A Vida
em vers達o original
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“As histórias de amor não têm lugar para a c o n t e c e r. E x i s t e m apesar do tempo, apesar do espaço, até mesmo apesar das pessoas. E é por isso que o amor sobrevive ao longo dos séculos, pois não há força mais poderosa e mais frágil do que esta. As histórias de amor precisam existir para plantar outras histórias de amor, para que o coração daqueles que buscam não desista. Se não fosse assim, nenhum encontro seria possível e de nada valeria viver”.
Deborah e Alan Dubner
Uma história de amor real
®
1ª Edição
EDITORA
2005
CRÉDITOS – Fotos capa e interior: Darshana – Revisão: Profª Maria José Silveira Carezia
Ficha Catalográfica: D339v
Deborah A vida em versão original / Deborah , Alan ; fotografias de Darshana. -- Itu (SP): Editora Ottoni, 2005. 178 p. : il. ; 21,5 cm. ISBN 85-7464-013-1. Acima do título: www.almagemea.com.br. 1. Romances brasileiros Título.
I. Alan.
II. Darshana.
III.
CDD B869.3 Ficha Catalográfica elaborada por Maria Cristina Monteiro Tasca CRB 5803
Composição e Impressão: ® EDITORA
Rua Garcia Moreno, 55 - Centro - CEP 13300-095 - ITU-SP Fones/Fax: (0xx11) 4022-5309 - 4022-5312 - 4023-0197 www.ottonieditora.com.br - e-mail: ottoni@ottonieditora.com.br
Este livro conta uma hist贸ria de amor... Real!
“Os autores optaram por manter os diálogos e cartas na forma original. Assim, as correções para adequação às regras da língua portuguesa não foram efetuadas neste segmento”.
Durante 11 anos, este livro teve o olhar e atenção de uma presença invisível, que nos guiou o tempo todo, na direção do justo, do sagrado e da verdade. Nós fomos apenas instrumento de passagem... Deborah e Alan
1966
1966. . Por acaso, nasci. Minha mãe engravidou na lua de mel. Diz ela ter sido no dia 16 de julho, aniversário do meu pai. Já vim ao mundo atropelando, sem dar tempo para planejar. Talvez por isso eu goste de viver o que aparece. Adoro os acasos, porque não acredito em acasos. Acredito, sim, que são eles que dão o rumo de nossa vida. Primeira filha, primeira sobrinha, primeira neta e primeira bisneta. Pouco mimada, claro. Não sei por que, sempre me achei um pouco princesa. Mas as princesas têm um grave problema: acreditam em príncipes. E assim, de castelos a escolas, de carruagens a caronas, fui ficando grande. Lembro-me de uma vez, com 4 anos, em que eu brincava com um arranjo de florzinhas amarelas num restaurante. Meu pai mandou que eu parasse, pois além de sujar a toalha estava despedaçando o arranjo todo. Claro que eu não parei. Fui, então, ameaçada de ser levada para o quarto caso continuasse. Metade de mim tinha medo. Mas a outra metade queria ver o que iria acontecer. Lá fui eu para o quarto, chorando, carregada pelo meu pai. Nunca esqueci. Esta história tem muito de mim: não desistir por medo e pagar para ver. Viver é muito melhor do que imaginar, mesmo levando em conta os escorregões, que não são poucos. Acostumada a ser paparicada, minha casa vivia cheia de amigos. Mas, já com uns 14 anos, algo dentro de mim me dizia que eu não era como eles. E conforme ia crescendo, esta diferença se acentuava. Tinha muitas perguntas dentro de mim. A vida me parecia ser algo mais do que aparentava ser. Sempre fui fascinada por gente. Com 17 anos, entrei na faculdade. Psicologia. De lá trago alguns bons amigos e uma certa sensação de desconforto. Naqueles livros não estavam as respostas que eu buscava e aquelas pessoas seguiam por caminhos muito diferentes do meu. De fato, não era a minha casa. Mas fui até o fim. Só não peguei o diploma.
Com 18 anos, o primeiro namorado sério. Achei que ele era o príncipe, mas em dois anos virou sapo. Muito sofrimento, muito aprendizado. Sempre procurei formas de me conhecer melhor. Aos 19 anos, graças àqueles acasos em que não acredito, entrei num grupo de autoconhecimento. Eram pessoas que, como eu, buscavam compreender o sentido real da nossa existência, trabalhando sobre si mesmas. Logo compreendi: lá era a minha casa. Estávamos no início de 1985. Com 20 anos, acabei o namoro (ou o namoro acabou comigo). Saí do túnel e acordei para a vida. Descobri que eu era uma pessoa interessante, mas não para a maioria. A grande parte das pessoas quer o comum, não o diferente. Com 21 anos, livre, leve e solta, conheci, também por acaso, um homem que achei ter cara de marido. Depois de um ano e meio já estávamos casados. Não queria mais príncipes que viravam sapos. Queria um companheiro que não me deixasse louca. Foram anos tranqüilos. Só que eu não percebi que aquela princesa ainda não tinha desistido e trabalhava, apesar de mim, na sua busca...
M
eu pai, de origem polonesa, nasceu em Nova York e minha mãe em Paris. Nasci em 58, no Rio de Janeiro, capital do Brasil. Previsto para nascer lá pelo dia 20 de junho, fui atrasando, para alegria da torcida americana que queria me ver sair no dia 4 de julho. Fui adiante e o lado francês foi se animando. Mas acabei passando o dia 14 e nasci no dia 16 de julho. Minha mãe deu-me o nome de Alan por causa de um filme que a impressionou - Shane - cujo personagem era feito por um ator com o meu nome. Copacabana, Leblon, São Conrado com vista para o mar, escola americana, menino do Rio. De estilingue na mão, com a turminha da rua, éramos os “caçadores de esquilos”. Até o dia em que acertamos um. Não morreu, mas foi o suficiente para que, de estilingue na mão, nos tornássemos os “defensores de esquilos”. Final de 64, revolução. Meus pais se separaram e fui com minha mãe para São Paulo. Nas férias e feriados, Rio de Janeiro, ganhei o apelido de ponte aérea. Logo cedo, com minha mãe, aprendi uma das coisas mais importantes para minha vida. Sempre que eu fazia alguma coisa que lhe parecia errada, ela dizia: “Alan, se todos estão pensando deste jeito, com certeza este é o jeito certo.” Isto era uma constante e ela tinha razão: todos pensavam de um jeito diferente do meu. E com isso aprendi: “se todos estão pensando assim é porque, com certeza, este NÃO é o meu jeito” Este é um dos princípios fundamentais que guia a minha vida. Acabo andando na contramão das massas. Muitas vezes, estar fora da moda é estar dentro da vida. Aos 13 anos, enquanto meus amigos liam escondido revistas pornográficas, eu lia escondido os livros de Freud. Minha mãe tinha medo que isto afetasse a minha cabeça. E de fato afetou, ou já estava afetada. Continuei piorando através de Jung, Reich, Fromm, Rogers, Russel,
Foucoult até Cooper e Laing. Havia alguma coisa a ser compreendida e eu procurava avidamente as respostas. Em busca desse caminho interior e graças a alguma coisa dentro de mim que não me dava outra escolha, segui a trilha do esotérico. Da parapsicologia do padre Quevedo às artes marciais, macrobiótica, Zen Budismo, Rosa Cruz, Maçonaria, Sufismo e outros menos famosos. Até perceber que, apesar dos princípios genuínos de cada um e dos ensinamentos que ficaram em mim, nenhum deles era o meu caminho. Em 1977, com 18 anos, já estava desistindo e me conformando com o meu jeito diferente de ser quando, da forma mais inusitada, longe da Índia ou das montanhas do Tibet, em plena São Paulo, encontrei um mestre e um grupo de pessoas com um jeito de ser que, até então, eu acreditava ser só meu. Foi impressionante. Sentir-me único e sozinho e, de uma só vez, encontrar muitos como eu. Como o patinho feio encontrando-se com os cisnes. Este era o meu caminho. Em 84, um ano depois de eu ter afirmado categoricamente que não me casaria jamais, casei. Seis anos depois, sem filhos, me separei, graças àquela coisa dentro de mim que não me dava outra escolha. Resolvi que nunca mais me casaria e que levaria a vida como um “bom vivant” , trabalhando, viajando, namorando, ou seja, vivendo. Era o início de 1990.
INTERVALO Out of space, but here Out for time, but now
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Eram quase oito horas da noite e ele não sabia por que ainda estava no escritório, jogando conversa fora. A secretária atende o telefone e diz: — É a Deborah. Eram quase oito horas da noite e ele sabia exatamente por que ainda estava no escritório. Com as pernas disparando e o coração tropeçando, ou o contrário, conseguiu chegar ao telefone e desabafou: — Oi... Tudo bem? — Não. — Que foi? — Estou no orelhão, aqui embaixo. Você pode descer? — Já estou descendo. Apressado e ligeiramente desnorteado, pegou a pasta e saiu. Voltou, deixou a pasta, voltou novamente e pegou a pasta. Por fim, desceu no elevador e, se lhe perguntassem, não saberia dizer se estava ou não com a pasta embaixo do braço. Ficou imaginando o que seria o “não estar bem”. De um certo ponto de vista poderia até ser positivo. Resolveu não pensar mais. Deborah desligou o telefone e pensou: “Bom, o que está feito está feito.” Não sabia muito bem o que estava fazendo, muito menos como tinha ido parar lá. Se parasse para pensar, talvez não fizesse nada. Do jeito que sua vida estava confusa, como saber o que era certo e o que era errado? O fato é que quase sem querer, mas querendo muito, estava lá. Acabara de ter uma forte discussão com seu marido. Sabia que ele tinha motivos para ter ciúmes do Alan, mas tentava se convencer de que não havia problemas. Alan era apenas uma pessoa especial e contra este fato não conseguia lutar. Mas, é claro, não trairia Mauro, o homem que escolhera para ser seu companheiro pelo resto da vida. Não queria mentiras, não queria enganar ninguém. Porém, ao sair de casa para respirar, só conseguiu ir em direção ao Alan. O que estava querendo?
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Em meio ao turbilhão de pensamentos, avistou-o saindo do prédio. Por um breve instante, uma paz contagiante e uma alegria imensa a invadiram. Os olhares se cruzaram e os dois entraram no carro sem trocar nenhuma palavra, apenas um tímido sorriso. Apesar do clima de tragédia, Alan não conseguia disfarçar sua alegria em vê-la. Nem Deborah. Foi preciso muito esforço para que um dos dois conseguisse esboçar uma frase inteligente e que fizesse sentido: — Você quer ir a algum lugar? Quer ir com o meu carro ou quer que eu dirija? — Não, eu dirijo. O carro começou a andar e, sem dizer uma só palavra, iniciaram uma conversa. Era uma daquelas muitas conversas em silêncio que tinham, com ou sem palavras. Rodaram muito, mas voltavam sempre à mesma rua. Ficou claro que ela estava confusa quanto a que rumo tomar e queria sua ajuda. — Quero sair daqui, mas não sei para onde. Vai indicando que eu dirijo — disse ela. O ato de dirigir dava-lhe a sensação de força, de um certo domínio externo que absolutamente não coincidia com o total desnorteamento interno. Mas sentia-se cômoda por não precisar encará-lo. — O que aconteceu? — Briguei novamente com o Mauro. Estava tudo bem, tudo mesmo. Aí cheguei hoje em casa e ele estava atacado. Falou que não queria que a gente se encontrasse no teu escritório, eu fui tentar dizer que estava tudo bem e piorou ainda mais. Parece que ele adivinhou que a gente se viu hoje. Nem tive coragem de contar. Estava tão nervosa que resolvi sair. Ele perguntou se eu ia me encontrar com você... eu disse que não. Não era o que eu pretendia fazer... Alan a olhava. Sentia-se bem e mal ao mesmo tempo. Queria tirar de dentro dela aquela angústia. Mas julgava-se responsável por tudo aquilo. E, para piorar ainda mais, estava feliz por estar lá, ao lado daquela mulher que lhe fazia tanto bem. Num ato de coragem, talvez por não saber o que fazer, perguntou: — Você acha que eu sou a pessoa certa para te ajudar? — Não sei. Não estou em condições de saber nada. Mas foi a única pessoa que me ocorreu. 14
Novamente, ficou claro que ela estava confusa quanto a que rumo tomar e queria sua ajuda. Colocou a fita que ele lhe havia dado naquela manhã: solua. A terceira da série. Alan sorriu. Os dois olharamse com cumplicidade. Apesar de proibido e com tudo em volta dizendo não, uma beleza acontecia. Era um fato. Alan também estava totalmente sem rumo, mas fingia saber para onde estavam indo. Por um acaso daqueles, passaram perto da casa onde Deborah vivera anos de sua infância e adolescência. Ela resolveu mostrar-lhe. Ele disfarçou as lágrimas dos olhos. Compreendeu aquele gesto como um compartilhar de intimidade. Sentiu-se mais próximo e, exatamente por isso, com mais dificuldade para dominar a situação. Finalmente pararam em uma rua tranqüila, embaixo de uma grande árvore. A fita continuava tocando, deixando Alan encabulado, como se estivesse sendo flagrado por uma travessura. Teve vergonha das músicas que gravara e temeu que Deborah as interpretasse mal. Mas parte dele queria exatamente isto. Por entre as músicas, um silêncio pesado invadiu todo o espaço e imobilizou qualquer tentativa de dissimular. Não dava mais para adiar o coração. Estava acontecendo o que queriam, embora evitassem. Olharam-se. Nada se falavam, mas tudo se diziam. Ele segurou e beijou sua mão, como se estivesse beijando seu corpo inteiro. Tentava tranqüilizá-la. Ela, envergonhada de ter chegado até lá, misturava-se de culpa e felicidade. E uma verdade dentro de si dizia que queria aquele homem. Queria ser daquele homem. Era uma pureza muito grande, chamando para ser vivida. Um pouco sem coragem, mas com muita coragem, deixou esta verdade aparecer: — Não sei o que é. Mas isto tudo não pode estar acontecendo por acaso. A gente já fez de tudo para lutar contra. O único jeito será viver esta história até o fim. — Se a gente se beijar, eu não vou mais conseguir manter a minha atitude com o Mauro. Até agora eu sentia que tinha argumentos. Se ultrapassarmos esta fina linha, não vou mais poder encará-lo tranquilamente. — Acho que você não está entendendo o que eu estou querendo dizer... — Estou sim. Quer que eu seja mais claro?
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Deborah esboçou um sim com a cabeça. — Você acha que devemos ir até o fim, inclusive dormir juntos. Não é isso? Ela, num misto de vergonha, mas procurando em seu olhar alguma aprovação, murmurou: — É... E agora? Tinham ido longe demais. Era um momento em que não podia acontecer nada e poderia acontecer tudo. Tinham que evitar o inevitável... o beijo. Até aquele instante poderiam, diante de tudo e de todos, e principalmente diante do espelho, dizer que não tiveram nada. Alan queria manter as coisas assim. Principalmente porque Deborah tinha certeza do seu casamento e da pessoa que escolhera. Se acontecesse qualquer coisa, seria complicado manter o que ela buscava. Ainda assim, olhava-a extasiado diante de tanta beleza. Carinhosamente, falou: — Você é a pessoa mais linda que eu já conheci. — Não é bem assim, você não me conhece. Eu sou difícil de lidar, sou meio... — Deborah... te vejo toda. Silêncio. A expressão daquele homem com rosto iluminado e o som de suas palavras entraram em Deborah com tamanha força, que paralisaram sua respiração. O mundo poderia ter acabado naquele instante de vida que ela não se importaria. Sentiu-se nua de corpo e alma, pois compreendia, sem entender, a verdade daquelas palavras. “Viver nos torna personagens de nossa própria vida”, pensou. Naquele instante mágico dava-se conta disso, e cinco meses transcorreram em sua mente e na mente daquele homem que exalava amor ao seu lado. Nunca poderiam imaginar, tão ingênuos eram seus encontros, que estariam um dia vivendo tamanho impasse. Por que estava acontecendo tudo aquilo? Ela lembrou-se de sua sensação ao subir as escadas, timidamente, para a primeira reunião de teatro.
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DO Encontro... AtravĂŠs dos tempos Apesar do tempo Todo o tempo
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Era um domingo de tarde. Não como os calmos domingos em que se prepara a segunda-feira. Havia algo de especial. Talvez o começo de uma jornada, um mundo novo que se descortinava. Deborah chegou, subiu as escadas, o coração batendo forte. Embora freqüentasse aquela casa todas as semanas, desde seus dezenove anos, o espaço assumia outra forma naquele domingo. A proposta era ousada, e exigiria um esforço e uma dedicação maior: montariam, em cinco meses, uma peça de teatro. E ela, que morria de vergonha do palco, estava lá. Não sabia, ao certo, por quê. Na verdade, nem levantara a mão quando perguntaram quem gostaria de participar do trabalho. Pensando bem, não tinha nem tempo. Mas depois...pensando bem...arranjaria tempo. Precisava ir, porque seria importante para o seu crescimento pessoal. Mas quase não foi. Teve de deixar seu nome na lista ao final da reunião, quando todos já tinham se inscrito. E agora, subindo as escadas, o que iria encontrar? Que vida iria descobrir? Entrou na sala. Rostos desconhecidos, alguns já conhecidos. Uma onda de excitação misturava-se com receio, enquanto sentia um chamado muito forte para entrar. Mas entrar...onde? As pessoas iam chegando e acomodando-se na sala, que estava começando a lotar. Alguns atrasados entravam sorrateiramente, buscando um lugar para sentar. Alan subiu as escadas, perguntando-se o que estava fazendo ali. Não que ele não tivesse vontade de participar. Pelo contrário. O problema é que ele não tinha tempo nem para respirar. Tentou lembrarse de como veio parar ali: pediram voluntários para o teatro e ele, óbvio, não se candidatou. Mas, na saída, procurou o responsável e registrou seu nome. Por que fizera aquilo? Com certeza, naquele momento, o desejo foi maior do que a possibilidade de realizá-lo. Não importa, pensou. Subo lá e digo que me enganei, digo que não dá prá eu ficar.
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Ao entrar na sala, a reunião já tinha começado. Todos os olhares voltaram-se para ele que, timidamente, procurou uma cadeira e sentouse. Havia algo de estranho no ar, como se ele não soubesse onde estava. Apesar de freqüentar há mais de dez anos aquele espaço e de conhecer bem aquelas pessoas, tudo era novo. Alan ficou um bom tempo com aquela sensação e não ouviu uma palavra do que diziam. Olhava tudo em volta, como que explorando um novo lugar, com novas pessoas. Foi quando, no meio da reunião e dos seus pensamentos, Deborah sentiu-se observada. Seu olhar cruzou rapidamente com os olhos de um rosto aparentemente sério, olhar penetrante. Lembrou-se de tê-lo visto semanas antes, no jardim da casa, onde também se sentiu observada. Um gosto de mulher, superficialmente mulher por se sentir brilhante aos olhos de um homem, a invadiu. Instantaneamente pensou: “O que ele quer comigo? Imagine, eu sou casada, não quero nada com ele!” Não , claro que não. Deborah não estava lá para reparar em ninguém. Gostava de seu marido e sentia-se tranqüila ao seu lado. De repente, as pessoas começaram a se manifestar, acordando Alan para a reunião. Estavam agendando pequenos grupos de trabalho, e cada um dizia o seu dia de preferência. Como ele estava nas primeiras cadeiras, foi logo chamado para responder. Rapidamente pensou: “sexta, sábado e domingo é difícil porque costumo viajar a trabalho. Quarta e quinta já tenho outras reuniões aqui mesmo. Terça é impossível, porque vou começar dar aquele curso de Marketing para executivos, que há tanto tempo estou montando.” — Segunda, respondeu, segunda está ok. — Não lhe passava mais pela cabeça que estava ali para dizer que desistiria de participar. Chegou a vez de Deborah dizer o seu dia. A única opção era terça-feira. Todas as outras noites estavam tomadas e não poderia sacrificar os fins-de-semana, pois eram os dias de ficar mais com seu marido — Terça-feira, falou. Outras pessoas foram agendando os seus horários, e os grupos foram se formando. Quando já estavam praticamente definidos, Deborah ouviu uma pessoa mudar seu horário. Era aquele homem que a observara instantes antes. “Ele está mudando para terça-feira, o 20
mesmo dia que eu. Deve ser coincidência, pensou. Imagine se seria por minha causa! ...Será...?” Todos começaram a se levantar para sair. Os encontros já estavam marcados, e as tarefas já tinham sido passadas. Deborah desceu as escadas feliz. E ansiosa para o próximo encontro. Alan saiu, tranqüilo. De alguma forma, seu problema de tempo e o curso que daria foram apagados de sua memória. Foi absolutamente irresponsável sem se dar conta. Aquela não era uma atitude normal. Mas para ele, estava tudo absolutamente normal. Já estava escurecendo. E cada pessoa retomou o seu caminho. “Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar”
Chegou a terça-feira, dia do primeiro encontro de um dos grupinhos, do qual oito pessoas faziam parte. Entre elas, Alan. Entre elas, Deborah. A idéia do trabalho era montar uma peça de teatro baseada num texto Sufi, escrito há milênios, permeado por uma simbologia riquíssima. Chamava-se “A Conferência dos Pássaros”. Foram designados quatro chefes para coordenar o trabalho e, abaixo deles, três pessoas: uma para cuidar do figurino, outra do cenário e uma terceira para dirigir os atores. As outras pessoas eram, como Alan e Deborah, voluntários que iriam empreender o projeto. O livro, bastante extenso, seria lido em partes por cada grupinho. Naquela terça-feira iniciariam, então, a leitura de alguns capítulos, para se familiarizar com a história. Deborah entrou na salinha um pouco receosa, como sempre ficava antes de conhecer as pessoas. Era muito espontânea normalmente, mas tímida nos primeiros contatos. E, como todo primeiro encontro, o grupo começou a se conhecer. Cada um falava um pouco de si: seu trabalho, sua experiência
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com teatro, seu nome, enfim, coisas do cotidiano que fazem com que as pessoas achem que se conhecem. Aquele homem que a observara no domingo anterior e que agora estava sentado bem na sua frente chamava-se Alan, pensava Deborah. Ela gostava deste nome. Parecia-lhe muito familiar. Alan, por sua vez, ansioso para começar o que quer que fosse começar, notou, assim que chegou, uma presença que se destacava e brilhava. Chamava-se Deborah, era do signo de touro e trabalhava com Recursos Humanos. Alguma coisa o ligou àquele ser. Não era de homem para mulher. Era muito mais profundo nobre talvez. Não sabia bem o que era, mas sentia que deveria protegê-la, não como se protege um pertence, mas como se cuida de algo sagrado que é do mundo, como um templo ou uma árvore. Olhava para seus olhos azuis e sentia algo de familiar. Havia algo de especial, algo no olhar, algo de mágico... podia até parecer que ele estava interessado nela... como homem e mulher... mas não era nada disso. Ela era apenas uma pessoa especial. Parecia ter algo de divino... “Ela trabalha com Recursos Humanos”, pensava Alan. Lembrou que na semana anterior havia feito um seminário, mostrando que R.H. e Marketing (sua área de trabalho) estariam de mãos dadas nos anos 90. Mal podia esperar a hora de lhe falar sobre isso e “trocar figurinhas” sobre empresas e pessoas. A conversa acontecia, contando sobre experiências anteriores com teatro. Várias pessoas já estavam habituadas a este tipo de trabalho. Deborah não. Sentia-se totalmente amadora e com vergonha do palco. Alan comentou: — É bom ter medo do palco. As pessoas que são assim têm a chance de aprender mais. Deborah gostou de ouvi-lo. Gostava de seus comentários. Ele parecia dar-lhe uma atenção especial. Mas ela não queria retribuir. Tratou-o com aparente desinteresse. Precisava mostrar-lhe que não cederia ao seu olhar. E fez questão de que isto ficasse bem claro. Afinal, era feliz com seu marido e tinha muitas verdades dentro de si. A reunião acontecia, enquanto o encontro continuava. Alan via uma luz brilhante em volta de Deborah, como se fosse uma sombra. Uma sombra de luz. Aquela visão lhe parecia tão normal que, quando 22
se deu conta do inusitado daquela situação, achou que a luz sumiria. Mas não sumiu. Ficou, então, contemplando aquele presente que lhe era ofertado. E novamente, enquanto conversavam alguma coisa, Deborah lembrou-se de que não lhe retribuiria a atenção. Desviou o assunto e mudou o olhar, ou mudou o assunto e desviou o olhar, enfim, cortou alguma coisa. Após duas horas e um tempo sem tempo, a reunião terminou. Deborah saiu aliviada, pois fizera o que tinha de ser feito. E um pouco curiosa, não podia negar. Alan parecia ser uma pessoa interessante. E Alan... achou a reunião ótima... se não fosse uma certa indiferença de Deborah... “Lá vai uma vela aberta se afastando pelo mar Branca visão que desperta anseios de navegar”
Na semana seguinte, o grupinho reuniu-se novamente, para dar continuidade à leitura e entendimento do texto. Deborah não apareceu. Alan logo pensou: “Vai ver ela não gostou do grupo. Acho que não vem mais...”. Teve a sensação de desperdício, de que o grupo perderia muito sem a sua presença. Mas na semana seguinte, lá estava ela. “Que sorte para o grupo”, pensou Alan. No entanto, sentia um certo incômodo; queria aproximar-se mais dela, mas temia que parecesse uma “cantada”. Sentia-se próximo, porém distante. Na saída da reunião, quando estavam indo para o carro, trocaram algumas palavras. E no meio delas, Deborah lhe disse que seu marido freqüentava há um ano a turma de segunda-feira, da qual Alan também fazia parte. — Você deve conhecê-lo de vista — comentou. “Então ela é casada...acho que falou propositadamente”, pensou Alan. Sentiu um grande alívio, pois agora poderia aproximar-se sem medo de que parecesse alguma coisa. Ficou feliz, apesar de ter se surpreendido. Aos seus olhos, Deborah não tinha jeito de que era casada. Ele a sentia
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livre, leve, solta e, de alguma maneira, não conseguia associar este jeito ao “estar casada”. Mas não pensou muito no assunto. Deborah notou em Alan uma boa receptividade. Queria mesmo que ele soubesse que ela era casada e que as coisas ficassem bem claras e definidas. Gostou do jeito que ele reagiu. E, nesse instante, uma cumplicidade muito imperceptível apareceu num relance. Como se, com a constatação deste fato, acordassem tacitamente que seriam bons amigos. “Gosto muito de te ver, leãozinho Caminhando sob o sol”
A próxima reunião seria no domingo. Mais um florido domingo de setembro. Mas desta vez estaria o grupo todo, quase cinqüenta pessoas. Cada um teria que preparar uma improvisação e repeti-la precisamente três vezes, exatamente do mesmo jeito. Alan inventou um texto em que se desculpava por não ter preparado sua improvisação. Queria brincar com o público, fazendo-o pensar que ele realmente não tinha preparado o trabalho. Dias antes, descobriu que não podia usar palavras, somente gestos. Manteve, então, a mesma intenção e montou uma cena em que fingia errar a seqüência, tendo de recomeçar. Deborah, por sua vez, inspirou-se em uma das histórias da “Conferência dos Pássaros”. A história da Fênix: “(...) A Fênix é um pássaro único que vive na Índia por cerca de mil anos e conhece de antemão a hora da sua morte. Quando ela sente aproximar-se o momento de retirar seu coração do mundo, constrói uma pira, reunindo ao redor de si lenha e folhas de palmeira. Quando lhe resta apenas um sopro de vida, a Fênix bate suas asas e agita suas plumas, e deste movimento produz-se um fogo que transforma seu estado. Breve, madeira e pássaro tornam-se brasas vivas e então cinzas. Porém, quando a pira é consumida e a última centelha se extingue, uma pequena Fênix desperta do leito de cinzas.” Esta história lhe parecia muito especial. Mostrava que a morte era necessária para possibilitar o renascimento. “A vida é um pouco 24
isso — pensava — nascer e morrer todos os dias, assim como o sol”. Mas pensar em morte lhe dava medo. E foi o que tentou preparar em sua improvisação. Deu-lhe o título de “Medo de Olhar.” E o domingo chegou. Alan entrou no salão antes de começar. Na verdade estava atrasado, mas a reunião estava mais atrasada ainda. Fizeram um círculo com as cadeiras, deixando o meio livre para os trabalhos e Alan sentou-se ao lado de Balu. Procurou Deborah com os olhos... lá estava ela. Ficou imaginando se era Deborah que gostava de compor suas roupas, ou se suas roupas é que gostavam de se compor com ela. Mas que ela não soubesse deste elogio, para não ficarem convencidas, ela e as roupas. Procurou, também, as outras pessoas que lhe eram queridas, além de Balu, de quem gostava muito. Lá estava Lia, Benaris, e as inseparáveis Tritcha e Ananda. Tritcha era casada com Balu, belo par. Começaram as performances. A idéia era que cada pessoa, voluntariamente e não seguindo uma ordem específica, entrasse no círculo e mostrasse o que tinha preparado. Os outros, em volta, assistiriam e tentariam adivinhar a mensagem, transmitida apenas por gestos e movimentos. Deborah sabia que em algum momento teria de se arriscar a ir para o centro do círculo. Não tinha como evitar o “passar por”. Mas estava sem coragem. Até que se levantou da cadeira e foi. Alan percebeu que ela estava nervosa e mandou todo o seu apoio. Quando ela o olhasse, veria que ele estava ao seu lado. Ficou tão preocupado em ajudá-la, que não percebeu o que a improvisação queria mostrar. Notou que Deborah, assim que terminou, buscou em seu olhar a ajuda de que precisava. De fato, ela olhou em sua direção, esperando que ele tivesse compreendido o que queria mostrar. E Alan ficou mal: “Isso sim é que seria ajudá-la. Agora não sei nem o que dizer... mal lembro o que era... suas mãos no rosto... tenho que ajudála...” - e enquanto pensava, falou qualquer coisa. Deborah ficou um pouco frustrada, porque ninguém acertou. Talvez não tivesse tido capacidade para passar a mensagem corretamente. Mas não deixou de perceber o enorme esforço feito por Alan para compreender. Na verdade, de nada importava ele ter ou não compreendido. Seus olhos diziam que ele estava ao seu lado, independente de qualquer coisa.
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Quando Alan ouviu o título, Medo de Olhar, percebeu claramente o que era. Realmente, agora parecia óbvio. Mas na hora não conseguiu captar, de tanto que queria ajudá-la. Provavelmente, sua preocupação não o deixou vazio para receber, o que certamente não ocorreu com as outras improvisações. Pelo contrário, até o momento de Deborah, sentia-se como se estivesse de fora, percebendo tudo. Fazia seus comentários, como se o seu “dom de tudo ver” soubesse de tudo. E com ela...justo com ela... não conseguiu. Minutos depois, Alan levantou-se e foi para dentro do círculo. Enquanto fazia sua improvisação, sentia que seu objetivo estava sendo cumprido. A grande maioria achou que ele não treinara bem e tinha esquecido o que faria. Deborah olhava para ele, um tanto encantada. Parecia tão despreocupado, tão solto...ele não tinha medo do palco. Enquanto assistia, tentava entender quem era aquele ser. Meio irreverente, fora do convencional. Ela gostava, mas algo dentro de si esboçava uma censura. Como se o olhasse sempre com seu freio de mão puxado. Quando terminou, Alan ficou na dúvida se Johnny, a pessoa que dirigiria os atores, percebera sua brincadeira. Só quando pediu para repetir é que ficou claro para Alan que ele entendera. “Missão cumprida”, pensou. Estava tudo muito divertido, e dava para perceber o talento e dedicação de cada um. Alan ficou muito impressionado com Sirena, amiga inseparável de Deborah. Ela tinha muito jeito com o corpo, com os gestos, com a dança. Terminado o dia, disseram que na próxima reunião geral escolheriam as equipes de trabalho. Seriam basicamente três, com objetivos definidos: uma para figurinos e cenário, outra de danças e outra de atores. Todos esperaram, ansiosamente, o próximo domingo. Alguma coisa no ar dizia que a maioria queria estar no grupo dos atores. “Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz”. 26
Na semana seguinte, lá estavam as quarenta e tantas pessoas. Não tinham, ainda, a intimidade de quem trabalha junto profundamente. Mas já havia um certo carinho nos olhares que se encontravam. E a promessa de que o trabalho seria vivido intensamente e transformaria a vida das pessoas. Deborah, assim como a maioria, queria ser do grupo dos atores. Apesar do esforço que teria de fazer para enfrentar o palco, pressentia uma oportunidade maravilhosa de crescer interiormente. Sabia que cada conquista tinha um preço e não se contentaria em escolher o que era mais fácil. Preferia dar mais de si para alcançar mais de si. Ninguém sabia ao certo qual seria o critério para a escolha das equipes. Com certeza, Sirena seria escolhida para os atores, pensava Deborah. Ela queria ser atriz e tinha muito talento. Deborah gostaria de estar no grupo dela e de Alan também, pois sabia que poderia aprender muito com ele. Alan, por sua vez, estava sossegado. Não tinha dúvidas de que seria escolhido. Queria apenas saber quais seriam os próximos passos. Divertia-se ao lado de Balu, brincando e fazendo piadinhas com os outros. A lista de nomes começou a ser anunciada, dando a cada um a resposta tão esperada. A impressão era de que estavam todos ouvindo a lista do vestibular, para saber quem seria ou não aprovado. Na realidade, todas as equipes teriam um bonito e extenuante trabalho pela frente, mas...talvez aquele desejo escondido de ser ator ou atriz pairasse na vontade das pessoas. Obviamente, se não havia vaga para todos, a frustração foi inevitável, pelo menos no primeiro momento. Mas não foi o caso de Deborah, nem de Sirena. Ficaram radiantes, pois estariam trabalhando juntas no grupo de atores! E a alegria de Deborah foi ainda maior, quando ouviu que Alan também estaria neste grupo. Não podia ser melhor! Na verdade, não entendeu muito por que fora escolhida. Chegou a achar que, por ser muito amiga de Sirena, Johnny, o diretor, achou interessante incluí-la no grupo. Mas não importava o porquê. Estava onde queria.
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Assim que tudo ficou definido, os três grupos se separaram. Cada um foi para uma sala, para articular as atividades. O grupo dos atores tinha ao redor de vinte pessoas, número muito grande para desenvolver os trabalhos semanalmente. Foi, então, subdividido em quatro grupos de cinco pessoas, que trabalhariam separadamente durante a semana. Aos domingos, seriam realizados trabalhos mais intensos e mais longos, com o grupo completo de atores. Johnny definiu que era melhor manter os grupinhos anteriores, pois as pessoas já se conheciam um pouco. Talvez isso mudasse mais prá frente. Deborah mal acreditou. Ficaria novamente com Alan. Pena que estaria longe de Sirena. Ela tinha ficado em outro grupinho, com o Larico, Capuleta, Barbie e Markito, que pareciam ser pessoas legais. Mas se veriam aos domingos, de qualquer forma. “Que coincidência pensava - de novo com Alan. Como vai ser bom trabalhar com ele!” Agora, em vez de oito, eram cinco pessoas. Três tinham passado para o grupo das danças. Trabalhariam juntos: Maíra, Lena, Nando, Alan e Deborah. A tarefa era escolher uma das histórias do texto e representá-la, incluindo as improvisações que cada um tinha feito na semana anterior. Como o tempo era curto, resolveram reunir-se ali mesmo e escolheram a história rapidamente. Combinaram que na próxima terçafeira, ou seja, dentro de dois dias, teriam lido e relido a história e viriam para a reunião com sugestões de como apresentá-la. Na saída, Deborah procurou Alan. Estava inconformada com a escolha. Não tanto pela história, mas pelo modo como fora feita. — A gente não está aqui prá fazer as coisas de qualquer jeito. Se o trabalho busca qualidade, não é correndo que a gente vai conseguir alcançá-la”— falou. Alan percebeu que ela estava brava. E gostava do seu jeito invocado de ser. De alguma forma se reconhecia nela, pois sabia que estava lutando por algo justo, pela verdade das coisas. Enquanto ela, delicadamente, ainda esbravejava, ele disse: –– OK, OK. Acho que você tem razão. Qual a história que você escolheria? — Não é assim. Temos que resolver em grupo... — Qual você escolheria? — interrompeu. — A História da Fênix. Acho que traz... 28
— OK. Fica escolhida a Fênix, então. — interrompeu novamente. Deborah ficou um tanto sem graça. Provavelmente achava que teria de fazer um esforço muito maior para obter tal resultado. Como se estivesse preparada para levantar uma caixa pesada e, ao levantá-la, ela estivesse vazia. — E o Nando? — perguntou. — Não se preocupe — respondeu Alan. — Eu falo com ele e aviso os outros. Não haverá nenhum problema. A escolha foi rápida porque já era tarde e todos estavam cansados e queriam ir embora. Ninguém defendeu tanto uma história como você. Com certeza, esta deve ser a história certa. Despediram-se. Se Alan falara aquilo, então seria assim, pensava Deborah. Confiava nele. E, mais do que tudo, ficara feliz por perceber que ele tinha compreendido a sua posição, até mesmo concordado com ela. No dia seguinte, Alan ligou para o Nando, que além de chefe do grupinho era um dos quatro chefes do Projeto. Disse-lhe que o grupo resolvera mudar a história. Ele achou ótimo. Avisou, então, Maíra e Lena. Resolvido. A história da Fênix renascia das cinzas. “Eu dou a volta, pulo o muro, mergulho no escuro, saio de banda”.
