Devaneios

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e v a n e i o s D

Todo o cinema goiânio

Foto: AITOR SÁEZ

edição primeira, abril 2013

A CÂMERA DÁ VOZ ÀS COMUNIDADES p. 4

JOÃO BENNIO p. 16 FESTIVAL GOIÁS VELHO

p. 30

LISA FRANÇA

Uma vida

de filme

sem pelicula p. 38


Fazer cinema CINEMA E ANTROPOLOGIA

A câmera dá voz às comunidades Luísa Pereira Viana

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audiovisual tem deixado de ser instrumento de pesquisa para ser o produto final da Antropologia. Essa é uma área da Ciência que estuda o ser humano, a sociedade e a cultura. Antes, utilizada como processo de pesquisa, o vídeo vem sendo visto também como produto final. O cruzamento entre audiovisual e Antropologia gerou uma área chamada Antropologia Visual, que usa dos suportes da imagem para descrever e analisar uma cultura ou determinado aspecto dela. A produção audiovisual, no entanto ultrapassa os sentidos do vídeo etnográfico e se torna instrumento de representação social, cultural e política.

HISTÓRIA Para entender um pouco sobre vídeo etnográfico é necessário conhecer alguns dos seus precursores. É importante lembrar que a história do Cinema não é fei-

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ta de forma linear, então os fatos ao mesmo tempo em que são independentes entre si, dialogam e interferem ao mesmo tempo. Considerado um dos pais do filme documentário, o estadunidense Robert Joseph Flaherty, produziu “Nanook, o esquimó”, em 1922. Essa produção é o primeira longa metragem a apresentar abordagem documental, que retrata o cotidiano de uma família de esquimós, apesar da maioria das cenas terem sido encenadas e não necessariamente de forma espontânea. Flaherty mostrava para os esquimós as gravações que fazia, inaugurando uma nova técnica, que mais tarde ganhou o nome de método compartilhado. Por meio desse método, as pessoas retratadas no filme também participam e compartilham da produção. Quem também se destacou foi o francês Jean Rouch, que trabaljunho 2012

hou em países africanos de colonização francesa, como a Nigéria. Fez uma série de filmes que inauguraram muitos procedimentos. Entre eles, a reencenação, a pesquisa sociológica, o psicodrama, a atuação pura e simples, a trilha sonora criativa e ficcionalizada, a filmagem descritiva, entre outros. O objetivo era o de representar uma realidade densa e viva. Entre junho de 1936 e fevereiro de 1938, Margaret Mead e Gregory Bateson empreenderam em Bali, no vilarejo de Bajoeng Gede, uma experiência científica de extrema importância para a Antropologia. O casal se propôs a fazer estudos de personalidade e comportamento do povo balinês, por meio de fotografias e vídeos. O resultado dos experimentos foram 25 mil negativos fotográficos e quase 7 mil metros de película cinematográfica que deram origem ao livro “Balinese Character:


A Photographic Analysis” e a seis filmes com duração de 10 a 20 minutos. Eles formataram o vídeo e as fotografias de forma que os textos eram colocados ao lado das imagens fotográficas. O método do casal inaugurou uma nova forma de se ver a fotografia, que passou a ser vista não mais como mera ilustração, mas com a equivalente importância do texto escrito. “É uma questão até de linguagem, como o texto e a imagem tem importância”, diz Rafael Coelho, professor da FACOMBUFG. No Brasil, o francês Claude LéviStrauss já realizava várias pesquisas etnológicas em suas expedições ao interior do país. Durante as expedições, com o objetivo de integrar as áreas pouco exploradas

O audiovisual ultrapassa os sentidos do vídeo etnográfico e é instrumento de representação cultural, social e política do país, surgem vários registros audiovisuais dos povos indígenas. O Major Luiz Thomaz Reis, responsável pela Seção de Cinematografia e Fotografia da Comissão Rondon, se destaca na realização de vídeos etnográficos, produzindo em suas primeiras obras video-

gráficas, o filme Rituaes e festas Bororo, em 1917. A Comissão Rondon foi um conjunto de expedições chefiadas pelo Marechal Rondon, com o objetivo de construir uma linha telegráfica, ligando o Mato Grosso ao Vale do rio Madeira no Amazonas. Os registros audiovisuais, da época das expedições, fizeram do Brasil pioneiro na produção etnográfica. No contexto brasileiro atual, é importante ressaltar outros nomes como o do jornalista Washington Novaes, que produziu em 1985 a série Xingu, considerada grande documento de pesquisa da cultura indígena. Dados retirados da Revista de cinema Contracampo e de entrevista com o professor Rafael Coelho.

Indígenas trabalham com audiovisual VIDEO NAS ALDEIAS

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Fazer cinema PESQUISA DE CAMPO É bastante relevante a discussão de como fazer o campo e as etapas que o antecedem. A Antropologia tradicional, sem o uso dos recursos audiovisuais, realiza uma série de etapas que precedem o campo, como a leitura de bibliografias, pesquisa em estudos que já foram realizadas anteriormente, e também diálogos com os povos retratados no estudo. Além da solicitação de autorizações, entre outros. Na Antropologia Visual todas essas etapas também são realizadas, mas com uma diferença: a pesquisa é exploratória, pois o pesquisador grava todas as suas experiências em campo e não sabe o que vai acontecer nesse processo. O que ele faz, é se utilizar do auxílio dos integrantes

Na antropologia a pesquisa é exploratória, o pesquisador utiliza do auxilio da comunidade da comunidade retratada para lhe guiar diante dos acontecimentos. Quando o professor Rafael Coelho produziu em 2005 “Diário da Iniciação Xavante”, realizou uma pesquisa exploratória. Para ele, isso possui algumas desvantagens, pois não há como saber a ordem dos acontecimentos do ritual a ser documentado. Por isso foi necessário que, a todo instante, um xavante o avisasse aquilo que iria acontecer. O ritual de Iniciação Xavante acontece de sete em sete anos

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e dura quatro meses. Por isso o método de pesquisa exploratória foi o mais viável para o professor. Ele gravou todas as suas experiências no local, que corresponderam a 40 horas de gravações, resultando em um vídeo de cinco minutos e compartilhado com os xavantes.

tados através da visão de outras pessoas. Esse quadro mudou a partir do momento em que as comunidades indígenas começaram a usar os meios de comunicação para lutarem pelos seus direitos. Buscando assim, o exercício da cidadania e um lugar dentro da sociedade.

