Cadernos Adufrj 3

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Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

A vida em segundo plano A lógica do capital impõe limites devastadores aos sistemas de proteção social no Brasil e no mundo

Portugal

ELNUR/SHUTTERSTOCK

Raquel Varela e Renato Guedes mostram como a crise afeta o dia a dia dos trabalhadores portugueses

90 dita: os a u r e a i Jo tr Orques a d s o RJ an a da UF c i n ô f n Si



Velhice A contrarreforma da Previdência Social pós-Constituição de 1988 reduziu a pó direitos dos trabalhadores. Foi inspirada nas receitas do Banco Mundial expressas no relatório Evitando a Crise da Velhice, de 1994, como informa, no artigo que publica nesta edição, o professor da UFRJ José Miguel Bendrao Saldanha. O Brasil alinhava-se, assim, ao cenário voraz do neoli-

JORGE MEJÍA PERALTA (CC BY 2.0)

beralismo no mundo.


ENTREVISTA ARTIGOS APRESENTAÇÃO

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AUTORES

2 NO FOCO

Raquel Varela e Renato Guedes

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Globalização amplia diferenças sociais

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Estado Social sob ataque em Portugal

Políticas sociais fazem bem à economia

18 ALMANAQUE

Uma publicação trimestral da Coordenação de Comunicação da Adufrj-SSind. Diretoria da Adufrj-SSind Presidente: Cláudio Rezende Ribeiro 1ª Vice-Presidente: Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues 2ª Vice-Presidente: Cleusa dos Santos 1º Secretário: José Henrique Sanglard 2º Secretário: Romildo Vieira do Bomfim 1º Tesoureiro: Luciano Rodrigues de Souza Coutinho 2ª Tesoureira: Regina Célia de Souza Pugliese Coordenador de Comunicação: Luiz Carlos Maranhão Editor Adjunto: Kelvin Melo Revisão: Roberto Azul Colaboraram: Aline Durães, Carlos Nogueira, Filipe Galvão e Silvana Sá Edição de Arte e Projeto Gráfico: Gil Castro Pesquisa de imagens: Douglas Pereira, Gil Castro e Kelvin Melo Assistente de Arte: Marvyn CastroTratamento de Imagens: Ramis Nascimento Fotos: Marco Fernandes e Samuel Tosta Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Diretoria. E-mails: adufrj@adufrj.org.br, secretaria@adufrj.org.br Redação: comunica@adufrj.org.br Cadernos Adufrj: revista@adufrj.org.br Diretoria: diretoria@adufrj.org.br Conselho de Representantes: conselho@adufrj.org.br Página eletrônica: www.adufrj.org.br Sede e Redação: Prédio do CT — bloco D — sala 200 Cidade Universitária CEP: 21949-900, Rio de Janeiro — RJ Caixa Postal 68531, CEP: 21941-972 Tel: 2230-2389, 3884-0701 e 2260-6368


77 MÚSICA • CINEMA • LIVRO • FOTOGRAFIA

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A “Ebserh” que ameaça o magistério federal MENTIRA!

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Constituição ferida

78 92 André Cardoso Regente da Orquestra Sinfônica da UFRJ

Trabalhadores, Uni-vos

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Sem Fronteiras

Doce sinfonia

ENTREVISTA

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Portfólio

O olhar crítico de Tendler

ARTE: GIL CASTRO

Mercantilização reforçada

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Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior


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Cleusa Santos Docente da ESS/UFRJ, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Seguridade Social, Organismos Internacionais e Serviço Social e pesquisadora do Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Atualmente, é diretora da Adufrj-SSind e coordena o Grupo (local) de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria – GTSS/A.

Denise Gentil Professora do Instituto de Economia da UFRJ, nas disciplinas de Macroeconomia e Economia do Setor Público. Atualmente, pesquisa na área de macroeconomia, com concentração em política fiscal, seguridade social e desenvolvimento econômico. Na contramão dos economistas liberais, Denise Gentil sempre defendeu que a Previdência ajuda a fortalecer o mercado interno no Brasil.

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ROGÉRIO ALVES

Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ. As políticas públicas são objeto de suas pesquisas, com destaque para as que se relacionam com a proteção social. Por conta disso, seus estudos se voltam para as questões de seguridade social, assistência social, políticas sociais e Serviço Social. O mestrado e doutorado foram cursados na própria ESS/UFRJ.

Fátima Siliansky de Andreazzi Docente da UFRJ, atuando na graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Economia da Saúde, atuando nos seguintes temas: seguros privados de saúde, financiamento, economia política e saúde, privatização e controle social. Foi diretora da Adufrj-SSind na gestão encerrada em 2013.

KELVIN MELO

Alejandra Pastorini Corleto

José Miguel Bendrao Saldanha Professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Há anos o professor estuda assuntos ligados ao drama da seguridade social no país. O resultado de suas reflexões é propagado por meio de entrevistas e palestras, contribuindo para o debate sobre tema tão controverso. É membro do Grupo de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria da Adufrj-SSind.

SILVANA SÁ

ELISA MONTEIRO

SILVANA SÁ

MARCO FERNANDES

AUTORES

Maria Lucia Werneck Vianna Professora associada aposentada da UFRJ. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Estado e Governo, atuando principalmente nos temas da seguridade social, política social, previdência social, planos de saúde e democracia. Foi decana do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE).


Proteção social em x(ch)eque

O

debate sobre as políticas de proteção social ganha atenção especial nesta edição dos Cadernos Adufrj. A revista convidou autores estudiosos do assunto para oferecer aos leitores um rico painel de análises sobre o tema, presente no dia a dia das tensões entre classes no Brasil e no mundo. O resultado foi promissor: a leitura dos artigos leva a informações essenciais que não são encontradas na pauta da grande mídia. A amplitude dos cenários analisados é outro ponto do conteúdo a ser destacado. A agressividade do processo de acumulação capitalista e as tendências daí resultantes são identificadas globalmente – como a crescente mercantilização de bens públicos, expõe o texto inicial da série de artigos. É a mesma lógica (transformar bens públicos em serviços) que surge com o fortalecimento das Organizações

Sociais/OSs operando nas áreas da Saúde e da Educação, destaca outro artigo. A entrevista, que abre a edição, com os autores do livro Quem paga o Estado Social em Portugal?, mostra o efeito devastador da crise financeira nos direitos dos trabalhadores portugueses. De volta ao Brasil, um texto desmonta a tese catastrofista do “rombo da Previdência”, expondo o viés ideológico e político no ambiente das tensões e desafios do debate sobre a seguridade social. Outro artigo de avaliação macroeconômica defende a tese – na contramão da ortodoxia – do gasto público com políticas sociais como instrumento de política econômica dentro da perspectiva do crescimento. As mudanças estratégicas da política de assistência social no Brasil são objeto de análise de outra contribuição. Este texto tem o valor particular de marcar a diferença entre as formas tradicionais de ajuda (tipo caridade, filantropia) da assistência como direito – e como o Estado se relaciona com essas mudanças. A história recente da Previdência Social no país, após a Constituição de 1988, é traçada pelo artigo que fecha a série de textos da edição nº 3 dos Cadernos Adufrj. O autor combina informação com análise e é leitura indispensável para um juízo crítico sobre as opções políticas tomadas pelos governos na nossa história recente. Saudações Sindicais, Diretoria da Adufrj-SSind

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Especial para Cadernos Adufrj

Na pråtica, uma massa gigante de trabalhadores permanece seis meses do ano desempregada e os outros seis meses em situação de subemprego Raquel Varela


FOTOS: MARCO FERNANDES/ARTE: GIL CASTRO

Criou-se (nas universidades) uma taxa simbólica para a Educação e, um belo dia, o valor cobrado aumentou significativamente, levando 15% dos estudantes a abandonarem imediatamente seus cursos Renato Guedes


MARCO FERNANDES

Estado Social sob ataque em Portugal

D

esencadeada nos Estados Unidos, a crise financeira de 2008 rompeu os limites do continente americano e provocou cataclismos violentos em diversas economias pelo mundo. Portugal foi um dos países da zona do euro mais afetados. O déficit orçamentário somado à escassez de crédito forçou o governo português a recorrer a empréstimos de organismos internacionais e a idealizar um plano de austeridade que atingiu, em especial, os trabalhadores. São eles que estão pagando o preço da crise. Com a terceira maior taxa de desemprego da Europa, Portugal amarga, hoje, a marca de 1,5 milhão de desempregados, dos quais mais de 40% são jovens. Estima-se que, apesar

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dos programas assistencialistas de transferência de renda, 18% da população portuguesa viva em situação de pobreza, o que representa quase dois milhões de pessoas que mal têm dinhei-

ro para se alimentar ao longo do mês. A política de massacre do proletariado português envolve também duros golpes no Estado de Bem-estar Social. A ideia


MARCO FERNANDES

Os professores Raquel Varela e Renato Guedes, autores do livro Quem paga o Estado Social em Portugal?, revelam como a crise financeira devasta os direitos dos trabalhadores portugueses

de que parte do salário dos trabalhadores, em vez de ser paga diretamente a eles, é revertida em benefícios sociais, como Educação, Saúde, Cultura e Segurança Social, está ameaça-

da pela faceta mais mordaz do Neoliberalismo. Conquista direta das lutas dos trabalhadores durante a Revolução de 1974, o Estado Social foi, pouco a pouco, desmantelado pelo governo sob

a desculpa de que contribuiria para o crescimento da dívida pública portuguesa. A justificativa falaciosa vem sendo desmentida por pesquisadores e ativistas. Entre eles está Raquel Varela, coordenadora do Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais da Universidade Nova de Lisboa que tem ganhado notoriedade por suas posições contrárias às estratégias de precarização do trabalho empreendidas pelo governo português. Acompanhada de Renato Guedes, pesquisador da Universidade de Lisboa e seu parceiro no livro Quem paga o Estado Social em Portugal? (Editora Bertrand, 2012), Raquel esteve no Brasil e conversou com os Cadernos Adufrj. Na entrevista, os inte-

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LUIS NUNES/DIÁRIO LIBERDADE

lectuais confirmam a autossustentabilidade do Estado Social português, associam a regressão dos direitos trabalhistas ao desejo burguês de recuperação de lucros e analisam a desagregação da classe proletária frente às medidas aviltantes do Estado português. Leitura obrigatória para quem quer entender melhor a situação real de um país historicamente tão próximo ao Brasil, mas curiosamente ignorado por nossos meios de comunicação de massa. Confira: Cadernos: Os direitos sociais dos trabalhadores portugueses vinham sendo respeitados até a crise dos anos 1980, quando sofreram o primeiro grande golpe. Em 2008, o processo se agravou. Pode nos falar sobre a precarização/descapitalização da seguridade social? Raquel Varela: O Estado Social nasce em Portugal pela Revolução dos Cravos, de 1974. Antes disso, a proteção social era exclusiva para algumas áreas de difícil reprodução da força de trabalho, como médicos, por exemplo, e para setores mantenedores da Ditadura, como o funcionalismo público. O Estado Social é criado em 1975, e a burguesia só o aceita para impedir que os trabalhadores tomem o poder. Ele é um dos pilares da tentativa burguesa de estabilização social. É neste ano que, pela primeira vez, Portugal reconhece o direito ao trabalho. Esse reconhecimento tem três vertentes diferentes: em primeiro lugar, aquela que institui o direito ao trabalho

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OUTUBRO DE 2012.

Marcha contra o desemprego, em Portugal

como direito à vida. Ou seja, se no Capitalismo a única forma de sobrevivência é pelo trabalho, então todas as pessoas devem ter direito a ele; a segunda vertente defende o direito à não demissão. Nesse período, são aprovadas duas importantes leis que impedem o desligamento dos trabalhadores sem justa causa e que elevam o valor das indenizações a serem pagas pelas empresas em

caso de demissão; e, por último, temos o seguro-desemprego e a proteção social que garantem rendimento ao trabalhador no caso de os dois primeiros princípios falharem. Na crise de 1981-1984, o seguro-desemprego passa a ser aplicado de forma extensiva em Portugal. O país deixa de ter uma situação de pleno emprego e começa a lidar com grandes


As ondas de protestos na Europa são, em parte, reflexo de um descontentamento dos trabalhadores em relação às políticas de austeridade, mas a capacidade de mobilização e desmobilização imediata desses atos vem da burguesia, que, da mesma maneira que põe os trabalhadores nas ruas, retira-os Raquel Varela

demissões, atrasos em salários etc. Nesse momento, na minha opinião, o benefício passa a ser usado para facilitar a criação de um exército industrial de reserva sem causar rupturas sociais. Já o Estado Social começa a ser furtado nos anos 1990, quando são criadas as taxas moderadoras da Saúde e da Educação. A destruição da segurança social portuguesa, no entanto, vem mesmo

com a crise de 2008, muito em função da incapacidade de o proletariado vencer a crise anterior, de 81-84. Renato Guedes: As taxas de Saúde, inicialmente a valores irrisórios, foram criadas com a justificativa de que, em especial a população idosa, superlotava os hospitais quando, na verdade, deveria se encaminhar a centros de saúde especializa-

dos. A cobrança era, então, uma forma de persuadir as pessoas que não estavam precisando de atendimento em hospitais a procurar os centros. Mas isso abriu caminho para o governo, após 2008, aumentar as taxas cobradas para valores significativos, o que desencoraja os cidadãos a procurar o sistema público de Saúde. O mesmo aconteceu nas universidades: criou-se uma taxa

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simbólica para a Educação e, um belo dia, o valor cobrado aumentou significativamente, levando 15% dos estudantes a abandonarem imediatamente seus cursos. Cadernos: Vocês compararam quanto os trabalhadores entregam ao Estado em contribuições e impostos diretos e indiretos e quanto recebem em serviços públicos relacionados à saúde, educação, segurança social, transportes e cultura. Como foi feito esse estudo? Renato Guedes: Nesse estudo, que está no livro Quem paga o Estado Social em Portugal?, utilizamos a metodologia proposta pelo economista norte-americano de origem paquistanesa, Anwar Shaikh. Pegamos os dados de 1995 a 2010 e contabilizamos quanto os trabalhadores pagam em impostos diretos, indiretos e segurança social e quanto eles recebem desse Estado. Fomos bem conservadores e assumimos que todos os recursos pagos pelos assalariados à segurança social são revertidos para os próprios trabalhadores, o que está longe de ser verdade. Não levamos em consideração as taxas de Educação e Saúde. Também ignoramos em nosso cálculo as verbas sociais que o governo usa na chamada política ativa de emprego, por meio da qual a empresa contrata um empregado e o Estado garante parte do salário desse trabalhador, subsidiando claramente os capitalistas e não os proletários. Ainda assim, conseguimos provar que não há déficit; o Estado Social é autossustentável.

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Cadernos: Se não há défi-

PARA RAQUEL VARELA,

o Estado não só tem política de criar emprego como tem política de criar desemprego. A última opção leva o povo às ruas

cit na seguridade social, qual seria então a principal causa dos desequilíbrios orçamentários, estagnação econômica e crescimento da dívida pública portuguesa? Raquel Varela: A causa é a crescente alocação de capitais públicos no setor privado, estimulada pelo Neoliberalismo, sobretudo a partir da década de 1980. Essa alocação se dá de múltiplas maneiras, mas nem todas elas estão totalmente estudadas. Pesquisas parciais apontam, por exemplo, que Portugal tem 23 vezes mais parcerias público-privadas do que qualquer outro país da Europa. Mais de um bilhão de euros é investido todos os anos nessas parcerias, o que corresponde a quase 20% do Serviço Nacional de Saúde.

Há ainda outras causas possíveis, como as isenções fiscais, subsídios às empresas e a reconversão da força do trabalho, por meio da qual o Estado promoveu a aposentadoria precoce de trabalhadores de 45 a 50 anos de idade e os substituiu por trabalhadores precários, aumentando a dependência de uma parcela significativa da população aos programas assistencialistas estatais. Cadernos: É dessa reconversão da força de trabalho que a senhora fala quando afirma que o desemprego não é inevitável, mas sim uma política consciente dos governos europeus, em especial o de Portugal? Raquel Varela: O Estado não só não tem política de criar emprego como tem política de criar desemprego. Essa é minha crítica às análises marxistas:

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elas dizem que o Neoliberalismo acentua a desregulamentação estatal; não acho que haja uma desregulamentação estatal, mas pelo contrário, há uma forte regulamentação que promove o desemprego e a flexibilidade. Quando o Estado aprova o estágio profissional, mas não regulamenta a remuneração desse estágio, ele, de fato, está estimulando o emprego não remunerado. Quando o Estado fixa cota de trabalhadores fixos por escola, ele está dizendo nas entrelinhas que as demais vagas deverão ser preenchidas por trabalhadores precários. Há uma multiplicidade de políticas estatais que obrigam o trabalhador a revezar entre o desemprego e o trabalho precário. Quando falamos de precariedade e desemprego, estamos falando das mesmas pessoas, pois elas se alternam entre os dois estágios. Na prática, uma massa gigante de trabalhadores permanece seis meses do ano desempregada e os outros seis meses em situação de subemprego. As pessoas falam dos desempregados como se eles estivessem fora da força de trabalho, e não é. Quando o governo promove a precariedade, promove também o desemprego e vice-versa. Renato Guedes: Irônico perceber que as mudanças são anunciadas como melhorias, quando, empiricamente, observamos que não são. Desde a crise de 2008, o governo português anuncia o aumento da produtividade do trabalho como uma vitória. Mas esse indicador é

Hoje, Portugal tem cinco milhões de pessoas na ativa; cerca de 3,5 milhões delas são desempregados ou trabalhadores precários. E os sindicatos não organizam essas classes. Eles são entidades profundamente ligadas a partidos que têm como estratégia a defesa do regime democrático representativo burguês. Raquel Varela

acompanhado da queda do produto e por uma queda ainda maior do nível de emprego. Fica fácil concluir então que o trabalho só é mais produtivo hoje porque há menos pessoas empregadas produzindo menos produtos. Cadernos: O discurso contrário ao Estado de Bem-estar Social é amplamente endossado pela grande mídia e empresariado europeu. Que interesses estão por trás dele? Raquel Varela: A burguesia está vivendo a sua maior crise desde 1929. Portugal teve uma brutal destruição de capital. As empresas estão indo à falência, os grandes capitais se evaporando. A saída foi mexer no fator trabalho para recuperar

as taxas de lucro. Mas o custo unitário do trabalho não baixa de jeito nenhum. E isso tem a ver com a economia mundial do Capitalismo e não apenas com o governo português. Este até que tem sido muito competente em suas tentativas de arrasar os trabalhadores. Temos a maior taxa de desemprego da história: são 26% de desempregados. Cadernos: Esse processo foi acompanhado de concentração de renda em Portugal? Raquel Varela: Oitocentas e setenta famílias possuem uma fortuna equivalente a 45% do Produto Interno Bruto português. E, desde que a crise começou, há mais milionários e eles ganham mais.