Seguiu-se, então, uma seqüência de ensaios da Fênix, que ocorriam todas as terças-feiras de noite, além de outra noite na semana, quando necessário. Estes encontros eram intercalados com os trabalhos do grupão, quando todos os atores se encontravam no domingo e passavam horas seguidas desafiando a si mesmos em intensos trabalhos de corpo e de alma. Eram dias longos, que corriam sem que as pessoas se dessem conta do quanto estavam se transformando. Logo na primeira reunião do grupinho, na tentativa de recriar a Fênix, Alan e Deborah chegaram, embora na hora marcada, antes dos outros. Entraram numa pequena sala, a única disponível naquele horário, e começaram a trabalhar.
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Deborah estava um pouco desconcertada com o fato de estarem apenas os dois, sentados ali, lado a lado. Mas isto não a impedia de saborear a presença de Alan, que a cada dia lhe agradava mais. Não queria, como de início, tratá-lo com indiferença. E, ainda que quisesse, não conseguiria. A amizade entre eles estava tomando forma e não poderia haver mal algum nisso. Era uma relação bonita, saudável, que lhe fazia bem. Alan era uma pessoa encantadora e em seus olhos podia ler - estava escrito que não faria mal a ninguém, principalmente a ela. Só porque ele era homem, não era motivo para evitá-lo, pensava. Tinha muitos amigos homens, qual o problema? E enquanto estes pensamentos rondavam a sua mente, falava sobre a Fênix e em como imaginava que deveria ser a apresentação. Alan a ouvia com atenção. E Deborah sentia-se até mais talentosa e interessante ao seu lado, porque ele sempre dava outra dimensão às coisas que ela dizia. Era como se ele transformasse suas simples palavras em grandes verdades. Até no trabalho que desenvolvia na empresa, em Recursos Humanos, Deborah estava se sentindo diferente. O contato com Alan a deixava mais confiante, com coragem de arriscar e ousar. Para Alan, estar diante de uma pessoa que por não perceber seu enorme potencial ainda engatinha, sempre foi um momento de rara beleza. Como assistir ao percurso da semente à flor, da lagarta à borboleta. E era assim que ele a via. Deborah era um ser que ignorava sua força, coragem, ousadia e liderança. Enquanto falava de suas dúvidas quanto ao texto, apresentação, etc, aparentava uma insegurança que não tinha. E em meio à enxurrada de frases, ele a interrompeu: — Deborah, eu acho que você deveria dirigir o nosso trabalho. O Johnny falou que cada grupo deveria escolher alguém para ser o diretor. E ninguém melhor do que você, que escolheu a história. Deborah continuou falando, como se nada tivesse ouvido. Tentou segurar os lábios para não sorrir e seus pensamentos provavelmente estavam analisando a inusitada proposta. Mas como confiava em Alan e não queria desapontá-lo, aceitou. Ele a levava por caminhos inesperados...e ela ia. Para Alan não foi surpresa ela ter aceitado. Não tinha dúvidas de que faria isso. Lembrou-se de um Koan Zen: 30
“Era uma vez uma tigresa que morava nas montanhas do sul. Estava com muita fome, mas com dificuldades para caçar, porque estava grávida e na iminência de ter o seu filhote. Mesmo assim desceu para o campo, onde pastava um bando de ovelhas. E no esforço de caçar, a pobre tigresa morreu, dando a luz a um lindo tigrinho. Ele foi acolhido pelas ovelhas e cresceu brincando, saltando e balindo. Era “bé” para cá, “bé” para lá. O tigrinho virou tigre, meio desajeitado, mas tigre. Um dia, vindo das montanhas do Norte, um grande tigre rugiu. As ovelhas, apavoradas, corriam para todos os lados. O tigrinho, que já era tigre, ficou parado, confuso, sem saber o que estava acontecendo. O tigrão se aproximou do tigre e perguntou o que ele estava fazendo ali. Ele respondeu: — Bé! Bé! — Bé, Bé? O que é isto? — perguntou o tigrão — você não é uma ovelha, você é um tigre, como eu sou. E assim dizendo, levou-o à beira do lago e mostrou sua imagem refletida na superfície da água. Disse: — Tá vendo? Você é um tigre, somos iguais. — Bé! Bé! — só conseguiu dizer o tigre. O tigrão não teve dúvidas. Pegou um pedaço de carne, que havia caçado, e o enfiou goela abaixo do tigre. Este, que até aquele momento só havia pastado, engoliu o pedaço com nojo. De repente, o gosto do sangue acordou o tigre que havia dentro daquela “ovelha” e ele soltou um senhor rugido.” Deborah ainda balia, sem se dar conta do tigre que era. Mas Alan não lhe contou este koan. As coisas sempre têm um tempo certo para acontecer e ela não estava preparada, ainda, para reconhecer-se nesta história. “Vale tentar viver tudo demais Você me faz descobrir o dom de iluminar”
Os encontros se sucediam e, a cada um, mais um encontro acontecia. Os olhos verdes reconheciam-se nos olhos azuis. Os olhos
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azuis revelavam-se nos olhos verdes. Mas Alan e Deborah não se davam conta. Não sabiam que os olhos são a janela da alma. Um dia, distraidamente, Deborah telefonou para Alan. Nenhuma intenção havia, além de saber o que era para ser feito, pois tinha faltado na última semana. Algo dentro dela lhe perguntava se era só isso mesmo. Mas sua mente lhe respondia que Alan era apenas um amigo especial, portanto não havia problema em ligar para ele. O telefone tocou. Alan, sentado em seu escritório a 300 km por hora, como sempre, ouviu a secretária anunciar: — É a Deborah, do grupo, na linha dois. “Do grupo?”, assustou-se. Era como se Deborah tivesse revelado a identidade secreta de um super herói. Tantos anos sem dizer a ninguém que freqüentava um grupo de caminho interior... Era o fim do anonimato de um buscador, pensou. Na verdade, não teria tido nenhum problema se não fosse a cara que fez frente à secretária. Sentia-se como se ela lhe tivesse dito que seu professor de ballet estava na linha dois. Após refazer-se do choque inicial, relaxou. Ajeitou-se confortavelmente na cadeira e atendeu tranqüilamente o telefone, como se aquela fosse a única coisa que faria naquele dia. Com seu jeito um tanto irreverente, talvez o seu lado carioca, perguntou: — Olá! O que você quer de mim? — e Deborah, como uma boa judia que era, respondeu com outra pergunta: — O que você acha que eu quero de você? Mas palavras se desmancham ao vento, como nuvens passageiras. Um dos dois riu, e logo falaram sobre o que era prá ser dito: as tarefas, o trabalho, o próximo encontro. “Eu te liguei prá dizer nada”
...E na saída da reunião seguinte, Deborah perguntou se alguém ia para os lados do Itaim. “Que sorte a minha”, pensou Alan, “passo justamente por lá!” Logo prontificou-se a levá-la, disfarçando todo seu entusiasmo. Para Deborah não foi surpresa alguma, pelo contrário, já planejava isto. Sabia que Alan morava para aqueles lados e imaginou 32
que uma caroninha não faria mal a ninguém. Mas em vez de pedir diretamente, preferiu uma forma sutil, mesmo correndo o risco de outra pessoa se oferecer. Deu certo! Seria ótimo poder ter alguns minutos a mais para conhecê-lo e usufruir de sua companhia. Conversa vai e fica, conversa volta e fica. Sentados no carro, o motor desligado, em frente ao apartamento de Deborah. Para ambos, era especialmente bom conversar. Falavam sobre a vida, as pessoas, a busca espiritual de cada um. Era curioso como pareciam íntimos, sem serem íntimos. E, estranhamente, era a primeira vez que Deborah não se incomodava ao ser chamada pelo seu nome e não pelo apelido, Debby, como os íntimos a costumavam chamar. Com seu jeito de querer explicar tudo, comentou: –– Eu me relaciono pouco com as pessoas do grupo. Acho que lá é um lugar meio sagrado, fora do cotidiano. Talvez por isso eu sempre procurei ficar à parte, entrar e sair sem precisar “fazer amigos”. Mas com você é diferente, é especial. Alan abaixou a cabeça, um tanto envergonhado, e respondeu: –– Eu entendo o que você está falando. Também sou assim lá. Tanto que ninguém sabe muito da minha vida. Às vezes eu viajo a trabalho a semana toda, mas dou um jeito de voltar de noite para estar nas reuniões. Pro pessoal do trabalho eu estou fora de São Paulo. Para o pessoal do grupo, é como se eu estivesse sempre aqui. Isto me dá mais mobilidade para me movimentar. –– Mas você está lá há muito mais tempo do que eu. Quem são as pessoas que você gosta mais? –– A Lia é uma pessoa que eu gosto muito, é especial. O Benaris também, apesar daquela cara de bravo que ele tem. –– Eu só o conheço de vista, mas gosto do jeito dele. Parece que a gente gosta das mesmas pessoas. A Lia é uma das pessoas mais especiais prá mim. Aliás, foi por causa dela que resolvi entrar no grupo do teatro. Ela nem sabe, mas quando soube que seria ela uma das chefes, achei que não podia deixar de participar do trabalho. Aprendi muito com ela, num trabalho de fim de ano que fizemos há uns dois anos atrás. –– É mesmo? Ela é uma das pessoas que mais gosto no grupo. Ela e mais umas três. –– E eu? Sou um pouco especial prá você?
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–– Você é sim. –– Quero ser tanto quanto eles... Sorriram. Deborah tinha este defeito, de querer ser especial. Detestava ser “mais uma”. Nas coisas que fazia, nas amizades que cultivava, buscava sempre um tom que a tornasse um pouco diferente. Não via mal algum em ser assim, mesmo porque tudo era conquistado e não vinha facilmente. Apenas lutava por isso declaradamente. Alan surpreendia-se consigo mesmo. Aquele ser fechado, que nunca falava de sua vida, não estava ali. Conversavam, como se sempre o tivessem feito. Mais do que a voz e as palavras, falavam com os olhos. Alan e Deborah entendiam-se com uma intimidade que não tinham. Depois de um tempo, seria difícil adivinhar quanto, o inevitável: Deborah tinha de ir embora. Olharam-se. Despediram-se. Ela beijou-lhe o rosto ao sair, como fazia costumeiramente com seus amigos. Mas algo não lhe soou bem. Sentiu que Alan não queria isto. Na verdade, este beijo tão incorporado no dia a dia das pessoas parecia um tanto banal para expressar alguma coisa. Olharam-se novamente. E a partir daquele dia, o beijo não aconteceu mais. Uma espécie de acordo tácito. Os olhos despediamse, enquanto o olhar permanecia no invisível. “Rodava as horas prá trás, roubava um pouquinho e ajeitava o meu caminho prá encostar no teu”
E chegou mais um domingo, um domingo qualquer. Daqueles que se come pizza com chopp, que se vai ao cinema, que se paquera na Rua Augusta, que se enfrenta fila no Mac Donalds, que se reúne a família para jantar. Mas para o grupo do teatro, aquele domingo não seria um domingo qualquer. Os “atores” deixariam suas famílias, seus afazeres, e preparariam um lindo banquete para uma “festa no céu”. Seria a Noite dos Presentes e presentes de alma, não de pacotes embrulhados com laço de fita. 34
Cada um teria que dar ao grupo um presente feito na hora, diante de todos. Não valia trazer pronto. Dar às pessoas um pouco de si, coisa tão simples e tão difícil! O que cada um teria preparado? Começaram a chegar as pessoas, com ares de curiosidade, expressões de “será que vão gostar”, e algumas com jeito de estar aprontando surpresas. O salão foi ficando mais iluminado e mais quente, à medida em que mais pessoas chegavam e se sentavam no chão, até formar o grande círculo. Até que o banquete começou. Os presentes iam sendo, um a um, ofertados para aquele grande grupo, que se assemelhava, cada vez mais, a uma grande família. Larico contou uma piada. Penélope fez uma pintura com tinta. Liliane preparou um perfume. Balu dançou uma música espanhola. Markito improvisou no piano do salão. Ananda dançou, bailarina que era. E assim ia sendo, a noite entrando na madrugada e a madrugada aconchegando o coração das pessoas. Naquela noite, provavelmente as estrelas sorriam. Pelo menos era o que sentiam os que estavam ali presentes, naquele salão dourado. E a beleza do ser humano aparecia em cada ato que as pessoas conseguiam dar de si e receber. Prova indubitável de que o encanto pode acontecer até mesmo num domingo qualquer, com o mais comum dos mortais. Basta querer. Aquelas pessoas estavam buscando nada mais do que um contato maior consigo mesmas, mais nobre talvez. Alan ainda não tinha dado o seu presente. Passara a semana se preparando. Fez a cópia da capa do texto “A Conferência dos Pássaros” e sutilmente escondeu as palavras EU, AQUI, AGORA, ATENÇÃO. Gostava de presentear ocultamente. Como um tempero que se coloca na comida e perfuma o paladar, sem que ninguém saiba o que é e de onde vem. Alan era assim. Enquanto os presentes iam sendo um a um ofertados, ele estava preocupado em realizar o seu empreendimento. Estava com todo o material para imprimir em silk-screen ali, na hora, uns lencinhos de pano cru. Mas era uma situação precária, seria no improviso. E
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pela famosa Lei de Murphy, “se algo tem uma chance de dar errado, dará”. Apesar da impressão ser para todos, era — desde a preparação — à Deborah que ele queria impressionar. E ela, prá variar, em apuros. Estava morrendo de vergonha de dar o seu presente, pois teria de cantar na frente de todos. Durante a semana, vasculhou em si tudo o que sabia fazer. Tocava violão e piano e trazia um dom, uma leveza que mais do que aprendida era sentida. Um dia, enquanto tomava banho e pensava no presente, decidiu que cantaria uma música acompanhada pelo violão: Acalanto, de Vinícius de Moraes. Por algum motivo desconhecido, aquela música era como se fosse sua. Uma canção de ninar, de pai para filho, de filho para pai, de gente que nasce, cresce, envelhece e começa tudo de novo. Lá estava Deborah, novamente com sua dificuldade e a vontade de presentear. Quando pegou o violão tinha medo de que sua voz não fosse sair. Mas aos poucos foi se soltando e impregnando o salão de beleza. De certa forma cantava para Alan, que até aquele instante estava mergulhado em seu empreendimento. Separando a tela, o rodo, misturando ou misturado nas tintas, ele ouviu com todos os seus sentidos um som, uma melodia...uma música que atravessava seu ser e ele não acreditava no que ouvia. Deborah percebeu que ele voltara para o círculo, sentando-se do seu lado esquerdo. Podia vê-lo com o canto dos olhos e sentir, de corpo e alma, sua presença. Alan a observava. Ela estava especialmente linda. Sempre que a via sentia que, pela primeira vez, reparava no quanto ela era linda. Estava feliz por tê-la conhecido e por sentir que a amizade entre eles crescia . Uma amizade pura, desinteressada. Tão difícil de acontecer. Ouvia-a cantando e era como se, por um acidente, estivesse presenciando um milagre. Sentiu-se diante do impossível e compreendeu com precisão o que Ulisses sentira, amarrado ao mastro de um barco, ouvindo o canto das sereias. Estava surpreso ao vê-la emanando de voz e violão aquela música que premiava seus sentidos. Que presente! Todos deviam estar felizes por estar ali. Por um momento pensou naqueles que não tiveram a sorte de presenciar aquela cena. Vinícius de Moraes teria ficado orgulhoso se ouvisse. E Alan... ele também estava, de certa forma, orgulhoso. 36
“Gracias à la vida Que me ha dado tanto”
No salão, vinte e tantas pessoas ensaiando individualmente ou em grupinhos. Danças, pulinhos, canções, gritinhos. Caretas, carinhos, gestos e gestos. Se alguém que não soubesse o que estava acontecendo entrasse ali, teria a certeza de estar num hospício. Deborah ensaiava, sentada no chão com Sirena. E Alan tinha de revisar um texto, então resolveu sentar apoiando suas costas nas de Deborah. Ao encostar, achou que encontraria hesitação e rigidez. Mas, ao contrário, as costas de Deborah o receberam como que dizendo: “Onde você estava, que demorou tanto?” Sentados, olhando para direções opostas, mas encontrandose no caminho do corpo. Intimidade oculta. Costas com costas, respiravam juntos. E assim, por um longo intervalo de tempo curto, trabalharam confortavelmente separados, amparados por uma invisível cumplicidade. Deborah estava envergonhada, mas se deixou mergulhar. Por sorte tinha um trunfo: a título de teste, seu rosto estava exoticamente pintado de pássaro, por Sirena. Não se olhou no espelho. O que os outros viam, ela não via. Sentia-se estranha, como se sua face fosse uma tela de pintura, existindo somente para receber as mãos de um artista. Seu corpo estava descolado de quem ela era. Uma casca mascarada mostrava-se para o mundo, enquanto uma alma entregue recolhia-se em alegria. Assim ficaria mais fácil encarar Alan. E ele percebia que, de alguma forma, Deborah ganhara o dom de ver sem ser vista, de reconhecer sem ser reconhecida. Observava-a e era como se ela pudesse tudo, como se estivesse no intervalo entre o real e o imaginário e de lá pudesse ver os dois lados simultaneamente. Naquela noite, como em muitas outras noites, Alan levou Deborah à sua casa. Uma carona envolvida por certo mistério, que somente os pássaros dos reinos do céu poderiam decifrar. Tiveram que entrar na garagem, para que ninguém a visse pintada daquele jeito.
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Levou-a ao elevador, com seu violão, seus panos, seu texto e seu sorriso de “Obrigada e boa noite”. “Fadas e gnomos todos os duendes de todas as matas Esta magia, esta força que comanda cada elemento”
Os ensaios estavam cada vez mais intensos e com objetivos bem mais definidos. A história tomava corpo e o grupo sentia-se mais próximo. Não sabiam exatamente para onde estavam indo, mas os acasos e as coincidências davam pistas de que o caminho era aquele. O grupinho que estava trabalhando a história da Fênix também seguia o caminho da sintonia. Tudo fluía. Era um sábado de Yom Kippur, ano novo judaico, quando se encontraram para mais um ensaio. Deborah estava caprichosamente arrumada, pois iria à Sinagoga assistir ao ritual judaico. Era o único dia do ano em que ia à Sinagoga. Gostava das músicas e do cerimonial. Estava se sentindo bonita, iluminada. Era bom ter uma desculpa para se arrumar... para Alan. Tudo correndo bem, muita luz e calor, até que uma frase – – uma simples frase –– mudou o rumo do seu pensamento. “Será que ouvi direito?”, pensou Deborah. Maíra brincara com Alan que, agora que ele estava para se casar, precisava aprender os afazeres domésticos. “Será que entendi direito?”, pensou Deborah novamente. Sentiu seu coração se fechar. Turbulência. Nuvens cinzas encobrindo seu peito dourado. Conhecia-o tanto, entretanto nada sabia sobre sua vida. “Como assim? Alan vai se casar? Quem é a mulher que ele escolheu? Mas que importância isso tem? Ele já está na idade de se casar...aliás, é até meio tarde. Vai ver ele é aquele tipo de pessoa que vive prá trabalhar. Não deve ter muito tempo prá sua mulher. É... eu não gostaria de viver com alguém que não tivesse tempo prá mim. Mas... o que eu estou pensando? Devo estar louca! Sou casada, o que me importa como o Alan é? Qual o problema se ele realmente for se casar?” –– e seus pensamentos rondavam, atormentando o seu coração e pesando em seu corpo. 38
Deborah percebia-se afogada em dúvidas, culpas, medo e angústia. Assistia-se em seu próprio desatino. Uma voz ao longe lhe sussurrava que Alan não podia estar escolhendo outra mulher. Não naquele momento. Seria uma loucura casar-se justo agora, que eles tinham se encontrado. Mas a voz era baixa, muito baixa. Vinha de uma parte tão profunda do seu ser, que mal podia ouvir. O que escutava, em alta voz, era sua própria censura. Não podia estar pensando, sentindo, vivendo aquilo. Alan era livre para escolher seu caminho. Ela não tinha nada com isso... será?... “O que será, que será que dá dentro da gente, que não devia que desacata a gente, que é revelia”
Em um daqueles treinos que levava o dia todo, o grupo resolveu que faria uma viagem no feriado de 2 de novembro. Isto potencializaria os trabalhos e uniria mais as pessoas. A meta era ousada e o tempo curto. Alan sabia que quem não fosse nesta viagem estaria praticamente fora do grupo, pois seria difícil, para quem perdesse, recuperar a intensidade do que seria vivido. Estavam em dúvida se iriam para um sítio em Itu ou para uma casa de praia em Ubatuba. Era muito importante que ele soubesse o quanto antes qual seria a escolha. Precisava programar suas viagens de trabalho. Domingo, o grupo decidiu ir para Ubatuba. Começaram as combinações de caronas, refeições, horários, etc. Deborah já sabia com quem iria, óbvio. Apenas lhe comunicou: — Alan, vou com você, tá? — Não vai dar, porque pretendo estar trabalhando no Rio de Janeiro e devo ficar lá até sexta-feira de tarde. Aí vou direto prá Ubatuba, passo a noite lá, no meu trailer, e no sábado cedo já vou prá casa da Liliane. Mas na volta você vem comigo.
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— ... Tá... combinado — respondeu Deborah um pouco frustrada pela carona que não teria. Em seus pensamentos — que ninguém ouvisse! — um mar turbulento. Em seu coração — que ninguém soubesse! — um mar agitado. “Ele tem um trailer. Que incrível! Sempre foi meu sonho conhecer um trailer e nunca conheci ninguém que tivesse um! É perto da casa onde vamos ficar... Será que ele falou de propósito? Imagine se eu vou lá com ele, claro que não... mas já pensou se eu fosse? Melhor nem pensar.” Depois de tudo combinado, Alan procurou Johnny, o diretor, e perguntou-lhe se a decisão era definitiva. Ele respondeu que sim e que não haveria nenhuma possibilidade de mudança. Segunda-feira, Alan começou a agendar suas reuniões no Rio de Janeiro, como havia planejado. De noite, encontrou Johnny e novamente perguntou-lhe se o local continuava sendo o mesmo. Ele respondeu que sim e que estava indo a uma reunião com os chefes para confirmar tudo. Alan aguardou. Na saída, Johnny reconfirmou o local: Ubatuba. Mais uma vez, Alan avisou-lhe de sua programação e pediu que, se houvesse qualquer alteração, lhe fosse comunicada logo. Johnny colocou a mão em seu ombro e disse: — Fique tranqüilo. E Alan ficou. Terça-feira à tarde, Deborah recebeu um telefonema em seu trabalho. Uma reunião de última hora tinha sido marcada e o grupo de teatro se encontraria no dia seguinte, quarta-feira, às 14 horas, para falar sobre a viagem. Achou um pouco estranho. Na madrugada de terça para quarta-feira, Alan passou a noite gravando algumas fitas para levar na viagem. Quarta-feira, dia de eleição, o grupo todo se reuniu. Deborah entrou no salão um pouco atrasada. Estavam todos sentados no chão, em círculo. Demorou algum tempo até que ela entendesse o que estava sendo discutido. Assustou-se quando percebeu que estavam levantando a hipótese de não viajar. Alguns falavam que a dedicação excessiva ao trabalho estava comprometendo outros aspectos da vida. Outros diziam que a praia era muito longe e que o ideal seria o sítio em Itu. Algumas pessoas diziam que não poderiam ir. Seus olhos percorreram o salão à procura de Alan. Onde estava ele? Será que tinha sido avisado desta reunião de última hora? Claro 40
que sim! Afinal, estavam todos ali, mais de quarenta pessoas... menos ele. “Já deve ter ido viajar”, pensou. A discussão estava tomando um rumo tal que fugia de seu controle. E se não houvesse a viagem? E a oportunidade de conviver três dias com Alan? Por que aquela confusão toda em cima da hora? Chegou a se desentender com uma das coordenadoras. Ela insinuara que, para Deborah, tudo era fácil: que ela era jovem, que tinha tempo, menos responsabilidades. A resposta que ouviu foi educadamente mal educada. Ficou um mal estar no ar. Aliás, o clima estava nublado, estranho, diferente do habitual. Deborah refletiu sobre como sua vida não estava tão fácil assim, mais ainda a fase pela qual estava passando. Lembrou o quanto foi difícil para o Mauro aceitar que ela viajasse, embora não tivesse outra escolha. Pensou no quanto estava lutando para equilibrar o trabalho do teatro e o seu casamento. Sabia que estava aprendendo e crescendo muito interiormente e isto não era motivo para separá-la de seu marido. Pelo contrário, deveria aproximá-los mais. Mas, por alguma razão, não era o que estava acontecendo. Não estavam caminhando juntos e por vezes parecia até que estavam vivendo um contra o outro e não com o outro. Mas era uma fase, pensava. Estaria sempre disposta a lutar pela relação, pois sabia que os momentos de turbulência faziam parte de qualquer relacionamento. Era uma fase e ia passar. De repente, acordou para a reunião. E se não houvesse a viagem? Sentiu um aperto no coração. Tanta expectativa, tanta discussão em casa... prá nada! Ela queria esta viagem de qualquer jeito, mesmo levando em conta as conseqüências. Enfim, decidiram: seria no sítio em Itu. Mais perto de São Paulo, mais prático, mais adequado. Deborah foi voto vencido, com mais alguns poucos que preferiram a praia. “Se o Alan estivesse aqui...”, pensou. “Bom, dos males o menor. Melhor isso do que não ter a viagem”. Mas logo lhe voltou a dúvida: “E o Alan? Onde será que ele está? Ligo prá ele ou não? Melhor não... é chato ficar o tempo todo em cima... e se ninguém avisá-lo? Imagine, é claro que vão avisar! Estou me preocupando sem razão. Mas é melhor perguntar quem vai telefonar prá ele. Só não posso perguntar muito...”. E assim fez. O máximo que conseguiu foi obter, discretamente, a confirmação de que alguém ligaria.
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Uma certeza um tanto duvidosa para sua cabeça cheia de fantasmas. Mas não se permitiu ir além disso. Alan, por sua vez, passara a tarde de quarta em São Paulo. Após o almoço foi votar e na volta pensou que, ao invés de ir para o Rio de Janeiro na quinta de madrugada para economizar hotel, sairia na própria quarta para economizar sono. Estava tranqüilo, pois além de ninguém ter telefonado, sabia que a dona da casa estava em Ubatuba fazendo os preparativos. O seu carro estava lotado. Parecia que viajaria por muitos meses. Tinha, inclusive, um equipamento profissional de vídeo, que alugara para gravar os ensaios. Na estrada, apesar do carro estar indo para o Rio de Janeiro, todo o resto estava indo para Ubatuba. Passou a quinta. Demorou a sexta. Chegou o sábado. “Estou a dois passos do paraíso Talvez eu fique, eu fique por lá...”
De manhã, o tempo estava lindo e a brisa do mar anunciava o belo feriado que o grupo teria para trabalhar. Alan estava feliz. Dirigia rumo ao que seria, provavelmente, os melhores dias daquele turbulento ano. Deborah acordou cedo. Era um sábado azulado que prometia delícias. Encontrou-se com Sirena e Larico, foram buscar Johnny em sua casa e pegaram a estrada. Estavam de bem com a vida, comendo sanduíches na expectativa do que seria vivido. Alan, na estrada, guiava feliz só de pensar que estaria com Deborah em seu ambiente natural, praia, mar. Queria lhe mostrar o seu lado moleque. Seu carro estava cheio de surpresas, tinha até uma caixa de maçãs verdes que usariam para a apresentação que tinham preparado. Além disso, fitas de vídeo, guloseimas mil e a câmera profissional de vídeo. 42
Deborah foi uma das primeiras a chegar no sítio. Assim que desceu do carro fez um reconhecimento do local, como sempre costumava fazer em lugares desconhecidos. Como os gatos, demorava um tempo até se sentir parte do espaço. Precisava olhar, andar, sentir o clima, os cheiros, até ficar à vontade. Após uma pequena caminhada, deitou-se na grama e ficou. Ficou...enquanto respirava o ar molhado da manhã. Ficou...enquanto outras pessoas chegavam. Ficou...enquanto os carros estacionavam. Ficou...enquanto esperava o carro de Alan. Ficou...enquanto ele não vinha. Ficou...e Alan não chegava. ... e Alan não chegava ... e Alan não chegou. Deborah não entendia, não acreditava, não aceitava que isso pudesse estar acontecendo. Chegou a perguntar novamente para Maíra se Alan tinha sido avisado. Ela respondeu-lhe que sim, que tinha deixado um recado para ele de que o encontro seria no sítio em Itu. Deborah, ingenuamente, perguntou: — Mas você deixou o endereço? E ela respondeu: — Não, mas todas as pessoas antigas do grupo conhecem o sítio e se ele não souber é só falar com alguém que conhece. Ele se vira! “É... ele se vira...— pensava Deborah — devo estar me preocupando à toa... é capaz que ele ainda chegue”. E Alan finalmente chegou... à casa da praia. Faltavam vinte minutos para as nove horas. Saiu do carro, estava tudo quieto, não havia movimentação. Estranhou um pouco, mas pensou: “Vai ver ainda não chegaram.” Aguardou, num misto de ansiedade e tranqüilidade. Foi até a praia, voltou. Nove horas, o horário combinado, nada. Nove e trinta, nada. Depois de uma hora de espera resolveu tocar a campainha para saber se alguém ligara avisando que iria atrasar. A caseira atendeu: — Pois não? — Eu sou do pessoal do teatro. Alguém já chegou? — Como? — O pessoal que vai passar o feriado aqui. Alguém já chegou? — Que pessoal?
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Alan começou a se preocupar. Pensou rápido e.. ah, sim! Ele estava na casa errada! — Aqui é a casa da Liliane? — É sim. Piorou. Se o lugar era este... será que o dia tinha mudado? — Você está sabendo que estão prá vir umas trinta pessoas neste feriado? — Não. Só virão duas. Estas pessoas que o senhor está falando não vão vir mais. — O quê??? Uma sensação de “isto não pode estar acontecendo” o invadiu. Procurou uma explicação para o inexplicável. E por cúmulo da ingenuidade ainda perguntou: — Deixaram algum recado prá mim? — Não. — Posso usar o telefone? Ligou para casa e disseram-lhe que uma mulher tinha ligado na quinta-feira, avisando que o local mudara e seria em Itu. Alan perguntou se tinham deixado o endereço. Não. Ligou, então, para algumas pessoas que conheciam o local, mas era feriado e não encontrou ninguém. Naquele momento, teve uma sensação como poucas vezes na vida sentiu: a de não ter a menor idéia do que fazer. Foi para o carro, olhou para tudo o que trouxera e que não era nada diante do que trazia em si. Estava humilhado. Nem parecia aquele ser de uma hora atrás, que se achava tão importante, pensando que nada poderia acontecer sem ele. Aquele semi-Deus estava reduzido a um cachorrinho molhado e sem dono. Pegou a estrada. Teria um longo caminho, bem longo, até chegar a São Paulo. Lá tentaria encontrar alguém que soubesse do endereço. Estava triste. Dirigia rumo ao que seria, com certeza, um dos piores dias daquele turbulentíssimo ano. Estava triste de estar longe de todos e principalmente de Deborah, que não o veria em seu ambiente de mar. Sentiu raiva de Johnny. “Por que a vida está fazendo isso comigo?”, pensou. 44
Sentia-se o último dos últimos quando decidiu ficar em Ubatuba, no seu trailer. Pensou que poderia chegar a São Paulo e não achar o endereço, o que seria bem pior. A decisão lhe fez bem. Foi, então, para o trailer para fazer uma coisa que há muito não fazia: descansar. No sítio, muitos trabalhos foram realizados e muita beleza foi vivida. Mas Deborah sentia falta de Alan. Mais do que gostaria, mais do que agüentava, mais do que podia. Saiu de carro com Sirena e arranjou um telefone, que ficava em uma vendinha muito simples, próxima do sítio. Ligou para Alan... ninguém atendeu. Nada mais havia para fazer. Ligou para Mauro. Achou bom poder lhe dizer que Alan não tinha ido. Ele ficaria mais tranqüilo. Procurava ser sempre o mais sincera possível com ele, mesmo porque não havia nada a ser escondido. No entanto, por mais honesta que fosse, Mauro se incomodava com a existência de Alan. Quando Deborah lhe contou pela primeira vez que tinha conhecido uma pessoa muito incrível, que participava do seu grupo, sua resposta foi inesperada: “Debby, eu sei quem ele é. Este cara tem a ver com você.” Enfim, Mauro sabia que Alan era uma pessoa especial para ela e de alguma forma se incomodava. Se ele fosse mulher esta amizade não seria um problema. Desligou o telefone. Estava confusa. Não podia estar tão mal assim. Que busca era aquela? Se o importante era o que estava aprendendo e se descobrindo, por que a viagem sem Alan parecia tão incompleta? Conversava muito com Sirena, que procurava sempre acalmá-la, dizendo para não se culpar por estar sentindo isso. Entregou-se, o máximo que pôde, às vivências que estava passando. Não deixou de estar presente no que fazia, nem deixou de respirar aquela energia tão boa que estava acontecendo. Mas em cada detalhe, em cada cena vivida, sentia Alan. Sua ausência era tão forte que o tornava, talvez, até mais presente do que se estivesse lá. É... ele estava lá. Ela sentia. Por outro lado, estava aliviada. Seria complicado conviver três dias com ele. Poderia aproximá-los demais. “Talvez tenha sido melhor assim”, pensou. Alan passou os dias não fazendo nada e depois descansando. Vez ou outra pegava uma caneta e rabiscava uns pensamentos. Uma
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noite, foi paquerar na cidade. As ruas estavam cheias de pessoas fazendo isso. Ele não sabia por onde começar, já que este programa não lhe era nada habitual. Ficou um pouco zonzo e desistiu. Foi olhar uma feirinha de artesanato e encontrou um broche com o símbolo do teatro: as duas máscaras gregas, uma feliz e uma triste. “O doce e o amargo”, pensou. Comprou-a para Deborah. Onde estaria ela? Será que sentia a sua falta? Devia estar no maior pique de trabalho, imagina se teria tempo de lembrar dele! Adormeceu o sábado. Aconteceu o domingo. Anoiteceu a segunda. Amanheceu a terça. E a viagem terminou.
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RÉ Não serão os desencontros uma outra forma de encontro?
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São Paulo, here we are again! Lá se vai mais um encontro desencontrado. Ou, quem sabe, um desencontro acertado. Deborah estava forçosamente conformada. Já que não acreditava em acasos, alguma explicação procurava encontrar. Provavelmente, tinha sido um sinal de que era com seu casamento que deveria se preocupar. Tudo indicava isso. As coisas estavam tomando um rumo incerto em seu coração e, por sorte, ela estava sendo ajudada a retomar o seu caminho... sem Alan. Era isto que deveria fazer, a vida estava lhe mostrando. Mas... por que ele não fora? Queria saber! Cada um tinha uma coisa a dizer sobre este fato. Maíra comentara que Alan era uma pessoa difícil de encontrar. Tentara avisá-lo de todas as formas em seu escritório, mas ele estava “incomunicável”. Comentou que Alan fazia de tudo para não ser incomodado e por isso ela não conseguiu encontrálo. Lena, que parecia até mais íntima dele, falou que a questão era o trabalho: ele estava na tal idade da busca de ascensão profissional e as outras coisas tornavam-se secundárias. Deborah ouvia as considerações alheias, mas não faziam muito sentido. Via um Alan completamente diferente: que se esforçava ao máximo para estar presente nas reuniões, que tinha alma de buscador e que encarava o trabalho do grupo como uma das coisas mais importantes de sua vida. Assim como ela. Mais ainda, via um Alan disponível, que estaria por perto sempre que fosse chamado, era só assobiar. Então, por que ele não fora? A continuidade do trabalho precisava dele. Mas se ele fosse parar, o grupo tinha que saber. E se fosse continuar, precisava estar a par do que tinha sido feito na viagem. Afinal, era o único que não tinha ido. Depois de dois dias ruminando dúvidas e saudades disfarçadas, resolveu buscar as respostas diretamente na fonte.