Na Antropologia visual existem os tempos fracos e os fortes. A realização de uma dança é o tempo forte. E os seus ensaios são os tempos fracos. Coelho ilustra essa questão utilizando o exemplo do filme “Entre Atos”, em que documenta o ex-presidente Lula na época de eleição atrás do palanque. Esses “bastidores”, por exemplo, representam o tempo fraco. Entender isso é essencial para decidir o que vai ser filmado, tanto para o Cinema Documental quanto para a Antropologia Visual, afirma o professor.

Muitas conquistas foram realizadas a partir disso. A abertura das universidades públicas para estudantes indígenas é um bom exemplo disso. E também o fim da tutela indígena pelo Estado, que teve início no período colonial, com a Constituição de

AUTO-REPRESENTATIVIDADE Cada vez mais as pessoas tem se apropriado das novas tecnologias para se representarem na sociedade. “A discussão mais contemporânea no audiovisual é sobre como a população tem se apossado dos meios de comunicação”, diz Coelho. Como nos casos da Primavera Árabe e das manifestações do Fora Marconi. As pessoas têm usado as redes sociais e demais meios de comunicação para expressar sua opinião, se posicionar sobre determinado tema e lutar pelos seus objetivos. Essa comunicação compartilhada também é notada entre os povos indígenas. Historicamente, eles sempre foram represenjunho 2012

Os povos indígenas sempre foram representados através da visão de outros 1988. A lei garante em seu artigo 232 que “os índios, suas comunidades e organizações são parte legítima para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Essas conquistas foram resultantes da união dos povos indígenas em uma única causa. Dessa forma, a categoria índio passa a ser usada também por eles mesmos, como forma de organização, não pelo sentido étnico da palavra, mas por representar objetivos e estratégias comuns. A comunicação vem se mostrando como instrumento político não só do índio, mas também dos quilombolas e de outras co-


CINEMA E ANTROPOLOGIA

Momento de uma gravação VIDEO NAS ALDEIAS

munidades que estão percebendo a utilidade da câmera para mostrar a sua cultura e lutar por seus direitos. Em seus trabalhos, o professor Coelho procura manter o foco nessa discussão. Para isso, realiza oficinas de comunicação com de blogs e do próprio audiovisual. Segundo ele, qualquer profissional da comunicação ou antropólogo que queira retratar determinada comunidade, deve entender que as pessoas tem cada vez mais domínio das tecnologias e sabem usar isso para ter voz na sociedade. “Uma pessoa que faz um vídeo e posta no blog não é jornalista, um índio quando faz um

“Uma pessoa que

faz um vídeo e posta no blog não é jornalista, um índio quando faz um trabalho e posta também não é antropólogo, mas eles passaram a reivindicar o direito de falar” trabalho e posta também não é antropólogo, mas eles passaram a reivindicar o direito de falar” afirma. nº 1

Washington Novaes cita Maricá Kuikuro, jovem Kuikuro, grupo indígena de maior população na região sul do Parque Indígena do Xingu, como exemplo de índios que utilizam do audiovisual para construírem sua própria linguagem e representatividade. O projeto “Vídeo nas Aldeias” surgiu em 1986, como experimento do francês Vincent Carelli. Seu objetivo era apoiar as lutas indígenas por meio de recursos audiovisuais e produção compartilhada com as tribos. Essa experimentaç ão foi algo pioneiro na área de produção audiovisual indígena. Página seguinte junho 2012

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Fazer cinema DESAFIOS

Investimento x qualidade O que determina o sucesso de público de um filme nem sempre é um grande orçamento SARAH MARQUES

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anhar um Oscar de melhor filme é um dos prêmios mais consagrados que um diretor pode esperar de sua produção. Desde os primórdios desta cerimônia, os filmes premiados com a estatueta de ouro tinham algo em comum. Eram considerados grandes sucessos do cinema com nomes importantes na produção, direção e elenco, além de pertencerem à grandes companhias e terem grandes orçamentos. É o caso de filmes como Titanic (1998), Gladiador (2001), ...E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1940), Casablanca (1944), A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1966), entre outros. Mas, a partir de 2009, isso vem mudando. “Quem quer ser um milionário?” (Slumdog Millionaire), um filme britânico adaptado de um livro escrito por indiano, traz a história de um jovem das favelas de Mumbai que acaba ganhando o prêmio máximo em um programa de perguntas e respostas na TV indiana. O filme foi premiado com o Oscar e chamou a atenção dos cinéfilos

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para produções não hollywoodianas. Em 2012 a Academia surpreendeu mais uma vez na escolha de melhor filme. Concorrendo com obras de grandes diretores como Woody Allen, Martin Scorsese, Steven Spielberg, O Artista (The Artist) ganhou a estatueta e surpreendeu a todos. O motivo? O filme, uma colaboração da França e da Bélgica, que se passa na década de 1920, foi filmado em preto e branco, e é totalmente mudo.

Em 2012 Academia surpreendeu mais uma vez na escolha de melhor filme Com isso, uma pergunta surgiu entre os aficionados por cinema: é preciso que um filme seja uma superprodução hollywoodiana, como os campeões de bilheteria para ser bom e merecedor do maior prêmio da indústria cinematográfica? Welliton Carlos, jornalista e cijunho 2012

néfilo, diz que nem sempre um orçamento bilionário faz com que o filme seja excelente. Para ele, o que leva o público ao cinema para assitir a um filme é a divulgação, que deve ser gigantesca. “Isso depende da época e do gosto do público. Ele muda conforme o tempo, décadas, temporadas”. É possível fazer um filme emocionante com pouco orçamento, dentro de uma locação apenas, como O Quarto do Pânico Panic Room, 2002, mas também é preciso muito dinheiro para investir na divulgação do filme na mídia. “Se o filme não tem essa divulgação caríssima, ele não se torna líder de bilheteria”, afirma Carlos. Ele cita o caso do filme Psicose (Psycho, 1960), do diretor Alfred Hitchcock, que custou apenas 800 mil dólares. É um clássico, visto por todas as gerações e mais barato do que qualquer filme feito no Brasil, explica. Falando sobre o cinema produzido em Goiás, ressalta que, com um orçamento modesto, os cineastas do estado têm produzido bons filmes. Mas a falta de verba para publicidade é o que


Fazer cinema

O curta-metragem “Epifania” nasceu de uma única pergunta: “Qual é o sentido da vida?”. Os diretores Marco Ferreira e Ronaldo Moura então realizaram um vídeo de 1 minuto que despertasse várias respostas. Com a boa aceitação do público e a repercussão do vídeo, eles perceberam o material rico que tinham em mãos, e resolveram estende-lo. Mas para isso era necessário criar uma boa história, que prendesse a atenção. Marco Ferreira roteirizou o projeto, e junto com Ronaldo Moura montaram uma equipe e saíram em busca de atores e locações. Os atores Alan Foster e Larissa Alves, abraçaram o projeto antes mesmo de ter acesso ao roteiro, e foi o que bastou para o sucesso do curta. Com uma equipe totalmente confiante, os diretores não tiveram dificuldades em conduzir o projeto. Após muitas filmagens, montagens e finalizações, “Epifania” saiu exatamente da forma como foi planejado.

Kaly Oliveira

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OUTROS CINEMAS

OUTROS CINEMAS

TRASH aqui e ali NÁDILLA ALVES

Ouro, espaço voltado para a cultura Goiana, se destaca a partir do ano de 2003 com a Mostra Trash. Dirigida por integrantes da Monstro Discos como Márcio Mário da Paixão Júnior, a mostra obteve público considerável até seu último ano de existência.

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ão se preocupe Dave,nós só vamos matar você”. Palhaços Assassinos do Espaço Sideral é o filme que traz tal frase em um de seus diálogos memoravelmente cômicos e fora de lógica. Palhaços tratados como alienígenas que invadem a Terra e matam pessoas aprisionando-as em casulos de algodão doce. Totalmente fora da realidade, o filme traz a partir de acontecimentos esdrúxulos(como matar um policial com tortas ácidas), um humor advindo do terror e principalmente a partir daquilo que é sem sentido. É assim que mergulhamos no mundo do cinema trash. Popularmente tratado como algo mal feito e sem prestígio, o trash tem cada vez mais arrebatado públicos. Existem aqueles que se falam sobre filme, sempre terão uma referencia trash para fazer, porém é muito comum encontrarmos por ai alguém que diga: AH! Já vi algum filme desse. Evandro Gregório, coordenador comercial da empresa Spumatech e cinéfilo de carteirinha, se enquadra na segunda categoria de fãs do trash. “A minha op-

Findada em 2010, a mostra teve grandes exibições em seus anos de atividade. Filmes produzidos por alunos de ensino médio obtiveram espaço, mas não só. Cineatas brasileiros, como Ângelo Lima, participaram da mostra, além de grandes nomes do trash nacional como José Mojica e Ivan Cardoso. Em 2008 Ângelo participou com o filme Glauber é Rocha.

Capa de Palhaços Assassinos do Espaço Sideral

nião se diferencia de acordo com o tema do filme e onde ele quer chegar, o filme trash ao meu ver, vem para competir fortemente com os de boa qualidade e de grande produção pois quando o assunto é bom, independente da qualidade do filme este consegue prender a atenção de quem se interessa pelo assunto”.

TRASH GYN Marcado pelo bizarro e pelo exagero, o trash desperta opiniões adversas sobre si que vão de um extremo a outro. Em meio a confusão de opiniões o Cine nº 1

Em um tom de humor Ângelo diz que seu filme possui traços do trash por que não tem pessoas babando colorido ou coisa mais bizarra. Segundo ele, Glauber é Rocha é uma produção experimental que acabou se enquadrando na mostra trash do ano de 2008 pela produção que ele mesmo diz ter retirado do lixo de suas pesquisas sobre Glauber Rocha. Recorrendo ao literal da palavra trash em inglês Ângelo Lima finaliza dizendo que hoje o que é mal feito, ou seja o que é lixo em produção cinematográfica é incluído no gênero trash. junho 2012

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Cine Goiano ORIGENS

João Bennio

e os primórdios do cinema Nicole Reis

Areciadores do legado de Bennio para o cenário cultural goiano falam sobre as dificuldades enfrentadas pelo artista na implementação da produção cinematográfica local.

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m dos pioneiros da produção cinematográfica no estado de Goiás, o mineiro João Bennio Baptista deixou marcas igualmente indeléveis em outros âmbitos da vida cultural goiana, exercendo atividades no teatro, televisão, rádio e jornalismo. Nascido em Mutum, em 1927, Bennio muda-se para Goiânia em 1955, cidade pela qual se apaixona e onde decide desenvolver suas atividades artísticas. Ciente das inúmeras barreiras econômico-políticas à expansão do universo cultural goianiense, Bennio afiançou, certa vez: “Aqui [em Goiás], nós não temos que abrir passagem, nós temos que dinamitar o caminho”. Os esforços monumentais do artista em prol da agitação da vida cultural no estado constituíram eficiente dinamite, produtora

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de resultados inquestionavelmente profícuos e duradouros. Embora chegado cedo ao estado – a primeira sala de cinema tendo sido inaugurada em 1909, na Cidade de Goiás – a sétima arte não angariou imediatamente apreciadores capazes de se transformarem em produtores cinematográficos locais. Apenas em 1968 temos a realização do primeiro longa-metragem goiano, “O diabo mora no sangue”, produzido por João Bennio e dirigido por Cecil Thiré. A intensa atividade criadora de Bennio pode ainda ser exemplificada pelos filmes Tempo de violência (1969); Simeão, o Boêmio (1969); O Azarento (1973) e Um Homem de Sorte (1973), produções dirigidas pelo artista e nas quais ele também atuou. Como ator, participou junho 2012

ainda de Candinho (1954); O Leão do Norte (1975) e A Mulher que Comeu o Amante (1976). O vanguardista de Mutum não encontrou terreno ideal à gênese de uma produção cinematográfica goiana; fez-se necessário o árduo desbravamento das precárias condições existentes no Estado, a fim de que as atividades vinculadas ao cinema pudessem ser impulsionadas. Jornalista, advogado e poeta, Oscar Dias participou ativamente da vida de Bennio, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento de seus trabalhos teatrais. Grande amigo do artista, Oscar compartilhou com ele uma rica experiência cultural, permeada por alegrias e incontáveis desafios.


ORIGENS

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Cine Goiano DIRETORES

O Estado suma

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+

diretores produções

NATHÁLIA BARROS

Nomes como Pedro Novaes e Alyne Fratari refletem o crescimento das produções audiovisuais que ocorre no estado

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cinema produzido em Goiás cresceu bastante, principalmente nas úl¬timas décadas. Des¬de os anos 2000, muitas produções goianas vêm se destacando. “O cinema feito aqui evoluiu muito nos últimos dez anos. Saímos de uma produção quase inexistente para um momento muito posi¬tivo. O ano de 2011 foi bastante sim¬bó¬lico, já que vários filmes produzidos aqui começa¬ram a despontar em grandes festivais”, afirma Pedro Novaes, diretor goiano. “As pessoas estão apos¬tando mais. Estão experimentando a linguagem cinematográfica, com propostas estéticas mais claras e ousadas. Essa preocupação vem de agora, porque antes era só produzir e estava tudo certo”, complementa a cineasta Alyne Fratari. As leis municipais e estaduais de incentivo à cultura que fo¬ram criados contribuíram para esse relativo cresci¬mento das produções audiovisuais. O surgimento de prêmios e festivais como o FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental) e a criação da facul¬dade de Audiovisual na Universidade Estadual de Goiás (UEG) – que possibilita o aprimora¬mento técnico dos goianos e preenche o vazio dei¬xado pelo fim do curso de Rádio e TV da Uni¬versidade Federal de Goiás (UFG) – tam¬bém cola¬boraram para essa leve evolução do cinema em Goiás.

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Apesar da inegável melhora nas produções regionais, o incentivo à cultura em Goiás ainda é fraco comparado ao de estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. “As leis municipais têm ajudado, mas estão muito longe daquilo que consideramos como o ideal. O cinema é uma arte cara e as políticas públicas dedicam uma atenção pouco cuidadosa às atividades culturais”, explica Pedro. “Nós queremos um estado que não seja preguiçoso e que invista de fato. Nós estamos em uma briga muito séria devido à falta de investimentos ex¬pressivos. É impossível fazer um filme com apenas 30 mil”, completa Alyne. “Também sofremos com a falta de mão-de-obra qualificada. Muitas ve¬zes, temos que trazer gente de fora para trabalhar aqui. Fora o curso da UEG, não há outros investimen¬tos significativos na formação”. Embora as dificuldades existam, vários nomes surgiram nos últimos dez anos como Pedro Novaes e Alyne Fratari, que trouxeram para o estado várias produções de qualidade. Porém, eles não são os únicos que se destacam e produzem cinema em Goiás, também há profissionais como Simone Caetano, Carlos Cipriano, Cláudia Nunes, Lourival Be¬lém, Luiz Eduardo Jorge, Jarleo Barbosa, Márcio Jr., Márcia Deretti, entre vários outros.


DIRETORES

Pedro Novaes

diretor goiano 37 anos

“Tenho uma trajetória cheia de

curvas, mas sempre tive um pé na produ¬ção audiovisual”

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á oito anos, Pedro Novaes, 37, resolveu abandonar sua área de formação, Geografia, para trabalhar com Cinema. “Tenho uma trajetória cheia de curvas, mas sempre tive um pé na produção audiovisual”, conta. Por ser filho do jornalista e documentarista Washington Novaes, Pedro ex¬plica que possuía, desde cedo, essa paixão pelas produções cinematográficas. Aliás, uma das ra¬zões para começar a dirigir e produzir veio de sua própria história familiar. “Vivi muito dentro desse meio audiovisual. Fui bastante influenci¬ado pela convivência com meu pai e irmãos, que também trabalham na área”, diz. “Tanto que os meus pri¬meiros trabalhos foram com eles”.

Pedro Novaes já trabalhou com diversos formatos do audiovisual. Diri¬giu três séries de docu¬mentários – entre elas Quando a Ecologia Che¬gou, que participou de vários festivais no Brasil e no Exterior –, dois curtas de ficção e um lon-

Uma das rações para começar a produzir veio de sua própria história familiar ga-metragem. O primeiro filme que pro¬duziu foi o curta Corra Coralina Corra. O roteiro era do seu irmão João Novaes, mas Pedro foi convi¬dado para ser diretor. “A pro¬dução era uma ho¬menagem a poetisa nº 1

Cora Coralina e fazia algumas brincadei¬ras com seus poemas”, explica. Em 2009, Pedro lançou o pri¬meiro longa-metragem, o Cartas do Kuluene, que es¬treou no Festival de Cinema Internacional de São Paulo. O filme retrata a história de três perso¬nagens reais. A narra¬tiva é construída e se desenvolve a partir da troca de cartas imaginárias entre eles. Pedro Novaes é um dos narradores e os outros dois são Buell Quain, um antropólogo ameri¬cano que veio para o Brasil por volta de 1930 e se suicidou entre os índios Krahô, no Maranhão. E Paul Berthelot, um anarquista fran¬cês que esteve em terras brasileiras no começo do século 1920, junho 2012

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DIRETORES

fazer é mais complexo. É muito mais difícil conseguir dominar e sustentar a lin¬guagem do cinema em uma produção longa do que fazer isso em um curta”. Atualmente, Pedro Novaes trabalha na finalização do seu novo curta, o Nostalgia. “Ele é um experimento no mesmo território que o Cartas do Kuluene, no sentido de que mais uma vez o chamo de documentário. Porém, é algo que também está a meio caminho da ficção”, relata. O Nostalgia fala sobre o “saudosismo transfigurador” de um vaqueiro que sente sauda¬des do pas¬sado. Como o Cartas do Kuluene, a idéia do curta Nostalgia também nasceu de outro tra-balho feito por Pedro. “Ele surgiu a partir de um depoimento que gravei de um sertanejo, o Seu Valdo¬miro, na Chapada dos Veadeiros em 2005. Eu estava fa¬zendo outro documentário, o Quando a Ecologia Che¬gou, quando ele falou so¬bre a época em que era peão de boiada,

“Nós só começamos a fazer o Cartas do Kuluene porque subestimamos o que seria fazer um longa-metragem.

É muito mais difícil conseguir dominar e sustentar a linguagem do cinema em uma produção longa do que fazer isso em um curta” PEDRO NOVAES

contando o tanto que o passado era maravilhoso e o presente ruim”, conta Pedro. “Sempre tive von-tade de usar essa fala como o plano de fundo de um documentário. Um docu mentário poético”.

Apesar do curta Nostalgia já estar finalizado em mídia digital, Pedro en¬frenta dificuldades financeiras para lançálo em película. “O filme é um projeto que tem o apoio da lei municipal de incentivo, mas ainda estamos tentando captar outros recursos e patro¬cínio como a Lei Audiovisual ou a Lei Goyazes. Nós nos inscrevemos nessas leis e estamos espe¬rando o re¬sultado para finalizá-lo em película”, relata. Pedro Novaes conta que, hoje, a maioria dos festivais já exibe as produções em formato digital, mas que a película ainda tem um impacto relevante e faz diferença no mercado e na repercussão do filme. Além disso, segundo Pedro, há outro motivo para que o curta Nostalgia não seja apenas uma mídia digital. “Ele ficou muito bo¬nito e acha¬mos que merecia estar em forma de película.”

Filmografia Os Vizinhos da Chapada (2005) Quando a Ecologia Chegou (2006) Democracia in Natura (2006) Corra Coralina Corra (2005) De Partida (2008) Cartas do Kuluene (2010)


Cine Goiano

Alyne Fratari

“Tenho consciência

de que não são filmes fáceis e felizes, pois eles pos¬suem uma estética pesada.

cineasta goiana 33 anos

Foto: NATHÁLIA BARROS

Eu não tenho muito pudor nem para o bem e nem para o mal, apesar de gostar dos finais que não são felizes. Eu era uma pessoa descobrindo o mundo de outra, não estava lá como alguém melhor”

ALYNE FRATARI

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azer cinema, para mim, é como respirar. Não conseguiria viver de outra maneira” afirma a diretora goiana Alyne Fratari, 33 anos. Ela trabalha com produções audiovisuais há uma década e já participou de diversos festivais e mostras de cinema pelo país. A sua aproximação com o audiovisual ocorreu de forma natural. “Desde a época da Faculdade, quando eu fazia Mar¬keting, havia uma inqui¬etação muito grande dentro de mim, que eu não sabia de onde vinha. E então foi surgindo uma Alyne cheia de questionamentos, mas que sempre foi muito imagética”, relata a cineasta. “Eu aca-

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bei indo parar no cinema. Hoje, não sei e não quero fazer outra coisa.”

caminho levá-lo”, comenta a diretora.

Embora Alyne Fratari já tivesse experiência em sets de filmagens, sua pri¬meira pro¬dução como diretora foi Histórias que moram no mercado. “Eu comecei a escrever o roteiro com o meu amigo Carlos Cipriano em 2003. Foi um momento muito bom, pois aprendi bastante. Aprendi a ter paciência com a montagem, a respeitar meus li¬mites e alargálos”, fala. Alyne conta que produzir o Histórias que moram no mercado foi uma primeira experiência difícil. “Teve momentos durante as gravações em que eu chorava e pensava em desistir. Já não sabia mais como continuá-lo ou para que

Alyne Fratari já produziu oito filmes autorais, entre documentários e ficção. De acordo com elas, todas as suas produções exploram temas difíceis. “Eu sempre busco a repre¬sentação do extraordinário, do fantástico e das situações limites do ser humano. Faço um cinema muito forte como proposta, com uma diegese muita intensa”, explica. “Tenho consciência de que não são filmes fáceis e felizes, pois eles pos¬suem uma estética pesada. Eu não tenho muito pudor nem para o bem e nem para o mal, apesar de gostar dos finais que não são felizes”.

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DIRETORES

O documentário poético Meu batom tem um quarto é um exemplo dessa temática pe¬sada. O filme retrata um universo pouco conhecido e chocante: a vida de strippers e garotas de programa que trabalham em cines teatros de Goiânia. “As pessoas sempre me per¬guntam muito a respeito do Meu batom tem um quarto. Elas ficam impressionadas com o fato das meninas te¬rem confiado muito em mim. Só que era uma situação de igual para igual. Eu era uma pessoa descobrindo o mundo de outra, não estava lá como alguém melhor”, conta. “Acredito que houve uma troca e um respeito muito grande. Eu consegui extrair de uma maneira muito res¬peitosa, mas ao mesmo tempo assustada, a realidade daquelas garotas”. Embora tenha sido uma experiência difícil e que mexeu bastante com ela, Alyne acredita que foi gratificante descobrir aquelas pes¬soas como escolha. “Elas escolheram estar ali. Não estavam ali porque eram coitadinhas”. Com o tempo, Alyne percebeu que prefere criar histórias ficcionais a fazer documen¬tários. “Hoje, eu sei que gosto da magia da ficção, do que posso desconstruir” diz. “Se ainda namoro fazer

algum tipo documentário, é muito mais no sentido de construção da realidade que está ali exposta.” O seu primeiro filme de ficção foi Sexodrama, que narra a tragicômica relação de amor e ódio entre a atriz Lili e Carlão, diretor de filmes pornô. “Era um roteiro muito pesado do Di Moretti, que inicialmente se chamava Relaxa e Goza. A história era bem di¬fícil, com um palavreado bastante vulgar, mas teve uma turma muito grande trabalhando nele”, explica. “Depois do Sexodrama, eu me interessei cada vez mais por ficção”. O curta-metragem Descrição da ilha da saudade ou Baudelaire e os teus cabelos, cuja histó¬ria mostra como a beleza pode destruir uma relação de amor, é um dos marcos na carreira de Alyne. “Eu consigo compreender o meu amadurecimento com muita clareza de um filme para o outro. Pesquiso muito meu próprio trabalho para entender o estilo que venho construindo”, co¬menta. “E eu estava nesse processo de amadurecimento quando fiz o Descrição da ilha da saudade ou Baudelaire e os teus cabelos. Com ele, percebi que o meu caminho era por ali...

Eu realmente acredito que o filme marca um movimento da minha expressão como diretora. No entanto, eu arrisquei muito mais a partir dele.” No momento, Alyne Fratari trabalha em seu novo projeto, o curta Cartão de Natal de 1957, uma adaptação do livro de José Luiz Mora Fuentes, que narra a história de Jorge, um ho¬mem com a excêntrica mania de guardar as coisas físicas. De acordo com Alyne, ele é um personagem intenso, que convive na maior parte do tempo consigo mesmo. “Enquanto proposta estética, o Cartão de Natal de 1957 faz uma junção dos meus filmes Descrição da ilha da saudade ou Baudelaire e os teus cabelos e Ma¬ña¬na C’est Carnaval”, conta a diretora. “Come¬cei a fazer esse curta em 2007. Demoro bastante para produzir os meus filmes, mas demoro o tempo que ele me pede. E esse roteiro me pediu um ritmo de criação e imagem mais lento”, afirma Alyne Fratari. Apesar da demora, o Cartão de Natal de 1957 já está quase finalizado e deve ser lançado em breve.

Filmografia Histórias que moram no mercado (2004) Das coisas velhas ou vaca amarela (2004) Sexodrama (2006) Meu batom tem um quarto (2007) Fragmentos de uma canção de ninar (2008) Descrição da ilha da saudade ou Baudelaire e os teus cabelos (2009)

Cena do filme Elisa

Mañana C’est Carnaval (2010)De v a n e i o s nº 1 junho 2012

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Cine Goiano DIVULGAÇÃO

O cinema goiano pede passagem Capa da revista Janela MYLA ALVES

As dificuldades encontradas pelo público e pelos realizadores goianos para difundir as informações sobre o tema. Mídias alternativas amenizam as barreira 26

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egundo os realizadores de Goiás, grande parte da população goiana acredita que o Estado não produz nenhum tipo de produção cinematográfica. A falta de informações e de espaço nos veículos tradicionais goianos para realizadores e produções é um dos principais responsáveis por essa crença equivocada.

teresse de produtores e do público e, em especial, o cinema produzido em Goiás. A editora-chefe da revista e professora do curso de Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Jô Levy, acredita que a ideia de criar a revista surgiu da lacuna que os interessados pelo tema encontravam na mídia do Estado.

Uma alternativa encontrada pelos apaixonados em cinema no Estado são as mídias alternativas, que disponibilizam informações e até espaços para discussões sobre o assunto. Além da Revista Devaneios, a produtora Panacéia Filmes lançou em março a Revista Janela. A revista ainda foi patrocinada pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Goiânia.

“A gente espera que, a partir da revista, as pessoas possam refletir sobre as práticas que existem em Goiás e acaba sendo também um espaço de visibilidade para as produções goianas e para as discussões que são fomentadas, mas que acabam não tendo um espaço onde todas essas coisas possam se convergir”, explica Jô Levy.

A publicação aborda exclusivamente o cinema, com temas de injunho 2012

O professor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e


DIVULGAÇÃO

crítico de cinema, Rodrigo Cássio, também acredita que o principal papel da revista é suprir a demanda do público interessado pelo tema. “Trabalho com cinema há mais ou menos cinco anos e sempre notei que fazia falta na cidade um espaço destinado a pensar e refletir o que é feito aqui, não só em relação aos textos de crítica, mas também sobre a sistemática da produção. A Janela atende essas duas frentes.”

A revista Janela ainda foi patrocinada pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura Rodrigo Cássio foi convidado pela equipe da Panaceia para participar da primeira edição da revista. Ele fez uma análise do filme “Presídio de Meninos”, do cineasta goiano Lourival Belém. Além de Rodrigo, também foram colaboradores da primeira edição da revista o produtor audiovisual, sócio da Fractal Filmes e do Coletivo Centopéia, e Secretário Associação Brasileira de Documentaristas - Seção Goiás (ABD-GO), Erasmo Alcântara, que fez uma análise do cenário audiovisual em Goiás e a presidente do Instituto de Cultura e Meio Ambiente (Icuman), Maria Abdalla. Ela é

Rodrigo Cássio REVISTA JANELA

“Trabalho com cine-

O professor Rodrigo Cássio já se mostrou bastante interessado em participar de outras edições da revista. “De fato existe uma parceria. São pessoas que eu admiro e acompanho o trabalho há bastante tempo. Foi muito honroso participar da primeira edição. Imagino que pelo contato que a gente tem, é bem provável que eu participe mais vezes.” A segunda edição da revista já está sendo preparada. Porém, algumas colunas e sessões do site são atualizadas de forma mais constante. Enquanto a reportagem de capa e as matérias correlacionadas são atualizadas mensalmente, a agenda, por exemplo, é atualizada semanalmente.

produtora cultural e está à frente do Goiânia Mostra Curtas, Cinema Popular e Curso de Formação Profissional para Cinema. Na revista, Maria apontou as principais dificuldades de trabalhar com cultura.

A Janela também chama bastante atenção por fazer parte do universo virtual, o que atinge um maior número de pessoas. A internet traz ainda mais dinamicidade por meio de sua linguagem e dos recursos que ela permite serem inseridos no conteúdo da revista, como vídeos e trechos dos próprios filmes.

ma há mais ou menos cinco anos e sempre notei que fazia falta na cidade um espaço destinado a pensar e refletir o que é feito aqui, não só em relação aos textos de crítica, mas também sobre a sistemática da produção”

A equipe da Janela não é fixa, por isso há a participação de colaboradores. “A equipe é formada pela Panaceia, que é uma produtora proveniente do curso de Audiovisual da UEG, mas não há um quadro fixo de colaboradores. Eu faço parte da equipe fixa e trabalho como editora, mas os demais são convidados a cada edição.”

nº 1

“Por ser uma revista que está disponível na internet, qualquer pessoa no Brasil ou no mundo pode acessar e ter conhecimento do que está sendo produzido e discutido em Goiás.”, conclui Jô Levy. Para a editora, a internet ainda auxilia

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FESTIVAIS E ENCONTROS

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Personagens LISA FRANÇA

Uma vida de

sem películ

Não por acaso a cor do seu cabelo combina com os seus lábios, bem c

sapatos de um vermelho arroxeado. A ampla porta de vidro da casa é tã pequeno sorriso de olhos fechados que nos convida a entrar. Parece qu conhecemos Lisa França. O seu caminhar leve nos acompanha por vária até a cozinha. Lisa pronuncia Barceloneta e senior com um sotaque nati Colômbia, Espanha... mulher de mundo e do mundo, cheia de energia e jamais abriu mão da sua identidade goiana. O grande crescimento da ci e o nascer do sol na sua chácara no final do bairro Itatiaia. Ela aproveita para se deslizar como uma folha por aquele pequeno canto do planeta, echarpe, também arroxeada. Sofisticada e delicada, mas de um jeito es de salto. Abre uma garrafa de um bom vinho -brasileiro- sem prestar at 38

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filme

como com os seus ão transparente como o ue há muito tempo as pinturas na madeira tivo. Estados Unidos, e sobretudo de luz, idade atrapalhou o pôr a qualquer momento , brincando com a sua spontâneo. Dois dedos tenção no rótulo. Aitor Sáez-Díez Medina

Foto: AITOR SÁEZ

la

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Lisa França nunca deixou de sonhar para superar os desafios vaneios Denovos

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Personagens Lisa França nasceu em Goiânia o ano de 1955, no seio de uma família burguesa e intelectual. Já muito pequena frequentava as salas de exibição, como o Cine Teatro Goiânia, e brincava com uma câmera Super 8 na adolescência. Com mais de meio século de vida, o seu olhar ainda se ilumina quando beija seu marido, quando pensa no ballet e quando fala do cinema. Com um passado de interessantes desafios superados e um futuro sempre cheio de expectativas, Lisa fala do presente com tanta claridade como a luz que entra pela porta e que se reflete no seu olhos. Ela representa o progresso, no sentido mais humano do termo, este que é criado das pequenas histórias pessoais. Depois de uma longa carreira profissional dedicada ao cinema, Lisa França escreve ainda o seu caminho com um objetivo: fazer um filme em película. Desde criança, apesar de morar em uma cidade sem tradição no cinema, sempre gostou dele. Como surgiu esse interesse? O meu pai era um intelectual ligado a projetos na educação, e ele gostava muito do cinema. A minha família assistia a filmes três vezes por semana nas salas Cine Teatro Goiânia e Cine Casablanca. A programação da TV era precária. Com cinco anos já conhecia a Marisol (atriz espanhola). Na adolescência comecei ir sozinha para os cinemas, e quando voltava para casa escrevia a ficha técnica do filme e uma sinopse. Naquela época não existia informação sobre as obras. O primeiro contato direito com essa arte foi no primeiro ano de faculdade. Tinha um professor de fotografia, Helio de Amaral, que amava o cinema e dava aulas sobre

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ele. Participamos do projeto com João Bennio para trazer filmes cults no Cine Rio e mexemos com a câmera Super 8. Com 17 anos, antes da universidade, fiz um intercâmbio num college na California, onde comprei uma Super 8 nos primeiros dias e fazia gravações de três minutos. Filmava tudo. Passear por Hollywwod foi uma experiência muito emocionante.

Quando voltava do cinema para casa escrevia a ficha técnica do filme e uma sinopse Fez o curso de jornalismo como uma maneira de se aproximar do cinema? Sim. Na verdade caí no jornalismo meio por acaso. Mas estou muito grata à FACOMB pela profissão. junho 2012

Adorei os primeiros anos de repórter de cidade, em jornais locais. Ia para a periferia, entrevistava pessoas muito diferentes, conheci Goiânia de verdade, viajei e aprendi muito. O fotógrafo me advertiu que não ia agüentar envolver-me pessoalmente com cada sofredor que entrevistava, mas fui muito mobilizada. Frequentava grupos de debate de psicanálise, mas eu gostava de ser jornalista. Já nos jornais maiores - Jornal O Globo (Brasilia),Jornal do Brasil (Rio) e Gazeta Mercantil trabalhava a temática de Economia e me sentia menos jornalista. Na televisão comecei com um programa de entrevistas, “Goiás na TV”, na TV Brasil Central. Depois entrei como produtora, editora e acabei diretora do núcleo de documentários de Washington Novaes. O primeiro trabalho de uma longa lista foi “Siron Franco”. Fizemos o musical “Canto da Gente”, para


Foto: AITOR SÁEZ

LISA FRANÇA

O sorriso iluminado e os pequenos olhos caraterizam o seu jeito

o Natal, e tive dois documentários premiados pela Associação de Imprensa: “Terra Caiapó” e “Minha vida, minha câmera”, sobre o fotógrafo alemão Jesco von Putkamer, que morou em Goiânia por muitos anos. Essa foi a melhor época, onde mais perto me senti do cinema, foi uma oportunidade maravilhosa. Também foi nesses tempos a única vez que acompanhei uma rodagem com película, na realização da abertura da propaganda para uma campanha política, no ano de 1986. Sempre tive interesse pela imagem e a TV era o meio mais próximo ao cinema, aqui em Goiás, por isso achei que Jornalismo era a melhor escolha. No ano 1992 saiu da televisão. Foram motivos econômicos, pessoais, profissionais...?