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Desde a crise de 2008, o governo português anuncia o aumento da produtividade do trabalho como uma vitória. Mas esse indicador é acompanhado da queda do produto e por uma queda ainda maior do nível de emprego. Fica fácil concluir então que o trabalho só é mais produtivo hoje porque há menos pessoas empregadas produzindo menos produtos. Renato Guedes

Renato Guedes: Há uma luta desesperada da burguesia para conservar o valor da propriedade. Cadernos: Qual a posição dos sindicatos e movimentos sociais nesse processo de diminuição de direitos? Raquel Varela: Na minha opinião, os sindicatos atuam como ratos à frente de um leão, utilizando exatamente os mesmos métodos dos anos 1980 sem lembrar que estão diante de um quadro social diferente. Estavam habituados a convocar uma greve para correção do quadro salarial, mas, há pouco tempo, fizeram cinco greves gerais e, mesmo assim, o governo anunciou novas medidas de auste-

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ridade. Não adianta continuar a fazer o mesmo e querer um resultado diferente. Hoje, Portugal tem cinco milhões de pessoas na ativa; cerca de 3,5 milhões delas são desempregados ou trabalhadores precários. E os sindicatos não organizam essas classes. Eles são entidades profundamente ligadas a partidos que têm como estratégia a defesa do regime democrático representativo burguês. Querem resolver as crises política e econômica dentro do regime democrático e, portanto, fogem do enfrentamento. Lutam não por aumentos de salário, mas para frear os cortes salariais. No fundo, os sindicatos sabem que, quando

houver uma luta política séria, o próprio regime capitalista estará em jogo. Os portugueses não têm uma ligação com o regime democrático representativo. Eles têm uma relação com seus direitos sociais que, erradamente, associam ao regime democrático representativo. Cadernos: Na sua opinião, a perda progressiva de direitos trabalhistas tem origem nos próprios trabalhadores que, em especial a partir da década de 70, não se mobilizaram em uma resistência estratégica ao Capitalismo? Raquel Varela: Sim. Os portugueses foram derrotados em novembro de 1975, pois, depois da Revolução, não conseguiram criar um poder unificado em nível nacional capaz de derrotar o Estado. A ideia de que os trabalhadores teriam direitos e os patrões continuariam a ter lucros mostrou-se inviável. Não sou eu que estou falando. Basta olhar em volta. Não dá para os empregos e os lucros aumentarem ao mesmo tempo. Se um aumenta, diminui o outro. A quimera do pacto social ruiu. Cadernos: A senhora já afirmou que a ideia de uma classe trabalhadora, organizada, que luta por seus direitos está desaparecendo. Mas isso não contrasta com as manifestações que varreram a Europa nos últimos anos? Raquel Varela: Os cientistas sociais cometeram o erro de enxergar os trabalhadores por trás de todas as manifestações. Colocaram todos os atos no mes-


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A POPULAÇÃO

está revoltada com as políticas definidas pela Troika (leia-se Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI)

mo saco. Eu estudei esses movimentos em detalhe e acho que, numa primeira reação à crise, houve sim participação do proletariado. Mas há também outros tipos de manifestação: as orquestradas pela burguesia, as convocadas pelos sindicatos com o objetivo de realizar novas eleições etc. As ondas de protestos na Europa são, em parte, reflexo de um descontentamento dos trabalhadores em relação às políticas de austeridade, mas a capacidade de mobilização e desmobilização imediata desses atos vem da burguesia, que, da mesma maneira que põe os trabalhadores nas ruas, retira-os. O calcanhar de Aquiles da classe trabalhadora é a sua desorganização. A força necessária para forjar esses tipos de manifestação somente a burguesia com seus meios de comunicação, os sin-

dicatos associados a partidos políticos têm. Não há outra força organizativa capaz de mobilizar tanta gente. Cadernos: Com o agravamento da crise, pode haver uma ruptura? Raquel Varela: Acho que sim. A estabilidade social está presa por fios muito finos. O que a segura é a estrutura familiar. No seio da família, quem tem um salário alto garante a renda dos outros integrantes, já que estes se revezam entre o desemprego e o subemprego. Há uma nova onda de emigração, e os programas assistencialistas, historicamente muito fortes, também estão sendo diminuídos. Sou muito crítica a esses programas, aliás: três milhões de portugueses dependem hoje mensalmente de políticas assistencialistas estatais que, a rigor, não fazem parte do Estado

Social. O Bem-estar Social é universal, para todos. Já as políticas assistencialistas são direcionadas para gerir o desemprego e a precariedade do trabalho. Cadernos: A senhora já se mostrou a favor de Portugal romper seus acordos, não pagar a dívida e de o povo se autogovernar. A única solução de todo esse caos seria mesmo um processo revolucionário? Raquel Varela: Não há qualquer solução sem uma situação revolucionária. Não sei se ela é o caminho natural. Não descarto a barbárie. Tenho confiança que sociedades escolarizadas e organizadas como Portugal consigam encontrar um caminho que beneficie a classe trabalhadora, mas não desconsidero a possibilidade de um futuro como o da Ucrânia, país onde a classe trabalhadora está completamente perdida e a ser dizimada.

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ALMANAQUE

Hamurabi, Charles Dic ▼▼ CARLOS NOGUEIRA*

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o âmbito da Organização Internacional do Trabalho, a proteção social está vinculada ao conceito de risco social – situações que afetam a plenitude das faculdades físicas e mentais de uma pessoa e diminuem seus recursos econômicos.

O

O

processo capitalista de produção teve na Revolução Industrial o seu mais lúgubre período. Jornadas de 14 a 16 horas em lugares insalubres, mão de obra infantil e nenhuma fiscalização. Na literatura, Oliver Twist, de Charles Dickens está inserido nesse contexto

* Pesquisador graduado em Letras (UFRJ), mestre em Memória Social (UniRio)

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Código de Hamurabi (Rei da Babilônia, séc. XVIII a.C) foi o precursor dos sistemas legais que regem a maioria das sociedades. Foi no direito da época de Hamurabi que foi criada a técnica dos contratos, inclusive os contratos sociais. Um monólito de rocha com escrita cuneiforme, o Código de Hamurabi está no Museu do Louvre, Paris.


kens, Vargas, OIT... N

a fase da colonização, predominava no Brasil a ajuda entre as famílias, uma forma de sociabilidade primária entre as gerações, reforçada pelos laços afetivos, a caridade cristã e a filantropia para os pobres e doentes. Nestas modalidades, a mulher sempre teve um papel social de destaque reforçando a imagem da cuidadora por excelência.

A

N

o Brasil, o conceito de seguridade social adotado com a Constituição de 1988 é operacionalizado pelas três políticas: previdência, saúde e assistência social, embora a universalidade inerente a esse conceito apresente limites, pois apenas a saúde está inscrita como direito do cidadão e dever do Estado.

Carta del Lavoro, sistema corporativo da Itália fascista de Mussolini inspirou o sistema político trabalhista de outros países. No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, da ditadura Vargas, baseou-se na Carta del Lavoro.

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SHUTTERSTOCK

ARTIGO


Globalização do capital amplia diferenças sociais O cenário brasileiro atual apresenta grandes desafios, mas também oportunidades para a organização política dos trabalhadores


A VALORIZAÇÃO DO CAPITAL NA NOVA ORDEM MUNDIAL ‑

POPICINIO (CC BY-NC-ND 2.0)

ARTIGO

a proteção social entre a superação da pobreza ou a maximização dos lucros

MILHARES

▼▼ CLEUSA SANTOS*

N * Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ

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as últimas décadas, o processo de acumulação capitalista e de exploração da força de trabalho tem evidenciado a liberdade de circulação do capital, exponenciando sua concentração e centralização. Por isso, as abordagens da liberdade de circulação do trabalho têm apresentado grandes desafios para os trabalhadores, uma vez que a acumulação do capital tem migrado para outras esferas da vida social. A despeito dos limites dos acordos internacionais e de suas condicionalidades para os direitos sociais e trabalhistas e até mesmo os civis (criminalização das lutas sociais), a liberdade de movimento empresarial tem sido preservada. Sua

de jovens protestam em Madri, na Espanha, contra as políticas de austeridade

lógica, sabe-se, é de subordinação do trabalhador aos seus padrões de cidadania e democracia. Sem dúvida que esse quadro se renova a cada época. Quanto mais ele revela aos críticos sociais que o planeta transformou-se numa esfera única de investimento, produção, realização e acumulação do capital, mais ele nos ajuda a desvelar os limites da liberdade individual e da propriedade privada dos meios de produção, pois que o trabalho assalariado não possui as mesmas condições de movimento do capital. É neste contexto que alcança visibilidade a tendência do comércio mundial em transformar bens públicos garantidos pelo Estado como direi-


tos sociais em serviços sociais privados, particularmente aqueles que são constitutivos do sistema de proteção social, como educação, saúde e previdência. Para se ter uma ideia, no início da primeira década do século XXI a desproteção social no Brasil atingia 40,6 milhões de trabalhadores, e quase uma década depois atinge aproximadamente 50% da força de trabalho. Já os dados do recente relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a proteção social no mundo em 2014-20151 continuam sendo estarrecedores. Os resultados da pesquisa revelam que desde 2008 o número de trabalhadores desempregados cresceu em 30,6 milhões, e 899

milhões ganham menos de US$ 2,00 por dia. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), dos 7 bilhões de habitantes no mundo, dois terços vivem com até US$ 8,00 por dia; um bilhão, com até US$ 1,00; e outro bilhão, com até US$ 2,00. Diante desse quadro, resta-nos indagar: como o setor de serviços (ele não é o único) contribui para a valorização do capital? Por que os serviços de saúde e previdência social foram privatizados? Para responder a essas questões, é importante ter em conta que os serviços não são apenas fontes de lucro, mas também fontes de acumulação e reprodução do capital. Isso quer dizer

que a valorização da mais-valia extraída do trabalho vivo está relacionada aos meios de mercantilização dos serviços públicos estatais, metamorfoseados nas privatizações, fusões e aquisições. Evidentemente que a imperialização tem um papel central nessas alterações, a qual não pretendemos esgotar nestas páginas. Tratase de um pressuposto que norteará as reflexões aqui desenvolvidas.

Do outro lado da trincheira, a liberdade é azul? A estabilidade econômica e política do capitalismo, alcançada após Bretton Woods (a paridade ouro-dólar), entra em declínio nos anos 1970,

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ARTIGO dando lugar a uma onda recessiva e a um ciclo de crises que impuseram grandes quedas nas taxas de lucro do capital. Causadas, sobretudo, pelo desenvolvimento tecnológico e pela reestruturação produtiva, tais crises resultaram numa restauração planetária do domínio do capital, denominada de mundialização. Também denominado de globalização, este processo de internacionalização do capital, consolidado nos anos 1980 e 1990, provocou mudanças substantivas no capitalismo monopolista expressas tanto no processo destrutivo das forças produtivas quanto na predominância da financeirização, assim como nos indicadores sociais, intensificando o processo de acumulação, concentração e centralização do capital. De fato, a flexibilização da produção, pela qual o capital internacional transfere sua produção para países de mão de obra barata, de poucas restrições ambientais e com incentivos fiscais alentadores, resulta na perda de postos de trabalho nos países centrais, reduz o nível geral dos salários,

Para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%.

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afetando também o trabalhador imigrante cada vez mais internacionalizado. Já a desregulamentação e a abertura dos mercados para investimentos de toda a sorte liberalizaram as relações comerciais e o capital financeiro; criaram políticas destinadas a quebrar o eixo organizacional dos trabalhadores; precarizaram as relações trabalhistas, assegurando a ampliação da liberdade do capital. Sua expansão resultou na concentração de 40% das riquezas do planeta nas mãos de 1% da população mundial. Portanto, além de alterar o padrão de desenvolvimento das forças produtivas, a globalização também vai alterar o padrão de intervenção do Estado e, consequentemente, de suas funções. Na verdade, a função econômica do Estado está associada às suas funções políticas. Ambas garantem a legitimidade da produção, reprodução e valorização do capital. Sobre a crise de 2008, divulgava-se que as lucrativas relações comerciais das corporações transnacionais aumentaram 48% em relação a 2008. Isso explica por que a crise financeira foi vista pelo ex-chefe de gabinete da Casa Branca, Rahm Emanuel, como um meio para introduzir “mudanças e para decidir sacrifícios que seriam inaceitáveis num contexto diferente”. O Global Wealth Report, do Cre-

dit Suisse, divulgou em 2012 que capitalistas individuais controlam 38,5% da riqueza mundial e que seus bens cresceram 29% em apenas um ano. Dessa forma, o Estado irá centralizar o poder político e controlar os mercados através de suas funções econômicas diretas e indiretas. Não por acaso alguns analistas concluíram que ele se transforma em instrumento da oligarquia financeira e seus monopólios em detrimento dos interesses gerais dos trabalhadores. Igualmente importantes são os indi-

1%

DETÉM

POPULAÇÃO MAIS RICA DA HUMANIDAE

2/3

LAÇÃO MAISS POPULAÇÃO DA HUMANID


cadores da desigualdade social apresentados no Relatório do Credit Suisse de 2014, no qual se verifica que a maioria da riqueza mundial é detida por pouco mais de 8% da população global. “São estes que estão no topo da pirâmide, ao deterem riqueza acima de US$ 100 mil. Desta forma, 8,6% dos habitantes globais detêm 85,3% da riqueza em todo o mundo, o que equivale a US$ 224,5 bilhões”.

50%

3

POB POBRE DAE

Revela também que no topo do topo estão os indivíduos que detêm mais de um milhão de dólares, são 35 milhões de pessoas no total (0,7% da população mundial). São 32 milhões de pessoas que se apropriaram de 41% da riqueza do planeta (patrimônio acumulado, não renda), enquanto 68,7%, 3,2 bilhões de pessoas com patrimônio inferior a US$ 10 mil, têm apenas 3%. Dowbor chama atenção para a ordem de grandeza desses números: “para ficar na memória, 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%. Não há como equilibrar politicamente o planeta com esta situação, e muito menos quando está

se agravando. Cifras muito mais impressionantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente”. No que diz respeito ao Brasil, não são de menor importância os investimentos diretos estrangeiros (IDE), que a partir de 1998 aumentaram significativamente. Como se sabe, desde 1995 o governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu a abertura comercial, reduziu as restrições de atuação setorial e renegociou a dívida externa. Promoveu o processo de privatizações, fusões e aquisições, estimulando o aumento de IEDs no país, que foram transferidos para o setor de serviços. Tais investimentos vão dotar os serviços públicos, particularmente os privatizados (como o setor de energia elétrica e de telecomunicações, por exemplo), ampliando o mercado para as empresas multinacionais, contribuindo para as exportações e criando novas formas de geração de riqueza.

PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

DETÊM

3%

PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

Não há como equilibrar politicamente o planeta com esta situação, e muito menos quando está se agravando. Cifras muito mais impressionantes ainda se referem aos super-ricos, os 0,1 e 0,01% da população mundial, onde esta concentração cresce exponencialmente Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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Serviços de saúde e previdência: direitos sociais ou negócios do capital? É dentro desse contexto que a liberalização do comércio e a desregulamentação do mercado de trabalho jogaram um papel decisivo para consolidar a formação social do sistema capitalista brasileiro que se completou com a conformação dos oligopólios. É nesse momento que se encontra a predomínio do trabalho assalariado e da propriedade privada dos meios de produção que deságua em oligopólios, partícipes das relações econômicas típicas da fase imperialista do capital. Coerente com a lógica oligopólica, muitos serviços são transformados em mercadorias e entram na esfera industrial, como é caso dos serviços constitutivos da Seguridade Social (saúde e previdência, por exemplo). Trata-se, portanto, do desmonte do sistema de proteção social previsto na Constituição. As empresas de planos e seguros de saúde e a indústria farmacêutica foram contempladas com a política econômica em curso. Conforme os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no Brasil, o mercado privado de planos e seguros de saúde aumentou na última década, fazendo saltar o número de beneficiários de 32 milhões (em dezembro de 2003) para 49 milhões (em dezembro de 2013) e 50,3 milhões em 2014. A elevada concorrência monopolista entre as empresas de planos e seguro contribuiu para acelerar o processo de concentração e centralização do capital no setor de saúde. É significativo que o número de 1.814 empresas em 2003 tenha caído para 1.274 em 2013 e para 922 operadoras em 2014. A receita bruta dessas opera-

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MÍDIA NINJA (CC BY-SA)

ARTIGO

EM MARÇO DE 2014, A REVOLTA DOS GARIS.

A paralisação de oito dias gerou importantes ganhos para a categoria


doras alcançou o valor de 108 bilhões. O apoio do Governo Federal, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da Caixa Econômica Federal (CEF) e do Finep – Inovação e Pesquisa à lógica financeira do capital também está presente nos aportes de recursos tanto aos setores farmacoquímicos e de medicamentos quanto nas garantias ao mercado de compra desses suprimentos. Estudos mostram que até setembro de 2009 bilhões de reais foram destinados ao financiamento de quase uma centena de projetos de empresas farmacêuticas, de equipamentos de saúde, agroquímicas e veterinárias. Destaca-se o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde (Profarma), que contou, a partir de 2004, com financiamento de R$ 5 bilhões. Apoios financeiros às empresas Biolab Sanus, Biosintética, Aché, Nortec Química, JP Indústria Farmacêutica e Neo Química, além

A generalização da pobreza registrada no grande índice de desigualdade social, ao reproduzir a superexploração do trabalho assalariado, possibilita também aos trabalhadores retomarem a ofensiva

de serem desoneradas das exigências de garantias em reais para operações até US$ 2 milhões para exportações, refletem a parceria entre o público e o privado no Brasil. Em outras palavras, o Estado, para garantir o acréscimo dos lucros, tem como função controlar os mercados através de suas funções econômicas diretas e indiretas. Além disso, Fundações de Apoio, Cooperativas e ONGs juntamente com as Organizações Sociais (OSs), OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), fundações, parcerias público-privadas (PPPs), entre outras que compõem o conjunto de empresas de “responsabilidade social” – o denominado terceiro setor –, estão substituindo os serviços públicos estatais. Ainda no âmbito das políticas de Seguridade Social, vale lembrar que a previdência social entra como um importante elemento de formação de poupança, uma vez que, sob a gestão estatal, ela “potencializaria obras, o crescimento da economia, e o crescimento da economia possibilitaria que os trabalhadores tivessem reformas”. Assim, sob algumas condições centrais – mas não exclusivas – combinadas, possibilitaram a existência do Estado social, que, simultânea e contraditoriamente, tem possibilitado enormes taxas de lucro aos capitais e alguns direitos sociais aos trabalhadores. Com uma redução relativa entre 2011 (12,5%) e 2012 (7,25%), a taxa básica de juros volta a subir em 2013 (para 10,75%), alcançando 11,15% em 2014. O Brasil continua no topo da pirâmide, mantendo os maiores juros oficiais pagos no mundo. Mantémse, portanto, a grandeza das taxas de lucro e a volumosa transferência de

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ARTIGO mais-valia para o setor bancário. Além disso, a privatização “indireta” da previdência é consolidada quando o governo aprova a criação dos Fundos de Previdência dos Servidores Públicos (FUNPRESP). Um novo campo de negócios para o capital financeiro (bancos e os fundos de pensão) é assegurado. Como se vê, o capitalismo monopolista incorporou as demandas do capital financeiro para além da exploração do trabalho e da produção de mercadorias dotadas de valor de uso: a concentração da riqueza não se limita mais ao social. Ela se expande para novos espaços, independente da expansão da produção e do emprego, e cria uma nova forma de sociabilidade, garantindo a reprodução contínua do trabalho como valor de troca; trabalho assalariado, precário, potencializador do aumento da mais-valia e das formas de aperfeiçoamento do fetiche da mercadoria e dos processos de estranhamento/alienação dentro da ordem social do capitalismo. Provas dessa movimentação do capital monopolista no Brasil são os indicadores disponíveis no Relatório de Comércio e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) de 2014. Vê-se ali que os países em desenvolvimento e as economias em transição investiram, em conjunto, US$ 553 bilhões ou seja, 39% dos investimentos globais de IDE, em comparação com apenas 12% no início dos anos 2000, sugerindo que o crescimento do setor de serviços atraiu para o Brasil 80% do IDE, que atingiu um estoque de US$ 65,9 milhões, isto é, 64% do total de IDE. Já nos períodos de 2012 e 2013, os indicadores do relatório registram

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que, apesar da retração na economia mundial em 2012, o Investimento Direto Estrangeiro (IDE) mundial voltou a crescer. Ademais, o relatório projeta fluxos de IDE de US$ 1,6 trilhão até o fim de 2014; US$ 1,7 trilhão em 2015 e US$ 1,8 trilhão em 2016, principalmente nos países mais desenvolvidos. Economias em desenvolvimento agora constituem metade dos 20 países mais bem classificados por fluxos de IDE. Como consequência, houve um dramático aumento das operações de fusão & aquisição (F&A) no estrangeiro, em detrimento do investimento de raiz (greenfield investment), revelando a grande movimentação dos monopólios. Os indicadores até aqui apontados sugerem que ambos os tipos de

inversões colaboram para a crescente concentração mundial do capital. As 100 maiores empresas não financeiras possuíam ativos de aproximadamente US$ 12 bilhões ou quase 1/5 do PIB mundial (19,2%), com cerca de 15,5 milhões de empregados. Seus negócios alcançaram o volume de US$ 9,7 bilhões. Destas empresas, 72 eram sediadas nos países do G7 e 21 nos Estados Unidos. Depreende-se destes dados o grau de concentração e centralização do capital intensificado pelas finanças. Um traço revelador dessa ofensiva do capital monopolista é o processo de valorização do capital resultante da massa de valores excedentes. Dentre eles, o setor de serviços se constituiu numa das formas de valorização do capital que, conforme vimos, irrompeu com uma força assombrosa, espalhando-se para além das fronteiras. Se regressarmos ao final do século XX, veremos que no Brasil, As últimas décadas do século XX, impulsionadas pelo desenvolvimento da computação e telecomunicações, foram responsáveis por outro fenômeno inédito na história da humanidade: O crescimento do comércio internacional de serviços que em 1999 atingiu a cifra de US$ 1,34

O setor de serviços se constituiu numa das formas de valorização do capital que irrompeu com uma força assombrosa

trilhão - cerca de 25% do comércio total de bens. O potencial de crescimento é nítido quando comparamos essa cifra de 25% ao setor de serviços domésticos de cada país. Em países desenvolvidos, este setor representa cerca de 70% do PIB, enquanto que em países em desenvolvimento de alta renda (como o caso do Brasil) chega a 60%.