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Chegou a casa, já era noite. Mauro estava lá. Trocaram algumas palavras e em seguida Deborah já estava com o telefone na mão. Sabia que ele poderia se incomodar, mas ligaria mesmo assim. Nada tinha a esconder. Precisava saber se Alan continuaria no grupo ou se tinha desistido, para poder dar andamento ao trabalho. Respirou fundo e discou o número que a levaria, talvez, aos porquês. Uma mulher atendeu e disse que Alan só chegaria após as 10 horas. Deborah pensou rapidamente. Seria um pouco tarde prá deixar recado, mas não agüentaria esperar nem mais um dia. Pediu para ele ligar assim que chegasse, mesmo se fosse tarde da noite. Esperou. Alan chegou em casa por volta das 11 horas. Encontrou o recado de Deborah em cima da mesa, o que imediatamente o transportou de volta ao teatro e seus desencontros. Enquanto discava o número, perguntava-se se não seria muito tarde para estar ligando... Quando o telefone tocou, Deborah atendeu em seu quarto. Conversar com Alan perto de Mauro era um pouco incômodo, pois sabia que ele tinha ciúmes. Mas pedir para ele não ouvir seria muito pior, mesmo porque não estava escondendo nada. Não tinha escolha, falaria normalmente. — Oi...Tudo bem? — Tudo bem. Não está muito tarde prá eu te ligar? — Não... eu estava acordada... — ... — O que aconteceu que você não foi viajar? Me senti tão abandonada... Alan ficou tão surpreso com a pergunta que nem sabia o que responder. Tinha um mundo de lamentações prá contar, mas no lugar de um “coitadinho” em tom consolador, foi recebido com um “você me abandonou”! Sentiu que Deborah estava com um misto de zanga e alívio, que resultava numa quase indiferença. Respondeu atonitamente: — Eu também me senti abandonado. Fui viajar para o lugar combinado. Cheguei em Ubatuba e não tinha ninguém. — Não acredito! Ninguém te avisou? A Maíra disse que tinha te ligado! 50
— Ela ligou, mas quando era tarde demais. Eu estava no Rio e ela deixou recado com a minha mãe que o local tinha mudado prá Itu. Deborah, ainda sem entender o absurdo que estava vivendo, perguntou quase como se ainda desse tempo de mudar a história: — E por que você não foi prá lá? Enquanto falava, Alan tinha a nítida sensação de não estar dizendo nada. Tudo o que passara naquele inesquecível feriado não estava sendo sequer minimamente traduzido naquela conversa. Deborah mostrava-se tão prática, quase cortante, que mal lhe dava tempo de responder às suas perguntas. Explicou: — Não sabia o endereço. Tentei de todo jeito encontrar alguém que soubesse onde era o sítio, mas era feriado, não achei ninguém. Pausa. Um silêncio do ser profundo, enquanto Deborah se recuperava do espanto que estava sentindo. Foram segundos de eternidade, que presenciaram os mais incompatíveis sentimentos: raiva, remorso, traição, arrependimento, vergonha, inconformismo, tudo o que era possível sentir diante de um fato impossível. Todo o seu ser queria voltar atrás, desfazer o mal entendido e refazer tudo de novo. Mas o tempo já tinha sido, Alan estava do outro lado da linha e era Mauro quem estava ao seu lado. Nada mais adiantava fazer, muito menos falar sobre o assunto. Balbuciou qualquer coisa: — Puxa vida! Que chato! Você deve ter ficado triste... — Pois é... — Bom... agora já estamos de volta! Então é daqui prá frente, né? Deixa eu te contar o que será feito de agora em diante. E com este tom de “vamos ser práticos” conversaram alguns minutos. Foi um diálogo que, como a maioria dos diálogos, só serviu para uma coisa: não revelar o que de fato importava. “Bem que se quis depois de tudo ainda ser feliz Mas já não há caminho prá voltar E o que é que a vida fez da nossa vida”
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Durante a semana, em meio à correria do dia-a-dia, a mágoa de Alan por não ter sido avisado foi se cristalizando em raiva. Não via a hora de “desmascarar” Johnny diante de todos. Esse dia finalmente chegou. Alan subiu lentamente as escadas, como quem vai para um duelo fazer justiça. No caminho, entre a entrada e a porta do salão onde ocorreria o tão esperado massacre, encontrou Deborah. Inesperadamente, ela o abordou sem nem dizer um “oi”, despejando uma grande quantidade de palavras em tom de bronca, que ele imaginou ser uma tentativa de colocá-lo a par dos acontecimentos. De fato, depois de tantos desencontros, um pequeno muro se reconstruíra dentro dela. Não queria mais contar com Alan como antes, ou mesmo esperar tanto dele, como antes. Acreditava realmente que a história da viagem tinha sido um sinal — uma ajuda até — para quebrar o encanto e lhe dar forças para concentrar sua atenção no casamento. E foi com este pensamento que o recebeu. Naquele instante, totalmente desarmado diante do inusitado, Alan sorriu. Sentiu como se sua espada tivesse se transformado em flor, ao perceber em Deborah uma braveza inesperada, quando na verdade esperava um consolo cúmplice. Parecia estar sendo flagrado em uma travessura. Pensava em como ela não tinha a menor idéia da tragédia que acabara de evitar. Já dentro do salão, Alan deu um depoimento, dizendo o quanto aprendera com o ocorrido. E o fez com amor e genuína humildade. Sentiu-se forte, vigoroso e justo, apesar de ter feito exatamente o contrário do que acreditava que o levaria a este mesmo sentimento de justiça. Deborah, que não tinha a mais remota idéia do que Alan havia planejado para aquele dia, ficou orgulhosa ao ouvi-lo falar. De alguma forma, era como se falasse por ela também. A cada dia que passava, notava o quanto ele tinha um jeito especial de ser e de olhar o mundo. Apesar de ter conseguido encontrar serenidade em meio à raiva, Alan percebeu claramente que não ter viajado o distanciou do grupo. E por mais que fizesse, não haveria volta. Passou a lidar com isso como um fato, não mais como um problema. Mas certa tristeza era inevitável. 52
Mais tarde, numa conversa com Lena, Alan descobriu que Larico tinha se encarregado de avisar sobre a reunião de quarta-feira para metade do grupo e Alan fazia parte desta lista. Lena disse-lhe, inclusive, que alertara Larico para avisá-lo rapidamente, pois sabia de suas viagens. Mas ele não o fez. A falha foi localizada. E agora só restava continuar com a serenidade de instantes antes... ou enforcar Larico. Naquele mesmo dia, Johnny anunciou que seriam formados casais de pássaros e não apenas um de cada, como estava no texto. Alan olhou rapidamente pelo salão, imaginando com quem cairia. Obviamente, com Deborah seria ótimo, com Ananda e Tritcha também seria bom. Ficou aliviado ao perceber que com apenas uma pessoa — Penélope — não gostaria de ficar de jeito nenhum. As chances de cair com ela eram mínimas. Johnny começou a anunciar os pares, quando de repente o inacreditável: Alan e Penélope! Foi como acertar na loteria ao contrário. Ele olhou para ela, que ainda por cima sorria para ele. Lembrou-se que estava ali para trabalhar sobre si mesmo e aceitou o fato. Não tão dignamente quanto esperava dele mesmo, mas o suficiente para não sair pela porta e não voltar mais. Mais tarde, contando para Deborah o seu infortúnio, surpreendeu-se ao ouvir que ela não só gostava de Penélope, como ainda acreditava que ele passaria a gostar também. Olhou novamente para Penélope e, talvez pela primeira vez na vida, considerou a hipótese de estar enganado em um pré-julgamento. Acreditava que uma pessoa que fosse merecedora da estima de Deborah não poderia ser ruim. Neste dia Alan compreendeu que a vantagem de ser um buscador do caminho interior é saber que as coisas são assim mesmo. A beleza deste caminho consiste em transformar os problemas em oportunidades e vivê-los na sua totalidade. “Eu quero te contar das chuvas que apanhei das noites que varei no escuro a te buscar Eu quero te mostrar as marcas que ganhei nas lutas contra o rei”
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Com o dia da apresentação se aproximando, os ensaios se intensificaram. Os grupos reuniam-se espalhados por São Paulo — casas, escritórios, salões, onde quer que houvesse um espaço para ser transformado em fantasia (ou realidade?). O real e o imaginário conviviam de mãos dadas e chegavam mesmo a confundir-se. A vida dos pássaros estava dando às pessoas uma nova dimensão do universo. O que estava marcante neste período dos trabalhos — principalmente para Alan e Deborah — era a lenta compreensão de que os opostos agem simultaneamente num mesmo evento. A princípio a idéia parece um pouco sem sentido, mas na verdade ela esconde um dos incríveis segredos do viver. O símbolo desse entendimento era uma das cartas do Jogo do Triângulo Mágico do mestre Mathetés Gurco (espécie de oráculo, composto de 45 cartas-aforismos), que aparecia constantemente no caminho. Ela dizia: “A vida proporciona alternadamente dois sabores: doce e amargo. Saiba colocar-se no justo meio e experimentará o divino terceiro sabor.” Naquele dia, o ensaio foi no atelier de Valentina. O grupo da Fênix estaria, a partir daquela data, se juntando a outro grupinho para formar um só. Nele, além de Valentina, estavam Ananda, Tritcha e Tina. Após o ensaio que deixou claro o bom entrosamento de todos, Alan entregou um presente para Deborah. Era o broche que comprara em Ubatuba. Talvez uma forma de dizer que, de alguma maneira, pensara nela e não a abandonara, conforme ela vinha alegando. Ao receber o presente, num misto de vergonha e felicidade, Deborah sorriu. Não sabia o que dizer, porque entendia aquele gesto como um ato de amor. E é sempre desconcertante estar diante de uma demonstração de amor — embora seja isto o que as pessoas mais querem na vida. Olhou para o broche e viu as duas máscaras do teatro grego: alegria e tristeza. Os opostos juntos... o doce e o amargo. Compreendeu o que Alan compreendera. Mas o símbolo ainda tinha muito mais a falar...
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“Someday, somewhere We’ll find a way of living”
Encontraram-se novamente no domingo seguinte. Com o trabalho mais definido, cada pessoa já tinha o seu texto e os seus personagens para ensaiar. Enquanto Johnny treinava alguns pássaros, os outros assistiam, sentados no chão. Alan e Deborah estavam ao lado um do outro, olhando os textos que deveriam decorar. Comentavam como era incrível a semelhança das pessoas com os pássaros que lhes tinham sido designados. Deborah, sorrindo, disse a Alan que ele era o próprio falcão, o pássaro que deveria representar: nobre, imponente, cheio de si. Ele ficou envergonhado e um pouco orgulhoso, e não conseguiu dizer nada. Em seguida, em parte contrariada, ela disse que todos os pássaros tinham a ver com as pessoas, menos o dela, a garça: — Não sei por que o Johnny escolheu a garça prá mim. Tem coisas no texto que não tem nada a ver comigo! — E ao dizer isso, deu o texto para Alan ler, esperando sua confirmação. No entanto, enquanto lia, Alan sorria interiormente ao perceber que o texto tinha sido escrito especialmente prá ela. Procurando as palavras precisas, falou: — Acho que você tem muito de garça, sim. Olhe só este trecho: “Sou tão inofensiva que não há no mundo quem de mim se queixe”. Deborah sentiu-se pega em seu próprio flagrante. Percebeu o quão óbvio era a sua semelhança com o personagem e, se por um lado ficou desconcertada, por outro sentiu-se feliz por ter alguém que a conhecesse além das palavras, e que a ajudava a estar mais perto de si mesma. Era verdade. Mostrava-se para o mundo de uma forma inofensiva, embora se sentisse forte. Como fazer para ser aquilo que, de fato, ela era? Como ultrapassar a fronteira? Queria estar mais perto do seu ser e buscava fortemente este caminho. Mas ainda faltava... faltava alguma coisa. Enquanto conversava com Alan, percebia que estava longe do que queria, mas ao mesmo tempo, mais perto do que jamais estivera.
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Alan olhava para aquela garça invocada e, no caminho de volta prá casa, durante a costumeira carona, ofereceu-se para treiná-la. Sentia que poderia lhe mostrar que, como a garça, tinha leveza, precisão e beleza. Sua relação com a água e seus reflexos. O domínio do ar e seus ventos. O curioso era que conversavam sobre o jeito de cada um como se estivessem se descobrindo. Mas, na realidade, apenas constatavam o quanto já se conheciam. Boa noite, e a promessa de que Deborah aprenderia com Alan a ser a garça que ela já era. Eu te asseguro pássaro amarelo que um dia hei de te mudar com este teu canto belo p’rum canto livre cantar”
...Mas a promessa não pôde ser cumprida. Um dia antes do combinado, Deborah ligou para Alan, em seu escritório, desmarcando o ensaio. Estava gripada. Por um instante de segundo, ele imaginou que, por algum motivo, ela não queria que ele a ensaiasse. Mas no restante daquele mesmo segundo e de outros tantos, ficou aliviado. Estava sem tempo, e estes ensaios complicariam ainda mais sua vida. Ao desligar o telefone, Deborah sentia uma mistura de arrependimento com alívio. Queria muito ser treinada por Alan, pois tinha muito mais intimidade com ele do que com Johnny e poderia aprender mais — embora o constrangimento fosse até maior, justamente porque tinham uma intimidade sem serem íntimos. Mas o seu corpo estava falando mais alto. Precisava descansar e não teria forças para aquele encontro. “Tudo bem — pensava — a gente ensaia na semana que vem”. Mas a “semana que vem” não veio. O que veio foi uma sucessão de semanas que, de alguma forma, não aconteciam. O corpo de Alan também falou mais alto. O resultado óbvio, graças ao acelerado rítmo de trabalho em que estava mergulhado: ficou doente. Apenas uma pneumonia. 56
O envolvimento de Alan com o trabalho era muito forte. Ele se entregava de corpo e alma ao que fazia e não media esforços para que as coisas acontecessem. Certa vez, Fúlvia, sua ex-mulher, cronometrara durante três meses suas horas de trabalho. O resultado foi uma média de 14 horas por dia. De fato, podia-se dizer que embora Alan tivesse amor por seu trabalho — ingrediente essencial para qualquer atividade da vida — ele ainda não encontrara o equilíbrio, a justa medida. E quando o excesso gerava saturação, o seu corpo tinha a inteligência de obrigá-lo a parar. Foi assim que — não pela primeira vez — Alan ficou de cama. Incomunicável por mais de dez dias, ficou amargando sua própria estupidez. Como é fácil ser tolo, achando que está abafando! Aquele Alan imprescindível em todos os campos, talvez nem estivesse sendo lembrado. O mundo não parou e a vida dos outros continuou — assim como a recente viagem ao sítio que aconteceu sem sua presença. Havia algo a aprender. Muitas coisas acontecem em nossa vida, não porque queremos, mas porque precisamos. Mas para Deborah, novamente, não foi tão tranqüilo como deveria ser — ou como acreditava que deveria ser. De repente, não conseguia mais encontrá-lo. Telefonava para seu escritório e recebia a informação de que ele estava viajando e não sabiam quando voltaria. Achava estranho ele ter ido viajar e largado o grupo sem lhe dizer nada. Alguma coisa não estava encaixando, mas ela não sabia o quê. E este incômodo constante no peito, por não saber o que estava acontecendo, lhe parecia mortal. Para ela, não havia nada pior do que não saber os porquês. Após alguns dias, recebeu a informação de que Alan estava doente. Por um lado aliviada, tentou encontrá-lo em sua casa. Queria dar um apoio pelo telefone, ao menos saber se era grave. Mas ele estava incomunicável. Por várias vezes telefonara e por várias vezes uma mulher atendia o telefone e lhe respondia que ele não tinha condições de atender. Deixava recado, mas não recebia retorno. Mais uma vez, o incômodo no peito. Tinha dificuldade de aceitar que Alan, por mais doente que estivesse, não pudesse — ou não quisesse — falar ao menos um minutinho com ela. Foram semanas — talvez meses — de angústia e intranqüilidade. Cada encontro era
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precedido pela expectativa de que Alan aparecesse e terminava em decepção, pois ele nunca voltava. Até que seu coração resolveu descansar. Acostumou-se com a idéia de ele não vir mais e sua mente lhe dizia que talvez fosse melhor assim. Estavam sendo vítimas de uma sucessão de desencontros, que deveriam ter a sua razão de ser — embora ela não tivesse a mais remota idéia de qual era. Mas entendeu isso como um sinal, até mesmo como uma ajuda para se afastar um pouco de Alan e se concentrar em sua vida com Mauro. Seria difícil precisar quanto tempo se passou durante aquele período. O calendário marcava duas semanas. Mas o coração registrava o infinito, um tempo que parecia nunca terminar. Neste infinito, Deborah novamente retomou o seu caminho — sem Alan. “Eu descartava os dias em que não te via Como de um filme, a ação que não valeu”
De volta ao que considerava ser a escolha de sua vida, Deborah colocou todas as suas forças na relação com Mauro. Não que antes estivesse displicente, mas uma parte sua estava encantada com o que estava vivendo no teatro, principalmente com Alan. E agora, após os quinze dias de infinito, Deborah sabia exatamente o que deveria fazer. Os sinais mostravam-se claros como a luz do sol. Mas ainda assim, nos momentos em que seu coração ameaçava duvidar, ela recorria ao Triângulo Mágico, que prontamente lhe respondia. E uma carta que a acompanhava durante todo este período dizia o seguinte: “Os tempos mudam inevitavelmente. O que era bom ontem, cai em desuso hoje e estará esquecido amanhã. Assista a esse processo e adapte-se flexivelmente às exigências de cada momento.” É curioso como quanto mais próximos estamos da verdade, mais difícil é enxergála. De fato, no entendimento de Deborah, não havia do que duvidar: a resposta era que tudo isso iria passar e o que sentia pelo teatro e 58
pela vida se transformaria logo, até ficar esquecido. A sua relação com Mauro era o seu maior tesouro e deveria cuidar dela sempre, principalmente enquanto estivesse passando por aquele período difícil. Com esse pensamento, viajou confiante para a casa de fim-desemana de seus pais, no interior de São Paulo. Era feriado e teria uma lua-de-mel com Mauro — pelo menos lutaria por isso. Sentia-se mais próxima dele e notava-o um pouco menos armado. Mas as coisas continuavam difíceis entre eles. Por mais que Deborah tentasse dialogar, Mauro vivia inquieto, agressivo, cheio de lamentações. Por um lado, era compreensível. Mas por outro, ela sentia que estava fazendo tudo o que era possível para não deixá-lo mal. Queria aproveitar os momentos em que estivessem juntos e transformá-los em paz, em alegria, em luz. Mas Mauro não conseguia — ou talvez não quisesse — ajudar. Era difícil senti-lo próximo. Porém, naquele sábado — especialmente naquele sábado — eles pareciam estar mais perto um do outro, tentando se reencontrar. Nadaram juntos no final de tarde, beijaram-se, olharam-se, trocaram carinhos. Nada de fazer inveja a alguém, mas o suficiente para que Deborah sentisse uma fagulha de luz em seu olhar. Por alguns instantes, até se sentiu bonita. Quanto esforço ela fazia para sentir aquela fagulha de luz! A mulher é capaz de tudo para se tornar bonita aos olhos de um homem. Mas poucas percebem que a beleza é uma luz divina que nasce do amor. No fundo, toda mulher sabe quando o seu homem a faz bonita. O difícil é aceitar quando isso não acontece. Foram ficando, ficando, até que anoiteceu. Deborah sentia estar resgatando Mauro das trevas e pressentia um encontro amoroso. A noite prometia ser romântica. E o telefone tocou: — Deborah, é telefone prá você! Uma pessoa chamada Alan. — ...???...!!!.....??? O que a vida estava fazendo com ela? Não tinha a menor idéia. Novamente, o doce e o amargo apareciam simultaneamente e ela não sabia onde estava. Atendeu o telefone mecanicamente, o coração aos saltos, o pensamento aos berros. Do outro lado da linha, Alan com a voz semi-normal, mas o suficiente para poder falar no telefone, iniciou a conversa explicando
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que Maíra tinha lhe telefonado e o colocado de forma muito simpática a par dos acontecimentos. Contou, também, que ela lhe disse que Deborah estava preocupada, então o fez prometer que ligaria para ela em sua casa para tranqüilizá-la. Na verdade, Alan estava bastante constrangido ao ligar, pois tinha a nítida sensação de estar incomodando. Claramente, aquele não era o espaço onde era normal se falarem. Talvez por isso, ou porque suas explicações não fossem convincentes, sentiu que Deborah estava bem mais distante do que os 100 km que os separavam. Apesar de ela lhe responder que tinha sido bom ele ter ligado, Alan já estava arrependido do que fizera. Deborah falava sem falar. Mauro por perto, certa mágoa misturada com raiva, a saudade despontando, a sensação de poder respirar novamente, a felicidade de ouvir a voz de Alan, e a lua-de-mel indo por água abaixo. No telefone, Alan a sentiu seca e distante. Mas Mauro, que estava ouvindo a conversa, a sentiu carinhosa e especial. Ela mesma... ela mesma se sentia em pleno curto-circuito. A lua-de-mel terminou, antes mesmo de ter começado. “Uma parte de mim pesa, pondera outra parte delira (...) Traduzir uma parte na outra parte que é uma questão de vida ou morte Será arte?”
Alan foi ficando melhor, apesar de não poder falar, correr ou pular (só 99% do que se fazia nos ensaios). Mas resolveu ir mesmo assim. Para não ficar sem fazer nada, decidiu levar sua câmera de vídeo para gravar, mesmo sabendo que Johnny não queria. Atravessou o jardim que o levaria ao salão e viu que o ensaio já tinha começado. Só então percebeu a saudade saindo do peito. Entrou no salão com a câmera ligada. Estava completamente escuro. Sentou no chão para não esbarrar em nada, ou em ninguém. 60
De repente presenciou, como que por encanto, uma imagem que parecia ter sido preparada para ele e sua câmera: uma vela foi acesa e suavemente iluminou o pássaro que a acendeu. Lentamente, enfileirados ombro a ombro, cada um foi acendendo sua vela e aquela luz dourada os acordou da noite. Avistou Deborah quase no final da fila. Como ela não esboçou qualquer reação, ficou na dúvida se ela não o tinha visto — o que pretensiosamente achava impossível — ou se não podia fazer nada por estar em cena. Na verdade, Deborah logo notou sua presença. Depois de tantos dias de infinito, rever Alan lhe parecia um milagre. Por alguns instantes, a chama da vela confundiu-se com o calor do peito e em seguida percebeu que Alan a iluminava mais do que a vela que brilhava diante de seus olhos. De súbito, lembrou-se do trato que fizera consigo mesma: não se permitiria de forma alguma voltar ao estado anterior com Alan. Precisava retomar o seu eixo sem ele, voltar a ficar “normal”. Manteve-se serena, a vela acesa, e o esforço genuíno para se manter em pé — apesar de tudo. A seqüência do treino foi fotograficamente bela. As pessoas estavam bonitas e brilhantes. Era uma seqüência de cenas que, por alquimia, se transformariam em um espetáculo. Alan sentiu que Deborah não estava normal, e o que era pior, não estava feliz em revê-lo. Era como se ela pertencesse a outra turma — a turma dos “insiders”. Viu uma espécie de reprovação em seu olhar. Algo como se dissesse que ele não estava levando a sério o trabalho, ou não estava se esforçando. Mas ao mesmo tempo, no fundo dos olhos, ainda se encontrava aquela cumplicidade tão familiar. “A tua presença desintegra e atualiza a minha presença”
Muitas vezes, em dias chuvosos, nós nos esquecemos de que por trás das nuvens o céu continua azul. As nuvens, assim como o
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vento, são passageiras, apesar de fortes. O céu não: ele simplesmente é. E nem precisa se esforçar para ir a algum lugar, pois está em todo lugar, com sua serenidade absoluta. A nuvenzinha negra que estava nublando o pensamento de Deborah dissipou-se diante dos novos acontecimentos. Quando se deu conta, ela e Alan estavam, novamente, trocando alegrias, tristezas, dúvidas e certezas. Percebeu que a amizade entre eles era muito maior do que ela mesma e que, por mais que as nuvens insistissem em aparecer com toda sua força, uma cor azul teimava em permanecer, como o pano de fundo de um grande cenário. E assim, mais uma vez, disse para si mesma que não poderia haver mal algum numa amizade tão linda. O próximo ensaio seria na casa de Tritcha e Balu. Alan e Deborah combinaram que se encontrariam na casa dele, que ficava no caminho, e iriam juntos até lá. Pela primeira vez, Deborah entrou no apartamento de Alan, ou melhor, de seus pais, pois ele estava morando ali provisoriamente. Ao subir no elevador, uma estranha sensação de que aquela seria a primeira de muitas vezes que freqüentaria o local. A campainha tocou e Alan, do outro lado da porta, largou momentaneamente a montagem do seu super sanduíche para abri-la. Deborah notou-o um pouco afobado, como se não tivesse tido tempo de se aprontar para esperá-la. Ele explicou qualquer coisa sobre sua fome e, num piscar de olhos, entrou e saiu da cozinha com um sanduíche no prato, acompanhado de sachezinhos de katchup e mostarda. Para alegria de Alan, ou melhor, de seu estômago, ainda teriam que esperar por Maíra, que iria com eles. Talvez desse tempo de terminar de comer seu sanduíche. Sentou-se calmamente apressado e iniciou uma conversa entre mordidas e sorrisos. Deborah o observava. Notava no seu jeito de comer um misto de fome com deliciamento. Como se, apesar da pressa, fosse capaz de apreciar cada mordida, transformando um simples cachorro quente em um banquete. Gostou. Sempre lhe pareceu íntimo observar alguém comendo. Era como se esse ato lhe revelasse algo do invisível, da intimidade até. E com Alan — mesmo sem saber o que, ou por quê — ficou feliz ao ver seu jeito de comer. 62
Ele, por sua vez, gostou de vê-la em seu espaço enquanto comia na sua frente. Deu-lhe uma sensação de intimidade, de amigos que são tão próximos que podem abrir a geladeira da casa um do outro. Talvez essa intimidade de lar tenha feito com que a conversa seguisse um rumo um tanto familiar. Falavam de um Alan e uma Deborah fora dos muros do teatro. Conversaram sobre o ex-casamento dele. E apesar de ser a primeira vez que Deborah ouvia esta história, era como se já a conhecesse nos seus detalhes. Na verdade, sabia muito pouco sobre a vida de Alan, tanto que certa vez chegou a pensar que ele estava para se casar. Mas, algumas semanas depois, quando percebeu que tinha sido um mal entendido — pois Ananda comentara vagamente pelo telefone que Alan era separado — não se surpreendeu. Sentiu como se aquela fosse a única situação possível para Alan naquele momento, como um quebra-cabeças cujas peças estão no lugar certo. Assim que Maíra chegou, pedindo desculpas pelo atraso, saíram em direção à casa de Tritcha e Balu. No caminho, saborearam um delicioso pão-de-mel da fazenda, que havia sido comprado pela mãe de Alan. Para Deborah, aquele pão parecia querer anunciar que o dia seria doce. Chegaram. Assim que saíram do carro, uma folhagem no muro alto da casa saltou aos olhos de Deborah: folhas em forma de coração pareciam lhe dizer alguma coisa. Quis compartilhar este momento com Alan e pensou em lhe dar uma folhinha. Mas achou ousado demais e acabou guardando o momento apenas para si. O muro alto que rodeava o terreno ficava bem longe da casa. Para evitar que Balu tivesse de subir as escadas só para abrir o portão, Alan resolveu pular o muro. Notou que Deborah estranhou aquele gesto que lhe parecia tão normal. Ficou na dúvida se ela estava achando ousadia de sua parte ou falta de educação. De qualquer maneira, ainda explicou: — Às vezes é preciso pular o muro —, querendo se referir à necessidade de quebrar as regras algumas vezes. Olhou para Deborah e ficou sem saber se tinha melhorado ou piorado a situação. Desceram as escadas, encontraram o grupo e iniciaram o trabalho. Afastaram os móveis da sala e o espaço ficou livre. Afastaram os pensamentos da cabeça e o ser também ficou livre. Foram ocupando a casa toda, o jardim , os cantos, as canções. O dia realmente foi doce.
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Na volta, no meio da estrada, o pneu dianteiro mostrou sinais de estar furado. Alan desceu do carro e constatou que realmente estava. Mas resolveu prosseguir mesmo assim, já que estava murchando devagar. Deborah contestou, pois pela sua lógica, se um pneu estava furado, obviamente deveria ser trocado rapidamente. Como Alan estava absolutamente tranqüilo com sua decisão, não deu muita importância ao que ela pensava, o que a fez zangar-se. Saboreando seu jeito de invocada, sorriu para ela, com aquela calma de quem sabe que não vai mudar de opinião. Desarmada, Deborah o olhou com um ar de quem diz: “Não vale! Você saiu do script!”. Mas, no fundo, orgulhava-se de Alan. Ele era um homem com domínio de situação, que não se deixava levar por opiniões alheias. Era bom estar ao lado de alguém assim. “O tema da canção meu coração guardou para dar a quem trouxer a mensagem dos caminhos livres”
Naquele dia, um pequeno lapso aconteceu. Talvez porque Deborah estivesse recém acordada, a sua guarda ainda não estava toda de pé. Um misto de mistério da noite com clareza do dia. Entrou no chuveiro, a água acordando seu corpo, e de repente uma sensação inexplicável, mas inconfundível: a plena certeza de querer dar um filho ao Alan. Fechava os olhos e procurava, em meio à escuridão, se imaginar dando um filho ao Mauro, óbvio. Mas só encontrava um imenso vazio, como se algo estivesse faltando. Fechava os olhos novamente, procurando uma luz que lhe mostrasse estar enganada, que lhe trouxesse a paz de ter um filho com Mauro. Impossível. Como uma flecha certeira, a plena expressão da verdade que doía: queria dar um filho ao Alan; não ao Mauro. Uma luta armada entre o que via e o que sentia parecia se instaurar. Tinha certeza do seu casamento e do companheiro que escolhera para viver sua vida. Mas esta certeza parecia vir de outro 64
lugar, não do mesmo tempo e nem do mesmo espaço daquela curiosa e temida sensação... que lhe trazia a existência de Alan. A água continuava caindo, lavando — talvez — uma verdade do coração e levando-a prá bem longe do permitido. Aos poucos, a sensação ia-se diluindo, escorrendo-lhe pelo corpo, como que escoando pelo ralo do chuveiro. Em questão de segundos, o dia chamando lá fora, a luta entre luz e sombra terminou. Nem mesmo a angústia que sentira instantes antes aparecia mais. A sensação foi arquivada em algum lugar do seu ser, em alguma gaveta escondida, trancada a sete chaves. Embora Deborah sempre procurasse viver de acordo com sua verdade interior, não percebeu a armadilha da qual estava sendo presa. Naquele instante, não havia lugar dentro de si para verdades tão opostas. Uma delas tinha de morrer, ou pelo menos esconder-se. O universo revela segredos que, para compreender, é necessário abrir portas desconhecidas. Olhar a verdade sem véu, tal como aparece, é um eterno desafio. Os novos caminhos que a vida nos apresenta ao longo de nossa existência, costumam assustar à primeira vista. E, em nome do medo, a maioria das pessoas escolhe olhar o mundo pela janela em vez de correr os riscos da vida lá fora. Enquanto isso, portas escancaradas trazem oportunidades travestidas de problemas. E a vida passa.... Poucos querem pagar o preço de tocar o desconhecido e enfrentar o dragão... para encontrar a princesa. Naquele dia, uma pequena fresta de luz brilhava timidamente por uma porta entreaberta. E naquele mesmo dia, portas e mais portas fechavam-se, impedindo Deborah de enxergar esta luz que lhe atemorizava. Era uma luz diferente. Era uma luz de alma. E para enxergá-la, era preciso estar pronta. “Vou te contar os olhos já não podem ver coisas que só o coração pode entender”
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Sábado azulado, dia de sol, e Deborah na estrada, vindo do interior especialmente para ensaiar com o grupo. Voltaria para almoçar lá. Fazia calor, e ela vestia uma roupa leve, fresquinha, com gosto de verão. O encontro havia sido marcado às oito e meia, no sótão da casa de Valentina. Era uma casinha aconchegante, com teto de madeira, lembrando os sobrados das regiões montanhosas. No entanto, vista da rua, era mais uma das inúmeras casas de São Paulo. Quando todos chegaram já passava das nove horas. Ensaiariam a Fênix até meio-dia. Lentamente, a história ia tomando forma, ao mesmo tempo em que o grupo ia tomando corpo. Os minutos passavam e deixavam rastros de intimidade às pessoas. Talvez o calor do dia, ou do momento singelo que se criava a cada repetição do ensaio, foi deixando Deborah mais à vontade para cumprir o seu papel de nascer. Embora simples, o ato exigia uma entrega — a entrega de abrirse para o desconhecido a cada renascimento, como um espreguiçar-se gostoso, agradecendo ao novo dia. Até que em certo momento, enquanto Deborah renascia novamente, olhou para Alan, sem querer. E Alan olhou para Deborah, sem querer. Entre o tudo que sentiam e o nada que podiam, o olhar ficou... e ficando, foi sendo. Deborah não sabia como romper o encontro — ou o encanto — dos olhos. Não sabia nem mesmo se queria. Viu Alan falando qualquer coisa, mas suas palavras eram como nuvens tentando encobrir a limpidez do céu. Podia ver com precisão o que acontecia: Alan brilhava. E com seu brilho, ela brilhava também. Ele a admirava, embriagava-se com o seu ser e a carregava junto neste contentamento. Sentia que podia se perder, ou se achar para sempre. O tempo parecia se formar de instantes infinitos, transportando-os para uma realidade escondida dentro de uma realidade aparente. Que estranho mundo era aquele que estava sendo tocado? Embora tão concreto, este sentimento era totalmente desconhecido. Deborah via claramente que, de alguma forma, ocorrera uma fusão. E logo em seguida, uma confusão: a cabeça pediu passagem e tomou o lugar da visão. Ela não entendia. Sabia que ERA, mas não sabia O QUE ERA. Talvez, se conseguisse simplesmente viver, sem ceder aos caprichos da cabeça, cuja mania é querer explicar tudo, 66
compreenderia que SER é muito mais do que SER ALGUMA COISA. Mas aquilo tudo era muito diferente do que jamais conhecera. Não tinha forma, nome, sequer palavras no dicionário para expressar tal sentimento. Como encaixar algo assim dentro de sua vida? Em questão de segundos, tudo voltou ao normal. O ensaio continuou, como se nada tivesse acontecido. Provavelmente, ninguém percebeu nada. “Porque foste em minh’alma como um amanhecer porque foste o que tinha de ser”
Na saída da casa de Valentina, Alan e Deborah seguiram em direção à rua. Já na porta do carro, a conversa, ou o que quer que fosse, continuou. Encostados no carro de Deborah, conversavam como se fossem ficar lá o dia todo, mas permanecia no ar a tão conhecida sensação da despedida. Como se cada encontro anunciasse o tempo em contagem regressiva, e o relógio andasse para trás, cronometrando os minutos que restavam para estarem juntos...até o próximo encontro. As pessoas iam saindo e se despedindo, mandavam sorrisos e olhares, e os dois iam ficando, ficando. Era curioso como bastava o espaço, para que eles pudessem simplesmente estar. Até que a rua ficou vazia. Deborah entrou em seu carro e buscou uma fita que tinha se aventurado a gravar pelos gravadores da cidade. Eram músicas instrumentais, que tocavam diretamente seu coração. Não podia negar que, de alguma forma, estava entregando a Alan uma declaração de amor velada. Era como se estivesse se revelando um pouco mais — mas muito sutilmente, até para si mesma. Ficou tão sem graça ao lhe entregar a fita, que foi logo inventando um assunto qualquer, para encher com palavras o constrangimento. Referiu-se ao broche que ele lhe havia dado, como se a fita fosse uma retribuição ao presente. Nada convincente. Por que será que algo tão genuíno como dar um presente é tão difícil?
