Educacao completa com uma cidadania saudavel revista cei jan2010

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Uma educação completa, com uma cidadania saudável Título: Uma educação completa com uma cidadania saudável Autor: Marco Alexandre Carvalho Bento Publicado em: In: Cadernos de educação de infância. - Nº90 (Maio/Agosto), p. 47

Sabemos que o conceito de educação engloba os processos de ensinar e aprender. Sabemos ainda, que a educação é um fenómeno observado em qualquer sociedade e nos grupos que a constituem. Contudo, é a Sociedade, no sentido mais lato, a grande responsável pela manutenção e perpetuação da Educação. Desde há muitos anos, que a sociedade educa as gerações que se seguem, transpondo os modos culturais de ser, estar e agir, e que são necessários à convivência e ao ajustamento de um cidadão à sua sociedade. Estamos a falar de um processo de sociabilização e aquisição de valores, que é exercido nos espaços de convívio social. Não obstante, dessa vital importância, a educação amplificou-se no tempo, através dos processos exercidos pela educação formal, nos espaços escolares. A escola ganha, a cada dia que passa, mais funções que aquelas que estavam habitualmente previstas. As áreas da Língua Materna, da Matemática, das Ciências, da História, … vão sendo atravessadas transversalmente pelo novo papel social da escola, fundindo-se, de vez, os conceitos de Escola e de Sociedade, na tarefa de educar. Deste modo, a nova educação baseia-se no conceito de educar para a cidadania. Assim, ser um cidadão pleno implica desenvolver conhecimentos, desenvolver a compreensão, desenvolver valores e desenvolver atitudes, que visem um melhor e mais activo desempenho na sociedade. É necessária mais informação e consciência dos direitos e dos deveres sociais, mas, acima de tudo, uma maior responsabilidade para compreender que, ser cidadão, implica ter influência na sociedade em que se insere e marcar a diferença nas suas acções. Ao reflectirmos sobre o conceito de cidadania, podemos verificar que a sua vasta influência aplica-se e estende-se aos mais diversos assuntos, como os da violência, da saúde, do ambiente, da deficiência, do racismo, entre outros,


que estão incluídos e referidos nas novas orientações curriculares dos programas educacionais do Ensino Básico, em Portugal. Todavia, existe um tema, que embora incluído neste extenso rol de assuntos de educação para a cidadania, vai sendo esquecido ou, para não cometer injustiças, vai sendo pouco lembrado: a defesa e protecção dos animais. A protecção dos animais, numa sociedade que se quer evoluída e contemporânea, não pode ser esquecida, para não corrermos o risco da próxima geração continuar com o processo de transposição educacional bloqueado ou parado. Quando a UNESCO promove e publica a Declaração Universal dos Direitos dos Animais é, com toda a certeza, para que se consagre universalmente o respeito e a protecção dos mesmos. Evidentemente, que esta declaração tem que ser reconhecida numa perspectiva de educação cívica. Afirmam-se assim os direitos dos animais, definindo limites e obrigações aos seres humanos na sua relação com eles. Enquanto docentes, penso que devemos sensibilizar as crianças para valores que apelem ao respeito na forma de cuidar os animais, fazendo com que as crianças aprendam a amar os animais e compreendam as suas necessidades e sensibilidades. O tipo de diálogo e expressões que utilizamos quando falamos de animais, têm que ser cuidados e pensados, para que quem os ouve, não trate os animais como um ser qualquer, mas como um ser vivo, que necessita de atenção, cuidados, alimento e, principalmente, de companhia para toda a vida, já que, a não ser que o abandonemos, os animais de estimação acompanham-nos sempre, nos bons e nos maus momentos. Uma criança, se ensinada para ter valores e sentimentos pelos animais, apreende-os, cumpre-os e atribui-lhes toda a importância. Se lhe for ensinado que é um dever cívico e moral socorrer um animal atropelado, não o deixando ferido na rua a sofrer, se souber que nunca deve abandonar um animal, seja porque motivo for, se souber que um animal velho e doente precisa mais da sua atenção e companhia, do que enquanto era jovem e saudável, se souber que deve alimentar um animal faminto que vê na rua, se souber que lhe deve dar abrigo, se souber que o deve mimar e dar-lhe atenção, então, uma criança torna-se plena de valores, porque consegue olhar para um animal e humanizálo como merece.


