, considerada a primeira igreja gótica.
Entre as constatações acerca do posicionamento de Aristóteles, com relação à arte, temos que esclarecer certos pontos importantes, no intuito de reconstruir uma estética aristotélica. Para o Filósofo, o belo e a arte não são tratados sob a mesma área de conhecimento. O belo é tratado no campo da metafísica, enquanto a arte é vista pelo lado psicológico, juntamente com as ações; estas são consideradas práticas e a arte, técnica. Este fato faz com que São Tomás de Aquino separe as artes plásticas da música e da poesia. Ele inclui o belo entre os transcendentais, portanto, sendo tratado num campo diverso do da arte.
Aristóteles segue Pitágoras, quanto à concepção da beleza pela proporção, uma visão quantitativa, sintetizada em: conformidade com as leis, simetria e determinação. São Tomás de Aquino caracteriza beleza como proporção, integridade e claridade. A característica da claridade, entendida como clareza, faz o diferencial do gótico, com relação ao românico. A arte românica, por ser simbólica deixa dúvidas com relação à claridade, pois os signos não são ícones, entendidos como representações verdadeiras de algo; são índices e símbolos divinos, ideais. Os significantes possuem significados arbitrários, caracterizando um realismo-ideológico. Exemplos são o carneiro, a pomba, o peixe, a âncora, que representam figuras religiosas. Por sua vez, o estilo gótico caracteriza-se pelo realismo-naturalista, evidenciando uma representação da natureza por ela mesma, como um cacho de uva representando ele mesmo. Neste sentido, a arte também assume, no gótico, os atributos de proporção, integridade e claridade.
O simbolismo, na Idade Média, adquire duas conotações adversas. Até meados do século XII, coincidindo com a arte românica, o símbolo, que é religioso, está no lugar da
forma ideal que não pode ser mostrada. O vidro utilizado no gótico, contudo, é um símbolo diferente, substancial, quando este é comparado à função da Virgem Maria; ambos emprestam o corpo para passagem de um ser divino entre os homens: a Virgem, escolhida para ser a mãe de Jesus, e o vidro, emprestando seu corpo para a entrada da luz, Deus, no recinto das catedrais. Isto significa que a arte gótica, especialmente a do vidro, também apresenta o simbolismo de uma forma peculiar, evidenciando uma influência aristotélica, isto é, o símbolo está na substância.
No século XIII, há uma avalanche de doutrinas que vêm de várias direções, inclusive do Oriente. Quem consegue realizar uma síntese de todas as idéias é São Tomás de Aquino. Também é um período de curiosidade científica em cima de conceitos tanto platônicos quanto aristotélicos, que suscitam estudos e pesquisas, os quais ficam para a posteridade. Um exemplo é a questão da dualidade da luz, como origem de tudo o que existe, e como elemento sensível, a partir dela resultando a cor e a possibilidade de vermos as formas visíveis. Neste sentido citamos Grosseteste, filósofo, teólogo e matemático, que desenvolve uma teoria óptica, baseada nos princípios da física, explicando fenômeno da luz, através da refração, antecipando estudos de Newton sobre luz e cor. Questões como esta, bem como a já referendada solução de distribuição de peso na arquitetura, fazem com que construtores como Villard de Honnecourt e Pedro de Montreuil, entre outros, passem a inserir os imensos vitrais multicoloridos, inicialmente nas catedrais góticas francesas, substituindo as paredes espessas das catedrais românicas.
Consideramos que, pelo lado teológico e filosófico, São Tomás de Aquino é um dos principais responsáveis pela infiltração do pensamento aristotélico na Idade Média, pois ele realiza uma síntese de doutrinas, após muitas inquietações acerca da aceitação de conceitos, consideradas convenções pelo platonismo. São Tomás de Aquino, entretanto prefere e assimila claramente as idéias de Aristóteles em detrimento das de Platão, dandolhe uma visão cristã, seguindo a linha vinda de São Boaventura e Carlos Magno.
No século XIII, a forma do sentir e do agir dos medievais é devida às novas concepções instituídas. O conceito de Deus, por exemplo, repercute na iconografia, no que tange à forma de representação. No platonismo, Deus é visto como o Bem e unidade suprema, elevando-se acima da unidade mesma, o Uno no neoplatonismo de Plotino; no aristotelismo, Deus é incluído nas categorias das substâncias; o surgimento de Deus, por meio do aristotelismo é indireto e mais especificamente pelo tomismo, sendo comparado ao nous, atribuindo-lhe entendimento e vontade. No período românico, Deus é simbolizado pela própria construção da igreja, monumental, fria, pesada, e quase sem luz interna, desprovida de muitos enfeites, representando um Deus distante, autoritário, inatingível, o Uno neoplatônico.
A concepção de forma, em Platão, é vista como conceito normativo, captado intuitivamente das coisas, a idéia, primeiro princípio das coisas; estas são imitação da idéia precedente, portanto, as coisas são meras cópias das idéias. A arte, como algo criado pelo homem, é considerada cópia da cópia. A caracterização do estilo românico é denominada realista-ideológica, pois representa ao mesmo tempo, a idéia, por meio de figuras reconhecíveis (como na escultura e na pintura) – realistas – mas imbuindo a iconografia de um simbolismo idealizado. Um exemplo é a própria simbologia da igreja, como já explicitamos. Outras evidências são as imagens do próprio Cristo em forma de um carneiro, e dos evangelistas em forma de animais alados: a águia como São João, o boi representando São Lucas, o leão fazendo às vezes de São Marcos e apenas São Mateus sendo visto como um anjo. Atributos como força e poder são evidenciados nas imagens santas, pois o poder divino não é mostrado, pela sua condição inatingível, então a arte encarrega-se da sua manifestação simbólica.