De fato, ao serem estimulados pelas privatizações das empresas estatais, os IDEs migraram para este novo espaço de acumulação do capital. Afinal, tal como indicou Mandel (1982),


o predomínio do capital constante em detrimento do capital variável (força de trabalho) resulta na tendência, ora em curso, de reduzir trabalho vivo e de criar/realizar a mais-valia. Estas, por sua vez, acabam por movimentar a necessidade de intervenção do Estado. Assim, se por um lado as duas últimas décadas do século XX registraram uma diminuição do número de greves no país, por outro o crescimento em 2012 (quando comparado às 446 greves em 2010 e as 554 em 2011) revela uma retomada da paralisação do trabalho como “arma para enfrentar os baixos salários, a perda de direitos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho, geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho” (Badaró, 2014). O DIEESE, órgão de assessoria e estudos ligado ao movimento sindical, por sua vez, registrou um crescimento de 58% nas greves no ano de 2012. Atendo-se aos diversos fatores que explicam o declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores, Badaró (2014) apresenta um balanço sobre os diversos fatores que contribuíram para esse declínio. Dentre eles destacamos: o desemprego e a precarização das relações de trabalho; o progressivo apassivamento da maioria da direção sindical mais combativa (reunida em torno da Central Única dos Trabalhadores – CUT) e a incorporação de dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, acompanhada da transformação da CUT em braço sindical dos governos petistas e de sua definitiva incorporação à estrutura sindical oficial. O cenário brasileiro atual apresenta grandes desafios, mas também oportunidades para a organização políti-

ca dos trabalhadores. Afinal, conforme vimos acima, do ponto de vista do capitalismo mundial, a eclosão da crise de 2008 ampliou as formas de acumulação do capital. Sobre isso, Comparato (2013), referindo-se às mudanças operadas no sistema de produção industrial, derivadas da especulação e financeirização do sistema, observou que “a parte correspondente aos rendimentos de capital na formação do produto mundial não cessa de aumentar, enquanto a dos rendimentos do trabalho, assalariado ou autônomo, continua a decrescer”. Por outro lado, é possível vislumbrar que a generalização da pobreza registrada no grande índice de desigualdade social sinalizado anteriormente, ao reproduzir a superexplo-

O fortalecimento das formas de lutas coletivas das frentes de esquerda brasileira – somado ainda àquelas outras forças políticas contrárias ao poder do capital – poderá consolidar as transformações sociais necessárias ao país e que foram iniciadas em 1988 com a Nova Constituição Federal.

ração do trabalho assalariado, possibilita também aos trabalhadores retomarem a ofensiva, como assinalou Badaró. De fato, apontamos algumas contribuições de críticos sociais que reconhecem a existência desse ascenso das lutas de classes. Talvez por isso algumas análises inspiradas na tradição marxista chamem a atenção para dois aspectos que considero nucleares: a ausência de articulação de um projeto de sociedade alternativo ao capital e a exigência de superação de nosso déficit organizacional. Entretanto, isso exige o máximo conhecimento possível da realidade social quanto à centralidade da organização política orientada por uma teoria revolucionária. Entendo que o fortalecimento das formas de lutas coletivas das frentes de esquerda brasileira – somado ainda àquelas outras forças políticas contrárias ao poder do capital – poderá consolidar as transformações sociais necessárias ao país e que foram iniciadas em 1988 com a Nova Constituição Federal. Inserem-se nesse campo de forças, além das duas maiores formas históricas de organização (os partidos e os sindicatos), as associações, os movimentos sociais, populares e os movimentos de luta pela terra (MST) e por moradia MTST. Sobre a tarefa de construção de uma frente de esquerda no Brasil, podemos dizer que ela tem mobilizado diferentes forças políticas, que, após as Jornadas de Junho de 2013, se posicionaram contrárias aos desfechos punitivos e criminalizatórios que a onda de manifestações e protestos gerou nas franjas da classe conservadora brasileira. Desde então, observamos o aprofundamento de uma tendência em curso no Brasil que tem bloqueado

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ARTIGO sistematicamente as instâncias democráticas e fortalecido os interesses de grupos e frações da classe dominante. Após as eleições de 2014, inúmeros estudiosos, analistas e articulistas apontaram para algumas manifestações desta tendência e chamaram a atenção para os repasses de recursos públicos ilimitados para o agronegócio, priorizando as lideranças latifundiárias em detrimento dos pequenos agricultores familiares e da reforma agrária; apontam para o crescimento do número de parlamentares representantes de segmentos religiosos que reivindicam o cristianismo em oposição ao Estado, constitucionalmente laico, assim como para as facilidades concedidas aos canais de televisão das igrejas; constatam o número expressivo de delegados e policiais (re) conduzidos no pleito recente, com foco no discurso da violência e da insegurança. O exame deste quadro, minimamente esboçado, confirma que essa situação resulta na forte regressão da racionalidade moderna, tal como defendiam os iluministas do século XVIII. Ou seja, a racionalidade como “um princípio inerente à realidade” conforme demonstrou Horkheimer. Aliás, nesta perspectiva, o sentido de mediação atribuído à racionalidade confere especial saliência aos desafios decorrentes dos antagonismos que levam à luta de classes. Além dessa argumentação, é preciso assinalar para a necessidade vital que a classe trabalhadora tem de se associar e de lutar por direitos. Nesse sentido, é bom frisar que aqueles que lutam por uma transformação revolucionária tem se contraposto ao significado que alguns setores atribuem à organização política. Ou seja, através da

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narrativa pós-moderna, esses setores não apenas rejeitam os valores iluministas, mas, sobretudo, justificam o poder que o capital tem sobre as ações transformadoras, convidandonos a valorizar os mecanismos de alienação, fragmentação e conformismo.

Desafios e perspectivas de luta Por não partilhamos dessa perspectiva ideológica e mistificadora que elimina as dimensões de exploração e acumulação do capital, procuramos reunir aqui um conjunto de elementos, dados e reflexões que ajudam a desnudar a objetividade contraditória desta fase histórica do capitalismo.

O uso da força policial pelo Estado tem sido uma das formas de controle social contra a combatividade dos setores mais organizados ao criminalizar os movimentos de massa, reduzir os espaços de resistência, além de cooptar e ressignificar as bandeiras de lutas contra a lógica do capital.

Dentre os quais destacamos algumas das suas principais expressões: a circulação da força de trabalho, a precarização das relações trabalhistas, o desenvolvimento incessante de novas tecnologias e, consequentemente, a reestruturação produtiva e a flexibilização do trabalho, a hegemonia do capital financeiro, a desregulamentação e a abertura dos mercados. Daí, apontarmos para a concentração de 40% das riquezas do planeta que está nas mãos de 1% da população mundial: 1% dos mais ricos detém a metade do patrimônio da humanidade, enquanto os dois terços mais pobres detêm 3%. Abordamos a mercantilização dos serviços públicos, particularmente a saúde e a previdência, um dos elos entre a força de trabalho e a valorização do capital. Para concluir nossa exposição, gostaria de chamar a atenção para as lutas dos trabalhadores. Assim, sem desconsiderar o caráter econômicocorporativo das greves, entendo como legítimas as reivindicações dos sindicatos por saúde e educação, assim como a luta dos movimentos sociais contra os gastos com os grandes eventos esportivos, que trouxeram remoções de populações com extrema violência policial. Elas demonstraram o mérito das demandas encaminhadas ao governo, assegurando a responsabilidade do Estado com as políticas sociais na garantia dos seus direitos. Também revelaram que o uso da força policial pelo Estado tem sido uma das formas de controle social contra a combatividade dos setores mais organizados ao criminalizar os movimentos de massa, reduzir os espaços de resistência, além de cooptar e ressignificar as bandeiras de lutas contra a lógica do capital.


Ora, sabemos que a insegurança gerada por estas práticas trouxe várias consequências para a organização dos trabalhadores, com destaque para o medo, a paralisia e a submissão à lógica instituída. Além disso, ela resultou em posições autoritárias, acríticas e conservadoras desta ordem social. São muitos os desafios para os trabalhadores, mas muitas também são as estratégias de enfrentamento, que exigem que os trabalhadores tornem-se sujeitos de sua própria história, visando sua participação e fortalecimento das lutas coletivas, assim como dos instrumentos políticos revolucionários (entre os quais o partido e o sindicato), tendo em vista recuperar o caráter internacional da luta proletária. A disputa da hegemonia dos trabalhadores requer formulações teóricas e políticas a partir da perspectiva crítica e revolucionária.

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Nota 1 Manchete da matéria do jornal Brasil de Fato, publicada em junho/ 2014 (on-line), destaca que em 2012, na Europa, havia mais 800 mil crianças vivendo na pobreza do que em 2008.

SAMUEL TOSTA

POPULAÇÃO

reage à privatização da saúde, em estágio acelerado nesta fase do capitalismo

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ARTIGO

Políticas sociais bem à economia Diferentemente do que acreditam alguns, os investimentos públicos em Seguridade Social geram muitos ganhos para o país. Mas as debilidades estruturais do atual padrão de crescimento da economia limitam e ameaçam esses resultados


SHUTTERSTOCK

fazem


ARTIGO

PROTEÇÃO SOCIAL: Avaliação macroecômica crítica ao modelo de crescimento recente (2004/2013) ▼▼ DENISE LOBATO GENTIL*

O * Professora do Instituto de Economia da UFRJ.

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gasto público com políticas sociais conquistou um lugar de honra entre os instrumentos de política econômica, depois de muitos anos sendo considerado uma arma esquecida. Esse posto das políticas sociais foi alcançado no período posterior a 2004, quando um novo padrão de crescimento econômico passou a determinar o dinamismo da economia nacional, e ganhou proeminência com os constrangimentos impostos pelo aprofundamento da crise econômica mundial que afeta o país desde 2008. O estudo do impacto das políticas sociais como elemento estratégico do crescimento da economia brasilei-

ra pode criar várias conexões. A primeira, entre gasto autônomo na área social e nível de atividade econômica, é decisiva. O gasto com a seguridade social tornou-se impulsionador da demanda agregada ao ativar diretamente o consumo das famílias. A elevada magnitude desse gasto e o seu direcionamento na forma de renda monetária para uma população de idosos carentes, pensionistas, enfermos, acidentados do trabalho, famílias de baixa renda e desempregados, transforma-se, imediatamente, na aquisição de medicamentos, alimentos, vestuário e outros bens de primeira necessidade. O governo gasta e induz gastos privados, transformando a proteção


GLAUBER CAVALCANTE (CC BY-NC-SA 2.0)

social no mais importante componente da demanda agregada a influenciar o ritmo da expansão econômica nos últimos dez anos, por intermédio da criação de um mercado interno de consumo de massa. As despesas do governo com benefícios sociais são não apenas benéficas para a redução da pobreza e da desigualdade social, mas também favoráveis à formação de capital. O suposto “fardo” dos gastos sociais é, na verdade, um esquema favorável ao capital. A razão mais importante para isso é que o capital não é uma entidade autossuficiente que existe independente do consumo. O investimento na ampliação da capacidade produtiva só acontecerá diante

do fortalecimento do consumo, quando esta pressão é considerada um fenômeno permanente. A segunda conexão importante, portanto, se estabelece entre gasto social e ampliação do investimento privado como reação ao consumo. Simultaneamente, também ocorre a expansão da infraestrutura (capacidade instalada) nas áreas de saúde pública, educação e assistência social. O Estado intervém encomendando do setor privado a construção de prédios, a compra de equipamento e de insumos de trabalho e contratando, diretamente, a mão de obra para operar nesses setores. O investimento privado e o consumo das famílias são induzidos por esse movi-

FEVEREIRO DE 2007. Entrega do Bolsa Família em

Teresina (PI)

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ARTIGO mento ativo da política social, e a economia nacional cresce ao mesmo tempo que prospera a cidadania. A terceira conexão é a menos compreendida e se estabelece entre proteção social e elevação da produtividade. O gasto social permite a criação de habilidades e capacitação dos trabalhadores, aumentando as chances de inclusão no processo produtivo. É o caso das políticas das áreas de educação, cultura e das políticas de trabalho e renda, que buscam a qualificação profissional e a regulação do mercado de trabalho. Assim, a política social pode se tornar um elemento importante para o aumento da inovação e da produtividade do trabalho, fatores decisivos para a melhoria da renda dos trabalhadores e para o crescimento econômico. Não seria exagero dizer que a conexão entre gasto social, redução da pobreza e da desigualdade social foi o traço mais importante dos anos 2000, quando, pela primeira vez na história econômica do Brasil e da América do Sul, foi registrado um período de crescimento acompanhado de distribuição de renda. O crescimento real do salário mínimo e sua repercussão no valor das transferências de renda para famílias pobres, associadas à expansão do crédito para pessoas de baixa renda e para pequenas e médias empresas, criaram elevado dinamismo no mercado de trabalho, gerando crescimento do emprego formal. Esses mecanismos produziram um resultado histórico de impacto político e econômico sem precedentes. É imprescindível, no entanto, contextualizar que essa mudança tornouse viável num cenário de relaxamento das restrições externas no Brasil e nos países sul-americanos em função da maior liquidez internacional e da elevação do preço das commodities, o

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O gasto com a seguridade social tornou-se impulsionador da demanda agregada ao ativar diretamente o consumo das famílias. A elevada magnitude desse gasto e o seu direcionamento na forma de renda monetária para uma população de idosos carentes, pensionistas, enfermos, acidentados do trabalho, famílias de baixa renda e desempregados, transforma‑se, imediatamente, na aquisição de medicamentos, alimentos, vestuário e outros bens de primeira necessidade.

que induziu e facilitou o crescimento econômico da região apoiado, fundamentalmente, na expansão do consumo. Esse cenário de crescimento levou também a um afrouxamento das restrições fiscais, com crescimento das receitas tributárias, especialmente daquelas vinculadas aos gastos sociais na área de previdência, saúde e assistência social. Todos os aspectos acima enumerados já seriam por si mesmos de enorme significado se não fosse pelas debilidades estruturais do padrão de crescimento da economia nacional, que se tornaram mais evidentes a partir de 2011. Tais debilidades transformam em forte incerteza as chances dessas mudanças positivas do período 2004-2010 se tornarem não apenas o resultado transitório de um ciclo favorável da economia mundial, mas uma mudança social definitiva. A política social enfrentará obstáculos que colocam em dúvida sua continuidade no futuro próximo, particularmente se a crise mundial se mostrar mais longa. Os desafios não são de pouca monta. O padrão de crescimento da economia brasileira tem sido gerador de baixo dinamismo nos últimos quatro anos. Pode-se atribuir esse comportamento, em parte, à crise mundial que se iniciou em 2007, reduzindo nossas exportações de produtos primários e, sobretudo, de industrializados. Entretanto, há uma parte importante desse resultado que decorre da política interna. O governo reage com crédito às famílias, renúncias tributárias, investimentos do PAC e várias linhas de financiamentos nos mais diversos programas dos bancos públicos, mas parecem insuficientes para induzir níveis maiores de crescimento. O ajuste fiscal, duro para um período de crise mundial, continua


formatando os parâmetros das políticas de gasto público e subordinando as estratégias de Estado que poderiam ter sido mais arrojadas. O investimento público, à altura das mãos do governo federal, continua extremamente baixo, não conseguindo chegar sequer a 4,5% do PIB ao ano. Com investimento público insuficiente, taxas de juros estratosféricas e câmbio valorizado por longo período, não há como estimular o investimento privado produtivo, mesmo com gigantescas doses de desoneração tributária. Em função da desaceleração do investimento, a economia brasileira tem convivido com a estagnação da produtividade em setores estratégicos. A fraqueza do investimento resulta no limitado avanço da investigação científica e das inovações tecnológicas. As gigantescas carências no campo da educação assim como a urgência na superação dos reconhecidos gargalos na infraestrutura produtiva contribuem para adicionar mais problemas aos ganhos de produtividade. A questão central é que mais indivíduos só podem ser amparados pelo sistema de proteção social quanto maior for a produção de cada trabalhador ativo. Isto é, a relação PIB/população ocupada deve crescer para atender às necessidades dos que ficam fora do mercado de trabalho, temporária ou definitivamente. Isso é particularmente válido para os esquemas da previdência pública e da assistência social. Entretanto, salários e benefícios sociais têm crescido acima da produtividade média da economia brasileira. Sem dúvida, este é um resultado favorável aos trabalhadores, porque acarreta melhoras na distribuição funcional da renda. Porém, a redução progressiva do abismo social entre as classes implicará enfrentar e acomodar

O crescimento da produtividade permitirá a elevação dos salários reais (e de benefícios sociais) sem pressões inflacionárias. Cresce, portanto, a necessidade de se utilizar estratégias emergenciais que elevem a produtividade média da economia para evitar a saída mais fácil através da paralisia da política de recuperação dos padrões salariais dos últimos anos.

o latente conflito distributivo entre capital e trabalho, que se acirra com os efeitos da crise mundial. O crescimento da produtividade permitirá a elevação dos salários reais (e de benefícios sociais) sem pressões inflacionárias. Cresce, portanto, a necessidade de se utilizar estratégias emergenciais que elevem a produtividade média da economia para evitar a saída mais fácil através da paralisia da política de recuperação dos padrões salariais dos últimos anos. As principais fontes do comportamento da produtividade agregada vêm do setor industrial, devido a sua alta capacidade de gerar inovações e de disseminar o transbordamento da tecnologia por toda a economia. Entretanto, a indústria doméstica perdeu a posição de centro dinâmico e não mais recuperou esse posto. Tem mostrado reduzida diversificação, pouca capacitação para enfrentar a agressiva competição internacional, principalmente chinesa, e mergulhou num processo gerador de reduzidos efeitos dinâmicos. Nos últimos três anos essa situação se tornou muito mais grave. É o setor de serviços e o agronegócio, voltado para a exportação, que têm impulsionado a economia nacional. A perda de dinamismo econômico do Brasil pode ser explicada, em grande parte, pela perda da capacidade de liderança do setor industrial. Nos últimos vinte anos, a economia brasileira foi incorporada à economia internacional de maneira assimétrica e subordinada, sem participar das grandes transformações que ocorreram na cadeia produtiva da indústria manufatureira global. Nossa inserção se deu pela radicalização da condição de produtores de commodities. Diferente do que ocorreu na China e no

