alfred hitchcock - querem ver minha caveira

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ALFRED HITCHCOCK APRESENTA:

QUEREM VER MINHA CAVEIRA

Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos

Editora Record 3


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INTRODUÇÃO Mistério ... A definição está nos dicionários: tudo aquilo que a inteligência humana é incapaz de explicar ou compreender. Ou seja, muita coisa que acontece na vida de qualquer um. E o desconhecido sempre causa um arrepio. Falando nisso, um amigo meu foi ver um filme muito antigo. A história era a de um bicho chamado “Arrepio”, que surgia quando as pessoas sentiam um medo terrível, os cabelos ficavam eriçados, um calafrio subia pela espinha. Acontece que esse amigo meu era muito impressionável. Não acreditou na história do filme, é claro. Mas acreditava em mistérios. E gostava das histórias de mistério, das histórias de arrepiar. Naquela noite, chegando em casa, não conseguia dormir. Pegou um livro para se distrair, um livro como este que você tem agora nas mãos. E começou a ler, em busca do sono. Mas eis senão quando ... diga-se de passagem, uma expressão já desusada, mas que muito ainda me atrai ... no auge de uma história de terror, sente um calafrio na espinha. E quando olha para o chão, no tapete, ao lado da poltrona, lá estava enrodilhado, repousando tranqüilamente, o “Arrepio”. E claro que ele ficou apavorado. Mas a história era tão fascinante que tinha de chegar ao fim. Não podia parar. E continuou a leitura. Chegou ao final do livro. E quando isso acon5


teceu, já estava acostumado com a presença do “Arrepio” um bicho meio horrendo, do tamanho de um tatu, escamas de peixe, pés de pato, rabo de porco, focinho de tamanduá e vai por aí, que mais parecia ter sido criado numa reunião para se chegar a um acordo. Hoje, meu amigo cuida do “Arrepio” como seu animal de estimação. Dá-lhe leite pela manhã, leva-o a passear no parque, chama-o para se deitar ao lado de sua poltrona, de noite, quando se põe a ler algum livro de mistério. Não sei se algum outro seria capaz de fazer a mesma coisa. Mas se esta noite, quando você estiver lendo as 13 histórias de arrepiar deste livro, por acaso sentir um arrepio na espinha e olhar para o chão, a seu lado, avistando então um bicho horrendo enrodilhado, procure não se assustar. Deve ser o “Arrepio”. Você acaba de ganhar um novo bichinho de estimação. ALFRED HITCHCOCK

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TESTEMUNHA NA ESCURIDÃO Fredric Brown I Fiquei nervoso só de ler a história nos jornais. Tive o pressentimento, desde o início, de que iria ser designado para o caso e não iria gostar. É claro que o caso já poderia estar resolvido quando eu voltasse, pois ainda faltavam dois dias para minhas férias terminarem. Mas duvidava que isso acontecesse. Larguei o jornal e tentei esquecer o que lera olhando para Marge. Mesmo depois de quatro anos de casamento, ainda gosto de olhar para Marge. Só que desta vez a contemplação dela não me afastou os pensamentos do que estivera lendo. Pelo contrário, fez-me pensar no caso. Comecei a pensar como seria terrível se fosse cego e nunca mais pudesse contemplar Marge. A notícia do jornal era sobre um homem cego, a única testemunha de um assassinato. Marge olhou para mim e indagou o que eu estava pensando. Contei-lhe a história. Ela se interessou e entrei em detalhes, relatando tudo o que acabara de ler no jornal. — O nome do cego é Max Easter. Até três dias atrás, era o contador da Indústria Química Springfield. E não era cego. Os médicos ainda não 7


sabem determinar se a cegueira será permanente. Foi um acidente. Ele estava verificando alguns dados na fábrica quando um ácido qualquer espirrou em seu rosto. Acham que ele pode recuperar-se. Mas o fato é que no momento está completamente cego e com os olhos enfaixados. “Ontem, ao cair da noite, ele se encontrava em seu quarto, pois ainda está de cama, conversando com um amigo, Armin Robinson, que tinha ido visitá-lo. As esposas de ambos haviam saído juntas, para irem a um cinema no centro. Os dois estavam sozinhos na casa. “Armin Robinson estava sentado numa cadeira perto da cama. A porta do quarto estava aberta. Max Easter estava sentado na cama e os dois conversavam. De repente, Easter ouviu a porta ranger e alguém entrar no quarto. Ouviu Robinson se mover e acha que talvez ele se tenha levantado. Mas não tem certeza, pois ninguém disse coisa alguma. E foi então que soou um tiro, seguido pelo barulho de um corpo caindo no chão, na direção em que Robinson se encontrava. Soaram passos no quarto. Sentado na cama, Easter ficou esperando ser alvejado também. Marge fez o primeiro comentário: — Mas que situação terrível! — Aconteceu então algo muito estranho. Ao invés de levar um tiro, Easter sentiu algo cair em cima do colchão. Tateou desesperadamente e encontrou um revólver. Ouviu o assassino se mover e apontou o revólver na direção do ruído, puxando o gatilho. Marge tornou a interromper-me. — Quer dizer que o assassino entregou-lhe o revólver? Será que não imaginava que um cego pode apontar na direção de um barulho qualquer? — Sei apenas o que está no jornal, Marge. E é assim que está relatada a história de Easter. Provavelmente, o assassino não imaginava que Easter sentiria a arma batendo no colchão e a encontraria tão depressa. Provavelmente calculava que poderia sair do quarto antes que Easter encontrasse o revólver. — Mas por que iria entregar-lhe o revólver? — Não faço a menor idéia. Mas deixe-me contar o resto da história de Easter. Ao apontar o revólver na direção do ruído, ele ouviu um novo barulho, como o de um joelho a bater no chão. Imaginou que o assassino se tivesse abaixado, pondo-se fora da trajetória do tiro, caso disparasse. Assim, Easter também abaixou o revólver, apontando para o meio metro 8


acima do chão, antes de disparar. Deu apenas um tiro. “Easter diz que ficou subitamente apavorado, mais com o que estava fazendo do que com o que poderia acontecer-lhe. E largou o revólver. Estava atirando no escuro, literalmente. Se por acaso se enganara, podia estar atirando em Armin Robinson. Nem mesmo sabia se houvera mesmo um assassinato, não podia ter a menor idéia do que acontecera. “Largou o revólver, que bateu na beira da cama e caiu no chão. Não mais podia apanhá-lo, mesmo que mudasse de idéia. Continuou sentado na cama, suando frio, enquanto a pessoa que estava no quarto dava mais alguns passos ao redor e depois saía. Marge estava com uma expressão pensativa. — E o que o assassino estava fazendo no quarto, George? — Como Easter poderia saber? Mas a carteira de Robinson desapareceu. Assim, provavelmente foi isso uma das coisas que o assassino fez. A carteira e o relógio de Easter, que estavam em cima da cômoda, como a esposa dele informou posteriormente, também desapareceram. Além de uma valise que havia no quarto. — Uma valise? E para que o assassino ia querer uma valise? — Para levar a prataria. Estava no andar térreo e também desapareceu, juntamente com alguns outros objetos que os assaltantes normalmente levam. Easter diz que o assassino ficou andando pelo quarto aparentemente por um longo tempo, embora provavelmente tenha ficado apenas um ou dois minutos. Ouviu-o depois descer a escada e se deslocar pelo andar térreo. E finalmente a porta dos fundos se abriu e fechou. “Easter só se levantou depois que ouviu o assassino sair. Tateou até o lugar em que Robinson tinha caído e descobriu que o amigo estava morto. Desceu a escada, foi até o telefone e ligou para a polícia. E ponto final. — É uma história muito estranha, George. Há tantos fatos inexplicáveis que a gente fica pensando uma porção de coisas. — Era justamente o que eu estava fazendo. Pessoalmente, o que mais me impressiona é a cena de um homem cego disparando no escuro e depois ficando apavorado, por não saber em quem estava atirando. — As pessoas cegas não ficam com os outros sentidos aguçados, George? Não se tornam capazes de dizer quem se está aproximando pelo jeito de andar e outras coisas assim? Pacientemente, expliquei a Marge: — Max Easter estava cego há apenas três dias. O máximo que podia 9


dizer, pelo jeito de andar, era se se tratava de um homem ou de uma mulher. E mesmo assim, se a mulher estivesse de saltos altos. — Acho que tem razão, George. Mesmo que Easter conhecesse o homem ... — Mesmo que fosse um amigo dele, não poderia identificá-lo. De noite, todos os gatos são pardos. — O ditado não fala em noite. — Essa não! — Pode dar uma olhada no livro de Citações, de Bartlett. Marge e eu estamos sempre divergindo em coisas assim. Tirei o Bartlett da estante e dei uma olhada. Desta vez era Marge quem estava certa. O ditado correto era o seguinte: “Quando todas as velas se apagam, todos os gatos são pardos.” Informei a Marge que ela tinha razão e discutimos mais um pouco a respeito, antes de ela voltar a se concentrar no crime. — E o que me diz do revólver que o assassino deixou, George? Não será possível descobri-lo através do revólver? — Era o próprio revólver de Max Easter. Estava na gaveta da escrivaninha no andar térreo. Eu tinha esquecido de mencionar esse fato. O assassino deve ter revistado a escrivaninha antes de subir. — Acha mesmo que era um simples ladrão, George? — Não. — Eu também não. Há algo estranho no caso, algo que soa muito falso. — Tem toda razão, Marge. Mas não consigo determinar o que está errado. — Talvez Max Easter não esteja cego. — Ah, a intuição feminina! Um palpite desses é absurdo, a menos que você tenha motivo para dizê-lo. É a mesma coisa que dizer que Easter atirou num gato pardo, só porque mencionei o ditado. — Talvez tenha acontecido justamente isso. Nem valia a pena responder. Peguei o jornal de novo e virei para a página de esportes. Os jornais de domingo, o dia seguinte, tinham um farto noticiário a respeito do crime, mas sem apresentarem qualquer novidade. Nenhuma prisão fora efetuada e nem mesmo existia um suspeito. Eu esperava não ser designado para o caso. Não sabia exatamente por que a perspectiva 10


me repugnava. Mas a verdade é que não queria. II Mas entrei no caso quase que no instante em que voltei ao trabalho. Antes mesmo de ter tempo de tirar a capa, fui informado que o Capitão Eberhart desejava falar-me. — Divertiu-se nas férias, George? — Ele não esperou pela minha resposta, acrescentando imediatamente: — Vai trabalhar num caso novo, o assassinato de Armin Robinson. Já leu alguma coisa a respeito nos jornais? — Claro. — Então sabe tanto quanto qualquer um de nós. Só há um fato que não foi noticiado. Vou dizer-lhe qual é. Mas não farei qualquer outro comentário. Quero que entre no caso sem qualquer idéia preconcebida. Não conseguimos chegar a nenhuma conclusão e talvez assim você possa descobrir algo que nos passou despercebido. Vale a pena tentar. Assenti. — Mas não me pode dar informações sobre os relatórios de laboratório? Posso interrogar novamente as pessoas sem saber de nada, mas gostaria de ficar a par pelo menos dos fatos físicos. — Está certo. O relatório do médico-legista diz que Robinson morreu instantaneamente, de uma bala na cabeça. A bala foi cravar-se na parede, cerca de um metro do lugar em que ele estava, a uma altura de 1,70m. Entrou na parede quase que em linha reta. Assim, tudo indica que Robinson levantou-se quando o assassino apareceu na porta. O assassino deve ter disparado com o revólver ao nível dos olhos. — A bala saiu do mesmo revólver? — Saiu. Assim como a outra bala, a que Max Easter disparou. E havia duas cápsulas deflagradas no revólver. Não havia impressões digitais na arma, além das de Easter. O assassino devia estar de luvas. A Sra. Easter informa que um par de luvas brancas de algodão, que estava na cozinha, desapareceu. — Não é possível que Max Easter tenha disparado os dois tiros? — Não, George. Ele é cego. Ou pelo menos temporariamente. Quem o assegura é o médico que o está tratando. Há testes para confirmá-lo, como a reação das pupilas à luz e coisas assim. A única maneira de 11


um cego poder acertar um tiro numa pessoa bem no meio da testa seria encostando a arma na vítima. Mas não há queimaduras de pólvora na testa de Robinson. A história de Easter parece muito estranha, mas todos os fatos indicam que é verdadeira. Até mesmo o tempo foi confirmado. Alguns vizinhos ouviram os tiros. Pensaram que fossem explosões de canos de descarga de automóveis e não foram investigar. Mas anotaram a hora. Estavam escutando rádio e às oito horas houve uma mudança de programas. Os dois estampidos soaram com um intervalo aproximado de cinco segundos. Easter telefonou-nos exatamente doze minutos depois das oito horas. É o tempo que ele precisaria para descer a escada e chegar ao telefone. — O que me diz dos álibis das duas esposas? — São sólidos. Estavam juntas num cinema na hora do crime. Entraram por volta das oito horas e viram diversos conhecidos no saguão. Assim, não temos apenas a palavra delas. Pode considerar os álibis como confirmados. — Está bem. E qual foi o fato que os jornais não noticiaram? — O relatório do laboratório sobre a outra bala, a que Easter disparou contra o assassino, diz que há vestígios de matéria orgânica. Deixei escapar um assovio. Isso tomava a investigação um pouco mais fácil. — Quer dizer então que o assassino foi ferido? — É possível. — O Capitão Eberhart suspirou. — Detesto ter que dizer-lhe, George. Mas se ele foi ferido, então deve ser um galo usando pijama de seda. — Muito engraçado ... Minha esposa diz que Easter deve ter atirado num gato pardo. E ela está quase sempre certa. Em tudo. Mas importa-se agora de falar sério? — Se você conseguir encontrar algum sentido no que vou dizer, então terei que dar-lhe os parabéns. A segunda bala estava na parede, perto da porta, a uma altura de meio metro. O técnico que a examinou informa que há vestígios de três tipos de matéria orgânica, em quantidades ínfimas. Conseguiu identificá-las, mas não pode garantir que é isso mesmo com certeza absoluta. Acha que os vestígios são de sangue, seda e penas. Um galo usando pijama de seda seria a única explicação possível. — Que espécie de sangue? E que espécie de penas? — Não há possibilidade de se descobrir. O técnico não quer arris12


car-se a dar qualquer palpite. Mas pode contar-me agora que história é essa de gato pardo? Contei-lhe a discurssão sobre o ditado e o comentário zombeteiro de Marge. — E agora falando sério, Capitão, ao que tudo indica o assassino foi mesmo ferido. Deve ter sido apenas um arranhão, já que ele continuou a se movimentar pela casa depois do tiro. Isso explicaria o sangue na bala. Quanto à seda, a explicação não é das mais difíceis. Poderia ser de uma camisa de seda, uma gravata de seda, qualquer coisa do gênero. Difícil é explicar os vestígios de penas. Um homem só usaria uma pena na fita de um chapéu novo. Eberhart assentiu. — Pondo de lado o galo num pijama de seda, é a melhor sugestão que já tivemos até agora. Poderia ter acontecido da seguinte maneira: o assassino viu o revólver sendo apontado em sua direção e se abaixou, estendendo a mão na direção da arma. A mão não pode deter uma bala, mas as pessoas freqüentemente agem assim, quando sentem que vão ser alvejadas. A bala raspou-lhe a mão e a fita do chapéu, que era de seda e com uma pena a enfeitá-la, indo cravar-se na parede. E ele nem sequer ficou atordoado. Amarrou um lenço na mão e continuou o serviço tranqüilamente, depois que Easter largou o revólver. — É bem possível, Capitão. Há alguém ligado ao caso que esteja ferido? — Não. Ou pelo menos não num lugar visível. E também não temos provas suficientes contra ninguém para obrigá-lo a se despir. Diga-se de passagem que também não encontramos ninguém que pudesse ter um motivo. Por mais estranho que possa parecer, George, estamos chegando à conclusão de que foi pura e simplesmente um assalto. Mas não vou dizer-lhe mais nada. Prefiro que comece a investigar sem saber de nossas especulações. Talvez assim possa descobrir algo que nos escapou. Vesti a capa novamente e saí. III A primeira providência era a que eu mais detestava: interrogar a viúva do homem assassinado. Eu esperava que ela já tivesse superado o choque inicial. 13


Não gostei de ter que conversar com a viúva, mas também não foi tão ruim como poderia acontecer. A Sra. Armin Robinson era uma mulher controlada e reservada. Estava disposta a falar, sem deixar que suas emoções interferissem. As emoções estavam presentes, é verdade, mas duas camadas abaixo. Não iriam aflorar à superfície num ataque de histeria. Conversei primeiro sobre o álibi. Havia-se encontrado com a Sra. Max Easter no saguão do cinema às oito horas. Sabia que fora exatamente às oito horas, porque ambas tinham comentado o fato de terem chegado na hora da sessão. Louise Easter chegara primeiro, mas dissera que estava esperando há apenas um minuto. Estava conversando com duas amigas, que encontrara por acaso no cinema. As quatro ficaram juntas durante a sessão. A Sra. Robinson deu-me os nomes e endereços das outras duas mulheres. Os álibis pareciam realmente sólidos, como Eberhart dissera. O cinema ficava a menos de 20 minutos de carro da casa dos Easters. — Seu marido tinha inimigos, Sra. Robinson? — Não. Talvez algumas pessoas antipatizassem com ele, mas não se pode dizer que fossem inimigas. — E por que tais pessoas antipatizavam com seu marido, Sra. Robinson? O que ele fazia ... — Armin era bastante extrovertido, a alma da festa, esse tipo de coisa. Depois que tomava alguns drinques, podia irritar as pessoas. Mas isso não acontecia freqüentemente. E havia também quem achasse Armin um pouco franco demais. Mas tais coisas não chegavam a ser muito sérias. Ou pelo menos não eram suficientes para levar alguém a cometer um crime premeditado, pensei. — Seu marido era contador, especializado em auditoria, não é mesmo? — Era, sim. E trabalhava como autônomo. Era seu próprio patrão. — Tinha empregados? — Apenas uma secretária, em tempo integral. Tinha uma relação de pessoas que de vez em quando chamava para ajudá-lo, quando pegava uma auditoria que era grande demais para um só homem fazer. — A senhora e seu marido eram muito amigos dos Easters? — Éramos, sim. Provavelmente Armin e Max eram mais íntimos do que eu e Louise somos. Para dizer a verdade, não simpatizo muito com Louise, mas sempre me dei com ela por causa da amizade entre nossos 14


maridos. Espero que não me entenda mal. Não tenho nada contra Louise, apenas pensamos de maneira diferente. E tenho a impressão de que Armin também não gostava muito de Louise. — Encontravam-se com freqüência? — Pelo menos uma vez por semana, às vezes mais. Pertencemos a um grupo de bridge de quatro casais, cada reunião na casa de um. — Quem eram os outros casais? — Os Anthonys e os Eldreds. Bill Anthony é editor do Springfield Blade. Ele e a esposa estão na Flórida agora, de férias. Lloyd Eldred trabalha na Indústria Química Springfield, a mesma companhia de Max Easter. É o superior imediato de Max. — E Max Easter é o contador de lá, não é mesmo? — É, sim. Lloyd Eldred é o tesoureiro da companhia. Provavelmente a diferença não é tão grande quanto parece. Creio que Max deve estar ganhando 10 mil dólares por ano, enquanto Lloyd ganha 12 mil. A companhia não paga muito bem a seus funcionários. — Seu marido costumava fazer auditorias para a Indústria Química Springfield? — Não. Kramer e Wright é que fazem a auditoria deles, há anos. Creio que Armim poderia ter conseguido essa conta, se quisesse. Mas ele já tinha todo o serviço de que um homem podia cuidar sozinho. — Quer dizer que ele estava indo bem nos negócios? — Muito bem. — Sei que é uma pergunta desagradável, Sra. Robinson, mas não posso deixar de fazê-la: alguém sai lucrando com a morte de seu marido? — Não, a menos que leve em consideração com o que vou ficar. Há um seguro de vida de 10 mil dólares e esta casa não tem qualquer ônus. Mas também não tínhamos quase economias. Compramos a casa há um ano e gastamos as economias para reformá-la. E o negócio de Armin não pode ser vendido. Não há nada para vender, pois a única coisa que ele tinha a oferecer era o seu serviço como auditor. — Sendo assim, Sra. Robinson, eu não diria que saiu lucrando. Dez mil dólares de seguro não compensam a perda de dez mil dólares de rendimentos anuais. — Nem a perda de um marido, Sr. Hearn. Teria sido uma frase banal, só que parecia sincera. E me fez lembrar que desejava sair logo daquela casa. Assim, apressei-me a interrogá-la, 15


um tanto constrangido, sobre a noite de sexta-feira. — Seu marido tinha planejado de antemão visitar Max Easter? Alguém sabia que ele iria até lá? — Não, exceto Louise e eu. E só soubemos pouco antes. Vou contar-lhe o que aconteceu. Louise e eu tínhamos combinado ir ao cinema antes do acidente com Max na fábrica. Por volta das seis e meia, quando Armin e eu estávamos começando a jantar, Louise telefonou. Disse que achava melhor não deixar Max em casa sozinho, pois ele estava bastante deprimido. Armin estava-me ouvindo falar e imaginou do que se tratava. Pegou o telefone e conversou com Louise, dizendo-lhe que poderia ir ao cinema despreocupada, pois iria fazer companhia a Max. — A que horas seu marido saiu de casa? — Por volta das sete horas. Ia de ônibus e queria chegar lá em torno das sete e meia, a fim de que Louise tivesse tempo para chegar na hora marcada ao nosso encontro. Combinou que eu fosse buscá-lo com o carro depois do filme. — E ele chegou à casa dos Easters às sete e meia? — Chegou. Ou pelo menos foi o que Louise disse. Armin subiu imediatamente para o quarto de Max e ela partiu cerca de dez minutos depois, de carro. Nós duas fomos de carro. — Seu marido teve alguma atitude estranha ou fora do normal na noite de sexta-feira, antes de partir para a casa dos Easters? Ou nos últimos dias antes de sua morte? — Há uns dois ou três dias que Armin vinha-se mostrando taciturno e preocupado. Perguntei-lhe diversas vezes o que o estava preocupando, mas Armin insistiu que não havia nada. Tentei aprofundar-me nessa informação, mas não consegui descobrir se a Sra. Robinson tinha pelo menos um palpite sobre o que estava preocupando seu marido. A única coisa que ela me disse foi que não eram problemas financeiros. Não insisti e disse-lhe que talvez precisasse voltar a procurá-la, para uma nova conversa. Ela se mostrou simpática e disse que compreendia. Sentei no carro e fiquei pensando. Os álibis das duas esposas pareciam realmente sólidos. Nenhuma das duas poderia estar no cinema às oito horas e ter matado Armin Robinson. Mas como não queria deixar de verificar coisa alguma, fui procurar as duas mulheres com quem Louise Easter e a Sra. Robinson haviam-se encontrado no cinema. Conversei com 16


ambas e não mais tive qualquer dúvida sobre os álibis. Fui em seguida até à Indústria Química Springfield. Não imaginava que o acidente sofrido por Max Easter, que lhe causara a cegueira, podia ter alguma relação com o assassinato de Armin Robinson. Mas queria eliminar esse ângulo de vez, antes de ir falar com os Easters. A companhia devia ter uma administração bastante eficiente, pois os escritórios eram relativamente pequenos, para uma fábrica com mais de cem operários. Pedi à recepcionista, que trabalhava também numa máquina de escrever e numa mesa telefônica à sua frente, para falar com o Sr. Lloyd Eldred. Ela ligou imediatamente para Eldred e depois encaminhou-me à sala dele. Entrei. Havia duas escrivaninhas na sala, mas apenas uma estava ocupada. Um homem alto, esguio, de aparência quase efeminada, com cabelos crespos pretos, fitou-me da mesa ocupada e disse: — Pois não? — O tom de sua voz parecia dizer: “Espero que não se demore muito, pois estou bastante ocupado.” E a julgar pelos papéis sobre a mesa, estava mesmo. — Sou George Heam, Sr. Eldred. Da Divisão de Homicídios. Sentei na cadeira diante da escrivaninha. Ele passou os dedos pelos cabelos, nervosamente. — Suponho que veio falar também sobre Armin Robinson. Admiti o fato. — Acho que não tenho mais nada a dizer, além do que já contei. Mas Armin era amigo meu e se houver alguma coisa ... — Ele era um amigo íntimo, Sr. Eldred? — Não exatamente. Nós nos encontrávamos pelo menos uma vez por semana, num grupo de bridge, que se reunia cada vez na casa de um. Éramos quatro casais: os Easters, os Anthonys, os Robinsons, minha esposa e eu. — A Sra. Robinson já me tinha contado isso. Estão pensando em manter o grupo? — Não sei. Talvez encontremos outro casal. Mas, de qualquer forma, nada faremos enquanto Max Easter não recuperar a visão. Neste momento, há dois casais que não podem participar. Ou melhor, três, já que os Anthonys estão na Flórida. — Acha mesmo que Max Easter vai recuperar a visão? 17