Evidentemente, que nada ocupa o espaço de alguém, no coração de uma criança, e sabemos que o espaço aumenta na mesma proporção das suas preocupações e das suas valorizações. Torna-se evidente, que a pouca ou muita importância atribuída aos animais, por parte dos adultos, e consequentemente transmitida às crianças, é um resultado de experiências vividas na infância. Assim, torna-se fundamental perceber, que vivências estão na origem de uma boa ou má influência sobre as crianças, de modo a que estas desenvolvam atitudes e valores para uma melhor cidadania. Deste modo, ouvimos ao longo da infância, muitas expressões que nos influenciam e, muitas vezes, através do nosso subconsciente, acabamos por recear ou não ter o respeito devido pelos animais. Existem na nossa linguagem oral expressões bastante preconceituosas relativamente aos animais, que indubitavelmente não abonam a favor de uma cidadania saudável relativamente a esta questão, tais como, “Estás abaixo de cão”, quando se refere uma situação de falta de respeito ou sem mérito; “Ah! Cães do Nisa!”, quando se refere a crianças malandras; “Andas com a cachorra” ou “Andas com o burro”, quando se refere a alguém de mau humor; “Apanhaste a raposa”, quando se refere a um aluno que reprovou; “És burro todos os dias”, quando se refere a alguma parvoíce; “Caíste da boca aos cães”, quando se refere a alguém mal vestido; “Caíste na boca do lobo”, quando se refere a alguém que foi apanhado numa armadilha; “Estás com cara de cão”, quando se refere a alguém muito irritado; “São como cão e gato”, quando se refere a crianças em conflito; “Estás entre o lobo e o cão”, quando se refere a uma pessoa numa situação complicada e sem saída; “Fizeste um galo”, quando se refere a um inchaço na cabeça provocado por uma pancada; “Vamos atirar-te aos lobos”, quando se refere a abandonar alguém; “Levar uma vida de cão”, quando se refere a uma vida cheia de dificuldades; “És macaco de imitação”, quando se refere a alguém a copiar outro; “És mau como as cobras”, quando se refere a alguém muito violento; “És uma raposa”, quando se refere a alguém muito matreiro; “Tens bicho-carpinteiro”, quando se refere a uma criança irrequieta; “Tens um trabalho de cão”, quando se refere a uma tarefa difícil; “Se não comeres a sopa, o lobo vem buscar-te” ou “Se não te portas bem, o lobo vem comer-te”, quando se refere à intimidação de uma


criança por parte do adulto; entre muitas outras. No entanto, existe ainda um outro fenómeno de preconceitos criado pela literatura infantil. Assim, quantas histórias infantis, nomeadamente, contos de Grimm ou de Andersen, retratam pejorativamente os animais e provocam inimizades entre as crianças e os lobos ou as raposas? Bem, poder-se-ia dizer que esta questão era verdade, mas considerando o facto de muitas destas histórias serem adaptações dos contos de Charles Perrault, e sabendo que este escrevia para as donzelas da corte francesa, contribuindo com as moralidades dos seus contos, então as metáforas não podem ser entendidas dessa forma preconceituosa. A sociedade desenvolve rejeição e não valorização pelos animais, através das atitudes que evidencia ou com expressões que utiliza. Contudo, é através da escola, que muitas crianças serão moldadas na forma de interpretar, pensar, agir e ser, através de simples actividades de reeducação. Em suma, sabemos que o processo de educar engloba a capacidade de pensar e interpretar, através de experiências e construção de conhecimento e, sem dúvida, que se torna fundamental vivenciar momentos, conceitos e saberes, para que estes possam ser adquiridos. Assim, a transposição de novos valores no processo educativo de uma sociedade actual, pode ser feita na plenitude e, deste modo, iniciarmos uma ampla e verdadeira educação cívica, que seja real e não apenas intelectual.

Professor do 1.º Ciclo do Ensino Básico, Marco Alexandre Carvalho Bento

Bibliografia

NEVES, Orlando (2000). Dicionário de Expressões Correntes. Lisboa. Círculo de Leitores.


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