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ARTIGO restante da Ásia, onde foram usadas estratégias nacionais para incorporar suas economias nas redes de produção global, o Brasil e a América Latina perderam espaço na expansão industrial do capitalismo. Mergulharam fundo na exportação de alguns poucos produtos primários que permanecem sendo o sustentáculo dessas economias. Além disso, diferentemente dos países asiáticos, o padrão de inserção internacional do Brasil prioriza a acumulação financeira em detrimento do investimento produtivo. O Estado brasileiro tornou-se garantidor da continuidade da acumulação financeira através da renda de juros que ele mesmo se propõe a pagar com as maiores taxas de juros da economia mundial. E, dessa forma, os juros elevados dos títulos públicos brasileiros e o crescimento do déficit público nominal estrangulam o orçamento público, pressionado por metas de superávit primário que se tornaram entraves para a expansão do investimento público e para a ampliação das políticas sociais. Se a indústria não progredir, impulsionada pelo investimento público e crescendo mais que os outros setores, elevando sua produtividade, se diversificando e contribuindo para a diversificação da pauta exportadora e para a melhoria da situação externa do país, não haverá como falar em um processo de desenvolvimento sustentável. Os sistemas de proteção social são produto do avanço do capitalismo, sobretudo do dinamismo econômico gerado pelo setor industrial. A industrialização é o mecanismo por excelência para impulsionar o desenvolvimento nas economias capitalistas menos desenvolvidas e ainda é a principal estratégia de avanço dos sistemas de proteção social. Não é possível avançar no cam-

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Se a indústria não progredir, impulsionada pelo investimento público e crescendo mais que os outros setores, elevando sua produtividade, se diversificando e contribuindo para a diversificação da pauta exportadora e para a melhoria da situação externa do país, não haverá como falar em um processo de desenvolvimento sustentável.

po social sem buscar a superação da rigidez da estrutura produtiva. Como consequência da queda da produção da indústria nacional, o crescimento do consumo interno e do investimento privado, impulsionados pela política de gastos sociais e pelo consumo do governo, tem sido atendido por importações e produzido a deterioração do saldo da balança comercial, o que contribui para elevar o saldo negativo em transações correntes do balanço de pagamentos. Nos doze meses encerrados em setembro, as transações correntes acumularam déficit de US$ 83,6 bilhões, equivalente a 3,7% do PIB. A situação externa do país se agrava à medida que se alonga o período de queda dos preços das commodities metálicas, agrícolas e energéticas, iniciado em 2011, em função do menor crescimento da China e da União Europeia e do aumento da oferta mundial, fruto dos investimentos realizados no período de alta dos preços das commodities. Para complicar, o anúncio, desde 2013, de mudança na política monetária americana, ameaçando o resto do mundo com juros mais elevados, gera maior volatilidade nos mercados financeiros internacionais. As tentativas da política monetária do Brasil de compensar os desequilíbrios do balanço de pagamentos com atração de capital especulativo e de regular a taxa de câmbio num cenário de forte volatilidade dessa variável têm produzido novas rodadas de alta dos juros. Dificilmente conseguiremos produzir resultados sociais favoráveis como os obtidos no passado, diante do uso radical da política monetária conservadora e francamente amigável ao mercado financeiro. Por fim, e não menos importante, o governo tem feito uso de desonera-


ções tributárias em grande escala que prejudicam a sustentabilidade financeira futura das políticas sociais. As desonerações praticadas com o uso da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do PIS/PASEP, todas elas receitas do sistema de Seguridade Social, têm gerado perplexidade em função de sua inacreditável magnitude. Somente em 2013, o patamar das desonerações nessas três receitas tributárias foi estimado em quase R$ 64 bilhões, segundo dados da Receita Federal. Dos benefícios tributários concedidos com a substituição da tributação sobre a folha de pagamentos pelo faturamento das empresas, cerca de R$ 10 bilhões não foram compensados pela União em 2013, resultando em perdas financeiras ilegais no orçamento da Seguridade, porque significam o não cumprimento da legislação que rege a matéria e que recomenda o ressarcimento aos cofres das políticas sociais penalizadas com a desoneração. Total dos recursos suprimidos da Seguridade Social com renúncias de receita efetuadas pela União: R$ 74 bilhões somente em 2013. Desonerações tributárias são estímulos utilizados para favorecer o investimento privado, porque reduzem custos e geram condições de melhor competitividade para o capital nacional num ambiente de acirrada disputa global. O governo deseja compensar as perdas de competitividade impostas pelo câmbio valorizado. Entretanto, num cenário onde predominam forças opostas, desfavoráveis ao investimento privado, vindas da política monetária de juros altos, da política fiscal de reduzido investimento público e da baixa efici-

Não basta que o sistema de proteção social seja o motor do crescimento (e o fiador dos arranjos políticos), se tal crescimento não viabilizar políticas complementares que modifiquem o rumo do investimento, da indústria nacional, do aumento da produtividade média da economia e da fragilidade externa.

ência da política de ciência e tecnologia, benefícios tributários funcionam como “enxugar gelo”. O agravante é que seu efeito colateral ameaça a sustentabilidade do sistema de proteção social sem trazer nenhum efeito positivo sobre o crescimento econômico. É o pior dos mundos. Apenas fortalece o falso discurso do déficit previdenciário e avaliza as práticas privatistas nas áreas da saúde, educação e previdência. Seguramente não é uma estratégia convincente de crescimento com inclusão social. A retórica governista tem “pés de barro”. Todo esse cenário remete à necessidade fundamental de se compreender o sistema de proteção social e as políticas de alívio à pobreza e desigualdade social considerando os limites do arcabouço material do sistema produtivo brasileiro, assim como a política macroeconômica extremamente conservadora que permanece “sagrada” desde 1999, cujos efeitos foram subavaliados pelos governos dos últimos doze anos. Não é suficiente manter o gasto social em patamares elevados como se fez até aqui. Não basta que o sistema de proteção social seja o motor do crescimento (e o fiador dos arranjos políticos), se tal crescimento não viabilizar políticas complementares que modifiquem o rumo do investimento, da indústria nacional, do aumento da produtividade média da economia e da fragilidade externa. O avanço progressivo da proteção social depende de transformações estruturais que ficaram pendentes. Em outras palavras, exige um projeto sólido de desenvolvimento, cuja precária existência teima em ser denunciada pela política macroeconômica liberal-ortodoxa, que caminha em sentido contrário aos discursos políticos oficiais.

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Mercantilização reforçada

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Os “novos modelos de gestão”, materializados através das organizações sociais ou fundações estatais de direito privado, são atuais exemplos desse processo de privatização da saúde e da educação em andamento no país

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Mudanças estratégicas da política de assistência social no Brasil

▼▼ ALEJANDRA PASTORINI*

O

* Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ

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reconhecimento da assistência social, na Carta Constitucional de 1988, como uma política pública de seguridade social e não contributiva recolocou as discussões acerca das funções do Estado e da responsabilidade com a proteção social dos segmentos trabalhadores historicamente excluídos do âmbito protetivo público. Esse debate foi tensionado pelas lutas dos movimentos sociais, categorias profissionais, organizações dos trabalhadores, entidades e instituições que se vinculavam de variadas formas com as ações assistenciais. Assim, tardiamente foi sendo delineada mais uma política setorial, neste caso integrante do tripé da seguridade social conjuntamente com a previdência e saúde.1 Entretanto, o processo de reconhecimento da assistência social como um direito e responsabilidade do Estado não veio acompanhado de

uma estatização das ações, optando o legislador por consolidar uma política social baseada na combinação de ações de iniciativa pública e da sociedade, criando brechas para a permanência e protagonismo das entidades assistenciais e beneficentes que, desde o século anterior, atuavam nessa área. Na busca por diferenciar as tradicionais formas de ajuda (caridade, filantropia) da assistência como direito, vai sendo reforçada a ideia, tanto no âmbito do Estado quanto na academia, que a assistência social diz respeito a uma área específica da atuação do Estado no social (definindo-a assim como uma política setorial de proteção social); dessa forma, passa a ser entendida como uma política com particularidades que se diferencia da dimensão assistencial das diversas políticas sociais: educação (assistência estudantil), previdência (renda mensal vitalícia), entre outras.


Foi sendo consolidada, no Brasil, uma política social perpassada por concepções de assistência contrapostas que expressavam interesses antagônicos

Assim sendo, a política de assistência social constitui, na virada dos anos 1980 para os 1990, uma importante estratégia concreta para incluir, no âmbito da proteção social do Estado, uma parte dos trabalhadores sem acesso aos benefícios e programas previdenciários. Ao mesmo tempo, o reconhecimento da assistência como política social setorial foi central para depurar a previdência social (do ponto de vista institucional e da gestão orçamentária), deslocando o conjunto de ações, programas e benefícios não contributivos para além dos recintos da previdência. De tal modo, foi sendo consolidada, no Brasil, uma política social perpassada por concepções de assistência contrapostas que expressavam interesses antagônicos; a definição constitucio-

nal da assistência social – reafirmada pela Lei Orgânica da Assistência Social de 1993 – como política pública de seguridade social, não contributiva, destinada a todos os que dela necessitam,2 viu-se polarizada por uma compreensão de assistência minimalista e restrita, que visava ao atendimento das necessidades mínimas dos não contribuintes através de ações de enfrentamento da pobreza e da garantia da segurança social às populações mais fragilizadas e vulnerabilizadas. Ao longo da década de 1990, ensaiamse os primeiros programas, benefícios e ações dando forma concreta à política de assistência social, assumindo lugar de destaque o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e demais programas de transferência de renda de abrangên-

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A marca da assistência social brasileira, expressa na forte presença das entidades sociais privadas como responsáveis pela execução das ações, é interpelada oficialmente a partir da aprovação da última Política Nacional de Assistência Social

ALESSANDRO COSTA/O DIA

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cia e cobertura restritas sob a responsabilidade de governos municipais, que tinham como alvo prioritário crianças e adolescentes pauperizados, idosos e pessoas com deficiência. A centralidade que adotam os programas de transferência de renda no conjunto da atuação do Estado nesta área é um traço marcante a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, momento em que também começa a ser construída uma

A CENTRALIDADE

que adotam os programas de transferência de renda no conjunto da atuação do Estado nesta área é um traço marcante a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso

estrutura assistencial paralela – tendo como pilar o Programa Comunidade Solidária – que disputava os recursos públicos com a política de assistência social e reforçava as entidades sociais integrantes do denominado “terceiro setor” (subsidiadas jurídica e financeiramente pelo Estado). Essas características acima mencionadas não são uma particularidade única do Brasil, pelo contrário, apresentam-se como tendência em grande parte dos países do continente latino-americano3 que, na década de 1990, encontravam-se sob governos com uma clara adesão ao ideário neoliberal e sofrendo as consequências dos denominados “pacotes de ajuste estrutural” (contendo a reforma fiscal, programas de privatização, planos de estabilização monetária, reforma do Estado e da seguridade social, da educação, entre outros). Contudo, a marca da assistência social brasileira, expressa na forte presença das entidades sociais privadas como responsáveis pela execução das ações, é interpelada oficialmente a partir da aprovação da última Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em 2004, que pretende avançar na direção da consolidação de um sistema único de assistência social (SUAS), através da criação e reforço de uma rede socioassistencial que tenha como pivô os equipamentos públicos (principalmente os centros de referência de assistência social). Essas propostas de mudanças na política de assistência, aprovadas no primeiro governo nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), por um lado, acontecem num contexto societário adverso para a ampliação da garantia dos direitos sociais, assim como para o alargamento da função protetiva


do Estado; por outro lado, no âmbito nacional essas mudanças produzidas na política de assistência social não se articulam com transformações estruturais efetivas. É assim que, nos fatos concretos, essas propostas conduzem a uma reformulação aparente da assistência social (no espaço da organização e instrumentos de gestão) sem produzir transformações essenciais na sua lógica e fundamentos que pudessem contribuir para consolidar um projeto democrático, participativo, redistributivo e universalizante de seguridade social tal como previsto na Carta Magna. É importante mencionar que na passagem do século XX para o XXI presenciamos uma inflexão no atendimento das manifestações da questão social nas sociedades dependentes localizadas na periferia do capitalismo, mudanças que se relacionam com as novas demandas colocadas para o Estado como parte das requisições do processo de acumulação e valorização do capital.4 Nesse contexto, o capital exige novas formas de controlar o trabalho, de contribuir com a exploração intensiva (onde a reestruturação produtiva cumpre um papel central) e administrar a superpopulação relativa. Essas mudanças e “reformas” contribuem com a cronificação do desemprego, com a perda do poder de compra do salário e a deterioração da qualidade de vida dos trabalhadores, com a flexibilização das contratações e dos direitos trabalhistas, entre outros. Também é perceptível uma redução da garantia dos direitos sociais em decorrência dos processos de privatização dos serviços públicos em áreas como saúde, educação e previdência. Todas essas transformações aprofundam o traço dual da proteção social no Brasil, 5 contribuindo ao mesmo

tempo com o processo de desproteção de uma parte dos trabalhadores outrora protegidos que não conseguem comprar no mercado os bens e serviços sociais necessários para atender a suas necessidades básicas, nem acessar os programas assistenciais focalizados na pobreza extrema. Assim vai sendo processada uma importante transformação no atendimento das necessidades sociais no Brasil, aumentando a distância com a proteção social definida nos preceitos constitucionais. As políticas sociais sofrem os rebatimentos da reorganização do capital (sob a hegemonia do capital financeiro 6 ) para enfrentar a crise, incentivando a ampliação da participação do setor privado no provimento das necessidades sociais, reforçando o processo de

As políticas sociais sofrem os rebatimentos da reorganização do capital (sob a hegemonia do capital financeiro) para enfrentar a crise

É PERCEPTÍVEL

uma redução da garantia dos direitos sociais em decorrência dos processos de privatização dos serviços públicos em áreas como saúde, educação e previdência SEVERINO SILVA / O DIA

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ARTIGO mercantilização dos serviços sociais. Os denominados “novos modelos de gestão” materializados através das organizações sociais, das fundações estatais de direito privado, das empresas brasileiras de serviços hospitalares (EBSERH), entre outras, são atuais exemplos desse processo de privatização da saúde e da educação em andamento no país. Fazem parte dessa estratégia o Programa Universidade para Todos (Prouni), que incentiva e facilita o acesso às instituições privadas de ensino superior a estudantes brasileiros “carentes”, e o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), com seus restritos programas de assistência estudantil,7 que limitam a permanência do aluno na universidade e a conclusão dos cursos. Em contrapartida, para atender às necessidades dos setores mais pauperizados, buscam ser estruturadas redes mínimas de proteção social na área de saúde (ações curativas), educação (ensino fundamental) e assistência (programas de transferência de renda), que se articulam de forma cada vez mais íntima com as ações e estratégias de controle e administração dos denominados territórios de risco (como as favelas), conformando assim um amálgama conservador que contribui com os processos de criminalização da pobreza.8 Todas essas transformações implicam em uma reconfiguração da relação entre o público e privado que tem por base a contrarreforma do Estado brasileiro que define novas formas de regulação e intervenção do poder público. No atual contexto em que, por um lado, se evidencia a intensificação e aguçamento das desigualdades sociais, por outro, percebem-se mudanças significativas na intervenção do Estado para atender as manifestações da questão

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social centrada, cada vez mais, no conjunto de programas sociais e políticas públicas assentadas na íntima relação entre as ações assistenciais e as coercitivas. Esses traços predominantes nas intervenções do Estado evidenciam o reforço de uma ideia criminalizadora da pobreza e das organizações sociais e políticas que questionam e lutam contra estas estratégias. Também, pelo suposto perigo e insegurança que estes grupos produziriam à sociedade – leia-se aqueles que moram fora desses territórios e que os percebem como uma ameaça a seus negócios, SAMUEL TOSTA

PRÁTICAS

punitivas e repressivas assumem uma intensidade muito forte no atual contexto democrático


patrimônio e interesses –, desenvolvem-se ações e políticas públicas que consolidam as estratégias de controle e ocupação dos territórios definidos como “de risco”, assim como práticas e ações repressivas, violentas e arbitrárias. Importa destacar que a “cultura do medo” (fabricada pelos meios de comunicação e redes de aparelhos privados) e o conjunto de valores e ideias a esta associada servem como justificativa para intensificar as ações e práticas de “segurança pública”, como, por exemplo, as estratégias de militarização nas cidades e a guerra contra o terrorismo. Estas

ações na área de segurança pública são fundamentais para alimentar a indústria bélica, as empresas de seguros e de vigilância privadas, que se transformam em espaços essenciais para o processo de acumulação e valorização do capital, seja como nicho de investimento do excedente do capital, seja como estratégia fundamental de controle e administração da superpopulação relativa. Todas estas transformações vão dando lugar a um novo desenho da intervenção do Estado, que reforça seu caráter coercitivo. Tal como mencionamos acima, essas

mudanças não constituem uma completa novidade nas sociedades latino-americanas, porém essas práticas punitivas e repressivas assumem uma intensidade muito forte no atual contexto democrático, mesmo nos países, como o Brasil, que se encontram governados, desde o início do século XXI, pelos chamados “governos progressistas”. Essas ações passam a ser importantes estratégias para que os governos obtenham legitimação, garantia da governança e controle das expressões de descontentamento, organização e luta da sociedade em geral e da classe trabalhadora em particular.

Referências Bibliográficas

dos anos 2000 que essas experiências se ampliaram de forma significativa na região.

BADARÓ M. e COSTA MATTOS R. Fabricando o consenso e sustentando a coerção: Estado e favelas no Rio de Janeiro contemporâneo. História & Lutas de Classes – Revista On-line. Ano 7, n.11, maio de 2011. Disponível em: http://www.projetoham.com. br.

4 Vale lembrar que nesse momento presenciamos uma mudança em termos políticos em vários países da região latino-americana, que se expressa no fato de alguns candidatos que representavam partidos ou coalizões à “esquerda” no cenário político assumirem os governos nacionais pela via eleitoral, dando lugar aos denominados “governos progressistas”.

Iamamoto, M.V. Serviço Social em tempo de capital fetiche. Capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Editora Cortez, 2007. MOTA A.E. et al. O novo desenvolvimentismo e as políticas sociais na América Latina. In. MOTA, A.E. (org.) As ideologias da contrarreforma e o Serviço Social. Recife: Editora Universitária UFPE, 2010.

Notas 1 A Constituição Federal de 1988 define no artigo 194 que a seguridade social no Brasil compreende um conjunto integrado de ações destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social; também estabelece, no artigo 195, a forma como a seguridade social deve ser financiada por toda a sociedade. Por sua vez, os artigos 203 e 204 serão dedicados de forma exclusiva à assistência social (definição, objetivos, organização e diretrizes). 2 A Carta Magna e a LOAS, buscando definir os destinatários da assistência social, expressam que esta política social não contributiva tem por objetivo: a proteção e amparo às crianças, adolescentes, idosos, maternidade etc.; a habilitação, reabilitação e integração da pessoa com deficiência; a promoção da integração ao mercado de trabalho dos beneficiários, para além da garantia de um salário mínimo para pessoas com deficiência e idosos (BPC). 3 Mota et al. (2010) indicam que os primeiros programas de transferência de renda na América Latina datam de final dos anos 1980, programas que se alargaram ao longo dos 90; entretanto, foi a partir

5 A proteção social brasileira, desde a década de 1930, possui como característica a dualidade da atenção: uma parte da população acessa no mercado o conjunto de bens e serviços para satisfazer suas necessidades e outra conta com a proteção do Estado (principalmente os trabalhadores com vínculos formais de emprego). 6 Iamamoto (2007, p.107), quando se refere à financeirização do capital, indica que “a efetiva mundialização da ‘sociedade global’ é acionada pelos grandes grupos industriais transnacionais articulados ao mundo das finanças. Este tem como suporte as instituições financeiras, que passam a operar com o capital que rende juros (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão, fundos mútuos e sociedades financeiras de investimento), apoiadas na dívida pública e no mercado acionário das empresas”. 7 Com a aprovação do Decreto n° 6.096, de 24 abril de 2007, que institui o REUNI, se produz um espraiamento das Universidades Federais no país, ampliando o acesso na educação superior; entretanto, essa ampliação não veio acompanhada da criação de condições que permitam a permanência e conclusão dos cursos com qualidade. Um dos fatores que limita esse processo é a falta de uma Política de Assistência Estudantil sintonizada com as reais necessidades dos estudantes das IFES, entre as quais destacamos: moradia, alimentação, transporte, creches, acesso a saúde, bolsas (auxílio e pesquisa). 8 Como indicam Badaró e Costa Mattos (2011), esse processo, que se apoia na violência seletiva do Estado, contribui com a dominação de classe e se combina com a estratégia de construção de consensos através do aparato articulado na sociedade civil pela classe dominante.