— Não vejo por que não. O médico diz que ... Para falar a verdade, o médico está um pouco surpreso por Max ainda não ter recuperado a visão. Nós lhe fornecemos uma amostra do ácido e ele garantiu que não poderia causar uma lesão permanente aos olhos. Lloyd Eldred passou novamente a mão pelos cabelos. — Espero ... quanto menos não seja por motivos egoístas... que Max fique bom o mais depressa possível. Estou assoberbado de trabalho, tendo que fazer o meu serviço e o dele. — A companhia não pode contratar outro homem, provisoriamente? — Pode, sim. E creio que o faria, se eu pedisse. Para dizer a verdade, chegamos a discutir o assunto. Mas o problema — é que alguém de fora levaria semanas para compreender direito todo o serviço, de forma a poder ser mais uma ajuda do que um estorvo. E o médico diz que Max deverá ter condições de voltar ao trabalho dentro de uma semana. Seja como for, a situação não será tão desesperadora depois de amanhã, quarta-feira. — Como assim? — E que na quarta-feira faremos o pagamento quinzenal dos empregados. Era a principal função de Max, cuidar da folha de pagamento. Estou tomando as providências necessárias agora, além de fazer o meu próprio serviço. É por isso que estou tão assoberbado. Mas se Max ainda não puder voltar para a próxima quinzena, teremos que tomar outras providências. Não posso trabalhar 12 horas por dia indefinidamente. Assenti. Aparentemente, ele estava mesmo ocupado e apreciei a maneira como o disse, diplomaticamente, ao invés de pedir que me apressasse e acabasse logo com a conversa. Fiz a pergunta de rotina a respeito de Armin Robinson. Ele conhecia alguém que pudesse desejar a morte de Robinson? A resposta de Lloyd Eldred foi um não categórico. Perguntei se ele tinha alguma idéia do que podia estar preocupando Robinson, nos dias que antecederam sua morte. A resposta também foi um não categórico. Eldred não notara coisa alguma diferente em Robinson, na última vez em que se haviam encontrado, para jogarem bridge. Passei rapidamente para outro assunto. — Pode contar-me como foi o acidente com Max Easter? — Max pode contar-lhe melhor do que qualquer outra pessoa, pois 18


estava sozinho quando aconteceu. Tudo o que sei é que ele estava dentro da fábrica, recolhendo os cartões de ponto, no horário do almoço. Max sempre almoça mais tarde, a fim de poder fazer esse serviço enquanto os homens não estão dentro da fábrica. Dessa maneira, ele pode percorrer a fábrica inteira em apenas uma hora. Com os homens trabalhando, levaria pelo menos duas horas. — Mas ele não lhe contou como aconteceu? — Claro que contou. Max estava ao lado de uma das cubas onde fazemos as misturas químicas. Havia atrás uma prateleira, onde o operário que ali trabalha sempre deixava seu cartão de ponto. Ao pegar o cartão de ponto, Max derrubou um vasilhame dentro da cuba. Não era fácil estender a mão por cima da cuba para pegar alguma coisa na prateleira, especialmente porque esta ficava na altura dos olhos. Mas já tratamos de corrigir esse defeito. — O ácido que o cegou estava no vasilhame ou na cuba? — Na cuba. O vasilhame, ao cair, espirrou o ácido em cima de Max. — Ele sofreu mais algum ferimento, além da lesão nos olhos? — Não. Só o terno é que ficou estragado. Provavelmente nunca mais poderá usá-lo. Mas o ácido não era suficientemente forte para afetar a pele. — A companhia assumiu a responsabilidade pelo acidente? — Claro. Max continua a receber seu salário integral e estamos pagando todas as despesas médicas. — E se a lesão nos olhos for permanente? — Não será. O médico que está tratando de Max já nos garantiu que isso não acontecerá. Ele acha até que a cegueira talvez seja de natureza histérica. Já ouviu falar nisso, não é mesmo? — Já, sim. Mas para que tal aconteça, é preciso que haja uma causa psíquica profundamente arraigada. Seria esse o caso de Max? Tive a impressão de que Eldred hesitou ligeiramente, antes de responder: — Ao que eu saiba, não. Fiz uma pausa; procurando pensar em mais alguma pergunta. Nada me ocorreu. Pela maneira como Eldred me olhava, calculei que estava espantado por eu ter feito tantas perguntas a respeito de Max e do acidente. Eu também estava espantado, pois não sabia por que o fizera. Olhei novamente para as pilhas de papéis em cima da mesa dele, agradeci sua 19


atenção e retirei-me. Já era quase meio-dia. Estava a apenas dez minutos de carro de casa e decidi ir almoçar com Marge. Costumo de vez em quando ir almoçar em casa, dependendo da parte da cidade em que me encontre, quando chega a hora do almoço. Marge tem sempre algo preparado para cozinhar rapidamente, se eu por acaso aparecer. IV — Estou dentro! — gritei para Marge, assim que cheguei. Marge sabia do que se tratava. Não precisei dar explicações. Enquanto almoçávamos, contei o pouco que descobrira e não fora noticiado pelos jornais. — Assim sendo, Marge, não era num gato pardo que Max Easter estava atirando no escuro, mas sim num galo de pijama de seda. Pela primeira vez, você errou num pressentimento. E teve também outro palpite errado. Easter está realmente cego. — Aposto um centavo como não está. — Vou querer receber esse centavo. — Se ganhar a aposta, pagarei. Não vou apostar no gato pardo, mas não é uma noção tão absurda quanto a do Capitão Eberhart de um galo com pijama de seda. Ou a sua teoria da fita de seda no chapéu, com uma pena. — Se era mesmo um gato pardo, Marge, o tiro deve ter acabado com o bicho. O que aconteceu com o corpo? — O assassino levou-o dentro da valise que tirou do armário. Levantei as mãos para o céu, desesperado. Seja como for, Marge estava realmente falando sério ao insistir que Max Easter não estava cego. E quando Marge tem um pressentimento assim, eu nunca o desprezo. E procuro pelo menos averiguar. Antes de sair de casa, telefonei para o Capitão Eberhart e consegui o nome e endereço do médico que estava cuidando dos olhos de Max Easter. Fui procurá-lo imediatamente e tive sorte de encontrá-lo no consultório. Depois de identificar-me e explicar o que desejava, perguntei-lhe: — Examinou o Sr. Easter logo depois do acidente? — Creio que cheguei na fábrica 20 minutos depois de receber o chamado. E pelo que me disseram, telefonaram imediatamente. 20


— Notou algo de estranho nos olhos dele? — Claro que sim. Estavam afetados pelo ácido brando que espirrara neles. Mas isso já era de se esperar. Creio que não entendi muito bem sua pergunta. Eu próprio não tinha certeza se entendia. Estava procurando descobrir alguma coisa, mas não sabia o que era. — O Sr. Easter estava sofrendo uma dor muito forte? — Dor? Oh, não. O ácido tetriânico causa a cegueira temporária, mas sem dor. Não é mais doloroso que o ácido bórico. — Pode descrever-me os efeitos, Doutor? — Dilata as pupilas, assim como a beladona. Em última análise, é inofensivo. Mas além da dilatação das pupilas, que é uma reação imediata, causa também uma paralisia temporária dos nervos ópticos, com a conseqüente cegueira temporária. Normalmente a duração dessa cegueira é de duas a oito horas, dependendo da intensidade da solução. — E qual era a intensidade no caso? — Podemos dizer que era média. O Sr. Easter devia ter recuperado completamente a visão num período de seis horas. — Mas tal não aconteceu. — Tem razão. E ele ainda não recuperou a visão até agora. O que nos leva a duas conclusões possíveis. A primeira, é a de que ele tem uma reação anormal à substância. Neste caso, é apenas uma questão de tempo antes que ele recupere a visão. A outra possibilidade é a de cegueira histérica, provocada por auto-sugestão. Tenho quase certeza de que não é o caso do Sr. Easter. Contudo, se a cegueira persistir por mais uma semana, recomendarei um psiquiatra. — Não há uma terceira possibilidade, Doutor? A de simulação? Ele sorriu. — Não se esqueça, Sr. Hearn, de que sou contratado pela companhia e procuro defender os interesses de meus empregadores. O Sr. Easter não poderia simular a dilatação das pupilas, que ainda persiste. Pode estar certo de que ele não está fingindo a cegueira, pois há alguns testes para se comprovar isso. E também estou quase que absolutamente convencido, como já disse, que a cegueira não é histérica. Tiro tal conclusão da persistência da dilatação das pupilas. A histeria poderia apenas provocar a persistência da paralisia dos nervos ópticos. — Quando o examinou pela última vez? 21


— Ontem de tarde, por volta das quatro horas. Venho visitando o Sr. Easter diariamente. Agradeci e fui embora. Tudo indicava que Marge se enganara em seu pressentimento. O que me fizera protelar a visita aos Easters. Fui até lá imediatamente. Toquei a campainha. Uma mulher abriu a porta. Era Louise Easter. Identifiquei-me e ela convidou-me a entrar. Era uma mulher atraente, mesmo num vestidinho caseiro. Seria interessante examiná-la para descobrir se tinha algum arranhão de bala. Mas não tinha por que fazê-lo, já que seu álibi era incontestável. Além disso, havia Marge. Louise Easter disse-me que o marido ainda estava na cama, no quarto lá em cima. Eu não queria subir? Disse que sim, mas gostaria antes que ela me mostrasse a parte de baixo da casa. E ela mostrou-me tudo, a gaveta da escrivaninha de onde fora tirado o revólver, o armário onde estava guardada a prataria, a prateleira na cozinha de onde tinham desaparecido as luvas. — Eram as únicas coisas que tinham desaparecido? — Eram, sim. Isto é, das que estavam aqui embaixo. Ele levou também a carteira e o relógio de Max, que estavam em cima da cômoda, no quarto. Havia cerca de 20 dólares na carteira, o único dinheiro que tinha em casa naquela ocasião. E ele levou ainda a valise. — A valise era muito grande? Louise Easter abriu os braços para mostrar-me. A valise tinha cerca de 60 centímetros de comprimento por 30 de altura e 15 de largura: Era maior do que o assassino precisaria para as coisas que carregara. Mas talvez ele tivesse levado algo mais. Pedi-lhe que me contasse tudo o que acontecera naquela noite, a partir do momento em que telefonara para a Sra. Robinson, a fim de cancelar a ida ao cinema. — Creio que telefonei por volta das seis e meia. Tinha acabado de servir o jantar de Max, mas ainda não havia lavado a louça. Achei que era melhor não deixar Max sozinho. Mas Armin insistiu que eu fosse ao cinema, pois viria fazer companhia a Max. Armin chegou logo depois que acabei de lavar a louça e vesti-me. Deviam ser umas sete e meia. Como eu não precisava sair imediatamente para chegar na hora que havia marcado no cinema, oito horas, fiquei conversando com os dois, no quarto de Max, por cinco ou dez minutos. Devo ter saído pelo menos vinte minutos antes das oito horas, porque cheguei ao cinema um ou dois minutos antes de 22


Ianthe ... a Sra. Robinson. Ela chegou pontualmente às oito horas. — Trancou a porta da frente ao sair? — Não. Decidi que era melhor não fazê-lo, porque se trata de uma fechadura de mola. Teria que fechá-la pelo lado de fora, levando a chave. Não havia sentido em trancar Max e Armin dentro de casa, já que a porta dos fundos também estava trancada. — Acha que o assassino entrou logo depois de sua saída? — Só pode ter sido, a menos que ele estivesse escondido no porão. Não podia estar lá em cima, pois só há dois quartos, o corredor e o banheiro. E estive em toda parte, antes de sair. E também não podia estar aqui embaixo, pois, ao descer, esqueci-me onde deixara a bolsa e fui procurá-la. Encontrei-a na cozinha, depois de ter dado uma olhada em toda parte. — E como estão os olhos de seu marido? Já houve alguma melhoria? Ela meneou a cabeça. — Infelizmente, ainda não. E estou começando a ficar muito preocupada, apesar do qüe o médico diz. Não houve qualquer melhoria pelo menos até esta manhã. — Até esta manhã? — Foi quando mudei a bandagem e lavei os olhos de Max. Terei que fazê-lo novamente dentro de uma hora. Será que sua conversa com Max vai demorar mais do que isso? — Creio que não. Mas, sendo assim, é melhor começá-la logo de uma vez. Subimos. A porta de um dos quartos estava entreaberta, exatamente como devia ter acontecido na noite de sexta-feira. Pude ver Max Easter, sentado na cama, com uma atadura nos olhos. Exatamente como o assassino devia tê-lo visto, ao subir a escada, logo depois da saída de Louise Easter. Parei na porta, exatamente como o assassino devia ter feito, para atirar e matar Armin Robinson, antes de adiantar-se e jogar o revólver em cima da cama. Louise Easter entrou no quarto a minha frente e disse: — Max, esse é o Sr. Heam, da Divisão de Homicídios. Ouvi a apresentação, mas não estava pensando nisso naquele momento. Contemplava o quarto, vendo a cadeira em que Armin Robinson 23


devia estar sentado, ao lado da cama, vendo o buraco na parede acima e atrás da cadeira, na altura do lugar em que devia estar a cabeça de Robinson. Virei-me e olhei para o lugar de onde fora tirada a outra bala. Ficava a cerca de meio metro do chão e a um metro e meio da porta. A bala que Max Easter disparara ... A bala que tinha vestígios de sangue, seda e penas. Não sangue, suor e lágrimas... mas sangue, seda e penas. Visualizei a linha de tiro, com Max sentado na cama e mirando para um ruído, abaixando o cano do revólver ao ouvir o joelho do assassino batendo no chão. Tentei visualizar o assassino parado em algum ponto da linha de fogo, agachando ou se ajoelhando ao ver o revólver ser apontado em sua direção. Mas Max Easter disse-me alguma coisa e tive que interromper o devaneio. Ele me convidava a sentar. — Obrigado — respondi. Sentei-me na mesma cadeira que Robinson ocupara. Olhei para a porta. Daquele ângulo, Robinson não poderia ter visto o alto da escada. Mesmo com a porta entreaberta, ele não poderia ver o assassino, até que este entrasse no quarto. Olhei para Max Easter e depois para a esposa dele. Tornei a correr os olhos pelo quarto. Percebi que há algum tempo não dizia coisa alguma. Max Easter devia estar aturdido, sem saber o que eu estava fazendo. — Estou apenas dando uma olhada no quarto, Sr. Easter, procurando imaginar exatamente como tudo aconteceu. Ele sorriu, debilmente. — Não há pressa. Tenho todo o tempo de que precisar a sua dispo-. sição. Louise, acho que vou levantar um pouco. Estou cansado de ficar na cama. Pode pegar meu roupão? — Claro, Max. Mas ... — Ela não continuou no protesto, interrompendo abruptamente o que quer que fosse dizer. Foi pegar o roupão do marido no armário e segurou-o, enquanto ele o vestia. Max Easter sentou-se em seguida na beira da cama e indagou: — Aceita uma cerveja, Sr. Hearn? Abri a boca para dizer que gostaria, mas nunca bebia quando estava de serviço. Mas compreendi subitamente antes de chegar a falar, que Louise é que teria de descer para buscar a cerveja. Era possível que Max Easter estivesse querendo dizer-me alguma coisa em particular. — Aceito, sim. Obrigado. 24


Mas descobri que estava enganado depois que Louise desceu para a cozinha. Aparentemente, Max Easter nada tinha a dizer-me. Ele levantou-se. — Acho que vou tentar andar sozinho um pouco, Sr. Hearn. Por favor, não me ajude. Louise teria insistido em ajudar, se estivesse aqui. Mas quero aprender a andar pela casa sozinho. Vou apenas atravessar o quarto até a outra cadeira. E ele pôs-se a andar sobre o tapete na direção do outro lado do quarto, quase que exatamente para o lugar em que o reboco fora lascado, a fim de extrair a segunda bala, a que o próprio Max Easter disparara. — É melhor eu começar a aprender de uma vez a andar sozinho, Sr. Heam. Afinal, pelo que posso saber... — Ele não concluiu a frase, mas eu sabia perfeitamente o que estava pensando. A mão dele tocou na parede, depois tateou à procura da cadeira. No lugar em que estava, não poderia encontrá-la. Assim sendo, dei a informação. — A cadeira está à sua direita, a dois passos de onde está. — Obrigado. Ele deslocou-se na direção indicada e sua mão encontrou o encosto da cadeira. Virou-se e sentou. Notei que sentou com força demais, como acontece quando se senta num assento mais baixo do que se imaginava. Como se uma almofada devesse estar naquela cadeira, embora não houvesse nenhuma. Não sou brilhante, mas também não sou um idiota completo. Almofada fez-me pensar em penas. Sangue, seda e penas. Uma almofada de seda na cadeira. Eu havia descoberto alguma coisa, embora não soubesse exatamente o que podia ser. Comecei a pensar. Achei que o sentido de orientação de Max Easter, ao se encaminhar para a cadeira, não fora tão ruim quanto parecera. Seguira direto para o lugar em que a bala se cravara na parede. E se a cadeira estava antes no lugar em que a procurara, com uma almofada de seda no assento, a bala teria perfurado a almofada. Não lhe perguntei se havia antes uma almofada de seda naquela cadeira. Tinha certeza disso. E fiquei um pouco assustado. Louise Easter estava começando a subir a escada. Ouvi seus passos se aproximarem. Ela surgiu na porta, com uma bandeja em que estavam 25


três copos e três garrafas de cerveja. Estendeu a bandeja para mim. Peguei um copo e uma garrafa. Mas naquele momento não estava pensando em cerveja. Pensava em sangue. Já sabia de onde tinham vindo os vestígios de seda e penas. Levantei-me e examinei o quarto. Não encontrei qualquer sinal de sangue. Mas descobri outra coisa que me pareceu muito estranha: a persiana era dupla, construída de um jeito como eu nunca vira antes. Fiquei ainda mais alarmado. Devo ter deixado transparecer, quando indaguei a respeito da persiana. Max explicou: — Mandei fazer essa persiana sob encomenda, Sr. Hearn. É que sou fotógrafo amador e costumo usar este quarto para revelar as fotos. Mandei também ajeitar a porta de forma a vedar completamente a entrada de luz. Então era possível que... — Max, quer fazer o favor de tirar essa bandagem? — Não percebi que o tinha tratado pelo primeiro nome. Larguei a garrafa e o copo, sem ter-me servido. Quando algo está para acontecer gosto de ficar com as mãos livres. Max Easter levantou a mão para a bandagem, indeciso. Louise Easter interveio: — Não faça isso, Max! O médico disse ... — Os olhos dela se encontraram com os meus. E ela compreendeu que não adiantava dizer coisa alguma. Max tirou a bandagem. Piscou os olhos, esfregou-os, hesitante. E disse: — Estou vendo! As coisas parecem um pouco enevoadas, mas estou começando a . .. A visão dele deve ter ficado então um pouco mais enevoada, porque seu olhar fixou-se na esposa. E ele realmente começou a ver. Procurei agir o mais depressa possível e com toda compaixão ... por Max Easter. Levei-a para a chefatura. E levei também o vidro que tinha o rótulo de Ácido Bórico, embora contivesse na verdade ácido tetriânico, que vinha mantendo a cegueira de Easter. Pegamos também Lloyd Eldred. Ele se recusou a falar, até que dois homens foram a sua casa com um mandado de busca. Encontraram a valise enterrada no quintal dos fundos. E Eldred então contou tudo. 26


V Encerrar um caso assim leva bastante tempo. Já eram quase oito horas quando cheguei em casa. Mas já tinha telefonado para Marge, pedindo que guardasse o jantar. Ainda me sentia trêmulo quando cheguei. Mas Marge falou que eu me sentiria melhor se contasse tudo e não me fiz de rogado. — Lloyd Eldred e Louise Easter estavam planejando fugir juntos. Além disso, Eldred tinha desviado algum dinheiro da Indústria Química Springfield. Ele diz que foram quatro mil dólares. Não podia repô-los, porque perdera tudo no jogo. E dentro de duas semanas começaria a auditoria anual na companhia. Assim, ele teria de fugir de qualquer maneira, mesmo sem Louise Easter. — Mas ele queria dinheiro para fugir, o suficiente para começar a vida em outro lugar. Há algum tempo que vinha emitindo vales falsos e despachando cheques para si mesmo, sob outros nomes. Precisava tirar Max do caminho. Além de cuidar da folha de pagamento, Max trabalhava na contabilidade geral da firma e inevitavelmente acabaria descobrindo a fraude. E na próxima quarta-feira, depois de amanhã, seria efetuado o pagamento quinzenal da companhia. O pagamento dos operários é efetuado em dinheiro e não em cheque. Com Max fora do caminho, Eldred poderia apropriar-se também desse dinheiro. Seria mais do que suficiente para fugir. “Assim, ele preparou uma pequena armadilha na prateleira sobre a cuba de ácido. Quando Max puxasse o cartão de ponto, iria fatalmente derrubar o vasilhame na cuba. Com isso, podia livrar-se temporariamente de Max. Mas não por muito tempo, se não contasse com a cooperação de Louise. Eldred pegou na fábrica uma solução de ácido tetriânico, entregando-a a Louise para passar nos olhos de Max Easter, ao invés do ácido bórico receitado pelo médico. Ela o fazia com o quarto imerso na mais completa escuridão. Não creio que baixasse a persiana secretamente. Devia simplesmente dizer ao marido que era assim que deveria ser. E sempre o fazia uma ou duas horas antes do médico chegar. Assim, quando ele tirava a bandagem para examinar os olhos de Max, descobria que continuavam no mesmo estado. Marge me fitou de olhos arregalados. — Com que então ele não estava mesmo cego! Mas eu só disse isso 27


porque . . . — Qualquer que tenha sido o motivo que a levou a dizer isso, Marge, a verdade é que acertou em cheio. Mas espere mais um pouco. Ainda não contei o resto da história. O assassinato não estava nos planos. Armin Robinson descobriu que Lloyd Eldred e Louise Easter estavam tendo um caso. Provavelmente viu-os em algum lugar. Seja como for, ele descobriu tudo. Não sabia, é claro, do desvio do dinheiro da companhia nem que os dois pretendiam fugir juntos. Mas sabia que Max estava sendo enganado pela esposa ... e Max era seu melhor amigo. Era isso que o vinha preocupando, sem saber se devia ou não contar a Max. “Tomou a decisão de contar tudo naquela noite, quando ficasse a sós com Max. Louise deve ter adivinhado, pela atitude de Armin ou pelo jeito com que ele falou, ao chegar. Ela disse que quase decidiu ficar em casa, faltando ao encontro marcado com a Sra. Robinson. Mas concluiu que isso nada evitaria e que era melhor ir, torcendo para que Max não acreditasse na história de Armin. “No momento em que ela ia sair, Lloyd Eldred apareceu. Tinha ido fazer uma visita a Max, levando um presente. Sabia que Max iria gostar do presente, algo que certamente o distrairia, enquanto estivesse cego, algo com que poderia brincar na cama ... Marge pressentiu o que era. E levou a mão à boca. — Está querendo dizer ... — Isso mesmo, Marge. Era um gatinho. Max é louco por gatos. E possuía um gato que fora morto uma semana antes, atropelado por um carro. Lloyd queria dar de presente a Max algo que ele pudesse apreciar mesmo sem ver. Não podia levar um livro ou algo parecido. E não se dá flores a um homem. O gatinho era a solução. — De que cor era o gato, George? — Louise recebeu Eldred na porta e informou que Max estava conversando com Armin. Revelou o seu receio de que Armin pudesse denunciá-los. Eldred disse que seguisse para o cinema, que cuidaria de tudo. Só não explicou como o faria. “Louise partiu e Eldred entrou na casa. Estava muito mais preocupado do que Louise. Sabia que se viesse à tona a história de seu caso amoroso com Louise, provavelmente haveria a maior confusão e acabariam descobrindo o desvio de dinheiro da companhia. Todos os seus planos iriam por água abaixo e teria que fugir sem o dinheiro do pagamento. 28