Na doutrina aristotélica, a idéia é captada da forma das coisas, unida à sua matéria; o corpo tem vida segundo a sua potência (dynamis); os conceitos estão realizados no objeto da percepção. A concepção da forma, em um momento e noutro, é absorvida pela arte. No período românico, a própria arte é vista como artesanato, como o é também no gótico, entretanto as representações artísticas até meados do século XII, são aceitas apenas como
simbolismo do divino, enquanto que, a partir daí e por todo o século XIII, os motivos iconográficos passam a ser valorizados por si mesmos. Neste sentido, a arte gótica é realista-naturalista, já que representa a natureza pelo seu próprio valor e menos no seu sentido simbólico ou alegórico. O pensamento aristotélico diverge do platônico, quando concebe a forma no objeto sensível, no visível, e Deus é inserido na substância, de modo que tudo o que existe é belo e bom porque vem de Deus, da luz. São Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, centra a questão na matéria pura. A forma visível, sendo bela e boa, pode ser desejável e suscitar prazer, resultando duas conotações: uma objetiva, ligada ao desejo e outra subjetiva atrelada ao prazer. Esta concepção é assimilada pelos arquitetos das catedrais góticas, que ao mesmo tempo estão preocupados em resolver problemas de distribuição de peso nas construções, não solucionados pelos arcos romanos. Desta forma, as paredes são substituídas por imensos vitrais multicoloridos, possibilitando a entrada da luz, de Deus, nos recintos sacros.
Embora a primeira igreja gótica seja Saint-Denis, o apogeu gótico ocorre, concomitantemente ao da escolástica, ou seja, por volta da passagem para o século XIII, quando os primeiros triunfos do estilo são celebrados em Chartres e de Sois Sons. O período clássico da escolástica e do gótico ocorre sob o reinado de São Luís (Luís IX, rei da França de 1226 e 1270). Simultaneamente, atuam neste período, sob a forma de pensamento, os filósofos Alexandre de Hales, Alberto Magno, Guilherme de Auvergue, São Boaventura, São Tomás de Aquino e Grosseteste, entre outros. Como mestreconstrutores citamos Pedro de Montreuil e Villard de Honecourt. Podemos resumir o gótico num período de mais ou menos cem anos, que vai de Saint-Denis de Suger até Saint-Denis de Pedro de Montreuil. Além dos aspectos aristotélicos evidenciados na visão da forma visível, observamos uma forte analogia entre a postura escolástica e a construção das igrejas; tanto a arquitetura, quanto a escolástica é encarada do ponto de vista da manifestação. Esta manifestação é retratada como forma de garantir a força probatória de uma summa, seguindo o processo da lógica (distinciones, quaestiones e articuli); na arquitetura, a funcionalidade das partes (arcobotantes, nervuras, pilares e caixilharia) também representam um processo racional. Não queremos garantir que realmente haja uma sintonia entre escolásticos e mestre-construtores; Panofsky não consegue argumentar
suficientemente em favor desta idéia, porém não podemos nos furtar de mencionar que, de uma forma ou de outra, tanto uns, quanto outros, utilizam processos de lógica idênticos. Citamos, então, para melhor compreensão, a inter se disputando entre Villard de Honecourt e Pedro de Corbie do Livro Estudos de iconografia medieval – o caderno de Villard de Honecourt, arquitetura do século, discutindo uma quaestio, e um terceiro que usa o termo disputare, conceito efetivamente escolástico.
Não só a funcionalidade basta, no entanto, o que caracteriza o gótico é o exagero de arabescos, enfeites e colorido que extrapolam o funcional: o brilho, o deleite, o admirável. Diferentemente de um autêntico humanista, o escolástico do século XIII, prima pela expressividade além da harmonia e proporção.
Evidências totalmente adversas em termos de tratamento iconográfico são as igrejas de Santo Ambrósio (fig. 01 e 02) e a Sainte-Chapelle (fig. 05 e 06), românica e gótica, respectivamente. A primeira representa recolhimento, um espaço interno isolado, um conjunto simbólico, contrição, opressão da alma para baixo, pelo tipo de construção mássica e compacta que realiza. A segunda demonstra a elevação do homem, ascensão da alma, encantamento, emoção, magia e espiritualidade, através dos vitrais, da verticalidade possibilitada pela utilização dos arcos ogivais e das torres altas.
A proporção, integridade e claridade (princípios de beleza no sentido tomista), complementam o conjunto arquitetônico. A claridade é um atributo de beleza para São Tomás de Aquino, entendida como clareza do objeto criado. Neste contexto, claridade no sentido de clareza é unido pelo sentido de luminosidade, o que é assimilado pelo monge Suger e que muito bem é representado pelos efeitos multicoloridos e luminosos dos vitrais. A inscrição gravada na porta de bronze dourado do portal oeste em Sint-Denis (hoje não mais existente), dá evidência da complementaridade da arte e da filosofia: a mente apática ascende à verdade através daquilo que é material. E, ao ver essa luz, remove de sua anterior submersão. Suger é o idealizador de um estilo que se vincula ao movimento analógico, a combinação de paredes mínimas e áreas máximas de vidro, tornando visível a sua idéia de
contemplação do brilho terreno, através de metais preciosos, objetos de joalheria, trabalho de esmalte e vidro colorido, como forma de conduzir o fiel cristão ao caminho da iluminação divina. O desejo do monge coincide com o de muitos construtores, empenhados em colocar as suas idéias em prática. Usa o vitral como meio dependente da luz, para efeitos decorativos e condutor de mensagens pictoricamente descritas. A primeira igreja gótica, a Saint-Denis em 1140, é idealizada por Suger, com fachada de três portais, que correspondem a três naves, visivelmente distinguidos por contrafortes, onde os portais laterais se prolongam para o alto em duas torres gêmeas. Neste sentido, Suger desempenha uma forte influência no início da arquitetura gótica, já intricada de um pensamento aristotélico, reforçada pelo tomismo.