O trabalho não me interessava mais. Sai da TV porque mudou o governo, os chefes e daí muitas outras coisas. Não tinha liberdade, então não tinha como trabalhar. Sempre me guiei pela liberdade criativa e a ética profissional. Nunca abri mão do meu desejo e dos meus princípios. Nunca me deixei dominar e também não me acomodei.

Nunca abri mão do meu desejo e dos meus princípios. Nunca me deixei dominar Continuou na Gazeta Mercantil até 1994, quando entrou no corpo docente da FACOMB, na Universidade Federal de Goiás. Como foi essa etapa como professora? nº 1

Sim, fiz um concurso para o curso de Rádio-Televisão, que por desgraça já não existe mais. Talvez foi o período mais pouco criativo, onde sofri mais com a burocracia, mas gostava da relação com os alunos. Depois como doutora fiz coisas mais interessantes e foi uma etapa produtiva. Cursou o doutorado de Audiovisual e Publicidade em Barcelona (1997-2001), onde fez sua tese doutoral sobre “Contribuções da TV para a identidade do adolescente” e voltou à UFG para ministrar disciplinas relacionadas com o cinema. O que mudou nesse tempo? Disciplinas de cinema e psicanálise: Lições de Psicanálise para crítica de cinema, Mídia e Cultura e inclusive Cinema e Psicanálise. junho 2012

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Portão de vídrio da casa, Personagens em uma chácara do final de Itatiaia

gem, assisti a aulas de psicologia, e também dança moderna. O cinema e a psicanálise eram duas paixões que conviviam dentro de mim. Sempre utilizava da psicanálise como marco teórico para fazer crítica de cinema nos jornais. Cinema e psicanálise nasceram juntos, o cinema se alimentou da psicanálise, tem uma grande relação sobre o inconsciente ou mesmo sonhar e ir ao cinema. De fato, queria estudar Psicologia, mas ainda não era um curso consolidado e minha mãe queria que fizesse uma coisa “mais legalizada”.

Foto: AITOR SÁEZ

O cinema e o psicanálise são duas paixões que conviviam dentro de mi

Acabei a minha formação em Psicanálise no ano de 2001 e apliquei esses estudos na análise dos filmes.

vado em digital, que teve muitas cópias em DVD e inaugurou a sala de Cinema da UFG.

Nessa etapa elaboramos roteiros com as turmas e coincidiu que a Prefeitura abriu um edital para desenvolver a execução dos projetos. Fomos selecionados pelo roteiro de “Goiânia além dos outdoors” e o filme foi premiado no FICA de 2007. No mesmo ano ganhei a ajuda para realizar “Egidio Turchi, mestre socrático”, gra-

A psicanálise, a sua outra grande vocação.

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Sim. Aos 14 anos ouvi falar de Freud e nos anos 70 comprei uma coleção da “Interpretação dos sonhos”. Fiquei encantada e comecei a estudar sobre a matéria. No collegedos Estados Unidos, onde estudava produção de imajunho 2012

Nem o próprio Freud quis misturar a psicanálise com o cinema. Você, aqui em Goiânia, com as limitações culturais do momento tentou misturar esses conhecimentos. Acha que é revolucionária nesse sentido? Não estava sozinha. Pesquisei e já tinha outras pessoas trabalhando nessa direção. Uma revolução na época, por exemplo, foi mostrar aos alunos de mestrado o “Mal estar na Civilização”, que era como um tabu. Fui criticada e perseguida. Com o tempo, e com o doutorado, a situação foi melhorando. Contribuí para a FACOMB levar o cinema para dentro do curso de Jornalismo, para os meninos produzirem. Também participei do grupo de mudança curricular, que permite a possibilidade de criar matérias,


LISA FRANÇA

diversificar e ganhar liberdade. Também no júri de seleção do FICA consegui que colocassem uma mulher. Estas foram as minhas revoluções. Por ser mulher essas dificuldades foram ainda maiores? Claro. Sendo adolescente saía da sala do cinema, voltava para casa e fazia sozinha fichinhas sobre o filme. Os homens ficavam nos botecos trocando idéias. Comecei a trabalhar na profissão e era mulher, filha de uma família burguesa, que, aliás, se incomodou porque ia sozinha ao cinema. Na época da TV, viajava com quatro homens, que recebiam ordens da única mulher, muitas vezes mais jovem. Com o tem-

po ganhei o respeito da equipe, mas no início eles boicotavam o trabalho com desculpas inacreditáveis. O salário era menor e os homens recebiam mais respaldo nos projetos. Se fosse homem, teria ficado no Rio. Se fosse homem, acha que já teria produzido um filme em película? Sim. Esse foi o único obstáculo? Não. Fazer um filme precisa de uma indústria e é muito caro. Goiás não tinha o ambiente para se produzir. Ainda agora tem muitas dificuldades de financiamento. Existe um gap entre o

FO T O S

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dinheiro e a Cultura. Tem muita gente com muito dinheiro, sem lastro cultural. Não investem. Mas o dinheiro pode vir do FICA. Você foi presidente do júri de seleção durante cinco edições (2005-2009). Qual é o problema então? Os prêmios não favorecem a qualidade. Criou-se uns “gigolôs do cinema”, pessoas que passam a viver de suas pequenas produções culturais. Guardam a grana. Deveria ser obrigatório usar o dinheiro para a realização de um filme. Pareceu muito fácil ganhar o prêmio. Além disso, existe uma falta de profissionalização, uma banalização. A grande maioria faz bobagem para bombar no Youtube.

V I DA


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