“Meteu o gatinho no bolso e foi pegar o revólver de Max, pois sabia onde estava guardado. Viu as luvas de algodão na cozinha e tratou de pô-las. Subiu a escada na ponta dos pés e ficou parado do lado de fora, escutando. E quando ouviu Armin Robinson dizer “Max, há uma coisa que detesto ter de contar... “, entrou imediatamente no quarto. Armin levantou-se e Eldred alvejou-o no mesmo instante. Armin não teve tempo de dizer o nome dele, pois então teria que matar Max também. — Mas por que ele jogou o revólver na cama? — Não queria levá-lo. E sua primeira idéia foi simplesmente a de confundir a polícia, deixando o revólver lá. Pretendia deixar o gatinho também, pois ninguém poderia descobrir que fora ele quem o trouxera. Não era um crime premeditado. Eldred foi improvisando tudo, à medida que as coisas aconteciam. “Aproximou-se da cama e jogou a arma em cima. Depois, tirou o gatinho do bolso e já ia jogá-lo também em cima da cama. Foi então que percebeu que Max conseguira pegar o revólver e apontava-o em sua direção, de uma distância de menos de dois metros. Caiu de joelhos, para se esquivar ao tiro, no instante em que Max puxou o gatilho. A bala matou o gato e foi cravar-se na parede, depois de ter atravessado uma almofada de seda sobre o assento de uma cadeira. “Max largou o revólver, que caiu no chão, fora do alcance dele. Eldred decidiu que o melhor era procurar dar a impressão de que fora um assalto. Pegou as carteiras e o relógio, tirou uma valise do armário. Para dar a impressão de que fora um assalto, não poderia deixar o gatinho. Afinal, não existe assaltante que leve um gato consigo para a casa assaltada. A caminho do armário, deixou o gato em cima da almofada, a mesma que a bala perfurara, a fim de ficar com as mãos livres. Pôs o corpo do animal e a almofada dentro da valise, já que estava manchada de sangue. “Max ficou imóvel durante todo esse tempo. Eldred sabia que Max não se atreveria a fazer qualquer movimento, enquanto não ouvisse a porta da frente ser fechada. Assim, podia demorar o tempo que precisasse. Desceu e pegou a prataria e mais alguns objetos. E foi embora. Ponto final. — George, de que cor era o gato? — Não acredito em intuição ou clarividência, Marge. Nem tampouco em coincidência. Ou pelo menos uma coincidência tão grande assim. É por isso que nunca lhe vou dizer a cor do gato. 29


MIRAGEM DO DESERTO Robert Colby Scott Bender impelia o pequeno sedã cinza através do Deserto de Mojave, a 120 quilômetros horários, segurando o volante com uma só mão. Bocejou e cerrou os olhos para contemplar o sol poente, até que finalmente desaparecesse por trás de uma montanha distante. Scott estava cansado, do terreno plano, do calor escaldante, da estrada estreita e reta, do vento incessante, do zumbido do motor. Esgotado pelas longas horas a guiar pelo deserto, sabia que era preciso um esforço imenso até mesmo para falar com seu companheiro, Doyle Lindsey, afundado no assento, a seu lado, fumando com uma expressão carrancuda, os pés só de meias apoiados no painel. Ambos tinham trinta e poucos anos. Scott Bender era o mais baixo, atarracado, de maneiras ilusoriamente afáveis, feições suaves e simpáticas, cabelos louros ondulados. Doyle Lindsey era alto e de cabelos pretos, eternamente magro. Tinha um rosto comprido e encovado, os olhos pretos sempre mal-humorados. Ao partirem de Phoenix, Doyle estava bastante animado. Mas agora, assim como acontecera com Scott, era apenas uma vítima do calor escaldante e da monotonia insuportável da viagem. — Deveríamos ter trocado este calhambeque por um carro novo — comentou Scott, quando o silêncio entre os dois já ameaçava eternizar-se, elevando a voz acima do barulho do vento e do motor. — Um carro com30


prido e confortável, com ar-condicionado ... Doyle soprou uma baforada do cigarro e olhou para a estrada. Aparentemente não tinha ouvido ou não estava com vontade de responder. Mas algum tempo depois, ele também falou, incisivamente: — Está errado, Scott. Não deveríamos trocar este calhambeque por um carro novo e com ar-condicionado. — E por que não? Afinal, temos dinheiro suficiente para comprar o melhor carro, não é mesmo? — Não é esse o problema — explicou Doyle, inclinando a cabeça para fitar Scott. - É que dois caras que mal conseguiam ganhar dez mil dólares por ano não podem de repente deixar a cidade num carro luxuoso, sem provocar suspeitas. Scott assentiu. — Mas vamos ter que pagar os olhos da cara para comprar um carro americano novo no México. Talvez nos cobrem até o dobro. — Quando chegar o momento, Scott, podemos pegar um avião até San Diego e comprar o carro lá. Scott e Doyle haviam informado aos amigos e colegas de trabalho que entrariam no México através de Juarez, numa viagem de turismo. Mas pensando numa descoberta súbita do que tinham feito e na conseqüente perseguição, haviam secretamente alterado os planos, seguindo para Oeste, através da Califórnia, a fim de cruzarem a fronteira em Tijuana. — Não devemos ter pressa nenhuma em gastar a grana, Scott. Além do mais, ainda nem dividimos. — Pois podemos dividir agora mesmo — disse Scott, sorrindo. No crepúsculo, a estrada parecia estender-se até o infinito, sem nenhuma curva. A paisagem árida e desolada estendia-se até as montanhas muito distantes, dos dois lados. A monotonia da vista era quebrada apenas por alguns sobreviventes mais resistentes, umas poucas iúcas e cactos, um que outro arbusto. — Temos gasolina suficiente, Scott? — Mais de meio tanque. — Ótimo. Sou capaz de apostar que ainda temos mais de 50 quilômetros de nada, antes do próximo posto. — Talvez fossse assim antigamente, mas agora já não é mais. Scott apontou para um imenso cartaz que dominava todo o lado 31


direito da estrada, à frente deles, pondo-se a ler em voz alta: “Pare! A cinco quilômetros daqui! MOTEL MIRAGEM DO DESERTO (bom demais para ser verdade). Quartos luxuosos e refrigerados; comida de primeira; seu drinque predileto servido no deslumbrante Salão dos Sonhos. Posto de gasolina e oficina.” Doyle resmungou: — Essa não! Foram construir um motel bem no meio deste maldito deserto! Scott soltou uma risada. — Eles são capazes de fazer qualquer coisa, em qualquer lugar, desde que dê algum dinheiro. — Se tiver uma boa cara, Scott, vamos fazer uma parada. Estou exausto e confesso que me sinto atraído pela perspectiva do drinque predileto. — Pois sou a favor de continuarmos até a fronteira, nem que tenhamos de viajar a noite inteira. — Não entendo você, Scott. Permanecemos em Phoenix durante duas semanas, suando frio, enquanto os tiras vasculhavam a cidade à procura de uma pista. E agora, de repente, sem motivo algum, você começa a ficar nervoso. — Está bem, está bem . . . Vamos dar uma olhada. Mas não deve ser grande coisa, um motel no meio deste deserto. — Nunca esteve em Las Vegas, Scott? A cidade foi construída também no meio de um deserto ermo como este. O Motel Miragem do Deserto era uma construção baixa e ampla, num estilo oriental modernizado, o telhado pintado de verde-jade, com algumas manchas avermelhadas. Erguia-se incongruentemente no meio do deserto árido, tão surpreendente e irreal quanto uma mansão à deriva em pleno oceano. — Ainda não estou acreditando que exista mesmo, mas vale a pena tentar — murmurou Doyle. — Vamos depressa, antes que suma. Scott diminuiu a velocidade e entrou no desvio para o motel, margeado por palmeiras reais. O saguão era imenso, refrigerado e enfeitado com bom gosto por ladrilhos que lembravam o Extremo Oriente. Mais além havia um restaurante e o Salão dos Sonhos. Aproximaram-se do bar e ficaram parados à entrada, espiando. Era um bar de aparência exótica, imerso numa semi-escuridão, 32


com um balcão em forma de ferradura e reservados semicirculares, de veludo vermelho. Estava repleto, quase que com a capacidade máxima, com viajantes nos trajes mais diversos, bebendo satisfeitos. Num dos lados do balcão, de frente para a entrada, estavam duas morenas atraentes, contemplando o salão. Uma delas exibiu um fragmento de sorriso quando seu olhar inquisitivo pousou nos dois homens que estavam parados na entrada. Ela cutucou a companheira. E as duas fitaram abertamente os dois homens. — Elas estão fisgadas — comentou Scott, pelo canto da boca. — Vamos até lá agora? — Ficou maluco, Scott? Com metade do Tesouro Nacional no carro temos que nos registrar primeiro e guardar tudo, antes de podermos vestir-nos. Na recepção, um casal estava-se registrando, atendido por um funcionário. Parado atrás dele, consultando o que parecia ser uma relação dos quartos, estava um homem elegante, em torno dos 40 anos, impecavelmente vestido num terno bege, camisa branca e gravata preta. Vendo Lindsey e Scott, fez sinal para que se aproximassem. — Desejam um quarto, cavalheiros? O sorriso era cordial, num rosto fino, de queixo saliente, encimado por cabelos vermelhos, também impecavelmente penteados. — Queremos, sim — disse Doyle — Pois estão com sorte. Tenho dois quartos que acabaram de vagar. Desejam ficar com ambos? Ou preferem partilhar o mesmo quarto? — Queremos um quarto só, com duas camas — respondeu Doyle. — Está certo. — O homem de cabelos vermelhos estendeu-lhe uma caneta e um cartão de registro. Doyle preencheu, escrevendo um único endereço anterior para ambos, em Phoenix. — Tem um motel e tanto aqui — comentou Scott. — Deve ser novo, hem? — É, sim. Inaugurei-o há exatamente oito meses e seis dias. — Quer dizer que é o proprietário? — Isso mesmo. E é com prazer que o digo. Projetei pessoalmente este lugar, ajudei a construí-lo. Scott sorriu. — E bem no meio do deserto, numa terra de ninguém! Não entendo como consegue operar tão longe da civilização. 33


— Tive alguns problemas no início. Mas agora já somos inteiramente auto-suficientes. Temos um abastecimento de água própria, geramos a nossa energia. — É mesmo? Uma coisa tenho de reconhecer, que é uma verdadeira miragem para quem está atravessando o deserto, Sr. ... — Kittredge. Vern Kittredge. E basta avisarem se precisarem de alguma coisa. — Virou-se e pegou a chave do quarto, colocando-a no balcão. Doyle, que ficara escutando a conversa num silêncio desaprovador, pegou a chave e meteu-a no bolso. — Quanto lhe devemos, Sr. Kittredge? — Vinte e sete dólares e meio, já com as taxas incluídas — informou Kittredge, a voz sempre suave. Doyle tirou a carteira do bolso e contou o dinheiro. — Vão ficar no 248 — disse Kittredge. — Fica do lado direito, no meio do corredor. — Até já, Sr. Kittredge — disse Scott. Os dois se encaminharam para o estacionamento, onde haviam deixado o carro. Observando-os se afastarem, Kittredge meneou a cabeça e comentou com o recepcionista: — Todos eles fazem a mesma pergunta: Como foi construir um motel bem no meio do deserto? Acho que vou escrever um folheto sobre isso, o que me pouparia pelo menos um milhão de palavras extras por mês. — Fez uma breve pausa, antes de acrescentar: — Já vou subir para a cobertura, Frank. Denise deve estar com o jantar pronto. Não pretendo descer mais esta noite. Isto é, a menos que precise de mim. — Restando apenas um quarto para alugar, não creio que eu vá precisar de ajuda — disse Frank. E Kittredge partiu para seu apartamento de cobertura. No quarto 248, Doyle Lindsey estava pendurando dois ternos no armário espaçoso, num quarto de tapetes macios e móveis maciços, decorado com extremo bom gosto. Um ar frio e agradável saía pelo aparelho de ar-condicionado. — Acho melhor evitar qualquer conversa com gente como Kittredge — disse Doyle a Scott, por cima do ombro, falando como se fosse uma ordem. — Por quê? 34


Doyle atravessou o quarto até a mala grande e começou a pegar peças de roupas e levar para a cômoda. — Porque não queremos atrair qualquer atenção especial e não nos interessa estabelecer falsas amizades, especialmente com pessoas que sabem julgar os outros a um simples olhar. Para gente assim, temos que ser apenas duas sombras, anônimas, sem rosto. Ora somos vistos, ora não. E nunca ninguém se lembra de coisa alguma a nosso respeito. — Está bem, está bem... Tem toda razão, Doyle. Mas é que sou sociável por natureza. — Exatamente — disse Doyle, acendendo um cigarro. — você é sociável demais e, às vezes, não é muito inteligente. Mas pelo menos sabe acatar um argumento. — Obrigado. — De nada. — Não exagere, Doyle. Não gosto de sentir ninguém a me espicaçar. Doyle ignorou-o e pôs-se a fechar a mala grande, embora ainda contivesse algumas roupas e um livro encadernado de tamanho considerável. — Tire o resto das roupas e vamos dar uma olhada na grana — pediu Scott. — Não seja criança. Basta ver uma vez para se saber como é. — Não se esqueça de que a metade é minha. Doyle deu de ombros e tirou do bolso uma chave de parafusos pequena. Pôs em cima da cama o que ainda restava dentro da mala e começou a desaparafusar o fundo da mala fabricada sob encomenda. Ao tirar o último parafuso, deixou à mostra uma faixa de couro, na qual havia, um zíper. Puxou-o rapidamente, erguendo o fundo falso da mala. E lá estava um imenso jardim de notas verdes de dólar, impecavelmente arrumadas, em maços, a maioria de valor mais alto. Scott pegou um maço de notas de cem dólares, com um sorriso de felicidade. — É dinheiro que não acaba mais ... — murmurou. — Nada menos de 160 mil dólares para a gente se divertir. Doyle também sorriu, embora um pouco mais comedido. — Nada mau para uma dupla de amadores. — Tem toda razão. Conseguimos pegar todo o dinheiro do pagamento da fábrica. Tenho que reconhecer que você tem uma cabeça e tanto para planejar um assalto, Doyle. 35


— A execução foi simplesmente uma questão mecânica, Scott. O que realmente importa foram os preparativos e a encenação. Não deixamos o emprego no mesmo instante e desaparecemos, como os outros fariam. Conseguimos enganá-los direitinho, dando a impressão de que éramos apenas dois pobres-diabos que economizaram durante anos para poderem conhecer um pouco do mundo, começando por uma viagem econômica pelo México. Assim, todos já estavam preparados para nossa partida. Mesmo depois do assalto, ainda continuamos a trabalhar por mais duas semanas, até terminar o aviso prévio que demos. E agora já podemos sumir. Varro-nos perder em algum lugar e seremos completamente esquecidos. — A menos que a polícia descubra alguma pista. — Isso jamais acontecerá, Scott. Demos duas semanas de oportunidade aos tiras, continuando a trabalhar direitinho. E eles de nada suspeitaram, nem chegaram perto de nós. — Tem razão, Doyle. Estamos inteiramente a salvo. Scott tornou a colocar o maço de notas na mala. Doyle ajeitou o fundo falso, tornou a pôr suas coisas dentro da mala e depois guardou-a no armário. E esfregando as mãos de contentamento, disse para Scott: — E agora vamo-nos preparar rapidamente. E depois desceremos para uma conversa fácil com aquelas duas garotas de olhos brilhando que estão a nossa espera lá no bar. No 254, o último quarto disponível do Miragem do Deserto, foi instalada mais uma cama, a fim de acomodar os três homens de meia-idade que tinham acabado de se registrar. Gelo e bebidas foram levados também para o quarto. E agora os três estavam confortavelmente sentados, tomando bourbon. Eram Charlie Sachs, proprietário de um pequeno stud de cavalos de corrida, Max Hardman, seu tratador, e Sid Lerner, advogado espertalhão e amigo pessoal de Sachs. Um homem gordo, de rosto jovial, Charlie soltou uma risada, sem tirar o charuto da boca. — Quem é que vai dormir na cama de vento? — Você parece talhado para isso, Charlie — disse Sid Lerner, enquanto Max Hardman permanecia impassível, como sempre. — Vamos tirar a sorte — propôs Charlie. 36


As moedas foram jogadas para o alto e Sid acabou perdendo. Aceitou o azar bem-humorado. No final das contas, era o mais magro dos três. Um momento depois, o advogado disse: — Gostaria de saber mais alguma coisa sobre o golpe, Charlie. Tudo o que sei sobre corridas de cavalos cabe perfeitamente num dedal e ainda sobra espaço. Pelo que falaram, calculo que está tudo arrumado para Bold Blackie vencer, a não ser que quebre a perna. É isso mesmo? Charlie fungou, mastigando o charuto impacientemente, e lançou um olhar suplicante para seu tratador. Max Hardman procurou explicar direito: — Sid, os tempos das corridas combinadas, no sentido clássico, já acabaram. Aqueles cavalos que corriam cheios de estimulantes químicos desapareceram juntamente com as polainas. Não se pode mais dopar um cavalo, pois ele será submetido a exames depois do páreo. As coisas não funcionam assim. O esquema é muito mais sutil, difícil de provar e praticamente legal. — Pois então explique como se faz atualmente. — Está bem. Há três outros cavalos naquele páreo de sexta-feira que podem vencer Bold Blackie sem maiores dificuldades. O público irá apostar forte nesses três. Blackie deverá estar cotado a oito-por-um na manhã da corrida e a cotação deve passar para doze-por-um até a hora da partida, especialmente porque o favorito, Royal Front, vai ser muito apostado. “Mas o proprietário de Royal Front sabe que seu cavalo não é tão bom assim. Pode perder para qualquer uma das outras forças do páreo, se tiver uma má largada. E não está disposto a correr o risco de apostar para receber quase o mesmo dinheiro. Os proprietários dos outros dois cavalos poderão contar com cotações melhores, mas não o suficiente para se arriscarem a um jogo forte. Assim, Charlie tomou uns drinques com os outros proprietários e todos decidiram que Bold Blackie seria o vencedor, a oito-por-um ou mais. E todos, com exceção de Charlie, irão apostar contra seus cavalos. Sid Lerner interveio: — Mas isso é absurdo! Como um cavalo vai saber que não deve ganhar? Ou será que vão dizer aos jóqueis para puxarem os cavalos da frente, a fim de que Bold Blackie possa vencer? — A coisa não é bem assim — disse Charlie, com um sorriso indul37


gente. — Os comissários de corridas iriam estranhar se os jóqueis trapaceassem ostensivamente. E os próprios jóqueis não vão querer arriscar-se a uma suspensão. Como Max disse, a coisa é muito mais sutil. Os outros três proprietários simplesmente dirão a seus jóqueis que não estão muito esperançosos, que nem mesmo vão apostar em seus próprios cavalos, que preferem procurar outro cavalo na reunião que lhes permita ganhar bem melhor o leite das crianças. — Charlie fez uma pausa, soprando para o alto a fumaça do charuto. — Os jóqueis não são idiotas e compreenderão perfeitamente o que isso significa. São pagos para dar aos proprietários aquilo que estes desejam, contanto que seja legal e não vá de encontro aos regulamentos. Assim, deixarão que os cavalos corram como quiserem. Não irão manobrar para conseguirem uma posição melhor na corrida. Deixarão que o cavalo se esgote antes de chegar à reta final. E quando o jóquei não tenta vencer, um cavalo não tem a menor chance. Em outras palavras, os jóqueis farão deliberadamente uma corrida desastrada, para que os cavalos percam. — Charlie fez outra pausa, sorrindo de satisfação. — Por outro lado, eu vou dizer a meu jóquei que apostarei uma grana alta em Bold Blackie na sexta-feira, que espero que ele faça uma boa corrida e cruze o disco de chegada em primeiro lugar. Bold Blackie poderá ganhar tranqüilamente, se for bem conduzido, porque é o melhor entre os demais cavalos inscritos. Dessa forma, meus caros, daremos um grande golpe na sexta-feira. Sid Lerner levantou o copo. — Vamos brindar a isso! E os três beberam. Doyle Lindsey e Scott Bender dormiram até tarde. E ainda sob os efeitos da ressaca da festa da noite anterior, partiram para a fronteira mexicana alguns minutos antes do meio-dia. Por volta das três horas da tarde, a Sra. Trisha Howland chegou de Los Angeles, em seu automóvel novo e espetacular, presente do marido no segundo aniversário de casamento. Trisha estava com 28 anos e era 19 anos mais moça que o marido, Gary Howland. De cabelos castanhos-avermelhados, esguia, pequena e graciosa, estava com uma expressão tensa e ansiosa quando perguntou pelo marido na recepção. Seguiu apressadamente ao encontro de Gary, que há quase dois dias estava trancado no quarto 116. 38