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Alan olhou a fita e percebeu que em sua capa havia uma garça. Ficou emocionado e também procurou dizer qualquer coisa para disfarçar seu constrangimento. Estava feliz só de sentir a existência daquela amizade. Era como se sentir feliz pela simples existência de uma obra de arte em algum lugar do mundo. Lembrou de dizer que assistira ao filme que ela havia recomendado tanto, “O Violinista no Telhado”. Nunca assistira a ele antes, porque pensava tratar-se de um daqueles musicais chatos. Mas ele adorou. Em especial porque a mensagem lembrava muito a do “Jazz Singer”, o filme que ele lhe tinha recomendado no mesmo dia — como algo que se troca, mas que na verdade é feito da mesma matéria, o que muda é apenas a forma. Por estar ansiosa para saber se Alan tinha ou não gostado do filme, ficou aliviada ao ouvir que sim. Para Deborah, aquele não era um filme qualquer. Era como se fosse um objeto familiar, uma comida feita por sua avó, ou mesmo uma música de infância. Se Alan não gostasse, seria como não compreender um lado de sua vida. Eram onze e meia da manhã e já estavam há uns trinta minutos conversando. Embora Deborah soubesse que o ensaio terminaria naquele horário, disse a Mauro que estaria de volta às quatorze horas. Queria ter uma folga de tempo para estar com Alan, já que estes momentos eram tão raros e sublimes — como fragmentos de um intervalo desconhecido. Como não queria que Alan achasse que ela já estava indo embora, falou: — Bom, eu só tenho que estar de volta às quatorze horas. Ele não entendeu o que ela queria dizer e perguntou: — Como assim? Você tem que ficar? Deborah, num misto de vergonha com zanga, respondeu: — Não é que eu tenho que ficar. Eu posso ficar com você mais algum tempo. Entendeu agora? Você quer ou não? Alan sorriu aquele seu sorriso característico: calmo, aconchegante, como se seu corpo fosse um porto seguro para se ancorar. Não tinha a intenção de deixá-la sem graça. Mas não podia negar que o seu tom de invocada lhe agradava. Resolveram tomar um suco e foram em dois carros porque, da lanchonete, cada um seguiria o seu caminho. No meio do trajeto, 68
Rua Augusta, Alan aproveitou um sinal vermelho para descer de seu carro e confirmar o endereço do local com Deborah. Ela brincou, perguntando se ele a estava paquerando, parando para conversar com ela em plena Rua Augusta. Alan ficou sem graça, pois demorou a entender que era brincadeira. Frevo, Jardins. Em meio à agitação típica dos embalos de sábado à tarde, um reduto de silêncio e presença construía-se lentamente. Sentados no balcão, pernas levemente encostadas, olhares entrelaçados. Entre goles de conversas e intervalos de suco de abacaxi, o coração brigava com o relógio. Logo teriam que se separar. Mas Alan e Deborah, de alguma forma, aceitavam. Aceitavam sem urgência cada minuto que a vida lhes oferecia. Aceitavam que o rio corresse à sua maneira, sem apressar a correnteza. Aceitavam aqueles fugazes momentos, em que podiam degustar a presença um do outro, como um presente. E aprendiam que o momento presente é infinito...e que fora do presente não há vida. “A cidade enlouquece em sonhos tortos na verdade nada é o que parece ser As pessoas enlouquecem calmamente viciosamente, sem prazer”
Alan passou na casa de Deborah para levá-la ao próximo ensaio, na casa da sogra de Liliane. Estavam, ambos , com aquele cansaço típico de sexta-feira de noite e muito mais do que animados para ensaiar, estavam interessados em saborear a companhia um do outro. Ao chegar à porta da casa, tiveram que fazer um tremendo esforço para entrar, pois a mistura de preguiça com urgência de encontro os chamava a continuar dentro do carro. No entanto, a consciência falou mais alto do que a inconseqüência, ao menos nos padrões preestabelecidos de Deborah e Alan. É difícil perceber, ou mesmo admitir, que a vida é muito mais do que um conjunto de regras a serem seguidas cegamente. O certo e o errado, o possível e o impossível, o justo e o injusto estão sempre
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dentro de nós mesmos, apesar de passarmos a vida tentando acreditar que estão fora de nós. Compreender este segredo abre horizontes até então insuspeitáveis, e possibilita ao ser humano realizar a sua vocação de ser feliz. Alan e Deborah ainda estavam presos dentro de si mesmos. Entraram no casarão, que mais parecia um cenário de “E o vento Levou” do que um lar onde habitavam pessoas. Deborah pôde avistar uma escadaria de mármore arredondada e imaginou-se a própria Scarlet O’hara, envolta em saiotes rodados. Na verdade, a casa era uma somatória de espaços com características próprias. Ia de Beverly Hills à Freguesia do Ó e cada um poderia se reconhecer num canto e lá ensaiar. Era ótimo poder trabalhar numa casa daquelas. No intervalo, quase todos saíram para comer alguma coisa e Deborah ficou na casa, junto com Sirena. Queria ir com Alan, mas ele já tinha combinado com um bando, então preferiu ficar. Quando ele voltou, cruzou com ela na escada e sorrateiramente deu-lhe um sonhode-valsa. Era a cumplicidade que se manifestava através de um simples gesto. Parecia que só eles sabiam de alguma coisa que era invisível aos outros. Estavam surgindo alguns comentários de que o local de ensaio não carregava boas energias e vários “acidentes” estavam ocorrendo. Assis, principal defensor desta idéia, havia machucado seu braço de músico e por isso voltaria de carona com Alan e deixaria seu carro na casa de Valentina, que era ali perto. Quando o ensaio terminou era alta madrugada, prá variar. Alan levaria Deborah para casa, e depois deixaria Assis. Logo que saíram, enquanto seguiam o carro de Assis até a casa de Valentina, Deborah perguntou a Alan o que ele via de comum entre ela e sua personagem. Queria saber onde e como era garça, mas na verdade, Alan percebeu que o que ela queria mesmo era saber como ele a via. O que num primeiro momento parecia bem fácil, bastava lhe dizer o que enxergava, mostrou-se difícil de explicar. Lembrou, então, do koan do tigre e achou que aquele seria um bom momento para lhe contar e uma ótima maneira de lhe dizer que ela era muito mais do que pensava ser. Aquele koan foi, para Deborah, um marco importante. A lembrança do tigre que se achava ovelha acompanhou-a por muito tempo, em várias situações de sua vida. 70
Quando chegaram à casa de Valentina, não havia lugar na garagem. Assis achou que dava para guiar até sua casa e resolveu seguir, mas Alan preferiu ir com o carro atrás dele “just in case”. Quando estavam atravessando a Avenida Vital Brasil, um susto enorme: viram Balu em pé no meio da avenida e seu carro ao lado, completamente destruído. Saíram do carro assustados, mas logo viram Barbie, Ananda e Tritcha, que estavam bem, por milagre. É impressionante pensar que quanto mais perto estamos da vida, mais perto estamos da morte. O trabalho dos pássaros estava sendo para todos do grupo, cada um à sua maneira, um chamado à energia mais sagrada da vida. Sintonizava-os em algo puro, de construção e compaixão, levando-os a se sentirem mais vivos. O acidente trouxe a lembrança de que, além de pássaros, eram humanos e, portanto, sujeitos a todas as leis e perigos da terra. Estar entre céu e terra, era esta a grande dificuldade. Daí nascia a busca do justo meio. “Ela é pássaro, é fogo, monstro e flor traz a vida e a morte juntas”
Era mais uma noite de sexta-feira e o grupo dos atores encontrou-se para uma atividade diferente: iriam assistir a uma peça de teatro que Johnny recomendara, inclusive como instrumento de aprendizado para o próprio trabalho que estavam desenvolvendo. Estavam todos na rua, aquela confusão de “quem vai com quem”, em clima de colônia de férias. Alan e Deborah queriam ir sossegados, tranqüilamente como de costume. Poderiam continuar algumas daquelas longas conversas, mas principalmente trocar impressões sobre a peça na volta. No entanto, diante da insistência de Tritcha, Ananda e Valentina, olharam-se como que dizendo “não há outra escolha” e entraram na perua de Liliane, lotada de gente. Lá dentro, como já era de se esperar, não havia lugar. Foram parar no bagageiro. Porém, apesar de inicialmente se sentirem “rebaixados”, logo perceberam que tinham sido privilegiados. Estavam espalhadamente confortáveis, ouvindo o caos que reinava na frente, entre os pedidos de “tire o seu cotovelo do
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meu olho” e as sugestões de “vire à direita” ou “conheço um caminho melhor”. Ficaram em silêncio. Apesar do barulho dentro e fora do carro, nenhum som parecia lhes dizer qualquer coisa. É incrível perceber que, independente de qualquer som, o silêncio está sempre presente. Como o sol que, mesmo em dias de chuva, continua brilhando atrás das nuvens. Alan e Deborah ficaram ali, sentindo aquele barulho “de nada”. Quando Deborah se deu conta, percebeu que estava semi-deitada ao lado de Alan. Sentia-se bonita, com uma roupa jeans que a deixava com um tom de moleca e sensual ao mesmo tempo. Em Alan, foi aparecendo uma vontade gostosa de espreguiçarse, de expandir-se. Neste movimento, seu pé tocou em Deborah. Parou, mas não recuou. Encabulado, não olhou para ela, fingindo não ter percebido. Tudo parecia normal. Deborah parecia não estar percebendo, talvez até dormindo, pensava Alan. Mergulhou, então, na sensação daquele contato e desligou-se totalmente do carro, das pessoas, da terra. Em Deborah, uma sensação estranha: queria ser o mais natural possível — aos olhos de Alan e aos olhos do trio de mulheres que estavam na sua frente, sorrindo maliciosamente entre olhares. Mas, se por um lado tudo parecia normal, por outro podia sentir um misto de sedução e entrega no olhar cúmplice — mas não revelado — de Alan, como que dizendo: “Olha só onde fomos parar! A sorte novamente nos ajudando!” A peça pregou-lhes uma peça. Alan e Deborah, realmente, iam na contramão da maioria. Enquanto todos saíram comentando a maravilha do espetáculo, os dois sorriam interiormente, aliviados, talvez, por poder compartilhar o fato de serem minoria absoluta. Deborah, principalmente, sentia — quem sabe pela primeira vez — o gosto de ser diferente sem se sentir diferente. Alguém no mundo via o mundo como ela. Estar com Alan era como estar em casa. Na volta, a volta, a voltagem, à vontade, a vontade.
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“And the vision that was planted in my brain still remains within the sound of silence”
De volta a mais uma daquelas maratonas dominicais de ensaio. O grupo começava de manhã e ia até o final da tarde, quando estavam todos completamente esgotados. Não se sabia exatamente o que os movia para ir em frente noite adentro. Mas o curioso era que, quando imaginavam que não conseguiriam dar mais um passo ou um gesto, uma força nascia de dentro deles, trazendo uma nova vitalidade, mais revigorada do que antes. Renasciam das cinzas, como diria a história da Fênix. Naqueles breves intervalos em que saboreavam o cansaço, cada um largava o corpo no primeiro lugar que o recebesse, esquecendose do tempo por alguns instantes. E foi num desses intervalos após o almoço, que algo aconteceu. Alan, ao procurar uma brecha no concorrido jardim, escolheu, sem se dar conta, a barriga de Deborah para travesseiro. O primeiro momento foi de relaxamento total, de alívio. Mas logo em seguida, se perguntou: “Como eu vim parar aqui?” Deborah, que o recebeu maciamente, perguntou-se o que tinha feito para merecer um presente daqueles. Quis acariciar seu cabelo, mas em seguida pensou: “Como nós viemos parar aqui?” O terceiro momento, entretanto, foi para ambos de uma felicidade absoluta, fora do tempo e do espaço onde suas vidas aconteciam. Alan e Deborah foram transportados para dentro de um livro de histórias, onde uma flauta mágica cantava e encantava um sopro divino que vinha do filho de Lia, provavelmente a mando de algum anjo. O céu azul parecia estar mais perto do que nunca, e quase poderiam jurar que “o céu é aqui, não lá!”. Foram instantes de paz. Paz na grama. Paz na terra. Quando acordaram daquele mundo tão real, perceberam que eles eram a própria história, embora fosse uma história dentro de uma outra história.
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Esta outra história fez com que Alan se levantasse entre um sorriso e um olhar e entrasse para o salão. O ensaio estava para começar. Lia também devia estar a mando do céu. Deu a Alan uma pedra, dizendo-lhe que ele iria precisar. Ele a recebeu, percebendo naquele gesto algo de sagrado. Contemplou a pedra por um bom tempo. Era estranho ter na mão um poder e não reconhecê-lo. Mas algo dentro de si intuía que no momento certo ele saberia. Guardou a pedra com todo o carinho e respeito, como que guardando forças para a hora da batalha... que ele não tinha a mínima idéia de qual seria. “Somewhere over the rainbow skyes are blue And the dreams that you dare to dream really do come true”
Os ensaios estavam chegando ao fim, intensificando-se a cada dia. Sábados, domingos, noites e madrugadas invadiam a vida dos atores, levando-os a se sentirem mais pássaros do que seres humanos. Naquela noite, Deborah decidira que assim que terminasse o ensaio voltaria prá casa para ficar um pouco com Mauro. Não havia nenhum motivo especial, apenas que as oportunidades de estarem juntos eram cada vez mais raras e Deborah se preocupava com isso. Aliás, ultimamente, voltar para casa não estava sendo nada de especial. Toda vez que subia até o 11° andar, um certo incômodo pesava no elevador. Não sabia exatamente de onde vinha; talvez a culpa que sentia por estar, mais uma noite, chegando tarde em casa e encontrando Mauro esperando no sofá da sala. Esta cena estava se tornando uma constante e lhe parecia um tanto decadente. Mas encarava o fato como uma fase passageira, que terminaria junto com o teatro. Lutaria pela relação deles a todo custo. Onze e meia. Terminado o ensaio, Deborah desceu correndo a escadinha que a levaria à rua, quase que fugindo de todos para não “enroscar” em algum canto ao se despedir das pessoas. Estava propositadamente com o seu carro, para não correr o risco de mergulhar nas conversas noturnas que costumava ter com Alan ao voltar de carona. 74
Já na calçada, encontrou Juan, seu ex-namorado de dois anos, junto com a namorada, de quem Deborah gostava muito, e trocaram algumas palavras. Alan desceu as escadas em seguida, e os quatro conversaram mais um pouco. Juan sugeriu que eles jantassem juntos, mas Deborah recusou, pois iria cedo prá casa. Rumo ao carro, Alan a acompanhava. — Onde está o seu carro? — A uns dois quarteirões daqui. Não consegui um lugar melhor prá parar. — Você não quer que eu te leve até lá com o meu carro? Já está tarde prá você ir andando sozinha... — Acho que não precisa... — O meu carro tá logo ali. Vem que eu te levo! Entraram. Fecharam a porta. Alan ligou o motor e Deborah começou a falar de Juan. Era incrível que depois de dois anos de tanto sofrimento, pudesse vê-lo e não sentir nada. A cada dia que passava, a sua história com Juan mais se assemelhava a um namorico de infância. Alan comentou: “É a sua metamorfose.” Deborah gostou de ouvir aquilo e de alguma maneira sentiu que ele estava vendo algo que ela não via. O assunto foi se espalhando pelo carro, envolvendo todos os espaços e pedindo uma trégua ao relógio. Alan desligou o motor. O carro parado, os ponteiros andando, o encontro apesar do tempo. Em Deborah, a inevitável lembrança do relógio, mas a total incapacidade de ir embora. Em Alan, a alegria de poder estar mais alguns momentos perto de alguém com quem podia ser ele mesmo. Trocaram histórias de amor e desencontros do coração. Falaram das experiências marcadas, do que buscavam nas relações amorosas e da importância do “fazer amor”. Tinham uma intimidade de irmãos. Podiam falar de tudo e nada poderia ser ruim, pois um ajudava o outro a se descobrir. Percebiam, a cada confissão, que tinham vivido histórias de amor muito parecidas. E ambos estavam certos de que, agora, tinham encontrado — cada um — o seu verdadeiro caminho. Alan, separado, percebia claramente que queria ficar sozinho. Deborah acreditava, como sempre, na relação a dois e o seu casamento lhe trazia a tranqüilidade que precisava.
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— Você nunca teve filhos, Alan? — Não. Eu sempre quis ter, acho que desde os 16 anos. Mas hoje acredito que, por algum motivo desconhecido, não é uma coisa prá mim. É algo que vou passar por esta vida sem saber. — Engraçado... Você tem cara de pai... E a conversa do coração continuou, até que Deborah olhou para o relógio e viu que eram duas horas da manhã. Novamente, chegaria tarde em casa. — Alan, olha que horas são! Que loucura! Você me tira do caminho... ou me coloca no caminho, sei lá. — As duas coisas, Deborah. Deborah voltou para casa e, como já previa, Mauro estava esperando deitado no sofá da sala. Este filme ela já conhecia. Mas não imaginava qual seria o final da história. “É vida, vida, que amor, brincadeira Eles se amaram de qualquer maneira Qualquer maneira de amor vale a pena Qualquer maneira de amor vale amar”
O Jantar de Fim de Ano do grupo trazia, todos os anos, o sabor de uma festa familiar. Era um ritual que reunia os mais diferentes alimentos de vida e do qual participavam vários grupos, concentrando uma forte intenção de luz e presença. Naquele ano, porém, para o pessoal do teatro o jantar seria mais um “aperitivo” comparado à intensidade do que estava sendo vivido naquele trabalho tão cheio de riquezas. Deborah entrou em seu armário e tranqüilamente percorreu com seu olhar todas as roupas que estavam penduradas. Esperou que alguma delas, adivinhando seu estado de espírito, lhe acenasse um “Oi, hoje sou eu!”. Em seguida não teve dúvidas: aquele vestido era, com certeza, sob medida para aquela noite. Livre, leve, e sensual. Sabia que Alan iria gostar e pensou nisso enquanto se vestia. Para Alan, pela primeira vez, o jantar não estava sendo o principal evento, pois tinha um sabor de refresco em meio à maratona 76
dos ensaios, como o “descanso do guerreiro”. Talvez pela pouca expectativa, ou mesmo pelo descompromisso, ele estava realmente apreciando. Compreendeu que a expectativa era inimiga mortal da receptividade, e que justamente por não esperar nada, estava recebendo tudo. Este deveria ter sido sempre o sabor de todos os jantares de fim de ano — pensou — e não aquela apreensão misturada com certa euforia gratuita, que ele sempre levava. Alan estava tendo a oportunidade de viver, limpidamente, a sensação de luz e presença. Lá estava ele, saboreando o alimento, a atmosfera, a compaixão pelos outros, o jogo da vida. Avistou Deborah, que não estava vestida nem de Fênix, nem de “operária de teatro”; estava vestida de Deborah. Pensou em como ela tinha o raro dom de ficar bem com qualquer roupa, como se suas roupas estivessem felizes de estar ali, de terem sido as escolhidas do dia. Ela estava linda, portando um vestido negro que acentuava sua pele moreno clara. Mais uma vez, Alan sentiu orgulho, sem mesmo saber do que ou por que. Via seus olhos brilharem e quando piscava, lembravalhe “Lady”, a simpática cocker do filme “A Dama e o Vagabundo”, de Walt Disney. Os outros companheiros do teatro também brilhavam o trabalho daqueles meses. “Estamos prontos! — pensou Alan — Apesar do tanto que ainda temos que melhorar, estamos prontos!” Era quase inacreditável que a jornada estivesse completa e que a missão impossível estivesse em vias de se concretizar. Eles haviam sido — todos — conduzidos naquela aventura por uma força muito maior do que eles próprios acreditavam existir. Compreenderam que o divino nada mais era do que uma luz que vinha deles mesmos, bastava apenas SER. Esta compreensão e a crença no sagrado os encorajava a ir... rumo ao palco e à vida... era só deixar brilhar...
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MI uma escada escada sem sem fim fim ÉÉ uma porque oo céu céu éé infinito infinito porque Privilégio dos dos pássaros pássaros Privilégio que pagam pagam oo preço preço da da que liberdade liberdade voam EE voam voam voam voam voam No azul azul sem sem limite limite No
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Quando iniciamos um empreendimento na vida, jamais temos a dimensão de onde ele pode chegar. Como uma pequena semente que pode se transformar num fruto, ou numa grande árvore que gere novos frutos, ou morrer no meio do caminho. Por mais que tenhamos sonhos, expectativas, determinação e amor, a travessia é sempre imprevisível. O que sim, sabemos, é que se não regamos, se não temos paciência, se não persistimos quando tudo parece perdido, com certeza a semente não vingará. A coragem é, talvez, o divisor de águas do destino dos homens. O trabalho dos pássaros chegava ao fim — ou ao seu começo. Finalmente, a semana das apresentações chegou, trazendo a exata noção de que, por melhor que fosse, jamais se compararia ao universo vivido naqueles tão dolorosos e maravilhosos meses de trabalho. Restava, então, ainda que por instantes, levar os expectadores da peça a serem mais do que simples expectadores da vida: instigá-los a ousar voar, a querer ultrapassar seus próprios limites; a sentir o que aqueles pássaros tão cheios de medo e coragem viveram durante aquele período, na busca de se tornarem seres melhores. A semente estava plantada. Cabia, a cada um, regar à sua maneira.
O PRIMEIRO DIA Como todo primeiro dia, a expectativa o receio a alegria o empenho a entrega o sagrado A Vida
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Naquela noite de estréia, Mauro assistiu à peça. Deborah entregou-se de corpo e alma ao pássaro que era e deixou sua voz emanar o seu canto. Cantou para ele, olhou para ele. Era como se a beleza daquele momento fosse um pedido, ou mesmo uma prece, para que pudessem reencontrar a paz de estarem juntos. Naquela mesma noite, enquanto esperava no corredor o momento de entrar em cena novamente, recebeu, de Alan, um cartão. Ao abrir o envelope, avistou duas garças pousadas em cima de uma árvore de estilo japonês, contemplando um sol avermelhado. Timidamente, virou o cartão para ver se havia algo escrito. Embora o próprio desenho dissesse tudo, seu coração ansiava por palavras. Palavras que, apesar de dizerem muito menos do que o símbolo, dariam forma e direção ao seu pensamento. É impressionante a necessidade do ser humano de ter provas concretas do mundo invisível. Como se um perfume, por não ser palpável ou visível, deixasse sempre no ar a dúvida de sua própria existência. Para surpresa sua, e ao mesmo tempo alívio, enxergou algumas palavras: “... e um novo tigre nasce do leito de cinzas. RRROARRR”. Instantaneamente, sua melancolia de garça misturou-se com sua força de tigre e a Fênix que renascia do leito de cinzas parecia querer renascer dentro de si. Naquele instante, enquanto buscava sua verdadeira forma de ser, sentia a natureza como grande companheira, ensinando-a a se reconhecer nos animais da terra e do céu. E Alan... ele também fazia parte deste universo misterioso.
O SEGUNDO DIA Choveu. Talvez o barulho da chuva ou o frescor trazido pela água tenham dado à apresentação um tom diferente. Alan resolveu colocar um sotaque francês no seu personagem. Surpreendeu a todos, que pensaram que ele tinha errado o texto. Até mesmo Penélope, que agora já era querida por Alan, levou um susto, ficando meio sem jeito no palco. Mudar era a única constante que não mudava no trabalho dos pássaros. O som da água caindo no telhado deu à apresentação um sabor refrescante e ao mesmo tempo exigiu do grupo um silêncio mais 82
profundo nos bastidores, para que os expectadores pudessem ouvir através da chuva. Entre corridas e corredores, Alan ouviu de Deborah ⎯ com a expressão e a voz invocada que lhe era característica ⎯ que ele não estava lhe dando atenção. Ela sempre o surpreendia! Aos poucos, o grupo aprendia que nenhum dia é igual ao outro e que a sabedoria está em descobrir o novo a cada repetição. Este era, com certeza, um grande ensinamento que o espetáculo da vida estava lhes dando.
O TERCEIRO DIA Cada noite trazia consigo uma nova possibilidade. Como se cada ato pudesse ser vivido e revivido intensamente, trazendo a todo instante uma nova maneira de traduzir o universo. Sentada no corredor fora do salão, Deborah ouvia o silêncio e sentia-se plena. Avistou Alan que, entre passos e espaços, sentou-se ao seu lado e, mais do que lhe dar atenção, segurou-lhe a mão num gesto de amizade, como que dizendo “Estou com você”. Envoltos no profundo silêncio, permaneceram alguns instantes assim. Entre o aconchego e a vergonha, Deborah deixou-se ficar, sem pensar em nada ou ninguém, apenas respirando e sentindo a noite. Era uma sensação estranha, como se ao mesmo tempo estranhasse e reconhecesse aquelas mãos que respiravam junto à sua. De noite, ao chegar em casa, Alan ligou a TV automaticamente e ainda de costas ouviu uma música do filme de Deborah, O Violinista no Telhado. Olhou no jornal e viu que o filme estava passando fora do horário programado. Foi um belo presente. Sentou-se e, calmamente, assistiu ao filme até o fim, prolongando a presença de Deborah noite adentro.
O QUARTO DIA Neste dia Alan filmou e assistiu a quase toda a apresentação. Com um domínio ainda maior dos bastidores, percebeu que poderia
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escalar o andaime fora do salão e ficar na janelinha lateral, junto à câmera de vídeo. De camarote assistindo à peça, teve a oportunidade de, ao mesmo tempo em que fazia parte do espetáculo, olhar com os olhos de alguém de fora. Percebeu o quanto é importante olhar em volta e acreditar que há sempre o que aprimorar. Entre saltos e sobressaltos pôde contemplar Deborah de violão em punho, cantando Acalanto. Ao chegar em casa, já madrugada, ligou a TV automaticamente, ainda com a impressão da noite anterior. Arrepiouse inteiro ao ouvir o que estava tocando: Acalanto. Inacreditável! Deborah não iria acreditar se lhe contasse! Rapidamente, colocou uma fita e gravou. O que dizer?
O QUINTO DIA Naquele sábado teriam duas apresentações; uma no fim da tarde e outra de noite. Deborah estava fazendo uma tremenda “ginástica” para estar quase que em dois lugares ao mesmo tempo. Empenhava-se em mostrar para Mauro que, apesar da maratona teatral, estava se esforçando ao máximo para ficar com ele o tempo que pudesse. De manhã foram juntos para o interior, na casa onde passavam os fins de semana, e logo após o almoço Deborah voltou para São Paulo sozinha, para a próxima apresentação. Na estrada, ouvindo uma fita de músicas brasileiras que gravara, sentia-se em plena comunhão com o mundo lá fora e com o seu mundo de dentro. Era a primeira vez que percebia que ⎯ quase por milagre ⎯ podia ter momentos vivos de rara felicidade em plena crise. Procurava aproveitar estes instantes, pois intuía que eles eram o seu mais precioso alimento e de alguma maneira lhe dariam forças para viver o que tivesse de ser vivido. Ao chegar a seu prédio, avistou Alan esperando no carro. Iriam juntos para a apresentação. Aumentou o volume da música que estava tocando –– João e Maria –– para que, sutilmente, ele ouvisse junto com ela. Teve vontade de compartilhar com Alan todas as músicas de que gostava, pois tinha certeza de que seus gostos musicais eram muito semelhantes. 84
Quando entrou no carro de Alan, ele logo comentou sobre a música que ela estava ouvindo. Iniciaram, então, um “jogo de adivinhação”, em que Alan tentava descobrir as outras músicas que Deborah tinha gravado, como que dizendo : “Eu te conheço...”. Acertou a maioria e não foi difícil; era só se lembrar das músicas que ele gostava. Nem perceberam o tempo passar e logo chegaram ao teatro. Estacionaram o carro e desceram a rua em busca de um telefone para Deborah. Falaram do teatro, do quanto estava sendo importante e ao mesmo tempo difícil de conciliar com a vida cotidiana. Sem pensar, Alan falou uma frase do jeito que lhe veio à mente: “A coisa mais importante do teatro foi ter te conhecido”. Assim que acabou de falar, percebeu a força do que dizia e que poderia ser mal interpretado. Ficou sem jeito. Mas Deborah adorou ouvir, embora tenha ficado um tanto surpresa. Molhados, ainda, pela sensação gostosa da brincadeira das músicas, prepararam as roupas e a alma para entrar em cena. Pela primeira vez, Alan sentiu que o empreendimento chegava ao fim. Era como se, brevemente, um vazio viesse morar dentro de si. Não sabia dizer se isso lhe trazia dor ou alívio. Talvez os dois ao mesmo tempo. Ao sabor desta sensação, ficou ouvindo o silêncio que –– como um pano de fundo –– acolhia as vozes e o canto dos pássaros. Após a segunda apresentação, voltando juntos, Deborah convidou Alan para tomar um chocolate quente. Enquanto ele dizia que sim, ela –– com medo que ele recusasse e a deixasse envergonhada como já fizera outras vezes –– foi logo derramando um discurso em tom de bronca, dizendo que ele nunca aceitava seus convites. Por fim, ficou envergonhada do mesmo jeito, quando percebeu que ele tinha aceitado e que ela tinha “falado o texto na hora errada”. Foram ao Chez Croque e o chocolate quente se transformou em suco e salada. Por sorte, Deborah não tinha hora prá voltar, pois Mauro estava no interior, e ela iria encontrar-se com ele na manhã seguinte. Sentados, Deborah olhou Alan encostado na parede e sentiu que –– talvez pela primeira vez –– ele a olhava como um homem olha uma mulher. Ele estava todo brilhante e entregue àquele momento.
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Conversaram sobre tudo o que faz sentido no viver. Falaram sobre animais, trabalho, família, sobre o jeito de cada um ser no mundo. E pela primeira vez, ainda que timidamente, usaram a palavra “amor” para definir o que sentiam um pelo outro. Estava ficando cada vez mais claro que o que existia entre eles chamava-se amor. Um amor espiritual, que existiria sempre, independente do tempo ou do espaço, independente de eles estarem ou não juntos. Deborah sentia-se preenchida e aliviada por estar vivendo uma história tão linda que, apesar de ser com um homem, tinha um tom sagrado, puro, sem intenções. Alan a aceitava como ela era, não tinha nenhum interesse que ultrapassasse o que eles estavam vivendo. Os dois se amavam, sim, de uma maneira até então desconhecida para ambos. Era um amor de perfume, não de flores. Podiam se amar e falar sobre este amor. E Deborah podia continuar com Mauro, pois com ele era outro tipo de amor: mais terra, mais dia-a-dia, mais conhecido. Apesar do domingo que ainda estava por vir, era como se, de alguma forma, aquela conversa estivesse sendo a despedida. De uma maneira suave, Alan e Deborah estavam se dizendo que estariam juntos sempre, ainda que a vida os colocasse em direções opostas.
O SEXTO DIA Como todo último dia, a promessa o abraço a saudade o descanso a recompensa o divino É difícil aceitar o fim, mesmo sabendo que todo fim é sempre um começo. Uma etapa de vida estava em vias de terminar e todos sabiam que deixaria marcas profundas. Mas estava na hora de os 86
pássaros pousarem na terra, sem perder de vista os ensinamentos recebidos durante aquela longa viagem. Para Alan, não era bom ou ruim; apenas diferente, esquisito. Sabia que estava prestes a largar tudo e tanto e voltar a... e voltar. Deborah subiu as escadas e entrou no salão, já sentindo o gosto de tristeza se aproximando. Terminar aquele trabalho era, para ela, uma perda –– quase que insuportável –– de algo que ela não sabia ao certo o que era. Por alguns segundos, a trajetória dos últimos meses transcorreu em sua mente, como que assistindo a um filme cuja personagem principal era ela própria. Nunca mais seria a mesma de antes. A alquimia interna que havia ocorrido dentro de si não tinha volta. No coração, a plena certeza de que tudo o que vivera mudaria, de alguma maneira, o rumo de sua vida. Esta constatação lhe deixava, por um lado, extremamente agradecida por ter tido a ousadia e o privilégio de ter participado daquele empreendimento. Por outro lado, uma enorme dor no peito, como uma vaga noção de cores e flores se desfazendo. Sabia que deveria voltar à vida de antes, mas já não sabia mais o que era realmente viver. Sentada no corredor, antes de entrar em cena, avistou Alan passando. Quando o chamou, ele veio em sua direção e beijou-lhe o rosto. Este simples gesto parecia trazer consigo uma cumplicidade de alma. Nada foi dito, mas sentiram-se atados por uma amizade infinita. Quando entrou no salão para cantar pela última vez, despediase interiormente de uma parte de si mesma, da qual não tinha a menor idéia se reencontraria algum dia. Percorreu o salão com os olhos, à procura de Mauro. Apesar da enorme turbulência pela qual estavam passando, ele estaria na sua última apresentação. Deborah estava inteiramente disposta a cantar para ele, na tentativa de amaciar seu coração. Olha-lo-ia com ternura para que ele lhe perdoasse por toda a confusão que estava causando. E enquanto sua voz preenchia o silêncio, percebeu que Mauro não estava lá. Avistou sua cunhada, que deveria estar com ele, mas ela estava sozinha. Um terremoto abalou seu corpo e a sensação era de ter perdido o pouco de esperança que restava. Se Mauro não tinha ido, sabendo o quanto era importante prá ela, as coisas estavam muito piores do que imaginava. Mergulhou no escuro, apenas com uma certeza: a crise
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tinha se instalado com toda sua força. Terminou de cantar, saiu do palco e chorou. Estava na hora de ser a Fênix morrendo. O que tinha que morrer? Começa, então, sua busca. Ao terminar a apresentação, o grupo comemoraria com um jantar. Deborah conversou com Vita, que além de sua cunhada era uma grande amiga, e decidiu ir embora prá casa. Mal conseguiu despedir-se das pessoas. Precisava chorar, lavar a alma e reencontrar sua força. Teria que lutar muito, sabia disso. Procurou Alan. Conversaram rapidamente no corredor, em meio às pessoas passando e dando palpites. Não puderam dizer um ao outro o que queriam. O que havia para ser dito? Entre um “Tenta ficar bem!” acompanhado de um sorriso amigo e um olhar triste, Alan e Deborah despediram-se. Na verdade, talvez aquela fosse a única forma possível de despedida, diante da total impossibilidade de se dizerem adeus. Alan ficou triste e preocupado pelo que estava acontecendo a Deborah. Indiretamente, sentia-se responsável. Apesar de ter ficado para o jantar, assim como Deborah, não estava presente. Ficou em silêncio. Deborah voltou para casa, trancou-se no quarto e chorou. Não era mais pássaro e, ainda que fosse, não saberia para onde voar. Suas asas, paralisadas. Seu canto, silencioso. Chorou pela liberdade adormecida, pela saudade adiantada. Chorou pelo tanto de felicidade que agora se molhava de tristeza. Mauro tentou entrar no quarto, mas Deborah não deixou. Aquela dor era só dela, não poderia ser compartilhada. No entanto, de alguma forma, o compartilhar estava acontecendo atrás das brumas. Só que não era com Mauro.
O SÉTIMO DIA O descanso.