A humanização dá seus primeiros indícios, quando as imagens, que a princípio são totalmente presas às paredes, demonstrando dependência ao poder, começam a se desprender, surgindo a escultura tridimensional e mostrando que o homem pode elevar-se a partir da luz que possui internamente. Este fato é percebido quando observamos vários tímpanos de portais de igrejas românicas, como o baixo-relevo da fachada da Igreja de Stº Trophime (fig. 07 e 08), comparado a esculturas trimensionais do período gótico, como as figuras de Ekehard e Uta (fig. 11). Na escultura da igreja românica, Cristo aparece numa mandorla, rodeado pelos quatro evangelistas, simbolicamente retratadas por imagens aladas, a exemplo do tímpano do portal da abadia da São Pedro ao Sul da França. A representação românica é de um Deus glorificado, correspondendo ao inteligível (Platão), ao Uno (Plotino). As figuras são estereotipadas, presas e atarracadas, simbolizando a supremacia do coletivo e não do individual: um realismo - idealista. Em contrapartida, na escultura gótica, Deus surge dentro do homem, do profano, da natureza, e com expressividade: um realismo - naturalista. No românico, características como proporção, eficiência, composição clássica e estaticidade, denotam uma finalidade didático-teocrática, passividade humana e força do poder divino. Neste contexto, o ser (de Platão) manifesta-se através da Idéia, representada na simbologia da iconografia. No gótico, características como tridimensionalidade, figuras reais e alongadas, imagens isoladas, muita luminosidade, beleza através do deleite, sugerem uma forte influência tomista-aristotélica por meio do sensível. Uma certa subjetividade, verticalidade, emoção, onde proporção, integridade e
claridade, que são atributos das formas visíveis, dão conta do pensamento de Aristóteles, assimilado por São Tomás de Aquino e seus seguidores.
A pintura, assim como a escultura, ambas subordinadas à arquitetura, totalmente religiosas e ligadas a cenas da Bíblia, passa a adquirir mais movimento e características humanas nas figuras (gestos, emoções, sentimentos), diferenciando-se do caráter estático e estereotipado do período anterior. A arte, a partir de meados do século XII é vista como algo belo em si mesmo e por este motivo, os enfeites fazem parte da decoração gótica, mais do que na românica. O belo é incluído entre os transcendentais e com ele é aceito o prazer estético. Já não é mais pecado o fiel deleitar-se diante do esplendor dos relicários, das esculturas e das pinturas, contrapondo-se à postura agostiniana, imbuída de platonismo. Para Santo Agostinho, o belo é concebido referente à idéia, à forma perfeita. Para o Bispo de Hipona, a verdadeira beleza é inerente à alma; defende que o belo é o divino e o que participa da alma é belo. Diferentemente, na concepção tomista-aristotélica, o belo está em tudo, porque tudo vem de Deus. Assim, as coisas criadas, como a arte, são belas porque são feitas da substância, que contém a luz da qual são feitas todas as coisas. A par de reflexões sobre a pintura e a filosofia medieval, retomemos as leituras realizadas sobre as imagens de iluminuras românica e gótica, Anunciação (fig. 12) e iluminura de um saltério manuscrito de Bonmont (fig. 13), respectivamente.
Quanto à passagem da pintura românica para a gótica, o que mais evidencia é o tratamento dado ao realismo, primeiramente ideológico e depois, naturalista. Paralelamente, podemos mencionar a questão da passividade observada no românico, por meio de figuras sem emoção, estereotipadas e estáticas, já no gótico, notamos expressividade nas feições e gestos, denotando que a condição humana passa a conquistar espaço em âmbitos individual e social. Mesmo a pintura tendo demorado em assumir características do gótico, mais do que a arquitetura e a escultura, ela apresenta certos indícios, de início, que a fazem distinta da pintura românica. Um exemplo é que, aos poucos ela também começa descer das paredes e tetos das igrejas, representando a condição humana; assim como a escultura, passa a ter um lugar definido, sendo realizada, também em telas. Outra evidência da
mudança na forma de pintar com característica gótica, influenciada pelo pensamento aristotélico, é o uso de figuras da fauna e flora nas iluminuras, valorizando a beleza da natureza, o sensível, já com forte influência de São Francisco de Assis, defensor da natureza.
O que evidencia a dualidade na Idade Média é a forma de ver e sentir a realidade e Deus, unindo filosofia, teologia e arte, através da concepção do mundo inteligível e do mundo sensível. A estética da luz, refletida através dos vitrais, a exemplo de Notre-Dame de la belle verièrre ( fig. 15), vitral do coro da catedral de Chartres, é a mostra visível de como o aristotelismo contribui para a formação da própria dualidade e como influencia a iconografia no século XIII. A arte dos vitrais, ao mesmo tempo em que torna sensível uma luz imaterial, também é conseqüência de uma busca de solução incessante dos construtores para aliviar o peso das paredes sem prejudicar a elevação das abóbadas das catedrais. Esta proeza é possível por meio dos arcos ogivais e em especial pela colocação externa de arcobotantes, os quais dão sustentação aos pilares que separam os imensos vitrais multicoloridos; estes vitrais mostram, através da luz filtrada, as cenas religiosas, dando a impressão de pinturas feitas com luz.
Em suma, a par do que propomos averiguar neste trabalho, a forma como o aristotelismo influenciou a arte foi indireta através de diversos pensadores, em especial, de São Tomás de Aquino, seus seguidores e Grosseteste. São Tomás de Aquino contribui através de uma filosofia cristã, imbuída de aristotelismo; Grosseteste participa por meio de uma postura científica, uma óptica do fenômeno da luz, por meio da física. Entendemos, entretanto, que a arte medieval, especialmente a gótica, não é um resultado apenas de repercussões da filosofia. Ambas - filosofia e arte - concomitantemente e de forma a se complementarem, passam a confiar mais na razão para resolverem seus problemas, evidenciando o aristotelismo na iconografia gótica e a dualidade medieval. Enquanto a Escolástica, através de filósofos e teólogos discutem e disputam idéias, também os mestreconstrutores fazem o mesmo para resolver questões de distribuição de peso e luminosidade nas igrejas.
De que forma o aristotelismo contribui para a formação da dualidade medieval, repercutindo na iconografia do século XIII? Esta pergunta norteia todo o nosso trabalho. Através de nossa investigação, concluímos que a forma de contribuição dada pelo aristotelismo na formação da dualidade na Idade Média e repercussão na iconografia ocorre de duas formas: pelo uso da razão, da logicidade, da cientificidade que passa a dominar os encaminhamentos filosóficos e artísticos do século XIII, iniciando em meados do século XII, através de textos de Aristóteles que entram na escolástica; outra forma é pelo modo de o homem ver a natureza e Deus. A idéia platônica e neoplatônica, onde o ideal é simbolizado na arte, integra-se à forma visível, valorizando a natureza por ela mesma, e Deus passa a ser visto na substância, através da luz, de onde tudo vêm. Neste sentido não há uma contraposição total e irrefutável com o platonismo, mas uma nova forma de ver, sentir e representar a realidade.
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GLOSSÁRIO
ABÓBADA – Teto arqueado de pedra ou alvenaria, construído de acordo com o princípio do arco: de arestas, de berço, de cruz, de leque, de nervuras e de rede (SHAVER-CRANDELL, 1982, p.116). ABÓBADA EM CRUZEIRO – Abóbada de nervuras, quadrada ou oblonga no plano, formada por dois arcos que se cruzam em diagonal, isto é, composta de quatro compartimentos separados, resultantes do cruzamento de dois arcos (Ibidem, p. 116). AGOSTINHO (SANTO) - Mas após a leitura daqueles livros dos platônicos e de ser levado por eles a buscar a verdade incorpórea, percebi que “as perfeições invisíveis são visíveis em suas obras” (Epístola de São Paulo aos Romanos, 1, 20). “Repelido em meu esforço, senti que as trevas de minha alma nada me permitiam contemplar: experimentei a certeza de sua existência e infinitude, sem contudo, estender-vos pelos espaços finitos e infinitos. Sabia que Vós éreis verdadeiramente Aquele que permanece imutável, sem Vos transformardes em outro, quer seja em parte a por meio de algum movimento, quer seja de qualquer outra forma. Sabia que todas as coisas se originam em Vós pelo único e certíssimo motivo de que existem. Sim, eu tinha a certeza disso. Porém era demasiado fraco para gozar de Vossa existência. (...) ora, se antes de tudo me tivesse instruído em Vossas Sagradas Escrituras, e, familiarizado com elas, sentisse a Vossa doçura, se me deparasse então com aqueles livros (dos platônicos), talvez eles me arrancassem do sólido fundamento da piedade. Ou se permitisse no sentimento salutar que dele tinha extraído, julgaria que alguém que aprendesse apenas por meio destes livros também poderia alcançar neles o mesmo sentimento espiritual. Lembrei-me assim avidamente à venerável escrita de Vosso espírito, preferindo, entre outros autores, o apóstolo Paulo. Com isso eliminaram-se as dificuldades que me pareciam surgir das contradições entre os textos de seus discursos e os testemunhos da Lei e dos Profetas” (AGOSTINHO. Confissões, cap., 20 e 21). ALBIGENSE.- Seita herética baseada em crenças cátaras. Teve seu início por volta de 1144, perto da cidade de Albi, no sul da França (LOYN, 1997, p. 13). ALEXANDRINO - Originário da Alexandria. AMBONE - Em italiano, nome antigo dado ao púlpito, lugar em que servia para o sacerdote levar a palavra sagrada aos seus fiéis no momento da pregação em um ritual religioso. ARCOBOTANTE – Arco aviajado, exterior ao edifício principal, que se levanta de um contraforte e vai encostar-se no clerestório, no ponto onde nasce a abóbada; tem por finalidade aliviar as paredes do peso das abóbadas, permitindo a abertura de grandes janelas e rosáceas (SHAVER-CRANDELL, 1988, p.116). ARCO – Uma superfície curva que recebe toda a carga na sua parte mais alta e a transmite à parte mais baixa, fazendo-a seguir a curva que ela própria descreve. Devido a esta sua função, ela pode ser constituída por pequenos elementos de pedra mutuamente equilibrados, cada um deles recebendo uma determinada pressão do que lhe está por cima e transmitindo-a ao que lhe fica por debaixo. Estas pressões da abóbada são descarregadas sobre apoios, os quais recebem uma pressão