Quando ele abriu a porta, cautelosamente, Trisha entrou rapidamente. E os dois ficaram abraçados em silêncio, por um longo tempo. — Está precisando de um drinque, querida — disse Gary Howland finalmente. Ele preparou duas doses generosas de uísque com gelo. Trisha afundou numa poltrona, tomando o drinque. Gary ficou de pé, apoiado na cômoda, olhando sombriamente para os próprios sapatos, um homem de cabelos grisalhos, o rosto rude, com excesso de peso, mas quase bonito. — Nem mesmo arrumei algumas roupas numa mala, Gary. Parti minutos depois de receber seu telefonema. — Obrigado, meu bem — murmurou Gary, sem fitar a esposa. — Por que não me ficou esperando em casa, Gary? Podefíamos ter conversado, imaginado uma solução melhor do que sua fuga às cegas. Gary fitou-a rapidamente e ficou espantado com a expressão de inocência e compaixão no rostinho bonito da esposa. Concentrou-se no copo que tinha na mão. — Entrei em pânico. Queria apenas fugir de lá, sem ter nenhum destino em mente, simplesmente querendo descobrir algum refúgio remoto, onde pudesse parar e pensar. Passei direto por este motel incrível. Mas estava-me sentindo tão cansado que decidi voltar e ficar aqui. Nem ao menos me registrei sob um nome falso. Seja como for, pensei que você estivesse do outro lado da cerca, por assim dizer. — Pois se enganou, querido. O que houve foi simplesmente um trágico equívoco. Não consigo imaginar como, conhecendo-me, pôde tirar uma conclusão tão precipidada e ... — O problema foi justamente esse, Trisha. Senti que não a conhecia tão bem assim, apesar de estarmos casados há dois anos. Será que realmente chegamos a conhecer alguém a fundo? — E é evidente que eu também não o conhecia, Gary. — Ela fez uma pausa, acendendo um cigarro. — E você se mostrou tão cauteloso ao telefone que ainda não sei direito o que aconteceu. Assim, por que não me conta tudo, desde o início? — Posso contar-lhe rapidamente tudo o que aconteceu. Mas será bem mais difícil explicar o que senti. Trisha assentiu. — Compreeendo, Gary. Mas pode dizer-me por que foi procurar39


me no meio do dia? — Eu tinha um encontro marcado com Hamilton Burris. Ele viria de avião de Dallas, para discutirmos os termos da compra de sua refinaria na Costa do Pacífico. Mas Burris não se estava sentindo muito bem ao chegar e adiou a reunião. Assim, fiquei sem ter o que fazer. E achei que seria maravilhoso se nos encontrássemos durante a tarde, passando algum tempo juntos, para variar. “Telefonei para casa, mas ninguém atendeu. Imaginei que você estava na praia. Fui para casa e troquei de roupa. Fui até o lugar em que você costuma ficar, depois da barraquinha de cachorro-quente. Finalmente localizei-a, perto da água. Estava deitada sobre a toalha, ao lado de um rapaz ... um rapaz do tipo musculoso, com o típico rosto americano, os olhos famintos por mulher. “Estavam separados apenas por alguns centímetros e tive a impressão de que ele falava quase encostado em seus lábios. Deve imaginar o choque que senti. Nunca a tinha imaginado numa situação assim e meus pensamentos se tranformaram num verdadeiro turbilhão. Quantas outras vezes teria acontecido? Quantos outros rapazes teriam havido? — Estou compreendendo, Gary. Mas nunca lhe ocorreu que... — Deixe-me terminar. Não pensei em mais nada a não ser que sou quase 20 anos mais velho do que você e que podia outrora ter parecido atraente, à frente de uma grande empresa, rico e poderoso. Mas pensei também que você devia ter-se cansado disso, ansiando pela companhia de homens de sua idade, os tipos esguios e atléticos, resolvendo então aproveitar as duas coisas. “Senti um ciúme terrível, nascido das dúvidas que tinha a respeito de mim mesmo. Fiquei observando a distância e resolvi segui-los quando se levantaram e foram até aquela cabana que existe na praia. Os dois entraram e foi então que tive certeza. Fiquei esperando por uns 15 minutos, procurando tomar coragem para entrar e surrá-lo. “Mas compreeendi que seria apenas uma farsa, que ele era muito mais forte do que eu, que poderia surrar-me com a maior facilidade e ainda rir de minha débil tentativa. Desvairado, fui até em casa e voltei correndo com o revólver. Não tinha intenção de matá-lo; queria apenas dar-lhe um susto. “Bati e ele abriu a porta. Apontei-lhe o revólver e entrei. Revistei todos os cômodos, enquanto ele resmungava, furioso. Mas você já tinha 40


ido embora. Trocamos algumas palavras, e ele compreendeu imediatamente o que estava acontecendo. Não pareceu ficar muito assustado com o revólver. Pelo contrário, creio que estava achando graça, fitandome com uma expressão zombeteira. “Onde está Trisha?” gritei. “Ela foi buscar uma garrafa para a festinha de vocês? Não acha que ela ficaria um pouco surpresa se o encontrasse morto ao voltar?” Ele soltou uma risada. E me disse: “Ora, seu velho estúpido! Ela acabou de vestir-se e voltou para casa. Deixou de encontrá-la aqui por uma questão de minutos.” Foi então que atirei nele. Quando compreendi que o tinha matado, entrei em pânico. Só então Trisha voltou a falar: — Oh, Gary, a culpa foi minha! E ao mesmo tempo não foi. Ele era apenas um rapaz que certo dia falou comigo na praia. Respondi, apenas por delicadeza. Conversamos por alguns minutos e disse a ele que era casada. Ele se afastou. Mas morava ali perto e por diversas vezes nos encontramos na praia. Conversei com ele algumas vezes, para passar o tempo. Apenas uma conversa superficial, nada mais. Eu o considerava como um rapaz inofensivo e solitário, que precisava confiar em alguém. “Naquele dia horrível, ele perguntou-me se não gostaria de tomar uma cerveja gelada. Achei que não havia mal algum. Fazia muito calor e eu estava ressequida. Ele serviu-me a cerveja e ficamos conversando durante uns 20 minutos. Ele parecia bastante inocente e senti-me quase que maternal. Mas de repente ele começou a bancar o atrevido. Nada de muito agressivo, apenas me provocando, tentando dar-me um beijo, passar-me a mão. “Esquivei-me e fui embora, sem que acontecesse algo mais sério. Passei pela casa de Grace Feelding antes de voltar para casa, lá ficando durante uma hora, mais ou menos. Você não apareceu para jantar e fiquei desesperada. Na manhã seguinte, li a notícia no jornal: Bruce Kaufman fora assassinado em sua casa à beira da praia, por um desconhecido. A única pista era a bala de calibre 38. Mesmo assim, Gary, não desconfiei de nada. Não podia imaginá-lo como o marido ultrajado. Até que você me telefonou. Mas o porquê e o como não são importantes agora. Quero que me diga apenas se ainda está com o revólver, pois aparentemente a polícia não tem qualquer outra pista além da bala. Gary demorou algum tempo para responder. — Trouxe o revólver comigo. Está escondido na caixa da máquina 41


de escrever portátil. Pensei em escrever uma confissão e um desses dramáticos bilhetes de despedida, matando-me em seguida. — Não diga bobagem, Gary. Assim que voltarmos para casa, sairemos na lancha até uns dois ou três quilômetros da costa e eu mesma jogarei o revólver no mar. — Não sabe como eu amo você, querida. E... peço que me perdoe... Trisha desviou os olhos do marido, murmurando: — Não podemos partir esta noite. Estou cansada demais. Quero tomar um banho quente, bem demorado. Depois desceremos, para tomar alguns coquetéis e jantar. Iremos embora ao amanhecer. E contaremos a todos que decidimos de repente, impulsivamente, fazer um segunda luade-mel. Combinado, querido? Doyle Lindsey e Scott Bender pararam na cidade costeira de Ensenada para passarem a noite, depois de terem atravessado a fronteira em Tijuana, sem qualquer incidente. Saíram para jantar e depois voltaram ao motel, muito menos pretensioso que o luxuoso e confortável Miragem do Deserto. Discutiram se deveriam ir dormir ou fazerem uma peregrinação pelas casas noturnas da cidade. Mas o dinheiro roubado era um estímulo forte para que sentissem vontade de se divertir. Havia um pequeno problema. Haviam quase acabado com o dinheiro que tinham nos bolsos e era necessário abrir o fundo falso da mala para pegar mais. Doyle pegou a mala, novamente removeu o forro, puxou o zíper e abriu o compartimento secreto. E no mesmo instante surgiu outro problema, este um tremendo desastre. O dinheiro tinha desaparecido ... até o último dólar. — Sumiu! — exclamou Scott, atônito. — Não acredito! — Não! Não! — gritou Doyle, sacudindo a cabeça, desesperado.— É impossível! Ninguém sabia que o dinheiro estava aqui, a não ser eu e você! E como não fui eu que peguei... — Doyle tirou do bolso a automática 32 e apontou-a para Scott Bender. — E você vai-me dizer o que fez com o dinheiro, Scott, ou irei matá-lo. No fim da tarde seguinte, Gary Howland e a esposa, Trisha, chegaram a sua casa suntuosa em Palisades. A primeira coisa que fizeram foi abrir a caixa da máquina de escrever, para pegarem o revólver. Mas a arma havia desaparecido. Em seu lugar, havia um bilhete datilografado, 42


na própria máquina e deixado no rolo: Estamos com o seu revólver Smith &Wesson, calibre 38, cano cortado, número de série C247634. É a arma com que assassinou Bruce Kaufman, num acesso de ciúme. Saiba que enviaremos a arma para a polícia de Los Angeles, com os detalhes relativos a seu envolvimento no crime, a menos que recebamos, dentro de três dias, a soma de 25 mil dólares, em dinheiro. As notas devem estar bem embrulhadas e o pacote será enviado para a caixa postal abaixo indicada. Depois que recebermos o dinheiro, a arma lhe será enviada. Com todo respeito esperando que continue para sempre em liberdade, longe da terrível prisão que é San Quentin. Embaixo, estava o número de uma caixa postal em Las Vegas, Nevada. Na noite do sábado seguinte, Vem Kittredge, proprietário do Motel Miragem do Deserto, estava sentado na sala de estar de seu luxuoso apartamento de cobertura, a que se tinha acesso apenas por um elevador particular e que ficava no alto do prédio principal. Com um canto da boca ligeiramente contraído numa expressão divertida, Kittredge lia a página de esportes de um jornal. A esposa, Denise, uma loura deslumbrante, de dimensões admiráveis, entrou na sala, vindo da cozinha, com uma bandeja de salgadinhos especiais e dois martínis secos. Vern pegou um dos martínis e provou-o. Soltou um suspiro. — Ah .. . Feito com amor, uma verdadeira obra de arte. Devo mandar emoldurar ou beber? — Como não tenho uma moldura apropriada — disse Denise, sentando-se ao lado dele, com uma expressão divertida — acho melhor você beber. E beba logo de uma vez, antes que evapore. — Tem razão. Está deliciosamente seco. Gostaria de dar uma olhada na página de esportes? — Ora, querido, você sabe perfeitamente que não me interesso por esportes. — Nem por corridas de cavalos? — Basta que me diga, querido: existia mesmo um cavalo chamado 43


Bold Blackie? — Claro. Tive alguma dificuldade em encontrar, mas acabei descobrindo o nome dele no Racing Form de sexta-feira. Telefonei para DiVito em Las Vegas e pedi-lhe que apostasse para mim num bookmaker. Apostei apenas três mil dólares, a fim de não atrair a atenção. — Mas tudo não passava de conversa fiada e o miserável matungo terminou em último lugar, não é mesmo? — Ao contrário, minha querida. Bold Blackie chegou dois corpos à frente do segundo e pagou quase nove-por-um. — Isso é ótimo. Com isso ganhamos quase 27 mil dólares. — Exatamente. — Vern recostou-se e acendeu um charuto pequeno e fino. E comentou orgulhosamente: — Esta semana foi realmente espetacular. A maior de todas, desde que inauguramos. Ganhamos 27 mil da aposta em Bold Blackie; 160 mil daqueles homens maus que ficaram no 248, com a mala de fundo falso; e 25 mil do marido ligeiro no gatilho do 116. — O nome dele era Howland, não é mesmo, querido? — Isso mesmo, Gary Howland. — Já recebeu o dinheiro? — DiVito mandou um de seus rapazes apanhá-lo na caixa postal esta manhã. Irá trazê-lo consigo, em sua próxima viagem. — Vai devolver mesmo o revólver ou está pensando em arrancar mais algum dinheiro? Vern olhou para a esposa antes de responder. — Sabe perfeitamente que sempre cumpro a palavra empenhada. Já despachei o revólver. Howland conseguiu livrar-se com pouco dinheiro, porque eu me estava sentindo generoso. Denise estava pensativa. — Sente algum remorso, querido? — Absolutamente. Eu tiro apenas dos homens maus e dos escroques ricos, jamais de gente honrada. — Isso é verdade, querido. Vern pôs o copo em cima da mesa, mergulhou uma batata frita no molho especial e mastigou-a. — Estamos com a casa quase cheia novamente, querida. Ja viu se tem alguma coisa boa em perspectiva? — Já dei uma olhada, mas até agora só descobri um sonegador 44


de impostos, no 64. Estava conversando com o sócio sobre dois jogos de livros contábeis. Tomei algumas anotações. — Quanto ele estão desviando de Tio Sam? — Cerca de meio milhão. Podemos conseguir uma boa fatia disso, só pela denúncia ... e sem qualquer risco. — Eles ainda estão no quarto? — Saíram para jantar, mas talvez já tenham voltado. — Vamos dar uma olhada. Kittredge saiu da sala com a esposa e foram para um pequeno escritório. Ele apertou um botão por baixo da mesa e uma parte da parede em frente deslizou para o lado, deixando à mostra um cubículo iluminado. Lá dentro, Kittredge apertou outro botão e a parede tornou a se fechar. Sentou-se diante de uma mesa de controle grande, com diversos botões, cada um com o número de um quarto. Acima desses botões havia pequenos globos, que permaneciam apagados quando o quarto não estava alugado e ficavam vermelhos quando eram ocupados. Por cima da mesa de controle havia um alto-falante e uma tela monitora para o sistema de TV de circuito-fechado, com as câmaras ocultas em cada quarto. Kittredge apertou o botão correspondente ao quarto 64 e do altofalante saiu apenas um zumbido fraco. — Acho que eles ainda não voltaram — disse Denise. — Vamo-nos certificar. — Kittredge apertou outro botão. Na tela de TV apareceu um quarto vazio, com um roupão em cima de uma das camas e uma valise na outra. — Não há ninguém no quarto — disse ele, desligando o sistema de vídeo e o de áudio. — Vamos tentar outros quartos? — perguntou Denise, de pé, atrás dele. Kittredge assentiu e por vários minutos manipulou os botões da mesa de controle, escutando trechos de conversas, sem ligar o vídeo. Acabou sacudindo a cabeça e comentou: — Parece que não é uma noite das melhores para os nossos negócios. Vamos tentar de novo, mais tarde. — Você se limita a escutar, sem ligar o vídeo, mesmo quando está sozinho, querido? Vamos, confesse! — Não, meu bem, não ligo. A não ser quando é necessário, para descobrir algo que não seja possível entender só de ouvir. Como precisei fazer para ver onde aqueles dois homens de Phoenix escondiam o dinhei45


ro, a fim de poder apanhá-lo assim que saíssem do quarto. Ou para ter certeza de que um quarto está vazio, quando estou indo até lá. Acho que todo cidadão honesto que se hospeda no Miragem do Deserto tem o direito de esperar uma intimidade total. Denise fitou-o com uma expressão divertida, sorrindo. — Intimidade total, hem? Você é mesmo um homem honrado, Vern querido. Kittredge levantou-se e apertou o botão para abrir a parede. — O que vamos ter para o jantar, meu bem? — perguntou ele, ao saírem do cubículo.

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ADEUS, MEU PAI Joe Gores Saltei do ônibus e parei por um momento, para aspirar fundo o ar gelado de Minnesota. Um ônibus me levara de Springfield, Illinois, a Chicago, no dia anterior. Um segundo ônibus me trouxera até ali. Percebi meu reflexo na janela da estação antiquada: um homem alto, com um rosto pálido e rude, usando um sobretudo que não se ajustava muito bem. E vi também outro reflexo, que me provovou um frio no estômago: o de um guarda uniformizado. Será que já sabiam que havia outra pessoa naquele carro incendiado? Mas o guarda logo se afastou, esfregando os braços com as mãos enluvadas, por cima da capa azul. Recomecei a respirar e caminhei rapidamente até a fila de táxis. Havia apenas dois carros à espera. O motorista do primeiro baixou a janela quando me aproximei. — Conhece a propriedade dos Millers, ao norte da cidade? — perguntei. Ele me olhou de alto a baixo, antes de responder: — Conheço, sim. A corrida custa cinco dólares... adiantados. Paguei do dinheiro que tirara de um bêbado em Chicago e acomodei-me no banco de trás. Quando ele entrou com o carro na Second Stre­et, comecei a relaxar os dedos, lentamente. Bem que merecia voltar para a prisão, se deixasse que um palhaço daqueles me afetasse os ner47


vos. — Ouvi dizer que o velho Miller anda muito doente — comentou o motorista, virando a cabeça ligeiramente, para me olhar. — Tem negócios a tratar com ele? — Tenho, sim. E são particulares. Era um ponto final em qualquer ameaça de conversa. Perturbavame que papai estivesse tão doente que até aquele palhaço soubesse. Mas talvez isso se explicasse pelo fato de meu irmão Rod ser vice-presidente do banco local. Havia muitas construções novas por ali e estavam abrindo uma auto-estrada a oeste da cidade, que iria passar num viaduto sobre a velha estrada do condado. Um quilômetro e meio além ficavam os 200 acres de morros e bosques que eu conhecia tão bem. Depois de escapar da penitenciária federal em Terre Haute, Indiana, dois dias antes, passei pelo cerco da polícia através de bosques como aqueles. Fugi da prisão num caminhão, escondido dentro de um latão de restos de comida para os porcos. Segui para oeste, a caminho da fronteira de Illinois. Ao amanhecer, estava escondido num celeiro perto de Paris, Illinois, a cerca de 30 quilômetros da prisão. Sempre fui muito bom em andar no mato, mesmo no estado em que me encontrava, depois da estadia na prisão. A verdade é que a gente sempre consegue fazer aquilo que precisa fazer de qualquer maneira. O motorista do táxi parou à entrada da estradinha particular da propriedade, com um ar de dúvida. — Escute, companheiro, sei que o caminho está bem-cuidado, mas mesmo assim me parece escorregadio como o diabo. Se eu tentar subir e cair numa vala ... — Pode deixar, irei a pé pelo resto do caminho. Fiquei parado na estrada até que o táxi se afastou. Pus-me a subir a colina, por entre as árvores sem folhas. Os cedros que Pops e eu plantáramos, como proteção contra o vento, estavam mais altos. Podiam-se ver as trilhas de coelhos na neve, por entre as moitas espinhosas de framboeseiros. No topo da colina, debaixo dos carvalhos, ficava a casa antiquada, de dois andares. Decidi passar primeiro pelos canis. A neve estava alta e intacta dentro deles. Não havia mais nenhum cachorro. E também não havia alpiste nas tigelas para os passarinhos, do lado de fora da janela da cozinha. Fui apertar a campainha da porta da frente. Minha cunhada Edwina, a mulher de Rod, abriu a porta. Era três 48


anos mais moça do que os meus 35 e já estava começando a usar cinta. — Santo Deus! Chris! Nós não ... — Mamãe escreveu contando que o velho estava doente. — Ela escrevera mesmo. Seu pai está muito doente. Sei que não se importa absolutamente se algum de nós está vivo ou morto ... Edwina decidiu que meu tom de voz era motivo para se mostrar indignada. — Estou surpresa que tenha tido a coragem de aparecer aqui, mesmo que o tenham soltado, sob livramento condicional ou algo assim. — O que significava que ainda não aparecera ninguém fazendo perguntas. Edwina logo acrescentou: — Se está pensando em arrastar pela lama outra vez o nome da família ... Passei por ela, entrando no vestíbulo. — Qual é o problema com o velho? - Eu só o chamava de papai dentro de mim, onde ninguém podia ouvi-lo. — Ele está morrendo, é esse o problema! Era visível o prazer perverso com que Edwina falava. Fiquei revoltado, mas não disse nada, seguindo para a sala de estar. Foi então que a velha gritou lá de cima: — Quem é,Eddy? — Apenas... um vendedor, mamãe. Ele pode esperar até o doutor ir embora. Doutor... Como se algum açougueiro merecesse ser tratado com tanto respeito. Quando ele desceu, Edwina tentou levá-lo até a porta, antes que eu pudesse falar-lhe. Mas segurei-o pelo braço, no momento em que o estava enfiando no sobretudo. — Gostaria de falar-lhe por um minuto, Doe. Sobre o velho Miller. Ele tinha mais de 1,80m, alguns centímetros menos do que eu. Mas devia pesar pelo menos mais 20 quilos. Desvencilhou o braço. — Escute aqui, meu caro . .. Agarrei-o pelas lapelas e sacudi-o, apenas o bastante para arrancar um botão e fazer os óculos escorregarem até a ponta do nariz. Ele ficou com a cara vermelha. — Sou um velho amigo da família, Doe. O que há com ele? Eu sabia que era muita estupidez interpelá-lo. A qualquer momento os tiras iam descobrir que o fazendeiro no carro incendiado não era eu. É verdade que eu derramara gasolina bastante no carro antes de riscar o 49


fósforo e não poderiam recolher impressões digitais, a não ser as que eu deixara no sapato, deliberadamente. Mas descobririam tudo pelas fichas dentárias, assim que fossem informados do desaparecimento do fazendeiro. E quando isso acontecesse, viriam correndo até ali, fazendo perguntas. O velho açougueiro compreenderia então quem eu era. Mas eu precisava saber se Pops estava tão ruim quanto dissera Edwina e nunca fui um homem dos mais pacientes. O açougueiro puxou o casaco, procurando recuperar a dignidade perdida. — Ele ... o Juiz Miller está fraco demais. Provavelmente não vai sobreviver até a semana que vem. — Os olhos dele me fitavam atentamente, à procura de indícios de dor. Mas não há nada como uma penitenciária federal para ensinar a gente a se controlar. Desapontado, ele acrescentou: — Os pulmões dele não agüentam mais. Já era tarde demais quando me chamaram. Mas ele vai conseguir descansar até o final. Sacudi o polegar na direção da porta. — Creio que já sabe onde fica a saída. Edwina estava no alto da escada, outra vez com uma expressão indignada no rosto. Parece que é mal de família, que se transmite inclusive aos estranhos que nela entram pelo casamento. Só papai e eu é que não tínhamos aquilo. — Seu pai está muito doente. Eu o proíbo ... — Guarde essas coisas para Rod. Talvez funcionem com ele. Entrando no quarto, vi o braço do velho pendendo para fora da cama, com um cigarro aceso entre os dedos, a fumaça azul subindo para o teto. A parte superior do braço, que outrora chegara a medir 45cm e por muitas vezes impelira o pequeno punho cerrado contra minha cabeça, agora já nem mais tinha força para manter um cigarro no ar. Deu-me a mesma tristeza que sentia ao descobrir um bom cão caçador de raposas que resolvera meter-se com um lince. A velha levantou da cadeira ao pé da cama, o rosto extremamente pálido. Abracei-a. — Olá, mamãe. Ela permaneceu rígida entre meus braços, mas eu sabia que não me iria repelir. Não ali, no quarto de papai. Ele virou a cabeça ao ouvir minha voz. A luz faiscava nos cabelos brancos e sedosos. Os olhos, translúcidos pela morte iminente, eram de 50


um azul tão puro e claro quanto a sombra de uma bétula na neve fresca. — Chris ... — murmurou ele, a voz muito fraca. — Não sabe como fico contente em vê-lo, garoto ... — Deve estar mesmo, seu preguiçoso de uma figa! — Tirei o casaco e pendurei no encosto da cadeira. Afrouxei a gravata. — Está ficando tão preguiçoso que até deixou os cachorros irem embora! Mamãe tentou impedir-me de continuar: — Já chega, Chris. — Vou ficar só um pouquinho, mamãe — falei. Papai não iria durar muito tempo mais e eu tinha que aproveitar quantos minutos pudesse passar em sua companhia. Ela ficou parada na porta por um momento, indecisa. Depois virou-se e foi embora, sem dizer nada, provavelmente a fim de telefonar para Rod, no banco. Durante as duas horas seguintes falei quase que sozinho. Papai continuou deitado, de olhos fechados, como se estivesse dormindo. Mas aos poucos ele foi-se animando, começou a recordar as coisas do passado. Como as armadilhas que fazíamos quando eu era garoto. E a ocasião em que um gamo perseguira papai pelo mato, na época do acasalamento, até que ele foi obrigado a bater-lhe com um galho no focinho. Somente depois que ele fechou o escritório de advocacia para se tomar juiz é que começamos a nos afastar. Acho que, aos 20 anos, eu era turbulento demais, exatamente como papai tinha sido, 30 anos antes. Só que eu continuara a sê-lo, cada vez mais. Deviam ser umas sete horas quando meu irmão Rod chamou-me da porta. Saí do quarto, fechando a porta atrás de mim. Rod era mais alto e mais largo do que eu, com a constituição de um atleta. Mas era muito mole. Tinha os olhos desbotados e faltava-lhe queixo. Na escola secundária, não quisera saber de jogar futebol, por ser um esporte violento demais. — Minha esposa informou-me das coisas horríveis que lhe andou dizendo. — Eu já conhecia aquele tom. Era o vamos-pô-lo-no-seu-lugar. — Conversamos com mamãe e queremos que saia daqui esta noite. Queremos ... — Querem? Até bater as botas, o velho ainda é o dono desta casa, não é mesmo? Ele atacou-me nesse momento. Sendo Rod, só podia ser um direto, com a mão direita. Bloqueei facilmente, com a palma da mão. E depois 51