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FÁ Um sopro transporta a folha de outono E o que deveria ser uma queda transforma-se numa dança. Um vôo de quem sabe voar A esta brisa milagrosa: o amor
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23 de dezembro de 1990 Enfim, dia seguinte, o vazio chegou. Para Alan, não era só o fim do teatro. Era também fim de ano, fim de emprego, fim do casamento, mas não era o fim do mundo. Os dias passavam entre despedidas, caixas e esperanças. Tudo ia ser novo. Alan sentia que estava para renascer. Lembrou-se da Fênix. Lembrou-se de Deborah. Enfim, dia seguinte, o vazio chegou. Para Deborah, uma longa jornada pela frente. Sentia que algo dentro de si estava para morrer. Lembrou-se da Fênix. Rumo às férias na praia, viajou com Mauro em busca do elo perdido. A viagem era curta, mas o caminho parecia levar para uma terra jamais habitada. Dentro de si, um pedido interior: que o mar lhe devolvesse a alegria, que a areia esquentasse sua alma e que a brisa salgada temperasse o convívio com Mauro, trazendo consigo um novo frescor. Ah, não estava fácil! Era uma dor tão profunda, parecia mais funda do que o mar que lhe prometia dar forças. Uma insustentável sensação de vazio. Parecia ter perdido tudo, diante de sua total incapacidade para retornar à vida de antes. Era como entrar em um campo de futebol, sendo jogador profissional, e de repente olhar em volta e não saber o porquê de estar lá. Como se tudo aquilo que antes fazia um enorme sentido, de repente tivesse se desfeito, evaporado, sem deixar nada em seu lugar. Muitas vezes, a vida nos ensina por caminhos tortuosos, duvidosos, imprevisíveis. É a oportunidade que ela nos dá para evoluir. A escolha de aproveitar ou não estes momentos depende exclusivamente de nós mesmos. Diante de tamanha angústia, não restava muito o que fazer senão pedir ajuda às forças do universo. Que o mar lavasse sua alma, que o sol lhe desse uma luz e que o vento varresse de dentro dela aquela dor!
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Ainda assim, o verão de 23 a 28 de dezembro foi, para Deborah, um longo inverno. Habitou no profundo abismo que existia entre a vontade de reencontrar a paz com Mauro e a saudades que sentia de Alan. Mauro, por sua vez, não parecia tão empenhado em resgatálos das trevas. Por vezes, parecia até estar empurrando-a para Alan. Um dia, enquanto andavam na praia, por alguma razão começaram a falar dele. Mauro fez algumas perguntas, e enquanto ela respondia, ele a interrompeu: — Por que você está aqui comigo e não com ele? Quando você fala dele o seu olho brilha... É engraçada a sensação de estar vivendo o absurdo. Aliás, tudo o que estava relacionado a Alan beirava o absurdo, se comparado a tudo aquilo que até tão pouco tempo atrás lhe parecia “normal”. Estar ouvindo de Mauro aquela pergunta era qualquer coisa de inacreditável. Era como se estivesse tentando ancorar seu barco em um porto e o porto é que estivesse se afastando em vez do barco. Diante de tamanha surpresa, começou a responder o que lhe parecia óbvio, as inúmeras razões que tinha para estar com ele e não com Alan. Mas enquanto falava, percebeu que não tinha mais aquela certeza de antes. Assistiu-se falando coisas que, embora não fossem mentira, não eram uma verdade que vinha de todo o seu ser, mas de apenas parte dele. Continuou falando, tentando acreditar no que dizia. Outro dia, andando sozinha na praia, resolveu se sentar embaixo de alguns coqueiros. Respirando a vitalidade do vento, sentiu Alan com todo o seu corpo. Era como se ele estivesse lá, junto com ela. Teve a plena certeza de que eles estavam juntos, independente da distância ou dos corpos separados. Era uma certeza que vinha do todo do seu ser, trazendo consigo uma grande promessa de liberdade. Em seguida, o incômodo. A liberdade parecia estar do lado oposto ao que buscava. Ela vinha do mar e do vento e Deborah queria encontrá-la na terra. O mar a assustava, apesar do fascínio. A terra lhe dava segurança, apesar da aridez. Talvez a resposta não estivesse tão longe.
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“Et maintenant que vais je faire de tout ce temp gris serà ma vie”
28 de dezembro de 1990 Ao voltar da praia, Deborah só pensava em uma coisa: rever Alan. Precisava compartilhar com ele aquela dor misturada de prazer. O que estava sentindo não encaixava naquela conversa sobre amor que eles haviam tido. O trem estava fugindo do trilho, indo por um caminho desconhecido, e ela tinha perdido completamente o controle. A vida começava a cobrar mais do que antes. Parecia lhe dizer que ela tinha que, de fato, ser grande e assumir o que falava com tanta coragem: pagar o preço. Qual seria este preço? Sentou, papel e caneta na mão, e timidamente escreveu para ele. Era como se estivesse abrindo uma portinha escondida e visitando um jardim desconhecido. Escrever para Alan dava-lhe a sensação de estar se comprometendo mais com sua vida... mas também comprometendo mais sua vida. Só que não tinha outra escolha. Aquilo tudo estava dentro dela e pedia passagem para sair: ...que me coloca no caminho. Ou me tira do caminho. Acho que as duas coisas. “Nenhum dos dois se questionou o que queriam dizer com a palavra absurdo, nem se deram conta de que haviam deixado de lado, intocada, a própria coisa sobre o que estavam falando. Assim se passou a conversa a respeito de “para sempre” –– sobre a qual eles pensariam mais tarde, quando cada um tivesse de novo a garantia de estar só.” (extraído de um “livro do acaso” de Clarice Lispector) Sinto você. Muito. Sei que estamos juntos. Ter te conhecido este ano...foi um presente.
Ler algo que nos compreende traz uma inexplicável sensação de pertencer. É como se, ao encontrar um trecho que traduz nosso
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momento, nos sentíssemos parte da história universal dos homens. Foi assim que Deborah se sentiu ao ler Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres pela terceira vez. Dentro de sua própria incompreensão, este livro a compreendia. Por isso quis compartilhar com Alan. Ao terminar de escrever, num ato de coragem, ligou para ele. Queria lhe entregar o bilhete. Alan atendeu o telefone e sentiu que ela estava com aquele seu tom de “moleca sapeca”. Estava com saudades e queria reagir em tom de brincadeira, de cumplicidade, como costumavam fazer. Mas sabia das dificuldades pelas quais ela estava passando com Mauro e, como a viagem dos pássaros tinha terminado, resolveu usar seu “ar profissional”. Deborah ouviu um Alan totalmente diferente do “seu” Alan. Tentou algumas brincadeiras, mas como percebeu que não havia nenhuma brecha, resolveu lhe desejar um feliz ano novo e desligar o telefone. Nem falou do bilhete. Percebeu nitidamente que Alan estava fazendo aquilo por ela, para ajudá-la. Mas algo muito forte lhe dizia que não era este tipo de ajuda que ela precisava dele, embora não tivesse claro como deveria ser. Alan, ao desligar o telefone, ficou na dúvida se sua tentativa tinha ou não funcionado. Mas sabia que, pelo menos, ele estava honestamente tentando. “I travel each and every hyway And more, murch more than this I did it my way”
31 de dezembro de 1990 Deborah passou o ano novo com sua família e alguns amigos. Sirena –– sua única cúmplice nesta história –– também estava e passaram praticamente o tempo todo conversando sobre Alan. É claro que, nessas alturas dos acontecimentos, Deborah tinha a exata noção de que as coisas não estavam nada bem. Pressentia momentos duros com Mauro, inclusive disse isso a ele, um pouco antes da meia-noite. Mas como sua vida estava uma confusão total, 94
acreditava naquele momento que a relação entre eles passaria por uma forte turbulência, pelo fato de que Deborah não desistiria de encontrar Alan. Dentro dela, quase que não havia escolha; ela tinha que ir, apenas isso, e não havia explicação lógica para este fato. No entanto, não estava em jogo o seu casamento e a sua certeza de querer continuar com Mauro. À meia-noite abraçou Mauro, com todo o carinho que sentia por ele e pelo que acreditava da relação dos dois. Olhou para o céu, a lua estava linda. Sentiu Alan, ele também estava lá. Para Alan, não era apenas o ano que estava passando. Era toda uma vida. Parecia que tudo o que havia feito até então tinha servido apenas para transportá-lo até aquele momento. Não sentia nenhum arrependimento ou tristeza; pelo contrário, tinha sido uma vida maravilhosa, mas sabia que o rumo estaria sendo totalmente alterado. Passavam-lhe pensamentos do tipo: “Será que eu vou morrer e estou repassando minha vida?” ou “Será a crise dos 30, aos 32 anos?” Não tinha respostas, apenas um profundo pressentimento de que algo de importante, sagrado, estava por acontecer. Fugiu dos convites de reveillon e ficou sozinho na passagem do ano. Criou seu próprio ritual: acendeu uma vela e passou as primeiras horas do ano em silêncio total, fazendo suas práticas de meditação. Estava límpido, sem pensar em nada. Deborah passeava pela sua cabeça e, pela simpatia que sentia por ela, desejou-lhe mais do que um ano feliz...uma vida feliz. Ela era uma pessoa muito especial. A sensação de “cuidar” dela ainda ficara, mas como se tratava de um gesto muito puro, merecia ficar. Mais uma vez, Deborah pegava uma carona com Alan e, de alguma maneira, eles começavam juntos a década de 90. “It’s my turn If I dont’t have all the answers At least I know I’ll take my share of chances”
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3 de janeiro de 1991 Estes primeiros dias do ano eram de construção. Alan começou a mudança de seu escritório, transferindo toda a papelada. Mudanças. Parecia que ele não fazia outra coisa na vida. Quase ninguém estava trabalhando naquela semana e Alan estava se organizando no seu novo escritório, quando resolveu passar no antigo para pegar umas caixas. Entrou, o prédio estava vazio, ele só ia ficar alguns minutos. Quinta-feira, início de tarde, Deborah pegou o telefone e discou o número que a levaria ao escritório de Alan. Rumo a alguma coisa que não sabia o que era, na dúvida de estar ou não no caminho certo. O telefone tocava lentamente, seu coração batia fortemente. Alguém atendeu: –– Por favor, eu queria falar com o Alan... ele está? –– Pode falar. –– Oi, Alan, é a Deborah. Acho que não estava preparada prá que você atendesse o telefone... Risos, silêncio, tempo indeterminado. Alan levou um susto gostoso, mas procurou parecer o mais normal possível. Deborah continuava a surpreendê-lo. –– Como você conseguiu me pegar aqui nestes poucos minutos? Você estava ligando o dia inteiro? –– Não. Estou ligando pela primeira vez. Por quê? –– Porque acabei de chegar, só para pegar umas coisas. O pessoal está em férias coletivas e eu aproveitei a calmaria para fazer a mudança do meu escritório. Que sorte você ter me encontrado! –– Ah, é... você está sozinho aí? –– Estou... –– Posso te fazer uma visita? Queria conversar com você... –– Claro... Você vem aqui? –– Vou, se não for te atrapalhar... –– Não, tudo bem... Horário, endereço, espera. Alan, ainda com a caixa na mão, olhou para o escritório vazio e ficou aguardando Deborah. Pensou em 96
como seria bom continuar seu amigo, mas Mauro teria dificuldades em aceitar isso e ele o compreendia. Resolveu que facilitaria o afastamento, pois era o melhor para ela. Quinta-feira, final de tarde. Deborah subiu as escadas, tropeçando em dúvidas, mas com passo firme. Tocou a campainha. –– Oi...que bom que você está aqui... –– Você acha? Fiquei com medo de estar te atrapalhando... –– Não, claro que não. Vamos prá minha sala? Olhares, constrangimento, saudades. Sentaram-se na sala de Alan, enquanto Deborah percorria o espaço com os olhos e tentava desvendá-lo: madeira, livros, janelas grandes, aconchego. Respirou fundo e desabafou: –– Te procurei porque precisava falar com você. Na verdade, nem poderia estar aqui. O Mauro não sabe, achei melhor não falar. –– Sei...fiquei chateado naquele dia em que ele não foi assistir a peça. Queria que ele confiasse que estava tudo bem, prá ele não ficar mal com você. Quase mandei flores prá ele. –– Mas as flores deveriam ser prá mim, né? –– Queria que você ficasse bem e isso ajudaria, achei. –– É ...mas eu não estou bem. Tá tudo muito difícil e a minha cabeça está uma grande confusão. –– Tem alguma coisa que eu posso fazer prá te ajudar? –– Você pensou muito em mim nestes dias, não é? –– ...pensei... –– Mais do que o normal, não é? –– ...é... –– Eu sei. Eu senti, não sei explicar. Do jeito que você está falando, parece que você não tem nada a ver com esta situação. Eu te procurei porque precisava te dizer o que estou sentindo e acho que não sou só eu... –– ... –– O que está me deixando mal é que eu não consegui parar de pensar em você e isso não está certo. Não sei o que é e não tenho o mínimo jeito prá lidar com este tipo de situação. Mas você precisava saber. Prá me ajudar, talvez. Alan, nessas alturas da conversa, não lembrava nem de longe de sua proposta inicial, em que trataria Deborah com seu tom de
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“Vamos ser práticos”. Estava feliz em vê-la no seu espaço, confuso com o que estava ouvindo e tentando encontrar palavras para ajudá-la. Comentou: –– Prá falar a verdade, eu também não tenho o mínimo jeito prá lidar com isso. Também não sei o que é, mas de um lado parece até meio incestuoso, sei lá. Existe um lado entre a gente de muita amizade, de muita cumplicidade, de irmão mesmo. Este outro lado...eu estou confuso. –– Eu também. Nunca passei por isso, nem imaginei que aconteceria comigo algum dia. Mas não dá prá fazer de conta que não está acontecendo nada. O fato é que eu estou te sentindo perto o tempo todo, é bom e ruim ao mesmo tempo. Não sei o que vai acontecer. –– Eu nem sei o que falar. Diante do silêncio que pretendia se instalar, Alan sentiu que era melhor dizer qualquer coisa. Falou a primeira idéia que lhe veio à mente: –– Na passagem do ano eu tirei uma carta do Triângulo Mágico para me guiar durante todo o ano. E me veio esta carta, até colei na agenda: “Não acredite quando sua mente disser sou incapaz de fazer tal coisa. Experimente fazê-la.” Nem sei porque estou te falando isso... Dúvidas, medo, beleza. –– Bom, tenho que ir. Se chegar tarde em casa, o Mauro vai ficar mal. Escrevi um cartão prá você. Ia entregar naquele dia em que te liguei, mas você foi meio frio...Está na minha casa. –– Você vai me entregar? –– Vou. Aliás, aquele almoço de negócios com o Viscar ainda está de pé? Ele queria falar com você sobre algumas questões de Marketing. –– Claro, é só marcar. –– Tá. Então eu combino com ele, você vai na empresa e a gente almoça juntos. Segunda eu te ligo prá marcar. Aí te levo a carta. –– Tá ótimo. Despedida, abraço forte, terreno inabitado. E Alan fechou a porta. Outra porta parecia se abrir. Teve a sensação de nunca ter sido abraçado antes. Perdeu o controle das pernas, elas não se moviam. Só conseguiu escorregar pela parede até cair sentado no chão. Ridículo! Isso nunca lhe acontecera. Deborah desceu as escadas, procurando entender o que tinha acontecido, onde estava, quem ela era. Num misto de alívio, culpa, 98
contentamento e preocupação, sentiu-se forte. Uma voz interior lhe dizia que, embora estivesse quebrando suas próprias regras, estava fazendo exatamente o que era para ser feito. O certo estava no errado, o errado estava no certo. Que mundo era esse? “Um abraço estrangeiro e tão familiar Até se encontrar”...
11 de janeiro de 1991 Na segunda-feira seguinte, Alan ligou para marcar o almoço, que seria na próxima sexta-feira. A conversa foi rápida, mas levava um tom um pouco diferente. Após a confissão, seria impossível para Deborah morar no tom antigo. A história que contava para si mesma não combinava mais. Alan pediu para Deborah não esquecer de levar o cartão e falou que estava gravando uma fita prá ela, mas que estava pensando se deveria ou não entregar. E assim, aguardaram a sextafeira. Deborah recebeu Alan na empresa com um orgulho tímido. Gostava de vê-lo no seu espaço de trabalho, era uma outra face de sua vida que ele estava visitando pela primeira vez. Sentia que, também nesta área, cresceriam muito juntos e ela teria muita coisa a aprender com ele. Ficava admirada ao ouvi-lo falar. Ele tinha força nas palavras e nos gestos e transmitia vitalidade e alegria. A luz que vinha dos seus olhos verdes era capaz de levar as pessoas pelo caminho que ele quisesse. Deborah percebia que, além de passar ensinamentos de marketing para as três pessoas que estavam com eles na sala, Alan passava ensinamentos de vida. Sentiu orgulho dele e ficou feliz por ser íntima de uma pessoa tão especial. Alan gostava muito do seu lado profissional. Sabia que era criativo e colocava qualidade no que fazia. Gostou que Deborah estivesse conhecendo este seu lado. Percebeu, em alguns momentos, estar se exibindo um pouco prá ela na sua fala, gestos e postura. E o jeito como ela o olhava o inspirava ainda mais. Via que Deborah era
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muito boa no que fazia e queria ajudá-la a enxergar isso; a ovelha se transformaria num imponente tigre. Olhou as outras pessoas e ficou imaginando o que elas pensavam de Deborah. Como a viam? No almoço, quatro pessoas, Alan e Deborah sentaram-se ao lado um do outro. Era estranho estar naquele espaço, com pessoas do cotidiano, amparados por certa intimidade, dividindo segredos. Isso os tornava mais próximos. Quem poderia imaginar que aquele consultor de marketing estava, há vinte dias atrás, num palco, representando um pássaro em busca do Simorg? Por alguns instantes, Deborah olhava Alan segurando os talheres e pensava: “Que mãos são estas? Quem é este ser?” Era esquisito. Como estar reconhecendo alguma coisa e ao mesmo tempo estranhando. Como se o ser de Alan fosse muito familiar, e ao mesmo tempo totalmente diferente de tudo o que ela conhecia. Depois do almoço, desta vez só os dois, conversaram em uma das salinhas da empresa. Já não eram mais os mesmos de antes, ou melhor, já não eram mais os “desavisados” de antes. O olhar era o mesmo, mas a percepção do olhar havia mudado. Começava a ser possível reconhecer um brilho de homem e acolher um brilho de mulher. “Over and over again I tried to tell myself that we could never be more than friends And otherwise inside I knew it was real the way you make me feel”
14 de janeiro de 1991 Há tempo que Alan estava devendo uma fita para Deborah. Queria devolver-lhe o sabor que sentira ao ouvir as músicas que ela lhe gravara na fita da garça. Como sua vida no ano passado estava em pleno corre-corre, não teve tempo de gravá-la. Agora, com a calmaria do início de ano, Alan mergulhou nesta empreitada e caprichou. Escolheu as músicas de que mais gostava e 100
até colocou uma que havia composto em parceria, quando tinha 18 anos. Gravou, também, a música “Leãozinho”, de Caetano. Com certeza, tinha sido feita prá Deborah: era todo o seu jeito, tom, humor, cor, melodia e liberdade. Escolheu, também, “Aquarela”, de Toquinho e Vinícius. Esta música dava-lhe a sensação de poder tudo. Bastava pegar um lápis, um papel, que eles já transformariam isso numa casa, num guarda-chuva, etc. Era uma sensação que ele tinha com Deborah: os dois, juntos, com meia dúzia de palavras, transformavam nada em alguma coisa. O que os outros chamariam de “rabiscos no papel” eles chamavam de sol. Era uma sensação gostosa e era isso que Alan queria passar ao gravar esta música. Na capa da fita, com alguns traços, desenhou um sol amarelo. Deborah foi ao novo escritório de Alan, na Faria Lima, perto de onde ela morava. Parecia estar configurado que o teatro não era mais o único cenário para eles se encontrarem. Estavam construindo um outro espaço: o trabalho. Independentemente de qualquer coisa, a troca profissional que havia entre eles deveria continuar. Isso não era errado; pelo contrário, era um terreno permitido, real e sem nenhum perigo. Este era o pensamento de Deborah ao procurar Alan. Iniciaram uma conversa que em pouco tempo transformouse numa nova reflexão sobre a relação dos dois. Aliás, ultimamente não faziam outra coisa. Alan tinha muito claro que a amizade entre eles seria muito difícil em função do ciúmes de Mauro. Deborah, que até então não tinha aceitado tal fato, deu-se conta de que, mais uma vez, estava querendo conciliar coisas inconciliáveis. Por um lado, achava que não tinha problema, pois não estava traindo ninguém, apenas encontrando uma pessoa de que gostava muito e que lhe fazia bem. Não era justo ter que abandonar uma amizade tão linda. Por outro lado, sabia que alguma coisa estava no lugar errado. O que sentia por Alan era mais forte do que uma simples amizade e este sentimento não cabia na vida que estava levando. Sabia que deveria colocar todas as suas “fichas” na relação com Mauro, pois tinha plena certeza de que queria continuar casada com ele. As portas estavam se
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fechando, não deixando outra saída senão abrir mão de Alan para salvar seu casamento. Resolveram, então, não se ver mais. Alan, desde o começo, sabia que teria de ser assim, pois era o melhor para Deborah. Uma pena, mas o melhor prá ela. Contou-lhe uma história infantil que estava criando, inspirada na amizade deles: “São dois planetinhas, um verde e outro azul, da cor dos nossos olhos. Eles gostam muito de brincar, de conversar e de rir um com o outro. Só de se avistarem já ficam felizes. Mas eles têm um grande problema: pertencem a sistemas solares diferentes e de alguma maneira sabem que, se eles se aproximarem muito, uma força (talvez a força gravitacional do planeta) os colocará em rota de colisão e poderá haver uma explosão desastrosa para todo o sistema solar e talvez para todo o universo”. Deborah perguntou como acabava a história, mas Alan disse que não sabia, pois aquilo era só um esboço. Para ela, ficou uma sensação forte de que os planetinhas não poderiam se tocar. Se isso acontecesse, a explosão que haveria seria fora do controle do universo e representava um grande perigo. Estava na hora de ir embora. Alan acompanhou Deborah até seu carro. Despediram-se. Um abraço tímido e cheio de saudades. Quando se veriam novamente? A cabeça dizia que demoraria muito. O coração pedia urgência. E o corpo...o corpo fingia estar dormindo. Estavam no estacionamento do Shopping Iguatemi. As histórias de amor não têm lugar para acontecer. Existem apesar do tempo, apesar do espaço, até mesmo apesar das pessoas. E é por isso que o amor sobrevive ao longo dos séculos, pois não há força mais poderosa e mais frágil do que esta. As histórias de amor precisam existir para plantar outras histórias de amor, para que o coração daqueles que buscam não desista. Se não fosse assim, nenhum encontro seria possível e de nada valeria viver. Deborah colocou a fita-sol. Por sorte tinha um toca-fitas no carro. Poderia ouvir até chegar em casa. Na terceira música, “Oceano” de Djavan, percebeu –– claro como a luz do sol que iluminava a capinha de sua fita –– que Alan a amava. Será que ele tinha noção das músicas que gravara prá ela? — pensava. Chorava, e nem sabia se era de profunda tristeza ou de profunda felicidade. E agora? 102
“I need you like the winter needs the spring you know, I need you”.
15 a 24 de janeiro de 1991 Como já dizia Chico Buarque, “Há dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Foi um longo período, que não tinha tempo para terminar. Quando a vida nos coloca uma encruzilhada pela frente, só uma coisa é importante: buscar incessantemente a nossa verdade interior. Durante esta busca, não importa muito se erramos ou acertamos, desde que a intenção seja forte e verdadeira. Certamente, as respostas às grandes dúvidas da humanidade não vieram na primeira pergunta. Foi necessário ir e voltar, pensar e repensar, fazer e refazer uma infinidade de vezes. No entanto, não há pergunta que não contenha em si uma resposta, ainda que ela não seja visível à primeira vista. Basta não desistir e a resposta virá. Em Deborah, houve um enorme esforço para fazer o que havia se proposto e que achava ser o certo, embora fosse na direção contrária ao que desejava. Tinha todas as razões do mundo para não encontrar Alan: o respeito que sentia por Mauro, a luta verdadeira para recuperar seu casamento, seus conceitos e pré-conceitos em relação à vida. Mas...será que a vida era isso? O que era realmente viver? A fita-sol era seu único consolo, esquentava sua alma e lhe trazia a luz de Alan. Ouvia, ouvia, ouvia, e cada vez espantava-se mais diante de tamanho gesto de amor. Talvez nunca tivesse sido amada daquele jeito. Precisava gravar uma resposta, não conseguiria permanecer no silêncio. Vasculhou seus discos, os de sua irmã, de seus pais, e começou a gravar. As músicas brotavam, apareciam no momento certo, na hora certa, como se existissem apenas para ajudá-la a traduzir o que estava sentindo. Reencontrou músicas de sua infância e adolescência, conheceu músicas que nem sabia que existiam, ouviu
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outras como se fosse a primeira vez que ouvia. Gravou, também, um trecho de uma música que gostou muito da fita-sol, e que nunca tinha ouvido antes. Ele dizia que “A saudade não separa dor de prazer”. Era como se estivesse devolvendo a Alan aquele gesto de amor. Aquela era a fita-lua. Só podia ser. Um dia, quando a saudade doeu mais do que a razão, Deborah desenhou e escreveu para Alan e mandou o cartão pelo correio: Cheguei em casa e pedi uma ajuda para o Triângulo Mágico. Tirei uma carta. Não é mentira: “A Vida proporciona alternadamente dois sabores: doce e amargo. Saiba colocar-se no justo meio e experimente o divino terceiro sabor.” Hoje amanheceu chovendo. No carro, te ouvindo e te sentindo, entendi porque chovia. Lembrei do que você me disse: “Mesmo em dias nublados, o sol continua brilhando no céu”. Olhei pra caixinha da tua fita e sorri. É uma alegria triste. Ou uma tristeza alegre. Talvez a carta do baralho. Talvez a coisa mais linda que já me aconteceu.
Alan, do lado de lá, sentia que precisava ficar bem e ajudar Deborah na sua escolha. Ao que tudo indicava, ele deveria ficar longe dela, pois aparentemente não havia como conciliar o casamento com a amizade. É impressionante pensar que uma coisa muito boa pode levar a outra muito ruim. Neste período, uma amiga o procurou para que ele a ajudasse num projeto. A certa altura da conversa, “pintou um clima”, como dizem por aí. Em outros tempos não aconteceria nada, mas em função do que estava vivendo, achou que isso o ajudaria a distanciar-se de Deborah. Começou a namorar, pensando que assim estaria colocando sua atenção em outra coisa e, principalmente, que estaria ajudando Deborah a esquecê-lo. Também nesse período, numa das madrugadas, Alan acordou com a sensação de que tudo tinha ficado muito claro dentro de si. Resolveu escrever para não perder. De manhã, ao acordar, leu a “loucura” que tinha escrito e rasgou imediatamente. Era uma fresta de sua verdade mais profunda — como um despertar dormindo — 104
que naquele momento Alan não compreendia. Ou então, quem sabe, não permitia. “Ó pedaço de mim Ó metade afastada de mim Leva o teu olhar Que a saudade é o pior tormento”
24 de janeiro de 1991 Dez dias haviam se passado, tendo como pano de fundo um esforço genuíno em seguir a direção que haviam escolhido. Ainda assim, por mais que Deborah tentasse controlar suas ações, a força que a impulsionou a gravar a fita vinha de um lugar muito distante da razão. Era como estar vivendo paralelamente em duas realidades opostas: ao mesmo tempo em que procurava fazer o que sua mente achava ser o certo, fazia exatamente o contrário e seu coração lhe dizia que isso era o certo. Decidiu, então, que entregaria a fita-lua para Alan pessoalmente e que continuaria a vê-lo, pois não podiam deixar de ser amigos. Alan a recebeu em seu escritório, com a notícia de que estava tudo bem e que eles poderiam ser amigos sem nenhum problema. O impacto que sentiu foi parecido com ter passado no vestibular ou ganhado na loteria. Nem disfarçou. Contou a Deborah sobre o “episódio da madrugada” e o desfecho na manhã seguinte. Ela ficou muito brava ao ouvir que ele tinha rasgado o bilhete, pois teve a sensação de que naqueles escritos poderia estar a resposta a todas as suas dúvidas, como um segredo que estaria sendo revelado. E o pior, Alan não se lembrava do que escrevera. Mas dizia que era uma sensação do peito se abrindo como nunca tinha acontecido até então. Ao ouvir isso, Deborah compreendeu, sem entender, a importância do que estaria por vir. E diante de tal constatação, arriscou uma pergunta: — Alan, você se lembra do primeiro dia do teatro, em que estávamos dizendo os horários que podíamos participar dos grupinhos, e você mudou para o mesmo dia que eu? Foi por minha causa?
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— Como assim? — Você não se lembra? Você se inscreveu num grupinho, aí eu falei que ficaria no grupo da terça-feira e depois de um tempo você pediu prá mudar para esse grupo. — Não me lembro de ter mudado. Nem me lembro de você no primeiro dia... — Bom, então foi coincidência. Mas eu tenho certeza de que você mudou de grupo. — Vou tentar lembrar... Conversaram um pouco sobre a fita-sol, sem entrar em muitos detalhes. — É linda a fita que você me gravou... — Eu escolhi músicas que eu gosto e achei que você também gostaria.. — São lindas... — Tem uma música, não sei se você reparou, que eu compus quando tinha 18 anos... — É aquela que fala que a saudade não separa dor de prazer? — É... Como você sabe? — Sei lá. Adorei essa música e...bom, não vou falar, você vai ver. — O incrível é que eu tinha me esquecido dessa música e fui achar logo agora. Quando ouvi, tive a clara sensação de que eu compus há 15 anos atrás para este momento que estou vivendo. — Que loucura como as coisas estão acontecendo com a gente, né? Parece tudo tão sintonizado...Bom, vim aqui te entregar uma coisa. É uma resposta. Deborah entregou a fita-lua para Alan. Sabia que o símbolo da capa falaria mais do que qualquer coisa. Sorriram, olharam-se, abraçaram-se, despediram-se. De alguma maneira, a história de Alan e Deborah estava deixando de pertencer apenas a eles e passava a pertencer também ao universo. O futuro estava em suas mãos e ao mesmo tempo não estava, pois obedecia ao compasso de um mundo misterioso, cujas leis eram muito diferentes do dia-a-dia dos homens. Alan e Deborah estavam sendo guiados por uma força direta e indubitável. Era um mundo novo. E a porta estava se abrindo. 106
“Perhaps love is like a window perhaps an open door It invites you to come closer it wants to show you more”
26 a 28 de janeiro de 1991 Percorrer um caminho desconhecido tímida e serenamente. Procurar a resposta sem medo de enxergá-la. Conseguir viver na contradição mais profunda sem apressar a linha de chegada, onde certamente estará a verdade. Enfrentar com coragem a passagem pela turbulência até reencontrar a paz interior. Com certeza, nada disso é fácil. Mas um pouco de tudo isso se fazia presente na trajetória de Alan e Deborah. De alguma forma, estavam sendo guiados pelas forças do universo e pelo trabalho interior inspirado nos ensinamentos de Mathetés Gurco. Eles não estavam entendendo nada e ao mesmo tempo compreendendo tudo. Mas para que pudessem ver limpidamente o significado do que estavam vivendo, era preciso perceber com o todo do ser e não apenas com parte dele. Deborah viajou com Mauro para a praia, ainda na tentativa de resgatar alguma coisa boa. Tinha esperança de que se ficassem juntos mais tempo, só os dois, num lugar gostoso, poderia ser bom e os ajudaria a sair da crise. Pensava em Alan, sabia que ele estaria ouvindo a fitalua, mas ao mesmo tempo queria ficar bem com Mauro. Contou a ele que tinha gravado uma fita para Alan, como que tentando dizer que não havia nada a esconder e que uma coisa não interferia na outra: podia estar casada com ele e ser amiga de Alan sem problemas. Ao menos, era isso o que queria, ou melhor, o que queria acreditar. Alan, ao ouvir a fita-lua, sentiu como se tivesse sido aprovado este canal de comunicação, esta linguagem. As músicas entravam pela emoção e falavam direto ao coração. Era um gesto de carinho. Cada música era um presente que ia sendo desembrulhado lentamente.
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Ouviu, logo no início, o trecho da sua música “Dor e Prazer”, que ela gravara sem saber que era ele quem tinha composto. Prá variar um pouco, lá estava ela o surpreendendo novamente. Passou o fim-de-semana ouvindo e reouvindo a fita e entrando em todas as lojas de disco da cidade, à caça de músicas para Deborah. Comprou mais discos naquelas últimas oito horas do que nos últimos oito anos. Manhãs, tardes, noites e madrugadas gravando uma resposta à lua. Na capa, desenhou um sol e uma lua. Domingo, pensou em dar a Deborah um presente especial e, sem saber bem por quê, veio-lhe à mente que os índios transferem conhecimento e sabedoria através de uma bolsinha medicinal com ervas e pedras sagradas. Teve, então, a idéia de lhe dar um kit de primeiros socorros, com tudo o que pudesse agradar seus cinco sentidos: a fita solua para seus ouvidos, um cartão de feltro em relevo para seus dedos, um algodão com o perfume que usava para seu nariz, goodies para sua boca e o visual do todo para seus olhos azuis. Alan mal podia esperar a segunda-feira acordar, para entregar a Deborah a bolsinha medicinal que ele chamou de “Todos os Sentidos”. Estavam novamente amigos, novamente bem. Segunda-feira de manhã falou com ela pelo telefone — estava louco para que “Todos os sentidos” fossem para suas mãos. Ela disse que passaria em seu escritório na hora do almoço, para buscar o presente. Hora do almoço, Deborah chegou. Estava especial. Mal sabia o que ele tinha aprontado prá ela, pensava. Por um breve momento, ficou preocupado que ela o interpretasse mal. Mas depois...não, não tinha problema. Deborah o entendia bem, muito bem. Ao abrir o presente, ela parecia uma criança abrindo uma caixa de surpresas. Cores, cheiros e sabores pipocavam aos seus sentidos, convidando-a para um banquete. Abriu um envelope e tirou dele um cartão. Era uma foto que mostrava, sob o céu azul, uma montanha dourada pela luz do sol, envolta numa névoa branca e rodeada de pinheiros muito altos. Virou o cartão e leu: “O maravilhoso está dentro de nós. Essa alquimia nos pertence. Basta estar presente. Conhecer você me faz SENTIR mais presente”. No carro, voltando ao trabalho, pois tinha dado uma “fugidinha” na hora do almoço, Deborah sentiu novamente aquele 108
incômodo de que alguma coisa não estava no lugar certo. Estava radiante com o presente que recebera, mas começou a temer que as coisas estivessem indo longe demais. Tudo bem que eles fossem amigos, que voltassem a se encontrar, mas... Tinha acabado de voltar da viagem com Mauro e logo na segunda-feira já estava correndo prá encontrar Alan. Era demais! Ainda assim, ouvia a fita solua e se maravilhava, ao mesmo tempo em que sua angústia crescia. O que fazer? De noite, ao chegar em casa, Mauro parecia ter pressentindo que algo estava acontecendo. Sem nenhum motivo aparente começaram a discutir e ele disse que não queria mais que ela se encontrasse com Alan. Deborah o compreendia, mas estava vivendo sob tamanha pressão interna, sentindo-se tão sufocada, que não podia simplesmente obedecer. Embora achasse que ele tinha certa razão, não percebia nenhum esforço de sua parte para ficar bem com ela. Via-o incomodado por um ciúmes natural, mas não porque gostava dela realmente. Por diversas vezes, desde que a crise se fez presente, Mauro dizia que não tinha certeza se ela era o tipo de mulher que ele queria realmente. Na verdade, sabia que ele admirava o seu jeito de ser. Mas gostar realmente...a cada dia que passava Deborah se fazia mais esta pergunta. Em meio a gritarias e cobranças, numa onda de impulso, resolveu sair de casa. Só queria uma coisa: respirar. Pegou a chave, entrou no carro e saiu. Não tinha rumo, apenas urgência de viver. Quando se deu conta, estava em frente ao escritório de Alan. “Help! I need somebody Help! Not just anybody Help! You know I need someone Help!”
28 de janeiro de 1991 Eram quase oito horas da noite e ele não sabia por que ainda estava no escritório, jogando conversa fora. A secretária atende o telefone e diz: –– É a Deborah.