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A “Ebserh” que magistério feder 48

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ameaça o ral

Depois da privatização encaminhada em alguns HUs, via Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, agora existe uma proposta da Capes para contratar professores federais por meio de organizações sociais Ano 1 - nº 3 - Dez-14/Jan-Fev-15

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QUANDO O PASSADO SE TRAVESTE DE FUTURO: Organizações sociais na administração pública brasileira ▼▼ MARIA DE FÁTIMA SILIANSKY DE ANDREAZZI*

C * Professora da Faculdade de Medicina e do IESC da UFRJ

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omo forma de atrair estrangeiros e jovens pesquisadores para instituições de ensino superior, o governo federal estuda a contratação deles por meio de organizações sociais (OS). A proposta tem o aval do Ministério da Educação e foi apresentada hoje (22) pelo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Almeida Guimarães, no simpósio internacional Excelência no Ensino Superior.... No modelo proposto pela Capes, os professores e pesquisadores seriam contratados de forma autônoma pelas instituições de ensino, e não passariam mais por concursos públicos, como

é feito atualmente. Seriam regidos ainda pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). (Vieira, 2014) Com esta notícia, datada de final de setembro deste ano, a comunidade acadêmica se surpreendeu. Para o presidente da Capes, o problema a ser resolvido com as Organizações Sociais/OSs são os concursos públicos para professores universitários, que são marcados pelo corporativismo, o que dificulta a contratação dos melhores quadros (Vieira, 2014). As razões pelas quais o presidente da Capes vislumbrou vantagens na contratação

F


FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

desses professores não seriam, entretanto, totalmente as mesmas que são alegadas por aqueles que têm expandido as OSs administrando programas e serviços públicos de saúde. Três são os principais motivos alegados pelos defensores de OSs na saúde. O primeiro são os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101, de 4/5/2001), ou seja, um teto de 56% da receita corrente líquida com despesas de pessoal, que caberia mais a estados e municípios. O segundo seria a dificuldade de administrar recursos humanos que possuem esta-

VALTER CAMPANATO/ABR

BRESSER-PEREIRA

(à esq.) iniciou a contrarreforma do Estado no governo FHC. Jorge Guimarães, da Capes, quer levar o modelo para as universidades federais

bilidade com eficiência. E, por fim, os supostos entraves burocráticos da Lei n° 8.666/1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, referentes à falta de agilidade nos processos licitatórios para a aquisição de equipamentos e insumos de necessidade urgente (Nogueira, 2010). Esse artigo tem como objetivo apresentar um quadro da evolução das OSs na saúde no Brasil e, com base nessa experiência, que vem da aprovação da Lei das OSs em 1998 (Lei n° 9.637) como consequência direta da contrarreforma do Estado de Bresser Pereira,

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ARTIGO iniciada em 1995, extrair elementos que permitam analisar a proposta de sua extensão ao ensino superior. Especificamente abordar a questão apresentada pelo presidente da Capes sobre políticas de pessoal. É importante, além disso, assinalar que não tem sido consensual a aceitação pelo Judiciário das OSs, encontrando-se no Supremo Tribunal Federal uma ação ajuizada arguindo a constitucionalidade da Lei (Adin 1.923/98). Há resistências da sociedade civil e dos trabalhadores do setor saúde à sua implementação, em que se destaca a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. Frente que divulgou um documento com uma série de fatos reveladores de um modus operandi ilegítimo e ilegal (Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, 2012).

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As Organizações Sociais e a Saúde O que são Organizações Sociais? São pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, do tipo associativo ou fundacional, que são qualificadas pelo Poder Público como tais de acordo com determinados requisitos. A relação entre o Poder Público e as OSs se dá através de um contrato de gestão, que é um instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como OS com vistas à formação de uma parceria entre as partes para fomento e execução de atividades. O contrato de gestão deve conter especificação do programa de trabalho proposto pela OS, estipulação das metas a serem atingidas e respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos

de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade. A Lei n° 8.666/93 foi alterada em 1998 no artigo que se refere à dispensa de licitação, facilitando a contratação de OSs na administração pública. Ressalta-se, ainda, que esse modelo de gestão não contempla os controles próprios do regular funcionamento da Administração Pública e não prevê o Controle Social, o que na saúde é um direito regulamentado por Lei. A saúde foi uma das áreas entre aquelas especificadas na Lei n° 9.637/1998, a saber, ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, onde mais se avançou. De acordo com Sano e Abrucio (2008), em 2007, de seten-


ta OSs criadas no país, a saúde era o maior setor contemplado, com 25 organizações, sendo que 17 em São Paulo, uma no Espírito Santo, três na Bahia, três no Pará e uma em Goiás. Para Andreazzi e Bravo (2014), esse processo tem se acelerado nos últimos anos, com surgimento de organizações sociais em Santa Catarina, novas OSs no Pará e, recentemente, em Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Goiás e Distrito Federal e, a partir de 2009, no município do Rio de Janeiro e, de 2011, no estado do Rio de Janeiro. O documento da Frente (2012) será a principal fonte de dados empíricos que servirão para questionar a problemática visão do presidente da Capes sobre os “virtuosos” mecanismos de contratação de pessoal atra-

vés das OSs. Tal fonte será acrescida de dados de processos abertos por Ministérios Públicos para investigar as OSs.

Corporativismo e a “modernização da Administração Pública com as OSs

A questão dos recursos humanos tem sido um dos principais gargalos na atuação das OSs na saúde. Quanto à contratação, destaca-se a discricionaridade do Poder Público: não há um mecanismo de seleção que garanta o mérito na admissão de pessoal. Processo aberto pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte mostra uma íntima relação entre os dirigentes de OSs e os políticos no bloco do poder no município de Natal, em que estes utilizam os contratos de gestão para indicação de correligionários

para os serviços públicos (Ministério Público do RN, 2012). O processo de trabalho nas OSs é autoritário e desrespeitoso com os trabalhadores que não possuem a estabilidade. Não há garantia de isonomia salarial de acordo com nível de escolaridade, cargos assemelhados e complexidade da função. As metas são desenhadas de modo a garantir a produtividade, a avaliação de qualidade é precária. Para garantir o fluxo regular de recursos, os gerentes dão um ritmo ao trabalho que repercute de forma negativa sobre o usuário. Em São Paulo, de acordo com o documento da Frente (2012, p. 16-17): os trabalhadores da saúde relatam instabilidade e assédio moral: “[...] Acho que sumiu a qualidade”, avalia uma enfermeira que já passou por diversas OSs na cidade de São

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ARTIGO Paulo e prefere não se identificar. “Você tem que atingir a meta, além de fazer o trabalho administrativo e ainda fazer os projetos que a OS quer para ter mais visibilidade, como de reciclagem. Tudo isso em um tempo recorde e muito centrado em patologia. Por exemplo, a população num local pode ter o maior risco para sua saúde por uso de drogas e isso não vai importar, as metas são focadas em hipertensão, diabetes, gestantes, crianças e idosos. E se você questiona, pode ser demitido, tenho vários amigos que perderam o emprego... A gestão por cumprimento de metas, por processos e por produtividade utilizados nas Organizações Sociais gera uma situação de instabilidade para os trabalhadores por elas contratados, ocasionando uma superexploração”. No município do Rio de Janeiro, já se constatou uma grande rotatividade de trabalhadores de OS, especialmente de médicos, que se tornou um recurso não disponível em muitos casos, a despeito do salário muito mais elevado do que o mesmo cargo na administração direta (Mattos, 2012). Essa alta rotatividade de pessoal também foi constatada em São Paulo (São Paulo, ALESP, 2008). Defende-se que a administração pública através da terceirização para Organizações, longe de ser uma modernidade, como os apoiadores da Nova Administração Pública Gerencial preconizam, como combate ao patrimonialismo como apropriação do estado por interesses particulares (Paim e Teixeira, 2007), é um retorno ao passado. De fato, um dos traços marcantes do Estado brasileiro, que remonta à própria colonização, é o patrimonialismo. Para Faoro (1958), ele reflete uma relação entre o Estado centralizador e as possibilidades concretas de colonização, descentralizadas. Nela, se estabelece e cristaliza uma simbiose caracte-

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A introdução das OSs na Universidade para combater um pretenso corporativismo, quase relações de compadrio na contratação de docentes, será um retorno aos velhos feudos, pois quem controlar a OS controlará a contratação dos docentes segundo critérios que não serão impessoais nem meritocráticos.

rizada pelo pinçamento das riquezas produzidas pelo país por parte de uma camada dirigente do aparelho do Estado, em troca do tráfico de influências necessárias para desembargar procedimentos necessários ao andamento dos negócios dos correspondentes locais do poder (coronelismo), fato que nem o Império nem a República Velha reverteram no seu conteúdo. A modernização impulsionada pela industrialização não foi contrária às tradicionais relações de produção, mantendo elementos da superestrutura jurídica e política (Sodré, 1962), em particular essas características do Estado, mesmo tendo-se criado, no governo federal especialmente, novos modos de administrá-lo que incorporaram princípios racionalizadores, que privilegiavam o mérito e a impessoalidade. Ilha racionalizadora no meio de administrações estaduais e municipais onde persistiam o clientelismo e o coronelismo, agora transmutado em mandonismo local, associado à grande propriedade da terra. A Constituição de 1988 intentou universalizar os princípios racionalizadores da administração burocrática no aparelho de Estado. O ingresso e promoção por mérito, a autonomia técnica e a estabilidade permitiram um novo estatuto do funcionário público, agora servidor de Estado e não de governo. Democratização, enfim, do Estado, introduzindo o princípio da participação da sociedade na definição das políticas públicas. Democratização, entretanto, que esbarra num capitalismo limitado, engendrado pelo imperialismo, a partir da sua necessidade de exportação de capitais e que mantém relações de produção não totalmente libertas de amarras extraeconômicas que se


refletem na hegemonia dessas classes no aparelho de Estado. Esta questão não seria apenas brasileira, mas persistente em países de formação econômico-social semicolonial (Mariátegui {1929} 2008). A contrarreforma do Estado se apoia em vários argumentos, como o descompromisso com resultados, o que a introdução de princípios de mercado viria combater. A nova administração gerencial permitiu mais discricionaridade e menos controles para o dirigente do Estado. Ao contrário de mais mercado liberal, mais competição, o que se vê é o retorno, via Organizações Sociais, das velhas práticas clientelistas que a Constituição de 1988 tentou abolir. Os resultados que temos visto até então com as OSs na saúde confirmam a utilização da OS como forma de manter currais eleitorais. De acordo com de Baptista (2010, p. 8495): ...no Brasil, a lógica da Administração gerencial tem efetivado sutilmente o resgate de importantes traços sociais que outrora

influenciaram a sociedade brasileira, como o patrimonialismo e o coronelismo. Hoje, é flagrante que a iniciativa privada dita os rumos a serem cumpridos pelo administrador público, numa total apoderação do espaço público em prol dos interesses meramente privados de um setor da economia. Quer-se demonstrar que o atual contexto do Estado gerencial está intimamente interligado com os intentos típicos de uma sociedade pós-moderna que se propõe a realizar os interesses de grupos econômicos hegemônicos. Diante desse cenário, será evidenciada a existência de verdadeiro “neopatrimonialismo” e “neocoronelismo”, através da utilização de práticas sutis de controle e dominação do espaço público, voltando-o não para a defesa dos interesses públicos, mas tão somente de interesses privados. É o privado apoderando-se do meio público, num processo reconhecidamente de “neopatrimonialismo”. A introdução das OSs na Universidade para combater um pretenso corporativismo, quase relações de compadrio na contratação de docentes, será um retorno aos velhos feudos, pois quem controlar a OS controlará a

contratação dos docentes segundo critérios que não serão impessoais nem meritocráticos. A OS, sendo uma instituição privada, não obedece a princípios democráticos, pois responde aos interesses de grupo de quem a instituiu. O docente não terá sua autonomia de ensino e pesquisa preservada, pois, com vínculos de trabalho desprotegidos, obedecerá a orientações dos controladores das OSs. Na lógica produtivista que impera nos contratos de gestão, a educação será entendida como uma mercadoria que é comercializada com o fim específico de gerar lucros, o que é agravado pela possibilidade de a OS prestar serviços ao mercado. Mesmo sendo esta a tendência atual dentro da Universidade, a estabilidade cria possibilidades de resistência que não existirão nas OSs. As demandas do mercado de trabalho capitalista acabam comprometendo a própria formação dos alunos, que possa estar afinada com as necessidades da população e a autonomia universitária enquanto um todo.

Referências Ribliográficas ANDREAZZI, Maria de Fátima Siliansky de; BRAVO, Maria Inês Souza. Privatização da Gestão e organizações sociais na atenção à saúde. Trabalho, Educação, Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n 3, p. 499-512, 2014. de BAPTISTA, Isabella “Neopatrimonialismo” e “Neocoronelismo”: análise da Administração Pública no Brasil, no contexto da pós-modernidade. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, Fortaleza, 09 12 de Junho de 2010, p. 8494-8513. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958 FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE, Documento “contra fatos não há argumentos que sustentem as organizações sociais no Brasil”. 2012. Disponível em https://www.dropbox.com/s/mqcq1wzmv9uch6b/CONTRA.FATOS. nao.ha.Argumentos.que.sustentem.as.OSs.no.Brasil.-.Atualizado.em.2012.06.12.pdf?dl=0; acessado em: 27/10/2014. MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MATTOS, Vivian de Almeida. Serviço social: cotidia-

no profissional nas unidades de pronto atendimento geridas por organizações sociais no município do Rio de Janeiro. Dissertação Mestrado em Serviço Social – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE. Processos: 0107607-57.2011 e 011804897.2011.8.20.0001. 18/09/2012. NOGUEIRA, Roberto Passos. O desenvolvimento federativo do SUS e as novas modalidades institucionais de gerência das unidades assistenciais. In: SANTOS, Nelson Rodrigues dos; AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. (Orgs.). Gestão pública e relação público privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2010. p. 24-47. PAIM, Jairnilson Silva; TEIXEIRA, Carmem Fontes. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de Saúde: problemas e desafios. Ciência & Saúde Coletiva [online], Rio de Janeiro, v. 12, supl., p. 1.819-1.829, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312008000400003; Acesso em: 11 de out. 2014.

SANO, Hironobu; ABRUCIO, Fernando Luiz. Promessas e resultados da nova gestão pública no Brasil: o caso das organizações sociais de saúde em São Paulo. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 48, n. 3, p. 64-80, 2008. SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). Parecer do Deputado Estadual Raul Marcelo – PSOL/SP, Sub-Relator de Organizações Sociais da Comissão Parlamentar de Inquérito. São Paulo: ALESP, 10 de abril de 2008. Disponível em: <http://fopspr.files.wordpress.com/2010/08/sub-relatorio-cpi-rsmh-oss-hosp-publicos.pdf>. Acesso em: 06 maio 2012. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1962. VIEIRA, I. Capes defende contratação de professores por organizações sociais. Agência Brasil, 22/09/2014. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2014-09/capes-defendecontratacao-de-professores-por-meio-de; acessado em: 27/10/2014.

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ARTIGO

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NotĂ­cias e editoriais como esse, mais recente, do jornal O Globo, divulgam uma falsa ideia da seguridade social do Brasil. Na verdade, o sistema acumula volumosos saldos positivos. E o governo ainda desvia parte de seus recursos para outros gastos

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ARTIGO

PREVIDÊNCIA SOCIAL: A viável provedora de direitos de cidadania ▼▼ MARIA LUCIA TEIXEIRA WERNECK VIANNA*

O

* Professora aposentada da UFRJ. Colaboradora do Programa de Pós‑Graduação em Políticas Públicas e Desenvolvimento do IE/UFRJ

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s arautos do catastrofismo, sempre a serviço de conhecidos (ainda pouco, talvez) interesses privados, têm na Previdência Social um de seus alvos prediletos. “Rombo da Previdência” é a frase que, vai e volta, retoma protagonismo no noticiário, anunciando uma suposta situação alarmante que requereria a reforma, vale dizer, uma reforma ao gosto do mercado, esta mítica entidade que paira acima de tudo e de todos. Rombo é um termo carregado de simbolismo negativo. Sugere que alguém arrombou o cofre, dando sumiço aos recursos que ali se encontravam. E os recursos que ali se encontravam eram da Previdência. Logo da Previdência, instituição destinada a garantir a renda daqueles que por anos a fio a ela confiaram (compulsoriamente, na grande maioria dos casos) seu parco dinheirinho. Nada mais assustador. Mentes e corações desavisados, temendo a ameaça, passam a avalizar o discurso da reforma. Mas, se o uso do termo rombo faz parte do marketing reformador, o que a ele segue, previdência, dedicase propositalmente a manter mentes

e corações no desaviso, na ignorância do que constitui, por lei e por direito, a Previdência Social. A referência à Previdência, solta no espaço, mais confunde do que esclarece. Do que se trata? Da previdência dos trabalhadores em geral – o chamado Regime Geral da Previdência Social (RGPS) –, apenas, ou também da previdência dos servidores públicos federais, do regime dos militares,


FABIO GONÇALVES / O DIA

AS VÁRIAS

categorias de inscrição na Previdência Social configuram a universalidade do acesso

ou dos regimes próprios dos servidores estaduais e municipais? A referência à Previdência, na citada expressão, omite a distinção fundamental estabelecida pela Constituição entre esses regimes. Não custa registrá-la. O Regime Geral da Previdência Social (RGPS), nomenclatura adotada pela Emenda Constitucional 20, em 1998, é a Previdência Social propriamente dita que, na Constituição Federal de 1988, integra, junto com a Saúde e a Assistência Social, o Sistema de Seguridade Social (Título VIII, capítulo II, artigo 194, não derrogado até agora por nenhuma emenda constitucional). A Seguridade Social – “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social” (art. 194) – funda-se em

princípios igualmente explicitados na Carta, entre os quais a “universalidade da cobertura e do atendimento”. Assim como o Sistema de Saúde, o SUS, é universal, ou seja, todos os cidadãos têm direito ao atendimento médico e hospitalar quando dele precisam, também a Previdência Social provê benefícios a todos aqueles que nela se inscrevem. As várias categorias de inscrição na Previdência Social configuram a universalidade do acesso. Qualquer cidadão pode se filiar à Previdência Social. Diversos são os regimes próprios dos servidores civis – os RPPS, na nomenclatura adotada com a reforma de 1998 – da União, dos estados e dos municípios. Os benefícios previdenciários dos servidores federais estão previstos no capítulo VII do Título III da Constituição Federal (Da Administração Pública), seção II (Dos Servidores Públicos