dei-lhe duas bofetadas, com as costas da mão, uma em cada face, sacudindo a cabeça de um lado para outro. E empurrei-o contra a parede. Poderia ter-lhe dado uma joelhada na virilha, para fazê-lo dobrar-se. E depois bateria com as mãos cruzadas em sua nuca, ao mesmo tempo em que lhe daria uma joelhada na cara. E bem que tive vontade. A necessidade de escapar, antes que viessem à minha procura, estava-me corroendo as entranhas, assim como uma doninha rói a própria pata, para escapar de uma armadilha. Acabei afastando-me de Rod, sem fazer mais nada. — Seu ... seu animal assassino! — Rod estava com as mãos diante do rosto, numa atitude de defesa típica de mulher. Os olhos dele se arregalaram de repente ao compreender o que acontecera. Não entendi por que ele demorara tanto a compreender. — Você fugiu da prisão! É um fugitivo ... um fugitivo da justiça! — Isso mesmo. E pretendo continuar assim. Eu o conheço muito bem, garoto. Conheço todos vocês. E sei que a última coisa que gostariam seria que a polícia me pegasse aqui. — Tentei imitar a voz dele ao acrescentar: — Oh, o escândalo! — Mas devem estar atrás de você ... — Pensam que estou morto. Derrapei para fora de uma estrada gelada, lá em Illinois, dentro de um carro roubado. O carro capotou e se incendiou, comigo dentro. A voz dele soou hesitante, horrorizada: — Está querendo dizer que há um corpo no carro? — Exatamente. Eu sabia o que Rod estava pensando, mas não me dei ao trabalho de contar-lhe a verdade, que o velho fazendeiro que me estava levando de carro para Springfield, porque pensava que o punho cerrado no bolso do meu sobretudo empunhava de fato um revólver, derrapara na estrada e morrera no acidente. Eu havia calçado os sapatos dele, enfiando-lhe um dos meus. Tinha deixado o outro pé de sapato, com as minhas impressões digitais, perto do carro, não demais para que não queimasse também, a fim de que a polícia o encontrasse. De qualquer maneira, Rod não acreditaria em minha história. Se me agarrassem, quem iria acreditar? — Vá me buscar uma garrafa de bourbon e um pacote de cigarro, Rod. E fale com Eddy e mamãe para ficarem de boca fechada se alguém perguntar por mim. — Abri novamente a porta do quarto, para que papai pudesse ouvir, antes de acrescentar: — Obrigado, Rod. É um prazer estar 52


de novo em casa. Ficar na solitária, na prisão, faz com que a gente aprenda a ficar acordado com a maior facilidade. Ou a dormir no mesmo instante, sempre que for necessário. Permaneci acordado durante as últimas 37 horas de vida de papai, saindo da cadeira ao lado da cama apenas para ir ao banheiro ou quando ouvia o telefone ou a campainha da porta tocar. Cada vez que isso acontecia, eu pensava: É agora! Mas minha sorte perdurava. Eles talvez demorassem até que papai morresse. No instante em que isso acontecesse, disse a mim mesmo, eu trataria de escapar dali. Rod, Edwina e mamãe também estavam no quarto quando chegou o momento final. O Doutor também veio, para certificar-se de que receberia seu pagamento. Papai mexeu o braço esquelético e mamãe sentou na beira da cama. Era uma mulher pequena, erecta, parecendo indomável, o rosto apropriado para usar lorgnette. Ainda não estava chorando. — Segure minha mão, Eileen. — Papai fez uma pausa, procurando reunir a tremenda força necessária para falar de novo. — Segure minha mão. E não mais terei medo. Mamãe segurou a mão dele e ele quase sorriu, fechando os olhos. Ficamos ouvindo sua respiração tomar-se cada vez mais lenta, como um relógio de pé que está perdendo a corda. Até que parou. Ninguém se mexia, ninguém falava. Contemplei-os, tão delicados, tão desacostumados à morte. E senti-me como uma doninha dentro de um galinheiro. E foi então que mamãe desatou a chorar. Era um dia cinzento, a neve caindo volta e meia. Parei o jipe diante da capela funerária e atravessei a calçada escorregadia, com o vento a grudar-me o casaco no corpo. Disse a mim mesmo, pela centésima vez, que estava completamente louco, por ficar para o serviço fúnebre. Àquela altura, eles não podiam deixar de saber que o fazendeiro morto não era eu. Àquela altura, algum censor da prisão já devia ter-se lembrado da carta que mamãe escrevera, informando que papai estava doente. Ele estava morto há dois dias, e eu já poderia estar no México. Mas, de certa forma parecia-me que ainda não havia acabado. Ou talvez eu me estivesse enganando. Talvez fosse apenas a velha necessidade de demonstrar autoridade, coisa que sempre acabara perdendo os caras como eu. À distância, parecia papai. Mas de perto podiam-se ver os cosméticos e que o colarinho era pelo menos três números maior. Segurei-lhe 53


a mão. Era a mão de uma estátua, sem nada de familiar, a não ser pelas unhas grossas e ligeiramente curvadas para baixo. Rod se aproximou e disse em voz baixa, apenas para mim: — A partir de hoje, quero que nos deixe em paz. Quero que saia de minha casa. — Mas que vergonha, irmão — respondi, sorrindo. — E antes mesmo que o testamento seja aberto! Seguimos o carro fúnebre pelas ruas cobertas de neve, na velocidade apropriada para a ocasião, com os faróis acesos. Os coveiros empurraram o caixão num carrinho bem azeitado, até a cova aberta. Prenderamlhe as cintas com que iriam baixá-lo. A neve caía de um céu cinzento, derretendo nos metais, escorrendo pelos lados em pequenos filetes. Parti quando o pregador começou a falar, impelido pela necessidade premente de sair dali, de escapar. Mas também por outro motivo. Queria pegar uma coisa que havia na casa, antes que os outros chegassem para comer e beber. As armas e munição já tinham sido banidos para a garagem, pois Rod jamais disparara um único tiro, em toda sua vida. Mas não seria difícil descobrir a pistola calibre 22 de tiro ao alvo, cano longo. Papai e eu passáramos centenas de horas com aquela arma, de tal forma que a coronha estava lisa e o azulado desaparecera do cano, exposto às condições de tempo mais diversas. Depois de pegar a pistola, mudei a tração do jipe para as quatro rodas e embrenhei-me entre as árvores, até uma passagem entre as colinas. Parei ali e continuei a pé. Avançava lentamente, recordando cenas da Coréia para neutralizar o frio implacável da neve penetrando pelos buracos nos sapatos. Subitamente, um coelho disparou de debaixo de uma árvore morta e caída para uma pilha de lenha já podre, que eu armara anos antes. A bala acertou-o na espinha, paralisando as pernas de detrás. Ficou-se remexendo, até que lhe quebrei o pescoço com uma cutilada. Deixei-o ali e segui em frente, descendo para o pequeno triângulo pantanoso entre as colinas. Estava escurecendo bem depressa e pus-me a chutar as moitas congeladas. Finalmente um faisão levantou vôo, batendo as asas vigorosamente para erguer no ar o corpo pesado. Tive todo o tempo do mundo para mirar. Quando apertei o gatilho, sabia que o tiro tinha sido perfeito, antes mesmo de ver o faisão cair. Levei-os para o jipe. O faisão tinha algum sangue no bico e o corpo do coelho ainda estava quente. Eu estava com os faróis acesos quando 54


parei novamente no cemitério. Ainda não tinham baixado o caixão, que estava agora coberto por uma mortalha de neve. Pus o coelho e o faisão em cima e fiquei completamente imóvel por um ou dois minutos. O vento devia estar soprando forte, porque descobri que as lágrimas estavam-me queimando as faces. Adeus, papai. Adeus às caçadas de cervos fora da estação, adeus aos acampamentos junto ao riacho. Adeus às caçadas aos patos selvagens. Adeus à fumaça de lenha, ao bourbon à luz das fogueiras, adeus a todas as coisas que fizeram com que você se tornasse uma parte de mim. A parte que eles jamais poderão alcançar. Virei-me, para voltar ao jipe. E estaquei abruptamente. Nem mesmo os tinha ouvido se aproximarem. Eram quatro, esperando pacientemente, como se prestassem assim uma última homenagem ao morto. De certa forma, era mesmo o que estavam fazendo. Para eles, o fazendeiro no carro assassinado era um morto que devia ser vingado. Fiquei tenso, pensando prontamente na pistola .22 no bolso do sobretudo. Da qual eles nada sabiam. Só que não iria adiantar grande coisa. Se papai ao menos gostasse de armas de calibre maior. .. Mas isso jamais acontecera. Lentamente, como se meus braços tivessem ficado incrivelmente pesados, levantei as mãos acima da cabeça.

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A MONTANHA DE AREIA John Keefauver Os que chegaram mais cedo e viram o monte de areia calcularam que fora feito de madrugada por alguém que ali o deixara para ir tomar café e que voltaria mais tarde, para transformá-lo numa obra espetacular, para o concurso de castelos de areia que seria realizado naquele dia. Parecia uma boa explicação (como todos mais tarde concordaram) para a existência do imenso monte de areia, com pelo menos sete metros de altura, talvez nove ou dez, com uma base proporcional, à beira d’água, às 9 horas da manhã, sem ninguém nas proximidades. O monte parecia ter sido feito apressadamente, sem qualquer esquema determinado, como se fosse o primeiro passo para uma escultura gigantesca. Desconcertante e misterioso era o fato de que não havia nenhum buraco escavado por perto do monte, de onde se houvesse tirado a areia para fazê-lo. Não foi desconcertante a princípio, só mais tarde, quando toda a cidade estava comentando o monte de areia. No começo, ninguém deu muita atenção ao monte (além de se perguntar quem poderia estar pensando em fazer uma escultura tão gigantesca, a ponto de começar os preparativos de madrugada), porque todos estavam concentrados em construírem suas próprias esculturas. A manhã foi passando e ninguém apareceu para trabalhar o monte de areia. Os comentários sobre o estranho monte foram-se avolumando, especialmente 56


depois que os juizes chegaram, por volta de meio-dia, e puseram-se a indagar se alguém sabia a quem pertencia. Seria o preparativo para um fabuloso castelo de areia? E claro que ninguém sabia mais do que os juizes. E assim o monte de areia ali continuou, abandonado, enquanto as horas iam passando, os pais dizendo aos filhos para não escalá-lo nem mesmo tocá-lo, porque podia ser o início de uma escultura. Era uma ordem das mais difíceis para as crianças cumprirem, já que o monte de areia era uma tentação muito forte. Um menino chegou a subir ao topo da colina, para descer correndo, assustado, quando o pai se pôs a gritar-lhe. O pai tentou em seguida alisar os buracos deixados pelos pés do filho, resmungando o tempo todo contra o maluco — ou malucos, mais provavelmente, a julgar pelo tamanho — que fizera tal coisa e depois fora embora, deixando-a desprotegida. Por volta das duas horas da tarde, os juizes começaram a examinar mais de cem esculturas na areia, espalhadas por quase meio quilômetro da praia. Havia castelos, é claro, de todos os tamanhos. E havia também animais, crocodilos, tartarugas, baleias, criações estapafúrdias, como um VW, um hambúrguer e uma fatia de torta (“Almoço”), uma banheira com uma mulher dentro, um rato se aproximando da ratoeira em que estava um pedaço de queijo, pirâmides, esculturas relacionadas com o programa espacial. E o monte de areia. Eram três e meia quando os juizes compararam suas anotações e decidiram conceder o primeiro prêmio a “Apollo 12”. O segundo prêmio foi para o VW e o rato na ratoeira ficou com o terceiro. Os juizes ignoraram o monte de areia, considerando-o algum trabalho de garotos que se haviam cansado depois. Tradicionalmente, depois que os prêmios eram concedidos e os banhistas começavam a voltar para casa, as crianças tinham permissão para destruírem as esculturas. De qualquer maneira, a maré cheia iria mesmo cobri-las e podia-se antes proporcionar esse prazer às crianças. E elas bem que se divertiam, pulando freneticamente em cima das criações, gritando de alegria, enquanto os pais ficavam observando, quase que com igual satisfação. De vez em quando, um adulto ia juntar-se ao filho na destruição de uma escultura na areia. As crianças não podiam fazer muita coisa para destruírem o monte de areia. Subiram e desceram, chutaram, rolaram. Mas precisariam de uma pá mecânica para destruí-lo. Ou então trabalharem durante horas e horas com pás comuns. Os adultos simplesmente ignoraram o monte. 57


Quando o nevoeiro do fim de tarde começou a baixar e o tempo esfriou, todos foram deixando apressadamente a praia, que agora dava a impressão de que ali se travara uma batalha. Somente a imensa pilha de areia permanecia impávida. Mas a maré alta iria resolver o problema. Quem seriam os malucos que teriam feito tanto esforço e depois nem sequer aparecido para concluírem o trabalho? Ao anoitecer, as ondas já estavam vindo bater na base do monte de areia. Um residente madrugador, que tinha uma casa à beira da praia, notou que havia uma radiopatrulha parada diante de sua casa, logo depois do amanhecer. Saiu para investigar e viu o guarda na praia, olhando para o monte de areia. Quando o guarda voltou para o carro, disse ao residente, que se adiantara para falar-lhe: — Aquele maldito monte continua no lugar. Parece que a maré cheia não conseguiu tirar-lhe um único centímetro de areia. O residente foi até a praia, verificar pessoalmente. A maré cheia da noite e madrugada alisara o resto da praia e apagara os vestígios de todas as esculturas do dia anterior. Só não alterara o gigantesco monte de areia, que parecia inclusive estar maior. A areia estava lisa a dois ou três passos da base da montanha, que fora cercada pelas águas no pique da maré. Mas, estranhamente, as ondas pareciam não ter tirado qualquer areia da base. Por volta das nove, dez horas da manhã, diversas crianças estavam brincando no monte de areia. Mas era tão grande que o único dano causado eram os buracos pequenos feitos pelos pés. Os adultos olhavam para o monte com a maior curiosidade, mas nenhum deles tentou impedir as crianças de nele brincarem. O mesmo residente madrugador, que vira o guarda examinar o monte ao raiar do dia, estava almoçando quando avistou o carro do jornal parar em frente a sua casa. Um fotógrafo foi até a praia e tirou algumas fotografias do monte de areia. Na edição vespertina do jornal local havia uma foto da “Misteriosa Montanha de Areia que Desafia o Mar”. A notícia tinha um tom irreverente. Ao final da tarde, cerca de cem pessoas (pelo que calculou o mesmo residente já referido) estavam reunidas em torno do monte de areia, esperando que as ondas o alcançassem, no início da maré cheia. Havia crianças brincando nele, inclusive alguns garotos mais velhos. Mas um homem gritou para o filho que descesse. 58


— Por quê? — indagou o menino. — Não discuta comigo! Desça já daí! À medida que a maré cheia começou a envolver o monte de areia, todos os pais foram obrigando seus filhos a descerem, até que só ficaram os mais velhos, cujos pais não se encontravam na praia. E gritavam e riam alegremente, enquanto o mar ia subindo em torno da pilha. Até que um deles, dos mais jovens, ficou calado de repente e acabou pulando do monte para a água, correndo até a parte seca da praia. Os outros seguiram-no, um a um, deixando a montanha deserta, a sofrer a investida do mar, que ia subindo lenta e inexoravelmente. A noite caiu. Alguns espectadores haviam trazido lanternas. Mas, à medida que eram obrigados a se afastar do monte, a eficácia das lanternas ia diminuindo. Porém, quando uma radiopatrulha parou na rua lá em cima e focalizou o farolete no monte, todos puderam ver que permanecia inalterável, como se uma onda tirasse um pouco de areia e a seguinte a trouxesse de volta. No dia seguinte havia uma multidão maior cercando o monte de areia. O residente da beira da praia tinha visto o noticiário da emissora de TV local sobre a “Montanha de Areia” que “sobrevivera à maré cheia noturna”. As fotografias indicavam que a montanha continuava tão grande naquela manhã quanto no dia anterior. De tarde, o jornal local publicou outra notícia sobre o monte de areia, também com uma foto e desta vez na primeira página. A notícia tinha novamente um tom irreverente. Era citado um oceanógrafo, que dizia que a montanha resistia por causa do “efeito da imprensa”. Havia também as declarações de um geólogo: “A areia do mar pode acumular-se por diversas causas ... especialmente com a ajuda de alguns gaiatos locais, com muitas pás e a disposição de se divertir à custa dos outros.” Ao cair da tarde, a multidão era maior que no dia anterior, embora os pais mantivessem as crianças longe do monte de areia. Falava-se em escavar a montanha, para arrasá-la ou pelo menos descobrir-se o que havia por dentro. Mas a conversa não foi levada muito a sério. Seria muito trabalho por nada. Seria uma tolice. Que se deixasse o mar acabar com a montanlia. À medida que a maré foi subindo, contornando o monte de areia, as conveisas foram gradativamente cessando. Mais uma vez ficou patente que a montanha iria resistir à investida noturna da maré cheia. Os espectadores ficaram em silêncio, inclusive os que agora estavam reunidos na avenida ao longo da praia. O farolete de uma radiopatrulha estava fixado 59


no monte de areia, enquanto o mar ia subindo. Parecia até que a montanha era um monumento. Muitos espectadores permaneceram até mesmo depois que a maré cheia chegou ao pique. Pouco antes do amanhecer, quando a maré começou a baixar, ainda havia dois velhos parados, ao lado da radiopatrulha, com o farolete ainda focalizado na montanha. Um dos velhos comentou que parecia ser a única escultura real que jamais se fizera ali. No quarto dia da existência da montanha de areia, apenas uns poucos pais ainda permitiam que seus filhos nela fossem brincar. É claro que os garotos mais velhos, cujos pais não estavam na praia, também subiam e desciam pelo monte. Mas no quinto dia apenas sete crianças o escalaram embora o dia estivesse maravilhoso e a praia apinhada. Um homem trouxera uma pá e vagueava pela praia, indagando sem muito ânimo se não haveria outros voluntários com pás. Ninguém se apresentou. O homem acabou indo sozinho para a montanha e começou a tirar a areia com a pá, como se fosse uma brincadeira. Parou abruptamente, quando um dos garotos que estava lá em cima começou a gritar e desceu correndo, seguido pelos outros, um a um, como se todos tivessem medo de ficar sozinhos na montanha. — O que aconteceu? — indagaram ao primeiro menino que descera. Mas ele conseguiu apenas balbuciar que de repente ficara “apavorado”. O homem com a pá voltou para junto de sua família, esquecendo a montanha. No sétimo dia da Montanha de Areia, um sábado, homens vindos em três carros, com caixas de cerveja, acamparam perto da montanha, no meio da tarde. Todos estavam munidos de pás. Imediatamente uma multidão se reuniu ao redor, querendo saber se iam destruir a montanha, estimulando-os. — Claro que vamos! — disse o homem que aparentemente era o líder corpulento, em torno dos 30 anos. - Assim que tomarmos algumas cervejas! A multidão ficou esperando, impacientemente, enquanto os homens gracejavam entre si, deitavam na areia, contemplavam a montanha, tomavam cerveja. Aos gritos de “O que estão esperando?”, “Vamos logo!”, “Não vão conseguir nada deitados aí”, todos riam. E o líder declarou: — Não há pressa. Esse monte de areia não vai a lugar nenhum. E se 60


há alguma coisa dentro, também não vai sair daqui. Vendo pouco depois que meia dúzia de homens, que não pertenciam a seu grupo, tinham ido buscar suas próprias pás, o líder levantou-se e disse: — Não se metam! Essa criança é nossa! Constatando que os outros não tinham a menor pressa em começar a escavar a montanha, ele tornou a sentar e abriu mais uma lata de cerveja. Os demais homens de seu grupo fizeram o mesmo. À medida que cada lata de cerveja terminava, os homens iam colocando-a cuidadosamente numa pilha, que aos poucos foi assumindo os contornos, em miniatura e de forma tosca, da montanha de areia. Nenhum deles ofereceu uma cerveja a quem não era do grupo. E nenhum deles estava de calção. Ao cair da tarde, quase todas as latas de cerveja já consumidas e as ondas começando a lamber a base da montanha, o líder levantou-se e olhou ao redor, para certificar-se de que todos o estavam observando. Depois, dramaticamente, desferiu um pontapé na pilha de latas, destruindo-a. E gritou: — Muito bem, rapazes, vamos destruir esse maldito monte de areia! E aclamados por alguns (não muitos, porque a maioria permaneceu em silêncio), os homens pegaram suas pás e investiram contra a montanha. Começaram a escavar furiosamente, jogando a areia o mais longe possível da montanha. Eram doze e contornaram a montanha, em diversos níveis, comandados pelo líder, entoando um refrão enquanto trabalhavam: — Montanha, montanha, vamos te arrastar! Montanha, montanha, vamos te liquidar! Montanha, montanha, queremos teu coração! Montanha, montanha... Alguns espectadores se aproximaram o mais perto possível, a um ponto em que a areia arremessada pelas pás vinha cair a seus pés. Mais atrás, havia incontáveis outros espectadores, contemplando a investida contra a montanha. Carros começavam a parar e seus ocupantes saíram para observar. — . .. vamos te arrasar! Homens sem pás escalaram a montanha, para retirar areia com as mãos, aderindo ao refrão. E logo mulheres, adolescentes e crianças faziam a mesma coisa. — Montanha, montanha, vamos te liquidar! 61


A montanha finalmente ficou coberta por uma multidão de pessoas a escavar furiosamente, alguns cantando, outros muito sérios. Os bebedores de cerveja, que tinham iniciado a investida e passado a escavar o topo da montanha, começaram a descer, escavando mais abaixo. — Montanha, montanha, queremos teu coração! O mar estava subindo, arrastando a areia atirada do topo da montanha, que ia diminuindo aos poucos. O mar ia subindo, o sol ia descendo. Alguns homens e mulheres recolheram os filhos menores e se afastaram da montanha; já cercada pela água, à procura da parte seca da praia. Uma mulher caiu e o filho gritou de terror, ao vê-la tombar na água, atingida por trás pela areia arremessada por uma pá. Um guarda segurou a ambos rapidamente e tirou-os dali. A radiopatrulha estava parada à beira da praia, o farolete pronto, caso ficasse escuro antes de a montanha ter sido completamente arrasada. O guarda acabou acendendo o farolete antes mesmo que a noite chegasse. Gradativamente, a montanha foi diminuindo, até que só restavam trabalhando os bebedores de cerveja, mais lentamente agora, ofegando, gritando menos (embora os espectadores continuassem a entoar o refrão, a plenos pulmões, iradamente). O mar começou a passar por cima do que restava da montanha. Os homens foram deixando a pequena elevação, afastando-se da água. Ficou apenas o líder, suando profusamente, ofegando. Ele atravessou a água quando o mar finalmente cobriu a montanha. Estava desapontado. — Diabo, não havia coisa alguma dentro do monte! Por força do hábito, o residente com a casa à beira da praia levantou de madrugada. Ao contemplar a praia, pela janela da sala de estar, não sabia se sentia desapontamento ou alívio ao constatar que a montanha desaparecera. Um pouco de cada coisa, pensou ele. Mas principalmente alívio. Àquela distância, ele não podia ver o início de uma nova montanha, não muito longe da que fora destruída. Mais tarde, porém, ele e outros iriam ver, à luz da manhã, as ondas acumulando cada vez mais areia na nova montanha. E veriam também uma terceira montanha, perto da segunda, ambas crescendo a igual velocidade. Por volta das nove horas da manhã, as duas já estavam bem maiores que a primeira Montanha de Areia. 62