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Eram quase oito horas da noite e ele sabia exatamente porque ainda estava no escritório. Com as pernas disparando e o coração tropeçando, ou o contrário, conseguiu chegar ao telefone e desabafou: — Oi... Tudo bem? — Não. — Que foi? — Estou no orelhão, aqui embaixo. Você pode descer? — Já estou descendo. Apressado e ligeiramente desnorteado, pegou a pasta e saiu. Voltou, deixou a pasta, voltou novamente e pegou a pasta. Por fim, desceu no elevador e, se lhe perguntassem, não saberia dizer se estava ou não com a pasta embaixo do braço. Ficou imaginando o que seria o “não estar bem”. De um certo ponto de vista poderia até ser positivo. Resolveu não pensar mais. Deborah desligou o telefone e pensou: “Bom, o que está feito está feito.” Não sabia muito bem o que estava fazendo, muito menos como tinha ido parar lá. Se parasse para pensar, talvez não fizesse nada. Do jeito que sua vida estava confusa, como saber o que era certo e o que era errado? O fato é que quase sem querer, mas querendo muito, estava lá. Acabara de ter uma forte discussão com seu marido. Sabia que ele tinha motivos para ter ciúmes do Alan, mas tentava se convencer de que não havia problemas. Alan era apenas uma pessoa especial e contra este fato não conseguia lutar. Mas, é claro, não trairia Mauro, o homem que escolhera para ser seu companheiro o resto da vida. Não queria mentiras, não queria enganar ninguém. Porém, ao sair de casa para respirar, só conseguiu ir em direção ao Alan. O que estava querendo? Em meio ao turbilhão de pensamentos, avistou-o saindo do prédio. Por um breve instante, uma paz contagiante e uma alegria imensa a invadiram. Os olhares se cruzaram e os dois entraram no carro sem trocar nenhuma palavra, apenas um tímido sorriso. Apesar do clima de tragédia, Alan não conseguia disfarçar sua alegria em vê-la. Nem Deborah. Foi preciso muito esforço para que um dos dois conseguisse esboçar uma frase inteligente e que fizesse sentido: 110
–– Você quer ir a algum lugar? Quer ir com o meu carro ou quer que eu dirija? –– Não, eu dirijo. O carro começou a andar e, sem dizer uma só palavra, iniciaram uma conversa. Era uma daquelas muitas conversas em silêncio que tinham, com ou sem palavras. Rodaram muito, mas voltavam sempre à mesma rua. Ficou claro que ela estava confusa quanto a que rumo tomar e queria sua ajuda. –– Quero sair daqui, mas não sei para onde. Vai indicando que eu dirijo –– disse ela. O ato de dirigir dava-lhe a sensação de força, de um certo domínio externo que absolutamente não coincidia com o total desnorteamento interno. Mas sentia-se cômoda por não precisar encará-lo. –– O que aconteceu? –– Briguei novamente com o Mauro. Estava tudo bem, tudo mesmo. Aí cheguei hoje em casa e ele estava atacado. Falou que não queria que a gente se encontrasse no teu escritório, eu fui tentar dizer que estava tudo bem e piorou ainda mais. Parece que ele adivinhou que a gente se viu hoje. Nem tive coragem de contar. Estava tão nervosa que resolvi sair. Ele perguntou se eu ia me encontrar com você... eu disse que não. Não era o que eu pretendia fazer... Alan a olhava. Sentia-se bem e mal ao mesmo tempo. Queria tirar de dentro dela aquela angústia. Mas julgava-se responsável por tudo aquilo. E, para piorar ainda mais, estava feliz por estar lá, ao lado daquela mulher que lhe fazia tanto bem. Num ato de coragem, talvez por não saber o que fazer, perguntou: –– Você acha que eu sou a pessoa certa para te ajudar? –– Não sei. Não estou em condições de saber nada. Mas foi a única pessoa que me ocorreu. Novamente, ficou claro que ela estava confusa quanto a que rumo tomar e queria sua ajuda. Colocou a fita que ele lhe havia dado naquela manhã: solua. A terceira da série. Alan sorriu. Os dois olharamse com cumplicidade. Apesar de proibido e com tudo em volta dizendo não, uma beleza acontecia. Era um fato. Alan também estava totalmente sem rumo, mas fingia saber para onde estavam indo. Por um acaso daqueles, passaram perto da casa onde Deborah vivera anos de sua infância e adolescência. Ela resolveu mostrar-lhe. Ele disfarçou as lágrimas dos olhos.
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Compreendeu aquele gesto como um compartilhar de intimidade. Sentiuse mais próximo e, exatamente por isso, com mais dificuldade para dominar a situação. Finalmente pararam em uma rua tranqüila, embaixo de uma grande árvore. A fita continuava tocando, deixando Alan encabulado, como se estivesse sendo flagrado por uma travessura. Teve vergonha das músicas que gravara e temeu que Deborah as interpretasse mal. Mas parte dele queria exatamente isto. Por entre as músicas, um silêncio pesado invadiu todo o espaço e imobilizou qualquer tentativa de dissimular. Não dava mais para adiar o coração. Estava acontecendo o que queriam, embora evitassem. Olharam-se. Nada se falavam, mas tudo se diziam. Ele segurou e beijou sua mão, como se estivesse beijando seu corpo inteiro. Tentava tranqüilizá-la. Ela, envergonhada de ter chegado até lá, misturava-se de culpa e felicidade. E uma verdade dentro de si dizia que queria aquele homem. Queria ser daquele homem. Era uma pureza muito grande, chamando para ser vivida. Um pouco sem coragem, mas com muita coragem, deixou esta verdade aparecer: –– Não sei o que é. Mas isto tudo não pode estar acontecendo por acaso. A gente já fez de tudo para lutar contra. O único jeito será viver esta história até o fim. –– Se a gente se beijar, eu não vou mais conseguir manter a minha atitude com o Mauro. Até agora eu sentia que tinha argumentos. Se ultrapassarmos esta fina linha, não vou mais poder encará-lo tranqüilamente. –– Acho que você não está entendendo o que eu estou querendo dizer... –– Estou sim. Quer que eu seja mais claro? Deborah esboçou um sim com a cabeça. –– Você acha que devemos ir até o fim, inclusive dormir juntos. Não é isso? Ela, num misto de vergonha, mas procurando em seu olhar alguma aprovação, murmurou: –– É... E agora? Tinham ido longe demais. Era um momento em que não podia acontecer nada e poderia acontecer tudo. Tinham que evitar o inevitável... o beijo. Até aquele instante poderiam, diante de tudo e de todos, e principalmente diante do espelho, dizer que não 112
tiveram nada. Alan queria manter as coisas assim. Principalmente porque Deborah tinha certeza do seu casamento e da pessoa que escolhera. Se acontecesse qualquer coisa, seria complicado manter o que ela buscava. Ainda assim, olhava-a extasiado diante de tanta beleza. Carinhosamente, falou: –– Você é a pessoa mais linda que eu já conheci. –– Não é bem assim, você não me conhece. Eu sou difícil de lidar, sou meio... –– Deborah... te vejo toda. Silêncio. A expressão daquele homem com rosto iluminado e o som de suas palavras entraram em Deborah com tamanha força, que paralisaram sua respiração. O mundo poderia ter acabado naquele instante de vida que ela não se importaria. Sentiu-se nua de corpo e alma, pois compreendia, sem entender, a verdade daquelas palavras. “Viver nos torna personagens de nossa própria vida”, pensou. Naquele instante mágico dava-se conta disso, e cinco meses transcorreram em sua mente e na mente daquele homem que exalava amor ao seu lado. Nunca poderiam imaginar, tão ingênuos eram seus encontros, que estariam um dia vivendo tamanho impasse. Por que estava acontecendo tudo aquilo? Ela lembrou-se de sua sensação ao subir as escadas, timidamente, para a primeira reunião de teatro. Abraçaram-se. Em algum momento, sem bem saber como, colocaram-se numa rota de atração e como um ímã que não racionaliza sua polaridade...os lábios se tocaram, as bocas se perderam e as almas se encontraram. Pela primeira vez Alan sentiu o que era realmente existir. Ficaram ali, naquele carro que havia se transformado em templo, naquela rua que havia se transformado em floresta, apenas respirando e sentindo o sentir. A lua brilhava e brindava aquela união e o encontro das almas iluminava e alimentava a noite. Um cachorro enorme apareceu na janela e parecia querer entrar dentro do carro para participar daquela magia. Alan e Deborah estavam com a sensação de que eram aceitos pelo mundo. Estavam fora do tempo e fora do espaço. Estavam no “aqui agora”. Passado algum tempo –– certamente muito menor do que o tempo do relógio –– tiveram de se despedir. Deborah não podia acreditar estar vivendo aquilo. Era lindo demais e absurdo demais. Ela era casada,
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como podia ter ido tão longe? E como poderia não ter ido tão longe? Dizer não para esta história era como renunciar à vida. E agora? Como seria encarar Mauro? O que seria do dia seguinte? Deixou Alan próximo ao seu carro e se despediram apressadamente. Não sabiam o que seria ou se seria. Não sabiam nada. E diante do vazio, só restava viver.
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SOL Desde quando o amor não é em si uma busca? Descobrir-se no outro, através do outro...
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28 de janeiro de 1991 - madrugada Na escuridão da noite, Deborah voltou para casa. Carregava dentro de si uma estranheza sem dono. Como podia ter beijado Alan, casada com Mauro? Que coragem teria para se olhar no espelho, sabendo que estava mentindo prá ele? Por outro lado, não se arrependia. Aquela era a única maneira de não se trair. No fundo, o que mais um ser humano deve fazer a não ser buscar a sua própria resposta para ser feliz? Deborah precisava encontrar a sua e deveria percorrer este caminho sozinha. Tinha que, pelo menos, poupar Mauro naquilo que pudesse, enquanto pudesse. Alan entrou em casa, não conseguia dormir. Deborah era a mulher de sua vida. E agora? Pensamentos, idéias, sentimentos, sensações e o que mais fosse, borbulhavam dentro dele e ganhavam uma força, uma maturidade. Foi se deixando levar por esta “verdade”. Era como se um novo ser estivesse se formando dentro dele. Como se, até aquele momento, acreditasse estar morando em uma kitchenete, quando na verdade morava num imenso e inexplorado castelo. Começou a escrever, sem parar. Era o único meio de expressão possível naquele momento: É madrugada do dia 28 para o dia 29 de janeiro. Totalmente desorientado, peço uma ajuda ao Triângulo Mágico. E, no meu pedido, uma exigência com ardor, com a dor: Quero uma resposta clara... e definitiva. ......... “Não acredite quando sua mente disser sou incapaz de fazer tal coisa. Experimente fazê-la” Acho que não preciso dizer mais nada. I was so foolish. Uma sensação de vulcão invade meu peito e a minha respiração não encontra um ritmo. Ainda embriagado pelos teus olhos, pelos teus lábios... pelo teu ser. Tomo a decisão: vou lutar por você. Vou lutar para ter você.
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Vou lutar da minha maneira. Da maneira que sei lutar. Te amo com todo o meu ser Te amo...mesmo à distância Te amo Como é bom poder dizer isso sem medo...sem culpa. Et maintenaint que vou fazer? Por incrível que pareça estou tranqüilo e o caminho vai ficando cada vez mais claro. Ir para o front não me parece a melhor estratégia. Se eu ficar puxando você por um lado e o Mauro por outro, os três vão perder. Então...vou te soltar. Para que possas sozinha buscar a relação com o Mauro. E que a verdade, seja ela qual for, emerja. Pode parecer que eu estou arriscando muito. Mas é o contrário, o que está em jogo é muito precioso e não vou arriscar. É como amar um pássaro. Amamos seu canto, sua felicidade e sua beleza. Mas o que o faz cantar, ser feliz e belo? E se ele, por amor, submeter-se à nossa gaiola? E se ele, por amor, deixar de ter o céu, as árvores e o orvalho nas folhas? Continuará tão lindo, feliz, a cantar? E SE NÃO? Continuaremos amando-o? É um risco muito grande, não vou corrê-lo. Prefiro soltá-lo. E aí sim, por amor, talvez eu não o perca nunca mais. Te amo muito para arriscar teu canto, tua felicidade e tua beleza. Você é linda. Um mergulho nos teus olhos e refresco a alma. Como é bom! Não se preocupe, não estou indo embora. Sou a rede, caso você perca o equilíbrio. Sou o homem, caso você recupere o equilíbrio. Vou-te mandar uma carta de despedida. Espero que seu coração não acredite. Mas é melhor que a cabeça acredite. Como todo bastão tem dois lados, vou deixar uma pista do outro lado. Vou juntar nossos segredos numa caixa e deixá-la na cristaleira da casa da minha avó. Vou lançar uma espécie de mapa. E talvez o “acaso” ajude você a descobri-lo. lua, eu te amo sol
“It’s just over the bridge and still a long way”
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29 de janeiro de 1991 Ao acordar pela manhã, a dificuldade de encarar o dia, os dias, o futuro aberto e o presente incerto. Na empresa, Deborah mal conseguiu trabalhar. Falou com Mauro por telefone e combinaram de almoçar juntos no Mac Donald’s da Av. Brasil. Apesar de ele não saber de nada, era óbvio que a situação estava caótica. Ela tinha de “dar conta” disso tudo, mas precisava da ajuda de Mauro. Afinal, ele queria ou não ficar com ela? Sentada no Mac Donald’s, em uma das mesinhas do lado de fora, olhava tudo em volta e o espaço parecia irreal, sua vida parecia irreal. A sensação de “isto não pode estar acontecendo comigo” a invadia e ela pressentia beirar o precipício. Precisava encontrar a saída de qualquer jeito, mas seu desespero crescia a cada instante, dando-lhe uma forte sensação de “no way out”. Começou a pedir, talvez exigir, que Mauro a ajudasse. E o que seria ajudar? Não tinha claro exatamente, mas algo na direção de lutar pela relação deles, assim como ela estava tentando fazer. Se apesar de tudo o que estava sentindo por Alan, estava lutando por Mauro, por que ele não lutava por ela? Por que continuava a afirmar que não tinha certeza se ela era o tipo de mulher que ele queria para viver? Propôs que eles fizessem terapia de casal, para que alguém de fora os ajudasse a enxergar melhor o que estava acontecendo. Mauro recusou inicialmente, dizendo que o problema não era do casal, mas sim de cada um individualmente. Naquele instante, Deborah afirmou com toda sua força que, se ele não fizesse alguma coisa, se não ficasse do lado dela, seria impossível lutar sozinha. Era injusto estar se esforçando tanto, enquanto Mauro assistia a tudo passivamente, entre cobranças e reclamações. Claro que não estava fácil prá ele também, mas ela precisava sentir que ele a queria. Decidiram, por fim, que recorreriam a uma ajuda externa para tentar compreender o caos. Mas a sensação de Deborah era de que Mauro tinha aceitado por ela e não por eles. Sentia-se completamente impotente. Não conseguiu voltar ao trabalho e foi para casa chorar. Ligou para Alan, sem saber por que estava fazendo aquilo. Sentiu-o preocupado e, ao mesmo tempo, seguro:
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–– Deborah, você tem que ser forte, você vai ter que lutar. –– Eu sei. Mas isso tudo não pode ser apenas um intervalo, um período de tempo? –– Tudo pode, sempre. Mas neste momento a gente não vai poder se ver mais. –– Eu sei, é melhor assim. É engraçado como, no meio desta confusão, nem você nem o Mauro estão lutando por mim. Acho que é uma coisa que só eu posso resolver, né? –– Fica tranqüila, eu estarei por perto. Deborah confiava. Alan falava e ela confiava. Não sabia exatamente por que ele estava fazendo as coisas daquele jeito. E apesar de em nenhum momento ter ouvido de Alan que ele a queria, sentia uma tranqüilidade em seu peito de que ele a esperaria o tempo que precisasse. Sentiu-se aliviada com sua atitude, como se ele estivesse dando “carta branca” para que ela pudesse trilhar seu próprio caminho livremente. Em Alan... quanto tempo para compreender o óbvio! Apesar do que teria de enfrentar, sentia-se forte e vigoroso, pois contava agora com todo o seu ser. Sabia exatamente o que sentia, o que desejava e o que deveria fazer. Só precisava de coragem e paciência. A partir daquele dia, propôs-se a escrever para Deborah todas as noites antes de dormir, mesmo sabendo que talvez nunca lhe entregasse. Aquele ritual silencioso o trazia para mais perto de Deborah, para mais perto de si. Deborah
29/01/91
A partir de agora, estou me preparando para você. Vou ser melhor em tudo. Vou me aprimorar, lapidar. Vou me cuidar para você. Vou procurar ficar mais saudável, bonito, alegre, judeu, suave, livre e tudo o mais que for necessário. Não medirei esforços. Agora que encontrei A MULHER fica impossível me relacionar com outra. A partir de agora sou virgem. E aguardarei o tempo que for necessário, as vidas que forem necessárias para te ter, para te ser. E me completar HOMEM. Nenhuma outra mulher me tocará. Agora entendo, agora sinto quando um religioso abdica sinceramente do sexo por uma devoção. 120
Não sei quanto tempo levaremos para nos encontrar, se nos encontrarmos. Mas sei que o que escrevi acima é lei, escrita na tábua do meu caminho. O mais engraçado é que faço isso por mim. Não há nenhuma responsabilidade da sua parte. A questão é que não há outra coisa a fazer. É um fato e não um problema. Te amo Te amo...mesmo à distância.
em busca da eclipse Apesar de não saber quanto tempo... o desejo, o meu corpo, meu ser... sente que está próximo. Acho que sentirei a vida toda que o dia está próximo.
“We have all the time in the world Just for love nothing more, nothing less Only love”
30 de janeiro de 1991 Alan foi até a empresa de Deborah levar a carta de despedida. Seu principal objetivo era deixá-la livre e mostrar para Mauro que eles não estariam mais se encontrando. Tinha em mente que, se ela mostrasse a carta para Mauro, isso poderia ajudar. Chorava tanto que, para ir até a recepção, colocou óculos escuros. Enfim, estava feito. Respirou fundo e saiu. Que força era esta que o fazia caminhar na direção oposta àquilo que queria? Que mundo era este, que o fazia acreditar em caminhos ilógicos, inexplicáveis? No entanto, lá estava ele: afastando-se para estar perto, soltando-a para têla. A frase tão desgastada de César cabia perfeitamente naquele momento: “A sorte está lançada!”. Ao voltar do almoço, Deborah recebeu na portaria um envelope com o recado de que “um homem chamado Alan deixou
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prá você”. Sentiu um vazio enorme ao pensar que tinha perdido a oportunidade de vê-lo, mas sabia que era melhor assim. Ansiosa, subiu as escadas e procurou uma sala onde não houvesse ninguém, para poder ler tranqüilamente. Tirou do envelope um papel de caderno e leu: Deborah Esta é uma carta de despedida. Desculpe a frieza da frase acima, mas é que eu pensei em mil maneiras de começar e não achei nenhuma. Seria sem dúvida muito legal se pudéssemos continuar nos vendo como amigos/irmãos, mas não será possível. É o meu papel apagar esta luz. Faço isso com muito amor. Amor por você. Amor e respeito pelo Mauro. Encare a nossa amizade como um filme que agora terminou e temos que voltar à vida. Por que não continuar, se é só uma amizade? Acho que foi uma amizade forte que incomodou o ritmo normal das coisas. Não vou continuar escrevendo. Peço desculpas pela forma, mas era meu papel e não saberia cumpri-lo de outra maneira. Gosto muito de você e do Mauro também. Não vou passar a limpo esta carta e nem lê-la. Good bye!
Deborah achou de certa forma engraçado. Aquela carta não era de Alan, não fazia o menor sentido. Não deu muita importância. Em seguida, viu um cartão, onde estava escrito: “...em algum lugar, numa pequena vila, dentro de uma antiga cristaleira, esconde-se um tesouro. É na verdade o lado oculto de um bastão que pode DESFAZER o encanto de aigle.” Isto sim fazia sentido, mas ela não entendeu
absolutamente nada. O que ele queria dizer? Parecia uma pista... Resolveu ligar para ele. –– Oi, Alan... recebi o envelope... Não entendi nada do cartão. O que você quis dizer? –– Você vai descobrir sozinha. É só lembrar que todo bastão tem dois lados... 122
–– Esse teu jeito de falar... Lembra da história que você me contou dos planetinhas? –– Lembro, claro que lembro. –– Eles são do mesmo tamanho, não são? –– São. Eles são iguais, apenas de cor diferente. –– É que às vezes parece que você fala comigo como se você fosse meu mestre, sei lá... –– Não, isso é encucação sua. Fica tranqüila, os planetinhas são exatamente do mesmo tamanho, apenas a cor é diferente. Desligaram o telefone, e Deborah tentou tranqüilizar seu coração. Precisava ter coragem e afastar-se de Alan naquele momento. Tinha de conseguir! De noite, era o momento de Alan escrever. Pegava calmamente caneta e papel e conversava com Deborah, da maneira que lhe era possível. Registrava, dia a dia, seus sentimentos, sensações, esperanças, receios e, quanto mais estava perto de si mesmo, mais pressentia que Deborah logo chegaria. Cada palavra soava como um chamado que, um dia, a traria para seus braços e abraços. Deborah
30/01/91
Como foi difícil te levar a carta de despedida. Chorei como há muito não chorava. Tive de subir de óculos escuros para disfarçar os olhos. Fiquei com medo de te encontrar, você perceberia e eu poria tudo a perder. Os deuses continuam a ajudar. Achei que, depois da revelação, a magia me abandonaria. Ao contrário, está mais forte do que nunca. Nunca estive tão vivo. E nunca tive tanta certeza. Apesar do que nos dissemos, foi bom você ter ligado hoje. É como se a chama teimasse em apagar... ainda bem. Te amo Tudo em mim te ama
“Mesmo em dias nublados o sol continua a brilhar no céu.”
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“So I’ll let it rain Cause rain ain’t gonna hurt me And I’ll let you go And I know it wont be easy”
31 de janeiro de 1991 Diante de seu total desnorteamento, Deborah recorreu à ajuda de um profissional que conhecia de longa data e de quem gostava muito. Fez uma sessão de psicoterapia, procurando se localizar dentro do cenário de sua vida atual. Começou dizendo que o seu casamento estava em crise e contou toda a história. Quando terminou de falar, ele disse: — Você não está numa crise de casamento. Você está numa crise de vida. Há muita gente que escolhe viver o “arroz com feijão”, como você mesma disse, dentro de casa, e a liberdade ou a aventura lá fora. Na verdade, você está diante de uma pergunta mais ampla, talvez universal: Que tipo de relação eu quero viver no meu casamento? O que eu quero escolher de uma “vida a dois” para mim? Diante de tal questão, Deborah foi guiada a mergulhar no profundo silêncio que, apesar do tumulto interno, ainda morava dentro de si. Foi se deixando sentir, olhar, examinar o que representava Alan e Mauro para a sua vida naquele momento. Mauro lhe trazia um profundo sentimento de culpa, de prisão e de fechamento e, ao mesmo tempo, segurança. Em Alan, vislumbrava uma grande promessa de liberdade, mas num mundo totalmente desconhecido, sem garantias ou regras preestabelecidas. Alan lhe trazia luz, beleza, como um cavalo correndo na praia. Percebia, também, que ainda não estava pronta para estar com Alan. Deveria se preparar, ser mais livre interiormente, para deixálo livre também. Alan era um pássaro solto e ela teria de aprender a voar para viver com ele a instabilidade da vida. Senão, o aprisionaria e toda aquela beleza perderia o seu encanto. 124
Pela primeira vez pensou em se separar de Mauro. Talvez fosse este o único caminho a ser seguido, embora o último a ser pensado. Sentiu medo, muito medo. Estaria trocando o certo pelo incerto, o “futuro garantido” pelo “presente desconhecido”. Por que faria isso? Teria coragem de correr o risco? Mais tarde, Deborah iria aprender que a dúvida é o único caminho para a resposta. As “verdades absolutas” não contêm em si a pergunta. De fato, essas “verdades absolutas” não nascem da dúvida, mas sim da necessidade que o ser humano tem de apoiar-se em crenças que justifiquem seu jeito de viver. Sem saber, Deborah estava pisando em um terreno onde a verdade residia sempre no meio da dúvida e da certeza. Talvez por isso o medo fosse tão grande. Mas era a única forma possível de um buscador viver. Deborah
31/01/91
Hoje fiz uma “sacanagem”. Abusando da ajuda de cima, perguntei às cartas: Quando será? Depois das sete embaralhadas, ao colocar as cartas sobre a mesa para cortar, uma parte caiu cortando-se “automaticamente”. Um arrepio me subiu pela espinha. Puxei a carta: “A vida proporciona alternadamente dois sabores: doce e amargo. Saiba colocar-se no justo meio e experimentará o divino terceiro sabor.” 1. Que incrível! 2. Não depende de tempo e sim de colocar-se 3. Quantas vezes nos avisaram 4. Os Deuses, hein! Só aprontam! Não sei bem porque, mas uma tranqüilidade me invadiu. É bom.
“There are times when all the world is asleep the questions run so deep”
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01 de fevereiro de 1991 Deborah sentia uma tristeza muito profunda, como se, de certa forma, estivesse vivendo um luto. Não podia acreditar que estava duvidando do que até então tinha tanta certeza. Tantos sonhos, expectativas, planos de futuro e lembranças da história sendo, de repente, ameaçados de morte. Por outro lado, a lembrança de Alan e de tudo o que sua presença lhe acenava. Os momentos que a vida reservava para eles, um mundo de cores esperando para ser descoberto e criado. A vida parecia pedir que ela se soltasse, ou se arrependeria para sempre. Mas será que teria coragem? É difícil acreditar que o preço de não viver é muito maior do que o preço de viver. Talvez por isso a maioria das pessoas continue dormindo... Deborah
1/02/91
You are always on my mind You are always in my heart You are always at my body You are... I am. Te amo Pode parecer absurdo, mas nuca disse isso a ninguém. Me sentia constrangido para dizê-lo. Hoje entendo perfeitamente por que. Agora estou livre para fazê-lo te amo Espero que possas ouvi-lo, estejas onde estiver É tão estranho escrever para você sem saber se um dia você vai ler. No entanto, escrevo como se eu fosse te entregar amanhã.
“Cause I never call it love before This feeling is new This came with you” 126
02 de fevereiro de 1991 Como já estava previsto, naquela manhã de sábado Deborah estaria com Mauro na terapia de casal. Foram momentos duros, em que ela pôde perceber que o motivo que os unia não era da natureza do amor. Tinham uma série de motivos para estarem juntos, mas nenhum deles era da ordem do amor. E o que era o amor? Tão difícil senti-lo, quanto mais definilo. Mas Deborah começava a desvendar este caminho, graças à dúvida que se permitia ter. O amor parecia nascer do transbordamento e não da falta. O amor levava à expansão e não ao aprisionamento. Com Mauro não era isso, infelizmente não era. Que duro admitir! Ele lhe dava uma certa segurança, mas Deborah nem sabia mais se era isso que precisava, ou se era o que queria. Na verdade, o chão de Mauro transformara-se em fronteira. E, se antes olhava o céu e sentia-se desamparada diante de tamanho espaço e imensidão, agora não podia mais viver sem ele e sua promessa azul de liberdade. Ainda assim, o infinito a assustava. Ficou claro que eles deveriam buscar as respostas separadamente, pois os momentos de cada um eram muito distintos. Deveriam reaprender a estar sozinhos para que o “estar junto” viesse de uma escolha e não de uma necessidade. Alan, a cada dia que passava, sentia a oportunidade que era estar vivo. Fazia coisas que há muito não fazia: andava de bicicleta por toda a cidade, sentava na beira da calçada e olhava o movimento, assistia calmamente às travessuras dos pássaros, admirava-se com a simples beleza das flores. Até a inspiração para compor estava surgindo, remetendo-o aos tempos em que participava dos festivais. No final da tarde, enquanto dirigia, Alan estava criando o refrão de uma música para Deborah. Era uma espécie de música mágica que, toda vez que fosse cantada, faria com que Deborah, de uma forma ou de outra, aparecesse. Deborah estava voltando de um encontro com um grupo de pessoas e Vita, sua cunhada e amiga, estava no carro com ela. Rumo a sua casa, enquanto passava pela Faria Lima, pensou em Alan... como
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seria bom encontrá-lo “casualmente”... o seu trabalho era ali perto, mas era sábado... De repente, não mais que de repente, avistou-o dentro do carro, cruzando o seu caminho. Inacreditavelmente era ele! Adiantou o seu carro e rezou para o farol fechar, ou então ele passaria reto e ela não o alcançaria. Assim que entrou na Av. Cidade Jardim, o farol ficou vermelho. Alan parou e ela conseguiu parar bem atrás do carro dele. Teve a sensação de que o universo todo conspirava para que eles se encontrassem. Chegava a ser engraçado até. Buzinou, buzinou, com aquela cara de “aprontaram com a gente novamente!”. Enquanto cantava a música de Deborah, em plena avenida Cidade Jardim, Alan ouviu uma buzina insistente que desviou sua atenção. Olhou pelo espelho retrovisor... era Deborah. Parou logo adiante, saiu do carro... era Deborah! Por um instante achou que ela estaria diferente, distante talvez; mas não... era a Deborah. Conversaram alguns instantes, ela nem procurou disfarçar que estava tremendo, e ficou por isso. O que mais havia para dizer? Depois do “acidente”, Alan ficou pensando na sofisticada operação que havia sido montada para que ele saísse de sua casa naquele exato momento, andasse exatamente naquela velocidade e parasse precisamente naqueles semáforos. E tudo isso sincronizado com os tempos de Deborah. Sem falar na música que estava cantando, a canção de Deborah que, mesmo sem estar pronta, já carregava consigo todo aquele poder. Imagine só quando estivesse pronta! Era impressionante. Deborah Tenho um recado para você. É do nosso filho... Ele nos pede paciência. Eu disse a ele como estávamos, mas ele não respondeu... sorriu Um sorriso de “if only you could know” Ainda não me recuperei, confesso que já o sentia me rondando, mas minha polícia não permitiu sua aproximação. Agora que estou livre, tudo vem à tona e com uma velocidade que eu nem sonhava existir Tenho chorado... um choro bom. Estou limpando a alma 128
2/02/91
para que ela brilhe e que seu brilho, como o sereno da manhã, te molhe de corpo e alma Os Deuses continuam conspirando. Ter te encontr ado hoje “por acaso” foi demais demais.. encontrado “But if you feel like I feel please let me know that is real”
03 de fevereiro de 1991 Alan começou a gravar o possível encontro do sol e da lua, a eclipse. Quem disse que nunca se encontram? Na verdade, em relação ao universo, eles estão sempre se namorando; o sol emanando sua luz dourada e a lua recebendo seu brilho e o pintando de prata. O mais difícil era gravar uma fita que ele não sabia se seria ouvida em dois meses, dois anos, ou até mesmo vinte anos. Não é fácil confiar no tempo, se largar aos ritmos da vida. Mas Alan sabia, no mais profundo do seu ser, que era o único caminho. Lembrava-se constantemente de uma piada que costumava contar: um sujeito, por distração, caiu em um precipício. E como todo bom precipício, tinha aquele galhinho onde ele pôde segurar. Diante de tal situação — preso ao galhinho, para cima impossível, para baixo o profundo abismo — o sujeito, desesperado, apelou para Deus. Suplicou-lhe que o ajudasse a sair daquela situação, dizendo que, apesar de nunca ter acreditado nele ou seguido qualquer religião, estava disposto a tudo. De repente, para seu total espanto, a voz de Deus se fez ouvir: — Você fará qualquer coisa que eu mandar? — perguntou Deus. — Sim! Sim! — respondeu o sujeito de sorte, cheio de esperança. — Então — Deus disse — largue o galhinho. Alan sentia-se como se Deus estivesse falando com ele o tempo todo. E, sem dúvida nenhuma, largar o galhinho era uma tarefa muito difícil.
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Deborah 3/02/91 I had a dream. Acho que sonhei com seu avô. Ele queria que eu me casasse com sua neta. Eu respondi que não podia, pois meu coração já estava prometido. Ele disse que sua neta estava muito triste, porque havia deixado passar o amor de sua vida. E agora ela estava separada e se sentia viúva do amor que não teve. Também não queria me conhecer, pois seu coração apertado era todo sofrimento. Queria viajar para curtir sua “viuvez”. Não estava disposta a encontrar um amigo do avô. Ele (seu avô) insistiu. Disse que sua neta era o que ele tinha de mais precioso. E não havia nada que não fizesse para vê-la feliz. E disse ainda que reconhecia um ao outro em nossos olhos. Por amor ao velho, aceitei conhecer sua neta. ENCONTRO... DEBORAH!... ALAN! HUGS AND KISSES! KISSES AND HUGS! E foram felizes para sempre. Foi um sonho viv o. Gostaria de te contar ao viv o. vivo vivo Te amo ... TTee amo muito (mesmo que não saibas) amo... “Sonhar mais um sonho impossível Lutar quando é fácil ceder Vencer o inimigo invencível”
04 de fevereiro de 1991 Alan chegou de manhã ao escritório e recebeu um envelope que Deborah deixara na portaria. Queria largar tudo e desfrutar a carta em um lugar sossegado. Mas não podia. Precisava preparar a reunião que teria com um novo cliente naquela manhã. O envelope não parava de olhar para ele, que mal conseguia dar atenção ao trabalho. Finalmente foram ao cliente e, por sorte, seu sócio tinha outro compromisso depois da reunião — assim, foram em carros separados. Alan colocou o envelope no banco do passageiro e esperou uma brecha 130
para abri-lo. Não queria abrir entre uma parada e outra, por isso resolveu que só leria ao sair do cliente. Mas quando estava estacionando, percebeu que tinha ainda cinco minutos. Abriu o envelope e começou a ler: “P or que metade de mim é “Por orque e a outra metade eu não
a lembr ança do que foi lembrança sei...”
“Toco tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha. Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade dos teus cabelos, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva, um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.” (Júlio Cortázar)
Alan terminou de ler...Não era possível o que estava escrito ali! O impacto foi ainda maior porque só percebeu que não tinha sido escrito por Deborah no final. Foi mergulhado pela sensação do beijo. O dia estava quente, embaixo da gravata uma poça d’água e trinta minutos atrasado para a reunião. Você se perdeu? — perguntou seu sócio. Se perder ou se encontrar, não era a mesma coisa? No final da tarde Deborah “apareceu” (para Alan era sempre uma aparição) no escritório dele. Dentro dela, a certeza de que precisava buscar a sua resposta e ver Alan fazia parte desta busca.
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Sentados no chão, falaram do possível dentro do impossível, da verdade dentro de uma outra verdade. Tudo o que se diziam fazia um enorme sentido. Alan leu para Deborah uma fresta da carta que escrevera na madrugada de 28 de janeiro. Era exatamente o que ela estava dizendo: “É como amar um pássaro. Amamos seu canto, sua felicidade e sua beleza. Mas o que o faz cantar, ser feliz e belo? E se ele, por amor, submeter-se à nossa gaiola? E se ele, por amor, deixar de ter o céu, as árvores e o orvalho nas folhas? Continuará tão lindo, feliz, a cantar? E SE NÃO? Continuaremos amando-o?” Ao terminar de ouvir, Deborah mal pôde acreditar. Como era possível estar escrito ali, tão claramente, tudo o que ela estava sentindo ultimamente? A palavra liberdade parecia estar estampada em cada gesto, palavra ou pensamento. Sem qualquer motivo lógico, o encontro de Alan e Deborah lhes apontava uma direção nova, um caminho até então inabitado, algo como o infinito do céu abrigando o vôo dos pássaros. Essa liberdade... essa liberdade que morava perto do amor... vinha de dentro deles...era preciso estar pronto. Ao sair do escritório, um rápido beijo e um forte consolo: a fita Eclipse, que Alan teve coragem de entregar para ela. Agora sim, era todo o seu ser que escolhia as músicas, sabendo exatamente o que dizer ou querer. As músicas eram grandes companheiras e davamlhes coragem para seguir em frente. Deborah mal podia esperar para ouvir. Deborah
4/02/91
“Toco a tua boca...” Mal consegui acreditar no teu presente. Você quer me matar? Nunca pensei que o termo “morrer de amor” pudesse ser literal. Não sei o que acontece. Quando penso que cheguei ao máximo de te amar descubro que é apenas mais um degrau. “Que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.” Poder te ver. Olhar seus olhos. Sentir seu perfume. Hoje fui abençoado pela sua PRESENÇA. Sentadinha no chão do escritório, tão linda! Tão linda... linda! 132
Hoje acendeu uma fagulha de esperança... apesar do que foi dito pelos lábios, embora os olhos... os olhos. Quero viver. Não deve haver perigo de morrer de viver. Te amo. Amo pela primeira vez em minha vida É um amar com todo meu ser. Te amo. “..., e eu te sinto tremular contra mim, como uma LU A na água.” LUA “Se você vier pro que der e vier comigo Eu lhe prometo o sol, se hoje o sol sair ou a chuva, se a chuva cair”
05 de fevereiro de 1991 Durante esse período, uma coisa que ajudava Deborah a atravessar essa difícil travessia era o livro Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Quando mergulhava nas profundezas de sua solidão interior e nada parecia adiantar, era o livro que a acolhia e, de alguma maneira, lhe dizia: “Você vai encontrar a resposta. Não está longe.” Neste dia, encontrou uma passagem que parecia ter sido escrita especialmente prá ela. E mais uma vez, como uma alquimia, a angústia do “não saber o que fazer” transformou-se na liberdade do “não saber o que fazer”. O importante era deixar ser. Copiou o trecho. Talvez um dia mostrasse para Alan: “Mas era como se ele quisesse que ela aprendesse a andar com as próprias pernas e só então preparada para a liberdade por Ulisses, ela fosse dele.” Ainda assim, era difícil confiar no tempo e na vida. Deborah
05/02/91
Te amo Hoje a dor superou o prazer. Não sei por que. Minha alma pede pela sua, como uma criança que pede pela mãe quando a vê se afastando.
A Vida
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Hoje estou com medo. Estou de novo com aquela sensação estranha de que você nunca lerá isto. Melhor eu parar por aqui. Amanhã será outro dia. “Let it be, let it be, There will be an answer let it be”
06 de fevereiro de 1991 E quando a saudade falava mais alto do que tudo, Deborah sentava e escrevia. Onde estivesse, como estivesse, bastava papel e caneta. Ao escrever, sentia-se mais perto de Alan e — talvez por isso — mais perto de si mesma. S audades ... audades... Te vejo toda. Tuas palavras no meu ouvido. Teus olhos dentro de mim. Vidas entrelaçadas. Será possível desfazer este laço? Esse novo mundo... ...será que existe? E a gaiola? Serei capaz de te deixar voar? Tenho medo, medo de engaiolar este pássaro lindo, e deixá-lo perder o canto e as cores Então, de nada teria valido tudo isso. Porque a beleza está em deixar ser... Viver, talvez, seja isto: deixar ser... Por enquanto, só dúvidas. E muito medo.
De noite, Deborah saiu com algumas amigas. Pela primeira vez, em muito tempo, voltava àqueles programas de turma. Não era bom ou ruim. Apenas trazia um sabor de passado que parecia não combinar com o presente. Estavam tentando — Mauro e ela — distanciar-se um pouco para encontrar suas respostas separadamente. Deborah encarava isso com muita tristeza. Pressentia que esta atitude os afastaria ainda mais. 134
No entanto, precisava confiar no curso natural da vida. Uma das coisas que estava aprendendo era de que nem tudo estava na sua mão. Se por um lado tinha as rédeas de sua vida, por outro, quanto mais confiasse nela, mais poderia largar as rédeas e vivê-la conforme o momento presente. A “falta de controle”, que antes a atemorizava, mostrava-se agora como uma grande promessa de liberdade. A vida, na verdade, constitui-se de uma série de infinitos momentâneos. Vivê-los na sua totalidade é o grande desafio. Deborah
6/02/91
Oi! Menina linda! Eu te amo! Eu te amo! Espero que pelo menos o eco das minhas palavras você esteja escutando. Mentira! Espero que o todo das minhas palavras você esteja sentindo. Tenho poder quando escrevo Tenho poder quando existo E existo porque você existe. Um beijo! Um beijo molhado de amor! Um beijo. ... o desejo “It’s my turn to reach and touch the sky No one gonna say at least I didn’t try”
07 de fevereiro de 1991 Deborah
7/02/91
Estou gravando a penúltima fita da série “How to reach an impossible dream”. Penúltima porque a última trará a música “Deborah”.
A Vida
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Esta fita vai ficar na caixinha do tesouro, junto com estas cartinhas de S.O.S. Cartinhas lançadas ao mar da minha ilha solitária. Lançadas em garrafas verdes e aguardando que a ação do mar e da lua as transforme em azuis. E então, da ação da lua no mar, o sol surgirá... o sol brilhará. Oi, lua! Que feitiço é esse? O que o céu reserva para nós? Fica claro que os Deuses conspiram, mas o quê? Só sei que te amo e isso me faz homem. Estou com saudades de você e nem sei bem do que. Estou com saudades de você e sei bem do que. Lua apareça!
“Você é linda e sabe viver Você me faz feliz”
08 de fevereiro de 1991 Deborah estava dividida, como ultimamente só acontecia. A vida parecia estar brincando: o jogo dos opostos. Aos poucos, ia aprendendo que o segredo deste jogo era não ficar em nenhum dos dois lados. Havia sempre um terceiro caminho, muitas vezes disfarçado de atalho que, embora difícil de encontrar, era fácil de percorrer. Mas, para descobri-lo, deveria buscar as respostas na calma e não se desesperar. No entanto, naquela sexta-feira, nada conseguia enxergar. O carnaval se aproximava e ela tinha de decidir: viajar com Mauro, para tentar mais uma vez resgatá-los das trevas, ou aproveitar o feriado e ir cada um para o seu canto, tentando buscar as respostas que não vinham. Sua vontade era de ficar em São Paulo, sozinha, tentando se achar. Mas tinha medo de não resistir e acabar procurando Alan, o que era errado do ponto de vista de sua relação com Mauro. Por fim, decidiu telefonar para Alan e comunicou-lhe que iria para a praia com Mauro. 136
Alan sentiu que o telefonema de Deborah tinha um tom grave de despedida. Ela lhe disse que, depois de idas e vindas, Mauro e ela haviam decido viajar juntos para acertar as coisas, lutar pela relação. Alan a incentivou, como que dizendo: “Tá certinho. Agora vocês vão se acertar”. Mas, no seu íntimo, pensava: “Você vai voltar minha”. A confiança que emanava da voz de Alan deixava Deborah absolutamente tranqüila para decidir qualquer coisa. Era como se estivesse conseguindo lutar pelo seu casamento graças à ajuda de Alan, por mais estranho que pudesse parecer. Desligou o telefone aliviada. Não estava fazendo o que queria, mas sim o que devia ser feito. Deborah
8/02/91
Te sinto cada vez mais próxima. Teus lábios não dizem o mesmo que teus olhos. Teus lábios tremem, como se soubessem disso. Teus lábios... querem os meus Eles sabem disso. E você? Quando você me disse que iria viajar, quase emendei: “Você vai voltar minha”. Não sei o que se passa dentro de mim, mas não consigo pensar ou sentir outra hipótese que não seja Deborah + Alan Aguardo com a paciência de um guerreiro com a dor de um penitente e com a certeza de um amor Você é tão linda e eu te amo
sunshine, sunset “I’ll wait the signs to come I’ll find a way I’ll wait the time to go I’ll find a way”
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09 de fevereiro de 1991 Os planos haviam mudado. Na última hora, Mauro e Deborah acharam melhor ficar separados. Mauro foi para a praia, na casa de um amigo. Deborah ficou em São Paulo. Estava totalmente disposta a não procurar Alan, pois isso seria uma “traição” a Mauro. Ficaria sozinha em casa e no dia seguinte iria para a casa de Sirena, sua grande amiga e confidente. Assim que Mauro saiu, Deborah sentiu um enorme alívio. Teria a casa só para si, o tempo só para si, os dias para respirar e sentir livremente. Ouvir música, escrever e desenhar seriam seus grandes companheiros. O telefone tocou... ela foi atender. Ao falar “alô”, desligaram. Será que era Alan? Não, ele não sabia que ela estava em São Paulo e, mesmo que soubesse, não ligaria prá ela, principalmente em casa. Sentou no chão da sala com seu caderno universitário e uma caneta bic e escreveu...escreveu...escreveu. Escreveu sua própria história, que iniciou desde o primeiro dia do teatro, até o momento presente. Não conseguia parar, as horas passavam, mas o tempo permanecia. As palavras emergiam, as passagens vinham-lhe à mente trazendo uma nova compreensão de tudo o que estava vivendo: “(...) O momento é de hesitação. O preço, embora não saiba com clareza, é alto. Mas o que se pode alcançar também é alto. Ela se pergunta se é possível alcançar o que vislumbra. E, por medo, muitas vezes não acredita que seja possível. Mas sua outra metade chama para este outro caminho. Há algo dentro dela que não quer deixar morrer esta voz. Esta voz lhe diz que não viver isso é renunciar. Ela não quer renunciar. Mas também pressente que tem que estar muito pronta, muito inteira, muito dona de si. E, hoje, isso ainda não acontece. Ela sente uma mistura de dor e prazer, medo e coragem, solidão e preenchimento. Sabe que está perdendo alguma coisa importante que não lhe serve mais. Sente dentro de si uma sementinha nascendo com algo novo, que ela não conhece e se assusta. Um sentimento de luto, acompanhado por amor à vida...” Foram treze páginas de alegria, sofrimento, aventura, surpresa, decepção. Treze páginas de urgência e paciência. Treze páginas de delírio e lucidez. Quando acabou, sua mão doendo, o coração ardendo e uma enorme paz interior. Sentia que um ciclo de vida estava por se fechar. 138
Alan comprou duas cartolinas enormes, uma verde e outra azul. Recortou duas bolas e colou do lado de fora da janela de seu escritório, que ficava no quinto andar. Pensou que num daqueles “milagres” Deborah poderia passar e ver os dois planetinhas juntos. Era uma loucura, ele sabia. Ela nem em São Paulo deveria estar. Mas Alan seguia aquela coisa dentro dele que o guiava. Maluco ou não, o que mais ele podia fazer? Deborah
9/02/91
Hoje foi um dia cheio de “sacanagens”. Minto! De “traquinagens”. De manhã eu pedia uma proteção para você (viajar no carnaval é fogo) e procurava brilhar luz verde em você. Mas pela primeira vez não conseguia focalizá-la. Assustei. Insisti, mas não deu. Pensei: será que ela está em São Paulo? Fui ao telefone e liguei. Você atendeu e eu não disse nada. Desculpe, sei que é feio o que fiz, mas é que eu estava preocupado. Confesso que fiquei feliz. Depois fui ao escritório e pendurei os planetinhas na janela. Agora os Deuses precisam ajudar. Precisam fazer com que você os veja. Tomara que você não viaje ou tenha viajado. Tomara que você assista os planetas. Esses dias de feriado te pertencem e todos os meus pensamentos, gestos e ações serão para ou por você (como se nos outros dias fosse diferente) Um beijo esteja onde estiver
“E o meu destino é querer sempre mais a minha estrada corre pro teu mar”
10 de fevereiro de 1991 Deborah iniciou a gravação da fita Eclipse II. Era a sua maneira de traduzir o eclipse, após o chamado de Alan através das músicas que
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gravara. Conforme ia escolhendo as músicas, a vontade de encontrá-lo crescia, tomando proporções maiores do que a razão. Já dizia o poeta que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E, a cada minuto que passava, convencia-se mais disso. Será que deveria procurálo? Se pensasse em Mauro... não estava certo. Mas se pensasse na sua busca, e na sua ânsia de encontrar as respostas... estava mais do que certo. Afinal, seria a primeira vez que eles poderiam estar juntos o dia todo sem a imposição do relógio. Era justo, eles mereciam. Já estava escurecendo quando Sirena chegou junto com Lory, sua irmã. Iriam juntas para a Granja Viana, onde Deborah passaria o resto do feriado. Mas antes passariam na rodoviária, para buscar um amigo que ficaria hospedado na casa delas. Enquanto tentava decidir se iria ou não telefonar para Alan, passaram pela Av. Faria Lima, que era caminho da rodoviária. Por hábito ou esperança, Deborah olhou para cima à procura de Alan na janela. E qual não foi sua surpresa ao avistar os planetinhas olhando para ela, como que dizendo: “A vida é muito mais do que parece ser! Veja, nós estamos aqui!”. O planetinha verde e o azul... estavam ao lado um do outro... Alan era louco! Incrivelmente louco! Não restava mais a mínima dúvida. Ligaria prá ele. Deborah
10/02/91
Que felicidade! Que felicidade! Você me ligou. Você vem amanhã. Desliguei o telefone e fiquei assistindo o céu anoitecer. Mal consigo acreditar. Ficou claro... claríssimo O sol e a lua vão se encontrar e isso é irreversível. Não há volta. Graças a Deus. Que felicidade! Que felicidade! Deborah Deborah Deborah Deborah. Não repare, eu estou bobo mesmo. Porque será que amanhã demora tanto! Que felicidade é amá-la. Amá-la com todo meu ser. Amá-la como nunca amei.
from here to eternity
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“Maybe it’s been crazy and maybe I’m too blame but I put my heart above my head”
11 de fevereiro de 1991 Como poderia ter dito Chico Buarque, “há dias que a gente se sente como quem chegou ou nasceu”. Deborah passaria o domingo inteiro com Alan, e ele escolheria o local. Desde o primeiro instante não teve dúvidas: levá-la-ia para casa. Nem pensou no que ela poderia achar. Ela foi tão segura ao falar para ele escolher, que Alan nem se preocupou. Deborah acordou na casa de Sirena, antes das sete horas. Foi para o jardim respirar o frescor que a madrugada havia deixado. Deitouse na grama e olhou o céu, aquele mesmo céu que há pouco tempo atrás a desamparava. Surpreendeu-se ao perceber que não tinha mais medo. O céu fazia parte dela agora e aquele azul infinito parecia revelar um espaço e um tempo a ser desvendado. Percebeu que ela era o próprio céu, bastava se deixar ser. Como podia estar se sentindo tão bem e tão dona de si com tudo em volta se desmoronando? Era como se uma flor estivesse se abrindo e desabrochando em meio à tempestade. Não se deixou levar por pensamentos ou julgamentos. Não sabia se era certo ou errado o que estava fazendo. Mas ela ia. Levada pelo vento, seguia o que aquele perfume de flor falava. Que estado de liberdade era este? Uma felicidade tão grande e uma coragem tão grande no meio do medo... Mauro telefonou, estava com medo de que ela se encontrasse com Alan. Foi duro mentir para ele, mas dentro de si havia a certeza de que ela tinha de fazer isso, ainda que estivesse traindo o que lhe era mais sagrado: a verdade. Mas aprendia, dia a dia, que a verdade tinha muitas faces e que as respostas estavam no “justo meio”.
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Alan chegou para buscá-la às dez horas, na pracinha da Granja Viana, pois Deborah não queria que a família de Sirena os visse. Entregou uma mini-rosa a Sirena, em sinal de agradecimento e uma mini-rosa a Deborah, em sinal de amor. Entraram no carro, os dois. Apesar de já terem estado juntos no carro tantas vezes, para Alan era como se fosse a primeira vez. Desta vez, seria um para o outro. Quando falou que iriam para sua casa, percebeu que Deborah ficou surpresa. Na verdade, ela achou um tanto íntimo demais. Mas como ele não tinha um “plano B”, é para lá mesmo que foram. Ao entrar na casa, percebeu que Deborah ficou à vontade. Os olhos conversavam, enquanto as bocas diziam coisas. Deborah entregou-lhe “sua” história, aquela que tinha escrito no dia anterior. Alan começou a ler: “Era um domingo de tarde. Não como os calmos domingos em que se prepara a segunda-feira. Havia algo de especial. Talvez, o começo de uma jornada, um mundo novo que se descortinava”. Foi mergulhando na leitura e olhava Deborah de vez em quando, como se para confirmar que não estava sonhando. Como a história era aparentemente fictícia, ele tinha a esperança de que avançasse no futuro. Queria saber como terminaria a história de Alan e Deborah. Mas terminou no presente: “Deborah sabe que agora precisa lutar mais do que nunca. Para deixar vir à tona o lado escondido que é dela. Para apropriar-se do que é seu. E transformar o que já está antigo. Quando ela estiver inteira, vai saber qual caminho seguir. E sua história será mais um pedaço das histórias dos homens que nascem, amam, sofrem e morrem todos os dias.” Os olhos continuavam a conversar, enquanto as bocas diziam coisas. Leram Clarice Lispector, ouviram música, comeram, beberam, sorriram e tantos outros “eram” e “iram”. Alan resolveu mostrar o seu quarto. Era como se estivesse revelando sua intimidade. Deborah sentou na cama e ficou reconhecendo o local. Estava achando tudo um pouco ousado demais, mas não podia mais adiar o coração. Abraçaram-se, os olhos convergiram. Beijaram-se, os corpos reagiram. Foram se deixando levar, serenamente e urgentemente, o encontro fluindo como as águas de um rio ao desembocar no mar. 142
Despiram os pensamentos, os medos, as considerações, as promessas de futuro. Só não despiram as roupas, pois o abraço e o beijo já traziam a dimensão do encontro. Daquela eclipse, a certeza de que um era para o outro. Não havia mais nenhuma dúvida no corpo, no coração e na mente. Alan compreendeu que a matemática estava certa ao dizer que se multiplicando um por um, o resultado é um. O encontro energético que se formava, trazia a nítida expressão da multiplicação, que resultava no ser inteiro e único, no “um”. Tirou de dentro de uma caixinha um bilhete que havia escrito, e leu em silêncio para Deborah. Ela não entendeu muito bem, mas sabia que aquele silêncio continha palavras sagradas. Deborah compreendeu o sentido do encontro, o milagre do nascimento, a linguagem do universo. Tudo estava renascendo ou nascendo naquele instante, trazendo a promessa de que ela só poderia ter um filho de Alan, nunca de Mauro. E a todo instante ela se perguntava: “Como eu poderia morrer sem ter vivido isso?”. A tão desgastada frase “fazer amor” adquiria, agora, um significado preciso que ia muito além do corpo. O corpo era apenas o caminho para o encontro das almas. “Fazer amor” era gerar amor para o universo, e era isso que o alimentava e o mantinha vivo. Alan a teve como nunca ninguém teve. Era o encontro dos planetinhas, a explosão, a expansão. Deborah estava saindo mais inteira, mais mulher, preenchida por uma paz e um silêncio profundo. Agora compreendia que ser mulher era estar inteira para se completar no homem. Ainda tinha medo, mas não era mais de Alan. Era o medo deste mundo desconhecido que prometia uma liberdade que ela jamais pensou que pudesse existir. Mas esse mundo... era nesse mundo que ela queria morar. Aquele outro mundo, o que lhe prometia segurança... já fazia parte do passado. No carro, de volta para a Granja, Deborah olhava Alan profundamente. Não só nunca o haviam olhado assim, como ele nunca havia imaginado tanta profundidade no seu próprio ser. Deborah brilhava.
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Na despedida, não havia mais despedidas. Havia apenas uma certeza num oceano de incertezas. Não seria mais possível voltar ao “normal”. E diante desta certeza, só restava viver.
D ebor ah eborah Não há mais o que escr ev er escrev ever er.. Já está tudo escrito escrito..
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11/02/91
LÁ Eu sou, porque tu me és Tu és, porque eu te sou
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Para Alan, era como se uma longa e difícil jornada tivesse terminado. Ele chegava ao seu destino. Estava em casa. Depois de anos, ou quem sabe décadas ou séculos... ele estava finalmente em casa. Apesar das malas para desfazer e do pó a ser retirado, sentia-se inteiro. Pela primeira vez na vida, sentia-se inteiro. De volta à casa de Sirena, Deborah nem sabia o que dizer. Sorria interiormente por estar vivendo tudo aquilo, e o silêncio parecia traduzir seu estado de espírito melhor do que qualquer palavra. Sentiase cor, cheiro, som, toque, gosto de Alan...todos os sentidos. E ao mesmo tempo, mais Deborah do que nunca. Não se reconhecia mais no espelho, mas se reconhecia no fundo da alma. Pela primeira vez, havia sido tocada pela alma de um homem. E, agora, podia SER. Sirena, sua grande amiga e confidente, novamente estava lá, para apoiá-la naquele momento. Não havia mais volta. Deborah iria se separar de Mauro. Colocou no toca-fitas a fita que Alan lhe dera naquela tarde, sob o título de “Toco tua boca”. Entre músicas e declarações, pôde ouvir o poema de Júlio Cortázar na voz de Alan. Definitivamente, ela nunca havia sido amada daquele jeito. Em nenhum sentido, em todos os sentidos. Já era noite e o sono a chamava. Com certeza, a vida lhe acenava com cores mais brilhantes do que o próprio sonho. Antes de dormir, escreveu profundamente. O maravilhoso que sentia em seu peito tinha de ficar registrado. Mauro voltaria no dia seguinte e teriam uma longa conversa. Finalmente, depois de tanto esperar, encontrava a luz que há tanto buscava. A dor que estava sentindo era, agora, de outra natureza: era a dor do ter de fazer e não mais a dor do não saber o que fazer. A angústia havia se transformado, como por alquimia, em tristeza boa. Deborah sentia-se cheia de coragem para viver e cheia de felicidade por viver.
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“Here comes the sun here comes the sun And I say it’s all right”
Deborah voltou prá casa antes de Mauro, para esperá-lo. Quando ele chegou, ela iniciou a conversa que não podia mais ser adiada: — Oi.. Como você está? — Bem, sei lá. — Foi difícil a viagem? — Foi, mas tinha que ser assim. — Você pensou sobre a gente? — Pensei, claro. — E então? — Acho que a gente tem que se separar. — É isso que você quer mesmo? — É. Desse jeito não dá. E você? — Eu também pensei todos esses dias. Acho que a gente deve se separar. Mas vamos tentar de um jeito tranqüilo, dentro do possível, claro. Eu gosto muito de você, a gente não precisa brigar. — É... Quem sabe o nosso destino é sermos amigos, sei lá... O que mais dizer diante do princípio do fim? O que mais sentir diante da constatação de que um projeto, um sonho, uma história está se desfazendo? Ao deitar, a estranheza de olhar para Mauro e achá-lo quase um estranho. Alan a fazia mulher. Era ele o seu homem, talvez desde sempre. Mauro era apenas uma passagem. Que loucura! “Porque já eras meu sem eu saber sequer Porque és o meu homem e eu tua mulher”
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Mauro e Deborah combinaram que ele teria um mês para procurar um lugar e enquanto isso ficariam juntos no apartamento. Deborah queria facilitar as coisas para ele. Sentia-se de certa forma responsável por tudo. Ligou para Alan e disse-lhe que ia se separar de Mauro. O curioso é que falou isso com tanta naturalidade, como se fosse a coisa mais normal do mundo, quase como se estivesse dizendo “vou ao cinema amanhã ”. Conversaram, falaram sobre as coisas práticas da separação, a reação de Mauro, os próximos passos, a urgência de encontro que banhava suas almas. Mauro havia pedido a Deborah que não encontrasse Alan enquanto eles ainda estivessem morando juntos. Como ela queria poupá-lo naquilo que pudesse, aceitou o pedido. Mas interiormente sabia que encontraria Alan pelo menos um pouquinho — não como gostaria, claro — sem que Mauro soubesse. Conversou sobre isso com Alan, esperando sua compreensão. Agora era só ter paciência. Em questão de dias, tudo estaria resolvido. Parecia um sonho. Mas, como já dizia Clarice em seu livro, “a realidade é que é inacreditável”. “I see them blue for me and you and I think to myself what a wonderful world”
Novamente, Alan foi à empresa onde Deborah trabalhava. Tinham um encontro com outras pessoas para conversar sobre um projeto de informática. Ao subir as escadas, percebeu que tudo havia mudado. A cor estava mais clara, os funcionários mais bonitos, o som, o cheiro, enfim... tudo mudara! Quando viu Deborah, aquela mesma sensação de aparição, de milagre. Não acreditava no que estava vendo e, principalmente, no que estava sendo. Entre uma reunião e outra, um beijo furtivo e uma despedida silenciosa, parecia que só eles sabiam da vida e do viver que estava escondido atrás do chamado dia-a-dia.
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Indo embora, Alan desceu as escadas com o olhar de Deborah às suas costas. Surpreendeu-se ao sentir a concretude de um olhar. Percebeu que, quando somos sensíveis à vida, o que antes chamávamos de abstrato, invisível, torna-se impressionantemente concreto e visível. Deborah foi para sua sala e abriu o envelope que Alan lhe entregara. Era um bilhete, com um trecho do livro de Clarice: “Mas era como se ele quisesse que ela aprendesse a andar com as próprias pernas e só então, preparada para a liberdade por ele, ela fosse dele”. Sorriu. Era exatamente o trecho que ela queria lhe mostrar. Alan simplesmente tinha captado a essência do livro e da própria história deles. Ele a compreendia muito além do que ela imaginava. Era uma história de liberdade. E Alan lhe mostrava este mundo novo. “Larga de ser boba e vem comigo existe um mundo novo e quero te mostrar que não se aprende em nenhum livro basta ter coragem pra se libertar, viver e amar”
Alan recebeu Deborah de surpresa em seu escritório. Aliás, ela sempre o surpreendia. Mostrou-lhe a mão livre do pesado anel que envolvia um de seus dedos. Ele disfarçou a enorme alegria. Não para que ela não soubesse, mas porque queria que Deborah tivesse certeza de sua escolha, sem qualquer tipo de pressão por parte dele. Afinal, ele tinha esperado tanto, por que não esperar um pouco mais? Alan via que ela tinha rompido não só com o casamento, mas com uma Deborah que nunca mais existiria. Ela estava abrindo espaço para a essência do seu ser e — talvez por intuir isso — tinha medo deste mundo desconhecido. Na verdade, todos nós temos esse medo, só que a maioria não tem coragem de largar o que já conhece, mesmo quando está insatisfeito. Quando saíram do escritório em direção ao carro, Deborah iniciou algumas perguntas em tom de conversa: — Alan, durante estes dias de separação eu não senti nada de você, quer dizer, acho que você ficou contente, mas você não pediu que eu me separasse...eu fiz isso por mim, não porque você tenha dito prá eu fazer... 150
— Sei.. e porque você está falando isso? — Sei lá... acho que eu queria ouvir de você se era isso que você queria que acontecesse ou não... Alan percebeu que ela estava momentaneamente insegura com o que ele sentia por ela. Resolveu, então, mostrar a carta que escrevera no dia 28 de janeiro, logo após o primeiro beijo. Já estavam dentro do carro quando ela começou a ler. E enquanto mergulhava na carta, foi se dando conta do quanto ele tinha lutado e do quanto era sagrado o que existia entre os dois. Era como se até aquele momento ela intuísse, sentisse ou pressentisse, mas sem ter nenhuma prova concreta, nenhuma declaração explícita. Aquela carta trazia o registro de uma história de amor, e ela era personagem dessa história. Se antes já achava que nunca tinha sido amada daquele jeito, agora tinha certeza. Sentiu um profundo respeito à vida e a tudo o que fazia parte do viver. Era como se, a partir daquele instante, tivesse adquirido uma compreensão maior de sua existência. Tudo o que vivera, desde o dia em que nasceu, passou a fazer um enorme sentido, como se os retalhos de vida fossem peças de um quebra-cabeça que de repente se formava pela primeira vez. Como era bom estar viva! “Cet un bon romance Cette une belle histoire”
Cinco dias haviam passado, desde que decidira se separar. Os encontros com Alan eram raros e curtos, em função do que havia prometido para Mauro. No entanto, Deborah começou a se sentir “perseguida”, pois Mauro ligava o tempo todo para seu trabalho, desconfiado, controlando seus passos. Percebeu, então, que não havia mais nada que a obrigasse a se esconder. Ela era livre para viver sua vida como quisesse e não tinha de dar satisfação para Mauro. A situação estava ficando insustentável e não combinava com a proposta de separação. Decidiu sair de casa. Conversou com Mauro e foi provisoriamente para a casa de seus pais, até que ele encontrasse um lugar para morar. A partir daquele instante, ela era livre!
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É curioso como a liberdade começa dentro de nós mesmos. Tudo aquilo que julgamos proibido, os milhares de “não posso” de nossa vida, podem se transformar em promessas de realização, basta querer. Para Deborah, era estranho pensar que agora podia tudo e que externamente nada tinha mudado; apenas ela mesma. As “armadilhas” que a vida nos coloca pelo caminho estão aí para nos fazer crescer, para que possamos nos superar enquanto ser e realizar nosso destino. Agora Deborah compreendia tudo claramente. No final da tarde, ao passar pela Faria Lima, olhou, como de costume, para a janela do escritório de Alan. Curiosamente, os planetinhas verde e azul não estavam mais um do lado do outro. Eles tinham se encontrado, tocando-se — estavam interseccionados. E, curiosamente, não houve nenhuma explosão que ameaçasse a existência do universo. Pelo contrário, o encontro dos planetinhas alimentava o universo. Deborah sorriu. Alan tinha aprontado de novo! A historinha dos planetinhas parecia ter encontrado seu desfecho! Para comemorar a independência, combinaram sair à noite. Seria o primeiro encontro como namorados. Foram ao Chez Croque do Shopping Jardim Sul, que era mais discreto. Deborah ainda tinha receio de encontrar alguém conhecido, mais por respeito ao Mauro. De lá foram para o quarto de Alan, ainda iluminado pelo encontro do sol com a lua. Diante do maravilhoso do encontro, Deborah teve vontade de contar para Alan aquela sensação de querer ter um filho com ele. No entanto, tinha vergonha e temia colocar uma carga de responsabilidade sobre a liberdade que sentiam. Mas era uma sensação tão forte e tão bonita, que não agüentou: — Alan, quero te falar uma coisa, mas estou com vergonha. — Eu sei exatamente o que você vai dizer. — Como assim? — Eu sei o que você vai dizer. — Acho que não, não mesmo. — Pode dizer. Se for o que eu estou pensando, vou te ler aquele bilhete da caixinha, que eu li em silêncio no dia da eclipse. — É que o nosso encontro é tão sagrado, agora dá prá entender o sentido do nascimento. Me passou uma coisa louca, sei lá, uma vontade de te dar um filho.... 152
Alan, emocionado, abriu a caixinha de madeira, desdobrou o papel e começou a ler: CAR O TER. CARTTA AO FILHO QUE EU QUER QUERO Oi, criança! Pode parecer estranho, mas estou com saudades de você. Tenho tanto prá te contar...prá te mostrar Quando o sol brilhar no ventre da lua e o mar agitado calar, espelhando sua mãe, a primavera virá Oi, pequena! Te esperei tanto, mas agora sei que você vem Pela primeira vez você me sorriu Teus olhos claros brilham e tua paz branca me contagia Prometo ter a paciência que me pedes Um dia o dia se distrai e a lua... aparece para o sol “Vejo um berço e nele a me debruçar com um pranto a me correr E assim, chorando, acalentar o filho que eu quero ter”
Não é todo dia que se encontra um tesouro. E o mais engraçado é que normalmente não o encontramos porque estamos muito ocupados procurando por ele. A pista sobre o tesouro, que Alan deixara no cartão, junto à carta de despedida, não fazia sentido para Deborah. Ela jamais conseguiria encontrá-lo sozinha, pois as pistas eram muito difíceis. Alan decidiu, então, revelar-lhe o local do tesouro, já que o “feitiço de Aquila” havia se desfeito. Naquele sábado, da cristaleira da casa da avó de Alan, saiu um pequeno baú de madeira, com aproximadamente dois palmos de comprimento por um de altura. Era o tesouro, cuja chave ela tinha ganho de Alan dias antes, sem saber quando encontraria a fechadura correspondente. Apesar de andar com a chave para cima e para baixo, no caso de “tropeçar” no tesouro sem querer, justamente naquele dia
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estava sem ela. Pegou o bauzinho, já que não poderia abri-lo naquele instante, e o guardou com todo o cuidado. Tinha a sensação que de dentro dele sairia Aladin, o gênio da lâmpada. Como chegou em casa tarde da noite e estava com muito sono, deixou que a sabedoria superasse a curiosidade. Abriria o tesouro com todo o tempo do mundo, sob a luz da manhã. E, com o gostinho de ter um tesouro nas mãos, foi dormir. Ao acordar, olhou para seu bauzinho, pegou a chave e foi abrindo lentamente. Olhou o que tinha dentro, ainda cheirando novo. Era assustador pensar que o baú poderia ter ficado naquela cristaleira por anos e anos se ela não tivesse escolhido ficar com Alan. O cheiro de novo se transformaria em mofo, os anos de vida em promessas não vividas. Quantas pessoas não passavam pela vida sem “descobrir o seu tesouro” por medo de viver! Naquele instante, Deborah desejou profundamente que as pessoas fossem mais felizes, que tivessem coragem para fazer suas escolhas e que fossem mais livres. Avistou, primeiramente, um monte de moedas douradas. Eram moedas de chocolate. Comeria uma por dia, pensou. Tirou todas elas para ver o que havia embaixo. Avistou vários envelopes pequenos e coloridos, enumerados de 1 a 14. Começou a ler, um por um. Eram escritos de Alan, desde o dia 29 de janeiro, após o primeiro beijo, até o dia do eclipse. Dia a dia, ia entrando na intimidade de Alan, assistindo como se fosse um filme, toda a sua trajetória até o encontro do dia 11 de fevereiro. Não podia acreditar no que estava lendo, na beleza daquele gesto, no ser maravilhoso que era Alan. Sentia um agradecimento tão forte à vida, aos seus pais, aos seus avós, por ter sido colocada no mundo e ter a chance de viver tudo aquilo. Junto a isso, a sensação de que a história deles precisava ser escrita, registrada. Era real, não era inventada! As pessoas precisavam saber que viver um amor de verdade era possível, que o amor não existia só nos livros! Encontrou, também, a fita de nome “Toco tua boca”, que tinha recebido de Alan antes, mas com apenas um lado gravado. Agora ela estava inteira. Por último, uma caixinha. Ao abri-la, viu o símbolo 154
do sol e da lua formando um eclipse, feito em ouro branco e amarelo. O que dizer? “Ils ce sont trouvé au bord de chemain cète sans dout un jour de chance Ils avez le cièl à porte de main un cadeaux de la providence”
Era uma linda tarde de domingo. Alan e Deborah foram ao parque Oscar Americano, no Morumbi. Para que Alan tivesse a dimensão de sua reação ao abrir o tesouro, ela resolveu escrever o que sentia a cada envelope que lia, como se fosse uma resposta. Sentaram embaixo de uma árvore, leram e releram seus escritos. Abraçavam-se diante das palavras e beijavam-se diante do perigo de não terem ficado juntos. Tinham a nítida sensação de que a vida está sempre por um fio, percebendo-se ou não. Era impressionante ver a vida fazendo sentido. E não é que a vida passava a ter um sentido ou que agora havia um sentido para viver. A vida toda fazia sentido... passado, presente e futuro. Era impressionante. Era uma história muito linda, precisava ser escrita, para “molhar” outras pessoas, para ajudá-las a acreditar na vida e no viver. Pensaram em falar com Sirena, que assistiu a tudo de perto, ou com uma jornalista amiga de Deborah, que escrevia muito bem. Depois, foram percebendo que cabia a eles mesmos escrever esta história. Era como se fosse uma missão. Seria uma retribuição à vida, uma contribuição. Alan e Deborah, apesar da grandeza do ato a que estavam se propondo, e sem ter a mínima idéia se seriam capazes de tal feito, decidiram que — sim — escreveriam a história. Estavam aprendendo que a vida mostra caminhos, é só estar atento e escolher — ou não — segui-los. Resolveram que adotariam como princípio a verdade. Contariam a história exatamente como se passou, como sentiam. As
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pessoas perceberiam que isso pode acontecer com qualquer um dos mortais, basta estar atento e querer. Não precisa ter sangue azul ou morar num castelo com nome difícil de soletrar. O viver está aí para quem quiser sentir seu perfume, ou provar seu sabor. O nascimento é a grande oportunidade, dada a todos os seres humanos, de viver a vida com todas as suas cores, em todos os sentidos. É só uma questão de se abrir... e pagar o preço da liberdade. Aquele dia, tão especial, era 24 de fevereiro de 1991. Deste dia em diante, o livro já fazia parte deles. “Para sempre é sempre por um triz Diz se é perigoso a gente ser feliz”
Deitados de pele para o ar, Alan e Deborah lembravam-se de muitas coisas do passado. Afinal, tudo fazia sentido. Estavam conversando despreocupadamente, quando Alan fez uma cara de sobressalto: — O que foi? Que cara é essa? — É que me lembrei de uma coisa muito maluca que aconteceu quando eu tinha uns oito anos e estava com meus amigos em nosso clubinho. Estávamos numa clareira aberta, no mato, sentados em uns caixotes e um dos amigos disse que poderíamos nos casar, no futuro, com meninas que tinham naquela época 3 ou 4 anos. Era estranho pensar que nós, os “adultos” de 8 anos, poderíamos nos casar com “bebês”. Aquelas conversas de criança, de moleque. No começo, a gente achou isso um absurdo, mas aí ele foi dando exemplos como o da tia e do marido, que tinham não sei quantos anos de diferença, entre vários outros exemplos, e vimos que podia ser verdade. Começamos, então, a brincar, como se fosse um jogo, adivinhando quantos anos tinha a “criança” com quem cada um se casaria mais tarde. Um disse que seria com uma menina de 2 anos, outro com uma menina de 3 anos, e assim por diante. Eu disse que me casaria com uma menina que estava nascendo naquela hora. Isso em si nem é tão importante, mas o curioso é que esta cena me acompanhou durante muitos anos. Aquilo me marcou tão fortemente que, enquanto os anos se passavam, eu ia fazendo as contas para saber que idade 156
teria aquela criança. Sempre que me lembrava, tinha a sensação de que ela demorava a crescer, embora achasse esse pensamento absurdo. A última vez que me lembro com clareza de ter pensado nisso, eu devia ter uns 16 anos. Depois, parei de fazer as contas e acho que apaguei esse fato da minha lembrança. Tinha uma música que eu adorava — era como se fosse o símbolo dessa história... Por um breve instante, antes de Alan dizer o nome da música, Deborah lembrou de “Menina”, uma música muito forte prá ela. Ia perguntar se era essa a música, quando Alan continuou: — ... chamava-se “Menina”, era de Paulinho Nogueira. — Não acredito. Não acredito. — Por quê? — Eu ia perguntar se a música era essa. Quando você estava contando a história, ela me veio na cabeça. Lembro-me de uma vez em que ouvi uma menina da escola cantando, eu devia ter uns treze ou quatorze anos, e a música ficou dentro de mim. Lembro da sensação quando estava ouvindo, como se atrás da música tivesse um mistério, um segredo... “On the day that you were born the angels got together and decided to create a dream come true”
Finalmente, Alan conseguiu encontrar a fita do “Jazz Singer”, um dos filmes de que ele mais gostava e que “por coincidência”, ou na verdade “naturalmente”, tinha o mesmo tom do filme que Deborah lhe falara, “O Violinista no Telhado”. Assistiram juntos e, por incrível que pudesse parecer, Deborah estava sem lentes de contato e morrendo de vergonha de ficar de óculos na frente de Alan. Eram tão íntimos de alma e, ao mesmo tempo, sob a influência do mundano, tinham as “mesmices” próprias de todos os seres humanos. Era engraçado se dar conta — o tempo todo — da estranha afinidade que existia entre os opostos. Normalmente, temos a impressão de que é simplesmente impossível para os opostos viverem juntos. Mas Alan e Deborah percebiam a cada instante que os opostos,
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mais do que “conseguir viver juntos”, eram de natureza extremamente compatível. Na verdade, eles eram filhos do mesmo elemento, nasciam do mesmo lugar. Assim como o homem e a mulher. Finalmente, num gesto de amor e coragem, ou simplesmente em função da curiosidade pelo filme, Deborah colocou os óculos. Ela estava linda, pensava ele. Depois do filme, Alan entregou-lhe uma carta que escrevera no dia anterior, com o título de Waiting for Deborah. Nela, escreveu passagens de sua vida, desde quando era pequeno, que agora traziam outra dimensão à sua existência. Waiting for Deborah era, na verdade, a resposta ao seu nascimento. Quando terminou de ler, ainda embriagada de beleza, ela perguntou para Alan: — Por que você escreveu sobre o Terraço Itália? É engraçado, pois é um lugar que eu sempre quis ir, mas nunca fui, nem sei por que. — ... Porque é um lugar que eu sempre quis ir, mas nunca fui, não sei por que. Esses “acasos” passavam a fazer parte do dia-a-dia, trazendo uma centelha divina a cada despertar. E, por mais que acontecessem e se repetissem, era difícil de acreditar. “I wonder if I am dreaming I feel so unashamed I can’t belive this is happening to me”
Um dia, enquanto conversava com Deborah, Alan começou a relembrar a primeira reunião do teatro e, subitamente, lembrou-se de tê-la visto. A imagem era clara. Podia até mesmo dizer a roupa que ela usava, seu olhar e onde estava sentada. Assustou-se, pois até aquele momento ele nem se lembrava dela na primeira reunião. O que era isso? Lembrou-se de um dos principais ensinamentos de Mathetés Gurco, que diz que nossos três centros — mental, emocional e físico — são três aspectos independentes do nosso ser mais profundo e agem cada um por conta própria, num interminável jogo de forças. Na 158
verdade, o que Mathetés diz é que nós deveríamos estar acima deles, para que trabalhassem para nós e não o contrário, como costuma acontecer. Percebeu, então, o que acontecera com ele: o mental “fez que não percebeu” Deborah; o emocional e o físico perceberam, mas disfarçaram para o mental não perceber, senão ele censuraria qualquer aproximação. E sua memória arquivada não chegou ao mental — ficou registrada apenas na sensação e na emoção. Alan percebeu que a memória também é separada; que existe uma memória do mental, uma do emocional e uma do físico. Era confuso para explicar, mais ainda para alguém entender. Mas o mais importante era que ele estava se lembrando de coisas que até então escondera de si mesmo. Olhou sua agenda de 1990 para ver o que tinha anotado naquela época e percebeu — para sua total surpresa — que a tal terçafeira que escolhera para participar das reuniões era exatamente o dia da semana que ele iniciaria um curso de marketing que há muito queria dar. Deu-se conta, naquele instante, de que simplesmente abandonara o curso, sem ter consciência do que fizera. “Deborah tinha razão”, pensou. “Devo ter mudado de dia por causa dela. Que loucura!” Só mesmo uma conspiração entre os três centros, guiados por uma sabedoria além deles mesmos, o faria fazer o que fez. O mundo estava lhe revelando, dia a dia, os seus segredos. “The first time ever I saw your face I thought the sun rose in your eyes and the moon and the stars were the gifts you gave”
Desde os ensaios, quando Deborah soube que Alan tinha um trailer, teve vontade de ir prá lá. Ela sempre quis ficar em um, sem nenhum motivo especial. Lá foram eles, então, passar alguns dias no camping de Tabatinga, onde morava o trailer e que, por “coincidência”, era na mesma praia onde os pais dela tinham uma casa.
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Assim que entraram no trailer, Alan lembrou-se da última vez que estivera lá. Foi justamente o dia do desencontro, quando todo o grupo do teatro foi para o sítio em Itu e ele não pôde ir por estar sem o endereço. E agora estava ali, com Deborah. Parecia um milagre. Já estavam instalados quando, em meio a papéis e blocos de cartas, Deborah encontrou um papel de rascunho, cheio de escritos, onde pôde ler seu nome com H (Alan nem sabia que se escrevia assim) e vários escritos denunciadores. Sentiu uma espécie de arrepio, pois parecia um “achado” que traduzia uma experiência interior de Alan, um segredo que nem ele mesmo sabia. Teve a sensação de que ele não se lembraria de tê-lo escrito. Arriscou perguntar: — Alan, você viu isso? Olha o que está escrito aqui... Ele pegou o papel e tomou um susto enorme. — O que é isso? — Prá mim você pergunta? Foi você que escreveu... Você não se lembra? — Não. Que loucura! Aquele papel continha registros inacreditáveis, que pareciam fragmentos do inconsciente. Ele tinha sido escrito muito antes de Alan ter a percepção do que sentia por Deborah; no entanto, continha a chave de todos os segredos. Frases como “How can two be one?”, o nome de Deborah escrito de várias formas, a lua desenhada dentro do sol, formando um eclipse dentro dos olhos. Tinha, também, uma antena captando uma corrente de pessoas — um exercício que o grupo havia feito no sítio, mas que Alan não sabia. Estavam diante do inacreditável. E estavam vivos! No dia seguinte, enquanto andavam na praia, Alan parou repentinamente. — O que foi? — Lembrei de mais uma coisa. Quando estava aqui, naquela vez, escrevi seu nome na areia. A história que contei prá mim mesmo era de que era um nome bonito, podia até ser uma grife. Nem me passou pela cabeça que eu estava gostando de você. — Você é tão engraçado! É tão estranho que você nem suspeitasse de nada! 160
Continuaram caminhando, voltaram para o trailer e foram ficando, ficando, naquele aconchego gostoso. Abraçados, enquanto seus corpos repousavam, veio à mente de Deborah uma imagem, como se fosse um retrato antigo, de um coelhinho branco junto com uma criança. Automaticamente falou para Alan, como que perguntando: O que isso tem a ver? E, por incrível que pudesse parecer, ele disse que quando era criança teve um coelhinho branco. Contou-lhe, então, suas aventuras. E assim, entre achados e achismos, Alan e Deborah continuavam a jornada do maravilhoso, molhados pelo milagroso. “Living together, growing together just feeling together That’s how it starts”
Já estavam no mês de abril, e as músicas continuavam a aparecer, ajudando a traduzir o encontro deles. A tímida fita da garça, com melodias sem palavras, jamais imaginou que daria início a uma seqüência de doze fitas, que foram sendo gravadas com o passar dos meses. Alan recebeu de Deborah mais uma fita, que tinha a magia de falar direto ao coração. Chamava-se VIDA. Naquela mesma semana, foram ao estúdio de gravação onde seu amigo Erval, que era músico, iria regravar as músicas que haviam composto em parceria, há dez anos atrás. As letras eram de Alan e as melodias de Erval. Entre elas, estaria a música “Dor e Prazer”, que Alan gravara para Deborah na fita-sol. Num determinado momento, Erval começou a cantar uma música que Alan não reconheceu, ou melhor, não se lembrava de que tinha composto. Era a única música de que não se lembrava. Assim que começaram a ouvir, um certo arrepio subiu a espinha. A letra era o próprio encontro: “Ela me ensina a amar e a querer bem, ela me ensina a ser alguém, a ser, apenas, apenas ser...” E em outro trecho, era Deborah escrita: “Seu sorriso é um raio de sol, seu olhar o mar transparente e, nos seus cabelos, o vôo dos pássaros”. O susto foi ainda maior quando ouviram: “Hoje em dia acordo e faço qualquer coisa assim, assim contra as forças que roubam a lua, mas amanhã, amanhã...”
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Alan escutava espantado, e toda a letra lhe lembrava Deborah. No final da música, ele ouviu: “Vou agora apresentá-la a vocês, da mesma forma simples que ela me veio, ela se chama...”— e um problema técnico fez com que Erval parasse exatamente aí, sem revelar seu nome. Iniciou novamente a gravação, enquanto os dois olhavam-se surpresos, com aquela cumplicidade tão característica, aguardando o nome “dela”. Do jeito que as coisas vinham acontecendo, só faltava ser “Deborah”. Mas Erval cantou: “... ela se chama VIDA”. Novamente, a vida brincava com eles, e sorria seu sorriso maroto. O destino estava sendo cumprido, e só lhes podia sorrir. “And I thank God I’m alive You’re just too good to be true I can’t take my eyes out of you”
No final de maio, Alan e Deborah resolveram tirar férias e ir até Itaúnas, uma pequena praia num vilarejo, no Espírito Santo. Escolheram ir de carro, para poder levar seu gato, companheiro de todas as aventuras. Até chegar ao destino, parariam em cidades que ficavam no caminho. Na primeira noite, dormiram em um local pouco depois do Rio de Janeiro. No dia seguinte, enquanto viajavam, entraram aleatoriamente em uma das dezenas de ruas de terra que davam na praia, para deixar Toulouse, o gato, sair um pouco do carro para beber e comer. Ao voltar por onde entraram, avistaram, do outro lado da ruazinha de terra, bem à frente deles, uma placa imensa com o escrito VIVER. Simplesmente isso, no meio do nada, sem nenhuma propaganda ou qualquer outro dizer. Pouco mais tarde, ameaçava chover e o céu estava colorido, em diversos tons de azul, quando viram dois arco-íris formando dois arcos completos. De fato, estavam no caminho certo, não havia a menor dúvida. Coisas que “aos olhos do dia-a-dia” pareceriam banais ou sem importância, saltavam aos olhos deles de maneira tão viva e misteriosa, que traziam o sabor do divino o tempo todo. Era fácil, 162
agora, entender porque se diz que Deus está em todo o lugar. Depende de cada um de nós; é só uma questão de se conectar, de estar no justo meio entre as coisas do céu e da terra. Tão simples e tão difícil de descobrir! Já estava escurecendo quando resolveram parar em Guarapari, uma praia perto de Vitória. Pararam no Hotel Porto do Sol e receberam a chave do quarto que, curiosamente, era o número 18 (vida, em hebraico). Instalaram-se e Toulouse adorou, pois tinha um terraço para admirar a paisagem. Resolveram ficar mais um dia, já que o lugar era tão acolhedor. No outro dia, resolveram ficar mais um, já que o lugar era tão gostoso. No quinto dia, resolveram ficar mais um dia, já que o lugar era tão... No sexto dia, desistiram de ir a Itaúnas. O lugar era aquele mesmo, não havia porque ir embora. Até um vaga-lume entrara no quarto em uma das noites, brincalhão, piscando para eles. Quando voltaram, alguém perguntou sobre as areias monazíticas. Que areias monazíticas? Alan e Deborah passaram quinze dias em Guarapari, do hotel à praia do hotel, da praia do hotel ao hotel. E foi ali que começaram a escrever o livro. Sentavam no terraço do quarto, cada um com seu caderno, arriscando-se a iniciar aquele grande empreendimento, do qual não tinham a menor idéia de “por onde começar”. Todos os dias, no final da tarde, caminhavam a praia toda ao sabor de longas conversas sobre a concretização daquela idéia, que parecia tão impossível. Iam imaginando o todo, em forma e conteúdo, e aos poucos ia ficando claro como deveria ser o começo, os capítulos, as linkagens, a apresentação. Até as músicas das fitas que gravaram um para o outro entrariam de alguma maneira, dando um “fundo musical” aos trechos da história. Começaram a entrar em contato com a magia de se sentir instrumento de uma obra. Na verdade, o livro era do mundo. Vinha através deles, mas não era deles. E, diante desta constatação, tiveram a plena certeza de que esta obra se realizaria. “You may say I’m a dreamer but I’m not the only one”
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Encantados com tudo o que a vida estava lhes ofertando, Alan e Deborah conversavam sobre o milagre daquele encontro: — É incrível pensar que esta é a história mais linda que eu conheço e eu estou nela! — É... É uma história de vida. Na verdade, estamos vivendo a vida em versão original. — Acho que já temos o nome do livro. O que você acha?
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SI “Fragmentos de um amor desconhecido em busca do milagroso�
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As histórias de amor e os contos de fadas, geralmente terminam com “...e viveram felizes para sempre”, logo após o beijo (capítulo fá), alguns chegam a ir um pouco além (capítulo sol), mas são raros os que vão até o “day after” (capítulo lá). Contar o que acontece anos depois, o dia-a-dia, as diferenças, as dificuldades, alguns filhos entre nós, vários quilos a mais e algumas partes menos nobres, praticamente ninguém conta. “E para quê estragar o livro?” — perguntariam alguns.
Nós pensamos muito nesta questão. E resolvemos — até porque a nota si é o degrau para iniciar uma nova oitava musical — escrever o capítulo si para contar abertamente sobre a vivência e convivência na Vida em Versão Original, ao olhar de 11 anos depois. Certamente, o capítulo SI foi o mais difícil de ser escrito. O final de uma etapa é sempre o começo de outra. E esta passagem é normalmente um período de crise, quando valores importantes da vida são repensados, checados e muitas vezes transformados. Escrevemos diversos “capítulos si”. Era difícil manter as mesmas diretrizes dos anteriores: a verdade, a inspiração e a capacidade de encantar. Cada vez que a gente pensava ter concluído, percebíamos que não, ainda não estava bom. Num primeiro momento colocamos uma série de “dicas” que produziriam uma espécie de “guia da vida”. Mas depois achamos que não era este o tom adequado. A importância deste livro não era mostrar nossas descobertas, mas sim despertar cada um para que, dentro do seu próprio caminho, pudesse fazer a sua
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descoberta. O segredo do viver está na coragem de cada um “ir descobrindo” sua própria vida. Talvez, o que também dificultasse era que durante todo o livro, nós pensávamos em publicá-lo anonimamente. Depois que concluímos, mostramos para algumas pessoas importantes na nossa vida e acabamos – apesar do medo – desistindo desta idéia. Já que era uma história real, tinha que ser escrita por pessoas reais. Então, decidimos refazer o capítulo si dentro da perspectiva de não sermos mais anônimos, o que dificultou resgatar a espontaneidade de antes. Durante estes onze anos que se passaram, nós vivemos momentos em que era impossível pensar no livro. Isso nos deixava muito mal, pois tínhamos medo de não conseguir mais conectar com o melhor da Vida em Versão Original. Foi difícil perceber que, embora o lado da vida seja sempre o mais forte, a convivência com o seu oposto é inevitável. Luz e sombra são faces da mesma moeda.
Encontro de Almas Por sorte ou merecimento, ou ambos, nós pudemos nos encontrar, nos reconhecer e (graças a Deus!) ficamos juntos. Nosso encontro nos deu uma outra compreensão da vida, do relacionamento homem-mulher, e uma nova leitura do “invisível” do dia a dia. Até hoje, mesmo com todas as crises que tivemos, sabemos com todo nosso ser que vivemos um encontro de almas. Simplesmente sabemos, sem nenhuma explicação lógica. As maiores descobertas do ser humano vêm de um lugar do ser que não é lógico, não têm tempo nem espaço, às vezes nem palavras. É uma compreensão ampla e profunda que desce e nos acalanta, como se fosse uma chuva de luz, quente e brilhante. Se o nome é alma gêmea (que está na moda!) ou outra coisa qualquer, não importa muito prá gente. O que importa é que este tipo de encontro é de uma qualidade incomparável a qualquer outro. E apesar de muitas pessoas não acreditarem, existem outras que não só acreditam como desejam vivê-lo. Este livro é para estas pessoas. Para 168
que não desistam de sua busca. Para que aprendam a olhar o invisível e apurar seus sentidos. Muitas almas gêmeas se cruzam, mas não se reconhecem. Ou se reconhecem, mas não têm coragem de mudar a vida, com medo de ser “apenas uma ilusão”. O fato é que a vida “marca um encontro”. E por mais esotérico que isso possa parecer, este é um jogo inevitável de forças invisíveis que conspiram na direção de criar as chamadas coincidências ou acasos, para que duas rotas se cruzem, gerando uma nova possibilidade. Esta sofisticada equação ocorre constantemente, apesar de raramente a percebermos. Observando nossa própria história e a história de outros casais, percebemos que neste tipo de encontro, alguns pontos são comuns: os acasos, os sonhos, os ideais, os projetos, a identidade familiar, as origens, a vontade de estar junto, a liberdade de poder ser espontâneo, o aconchego do corpo, a atração, a admiração, o respeito, os valores essenciais e principalmente uma identidade de alma. A sensação de que somos feitos da mesma matéria. É o mesmo tom, o mesmo som, a mesma sintonia, apesar das diferenças.
Quanto mais alto o degrau, maior o desafio Foi difícil compreender, ou mesmo aceitar, que as dificuldades que existem para um casal de “alma gêmea” são proporcionalmente as mesmas que existem em outros casais. No início, a gente acreditava que pelo fato de termos nos encontrado e “acordado” para a vida, este estado de consciência já estava garantido e que não havia mais perigo de perdê-lo. Com certeza, não teríamos os problemas mundanos dos casais – pensávamos. Realmente, os problemas do tipo “eu gosto de ir ao cinema e ele gosta de ir ao futebol” ou “eu adoro sair e ele só quer ficar em casa” ou “eu não gosto dos amigos dela” ou qualquer coisa desta natureza, nós nunca tivemos. Mas a vida foi-nos mostrando que encontrar a outra metade não é garantia nenhuma de “foram felizes para sempre” e o risco de perder é real. Como tudo, é necessário cuidar. Uma relação, qualquer
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que seja, é algo vivo, como uma árvore. Você pode ter cuidado dela durante anos, a árvore pode estar frondosa e cheia de frutos. Mas, se por algum descuido, você for-se esquecendo de regar, ela fatalmente vai morrer. A vida tem estes caprichos. As exigências do dia a dia, os momentos de mudança, os caminhos individuais que cada um tem que percorrer, muitas vezes sacodem tudo. E aí, somos invadidos por uma sensação horrível de estar perdendo o contato com o sagrado. Nessa hora, é preciso ter muita força, lucidez e, principalmente, o aconchego do outro. No entanto, este tipo de dificuldade é totalmente diferente da natureza dos problemas que tínhamos, por exemplo, no casamento anterior, onde ficávamos, insistentemente, lutando pela relação. Num encontro de almas isso não existe. A relação simplesmente é. Só tem que ser cuidada. Compreendemos, então, que em cada estágio da vida há um nível próprio de dificuldade. E quanto mais longe se vai, maior será o grau de desafio. Como uma criança: primeiro, a dificuldade de andar, depois de falar, depois de interagir e ganhar autonomia, enfim, sempre uma nova etapa com um novo grau de dificuldade. E por estranha beleza, isso não pára nunca até o final dos tempos, pois é o que faz a humanidade evoluir e se transformar.
Mantendo o fogo aceso Passados onze anos, nos sentimos mais maduros e fortalecidos como casal, até mesmo em função das diversas crises que tivemos ao longo do caminho. E isso nos deixa relativamente seguros para falar sobre um assunto que todos os seres humanos, de uma forma ou de outra, se perguntam: “Tudo bem, o amor é lindo! Mas será que dura? Por quanto tempo?” Por diversas vezes, nos sentimos perdidos: “Como podemos estar desse jeito, se nosso encontro foi a coisa mais linda que nos aconteceu?” Sentíamos quase como se estivéssemos desrespeitando a própria vida e por vezes nos questionávamos se o tesouro havia se esgotado. Mas estes momentos “de risco” nos ajudaram a evoluir e a 170
nos colocar diante da vida com a necessária humildade de aprendiz. E nos amando cada vez mais. Amor de alma não se esgota. Percebemos que um dos principais problemas era quando confundíamos, no dia a dia, duas coisas bem diferentes: o completar e o complementar. Quando estávamos mal, inevitavelmente queríamos do outro uma atitude de completar, ou seja, exigíamos dele uma coisa que tinha que vir de nós mesmos. Esta qualidade interna de bem estar tem que vir de cada um, nunca será dado pelo outro. O complementar, pelo contrário, nasce de um estado de preenchimento, onde a gente “puxa” do outro o que ele tem de melhor. Neste estado ocorre a expansão, o sagrado. O completar quer a metade do outro para poder ser inteiro. O complementar quer o inteiro do outro para poder ser metade. Cruel e belo ao mesmo tempo. Nos momentos de caos, o fogo não pode se apagar. A madeira se consome e é preciso renová-la, manter a chama acesa. Às vezes a fogueira está bonita e vigorosa, outras vezes quase minguando. É preciso cuidar sempre. E a melhor lenha para esta fogueira é a admiração.
Admiração Esta simples palavra é, provavelmente, a chave para manter duas pessoas juntas. Mesmo no nosso caso, vimos que se a admiração não fosse cuidada, o dia a dia provocaria, fatalmente, um natural afastamento. Admiração um pelo outro e em todos os sentidos é o que procuramos nunca deixar escapar. Em alguns períodos, percebemos que, devagarinho, ela começou a ir embora, sem se deixar notar, por pequenas bobagens: uma irritação, uma desatenção ou simplesmente porque um dos dois não estava se sentindo bem, feliz, bonito... Não que a admiração tivesse deixado de existir, mas como uma armadilha, ela foi sendo encoberta por “pequenices” que foram se acumulando e tomaram grande vulto.
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Quando “retornamos ao lar”, aos momentos em que nos sentimos seres humanos plenos e cheios de luz sabemos, pelo encontro dos nossos olhos, que esta admiração é muito maior do que qualquer bobagem do dia a dia. Ela vem de um estado de alma preenchido, quando estamos nos sentindo inteiros, em paz, em instantes de transbordamento onde não é preciso provar nada prá ninguém, apenas ser. Neste estado, a admiração é profunda, bonita, e diz respeito a um todo: idéias, atitudes, gestos, jeito de olhar, jeito de ser, jeito de amar, tudo faz parte deste admirar. É daí que nasce a verdade. Infelizmente, as pequenices do dia a dia nos fazem esquecer disto momentaneamente. No entanto, uma vez conhecido este estado, quando não se está nele, sabemos claramente que estamos deixando escapar uma pedra preciosa. E a vida, ao mesmo tempo em que nos cega, também nos ajuda: no escuro da noite, vez ou outra a pedra volta a brilhar, lembrando-nos que é só lapidar para que ela possa ressurgir com todo o seu esplendor.
Nascimento dos filhos O nascimento de um filho já estava escrito na nossa história, desde que nos encontramos, talvez até mesmo antes. E a primeira gravidez chegou em boa hora, quando nós dois sentíamos que era o momento certo. É claro que a gente sabia que as coisas mudariam, todos falavam isso, mas com certeza seria prá melhor. Nada podia ser mais lindo do que gerar uma criança no meio de tanto amor. Foram nove meses muito especiais, preparando a casa e o coração para aquele novo ser que estava chegando. Eu (Deborah) tinha certeza de que era menino. “Mãe não se engana!” –– eu dizia. Mas aos cinco meses de gravidez descobrimos que era menina, o que foi uma gostosa surpresa. Em maio de 93 ela nasceu, taurina como a mãe, já nos ensinando que, apesar de ser tão pequenininha, já tinha vontade própria. Não adiantaram muito os planos e programações que fizemos, pois o início acabou sendo “à moda dela”. E a partir deste dia, a vida ficou diferente prá sempre. Diante do milagre do nascimento, a semente de um sentimento desconhecido: 172
a estranheza, o medo, a ternura, o cansaço, as dúvidas, e tudo o mais que um primeiro filho nos ensina. Por mais especial que seja ter um filho ⎯ e realmente é ⎯ não dá prá dizer que é fácil. Inicialmente, o nascimento de nossa filha nos tirou do eixo da vida. E demoramos muito tempo, mais de um ano, para começar a reencontrar um certo equilíbrio de casal. No início era uma demanda total, parecia que nós nunca mais teríamos tempo um para o outro, o que foi um enorme choque. Demoramos para aceitar que nunca mais seria como antes, o que não era necessariamente ruim, dependendo de como fosse encarado. Um dos maiores dramas humanos é querer que as coisas continuem sempre iguais. O tempo foi passando, e o amor foi crescendo. Crescendo tanto que a família cresceu também. Seis anos após o nascimento da nossa primeira filha, fomos novamente presenteados com o milagre da vida. Um menino, sapeca, que quis nascer no mesmo dia do pai e do avô, veio ao nosso lar pra completar a família. Segundo filho traz novas descobertas. Mas revira a vida do mesmo jeito, embora seja mais fácil do que com o primeiro. Sabemos hoje que “ser mãe” e “ser pai” é uma verdadeira arte, de conquistas diárias e aprendizados constantes. É, também, a possibilidade de rever valores e jeitos de ser no mundo. É a chance de nos tornarmos seres melhores, para que nossos filhos sejam pessoas com grandeza de espírito. Porque os filhos aprendem o que SOMOS e não o que FALAMOS. Assim, temos que SER todos os dias. Temos em mente que os filhos nos chamam para uma missão maravilhosa e difícil. Mas ela não pode, de jeito nenhum, ser negligenciada. Como tudo o que é sagrado, também com os filhos, não podemos esquecer de regar. Somos os jardineiros de suas vidas, principalmente nos primeiros anos.
Dificuldades financeiras Diz o ditado popular que “quando o dinheiro sai por uma porta o amor pula pela janela”. Para nós não foi isso que aconteceu,
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mas tivemos que fazer um tremendo esforço para nos manter em pé, apesar de tudo. Além das questões operacionais que a falta de dinheiro gera na família, o que se altera, principalmente no homem, é a sua autoestima. E quando, no casal, um dos dois está muito frágil, tudo na casa fica contaminado. Sentimos na pele que o dinheiro, embora não traga a felicidade a ninguém, é um pilar de sustentação extremamente vital. E, contrariamente ao que pensávamos antes, percebemos o quanto é fundamental encontrar um equilíbrio entre o lado material e espiritual e buscar o justo meio. Nenhuma das duas estradas - material e espiritual - pode existir em detrimento da outra. Em meio à crise, a gente sabia que estava passando por mais uma etapa de mudança de patamar, mas mesmo sabendo disso, era difícil, muito difícil. Custou horas de sono, saúde, paz de espírito e muito mais. Entretanto, como buscadores do caminho interior, extraímos desta experiência o máximo que pudemos.
Os medos Vários medos se fizeram presentes em nossa trajetória. Mas tudo se resumia a uma simples coisa: medo de mudar. Mesmo assim, e apesar do medo, nós fomos mudando. Desde a primeira decisão (da separação para viver nosso encontro), passando por morar junto, depois trabalhar junto, ter um filho, mudar o rumo profissional, ter outro filho, mudar de cidade, enfim, tudo o que a vida foi colocando no nosso caminho. Até mesmo a decisão de escrever este livro e lançá-lo ao mundo não anonimamente nos dá, ainda, um medo enorme. Mas a gente faz porque acredita que deve ser assim, e porque junto com o medo sempre vem a coragem. E faz, também, porque aprendemos uma coisa que é prá toda vida: que o caminho da escolha será sempre o do coração.
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O caminho do coração Foi pelo caminho do coração que nós dois nos encontramos. Se tivéssemos seguido a lógica, jamais estaríamos juntos. E desde então, apenas confirmamos o que já sabíamos: que o coração pede que sejamos seres mais livres, criativos e iluminados. Este se tornou um lema de vida, uma bandeira que a gente carrega, principalmente nos momentos de maior escuridão.
Uma estória do Alan A gente não chega realmente a se acostumar com as “coincidências”. Sempre que descobrimos mais alguma, ela nos surpreende. Mas isso reforça cada vez mais a crença de que está tudo interligado e que, qualquer que seja a nossa ação, há sempre um sentido maior. Para exemplificar eu vou contar apenas uma dessas estórias “sem sentido”. Aconteceu quando eu tinha 13 anos. Minha família e eu fomos passar as férias numa fazenda de café em Itu. Ainda havia a plantação, os terraços de secagem e toda estrutura de mais de um século de atividade agrícola. Os colonos mantinham as tarefas da fazenda e, além do café, criavam algumas vacas, cavalos e porcos. Nossa diversão era nadar na piscina, andar de pedalinho no lago, passear de bicicleta ou a cavalo e ir atrás de um bumerangue que nunca voltava. Numa noite tive um sonho muito estranho. Apareceu um “preto velho”, bem velho, que me falou que ali eu ia encontrar um tesouro. Ele parecia saber o que estava dizendo, apesar de ter um tom de quem estava “aprontando” alguma. Tinha a calma de um mestre Zen. Raramente me lembro de algum sonho. Mas naquela manhã, acordei mais cedo do que o normal e fiquei com a sensação forte do sonho. Fui andar a cavalo e como não sabia andar direito, davam-me sempre o cavalo mais manso, que se chamava Pudim. Ele nunca obedecia, não importando o comando que eu lhe dava. Apenas seguia lentamente atrás dos outros. Neste dia, porém, meu padrasto, que
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montava muito bem, conseguiu montar no Alazão, o mais bravo de todos. Passou por nós a todo galope e, sem mais nem menos, o Pudim resolveu ir atrás dele e saiu galopando. Tomei um susto enorme, tentei de todo jeito fazê-lo parar, mas depois, como não tinha jeito, só me preocupei em não cair. Dos corredores dos cafezais fomos para o meio do mato. De repente, o Pudim foi parando e parou completamente até começar a pastar. Não queria de jeito nenhum sair dali. Olhei em volta e vi que tínhamos parado em frente a uma espécie de barraco completamente coberto pelo mato. Desci do cavalo e fiquei arrepiado ao me lembrar do sonho. Hesitei em entrar no barraco, pois aquele lugar devia estar cheio de cobras, aranhas e talvez até fantasmas. Mas eu não tinha escolha; entrei meio apavorado, meio arqueólogo. O lugar estava completamente vazio, invadido pelas plantas e poeira. Algumas frestas deixavam entrar a luz do sol que, misturada com a poeira, dava um tom cinematográfico. Depois de um tempo percebi uma prateleira bem no alto. Novamente o arrepio. Estava tão certo que iria encontrar algum tesouro que não tive dúvidas: mesmo sem ver, tateei com a mão à procura de algo. Só o que encontrei foi um pedaço de pau, ou melhor, um pilão, usado antigamente para moer, com aproximadamente 90 centímetros de altura. De repente escutei minha mãe chamando, o que me acordou das minhas aventuras em estilo “Tom Sawyer”. Ela estava chegando a cavalo com um dos empregados da fazenda e eu lhe perguntei o que era aquele lugar. Ele disse que ali era a Senzala, onde ficavam os escravos. Minha mãe pediu prá eu largar aquele “lixo” que eu estava segurando (o pilão). Insisti em levá-lo e só consegui trazê-lo para São Paulo com a cumplicidade do meu padrasto que o trouxe escondido da minha mãe. No ano seguinte, esse pilão inspirou-a na decoração da casa toda com peças antigas de fazenda. Essa seria realmente uma estória sem sentido se não fossem as “coincidências”. A primeira delas foi quando a Deborah me levou, pela primeira vez, para a casa de campo de seus pais, que fica num condomínio em Itu. Condomínio este que era a antiga fazenda onde eu passei aquelas férias. A segunda: no terreno dos seus pais há uma casinha que foi construída originalmente para os caseiros, mas que, 176
como não foi usada, acabou sendo ocupada por nós dois. Quando queríamos nos referir a alguma das casas dizíamos “a casa grande” e “a casinha”. Alguém, um dia, nos ouviu dizendo “casa grande” e de brincadeira chamou a casinha de “senzala”. O nome pegou e só fizemos o link com o sonho muito tempo depois. A terceira “coincidência” só percebemos 6 anos depois: durante o início dos ensaios do teatro nos foi pedido que cada um trouxesse um objeto de casa, que lhe fosse de alguma forma importante. Ingenuamente, eu levei o pilão e ele ficou um tempão por lá, me acompanhando. O “preto velho” do sonho tinha razão: era o meu “tesouro” que eu estava encontrando, e o pilão vinha prá me lembrar disso 20 anos depois...
A vida em versão original É por essas e outras que até hoje nos surpreendemos com a nossa história. Mesmo após 11 anos, ainda descobrimos “sinais”, que nos mostram que nosso encontro pertence não só a este mundo, concreto e visível, mas também ao mundo invisível e mágico que discreta e maciamente envolve nossa realidade aparente. Um lugar cujas leis desconhecemos, mas que, de alguma forma, nos guia e protege. O caminho do amor é uma trilha sem fim. Nele habitam pássaros e flores, trevas e trovões, mansidão e imensidão. Percorrê-lo nos dá a oportunidade de desvendar o divino, de evoluir continuamente através de nossos erros e acertos, e de nos tornarmos seres melhores, embora imperfeitos, mas com uma verdadeira capacidade de doação e expansão. Seja como for, o amor é alimento de alma, que precisa viver através de nós, independente do caminho que cada um possa trilhar. Escolha, destino ou vocação, temos a responsabilidade de encontrar nossa própria maneira de viver o amor e expressá-lo. Temos o dever de encantar nosso coração, aquecer nossa alma e espalhar estas sementes pelo universo... Assim é viver a vida em versão original.
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Em homenagem ao nosso mestre MathetĂŠs Gurco, dedicamos este livro a todos aqueles que, diante da vida, escolhem VIVER.
“Muitas almas gêmeas se cruzam, mas não se reconhecem. Ou se reconhecem, mas não têm coragem de mudar a vida, com medo de ser “apenas uma ilusão”. O fato é que a vida “marca um encontro”. E por mais esotérico que isso possa parecer, este é um jogo inevitável de forças invisíveis que conspiram na direção de criar as chamadas coincidências ou acasos, para que duas rotas se cruzem, gerando uma nova possibilidade. Esta sofisticada equação ocorre constantemente, apesar de raramente a percebermos”.
ISBN 85-7464-013-1