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ARTIGO Civis), art. 40. Estados e municípios, como entes da Federação, têm competência para instituir esquemas para seus servidores. Quanto aos militares, as especificidades são evidentes, como se verá adiante. Por enquanto, basta constatar a diferença crucial entre esses regimes e o RGPS: eles, os RPPS, não são universais; o acesso a eles não está aberto a qualquer cidadão; são “próprios” (e nesse aspecto a nomenclatura se justifica) de categorias particulares de cidadãos dos quais a lei exige requisitos especiais, como por exemplo concurso público, para que existam como servidores públicos. A Constituição Federal de 1988, ao designar o Sistema de Seguridade Social como assegurador dos direitos sociais da cidadania brasileira, estabeleceu as fontes para seu financiamento. Inovando em relação à situação vigente anteriormente, em que um conjunto já ampliado de benefícios era financiado apenas com contribuições compulsórias de empregados e empregadores, a Lei Maior diversificou as receitas vinculadas à Seguridade Social. Contribuições sobre o faturamento das empresas (COFINS), contribuições sobre o lucro líquido da pessoa jurídica (CSLL), parte das receitas de concursos de prognósticos e, naturalmente, recursos do Tesouro, foram as principais receitas adicionadas às que decorrem das contribuições de empregadores e empregados. Com relação a estas, cabe mencionar que, incidindo sobre o salário dos trabalhadores que têm carteira assinada, variam de 8% a 11% do salário declarado até o teto de 10 salários de referência, atualmente R$ 4.390,24. Há esquemas contributivos diferenciados para trabalhadores domésticos, autônomos, contribuintes individuais e segurados especiais (pequenos produtores rurais

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NÚMEROS DA SEGURIDADE SOCIAL (R$) em 2010

DESPESAS

RECEITAS

404.266 bi

458.094 bi

Fonte: Anfip - Análise da Seguridade Social em 2013

que exercem atividades em regime de economia familiar). Mais uma vez, impõe-se a distinção entre o RGPS e os RPPS, distinção que as reformas de 1998 e 2003 (que resultaram nas emendas constitucionais 20 e 41) obliteraram ao colocá-los no mesmo patamar, como partes da Previdência Social Brasileira. Os servidores civis da União contribuem com 11% de seus rendimentos integrais, uma cota bem diferente da que é requerida dos segurados do RGPS. Não há teto para a contribuição e o limite do valor da aposentadoria é o teto fixado por lei para os recebimentos de todo o funcionalismo público. Mas as emendas ainda aumentaram a confusão ao reunir sob a mesma sigla os regimes dos servidores federais civis e dos militares. O equívoco parece intencional, porque os militares não são considerados servi-

dores desde a Emenda Constitucional 18, de 1998. Ademais, o regime dos servidores civis é um regime contributivo, enquanto o dos militares é não contributivo. Os militares não contribuem para um regime de aposentadorias, pois não se aposentam; passam para a reserva. Contribuem apenas para seus sistemas de saúde, que são “próprios” de cada uma das três forças, e para as pensões de viúvas e dependentes. Um parêntese que ajuda a perceber a manipulação dos números merece ser introduzido. Segundo estudos da Associação Nacional dos AuditoresFiscais da Receita Federal do Brasil, que através da Fundação ANFIP publica regularmente a Análise da Seguridade Social (a última, de 2013, encontra-se no portal da ANFIP), todas as publicações do MPOG e da Fazenda sobre execução orçamentária (divulgadas para o


em 2013

DESPESAS

RECEITAS

574.754 bi

650.555 bi

público externo) apresentam as contas misturadas. Em certos casos chegam a desconsiderar a contribuição patronal (no caso dos servidores civis), que é uma imposição legal em todo regime previdenciário. A intencionalidade se evidencia na medida em que os relatórios que acompanham a proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (para uso interno), pesquisados pela equipe da ANFIP, apresentam avaliações atuariais distintas do Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores Civis e do Regime Próprio dos Servidores Militares da União, como, aliás, determina a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em 2013 – as informações estão na excelente publicação acima citada –, o RPPS pagou R$ 54,5 bilhões em benefícios aos servidores federais aposentados e pensionistas, o que representou 1,13% do PIB. As receitas somaram

R$ 25,2 bilhões, incluída a contribuição patronal (que a publicação entende como o dobro da contribuição dos ativos, como manda a lei). Contudo, entre 2005 e 2013 a necessidade de cobertura, ou seja, o déficit a ser coberto variou de 0,65% a 0,61% do PIB, o que, como sublinha o estudo da ANFIP, não corrobora o argumento, alardeado pelos catastrofistas, de que os gastos com aposentados do serviço público crescem vertiginosamente. Desde 1998, a legislação vem restringindo direitos e expandindo exigências para a aposentadoria dos servidores, o que não aconteceu, nessas proporções, com o RGPS. Para os servidores que ingressaram no setor público depois de 1998, há determinação de tempos mínimos de exercício no serviço público, na carreira e no cargo, além da idade mínima. Foi regulamentada a aposentadoria

complementar e instituída a contribuição de inativos e pensionistas, na mesma porcentagem da contribuição dos ativos. Um servidor contratado posteriormente a 2004 não tem direito nem à integralidade nem à paridade. Seu benefício passou a ser calculado pela média contributiva e corrigido pelos índices aplicáveis ao RGPS. Tudo a título de reduzir um déficit que não tende a aumentar. Pois o efetivo problema do regime de aposentadorias dos servidores civis reside nas mudanças ocorridas na estrutura do Estado, o que é escamoteado no discurso do rombo. Alguns órgãos federais apresentam forte desproporção entre ativos e inativos como decorrência de privatizações, terceirização e descentralização. Conforme demonstra outro estudo da ANFIP – Análise da Seguridade Social em 2010 –, havia nesse ano de 2010, no Ministério das Comunicações, por exemplo, pouco mais de 2 mil servidores ativos e 31 mil inativos, porque entre estes estavam os servidores dos Correios aposentados antes da transformação do órgão em empresa pública. Trata-se, portanto, de um estoque que a médio prazo tende a se reduzir. Hoje os trabalhadores da ECT são filiados ao RGPS, da mesma forma que centenas de outros anteriormente lotados em órgãos ministeriais privatizados. No caso da Saúde, além da terceirização do recrutamento de pessoal, muitos serviços foram municipalizados. Os estudos da ANFIP revelam que os gastos com aposentadorias e pensões dos servidores civis apresentam comportamento decrescente (os dados sobre o regime dos militares não foram disponibilizados) e que as receitas têm crescido mais do que as despesas. Como se vê, são informações distor-

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ARTIGO FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

cidas sobre o regime de aposentadoria dos servidores públicos federais as que vêm à tona, chegam à sociedade e provavelmente também ao Congresso. Não distinguir o regime dos servidores civis do que é prerrogativa somente dos militares confunde. Omitir as diferenças fundamentais que existem entre o RGPS e os chamados regimes próprios dos servidores públicos confunde mais ainda. Não fica, porém, por aí. Quando “especialistas” aparecem na mídia para discorrer sobre o que nomeiam efeitos perversos dos gastos previdenciários, reforçando a retórica do “rombo da previdência”, incluem no pacote um terceiro vetor de distorção e confusão. Jamais é dito que a Previdência Social integra o sistema de Seguridade Social estatuído pela Constituição de 1988. A Seguridade Social foi desconstruída, na prática, pela legislação que deveria regulamentá-la. Deferentes leis orgânicas – a da Saúde em 1990, a da Previdência em 1991 e a da Assistência Social em 1993 – estabeleceram diretrizes para seus respectivos setores. Cada uma das três áreas previstas para compor o sistema ganhou um ministério para chamar de seu. E as receitas, pensadas para financiar em bloco todas as ações – contributivas e não contributivas – de seguridade (o que traduz a essência do conceito), foram fatiadas. Das receitas constitucionalmente vinculadas à Seguridade Social, somente as que incidem sobre salário (contribuições dos empregados) e folha de salário (contribuições dos empregadores) – chamadas contribuições previdenciárias – são arrecadadas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social, criado em 1990 e cujo nome contradiz a concepção de seguridade inscrita na Carta). As demais, acima cita-

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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

das, são arrecadadas pela Secretaria de Receita e, obviamente, vão para o Tesouro Nacional. Isso significa que é o Tesouro que repassa, para diferentes ações de seguridade, e como se fossem seus, recursos originados de fontes existentes para financiar a Seguridade Social. Como ironiza o dito popular, reverência com o chapéu alheio. Várias pesquisas, realizadas ao longo dos últimos quinze ou vinte anos, se dedicaram a reconstituir o que seria o orçamento da Seguridade Social, se fossem consideradas todas as receitas constitucionalmente estabelecidas para o financiamento das ações de previdência, saúde e assis-

tência e todas as despesas decorrentes de tais ações. Os resultados sempre indicaram a condição superavitária do sistema. O documento Análise da Seguridade Social em 2013, da ANFIP, atualiza as informações. Em 2010, as receitas da Seguridade Social totalizaram R$ 458,094 bilhões em 2013, esse valor subiu para R$ 650,995 bilhões. Por seu turno, as despesas (todas as despesas previdenciárias, de saúde e de assistência social, incluindo despesas com pessoal ativo e todas as demais relativas a custeio e investimento) somaram respectivamente R$ 404,266 bilhões e R$ 574.754 bilhões. Saldos positivos – e volumosos – nesses anos, assim


SERIA CÔMICO, SE NÃO FOSSE TRÁGICO.

Em 8 de dezembro de 2011, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), subiu à tribuna para defender a aprovação da Desvinculação dos Recursos da União (DRU). Segundo ele, nesse momento de crise, a presidenta Dilma não poderia ficar sem esse instrumento. “A DRU é vacina que foi usada pelo Fernando Henrique Cardoso, foi usada pelo Lula e não podemos tirar das mãos da presidenta Dilma”, disse Sarney

como em 2011, 2012 e, retrocedendo, em todos os anteriores. A Seguridade Social é superavitária. Onde se encontram, então, os números que fundamentam empiricamente o discurso do rombo? Pois os que o formulam são especialistas, e especialistas gostam de números. Além do mais, números não mentem. Mas também não falam. Os especialistas, que têm o dom da palavra, é que escolhem e apresentam os números que querem. Consequente à desconstrução (sem extinção) da Seguridade, a legislação que sucedeu à Constituição não só segmentou as áreas que, no texto da Carta, a integravam, como redirecionou as receitas instituídas. Receitas previ-

denciárias, entendidas como contribuições de empregados e empregadores, financiam benefícios previdenciários e outras receitas – ou partes delas – são vinculadas a outras ações previamente determinadas. Ora, ainda que as receitas previdenciárias cresçam – e crescem mais do que as despesas, segundo valores divulgados pelo próprio Ministério da Previdência e registrados no estudo da ANFIP –, não são suficientes para dar conta dos benefícios que foram estendidos como direitos, pela Constituição, a segmentos populacionais antes excluídos. Em 2013, as receitas do RGPS totalizaram R$ 307,147 bilhões e as despesas, R$ 355, 007 bilhões. Mesmo assim, a alardeada tendência catastrofista não se verifica. Como % do PIB, o déficit do RGPS que era de 1,8 em 2004, passou a ser de 1,2 em 2010 e 1,0 em 2013. A percentagem de benefícios cobertos por outros recursos da Seguridade (o chapéu usado pelo Tesouro) vem se reduzindo: 27,2 em 2004, 17,3 em 2010 e 14,0 em 2013. A estratégia de separar a Previdência Social do sistema de seguridade, cujo objetivo é fundamentar empiricamente a necessidade de reformá-la conforme demandado pelo FMI desde a formulação do Consenso de Washington, não tem, portanto, se revelado consistente. A Análise da Seguridade Social em 2013, da ANFIP, chama ainda a atenção para dois outros aspectos que nunca são explicitados no discurso do rombo e que, no entanto, repercutem sobre a Seguridade e a Previdência Social. Um é a DRU (Desvinculação das Receitas da União), estratagema criado em 1994 com o nome fantasia de Fundo Social de Emergência e que, renovado por sucessivas emendas constitucionais, acabou assumindo, em 2000, sua verdadeira identidade que se mantém

até hoje (também por obra de periódicas emendas à Constituição). Por esse estratagema, um valor correspondente a 20% de todas as contribuições sociais, excetuadas as contribuições previdenciárias, é desvinculado de seu destino legal, passando a compor o Orçamento Fiscal. Em 2013, foram retirados do Orçamento da Seguridade Social, via DRU, R$ 63,415 bilhões esvaziando o superávit do sistema, que foi de R$ 76,241 bilhões. O segundo aspecto destacado pelo estudo da ANFIP consiste na perda de recursos originada pelo processo de desoneração da folha de pagamentos que o governo vem implementando desde 2011 no intuito de incentivar o crescimento econômico. Legalmente, o governo está obrigado a compensar o RGPS com recursos do Orçamento Fiscal. Entretanto, os valores repassados a título de compensação têm sido inferiores às perdas que impactam a Previdência Social. Esse tema, na verdade, mereceria um outro artigo. Aqui o que importa salientar é que a narrativa do déficit alarmante sequer o menciona. “As despesas não param de subir”, “Rombo da Previdência” e outras manchetes catastrofistas frequentam a mídia desde os anos 90. Os especialistas expõem números e estatísticas aterrorizantes na mesma intensidade com que omitem aqueles que exibem um sistema robusto (os especialistas adoram esta palavra) e altamente redistributivo. A indústria da previdência privada agradece, mas o debate esclarecedor das intenções dos marqueteiros também avança, reconstruindo, diante da opinião pública, a imagem de um sistema de proteção social que é fundamental para a consolidação da cidadania plena de todos os brasileiros.

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ARTIGO

Constituição ferida Nas regulamentações e em emendas à própria Constituição de 1988, praticamente todas foram na direção da retirada de direitos dos trabalhadores e ampliação dos direitos do capital: neste sentido, a previdência social tornou-se um dos alvos preferenciais das mudanças

OBRA DO ARTISTA ITALIANO FEDERICO BAROCCI (1528-1612)

dramatiza a queda de Tróia e mostra o guerreiro troiano Enéias carregando sua família para fora da cidade. Uma síntese do pacto entre gerações.



ARTIGO

Breve história da previdência social brasileira após a Constituição Federal de 1988 ▼▼ JOSE MIGUEL BENDRAO SALDANHA* A CONSTITUIÇÃO

A * Professor da Escola Politécnica da UFRJ

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Constituição Federal de 1988 (CF 88) consolidou regras e conceitos diferentes, a partir de disposições já existentes, para as aposentadorias dos trabalhadores do setor privado e dos servidores públicos. A aposentadoria dos trabalhadores do setor privado foi definida como um benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), no âmbito da organização da seguridade social, enquanto a aposentadoria dos servidores públicos civis foi tratada na organização da administração pública. As regras para os militares foram remetidas à lei ordinária.1 Tanto o regime geral quanto o dos servidores civis concediam aposentadoria aos homens com 65 anos de ida-

foi produzida numa fase de relativa ascensão dos movimentos sociais e consolidou importantes direitos dos trabalhadores

de ou 35 anos de trabalho e às mulheres com 60 anos de idade ou 30 anos de trabalho. Professores e professoras, de qualquer nível, aposentavamse com menos 5 anos de trabalho. O valor da aposentadoria, contudo, não era o mesmo nos dois regimes. Os servidores mantinham a remuneração do cargo que ocupavam na atividade (integralidade), inclusive acompanhando os reajustes e reclassificações posteriores dos servidores ativos (pari-


AGÊNCIA BRASIL

dade), enquanto os trabalhadores do setor privado recebiam a média dos 36 últimos salários de contribuição, que depois era reajustada de acordo com a inflação. As formas de cálculo das duas regras não resultavam em valores semelhantes, porque no regime geral havia, e ainda há, um limite máximo para o salário de contribuição e para as aposentadorias, hoje valendo R$ 4.390,24, enquanto para os servidores o único limite era o de um servi-

dor na ativa, hoje igual a R$ 29.462,25. Outra diferença era e é a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade no serviço público. A principal diferença conceitual entre os dois regimes estava, no entanto, na origem dos recursos para o pagamento das aposentadorias, ou seja, nos seus regimes de financiamento.2 Pelo RGPS, o direito aos benefícios tinha como condição explícita a contribuição dos segurados, mas esta

não seria a única fonte de recursos do regime, uma vez que as aposentadorias, bem como as demais despesas da seguridade social, deveriam ser pagas pelos governos, pelos trabalhadores e pelos empregadores, as destes calculadas sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro, tudo com base na “diversidade da base de financiamento” e outros critérios. Logo, embora operando de forma muito parecida com o de um regime de repartição, o

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ARTIGO ARQUIVO ADUFRJ-SSIND

RGPS não o faria de forma “pura”, e sim integrada ao financiamento geral da seguridade social. Por outro lado, as aposentadorias dos servidores foram definidas simplesmente como uma obrigação do Estado. Nenhuma contribuição se exigia dos servidores para terem direito à aposentadoria, nem havia fonte de recursos específica para o pagamento das aposentadorias,3 que deveriam então ser mantidas da mesma forma que os vencimentos dos servidores ativos e todos os demais gastos governamentais, ou seja, pelas receitas gerais de impostos, contribuições etc. do Estado. As aposentadorias dos servidores financiavam-se integralmente, por um regime administrativo, de forma coerente com a ideia, materializada no capítulo da administração pública da CF 88, de definir um corpo estável de funcionários públicos dotados de um conjunto de direitos e deveres compatíveis com as necessidades de um estado social.

A CF 88 freada pelo avanço neoliberal A CF 88 foi produzida na esteira do fim da ditadura empresarial-militar brasileira (1964-1985), numa fase de relativa ascensão dos movimentos sociais, e caracterizou-se pela consolidação de alguns importantes direitos sociais, de forma, contudo, contraditória à ascensão do neoliberalismo já em curso naquela época em escala mundial. Os constituintes representantes das forças conservadoras organizaram-se no chamado “centrão” e conseguiram impedir avanços mais expressivos e condicionar a vigência de muitos daqueles direitos à sua regulamentação posterior por meio de leis ordinárias ou complementa-

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res. Os retrocessos nas conquistas da classe trabalhadora brasileira não demoraram a acontecer, nas regulamentações e em emendas à própria CF 88, praticamente todas na direção da retirada de direitos dos trabalhadores e ampliação dos direitos do capital, alinhando-se assim às transformações semelhantes que ocorriam no resto do mundo. Dentre as principais mudanças, destacam-se as referentes à administração pública e à previdência social, as chamadas “reforma administrativa” e “reforma da previdência”.4 A contrarreforma da previdência inspirou-se claramente nas recomendações do Banco Mundial expressas no seu relatório Evitando a Crise da Velhice, de 1994,5 aplicadas apenas parcialmente. De uma forma geral, podem identificar-se duas fases da contrarreforma da previdência brasileira pós-CF 88, conceitualmente relacionadas e politicamente articuladas.

DIRETORES E MILITANTES DA ADUFRJ-SSIND

participam de uma das muitas manifestações contra a reforma da previdência, em 2003


De um direito do trabalho, a aposentadoria transformou-se num direito financeiro

A contrarreforma da previdência – 1ª fase – governos Collor, Franco e Cardoso A Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/1998 (EC 20), conduzida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, constitui o núcleo da 1ª fase. Nela, o conceito de “tempo de serviço”, do regime dos servidores, e o de “tempo de trabalho”, do regime geral, foram substituídos pelo de “tempo de contribuição”. O trabalhador deixou de ter direito à aposentadoria por ter trabalhado (ou servido ao público), passando a tê-lo por ter contribuído financeiramente. De um direito do trabalho, a aposentadoria transformou-se num direito financeiro. Entre outras consequências, isto ajudou a nutrir a ilusão de que cada trabalhador é responsável pela sua própria aposentadoria e que é possível prescindir da solidariedade entre as gerações que necessariamente sustenta todo o sistema.