COLUNA DA AGONIA Barry N. Malzberg Prezados Senhores: Em anexo segue o meu conto TRÊS PARA O UNIVERSO. Tenho certeza de que irão considerá-lo aceitável para publicação em sua revista, ASTOUNDING SPIRITS. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Colaborador: Agradecemos sua recente colaboração. Infelizmente, embora a tenhamos lido com o maior interesse, não poderemos aproveitá-la em Astounding Spirits. Devido ao grande volume de colaborações que recebemos, não podemos atender plenamente a todos que nos enviam seus trabalhos. Mas pode estar certo de que seu original foi analisado com todo cuidado e a rejeição não representa um comentário ao mérito literário, tendo sido motivada por diversos outros fatores. Atenciosamente, os Editores

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Prezados Editores: A desgraça do Vietnã tem que acabar! Perdemos naquele solo ensangüentado não apenas a honra nacional, mas também nosso próprio futuro. Os soldados devem ser trazidos de volta imediatamente. Não podemos esquecer que existe mais honra na discórdia do que numa concordância silenciosa e incondicional. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Senhor: Agradecemos sua recente carta aos Editores. Devido ao grande volume de contribuições excelentes, não podemos publicar todas as cartas boas que recebemos. Assim sendo, lamentamos informar que não publicaremos sua carta, embora isso não signifique qualquer comentário sobre o valor de sua opinião. Atenciosamente, Os Editores Prezado Congressista Forthwaite: Gostaria de chamar-lhe a atenção para uma situação da maior gravidade que está surgindo no West Side. Morador desta área há cinco anos, tenho recentemente observado que um número cada vez maior de prostitutas, viciados em drogas e tipos criminosos fica fazendo ponto no cruzamento da Avenida Columbus com a Rua 124, praticamente a todas as horas do dia, ofendendo os transeuntes com sua aparência e criando uma influência maligna no local. Além disso, os transeuntes são muitas vezes abordados, ameaçadoramente, com o pedido de esmolas ou mesmo convites escusos. Sei que partilha comigo a preocupação por um West Side melhor. Assim sendo, aguardo seus comentários sobre tal situação e alguma espécie de ação concreta e objetiva. Atenciosamente, Martin Miller

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Prezado Sr. Millow: Grato por sua carta. A preocupação que demonstra pelo nosso West Side é devidamente apreciada. Somente através dos esforços e diligência de cidadãos conscienciosos é que poderemos transformar Nova York numa cidade melhor. Encaminhei sua carta à delegacia de polícia competente em Manhattan e tendo certeza de que em breve receberá notícias a respeito. Atenciosamente, Alwyn D. Forthwaite Prezados Senhores: Em maio deste ano escrevi uma carta ao Congressista Alwyn D. Forthwaite, queixando-me da situação existente no cruzamento da Avenida Columbus com a Rua 124, em Manhattan. Fui informado de que minha carta havia sido encaminhada a esta delegacia. Como já se passaram quatro meses e não recebi nenhum comunicado nem observei qualquer mudança na situação indicada em minha carta, escrevo-lhes agora, para saber se receberam ou não minha carta anterior e se já tomaram alguma providência. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Sr. Miller: Não há qualquer referência a sua carta anterior em nossos arquivos. N.B. Karsh Capitão, 33462 Prezados Senhores: Li com maior interesse o artigo de Sheldon Novack no último número de CRY. Mas discordo do ponto básico por ele apresentado, de que o sexo é o grande impulso biológico, do qual derivam todas as demais atividades, que seriam assim puramente metafóricas. Trata-se simplesmente de uma projeção do próprio funcionamento do Sr. Novack, mais do que 65


uma constatação da realidade, a qual ele alega conhecer. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Sr. Milton: Devido ao grande número de respostas ao artigo de Sheldon A. Novack, “Sexo e Sexualidade: Estamos Perdendo Alguma Coisa?”, publicado na edição de agosto, não poderemos publicar sua carta em nossa coluna específica. Mas, de qualquer forma, agradecemos seu interesse. Atenciosamente, Os Editores Prezado Sr. Presidente: Fiquei chocado com os comentários que aparentemente lhe foram atribuídos, nos jornais de hoje, sobre a situação da assistência social. Certamente deve saber que a legislação sobre bem-estar social emergiu de uma tentativa compadecida de políticos da década de 1930 de resolver os problemas do tormento humano de uma maneira sistemática. Embora muitas das crueldades que aponta sejam inerentes ao próprio sistema, isso não significa que se deva lançar dúvidas quanto à sua legitimidade. Toda a nossa história nacional se caracteriza pelo esforço em estimular a consciência coletiva, em oposição à lei da selva. Assim, não posso entender como pôde assumir tal posição. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Sr. Miller: Agradecemos sua carta de 18 de outubro ao Presidente. Apreciamos seu interesse e gostaríamos de dizer-lhe que, sem o interesse e a preocupação de cidadãos conscienciosos, este país não se tomaria o que hoje é. Agradecemos mais uma vez e aguardamos outras notícias suas no futuro, sobre questões de interesse nacional. Mary L. McGinnity Assessora Presidencial 66


Prezados Senhores: Em anexo segue meu artigo BEM-ESTAR SOCIAL: ESTAMOS PERDENDO ALGUMA COISA? Espero que seja considerado apropriado para a publicação na revista INSIGHT. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Colaborador: O artigo foi cuidadosamente analisado e chegamos à conclusão, relutantemente, que no momento não se enquadra em nossa programação editorial. Agradecemos seu interesse por Insight. Os Editores Prezado Senador Partch: Seu voto na Lei de Armamentos foi vergonhoso. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Sr. Mallow: Agradeço sua recente carta ao Senador O. Stuart Partch e sua aprovação à atuação dele. L.T. Walters Assessor Prezada Susan Saltis: Acho que sua recente decisão de posar nua para a série de “fotografias artísticas” em MEN’S COMPANION foi lamentável, repleta de racionalizações vazias e inconseqüentes para justificar a licenciosidade, as quais não possuem grande capacidade intrínseca de causar danos, a não ser quando são apresentadas, como aconteceu em seu caso, com “conexões” vagas e abstratas a chavões, que podem ameaçar a própria demolição da personalidade coletiva. Atenciosamente, Martin Miller 67


Prezado Senhor: Com o maior prazer e atendendo a sua solicitação, segue em anexo uma fotografia de Miss Susan Saltis, como ela aparece em seu mais novo filme, Bigas Para o Santo Império Romano. Atenciosamente, Henry T. Wyatt Diretor de Publicidade Prezados Senhores: Gostaria de saber se CRY estaria interessado no artigo anexo. Não se trata propriamente de um artigo, mas de um documentário verdadeiro sobre os resultados que venho obtendo de meus esforços, nos últimos meses, em corresponder-me com diversas personalidades do mundo político, das diversões, etc. É assustador verificar a supressão total da individualidade imposta pelo próprio sistema vigente neste nosso século XX Talvez seus leitores possam partilhar o meu (não tão retrospectivo assim) horror. Atenciosamente, Martin Miller Prezado Senhor: Como um colaborador em potencial de Cry, é com extrema satisfação que lhe ofereço o “Desconto Especial de Assinatura de Colaborador”. Por apenas 5,50 dólares irá receber a nossa revista durante um ano inteiro (28% abaixo do preço nas bancas, 14% abaixo das assinaturas comuns), além do número especial de fim de ano, Cry in the Void, inteiramente grátis. Departamento de Assinaturas Prezado Colaborador: Agradecemos o seu artigo “Coluna da Agonia”. Foi devidamente apreciado. O Conselho Editorial reconheceu o mérito indiscutível, mas concluiu que não se enquadra em nosso planejamento editorial. Agradecemos seu interesse em Cry e aguardamos a apresentação de outros 68


trabalhos seus, em futuro próximo. Atenciosamente, Os Editores Prezado Congressista Forthwaite: Não foi tomada qualquer providência em relação à situação que mencionei em minha carta de um ano atrás. Absolutamente nada! Amargamente, Martin Miller Prezado Sr. Mills: Por favor, aceite nossas desculpas pelo atraso em responder a sua carta. O Congressista Forthwaite esteve absorvido durante todo o inverno, como deve saber, na discussão da nova legislação de assistência social, sem poder dispensar maior atenção a sua correspondência. Agora que essa fase já passou, ele agradece as suas generosas palavras de apoio. Atenciosamente, Ann Ananauris Prezado Senhor: O brutal assassinato dos Adams deve merecer toda atenção não apenas por sua violência, mas também por causa da confissão do acusado de que “fiz isso para que alguém finalmente notasse minha existência”. Qualquer cidadão pode compreender isso, a necessidade desesperada de ser conhecido como um indivíduo, de superar a burocracia implacável e adquirir alguma individualidade. É um dos impulsos humanos básicos. Mas devo admitir que eu próprio estou ficando cada vez mais frustrado por uma tecnocracia que cada vez menos permite ao indivíduo afirmar sua própria identidade e visão do mundo, até mesmo ser ouvido. Assassinar é relativamente fácil. E digo que é fácil porque o assassino não precisa empenhar-se num treinamento árduo a fim de realizar seu feito. Pode chegar a isso por uma simples extensão de impulsos humanos fundamentais. .. e com a ajuda das armas que estão à disposição de todos. O assassino não precisa cultivar “contatos” ou “fama”. Pode simplesmente, 69


apenas por estar presente, sobrepor-se ao niilismo e adquirir uma individualidade. Cada vez mais, o potencial para assassinar está à espreita dentro de nós. Estamos sendo pressionados e esmagados, quase que nos estão aniquilando todo e qualquer senso de existência, estamos sendo levados a dar esse pulo para alcançar a identificação e reconhecimento. Poderiam, por gentileza, publicar esta carta? Esperançosamente, Martin Miller Prezado Senhor: Agradecemos sua carta recente. Lamentamos não poder publicá-la, devido ao fato de estarmos recebendo muitas cartas de natureza similar. Mas continuamos a aguardar outras manifestações de seu interesse. Atenciosamente, John Smith, pelos Editores Prezado Sr. Presidente: Tenciono assassiná-lo. Juro que não irá passar deste ano. Será com um rifle ou com uma faca, com água ou pelo fogo, pelo medo ou terror. Mas saiba que irá acontecer fatalmente e nada poderá fazer para EVITAR O JULGAMENTO QUE LHE ESTÁ SENDO FEITO. Vá para o diabo, Martin Miller Prezado Reverendo Mellbow: Como sabe, o Presidente está no exterior, no momento em que recebemos sua carta. Mas pode estar certo de que, em sua volta, a carta que enviou, juntamente com milhares de outras, manifestando esperança e apoio, lhe será entregue pessoalmente. Não tenho a menor dúvida de que o Presidente irá apreciar profundamente sua carta. Atenciosamente, Mary L. McGinnity Assesssora Presidencial 70


ADIVINHE O QUE É Rose Million Healey O menino de rosto redondo e inocente, cabelos louros, estava sentado a balançar as pernas, observando Martha trabalhar. — Não quer saber o que tenho aqui? — perguntou ele. Martha não se virou nem se deu ao trabalho de responder. Era a primeira vez que ficavam a sós, Martha e o neto da Sra. B. Martha não simpatizava muito com o menino. Se tivesse sabido antes da presença dele, pensou ela, talvez não aceitasse o emprego. Suspirando, Martha ajoelhou-se para tirar o pó das pernas do piano. Não que ela não gostasse de crianças. Afinal, tivera dois filhos e já poderia até ser avó, se a guerra não lhe tivesse levado John Joseph e se o bom Deus tivesse abençoado a jovem Martha com a aparência necessária para arrumar um marido. Não, não era uma antipatia generalizada a todas as crianças, disse Martha a si mesma, levantando-se lentamente e passando a flanela delicadamente pelo teclado do piano. Mas havia algo no pequeno Jeffrey que a deixava perturbada e pouco à vontade. Ele não era realmente como os outros meninos. Era muito quieto, é verdade, mas também não era isso. Os meninos não precisam necessariamente serem turbulentos. E também não era atrevido. Eu poderia aceitar facilmente um menino levado, pensou Martha. Mas o que estava errado com Jeffrey Belton III era algo para o qual não existia nome. Ou pelo menos um nome que Martha conhecesse. Ele 71


tinha um jeito estranho de olhar as pessoas, com os olhos semicerrados, quando pensava que não estava sendo observado. E havia um arremedo de sorriso nos lábios dele que não era nada meigo e suave como deveria ser um sorriso no rosto de criança. Martha virou-se abruptamente para ver se conseguia surpreender aquela expressão no rosto do menino. Mas o pequeno Jeffrey não estava olhando para ela e sim para uma pequena caixa de papelão que tinha no colo. Sentindo que Martha o fitava, ele levantou a cabeça e disse: — Aposto que nunca vai conseguir adivinhar o que tenho aqui dentro. Ele levantou a caixa e sacudiu-a, procurando tentá-la. Martha procurou responder jovialmente. Afinal, era apenas um menino. — O que eu ganho se adivinhar? O menino assumiu uma pose solene. — Nunca irá adivinhar. Nem em um milhão ou um trilhão de anos. — E se eu adivinhar? — Então lhe darei a minha mesada da próxima semana — prometeu Jeffrey, depois de um momento de hesitação. Martha corou. — Não, não quero seu dinheiro. Vamos fazer outra coisa ... — Ela empurrou para o lado um vaso em cima da lareira, para tirar o pó, antes de acrescentar: — Se eu adivinhar, você me ajudará a enxugar os pratos amanhã de manhã. Se eu não acertar, então lhe darei uma coisa bonita. — O quê? — Não sei ainda. Alguma coisa bem bonita. — Irá dar-me o que eu pedir? — Isso depende — disse Martha, passando a flanela sobre o espelho de moldura dourada. — Depende de quê? — Depende de eu ter ou não o que me pedir. — Oh, mas você tem o que estou querendo. Está combinado? Martha sorriu. Jeffrey era como os outros meninos, apenas um pouco mais difícil de se levar. Aderindo ao jogo, ela procurou esquivar-se: — Vamos com calma. O que é essa coisa que eu tenho e você está querendo. — Não posso dizer. Martha já estava esperando por isso. 72


— É alguma coisa que eu não me importaria de dar? — Acho que não deve importar-se. Tem uma porção de outros. Um dos carrinhos que o filho dela colecionara quando era pequeno, pensou Martha. Ela os mostrara a Jeffrey durante sua primeira semana na casa, numa tentativa de conquistar a afeição do menino. Na ocasião, ele não parecera ficar muito impressionado. Mas ela devia ter imaginado que o menino era muito tímido. Bom, um carrinho ontre tantos não faria a menor diferença. Além do mais, não guardara aqueles carrinhos justamente para fazer outros meninos felizes? — Está combinado? — indagou Jeffrey novamente. — Está, sim. Negócio fechado. — Promete? — Claro. — Diga que promete. — Prometo. Martha surpreendeu o reflexo do menino no espelho. Os olhos estavam semicerrados, deixando à mostra apenas uma estreita faixa azul, a boca estava ligeiramente contraída num arremedo de sorriso. Com algum esforço, Martha obrigou-se a falar jovialmente: — E agora vamos ver ... O que pode ser? O quê? — Ela virou-se para encarar o menino e olhou para a caixa que ele segurava com as duas mãos. — É um ... — Espere! — ordenou Jeffrey, levantando-se. — Quantos palpites você vai poder dar? — Tem razão. Não pensamos nisso. Deve haver um limite. Quantos você acha que posso dar? — Três. Como nos livros. Martha afagou a cabeça loura. O menino recuou no mesmo instante, mas logo voltou a adiantar-se. E murmurou, suavemente. — Pode afagar meus cabelos se quiser, Martha. Mas, subitamente, Martha não queria mais. Fingiu não tê-lo ouvido e correu os olhos pela sala. — Parece que já acabei aqui. Acho melhor começar a arrumar logo os quartos. — Por que não vai arrumar a cozinha antes? — sugeriu o menino, acrescentando logo em seguida, insinuantemente: — Posso tomar meu 73


leite, enquanto você tenta adivinhar. Martha sabia que não era fácil fazê-lo tomar o leite. E obedientemente seguiu na frente até a cozinha. Jeffrey sentou-se à mesa da copa, de onde podia avistar Martha, onde quer que ela fosse. Sentindo-se um tanto constrangida sob o olhar dele, Martha serviu o leite e entregou-lhe. Ao se virar, ela tropeçou de leve. O menino riu. E entoou alegremente, em voz estridente: — Martha sem jeito! Martha sem jeito! Ele gostava de ver as pessoas embaraçadas ou machucadas. Martha já percebera isso antes. E estremeceu ao pensar. Na pia, começou a lavar a louça do café. Querendo acabar logo com a brincadeira, a fim de que Jeffrey a deixasse para ir brincar com o quebra-cabeças na sala de estar ou no balanço no jardim, ela disse: — É um brinquedo? — Não, não, não! — gritou o menino, triunfalmente. — Mas estou quente? — Não está nem um pouquinho quente. Está mais gelada do que gelo. Estou até tremendo de frio. Tente adivinhar novamente. Martha enxaguou a espuma de sabão de uma panela. — É . .. — Ela tentou recordar-se das coisas que já vira com o menino. Por algum motivo que não podia compreender, queria agora ganhar o jogo de qualquer maneira. Não era pelo carro. Ela o daria de qualquer maneira, mesmo que acertasse. Mas sentia que devia esforçar-se ao máximo para adivinhar. Procurando recordar o tamanho da caixa, ela virou a cabeça e olhou para o menino. Jeffrey a fitava com uma expressão expectante de crueldade. Ela quase deixou cair o prato que segurava. — Vamos, Martha. Tente adivinhar. A caixa tinha cinco centímetros de largura por dez de comprimento, com a altura um pouco maior. Martha pensou em várias coisas e rejeitouas. Um baralho, um lenço, selos da coleção dele? Mas chocalhava. O que quer que estivesse na caixa, era algo que chocalhava. — E então? — insistiu Jeffrey. — Estou pensando. Martha podia sentir a satisfação dele por deixá-la perturbada e conseguiu acalmar-se com algum esforço. — Deixe-me segurar a caixa — sugeriu ela. — Para quê? — O menino se afastou da mesa, instintivamente. 74


— Quero ver se está pesada. O menino ficou pensativo, parecendo avaliar cuidadosamente sua decisão, antes de finalmente responder: — Não. — Por que não? — Suas mãos estão molhadas. Além disso, isso não estava nas regras quando começamos o jogo. Martha sentiu uma pontada de desapontamento. — Não é justo — disse ela, voltando a lavar a louça. — Como posso adivinhar se não tenho nenhuma pista? — Eu lhe darei uma pista. — Dá mesmo? — Martha sabia que sua ansiedade era absurda. Sabia que estava séria demais por um simples jogo de adivinhação com um menino. Mas a verdade é que não podia se controlar. — Deixarei que me faça três perguntas — anunciou Jeffrey, magnânimo. Martha sentiu uma esperança renovada. — Qual é o tamanho da coisa? — Tão grande quanto ... — O menino inclinou a cabeça para trás, revirando os olhos para o teto e sorrindo, de alguma piada particular, antes de acrescentar: — Tão grande quanto seu dedo. Martha pensou: Uma caixa de fósforos, uma barra de chocolate, um lápis? — De que cor é? O menino ficou pensando na resposta, de rosto franzido. Depois sorriu e disse: — Era rosa. Distraidamente, Martha arriou a panela em que fizera o mingau de aveia. Um batom, contas... Que diabo! Por que ela não conseguia descobrir o que era? Procurando ganhar tempo, ela disse: — Não me está enganando, não é? Tem certeza de que não é um brinquedo? Jeffrey ficou chocado. — Eu não minto! — E, impaciente, ele perguntou: — Por que não tenta adivinhar de novo? — É um .. . é uma moeda! — disse Martha impulsivamente, já desesperada. 75


O menino pôs-se a pular de alegria, gritando: — Errou! Errou! Errou! E ficou assim, correndo de um lado para outro, a sacudir a cabeça, gritando “Errou, errou”, até que Martha não agüentou mais e mandou que parasse. Obedientemente, o menino ficou quieto ao lado dela, junto da pia. Ofegava ligeiramente. Martha podia ver a cabeça bem-formada, os cabelos louros, a penugem dourada no pescoço. Era um menino bonito. Ela quase recuperou a perspectiva. Quase. — Só tem mais um palpite, Martha. Jeffrey falava num sussurro meio rouco. A advertência soou vagamente sinistra. Martha sentiu um frio no estômago. — É um jogo muito tolo. Não quero mais saber disso. Vá embora daqui. Ao invés do protesto que Martha esperava, o menino ficou calado. Pegou uma toalha de prato pendurada perto do fogão, ajeitou a caixa debaixo do braço e começou a enxugar a louça. Até que Martha não pôde mais suportar o silêncio. — Eu já vi algum? — indagou ela. Sem olhar para ela os olhos fixos na faca que tinha na mão, Jeffrey respondeu: — É a sua última pergunta. Martha teve a sensação de quem via o último bote salva-vidas sendo baixado, enquanto permanecia no navio que afundava. — Já viu, sim, Martha. Na verdade, tem até alguns. E é o que estou querendo de você, se eu ganhar: — Mas você disse que não era um brinquedo! — E não é. O menino ainda estava com a faca na mão. Abandonara agora qualquer simulação de que a estava enxugando. Os raios de sol vinham incidir na lâmina e Martha a contemplava, como que hipnotizada, sem conseguir desviar os olhos. O menino falava agora em tom baixo e monótono: — A coisa que eu tenho na caixa já foi rosa, mas agora está mais para cinza e roxa. Consegui de Lilian. Ela trabalhou aqui antes de você. Martha engoliu em seco. — Mas o que é? — Você tem que adivinhar. 76


— Não posso. Não faço idéia do que seja. — Não sabe mesmo? — O menino sorriu, fitando-a nos olhos. — Você tem mãos muito bonitas, Martha. Não devia deixar que elas ficassem tão vermelhas de lavar louça. Seria melhor usar luvas. O menino se mexeu, como se fosse tocar na mão dela. Martha recuou rapidamente, escondendo as mãos molhadas no avental. — O que tem na caixa? O olhar de Jeffrey fixava-se nas mãos escondidas. — Você sabe. — Não acredito! — Lilian também não acreditou. Disse que eu jamais conseguiria. Que eu não poderia. Mas um dia, quando ela estava dormindo e Vovó tinha saído . .. — O que tem nessa caixa? — perguntou Martha. — Eu sei, mas você vai ter que adivinhar. Martha investiu na direção da caixa. A faca na mão de Jeffrey levantou-se de repente. E surgiu sangue na mão de Martha. Ela gritou, desesperada, ao ver. Agarrou o menino pelos ombros. O que tem aí? O que tem nessa caixa? A faca caiu no chão, ruidosamente. A caixa de papelão ficou amassada, pela pressão do braço do menino, não querendo largá-la. — Mostre o que tem aí! Abra essa caixa! Abra! — Martha! A Sra. Belton estava parada na porta, muito elegante e erecta no costume sob medida. Os cabelos prateados tinham sido recentemente lavados e penteados. Carregava dois embrulhos pequenos. E sua expressão passava de espanto para raiva, quando Martha a fitou. — O que está fazendo, Martha? — indagou a Sra. Belton. Martha afrouxou o corpo e olhou ao redor, aturdida. Descobriu que estava de joelhos diante do menino, segurando-o pelos ombros e fitandoo nos olhos como uma louca. Como se houvesse uma deixa, Jeffrey começou a chorar. Duas lágrimas imensas rolaram por suas faces e ele desvencilhou-se de Martha. Correndo para a avó, ele gemeu: — Oh, Mamanl Ela é muito má! A Sra. Belton inclinou-se para abraçar o menino, que segurou a saia dela, chorando sem parar. 77