lateral que tende a empurrá-las para o exterior. Senso assim é evidente que uma abóbada não pode ser concebida isoladamente. É necessário pensar nela no interior de um organismo capaz de absorver as pressões que provoca. Assim, pois, o que determina o sistema é mesmo o mútuo, e férreo, jogo de pressões e contrapressões gerado para a forma da abóbada (Ibidem, p. 10). ARCO OGIVAL - Construção usada para cobrir vão ou abertura, composta de blocos de alvenaria em forma de cunha. No período gótico o arco foi denominado ogival por apresentar forma de ogiva. ARQUIVOLTA – Moldura na face de um arco, circundando o seu contorno; pode ser múltipla (SHAVERCRANDEL, 1982, p. 116). ARTE ROMÂNICA –Suas origens estão intimamente ligadas à Reforma da vida religiosa nos séculos X e XI, e não surpreende, portanto, que esta arte fosse predominantemente o resultado de patrocínios monásticos e, em alguns casos, obra de monges (Cf LOYN, 1997, p. 328). Também o nome está atrelado ao estilo romano, por apresentar semelhanças nas construções: peso, monumentalidade e frieza. Perdurou até meados do século XII na Europa, especialmente na Itália, Portugal e Espanha. ARTE GÓTICA -– Relativo a gótico, termo usado pela primeira vez por Vasari (1511-74), significando bárbaro (...) O gótico era essencialmente uma arte urbana, centrada nas grandes catedrais, apoiava-se não no mecenato monástico – como o caso da arte românica, mas nas cortes e nas guildas citadinas (Cf LOYN, 1997, p.169). ARTES LIBERAIS - constituíam-se no Trivium e o Quadrivium na educação básica da Idade Média, vindos desde a Antiguidade, através de Santo Agostinho e Boécio. O Trivium compunha-se de Gramática, Dialética e Retórica; o Quadrivium era formado de Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.
ARTES MECÂNICAS ou servis, na Idade Média, eram as artes manuais como pintura, arquitetura, arte do ferreiro e carpinteiro, medicina, etc. Eram consideradas como “ofício” e não havia distinção entre artesanato e as artes. ARISTOTÉLICO - Relativa ao pensamento de Aristóteles (384-322 a. C.), filósofo grego e aluno de Platão em Atenas. Sua investigação acerca da música, física, metafísica, matemática e astronomia, levou-o a escrever oito livros de política e dois tratados sobre a Ética, redescobertos na Idade Média, através de traduções muçulmanas. O homem como animal político e social do pensamento aristotélico entrou em conflito com o augustiniano. Coube a São Tomás de Aquino a tarefa de reconciliar as duas doutrinas no século XIII (LOYN, 1997, p. 26). BERGSONIANA - Doutrina de Henri Louis Bergson, filósofo francês (1859-1941), a qual sustenta que o mundo é constituído por um processo de continuada evolução criadora e não por forças outras de ordem mecânica, sendo o real produto de uma força vital, e objeto de intuição e não de análise conceitual. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. , Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 250.). CAPITALISMO – Ser ou não ser permitido falar de Sistema Capitalista na Idade Média, depende do significado que se der à palavra capitalismo. Se se entende por uma economia capitalista o afrouxar de laços das corporações, a libertação gradual da produção tanto das peias corporativas como da segurança que ela implicam, isto é, se capitalismo significa simplesmente dirigir e fazer negócios por conta própria, inspirado pelo espírito de competição, e tendo como razão o lucro – então deve certamente incluir-se a Idade Média na era capitalista. Mas se considerarmos tal definição como incorreta e definirmos o Sistema Capitalista como sendo, na essência, um tipo de organização que se caracteriza pela exploração do trabalho alheio, pelo controle do mercado de trabalho por aqueles que possuem os meios de produção, numa palavra, pela transformação do trabalho de simples forma de prestação de Serviços em pura mercadoria, então o início da era capitalista tem que situar-se nos séculos XIV e XV (HAUSER,1972, p. 343 e 344). CAPITEL – Componente superior de uma coluna; serve de transição entre o fuste e a carga que é suportada pela coluna (SHAVER-CRANDELL, 1982, p. 117). CARTUXOS - Pertencentes à Ordem monástica fundada em 1084 por São Bruno de Colônia no vale de La Chartrense (...) O modo cartuxo de vida proporcionava a oportunidade de viver como eremita no seio de uma comunidade religiosa (LOYN, 1997, p.76). CÁTAROS - Grupo de heréticos que desafiou seriamente os principais dogmas do Cristianismo ortodoxo. Suas crenças derivaram dos ensinamentos de um mestre religioso do séc. III na Mesopotâmia chamado Mani, que tentou conciliar o Cristianismo com antigas idéias persas e interpretou o mundo como um campo de batalha entre as duas poderosas forças do Bem e do Mal, a vida do espírito e a vida da carne (LOYN, 1997, p. 81). CHARTRENSE - Pertencente á Escola de Chartres, que era um centro cristão, mas que antes de sê-lo, já havia sido santuário céltico e, sob influência dos monges irlandeses, um santuário dedicado a Michael (LANZ, 1985, p. 140). CISTERCIENSE - Uma das novas ordens religiosas que cresceram no começo do século XII em resposta ao apelo por maior asceticismo. Fundada por Roberto, abade de Molesmes, o objetivo da ordem era seguir literalmente a São Bento (Ibid. p. 94) COISA ARTÍSTICA - objeto artístico. DIDASCÁLICA – Termo utilizado por Umberto Eco, referindo-se ao simbolismo. O cristianismo primitivo havia educado para a tradução simbólica dos princípios da fé; fizera-se por motivos prudenciais, escondendo, por exemplo, a figura do Salvador sob a aparência do peixe, para fugir, através da criptografia, aos riscos de perseguição; no entanto, apresentava uma possibilidade imaginativa e didascálica que devia resultar congenial ao homem medieval. DINTEL – Pedra colocada horizontalmente de um lado ao outro de uma porta ou de qualquer outra abertura, verga (SHAVER-CRANDELL, 1982, p.117). ESCOLÁSTICA - Inicialmente, no século XVI, o temo era usado de forma depreciativa, em relação ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais. Os escolásticos procuravam dar sustentação teórica à verdade da doutrina cristã, assim como reconciliar pontos de vista contraditórios na teologia cristã; e, para esse fim, desenvolveram um método extremamente requintado de investigação das questões filosóficas e teóricas.(...) no século XII, os escolásticos estavam coligindo Sentenças, que eram citações ou sumários de dogmas compilados da Bíblia e da literatura patrística. (...) Os escritos sobre lógica tiveram um importante efeito sobre a Escolástica; por volta de 1200, a “nova lógica” de Aristóteles,
baseada em traduções de seus “Analíticos, Tópicos e Refutações Silogísticas”, tinha produzido uma teologia científica em contraste com os escritos bíblicos do século XII. Tomás de Aquino, por exemplo, acreditava que só a razão era necessária para entender verdades básicas acerca de Deus e da alma, embora a revelação divina ampliasse tal conhecimento. (LOYN, 1997, p. 132-133.). ESTÓICO - Partidário do estoicismo. Doutrina dos filósofos gregos Zenão de Cicio (340-264) e seus seguidores Cleanto (séc.III. ªC.), Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto (?-125) e Marco Aurélio (121180), carcterizada sobretudo pela consideração do problema moral, constituindo a ataraxia [ quando a alma atinge o estado ideal de felicidade: a imperturbabilidade] o ideal do sábio ( FERREIRA, 1886, p .723). GÊNIO - O problema da natureza do gênio e de genialidade foi tratado em Filosofia especialmente no âmbito da estética e da filosofia da arte. O interesse pela questão do gênio foi despertado no século XVIII. Nos autores desse século, foi referido a Platão e Aristóteles. A teoria platônica do gênio expressa-se na doutrina de inspiração como loucura divina (Fedro, 244 A e ss.). A teoria aristotélica expressa-se na capacidade inventiva, mas necessariamente irracional ou “louca”, do criador artístico.(...) Alexander Gerard (1774 ) considera que o gênio é equivalente à originalidade; não é , portanto, a imitação, por mais talentosa que seja, de um modelo, mas a produção de um modelo. (...) Kant desenvolveu uma idéia semelhante: o gênio não é “a disposição mental inata (ingenium) mediante a qual a natureza dá regras à arte”.(...) A maior parte dos autores depois de Kant, baseou-se nele, de um modo ou de outro; foi o que ocorreu, por exemplo, com Schopenhauer. Mas Schopenhauer especificou a noção de gênio em relação com a sua própria metafísica; o gênio é, para ele (Welf., III, sup. Iiii), o que é capaz de ver a Idéia no fenômeno. (...) Na época atual, o problema do gênio continua sendo examinado em seu aspecto estético, quase sempre seguindo as pegadas de Gerard e Kant. Também é estudado no sentido psicológico, este último como “medida da inteligência”. (MORA, 2001, p. 214-215). GESTALT - A Gestalt é uma Escola de Psicologia Experimental. Considera-se que Von Ehrenfels, filósofo vienense de fins do século XIX, foi o precursor da psicologia da Gestalt. Mais tarde, por volta de 1910, teve seu início mais efetivo por meio de três nomes principais: Max Wertheimer (1880/1943), Wolfgang Kohler (1887/1967) e Kurt Koffka (1886/1941), da Universidade de Frankfurt.(...) A teoria da Gestalt... vêm opor-se ao subjetivismo, pois a psicologia da forma se apóia na fisiologia do sistema nervoso, quando procura explicar a relação sujeito-objeto no campo da percepção.(GOMES, 2000, p. 18). GNÓSTICO – Seguidor do gnosticismo. O gnóstico ama a seu Deus, em atenção a Ele mesmo, e sem o menor egoísmo (...) Para Clemente nem todo o cristão é um gnóstico, pois que a fé nem sempre atinge a perfeição (...) Como se vê, para Clemente, o gnóstico é um cristão perfeito (...) A sua vida é um verdadeiro sábio (BOEHNER e GILSON, 1970, p. 40 e 41). GROSSETESTE, Roberto - Nasceu em Suffolt, Inglaterra, entre 1168 e1175. Estudou em Lincoln e Oxford. Em 1235 foi nomeado Bispo de Lincoln e em 1253 passou a dedicar-se de temas religiosos, teológicos e pastorais, diferenciando-se da 1ª fase de sua vida, quando seus interesses eram científicos. A sua obra Óptica explica os princípios da visão e da luz, sob o teor da física (Ibidem, 1970, p. 363). HYLEMORFIRMO - Doutrina de Aristóteles, que faz do corpo um composto de matéria e de forma. HISTÓRIA DA ARTE - Nascida no século XVIII, graças especialmente à obra do arqueólogo Johann Joachim Winckelmann História da arte antiga (1763), dispõe de um método e de um objeto de acordo com seus desígnios: compreender as obras, as escolas e os estilos na época e no lugar em que aparecem. HONNECOUT, Villard – Natural de Honnecourt-sur-Escaut, perto de Cambrai. Honecort, ou ainda Ulardus, Willars ou Villard foi arquiteto no século XIII. O Caderno de Villard é um apanhado de escritos e desenhos, traduzido por Eduardo Carreira, onde constam projetos de arquitetura e desenhos referentes à arte da época: figuras de pessoas, animais, plantas e igrejas góticas. Neste caderno podemos observar mais de vinte projetos de arcos ogivais e vitrais, alguns podendo ser admirados em catedrais européias, especialmente em Réims e Chartres (Cf. HONNECOURT, 1997, p.19 et seq). ICONOGRAFIA GÓTICA – Relativo a gótico, termo usado pela primeira vez por Vasari (1511-74), significando bárbaro (...) O gótico era essencialmente uma arte urbana, centrada nas grandes catedrais, apoiava-se não no mecenato monástico – como o caso da arte românica, mas nas cortes e nas guildas citadinas (Cf. LOYN, 1997, p.169). IDEOLÓGICO – Referente à ideologia de um povo; rótulo que se coloca naquele conjunto de noções através das quais uma sociedade representa as suas relações, as suas convicções e as suas aspirações (LOPEZ, 1995, p. 15). ILUMINURA – Decoração com desenhos, em geral feitos em ouro, prata e cores brilhantes, particularmente das letras iniciais de um manuscrito (SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 118).
LAICIZAÇÃO ou SECULARZAÇÃO - tornar laico ou leigo; excluir o elemento religioso ou eclesiástico de (organização estatal, ensino, etc); ato ou efeito de secularizar. Fenômeno histórico dos últimos séculos, pelo qual as crenças e instituições religiosas se converteram em doutrinas filosóficas e instituições leigas. Tornar secular ou leigo (o que era eclesiástico) (FERREIRA, 1986, p.1004 e 1560). LITOGRAFIA – Gravura realizada a partir de uma matriz em pedra. MAINEL OU PARTE-LUZ - Pilar esculpido a meio vão da entrada [principal da igreja], que desse modo fica dividido em duas partes (duas luzes) (CONTI, 1984, p.320 (grifo nosso). MANDORLA – Uma oval em amêndoa que encerra a figura (tal como também se apresenta na pintura) (Ibidem, p. 40). MATRONEU – Em italiano, matroneu, nome que deriva de uma antiga tradição, segundo a qual as tribunas eram reservadas somente às mulheres que iam à igreja (Ibidem, p. 27). MÍSTICO - Filosofia espiritual que defende a fé como sua própria justificação e afirma a validade suprema da experiência íntima, tentando apreender a essência divina ou realidade última das coisas e, por conseguinte, consumar a comunhão com o altíssimo ( LOYN, 1997, p. 258). NATURALISMO – Relativo à arte que reflete a natureza, opondo-se ao simbolismo. A arte naturalista origina-se do período do Paleolítico, através de pinturas rupestres, feitas nas paredes das cavernas, representando animais, pessoas, etc. Mais tarde foi usada no último período da arte romana e novamente utilizada no gótico, quando as figuras passaram a representar a natureza por ela mesma e não mais como artifícios para simbolizar o inteligível, o divino, Deus. NEOPLATONISMO - Filosofia que surgiu no século III, principalmente entre os gregos de Alexandria (Plotino, Amélio, Porfírio). Do século V até 529, o seu desenvolvimento prosseguiu em Atenas (Proclo). Embora pagã, considerava o conhecimento e o materialismo insuficientes e introduziu a metafísica, colocando assim o platonismo mais próximo do Cristianismo. O neoplatonismo desenvolveu a hierarquia de formas de Platão, traduzindo o seu “Bem” por “Uno”, do qual emanou a primeira inteligência (‘Logos’, verbo, palavra), a qual contém as idéias imateriais (as formas platônicas) de todos os seres. O ‘Logos’ iniciou uma segunda inteligência (Alma do Mundo), da qual derivou a inteligência individual, descendo numa escala hierárquica de seres espirituais, como a alma humana por último. Quatro conceitos neoplatônicos influenciaram o pensamento cristão desde o começo: a hierarquia de seres espirituais; a natureza espiritual da realidade; o retorno da alma ao Uno através da contemplação; a bondade e a plenitude do ser.(...) O neoplatonismo baseava-se essencialmente na investigação filosófica, ao passo que o Cristianismo tinha que reconciliar a natureza com Deus. Santo Agostinho foi o primeiro a fundir conceitos neoplatônicos e cristãos.(...) Durante o século XIII, influenciou o tomismo (São Tomás de Aquino, Egídio Romano) e os dominicanos de Colônia (Alberto Magno, Hugo de Estrasburgo, Dietrich de Freiburg), encorajou o misticismo (Eckhart) e ajudou a ciência através de sua metafísica leve (Witelo) (LOYN, 1997, p. 271-272). ORDEM AGOSTINIANA - Foi denominada a Ordem religiosa criada na Idade Média, que obedecia a uma Regra baseada nos escritos monásticos de Santo Agostinho de Puna. Santo Agostinho (354-430), filósofo e teólogo, é considerado o responsável pela cristianização do platonismo, visto que até sua conversão ao cristianismo por Santo Ambrósio, vivera em sua juventude seguindo crenças neoplatônicas. Entre as obras de Santo Agostinho, citamos: as Confissões, onde relata a própria conversão, vários sermões sobre o Evangelho e A Cidade de Deus. Nesta última, considerou que todos os homens pertenciam a uma das duas cidades: a Cidade de Deus, composta por todos os fiéis, e a cidade dos descrentes. Foi o primeiro teólogo cristão a apresentar a doutrina da salvação do homem por graça divina (Ibidem, p. 8.). PALEOCRISTÃ - Arte cristã quem se desenvolveu até a divisão do Império romano do Ocidente e do Oriente pelo Imperador Teodósio em 395. Arte essencialmente simbólica e grotesca por ser realizada por pessoas comuns.Também chamada arte das catacumbas (PROENÇA, 1995, p. 47). PILASTRA – Coluna muito fina ou meia coluna adossada a uma parede ou pilar, atuando freqüentemente como suporte subsidiário para um telhado ou abóbada (SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 118). PINÁCULO - Pequeno torreão ornamental coberto por um telhado cônico ou piramidal muito íngreme. PLATONISMO – Referente a Platão (427-347 a. C) Reserva-se a Platão, o socrático por excelência, e a seus discípulos, (...) o nome de socráticos maiores. Platão, que pelo lado paterno era de raça real e pelo materno descendente de Sólon (...) esforça-se por reunir na poderosa unidade de um sistema original todos os pensamentos que os filósofos gregos, seus antecessores dispersaram. Com Platão a filosofia torna-se senhora de si mesma. (MARITAIN, 1963, p. 51). POVO - “Augusto Boal define como povo, todos os que alugam sua força de trabalho e, como população, a totalidade dos habitantes de um país” (BOAL, apud PAVIANI, 1996, p. 50). Paviani (Cf., p. 50) salienta
que há nesta conceituação um elemento ideológico que vem ao encontro daquilo de Gransci chama de estruturas ideológicas da sociedade. PREGNÂNCIA - Engloba todas as leis e princípios da Gestalt, as forças de organização da forma tendem a dirigir, tanto quanto o permitem, as condições dadas no sentido da clareza, na unidade de equilíbrio e da boa gestalt. RADIAL - Análogo a um raio, como uma rua que parte do centro para a periferia. As rosáceas realizadas nas fachadas das construções religiosas góticas imitavam um desenho radial, onde o ponto de partida das ramificações era o centro, como uma flor. REFRAÇÃO - Ato de refratar-se. Modificação da forma ou da direção de uma onda que, passando através de uma interface que separa dois meios, tem, em cada um deles, diferente velocidade de propagação (FERREIRA,1986, p.1472). REPOUSSÉ – Técnica utilizada em decorações em metal, onde a imagem é feita mediante um desenho que é batido por trás contra um molde oco. ROSÁCEA – Grande janela circular preenchida por rendilhado e por vitrais (SHAVER-CRANDELL, 1982, p. 119). ROMÂNICO – Termo usado pela primeira vez no século XIX para descrever um estilo derivado, segundo se acreditava, da arte românica (...) Suas origens estão intimamente ligadas à reforma da vida religiosa nos séculos X e XI, e não surpreende, portanto, que esta arte fosse predominantemente o resultado de patrocínios monásticos e, em alguns casos, obra de monges (Cf. LOYN, 1997, p. 328). SIMBÓLICOS– Está representando ou no lugar de algo, representação gráfica de algo ou idéia. SÃO FRANCISCO DE ASSIS – (c. 1181 – 1226) Filho de um abstrato comerciante de Assis, Francisco foi criado de modo a conhecer a diferença entre riqueza e pobreza e entre padrões da cavalaria e os do escritório comercial. (...) ...pregou que o mundo era criação de Deus e bom – convocou os pássaros e, no Cântico do Irmão Sol de seus últimos anos, toda a criação para juntar-se a ele nos louvores ao Criador. Quando pregou aos pássaros mostrou sua profunda simpatia pelos animais; também ensinou aos que estavam com ele, com o discernimento inspirado de um professor nato, a adorar a Deus através de sua criação. (Cf. LOYN, 1997, p. 157 e 158.) SUGER - (c. 1085-1151) Abade de Saint - Denis. Importante mecenas das artes, leal amigo e conselheiro de dois monarcas franceses, Luís VI e Luís VII... Suger começou reconstruindo Saint - Denis no final da década de 1130 e o resultado é tradicionalmente considerado um dos primeiros exemplos do estilo gótico na arte e na arquitetura. (LOYN, 1997, p. 339.). “A sala resplandece iluminada ao centro. Resplandece, de fato, o que egregiamente se une ao que ilumina, e o que uma luz nova inunda, brilha como nobre obra”. (SUGER, apud ECO, 1989, p. 64). TEORIA DA ARTE Quanto à Teoria da arte, se entendermos por isso a reflexão que certos artistas aplicam seja à sua própria prática, seja às artes de sua época, quer se trate da Poética de Aristóteles, do Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci ou da Arte Poética de Boillau, ela não poderia ser confundida pela Estética (JIMENEZ, 1999, p. 20). VITORINOS -Membros de uma Escola Teológica [sediada na abadia de São Vitor, nos arredores de Paris NT], que representava um importante aspecto do florescimento monástico do século XII (...) adotavam uma modificação da regra agostiniana (LOYN, 1997, p. 360). XILOGRAVURA – Gravura realizada a partir de uma matriz em madeira.