A EC 20 também obrigou ambos os regimes ao “caráter contributivo” e ao “equilíbrio financeiro e atuarial”.6 A participação dos servidores ativos no custeio do regime de previdência já havia sido instituída pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993 (EC 3), durante o governo Itamar Franco, mas não o “equilíbrio financeiro e atuarial”. Tentativas anteriores de criar essa contribuição haviam sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), justamente por não terem base constitucional, empecilho removido pela aprovação da EC 3. Por meios diferentes, como veremos, isto ajudou a consolidar na opinião pública a ideia de que ambos os regimes da previdência social tinham “rombos orçamentários”, resultantes de contribuições insuficientes, aposentadorias precoces e excessivamente generosas, especialmente no serviço público, que consumiam os recursos públicos que

deveriam ser destinados à saúde, à educação, à infraestrutura etc. No caso do regime geral, esta mudança ajudou a justificar que as suas contas passassem a ser apresentadas oficialmente de forma desvinculada do resto do orçamento da seguridade social, forjando assim o surgimento dos déficits do regime geral, calculados levando-se em conta, do lado das receitas, apenas as contribuições sobre as folhas de salários, e, do lado das despesas, todos os benefícios do INSS, inclusive aqueles que não são condicionados a contribuições, como é o caso das aposentadorias rurais. Pode ver-se como o uso de diferentes critérios faz aparecer e desaparecer os déficits do regime geral analisando-se as contas gerais da seguridade nos últimos anos, no quadro A, e um resumo das receitas e despesas da previdência em 2013, nos setores urbano e rural, no quadro B. Contrariando o discurso

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ARTIGO capcioso do déficit, vê-se claramente que sobram recursos, tanto se considerarmos a seguridade social como um todo quanto se olharmos apenas para as contas da previdência propriamente dita, isto é, aliviando-a das despesas rurais de caráter assistencial. A sobra da seguridade, aliás, ajuda a compor o superávit primário das contas da União, usado para o pagamento dos juros da dívida pública federal, esta sim uma enorme sangria de recursos públicos sem contrapartida de qualquer espécie a favor da nação. No caso dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs), como passaram a ser chamados os regimes dos servidores civis, a consequência imediata da aplicação dos critérios contributivo e de equilíbrio, aparentemente repletos da mais pura sensatez, foi a transformação do seu regime de financiamento, que deixou de ser administrativo e passou abruptamente a ser de repartição. Assim o Estado “transferiu” instantaneamente para os servidores ativos parte da responsabilidade, até então totalmente sua, de sustentar os servidores aposentados. Na prática, o sistema continuou a ser mantido pelo

QUADRO

A

Regime Geral de Previdência Social (RGPS) em 2013 [R$ bilhões] [Fonte: ANFIP, “Resultado da seguridade social em 2013”]

70

Estado, pois os recursos economizados com a redução das remunerações líquidas dos servidores ativos jamais foram suficientes para pagar as despesas com os aposentados, mesmo considerando a “autocontribuição” fictícia do governo, como pode ser visto no quadro C, que mostra um resumo das contas do RPPS da União nos últimos anos. Uma das razões óbvias deste “desequilíbrio” é a existência de uma grande quantidade de servidores aposentados e de pensionistas em relação à quantidade de servidores ativos.7 Esta operação legislativa, contudo, fez os RPPSs (da União, dos estados e dos municípios) exibirem déficits orçamentários gigantescos, que passaram a ser sistematicamente usados pelos defensores do aprofundamento da contrarreforma como argumento a favor de mais cortes de direitos dos servidores. Em suma: antes das emendas à CF 88, os servidores não pagavam pelas suas aposentadorias e os regimes próprios não tinham déficits; após as emendas, os servidores tiveram as suas remunerações líquidas reduzidas, quer dizer, houve economia para os cofres públicos, mas os regimes passaram a

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apresentar déficits! É óbvia a incoerência deste conceito de “déficit”. A EC 20 criou ainda a exigência de 10 anos de serviço público e 5 no cargo para a aposentadoria do servidor, e acabou com a aposentadoria apenas por tempo de serviço (sem idade mínima) para servidores. Este tempo passou a servir apenas para reduzir a idade mínima para aposentar-se por idade, em princípio mantida em 65 anos para homens e 60 para mulheres. O homem com 35 anos de serviço e a mulher com 30 tiveram essas idades mínimas reduzidas para 60 e 55 anos, respectivamente. A proposta original que resultaria na EC 20 previa o fim da aposentadoria apenas por tempo de contribuição no regime geral e a cobrança de contribuição aos servidores inativos e pensionistas, mas o governo Cardoso não conseguiu manter estes pontos no texto da EC 20. A contribuição dos inativos viria a ser aprovada em 2003, no governo Lula, pela EC 41, e a aposentadoria por tempo de contribuição sem necessidade de idade mínima permanece em vigor até hoje no regime geral. O governo Cardoso

Setores Urbano

Rural

Total

Receita

311,0

6,2

317,2

Despesa

274,7

80,4

355,0

Saldo

36,3

-74,2

-37,8


conseguiu, entretanto, “compensar” este revés com a aprovação da Lei nº 9.876, de 26/11/1999, por meio da qual as aposentadorias do regime geral passaram a ser obtidas pela média dos 80% maiores salários de toda a vida do trabalhador (em vez dos últimos 36 meses), multiplicada pelo fator previdenciário. Este fator é uma função da idade, do tempo de contribuição e da expectativa de sobrevida no momento

QUADRO

da aposentadoria, estimada pelo IBGE, que na prática reduz a aposentadoria do trabalhador que decide aposentarse logo que atinge o tempo mínimo de contribuição.8 Para perder menos, o trabalhador é induzido a adiar a sua aposentadoria, o que era, afinal, o objetivo de estabelecer uma idade mínima. A mudança de caráter mais estrutural introduzida pela EC 20 foi permitir que os governos, de qualquer nível,

B

limitassem as aposentadorias dos servidores ao teto do RGPS, desde que instituíssem um regime de previdência complementar (fundo de pensão) para os servidores, abrindo-se assim o caminho para a privatização de parte considerável da previdência dos servidores. A regulamentação deste dispositivo, porém, ficou pendente da tramitação do Projeto de Lei Complementar nº 9, de 1999 (PLP 9/99), impe-

2011

2012

2013

Receita previdenciária

245,9

283,4

317,2

Cofins

159,6

181,6

199,4

CSLL

57,6

57,3

62,5

PIS / PASEP

41,6

47,7

51,1

Outras

22,4

25,7

20,8

Total

527,1

595,7

651,0

Previdência

290,5

325,5

366,2

Saúde

72,3

80,1

85,4

Assistência

45,9

56,5

64,1

Outras

42,6

50,9

59,0

Total

451,3

513,0

574,7

Saldo da seguridade social

75,8

82,7

76,3

PIB

4.143

4.392

4.838

Saldo em relação ao PIB

1,8%

1,9%

1,6%

Seguridade social de 2011 a 2013 [R$ bilhões] Receitas

Despesas

[Fonte: ANFIP, “Resultado da seguridade social em 2013”]

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ARTIGO

EM AGOSTO DE 2003,

servidores realizam uma grande marcha em Brasília contra a reforma da previdência

dida até o fim do governo Cardoso pela mobilização dos movimentos de servidores, naquela ocasião ainda apoiados no Congresso pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

A contrarreforma da previdência – 2ª fase – governos Lula e Dilma Este quadro mudou radicalmente após Lula da Silva, do PT, ser eleito presidente da República em 2002. Antes mesmo da sua posse, lideranças do PT e seus aliados no futuro governo anunciaram a intenção de aprovar o PLP 9/99, aderindo assim à tese da existência do “rombo” do regime próprio. Alegavam os defensores da proposta que limitar as aposentadorias dos servidores ao teto do RGPS, transferindo para fundos capitalizados a parte acima do teto, aproximaria os regimes dos servidores e dos trabalhadores em geral, além de proporcionar uma grande economia aos cofres

72

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públicos. Contudo, tal economia existiria apenas num futuro distante, pois a curto e médio prazo a despesa do governo aumentaria, porque ele deixaria de arrecadar a contribuição do servidor relativa à parte da remuneração acima do teto e ainda teria de pagar a sua parte, como empregador, para o novo fundo de pensão. A ordem de grandeza deste custo de transição foi estimada naquela ocasião pelo próprio governo em cerca de R$ 1 bilhão por ano durante os 20 anos seguintes. Após a posse, o novo governo abandonou a intenção de aprovar o PLP 9/99 e submeteu ao Congresso, em 30/04/2003, a Proposta de Emenda à Constituição nº 40/2003 (PEC 40), que eliminava a necessidade de lei complementar para instituir o fundo de pensão dos servidores. Apesar da forte mobilização contrária, empreendida principalmente pelos sindicatos de servidores públicos, a PEC 40

foi aprovada com pequenas modificações, tornando-se a Emenda Constitucional nº 41 (EC 41), em 19/12/2003. A EC 41 impôs ainda outras perdas aos servidores: criou a contribuição de aposentados e pensionistas, tornou a aposentadoria por invalidez proporcional ao tempo de serviço, acabou com a paridade e reduziu os valores das pensões por morte. A economia obtida por estas medidas foi estimada na mesma ordem de grandeza do custo de transição para a previdência complementar já mencionado. Em síntese, o governo transferiu para os aposentados e pensionistas o custo da instituição da previdência complementar dos servidores. Todas estas alterações nas condições exigidas para a aposentadoria e nos cálculos dos proventos, principalmente no regime dos servidores, foram acompanhadas de um grande e intrincado conjunto de regras de


ROBERTO BARROSO/ABR

transição, de acordo com as datas de ingresso no serviço público, que não há como detalhar neste texto, mas que atingem ainda um grande número de servidores. Tanto na EC 20 quanto na EC 41, estas regras tiveram o objetivo político de diminuir a resistência dos servidores em atividade, na medida em que as piores consequências das mudanças atingiriam apenas os futuros servidores. Apesar da maior facilidade para a sua instituição trazida pela EC 41, o fundo de pensão dos servidores federais só veio a ser de fato instalado pelo governo Dilma Rousseff em 4/2/2013, data da aprovação pelo governo federal do Plano Executivo Federal da Fundação de Previdência Comple-

QUADRO

C

Regime Próprio de Previdência dos Servidores Federais [R$ bilhões]

12

2005 ... 2011 2012 2013 Ativos

“Receitas” Aposentados e pensionistas

3,2

...

6,9

7,0

7,5

1,0

...

2,2

2,3

2,5

...

0,2

0,2

0,2

Outras Total de “receitas”

4,2

...

9,3

9,5

10,2

Total de despesas

25,7

...

47,1

50,5

54,5

Déficit bruto

21,5

...

37,9

41,0

44,4

1,00%

...

0,91%

0,93%

0,92%

“Contribuição” patronal (inexistente)

6,4

...

13,9

14,1

15,0

Déficit líquido

15,1

...

24,0

26,9

29,3

0,70%

...

0,58%

0,61%

0,61%

% PIB

[Fonte: ANFIP, “Resultado da seguridade social em 2013”, adaptado]

mentar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), entidade criada para administrar o fundo. Os servidores que tomaram posse a partir dessa data terão as suas aposentadorias limitadas ao teto do RGPS (R$ 4.390,24). Para os que ganham acima deste valor e querem que a União contribua adicionalmente para uma aposentadoria complementar, a única alternativa disponível é a adesão à Funpresp-Exe.9 Nesse caso, o servidor depositará mensalmente 7,5%, 8% ou 8,5%, à sua escolha, da parte da sua remuneração que exceder o teto do RGPS, numa conta individual do fundo de pensão, na qual a União depositará igual valor. O fundo aplicará no mercado financeiro

% PIB

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ARTIGO os recursos arrecadados e, quando o servidor obtiver a sua aposentadoria do serviço público, pagar-lhe-á um benefício mensal cujo valor dependerá completamente dos rendimentos que as aplicações acumularem. Qualquer previsão relativa ao valor desse benefício carrega uma enorme incerteza. O plano da Funpresp-Exe operará obrigatoriamente no regime de capitalização, na modalidade de contribuição definida, ou seja, é sabido quanto o servidor e a União pagarão, mas desconhecido o valor do benefício futuro. Este será influenciado pela qualidade da gestão dos recursos do fundo por parte dos seus administradores, e também pelas flutuações do mercado financeiro durante períodos muito longos, da ordem de decênios,

74

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sobre as quais eles não terão nenhum controle. Se não houvesse a contribuição da União para o fundo, não restaria dúvida, com base na conturbada história dos fundos de pensão no Brasil e no mundo, de que o novo servidor teria melhor destino para o seu dinheiro do que entregá-lo por prazos longos a uma instituição privada fora do seu controle, que nenhum compromisso tem de fato com o retorno financeiro das aplicações, ou mesmo com a simples conservação do valor aplicado. Investir em imóveis e outros bens duráveis e depósitos em cadernetas de poupança, por exemplo, seriam aplicações mais seguras e possivelmente mais rentáveis do que os fundos. O que pode deixar o novo servidor

em dúvida quanto à conveniência da adesão é, evidentemente, a existência da contribuição da União para a sua conta, que na prática dobra de imediato o valor do seu depósito. Pode ser difícil acreditar que o mercado financeiro vá ficar tão ruim, ou que a gestão do fundo se revele tão incompetente ou fraudulenta que os depósitos em dobro no fundo rendam menos do que depósitos não dobrados em outros lugares. Contudo, a ausência de garantias legais relativas aos valores depositados e de controles reais sobre as ações dos seus administradores deve ser considerada seriamente pelos servidores ao decidirem sobre a sua eventual adesão à Funpresp-Exe.


Os principais regimes de financiamento da previdência consistem resumidamente no que segue Regime de repartição As contribuições dos trabalhadores ativos num determinado mês formam as receitas que pagam as despesas com os benefícios dos trabalhadores inativos no mesmo mês. Os eventuais déficits e superávits resultantes do excesso de despesas sobre receitas ou vice-versa são absorvidos pelo orçamento do estado social. Uma vez que se retira o sustento dos idosos quase diretamente da produção dos adultos, este regime é o que expressa mais claramente o pacto implícito intergeracional inerente à sociedade humana (os adultos trabalham para sustentar a si próprios, os idosos e os jovens, na expectativa de que, no futuro, quando se tornarem idosos, sejam sustentados pelo trabalho dos então adultos, hoje jovens,

que repetirão o processo). O equilíbrio orçamentário é obtido por transferências de outras receitas estatais ou por meio de ajustes paramétricos (mudanças nas alíquotas de contribuição, nas condições necessárias para aposentar-se, no cálculo dos proventos de aposentadoria etc.), em função das mudanças na estrutura demográfica da sociedade, no grau de formalização das relações de trabalho, no nível de emprego e outras condições macroeconômicas. Em geral, não forma um fundo financeiro, ou forma um fundo pequeno, de caráter apenas operacional, de giro. O seu princípio básico é a solidariedade entre as gerações. É o regime mais usado pelos sistemas de previdência social em todo o mundo. No Brasil, o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), adminis-

trado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), funciona desta forma, e abrange os trabalhadores cujos contratos de trabalho são regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nunca é usado pela previdência privada.

Regime de capitalização As contribuições dos trabalhadores ativos são depositadas num fundo, em contas individuais, que ganham (ou perdem) rendimentos financeiros, em função dos ganhos (ou perdas) dos investimentos feitos pelo fundo. O fundo formado torna-se uma massa de capital financeiro, em geral de grande vulto. O princípio básico é a rentabilidade do capital. É o único regime usado pela previdência privada, complementar. O regime pode ser

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fechado, isto é, restrito aos trabalhadores de uma empresa ou grupo de empresas (entidade fechada de previdência privada, ou fundo de pensão), que atuam como patrocinadores do fundo e também lhe fazem contribuições, ou aberto, caso em que é disponível a qualquer pessoa e é quase equivalente a uma aplicação financeira comum (entidade aberta de previdência privada). O equilíbrio financeiro é automático na modalidade de contribuição definida, na qual os valores das contribuições dos segurados são fixados, mas os seus benefícios futuros dependem integralmente da rentabilidade das aplicações do fundo. Nesta modalidade, o fundo nunca se torna insolvente, pois, por definição, nunca é devedor de valores maiores do que o patrimônio que possui. Na modalidade de benefício definido, na qual os benefícios futuros são prefixados, mas

as contribuições podem variar, o equilíbrio depende de aportes extraordinários dos patrocinadores, ou de ajustes paramétricos, como mudanças nas alíquotas de contribuição ou nas condições exigidas para a aposentadoria, quando os rendimentos das aplicações não acompanham as projeções feitas por ocasião do seu estabelecimento. No caso da previdência complementar dos servidores, a Constituição Federal obriga explicitamente todos os planos a serem de contribuição definida. Diferenciam-se de outras aplicações financeiras por gozarem geralmente de benefícios fiscais. São muito sensíveis às flutuações do me do financeiro.

Regime administrativo O empregador, invariavelmente o Estado, paga tanto os

salários dos ativos quanto os benefícios dos aposentados. Nada se arrecada dos ativos. Os trabalhadores cumprem carreiras de servidores públicos, em geral longas, exigidas para terem direito aos benefícios. Não faz sentido procurar o equilíbrio orçamentário, uma vez que só há despesas, totalmente cobertas pelo orçamento do Estado. O debate político relativo a este regime é parte da discussão sobre as carreiras do serviço público. O princípio básico é a estabilidade do servidor. No Brasil, eram assim, até 1998, os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPSs) dos militares e dos servidores civis da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Os militares permanecem nesse regime.

Notas 1 O leque de benefícios da previdência social é muito amplo. Este texto trata apenas de aposentadorias e pensões. 2 O termo “regime” tem sido usado, na legislação e na linguagem comum, com pelo menos dois significados diferentes: ora se refere a conjuntos articulados de direitos e deveres (RJU, RGPS etc.), ora nomeia formas de financiamento de sistemas de previdência (regime de repartição, regime de capitalização). Tentando evitar confusões, neste texto chamaremos estes de “regimes de financiamento”. 3 A contribuição que os servidores ativos faziam até então se destinava ao custeio da saúde e das pensões. 4 Melhor denominadas contrarreformas, por não ser possível atribuir-lhes a habitual conotação positiva dada pela palavra “reforma”. 5 THE WORLD BANK. Averting the Old Age Crisis: Policies

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to Protect the Old and Promote Growth. New York: Oxford University Press, 1994. 6 O “equilíbrio atuarial” obtém-se quando os valores dos fluxos previstos de receitas e despesas, descontados por meio de uma taxa de juros de referência, são iguais. Depende, portanto, do valor arbitrado para essa taxa por quem faz as contas. 7 De 1995 a 2002, a quantidade de servidores federais ativos diminuiu de 982 mil para 878 mil e a quantidade de aposentados e pensionistas aumentou de 803 mil para 944 mil. Daí em diante, a quantidade de ativos passou a aumentar, atingindo 1,106 milhâo em 2013, e a quantidade de aposentados e pensionistas continuou subindo, até 972 mil. Entre 2000 e 2006 a União teve mais aposentados e pensionistas do que ativos. (MPOG, Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais, julho de 2014).

8 Por exemplo, um homem que se aposentou em 2013 após 35 anos de contribuição, com 60 anos de idade, teve um fator previdenciário igual a 0,874, isto é, uma redução de 12,6% na média dos salários sobre os quais contribuiu, e se só se aposentasse em 2014, com 36 anos de contribuição e 61 de idade, a redução seria de 8,1%. 9 Esta regra atinge muitos servidores. 66,5% dos servidores civis ativos da União ganham acima de R$ 4.500 mensais. Esta proporção é igual a apenas 53,4% nos servidores aposentados, o que mostra não ser a passagem à aposentadoria que eleva os ganhos dos servidores públicos. As remunerações dos servidores são marcadamente maiores do que as dos trabalhadores do setor privado já entre os ativos, o que é coerente com a sua maior qualificação técnico-profissional em geral.


Resgate do patrim么nio cultural brasileiro O repert贸rio vasto 茅 uma das marcas da Orquestra Sinf么nica da UFRJ, que se apresentou pela primeira vez em 25 de setembro de 1924

FOTOS MARCO FERNANDES

Suplemento Cultural Cadernos Adufrj


Surgida nos ecos da inquietação cultural trazida pela Semana de Arte Moderna nos anos 1920, a Orquestra Sinfônica da UFRJ completa a incrível marca de 90 anos de apresentações regulares

▼▼ ALINE DURÃES

Especial para Cadernos Adufrj



MÚSICA

O Brasil

vive um intenso momento de efervescência cultural, provocado, em parte, pela Semana de Arte Moderna de São Paulo. Dois anos antes, em 1922, o evento — patrocinado por personagens como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Anita Malfatti — sacudiu os

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pilares das artes brasileiras convidando a intelectualidade a embarcar numa proposta de subversão do universo artístico. O Rio de Janeiro, então capital federal, ensaiava os primeiros passos rumo à modernidade. A reforma Pereira Passos, iniciada em 1903, garantiu a reorganização urbana da cidade com o alargamento de ruas e a criação de um sistema de sanea-

mento básico. Paralelamente, a imprensa carioca conquistava novas liberdades e fervilhavam as produções de autores ligados ao Teatro e à Música. Foi nesse cenário que surgiu a Orquestra Sinfônica da UFRJ (OSUFRJ), primeira orquestra estatal do Brasil que, em 2014, completa 90 anos de uma história profundamente ligada à música e à universidade. Vin-


Desempenhamos aqui atividades que ultrapassam a mera reprodução musical, mas resgatam o patrimônio cultural brasileiro. A OSUFRJ se insere na vida musical do Rio de maneira muito diferenciada: evitamos reproduzir o que as orquestras profissionais fazem André Cardoso Regente da orquestra

culada ao Instituto Nacional de Música, que, em 1937, se transformaria na Escola de Música da Universidade do Brasil (futura UFRJ), a sinfônica nasce do anseio positivista da Primeira República em utilizar a estrutura universitária para formar músicos que atuariam nas orquestras privadas e teatros da cidade. Ao longo de nove décadas, a

OSUFRJ, com suas temporadas regulares de concertos e apresentações, ajudou a compor o cenário brasileiro de música erudita, atuando junto aos mais influentes músicos do gênero. “Há 90 anos, na Rua do Passeio nº 98, funciona uma orquestra sinfônica que registrou a passagem dos principais maestros do país, como, por exemplo, Eleazar de Carvalho e Roberto Duar-

te. Desempenhamos aqui atividades que ultrapassam a mera reprodução musical, mas resgatam o patrimônio cultural brasileiro. A OSUFRJ se insere na vida musical do Rio de maneira muito diferenciada: evitamos reproduzir o que as orquestras profissionais fazem, não queremos competir com elas. Somos uma alternativa”, destaca André Cardoso, diretor da Escola de

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MÚSICA

Música (EM-UFRJ) e regente da OSUFRJ desde 1998.

Mudanças no formato

A primeira apresentação do grupo, realizada em 25 de setembro de 1924, contou com a participação de 33 alunos. Inicialmente, a orquestra era composta apenas por estudantes da disciplina de Conjunto Instrumental do antigo Instituto Nacional de Música.

Outros redesenhos moldaram a sinfônica nos anos seguintes. Já na década de 1930, a reforma educacional Francisco Campos — primeira a ser efetuada em nível nacional, responsável pelo lançamento do Estatuto das Universidades Brasileiras e pela criação do Conselho Nacional de Educação, além de ter instituído o currículo seriado e a frequência obrigatória nos demais níveis de Ensino — alterou a configuração do grupo: ele passaria a ser formado apenas por músicos profissionais, contratados por temporada mediante concurso público. Em 1969, o entendimento de que uma orquestra mantida pela universidade deveria ter como finalidade principal a formação de seu corpo discente voltou a ganhar força. Os alunos reinte-

graram o conjunto, mas desta vez tocando ao lado de músicos profissionais. Em 2005, o caráter institucional da orquestra se amplia, já que ela deixa de pertencer apenas à Escola de Música e passa a ser oficialmente a Orquestra Sinfônica da UFRJ. O modelo híbrido, mantido até os dias atuais, possibilita ao aluno ensaiar ao lado de um músico experiente, que funciona como seu segundo professor. “Não basta entrar, sentar e tocar. Tem que haver uma sintonia, uma troca entre aluno e técnico. E é isso que procuramos fazer no dia a dia: passar nossa experiência para que os jovens saiam preparados para tocar em qualquer orquestra do Brasil”, conta Felipe Prazeres, músico com mais de 20 anos de experiência e que, desde

Não basta entrar, sentar e tocar. Tem que haver uma sintonia, uma troca entre aluno e técnico. E é isso que procuramos fazer no dia a dia: passar nossa experiência para que os jovens saiam preparados para tocar em qualquer orquestra do Brasil Felipe Prazeres Spalla da OSUFRJ


2005, é o spalla (Primeiro Violino) da OSUFRJ. Dentro da sinfônica, há ainda uma orquestra de sopro, na qual os instrumentos de corda não tocam, e uma de câmara, com menor número de integrantes. A possibilidade de montar modelos diversos de conjunto é mais um benefício do sistema misto, pois amplia consideravelmente o repertório da orquestra.

Vasto repertório O repertório vasto, com diferentes referências musicais, aliás, é uma das marcas da Orquestra Sinfônica da UFRJ. De Beethoven e Vivaldi a compositores ainda desconhecidos, o grupo passeia por estilos e épocas, dando ao público um

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ERNANI AGUIAR, que divide a regência da orquestra com André Cardoso, conduz um ensaio

espetáculo sempre cadenciado pelo ritmo da excelência. Ao ingressar na orquestra, os alunos têm a chance de conhecer o legado da música erudita mundial. Ensaiam e executam as grandes obras, os grandes compositores, as grandes sinfonias. Mas não param por aí. O ineditismo é outro critério que pesa na escolha do repertório da OSUFRJ. Regularmente, a orquestra universitária abre espaço para a execução de obras de novos compositores. E, para fomentar as produções inéditas, a Escola de Música realiza, todos os anos, um concurso de Composição que, rompendo os limites da universidade, oferece a candidatos de todo o país a possibi-

lidade de dar vida a suas melodias nos acordes instrumentais da orquestra. Esse papel de vanguarda se reveza com o caráter de memória e de valorização da cultura nacional que o repertório da OSUFRJ adquire quando alunos e técnicos se unem para executar a produção erudita brasileira. São obras que, por serem desconhecidas de boa parte do público, costumam ficar de fora da programação mainstream das grandes orquestras privadas. “Nossos concertos são gratuitos. Então não é por falta de oportunidade que os cariocas terão dificuldade em conhecer os repertórios sinfônicos mundial e brasileiro de todas as épocas”, afirma André Cardoso.


MÚSICA

Desafios dão o tom Manter-se em funcionamento, com programação regular e produção de excelência, em um cenário de recursos escassos como o de uma universidade pública federal, não é uma tarefa simples. Ao longo de sua história, a OSUFRJ teve de lidar com a falta de estrutura da instituição para abrigar seus concertos. O problema permanece até hoje. Não há nas unidades teatros ou salões adequados à formação de orquestra. Por um lado, isso força alunos e profissionais a montarem os espetáculos em espaços improvisados, como o auditório do Centro de Tecnologia (CT), na Cidade Universitária, e o Salão Pedro Calmon, na Praia Vermelha. Por outro, dificulta o acesso de grande parte da comunidade universitária aos concertos, executados em sua maioria na sede da Escola de Música, na Lapa, berço cultural do Rio de Janeiro, mas bairro distante dos demais campi da universidade. As dificuldades, no entanto, não diminuem a paixão e o comprometimento que, há 90 anos, move quem passa pela sinfônica. “É muito gratificante contribuir para a disseminação da música com um grupo tão bom quanto este, formado por excelentes músicos profissionais e por alunos sedentos de aprendizado musical”, destaca o regente André Cardoso.

O DILETANTE Uma das apresentações no auditório do Centro de Tecnologia

Ópera na UFRJ O momento é de dupla comemoração: o Ópera na UFRJ, uma das mais bemsucedidas iniciativas de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade, completa 20 anos em 2014. Criado por estudantes da disciplina Declamação Lírica, da Escola de Música, em 1994, o projeto reúne professores, alunos e funcionários técnico-administrativos de diferentes unidades da instituição para a montagem de espetáculos de ópera. O grupo já contabiliza 17 montagens. Récitas que, além de contar com a parceria da OSUFRJ e dos alunos de Oficina de Ópera da EM, integram estudantes da Escola de Belas Artes (EBA), que apoiam cenografia e indumentária; da Escola de Comunicação (ECO), que atuam na direção do espetáculo; e da área de Dança da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD), responsáveis pela coreografia. Professores estão sempre à frente da supervisão, e a produção conta com a participação do corpo técnico da UFRJ. Para comemorar as duas décadas de existência, foi montada a peça O Diletante,

adaptação de João Guilherme Ripper do clássico de Martins Pena, um dos maiores dramaturgos e compositores brasileiros do século XIX. Na peça original, Pena usa o bom humor para satirizar o universo dos amantes de ópera. O sucesso das apresentações — gratuitas, com distribuição de senhas que se esgotaram horas antes do espetáculo e com filas na porta — prova que os cinco séculos de história não foram suficientes para apagar o brilho do gênero operístico. “A ópera é o teatro com música, o cinema do século XVII. O público gosta. Por isso é um gênero vivo. Tem muita gente escrevendo e consumindo espetáculos. Mas, infelizmente, hoje, no Rio de Janeiro, produzem-se poucos concertos. Para se ter uma ideia, o Ópera na UFRJ, anualmente, produz a mesma quantidade de obras do Teatro Municipal. Daí a importância do nosso projeto. Atendemos a um público carente de espetáculos de ópera na cidade. Mas nosso objetivo não é simplesmente produzir um espetáculo e sim ajudar a formar talentos. Isso é o melhor do projeto”, finaliza André Cardoso.

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SHUTTERSTOCK

CINEMA


Lente afiada Diretor de Jango, Os anos JK e Utopia e Barbárie, Silvio Tendler acaba de lançar o documentário A Distopia do Capital, média-metragem que põe a nu o projeto neoliberal e seus impactos na vida do país


CINEMA

O olhar crítico de Tendler ▼▼ FILIPE GALVÃO

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fisioterapia tem obrigado o cineasta Silvio Tendler a uma rotina de pequenos exercícios. Aperta bolinhas, estica os ombros, ergue o cotovelo com ajuda profissional. É o tortuoso caminho para que ele recupere a potência do corpo. Aos poucos, reconquista o básico. Anda, toma café, faz pose. Uma imensidão para quem há dois anos saiu tetraplégico de uma cirurgia de descompressão da medula. Na primeira vez que voltou a andar, Tendler, 64 anos, comemorou a ampliação das perspectivas: “Eu só via as pessoas no plano da bunda”. A sala do apartamento em Copacabana tem ares de estúdio e dão um indicativo da movimentação que cerca o cineasta. São dezenas de cadeiras e poltronas. É natural que os 40 anos de carreira que fazem de Silvio Tendler um pilar entre os documenta-

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ristas brasileiros marquem nele essa fixação por planos e curvas. O cineasta é da geração que reconfigurou o mundo em 1968. Foi aluno de Jean Rouch – espécie de Adão do cinema documental –, trabalhou com Chris Marker, conviveu com Glauber Rocha. “Foi um momento muito mágico, muito rico no mundo. A gente vivia uma espécie de festa libertária”, diz enquanto se lembra dos mestres e companheiros. A doença que o derrubou foi o mote para que o documentarista virasse documentário. Noilton Nunes conhece Tendler desde que se esbarraram pelos cineclubes cariocas dos anos 1970. Quando o cineasta só conseguia ver as pessoas no plano da bunda, Noilton viu a necessidade de registrar o amigo. O filme A Arte do Renascimento acompanha os passos de uma trajetória com mais de 40 filmes lançados e intensa movimentação política.

Arte engajada O mais recente deles, Privatizações: a Distopia do Capital, o diretor define como “aquele filme que eu estava me devendo”. O filme dá sequência à análise do desmonte do país, linha-guia de filmes como Jango (até hoje, o documentário político mais visto no país), Encontro com Milton Santos e Marighella. Apesar de assumido como dívida pessoal, a ideia do filme veio do Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ). Distopia, como o documentarista carinhosamente chama o novo trabalho, é uma médiametragem que desnuda o projeto neoliberal iniciado no governo Collor. Um processo, segundo ele, surreal. “O Estado deixou de ser público, sem que os capitalistas investissem qualquer coisa. Foi uma situação em que os capitalistas entraram com o sorriso, o BNDES com o financiamento


MARCO FERNANDES


apoiando, mas na medida em que a Marina foi virando Aécio a coisa foi ficando complicada e eu terminei apoiando a Dilma”, explica. O desencanto com a tucanização de Marina garantiu mais tempo à feitura de Distopia. No filme, vários entrevistados apontam os setores da economia do país sequestrados pelo capital financeiro. Bancos, usinas, petroquímicas, portos, mineradoras, telecomunicações, siderurgias, transportes. “O segundo maior processo de privatização dos anos 1990, só perdendo para a transição da antiga União Soviética para o regime capitalista”, carimba o economista Márcio Pochmann em uma passagem do documentário. Quitada a dívida (“..filme que eu estava me devendo”..), podese dizer que a obra do cineasta tornou-se, por fim e completamente, um telecurso subversivo. “Sou um cara que é assisti-

Esse Estado é uma burrice muito grande, é um erro. O que se fez durante a Copa do Mundo foi um erro. A privatização do Maracanã foi um absurdo. O que fizeram com o Célio de Barros, o Júlio Delamare, a Aldeia Maracanã, todos absurdos. Belo Monte idem

LINHA DO TEMPO Silvio Tendler em momentos diferentes de sua trajetória. Na foto abaixo, ao lado de Nelson Pereira dos Santos

DIVULGAÇÃO

e os fundos de pensão com a grana”, diz. Silvio Tendler aceitou o convite do sindicato na hora. Somaria assim mais um projeto dentre os vários que produz simultaneamente. É uma característica do diretor. “Eu nunca posso ter um projeto só porque cansa”, diz. À época em que foi procurado pelo Senge-RJ, estava envolvido com a campanha de Eduardo Campos (PSB) à presidência. Quem ainda vive 1968 espera sempre novas vias. A ruptura, que não veio, fez com que ele perdesse um pouco da gana com os projetos da candidatura PSB-Rede, mesmo depois do clima apaixonado surgido do desastre que matou o governador de Pernambuco em Santos. Ainda assim, acompanhou Marina Silva. “Eu achava que o PSB era um partido socialista e que iria lutar contra esse processo de privatizações. Depois que o Eduardo morreu, eu continuei

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CINEMA

do na favela, nos cineclubes, nas escolas”, diz. Seus filmes são referências recorrentes na formação de um pensamento crítico sobre a realidade do país e do mundo. “Minha formação política foi toda com seus filmes, Silvio”, disse em agradecimento uma professora da rede estadual do Rio de Janeiro durante a estreia de Distopia no Circo Voador em 21 de outubro.

AUDIÊNCIA Jango, realizado na década de 1980, é o documentário político de maior audiência do cinema brasileiro

Não se pode chamar o apoio do cineasta à presidenta reeleita de incondicional, mas os traços de condescendência são inegáveis. Quando questionado sobre o modelo de inclusão cidadã do PT através do consumo, Silvio diz que entende que um operário tenha sonhos de consumo. Quando confrontado se tal política também não abrangeria a produção e formulação da cultura através de padrões de consumo, Silvio Tendler perde um pouco a paciência e diz que Lula nunca foi socialista e se enganou quem quis. São posições de quem cai e se levanta. De quem vive de utopia, apesar das barbáries. Para defender o tema que consagrou o percentual favorável à candidatura petista, Silvio abusa da esperança. “Eu não tenho nada de informação, nada de conhecimento, nenhum subsídio teórico do que eu vou falar. É pura intuição feminina, mas acho que esse Governo da Dilma vai ser muito diferente do que foi.

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Dos males, o menor

Acho que essa questão das privatizações vai ser revista. Acho que ela percebeu o tempo que ela perdeu em coisas bobas, coisas inúteis. E ela vai querer deixar a marca dela na História. Não acredito que esse processo de privatizações continue”, diz. Mesmo assim foi vítima do recrudescimento do Estado policial. Em 2012 foi intimado a depor na 5ª DP, acusado de incitar a desordem e atacar militares que comemoravam o golpe de 1964. “Eu não tenho essa capacidade de organização e mobilização que tentaram me atribuir. Adoraria ter, mas não tenho”, diz. Menos capacidade física tinha para atacar os incau-

tos milicos: era um Silvio Tendler ainda tetraplégico. Questionado sobre a evidente incapacidade de diálogo da gestão PT-PMDB, o cineasta pede um tempo. Cita Miguel Unamuno. Rebate o “viva la muerte” franquista. “Esse Estado é uma burrice muito grande, é um erro. O que se fez durante a Copa do Mundo foi um erro. A privatização do Maracanã foi um absurdo. O que fizeram com o Célio de Barros, o Júlio Delamare, a Aldeia Maracanã, todos absurdos. Belo Monte idem. Não me faça cúmplice da burrice”, rebate.

COMEÇO O cineasta no início da carreira. Viria se tornar, ao lado de Eduardo Coutinho, um dos principais documentaristas do país

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LIVROS

Trabalhadores, Uni-vos ▼▼ SILVANA SÁ

Trabalhadores, uni-vos!

Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional 336 páginas Preço de capa: R$ 52,00

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INFORMAÇÕES:

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Antologia política da I Internacional” é um dos lançamentos mais instigantes da Editora Boitempo. Organizado pelo professor italiano Marcello Musto, o livro foi divulgado durante evento nacional que marcou os 150 anos da I Internacional. O encontro ocorreu em oito cidades brasileiras, reunindo intelectuais nacionais e estrangeiros para debater os impactos, efeitos e lições da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), criada em 1864. No Rio de Janeiro, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) sediou o encontro, que teve coordenação da Adufrj-SSind.

A AIT tornou-se símbolo da luta de classes e influenciou as ideias de milhões de trabalhadores ao redor do planeta. O aniversário de 150 anos de sua fundação oferece importante oportunidade para reler suas resoluções e aprender com as experiências de seus protagonistas. A obra contém textos

inéditos no Brasil e se configura um arquivo para a história e a teoria do movimento dos trabalhadores, bem como para a crítica ao capitalismo. Marcello Musto ensina teoria sociológica na York University (Toronto, Canadá). A coletânea que o professor organizou mereceu do linguista norte-americanoNoam Chomsky a classificação de “extraordinária”. Ela traz textos de Marx, Engels, Bakunin, entre outros. Tais escritos ajudam a compreender como se organizaram a I Internacional e os trabalhadores europeus do séc. XIX. Mais do que isso, o conteúdo, que registra a experiência dos protagonistas da AIT, oferece elementos para se repensar os problemas do presente.


SEM FRONTEIRAS

ZORIAH (CC BY-NC-ND 2.0)

Êxitos capitalistas Segundo a ONU Um terço dos jovens (de 10 a 24 anos) do mundo vive em situação de vulnerabilidade social

Mais de 500

milhões de

CRIANÇAS e ADOLESCENTES vivem abaixo da linha de pobreza, com menos de

US$ 2 por dia

A maioria vive em países em desenvolvimento ou pouco desenvolvidos


No Dia da Consciência Negra (20/11), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) realizou um ato na zona sul carioca. O local não foi escolhido à toa: muitos banharam-se na praia do Leblon, bairro onde as moradias possuem o metro quadrado mais caro do Brasil.

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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL


www.adufrj.org.br


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