— Mas o que está acontecendo aqui, Martha? — A Sra. Belton falava no tom de quem procura ser razoável e justa. — Eu . . . ele . . . oh, Sra. Belton! — balbuciou Martha. — Cheguei em casa e encontrei-a a maltratar Jeffrey. Tem alguma razão para isso? Ele fez alguma coisa? — Eu não fiz nada! — protestou o menino, apertando-se contra a coxa da avó. A Sra. Belton afagou-lhe a cabeça. E olhou para Martha, franzindo as sobrancelhas: — E então, Martha? O que tem a dizer? — Pergunte a ele o que tem na caixa. Obrigue-o a mostrar. — Mas que diferença isso pode fazer... — Apenas obrigue-o a mostrar — disse Martha, ficando de pé. — Mande-o abrir a caixa. Afastando o neto um pouco, a Sra. Belton disse: — Jeffrey ... O menino fitou-a, com uma expressão de perfeita inocência. — Pois não, Maman? — O que você tem aí? — Nada,Maman. — Ele não está dizendo a verdade — interveio Martha. — Mande-o abrir a caixa. O rosto cada vez mais franzido, a Sra. Belton olhou primeiro para o menino e depois para Martha. Estendeu a mão. Lentamente, bem devagar, Jeffrey entregou-lhe a caixa. Martha prendeu a respiração no momento em que a velha senhora levantou a tampa. Ficou esperando pela exclamação de horror. Mas nada aconteceu. Surpresa, Martha olhou para a Sra. Belton, cujos olhos fixaram-se nos dela. — A caixa está vazia, Martha. — Não pode ser! — Martha atravessou a cozinha correndo e pegou a caixa. Uma caixa de papelão. Vazia. — Mas chocalhava! Ela levantou a cabeça, descobrindo que a Sra. Belton fitava-a de maneira muito estranha. — Lamento, Martha, mas terá de ir embora. Martha chegou a perder o fôlego com a injustiça. — Mas não sou culpada! A caixa ... 78


— Pode ver pessoalmente que não tem nada aí dentro. — Então ele ... tirou enquanto não estávamos observando! Olhe nos bolsos dele. O menino recuou, involuntariamente. Martha percebeu o movimento. — Reviste-o! — insistiu ela, já agora gritando. — Reviste-o! A Sra. Belton empertigou-se, colocando-se entre Martha e o menino. E disse para Martha: — Vamos, controle-se! E peço que saia desta casa imediatamente. — Eu ... — Não há mais nada a dizer, Martha. A voz dela era suave, mas firme. Uma hora depois, Martha já tinha feito as malas e estava parada ao lado da escrivaninha da Sra. Belton, recebendo seu último pagamento. — Lamento muito que tenha terminado assim, Martha. — Eu também. — Não consigo compreender o que deu em você, Martha. Jeffrey não é um menino levado. Pelo contrário, é um modelo de comportamento. Nunca me deu o menor trabalho. — Tem razão, Madame. — Martha tomara a decisão de não falar mais nada a respeito do que acontecera. De que adiantaria? Além disso, sempre havia a possibilidade de ter-se enganado. Talvez estivesse ficando velha, com propensão a imaginar coisas. Talvez as crianças simplesmente a deixassem nervosa. — Ele é um menino maravilhoso, Martha. Tem-me dado todo o amor que tinha para com os pais, antes de morrerem num trágico acidente de automóvel. Às vezes chego a recear que ele me ame demais. Quer ficar a sós comigo durante todo o tempo. Ontem à noite, por exemplo, ele me disse: “Maman, gostaria de ficar só com você para sempre. É a única pessoa no mundo que me ama.” Será que um menino assim pode fazer algo errado? — Acho que ele vai acabar conseguindo o que deseja — comentou Martha, ignorando a pergunta. Ela dobrou o cheque e guardou-o na bolsa. A Sra. Belton ficou visivelmente tensa ao ouvir a censura implícita. Queria que Martha admitisse seu erro. Em vez disso, sentiu-se invadida por uma vaga apreensão. — Olhou pela janela, para o neto a se balançar no balanço lá fora. O brilho 79


nos cabelos louros de Jeffrey tranqüilizou-a. Martha parou na porta, indagando abruptamente: — Por que a mulher antes de mim foi embora? — Lilian? Ela sofreu um acidente. — Que espécie de acidente? — perguntou Martha, já sabendo qual seria a resposta. — A espada de haraquiri que o Sr. Belton trouxe do Japão caiu da parede do quarto dela e decepou-lhe um dedo. Foi um acidente lamentável. Fiquei muito triste quando ela foi embora. — Posso imaginar, Madame. Martha deixou a casa, saindo para o sol que brilhava lá fora. O menino deslizava para frente e para trás no balanço do jardim. Para frente e para trás...

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A DEFESA DE DOIS MILHÕES DE DÓLARES Harold Q. Masur O julgamento estava transcorrendo da melhor forma possível para a promotoria. Fio a fio, a teia de culpa fora tecida em torno do réu, Lloyd Ashley. E agora, ao final da tarde do quinto dia, o Promotor Distrital Herrick preparava-se para dar os nós nos últimos fios, com a sua testemunha final. Compreensivelmente, o caso fora para as manchetes dos jornais. Com um público ávido clamando por mais detalhes, os jornais tratavam de atender, revelando o que quer que os repórteres descobrissem. O caso possuía todos os ingredientes necessários para uma cause célebre: a esposa linda e supostamente infiel; o irresistível Casanova, agora morto; e um marido milionário, acusado de homicídio. Ao lado de Ashley, na mesa de defesa, estava sentado o advogado dele, Mark Robison, aparentemente despreocupado do drama que se desenrolava diante de seus olhos. O rosto fino estava relaxado, o queixo apoiado na palma da mão. Para um observador distraído, ele pareceria quase que desinteressado. Mas nada podia estar mais longe da verdade. A mente de Robison estava totalmente sintonizada, pronta a se manifestar a qualquer erro do promotor. O advogado de defesa era um formidável oponente, como o promotor bem o sabia. Tinham estudado na mesma escola. Robison fora as81


sistente da promotoria durante duas administrações. E mostrara-se frio e implacável no cargo, dando uma contribuição valiosa para manter a prisão estadual em Ossining permanentemente lotada. Assim como um rato almiscarado sempre procura a água, Robison havia encontrado seu habitat natural no tribunal. Tinha uma presença marcante, o ego e a voz de um ator nato, o cérebro ágil e atento, essencial a um bom advogado criminal. E possuía também um instinto infalível com os jurados. Sempre localizava os jurados mais suscetíveis e explorava-lhes as emoções e preconceitos. E assim, quando suas defesas eram inadequadas, ele terminava pelo menos com um júri indeciso, sem chegar a uma decisão unânime. Mas o caso Ashley era muito mais sério. A defesa apresentada por Robison era mais do que inadequada, sendo praticamente inexistente. Robison estava agora imóvel, examinando a testemunha final da acusação. James Keller, especialista em balística da polícia, era um homem pálido e corpulento, impassível, que falava lentamente. O Promotor Distrital Herrick passara rapidamente pelas perguntas preliminares, qualificando-o como perito, começando agora a arrancar-lhe o depoimento que deveria despachar Lloyd Ashley para a eternidade, com o zumbido nos ouvidos de uma corrente de alta voltagem. O promotor pegou uma pistola preta, de propriedade do acusado, conforme já ficara provado. — Estou-lhe mostrando agora, Sr. Keller, a Prova B do Estado. Pode dizer-nos que tipo de arma é esta? — Sim, senhor. Trata-se de uma automática Colt, calibre 32, comumente conhecida como modelo de bolso. — Já viu esta arma antes? — Já, sim. — Em que circunstâncias? — Foi-me entregue no desempenho de minhas funções como perito em balística, para determinar se disparara ou não a bala fatal. — E fez os testes necessários? — Fiz. — Poderia contar ao júri o que descobriu? Keller virou-se para os doze jurados, todos inclinados para a frente, prestando a maior atenção. Não havia mulheres no júri. Robison usara todos os recursos disponíveis para impedir que alguma mulher fosse es82


colhida para o júri. A teoria dele era a de que os homens se mostrariam mais simpáticos a atos de violência cometidos por um marido traído. Keller pôs-se a falar, em voz seca, quase pedante: — Disparei uma bala para comparar com a que tinha sido extraída do corpo da vítima. As duas balas possuíam dimensões gerais de três décimos de polegada e um peso de 74 gramas, colocando-as assim na classe de calibre 32. Ambas tinham as marcas de seis sulcos em espiral, com uma torção para a esquerda, característica das armas Colt. Além disso, todas as armas passam a ter, com o uso continuado, algumas características próprias e únicas, que ficam impressas nas balas, quando estas passam pelo cano. Verificando as duas balas com um microscópio de comparação... Robison interrompeu o monólogo de Keller com um gesto de indiferença. — Meritíssimo, creio que podemos perfeitamente dispensar uma longa dissertação técnica sobre balística. A defesa reconhece que foi a arma do Sr. Ashley que disparou a bala fatal. O juiz olhou para Herrick— A promotoria concorda? Relutante, Herrick resmungou: — O Estado não tem o menor desejo de prolongar o julgamento além do necessário. Interiormente, porém, Herrick não estava satisfeito. Preferia ir armando seu caso cuidadosa e metodicamente, lançando primeiro as fundações, colocando em seguida as pranchas laterais, até finalmente baixar a tampa, sem nenhuma abertura por onde o acusado pudesse escapar, sem qualquer erro que pudesse levar a uma anulação do julgamento, numa apelação. É claro que havia ocasiões em que era ótimo fazer-se uma concessão à defesa. Mas em se tratando de Robison... Nunca se podia saber, jamais se podia prever o que ele poderia fazer. Era preciso observá-lo atentamente. Assim que Mark Robison tornou a sentar-se, Lloyd Ashley fitou-o com uma expressão visivelmente angustiada. — Acha que foi uma boa idéia, Mark? — Com sua vida em jogo, Ashley sentia que cada ponto deveria ser ferrenhamente contestado. — Esse detalhe jamais esteve em discussão — respondeu Robison, com um sorriso tranqüilizador. 83


Mas o sorriso não teve qualquer efeito. Olhando para o rosto de Ashley naquele momento, Robison sentiu uma pontada de compaixão. Como o homem mudara radicalmente! A arrogância habitual de Ashley desaparecera por completo, a língua sarcástica estava agora humilde e suplicante. Nem mesmo o seu dinheiro, aquelas somas fabulosas investidas com uma solidez a toda prova, podia proporcionar-lhe qualquer sensação de segurança. Robison não podia negar um certo sentimento de responsabilidade pela situação difícil em que Ashley agora estava. Podia perfeitamente recordar-se daquele dia, dois meses atrás, em que Ashley o procurara, em busca de conselho, dominado por uma raiva malcontida, suspeitando da infidelidade da esposa. Há anos que o conhecia, tanto profissional como socialmente. — Tem alguma prova? — indagara Robison. — Não preciso de prova nenhuma. O marido sempre sabe. Ela temse mostrado fria e distante. — Quer o divórcio? — Nunca — respondera Ashley, a voz impregnada de uma emoção intensa. — Eu amo Eve. — O que deseja exatamente que eu faça, Lloyd? — Quero apenas que me dê o nome de um detetive particular. Tenho certaza de que conhece alguém em quem se possa confiar. Quero que ele siga Eve, que observe todos os movimentos dela. Se puder dizerme quem é o homem, saberei então o que fazer. Robison realmente conhecia um detetive particular de confiança. Um advogado está sempre precisando dos serviços de um investigador competente, para descobrir coisas no passado de testemunhas hostis, cujos depoimentos talvez mais tarde queira anular. E assim Ashley contratara o detetive particular. Recebera o primeiro relatório uma semana depois. O detetive seguira Eve Ashley a um encontro com Tom Ward, agente de investimentos encarregado de muitas aplicações de Lloyd Ashley. Observara-os numa conversa obviamente íntima, num bar pequeno e discreto em Greenwich Village. Robison só não previra uma coisa: a violência. Não que Ashley fosse um covarde, mas é que sua principal arma no passado fora sempre o uso adequado das palavras, incisivas, afiadas, insultuosas. Ao receber o telefonema da chefatura de polícia, informando que Ashley estava preso por 84


homicídio, Robison ficara genuinamente chocado e sentira uma pontada momentânea de remorso. Mas Robison não era homem de lamentar-se por muito tempo pelo simples fato de não ser onisciente. E Ashley, tendo permissão para dar um telefonema, chamara Robison para defendê-lo. Na audiência preliminar, Robison envidara todos os esforços para que a acusação fosse retirada, apresentando a versão de Ashley com astúcia e habilidade. Alegara que tudo não passara de um acidente. Não houvera premeditação, nenhum dolo, qualquer intenção de matar, Ashley fora ao escritório de Ward, sacara a arma, ameaçara, apenas numa tentativa de intimidá-lo, para arrancar-lhe a promessa de que nunca mais voltaria a procurar Eve Ashley. Verificara cuidadosamente a trava de segurança, para ver se estava no devido lugar, antes de entrar no escritório de Ward. Mas em vez de ficar paralisado de medo e suplicar misericórdia, Ward entrara em pânico, investindo contra Ashley e agarrando a arma. Ashley jurara que a arma caíra em cima da mesa e disparara acidentalmente. Ele estava debruçado sobre o corpo de Ward quando a secretária deste entrara na sala. O promotor escarnecera ao ouvir a versão, classificando-a de péssima ficção. O Estado, dissera Herrick, podia provar motivo, meios e oportunidade. Assim, o juiz sumariante não tivera alternativa. Lloyd Ashley fora encaminhado ao grande júri, que rapidamente o indiciara por homicídio em primeiro grau. E agora o julgamento estava sendo realizado, presidido pelo juiz Felix Cobb. Estavam no quinto dia de apresentação das testemunhas. E Herrick estava empenhado em destruir as últimas esperanças de Ashley. Levantou a arma, a fim de que Keller e os jurados pudessem vê-la. Era uma arma pequena, que acabara com a vida de um homem num piscar de olhos. — Está a par do funcionamento desta arma, Sr. Keller? — Estou, sim. — Em sua opinião como perito em balística, uma arma deste tipo pode disparar acidentalmente ... com a trava de segurança no lugar? — Não, senhor. — Tem certeza disso? — Absoluta. — Ao longo de sua carreira, 20 anos de experiência como perito em 85


balística, ouviu alguma vez falar de um acidente assim? — Não, senhor. Herrick voltou para a mesa da promotoria. — A defesa pode interrogar a testemunha. O juiz interveio: — Faltam cinco minutos para as quatro horas. Creio que já podemos entrar em recesso até amanhã. — Virou-se para os jurados. — Não se esqueçam de minhas instruções, cavalheiros. Estão advertidos de que não devem discutir o caso entre si e não devem permitir que ninguém mais o discuta, na presença de cada um. Não devem formar nem expressar qualquer opinião até que todas as provas sejam apresentadas. O tribunal entra em recesso até amanhã, às 10 horas. O juiz levantou-se ajeitando a toga preta, e retirou-se. Todos os demais permaneceram sentados, enquanto um oficial de justiça conduzia os jurados até uma porta lateral. Outro oficial de justiça aproximou-se de Ashley e tocou-o no ombro. O réu virou-se para Robison, o rosto vincado e cansado. Emagrecera consideravelmente no decorrer das últimas semanas e a pele estava flácida por baixo do queixo. Os olhos fundos estavam injetados e um músculo se contraía espasmodicamente na têmpora direita. — Amanhã não é o último dia, Mark? — Quase. — Robison não acreditava que sua defesa exigisse mais do que um dia de sessão do tribunal. — Só ficarão faltando as alegações finais e depois instruções do juiz. O oficial interveio: — Vamos indo, Sr. Ashley. — Preciso falar com você, Mark. É absolutamente ... vital. Havia uma súbita intensidade na voz de Ashley. Robison examinou seu cliente atentamente. — Está certo, Lloyd. Irei procurá-lo dentro de 15 minutos. Ashley partiu com o oficial, desaparecendo por uma porta atrás da bancada do juiz. Ainda havia uns poucos espectadores no tribunal. Robison reuniu seus papéis, guardando-os na pasta. Sentou-se, massageando os olhos fechados com as pontas dos dedos, ainda vendo o rosto de Ashley. O homem estava aterrorizado e com toda a razão, pensou Robison. Apesar da advertência do juiz aos jurados, para que não tirassem conclusões antecipadas, Robison sabia, por sua longa experiência, que isso já 86


acontecera. Tinha percebido os indícios. Era a maneira como os jurados tinham saído, evitando olharem um para o outro, mantendo o olhar sempre longe do réu. Ninguém gosta realmente de mandar outro ser humano para a cadeira elétrica. Ashley devia ter pressentido a mesma coisa, devia ter sido invadido pela sensação de tragédia iminente. Ao sair para o corredor, Robison viu Eve Ashley esperando junto aos elevadores. Ela parecia muito pequena e perdida ali. Robison seguiu em sua direção, mas ela foi arrastada pela multidão que descia antes que pudesse alcançá-la. A reação de Eve surpreendera-o. Ela estava dominada pelo remorso, culpando-se por tudo. Robison recordou a visita dela a seu escritório, logo depois do crime. Com uma expressão angustiada, Eve dissera: — Eu sabia que Lloyd era ciumento, mas jamais pensei que fosse fazer uma coisa dessas! — Ela estava muito nervosa, cruzando e descruzando as mãos. — Oh, Mark, vão mandá-lo para a cadeira elétrica! Sei que vão e será por culpa minha! Robison falara-lhe asperamente: — Em primeiro lugar, ninguém pode saber com certeza. Quero que se controle. Se desmoronar agora, não será nada bom para si mesma ... nem para Lloyd. Além do mais, a culpa não é sua. — A culpa é toda minha! Eu deveria ter imaginado! E veja o que fiz! Dois homens perdidos por minha causa! Tom já está morto e Lloyd também vai . . . — Pare com isso! Robison agarrara-a pelos ombros, sacudindo-a. Mas Eve continuara a gritar, insistentemente: — Você tem que salvá-lo! Por favor, Mark! Se você não o salvar, nunca mais irei perdoar-me! — Farei tudo o que estiver a meu alcance. Mas Robison sabia quais eram as possibilidades. O Estado possuía um caso sólido. Motivo, meios e oportunidade ... Ele desceu no elevador e seguiu para as celas dos réus em julgamento, perto da entrada da Rua White. Depois da rotina habitual, foi conduzido à sala de visitas. Trouxeram Ashley um momento depois. Sentaram-se em lados opostos da mesa. Com as mãos cruzadas sobre a mesa, Ashley disse: 87


— Quero saber a verdade, Mark. Quais são exatamente as minhas possibilidades. Robison deu de ombros. — O julgamento ainda não terminou. Ninguém pode prever como um júri irá comportar-se. — Pare com as evasivas, Mark. Olhei bem para os jurados ... vi as expressões deles... Robison deu de ombros novamente. — Há muitos anos que você é meu advogado, Mark. Já fizemos muitos negócios juntos. Tenho visto você em ação. Sei como sua mente funciona. É um homem astucioso, esperto, cheio de recursos. Tenho o maior respeito por sua capacidade. Mas... eu ... — Ashley hesitou, procurando pelas palavras certas. — Não está satisfeito pela maneira como estou cuidando de sua defesa, Lloyd? — Não foi isso que eu disse. — Acha que não estou explorando todos os ângulos possíveis? — Dentro das limitações legais, sei que está. Mas já o vi atuar em muitos outros casos antes. Sei como consegue manipular os jurados. Já o vi tirar muitos coelhos da cartola. Mas agora você está tão escrupuloso que mal reconheço aquele mesmo advogado de outros casos. Por que, Mark? O que aconteceu? — O problema é que não consigo encontrar uma única falha, Lloyd. Não há uma só abertura na argumentação da promotoria. Estou com as mãos atadas. — Pois trate de desatá-las. — Como? — Escute, Mark, você sabe quase tanto quanto eu a minha situação financeira. Sabe quanto herdei, sabe quanto mais ganhei. No momento, se não me engano, minha fortuna vai a quatro milhões de dólares. — Ashley fez uma pausa, apertando os lábios com força. — Talvez tenha sido por isso que Eve casou comigo. Mas não sei com certeza. Seja como for, é muito dinheiro, e eu gostaria de ter uma oportunidade de gastá-lo. Mas não terei essa oportunidade ... se me condenarem. Ashley fez outra pausa, umedecendo os lábios. — Morto, o dinheiro de nada me servirá. Vivo, posso fazer tudo o que desejo com muito menos do que tenho. Se há alguém que possa 88


salvar-me, mesmo a esta altura dos acontecimentos, é justamente você. Não sei como, mas tenho uma impressão ... um pressentimento, intuição, chame como quiser. Sei que você pode pensar em alguma coisa. Tem imaginação suficiente para isso. Sei que pode salvar-me. E é o único que pode fazê-lo! Robison ficou calado. Estava sentindo uma profunda excitação. Ashley inclinou-se para frente e disse em voz rouca: — Meio a meio. Proponho dividir com você tudo o que possuo. Metade para você, metade para mim. Honorários de dois milhões de dólares, Mark. Ficará financeiramente independente, pelo resto da vida. Precisa apenas descobrir uma saída. Quero ser absolvido. Robison apressou-se em dizer: — Está disposto a pôr isso no papel, Lloyd? — Claro! Robison tirou uma folha de papel em branco da pasta. Escreveu rapidamente, numa linguagem clara e objetiva. Entregou o papel a Ashley, que examinou rapidamente, pegou a caneta e assinou. Robison, com os dedos um pouco trêmulos, dobrou o documento e guardou-o. — Tem alguma idéia, Mark? O advogado continuou sentado, completamente imóvel, o rosto impassível desprovido de qualquer emoção. Tinha uma idéia, que não lhe era inteiramente nova. Recordava-se de ter sentado na cama abruptamente, três dias atrás, quando a idéia lhe ocorrera. Considerara-a por um momento, avaliando suas possibilidades. Mas tornara a recostar a cabeça no travesseiro, soltando uma risada na escuridão. Era uma idéia engenhosa, até mesmo um pouco divertida, pelo aspecto macabro, mas nada que devesse realmente usar. Agora, porém, estava pensando de maneira diferente, todos os escrúpulos desaparecidos. Havia um considerável poder de persuasão na oferta de honorários de dois milhões de dólares. Homens haviam cometido crimes da maior gravidade, inclusive homicídios por muito menos. Percebia agora nitidamente as possibilidades de sua idéia ousada. Não havia garantia de sucesso, é verdade. Teria que enfrentar alguns imponderáveis ... a maioria nas mentes de doze homens, os doze jurados do processo. — Deixe tudo comigo — disse Robison, levantando-se abruptamente. — Relaxe, Lloyd. Tente dormir um pouco esta noite. — E encaminhou89


se para a porta, com um aceno autoritário para o guarda. O sol já estava se pondo e esfriara um pouco. Robison caminhava rapidamente, os detalhes do plano se agitando em sua mente. Ético? Dificilmente alguém poderia dizer que fosse. Mas Robison não era freqüentemente perturbado por delicadas considerações morais. Como advogado criminal, sempre fora bem-sucedido. Sua voz era um instrumento precioso. Podia ser gentil e simpática, contundente e desdenhosa. Ainda havia quem se recordasse do último caso de Robison como assistente da promotoria, quando reinquirira selvagemente o réu, acusado de assalto à mão armada. Conseguira a condenação. Ao ser anunciada a pena máxima, o réu, furioso, jurara vingança. Posteriormente, Robison recebera cartas de ameaças de parentes do condenado. Fora por isso que Mark Robison solicitara uma licença para porte de arma. E todo os anos a renovava. Sempre levava a licença na carteira. Foi até a Rua Centre, não muito longe da chefatura de polícia, entrando numa pequena loja especializada em armas de fogo. Examinou as armas disponíveis e acabou escolhendo uma automática Colt, modelo de bolso, calibre 32. Comprou também uma caixa de balas. O proprietário conferiu a licença dele e depois embrulhou a arma e a munição. Robison pegou um táxi e foi para seu escritório. A secretária, Srta. Graham, parou de bater à máquina para entregar-lhe a relação das pessoas que haviam telefonado. Vendo a expressão preocupada de Robison, não lhe fez qualquer pergunta a respeito do julgamento. Ele seguiu imediatamente para sua sala. Fora recentemente redecorada e Robison estava muito satisfeito com o resultado. Na parede do outro lado, de frente para a escrivaninha, estavam os retratos de nove ministros da Suprema Corte dos Estados Unidos. A ocorrência extraordinária, na presença daqueles veneráveis juristas, provavelmente não tinha precedentes em suas experiências coletivas. Mark Robison abriu o embrulho e por um momento ficou com a arma na mão, pensativo. Depois, sem mais hesitação, colocou três balas no pente e encaixou-o no lugar. O queixo estava firmemente cerrado quando apontou para o braço esquerdo, um pouco acima do cotovelo, e puxou o gatilho. A explosão provocou um zumbido em seus ouvidos. Robison não era um estóico. Sentiu a dor, como um ferro em brasa a lhe queimar a carne, e gritou. No instante seguinte, rangendo os dentes, empurrou com 90


o polegar a trava de segurança. A porta se abriu logo em seguida e o rosto apreensivo de Miss Granam apareceu. Aturdida, ela via a palidez cada vez maior de Robison e a mancha vermelha que se espalhava na manga do paletó. E soltou um grito. — Não foi nada — disse-lhe Robison, rispidamente. — Foi apenas um acidente. Não fique parada aí com essa cara de espanto. Vá chamar um médico. Há um no fim do corredor. A secretária saiu correndo. A história que contou foi suficiente para levar o médico a interromper o que estava fazendo e vir correndo com sua maleta. Olhando para a arma, com profundo desagrado, o médico disse: — O que aconteceu? Outro daqueles acidentes do tipo eu-não-sabia-querestava-carregada? — Não foi bem isso — respondeu Robison, secamente. — Vamos tirar o paletó antes de mais nada. O médico ajudou-o, depois rasgou a manga da camisa do punho ao ombro, expondo o ferimento e examinando a área já inchada. A bala abrira um sulco raso na carne. — Parece pior do que realmente é — comentou o médico. — Teve muita sorte. Nenhum músculo ou artéria foi atingido. Houve alguma perda de tecido e terá problemas com a articulação por algum tempo ... Ele pegou a maleta preta e tirou um vidro de antiséptico. Derramou no ferimento. Robison sentiu arder como se fosse fogo. Depois de fazer o curativo, o médico recuou, como se avaliasse sua perícia. E disse em seguida, em tom de desculpas: — Conhece a lei melhor do que eu. Sempre que um médico é chamado para cuidar de um ferimento a bala, é obrigado a comunicar à polícia. Não tenho alternativa. Robison conteve um sorriso. Se o médico ignorasse a lei, teria imediatamente tratado de informar. Afinal, queria que a polícia viesse interrogá-lo. Era uma parte essencial do plano. Já podia imaginar as manchetes: Robison Ferido Acidentalmente — Advogado de Defesa Baleado ao Efetuar Teste. E as notícias contariam como ele tentara reconstituir as condições existentes no escritório de Tom Ward, deixando a arma cair em cima de sua mesa, deliberadamente .. . Pontualmente às 10 horas da manhã seguinte, um oficial de justiça entoou o ritual: 91


— Que todos se levantem para o Meritíssimo Juiz do Tribunal de Sessões Gerais do Condado de Nova York! A porta por trás da bancada se abriu e o Juiz Cobb entrou, metido na toga preta. — Sentem-se, por favor — disse o oficial de justiça. — O tribunal está em sessão. O Juiz, curioso, olhou para Robison, vendo o braço ferido, apoiado numa tipóia de seda preta, que passava em torno do pescoço do advogado de defesa. — Chamem a testemunha — disse o juiz. James Keller prestou juramento outra vez e ocupou o banco das testemunhas. Os doze jurados inclinaram-se para a frente, excitados, na expectativa. O Promotor Herrick, na mesa de acusação, estava vigilante e cauteloso. Robison sorriu interiormente, recordando o cumprimento tenso do seu adversário na causa. Será que Herrick já estava desconfiando? Possivelmente. — A defesa pode reinquirir a testemunha — disse o Juiz Cobb. Houve um murmúrio entre os espectadores quando Robison se levantou. Ele se virou ligeiramente, para que todos vissem o braço ferido na tipóia improvisada. Percebeu Eve Ashley na primeira fila, os olhos com uma súplica eloqüente. Robison foi até a mesa do oficial de justiça e pegou a arma de Ashley. Segurando-a, encaminhou-se para Keller. — Sr. Keller, se bem me recordo, declarou ontem que disparou uma bala com esta arma. Certo? — Certo. — Keller estava visivelmente cauteloso. — Soltou a trava de segurança antes de efetuar o teste? — Claro. Se não o tivesse feito, até hoje ainda estaria no laboratório puxando o gatilho sem que nada acontecesse. Alguém no tribunal soltou uma risadinha e um dos assistentes de Herrick sorriu. A autoconfiança de Keller aumentou visivelmente. Robison fitou-o com uma expressão severa. — Este não é o momento apropriado para piadinhas, Sr. Keller. Sabia que seu depoimento pode enviar um homem inocente para a cadeira elétrica? Herrick levantou a mão imediatamente. — Peço que o último comentário não conste dos autos. 92


— Objeção aceita — disse o Juiz Cobb. — O comentário não constará dos autos e os jurados não devem levá-lo em consideração. Robison retomou a reinquirição: — Está absolutamente certo de que a trava de segurança tem que ser solta antes que a arma possa ser disparada? — Estou. — E tem igualmente certeza absoluta de que a trava de segurança de uma arma deste tipo não pode desprender-se acidentalmente em determinadas circunstâncias? Keller hesitou por um instante. — Bem . .. tenho, sim. Pelo menos ao que eu saiba ... — Alguma vez já realizou um teste assim? — Não estou entendendo. — Alguma vez carregou esta arma, a Prova B do Estado, e experimentou deixá-la cair sobre uma superfície dura? — Eu ... eu . .. não, senhor. — Mesmo sabendo que a defesa iria basear-se justamente nesse detalhe? Keller remexeu-se na cadeira, nervosamente. Lançou um olhar para Herrick. Mas não encontrou qualquer apoio ou ajuda no rosto inexpressivo do promotor. — Por favor, Sr. Keller, responda a minha pergunta. — A voz de Robison já não era mais cordial. — Não, senhor. Não fiz esse teste. — Por que, Sr. Keller? Por que não fez esse teste? Não acha que era algo óbvio a fazer? Ou será que receava que o teste pudesse confirmar as alegações do réu? — Não, senhor, não foi por isso. — Então por que não fez o teste? — Porque não me ocorreu — murmurou Keller, visivelmente embaraçado. — Não lhe ocorreu ... Entendo. Um homem é acusado de homicídio em primeiro grau. Pode acabar na cadeira elétrica. E nunca lhe ocorreu fazer um teste simples que poderia determinar se ele estava ou não dizendo a verdade. Keller ficou vermelho. Não disse nada, remexendo-se na cadeira, cada vez mais nervoso. 93


— Gostaria de que constasse dos autos que a testemunha não respondeu — disse Robison. — E agora, Sr. Keller, vamos a um outro ponto. Declarou que uma arma deste tipo não pode ser disparada se cair numa superfície dura, não é mesmo. — Com a trava de segurança no lugar. — Claro, claro. — Eu .. . acho que falei isso mesmo. — Não tem a menor dúvida? Keller engoliu em seco, olhando para o braço de Robison. — Bem . .. não. — Pois vamos ver. Robison passou a arma para a mão esquerda, segurando-a com os dedos inchados. A mão direita tirou um pente de balas calibre 32 do bolso do paletó. Seus movimentos eram um tanto desajeitados, enquanto encaixava o pente no lugar e punha uma bala em posição de ser disparada. Chegou mais perto da testemunha e começou a estender-lhe a arma com a mão esquerda. Mas parou no meio do movimento, contraindo o rosto numa carranca de dor. Era uma expressão altamente dramática. Depois, passou a arma para a mão direita e estendeu-a à testemunha. E disse, em voz clara e incisiva: — E agora, Sr. Keller, pode fazer a gentileza de verificar a trava de segurança da Prova B do Estado e dizer-nos se está na posição correta para impedir o disparo? — Está, sim. — Pode fazer a gentileza de levantar a arma, Sr. Keller? Gostaria que provasse ao Meritíssimo Juiz, aos doze jurados e todos os espectadores neste tribunal que a arma em questão não pode ser disparada se cair em cima da bancada do juiz. Levante-a e largue-a, Sr. Keller. Ou pode também bater com ela. Um murmúrio se espalhou pelo tribunal, enquanto Herrick avançava rapidamente até o juiz. Os músculos da boca estavam contraídos de raiva. — Protesto, Meritíssimo! Isto é altamente irregular, uma farsa barata e inerentemente perigosa a todos... — O Promotor parou de falar abruptamente, percebendo o que acabara de dizer. Engoliu em seco, nervosamente. Suas palavras, proferidas impulsivamente, haviam insinuado uma possibilidade, embora remota, de que a arma poderia disparar. 94


Em contraste, Robison parecia extremamente calmo. — Gostaria de lembrar a este tribunal que a testemunha fez uma declaração sob juramento, como um perito devidamente qualificado. Estou simplesmente pedindo-lhe que prove sua declaração de perito. O Juiz Cobb decidiu, sem o maior prazer: — Objeção rejeitada. — Continue, Sr. Keller, por gentileza — disse Robison. — Prove a este tribunal que a Prova B do Estado não poderia possivelmente disparar nas circunstâncias alegadas pelo réu. Um silêncio tenso baixou sobre o tribunal no momento em que Keller se levantou. Ele ergueu a arma lentamente, com uma expressão de ansiedade e apreensão. Robison prendeu a respiração no momento em que Keller torceu o braço. O juiz começou a abaixar-se, procurando oferecer o menor alvo possível ao disparo temido. — Estamos esperando, Sr. Keller — disse Robison, suavemente. Gotas de suor surgiram nas têmporas de Keller. Teria flexionado os músculos? Teria levantado a arma um pouco mais alto? Ninguém no tribunal podia ter certeza. — Por favor, Sr. Keller, continue — disse Robison, um pouco asperamente agora. — O tribunal não pode ficar o dia inteiro a sua disposição. Os olhos dos dois se encontraram. Deliberadamente, Robison ajeitou a tipóia. Keller respirou fundo e depois, bruscamente, voltou a sentarse. Baixou a mão com a arma até os joelhos. Ouviu-se um suspiro de alívio geral no tribunal. Todos concordaram que, depois disso, o veredicto era inevitável. A alegação final de Robison foi um modelo de oratória forense. E o juiz, ao instruir o júri para que só condenasse o réu acima e além de qualquer suspeita, não deixou qualquer alternativa. Os jurados confabularam por menos de uma hora e voltaram com o veredicto de inocente. Lloyd Ashley não demonstrou o menor júbilo. A tensão deixara-o à beira de um colapso nervoso. Robison tocou-lhe o ombro. — Está tudo acabado, Lloyd. Você está livre agora. Podemos ir para o meu escritório. Creio que temos de acertar alguns negócios. Ashley levantou-se, com um sorriso ainda tenso. — Tem razão, Mark. Abriram caminho por entre a multidão até a rua e chamaram um 95


táxi. As alegações finais, as instruções do juiz e a confabulação do júri haviam consumido quase que a tarde inteira. Já estava escurecendo quando chegaram ao escritório de Robison. Para comemorar a vitória, Robison pegou uma garrafa de uísque e dois copos. Ambos tomaram o drinque num só gole. Robison ofereceu um charuto ao cliente e acendeu-o. Ashley recostou-se na cadeira, aspirando a fumaça. — Eu sabia que você podia conseguir, Mark. Cumpriu sua parte do acordo. E suponho que deseja agora que eu cumpra a minha. Robison fez um gesto de indiferença. — Tem aí uma promissória em branco, Mark? Robison sabia que havia um bloco de promissórias em branco na ante-sala. Mantinha-o sempre a mão, para clientes que precisavam de seus serviços, mas que vinham procurá-lo com recursos insuficientes. Foi até a outra sala, vasculhou o armário e finalmente encontrou o bloco de promissórias. Lloyd Ashley mudara de lugar e estava agora sentado atrás da escrivaninha. Pegou a promissória em branco e a caneta de Robison. Sem a menor hesitação, preencheu uma promissória no valor de dois milhões de dólares. — Eu disse que seria meio a meio, Mark. Talvez haja mais alguma coisa para você. Saberemos ao certo depois que meu contador fizer um levantamento. Robison pegou a promissória, os olhos arregaçados contemplando a cifra. O braço ferido latejava um pouco, mas ele não se importou. Ouviu ao longe a voz de Ashley, soando muito suave e estranha: — Isso mesmo, Mark, você ainda vai receber mais. E posso até dar um jeito para que receba agora mesmo. Robison levantou a cabeça e viu a automática calibre 32 na mão de Ashley. O polegar dele estava na trava de segurança. — Descobri isto em sua mesa, Mark. Deve ser a arma que usou ontem à noite. Não acha irônico, Mark? Agora você possui a coisa que considera mais importante no mundo: dinheiro. E a ironia é que nunca poderá gastar um só centavo. Robison não gostou da expressão nos olhos de Ashley. — De que está falando, Lloyd? — Lembra-se daquele detetive particular que me recomendou? 96


Depois que tive aquele problema com Ward, não houve oportunidade de suspender os serviços dele. E assim ele continuou a vigiar Eve, enquanto eu estava na cadeia. E apresentou um novo relatório, há dois dias. Creio que não preciso falar-lhe a respeito ... que não preciso dizer com quem ela andava se encontrando, quem é realmente o outro homem. Robison empalicedeu. A arma na mão de Ashley estava firme. — Sabe, Mark, eu o considero responsável pela morte de Ward tanto quanto eu. Ou quase tanto. Afinal, quem persuadiu Eve a usá-lo como chamariz, a fim de que você e ela pudessem se encontrar em segurança? A idéia só pode ter sido sua. Eve jamais teve tanta imaginação. O rosto de Robison estava agora coberto de suor e sua voz se reduzira a um sussurro rouco: — Espere, Llyod ... tem de me escutar... — Não, Mark, prefiro não escutar. Você é muito bom em matéria de convencer os outros. Vi uma demonstração de sua capacidade hoje, no tribunal. Estou planejando isso há dois dias. Descobrir sua arma apenas serviu para acelerar as coisas. Acho que há nisso tudo alguma espécie de justiça. Você me forçou a matar o homem errado. E agora eu não vejo motivo para não matar o homem certo. Dos dois tiros disparados, Mark Robison ouviu apenas o primeiro.

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O ESTRANHO CASO DO SR. PRUYN William F. Nolan Antes que ela pudesse gritar, a mão enluvada tapou sua boca. Sorrindo, ele desferiu-lhe uma joelhada no estômago e depois recuou rapidamente, observando-a cair no chão, a se contorcer, ofegante, procurando desesperadamente absorver um pouco de ar. Como urn peixe fora d’água, pensou ele. Como um maldito peixe fora d’água. Ele tirou o quepe azul e limpou o suor da cinta de couro. Estava quente, terrivelmente quente. Olhou para a moça. Ela estava rolando pelo chão, esbarrando nos móveis, procurando recuperar o fôlego. Não poderia gritar até recuperar o fôlego. E antes que isso acontecesse ... Ele atravessou a sala pequena até uma cadeira do outro lado. Abriu a sacola de ferramentas de couro preto que ali deixara. Hesitou por um momento, tornou a olhar para a moça. — Para você — murmurou ele, virando ligeiramente a cabeça, com um sorriso nos lábios. — Só para você. Lentamente, tirou um facão de caça da bolsa, de lâmina comprida. Suspendeu-o, para que a moça visse. Ela ofegava, angustiada. Os olhos se esbugalharam, a boca se abriu e fechou, procurando absorver um pouco de ar. Afinal, você não é nada linda, pensou ele, encaminhando-se para a 98


moça, bem devagar, empunhando a faca. Bonita, mas não linda. As mulheres lindas não deveriam morrer. Eram raras demais. Era muito triste ver a beleza desaparecer. Mas você . . . Ele parou ao lado dela, contemplando-a. O rosto estava vermelho e inchado. Não estava de batom. Nem mesmo estava bonita agora. Não houvera qualquer surpresa quando abrira a porta. Se ela estivesse bonita, ele teria ido embora, dizendo que fora um engano. Bateria no apartamento seguinte. Mas ela nada era. Os cabelos enrolados. De avental. Nada. Ele ajoelhou-se, segurou o braço dela e puxou. — Não se preocupe — disse suavemente. — Não vai demorar nada. Ele não parou de sorrir. — Há um tal de Sr. Pruyn lá fora. Diz que deseja falar sobre o Caso Sloane. — Mande-o entrar.— O Tenente Norman Bendix soltou um suspiro e recostou-se na cadeira giratória. Estava exausto. Com todos os diabos, pensou ele, mais um! Até meu garoto de quatro anos podia aparecer aqui com uma história melhor. Eu a apunhalei com minha caneta, papai. Doidos, eram todos doidos! Em seus 15 anos de polícia, já conversara com dezenas de malucos que “confessavam” os crimes misteriosos que liam nos jornais. E só uma vez acertara no alvo. O cara estava mesmo contando a verdade. Todos os fatos conferiam. Mas era uma exceção. Os assassinos não costumam procurar a polícia para contar o que fizeram. Geralmente é um cara com muita imaginação e um excesso de drinques na cabeça. O Caso Sloane era um exemplo de primeira. Já tinha havido cinco “confissões”. Cinco rebates falsos. Marcia Sloane, 27 anos, dona-de-casa. Assassinada em seu apartamento. Em pleno dia. A garganta cortada. Sem qualquer motivo aparente. Sem pistas. O marido estava no trabalho. Ninguém viu ninguém. Bendix soltou uma imprecação. Malditos jornais! Sairia sangue se se torcesse um deles. Adoravam publicar todos os detalhes sangrentos. E na primeira página. Só deixavam de lado os pequenos detalhes, aqueles que realmente tinham importância, pensou Bendix. Como o fato de que Marcia Sloane recebera exatamente 21 talhos no corpo, abaixo da garganta. Ou o fato de que tinha uma tremenda equimose na barriga. Levara um chute ali, com toda força, antes de morrer. Eram pequenos detalhes, 99


mas que somente o assassino podia saber. E o que acontecia então? Meia dúzia de malucos apareciam para confessar. E era ele quem tinha de ouvir. Mas alguém tem de ouvir, não é mesmo, Norman? E você é que virou o Mister Ouvidos. Parte do massacre diário. O Tenente Norman Bendix pegou um cigarro, acendeu-o e ficou observando a porta se abrir. — Aqui está ele, Tenente. Bendix inclinou-se sobre a mesa, cruzando as mãos. O cigarro, pendurado no canto da boca, sacudiu-se a cada palavra: — Entre, Sr. Pruyn, entre. Um homem pequeno estava parado diante da escrivaninha, calvo, sorrindo nervosamente, retorcendo um chapéu cinza de feltro. Em tomo dos 30 anos, calculou Bendix. Provavelmente um recluso. Vive sozinho num apartamento pequeno. Não tem nenhum hobby. Pensa demais. Esses nem precisam dizer nada. Posso farejá-los a um quilômetro de distância. — É o cavalheiro com quem devo falar a respeito do meu assassinato? — indagou o homenzihho. A voz era estridente, indecisa. Ele piscava rapidamente por detrás das lentes grossas dos óculos. — Sou o homem que está querendo, Sr. Pruyn. Meu nome é Bendix. Tenente Bendix. Não quer sentar-se? — Bendix indicou uma cadeira estofada de couro. — Não sei por que todo mundo pronuncia meu nome errado, Tenente. O nome todo é Emery T. Pruyn. — O que tem para nos contar, Sr. Pruyn? — Desta vez, Bendix procurou pronunciar o nome corretamente. — Espero que seja realmente o homem certo, Tenente. Detestaria ter que repetir a história para outra pessoa. Tenho verdadeiro horror à repetição. — Sou mesmo o homem certo, Sr. Pruyn. E agora, por favor, conte sua história. Vamos, comece a delirar, pensou Bendix. Esta sala precisa de um item da maior importância: um divã de couro, como nos consultórios psiquiátricos. Ele ofereceu um cigarro ao homenzinho. — Não, obrigado, Tenente. Não fumo. Nem tampouco assassina, acrescentou Bendix mentalmente. Tudo o que você faz, meu caro Pisca-Pisca, é ler os jornais. 100


— É verdade que a polícia não tem nenhuma pista, Tenente? — É o que dizem os jornais, Sr. Pruyn. E eles sempre noticiam os fatos. — Tem razão. É que eu estava curioso sobre o meu trabalho, Tenente. O que é bastante natural. — Ele fez uma pausa para ajeitar os óculos, piscando novamente.— Quero assegurar-lhe, Tenente, de saída, que sou realmente o culpado. Cometi um assassinato. Bendix assentiu. Muito bem, Pisca-Pisca, estou devidamente impressionado. — Eu ... ahn .. . imagino que vai querer gravar minha confissão ou algo assim... Bendix sorriu. — O guarda Barnhart irá anotar tudo o que disser. É perito em taquigrafia. Não é mesmo, Pete? Barnhart sorriu, do outro lado da sala. Emery Pruyn olhou nervosamente para o guarda uniformizado sentado perto da porta. — Não percebi que o guarda tinha ficado. Pensei que já tivesse saído. — Ele é muito discreto — comentou Bendix, soprando para o alto uma nuvem de fumaça azul. — Continue a contar sua história, Sr. Pruyn. — Está bem. Sei que não pareço um assassino, Tenente Bendix, mas... — Ele fez uma nova pausa, soltando uma risadinha e piscando. — Mas raramente parecemos aquilo que somos. Os assassinos, afinal de contas, podem parecer-se com qualquer pessoa. Bendix teve que esforçar-se ao máximo para conter um bocejo. Por que aqueles malucos sempre escolhiam o final da tarde para descarregar? Estava morrendo de fome. E se deixar esse cara falar à vontade; pensou, ficarei aqui pelo resto da noite. E Helen vai ficar furiosa se eu chegar atrasado para o jantar. É melhor apressá-lo com algumas perguntas mais diretas. — Como foi que entrou no apartamento da Sra. Sloane? — Estava disfarçado. — Pruyn sorriu, inclinando-se para frente. — Apresentei-me como um homem da televisão. — Um técnico de televisão? — Claro que não. Assim eu não conseguiria entrar, pois não teria meios de saber se a Sra. Sloane chamara ou não um técnico. Assumi o papel de um representante da televisão. Disse à Sra. Sloane que o nome 101


dela fora escolhido, juntamente com quatro outros do bairro, para uma conversão gratuita. — Conversão? — Isso mesmo. A conversão de uma televisão preto-e-branco para colorida. Li a respeito disso. — Entendo. E ela deixou-o entrar? — Deixou. Estava inteiramente convencida e sentindo-se muito grata por seu nome ter sido escolhido, excitada e falando depressa. Deve saber como as mulheres se comportam numa situação dessas. Bendix assentiu. — Ela me convidou a entrar. