O Natal em Ossela O vale ampliou-se com a noite. Não se vê, lá ao fundo, a figueira, que de dia cerra o horizonte com a sua lomba enorme. Não se vêem os contrafortes de Santo António, bordados de pinheiros, nem os da Frágua, com as suas casuchas, nem os do Crasto, onde se ergue uma capelita branca. Sumiu-se tudo no negrume. E o vale aumentou em extensão e profundidade. Parece que todo o mundo está aqui, na sombra imensa, Almas, desesperos, ambições, impotências — e a trégua desta noite, em volta a lareira. Parece que não há mais nada. Mas o vale chora, clama, geme sempre. Vu-vu-vuuu, a ventania fustiga o esqueleto das árvores, os pomares despidos de folhagem, os choupos esgrouviados, os amieiros que debruam o Calma. Sopra na telha vã, arrepia os colmados, passa e torna a vir — vu-vu-vuuu —como uma obsessão. A concha trouxe consigo toda a orquestra do mar. Deve haver neve na Felgueira. E também cá para trás, para as bandas de S. Martinho, os caminhos devem estar cobertos de códão, estralejando sob as chancas de quem se meta pela noite negra. Mas a treva não deixa ver a neve. Traço branco, só o da estrada que golpeia, a meia encosta, aqui pertinho, o grande findo preto. Às vezes passa, veloz, um automóvel. Mal se distingue. O ru-ru do motor é rapidamente integrado na lúgubre barulheira geral. Parece uma lufada mais forte do vento que está carpindo, no vale inteiro, a sorte de não se sabe quem. Antigamente os carros, puxados por cavalos, tinham outro mistério. Ouvia-se à distância o seu rodar e só se deixava de ouvir quando já iam muito longe. De passagem, se o vento não era forte, enchiam de ecos o vale. E enquanto se escutava o ruído das ferraduras nas pedras da via e a cantilena das rodas, ficávamos todos a pensar na figura que alarmava a noite, muito embrulhada e metida no canto do «coupé». De onde seria o ramo que ia em procura do tronco familiar? De Castelões? Da Gandra? De Arouca? Viria do Porto, de Estarreja, de Lisboa? Em todo o vale flutuava, então, o segredo. Hoje, com os automóveis, quem passa, passa; a sua vinda não lembra sacrifício; tudo vai depressa, já não há distâncias e anda-se pouco ao frio. Lá em baixo, corre o Caima, mas também a ventania lhe assimila o rumor da água nas suas quedas e serpenteios, por entre pedras limosas, enormes como ovos de ave mitológica. Só o vento existe. Anda a bramar nos pinheiros das declividades, nos castanheiros da Felgueira, nos rochedos, nas locas, por toda a parte. Nem da coruja que mora na igreja velha, escorropichadora de lâmpadas há um ror de anos, ele deixa hoje ouvir o sinistro uuu-gru-grugru. O vento domina tudo. O vale inteiro está transido pelo seu uivar. Quem ousa pôr a cabeça fora de porta numa noite destas, que é, ademais, para ser vivida em casa? Nas velhas cozinhas, em redor da mesa e ao fulgor da lareira, agrupa-se a família. Os velhos e as velhas, remotas esculturas enegrecidas e cariadas pelo tempo; os filhos que estavam ausentes e que puderam vir e os que ainda andam fraldiqueiros a crescer. O fiel amigo, com couves e batatas, é da tradição; quem tem mais posses frita, também, a sua rabanada. O vinho corre, rosado, transparente, sobretudo à hora do magusto, quando as castanhas estalam no fogo. Cada lar parece viver isolado do mundo, sozinho no mundo, como se para lá das paredes negras de fuligem nada mais existisse. Veio, este ano, o António da Zefa, que anda no peixe, em Lisboa; veio o Arturinho, que está de caixeiro no Porto, e veio o filho do Soares lavrador, que estuda, em Coimbra, para que a freguesia tenha a honra de dar também um doutor a Portugal. Mas, logo que chegaram, meteram-se na sua toca. Só o Arturinho passeou ao fim da tarde, na estrada, em frente da venda, o sobretudo novo. A esta hora, cada um pensa especialmente nos seus. Quase todos pobres, não têm remorsos de comer mais do que os outros. Os velhos fazem
grandes silêncios e extraem, com os dedos, as fêveras de bacalhau que ficaram presas nos poucos dentes que o tempo lhes conservou. São bocas mais escuras do que o rosto, são buracos onde as línguas parecem répteis viscosos. Lume da lareira e luz da candeia, com três minúsculos e rúbidos cogumelos no pavio, mal definem as figuras. Estão apenas esboçadas na idade e nas feições. A que é mãe, se há silêncio de jeito, solta: — Por onde andará ele a esta hora? Ninguém responde e dir-se-á que as palavras ecoam na alma da família inteira. «Por onde andará ele àquela hora?» Até os garotos se aquietam perante a emoção dos maiores. Depois, o pai ou o filho já adulto, que não saiu de Portugal, tenta dar consolo: — Em toda a parte se vive... Calam-se outra vez. Raro é o tecto que não tenha o seu ausente. E o Brasil porque está fora do vale, parece, às mães, estar fora do Mundo. — Por onde andará ele a esta hora? As canecas passam de mão em mão e o vinho gorgoleja, vagaroso, nas gargantas. A garotada já largou da mesa e procura, irrequieta, tirar da fogueira as castanhas. O vento canta na chaminé e vem agitar, de leve, a crista do lume. As figuras movem-se lentamente em direcção ao pedaço de laje onde há fogo e a candeia fica a alumiar, sobre a mesa, a travessa vazia com um fio de azeite no findo e um farrapo de couve nos bordos. Lá fora continua o vento, o frio e a negridão. No vale, porém, todas as casas estão despertas, com luzitas laminadas saindo pelas trinchas das portas ou emoldurando os humildes janelicos, que não se divisam de longe. O povo deitase, hoje, mais tarde. O Menino Jesus merece um quartilho de petróleo. Mas não se vê vivalma, nem se ouve coisa alguma além do vento. Só ele anda por aqui, chorando a sua ária nos pobres casebres de quatro paredes baixas, musgosas e suando humidade, nas janelas dos lavradores que já têm primeiro piso, nas árvores, nos caminhos, nos barrocais, juntando ao seu ritmo o das fontes, dos regatos e de algum coração humano que se tenha perdido na serra, com gritos que ninguém ouve. Por quem este choro intérmino? Por aqueles que se descarnaram ao sol, após a grande batalha de que fala a tradição e cujos ossos, cobrindo picotos e veigas, teriam dado ao vale o nome que hoje ele tem? Ou chora, o vento, pela Margarida, que fez chorar os sinos na semana passada; pelo Alfredo, tão novito, que cerrou as pálpebras em Agosto; ou por todos os outros que morreram desde que no vale se ergueu a primeira arribana? Ou chorará pelos que estão vivos, mas ausentes? Pelos que habitam no Brasil, em Lisboa, no Porto e não puderam vir sentar-se hoje ao lume, completando a família? Ninguém sabe. Essa zoada que enche o vale inteiro parece ter por único objectivo aconchegar mais uns aos outros em redor da lareira, à beirinha do fogo que amorna os corpos até a hora do sono e vai atenuando na alma dos velhos o efeito da pergunta que fazem a si próprios: «Ainda estarei cá no Natal que vem?».
Ferreira de Castro, Os Fragmentos. Guimarães Editores, 1974 (texto escrito segundo as regras anteriores ao Acordo Ortográfico)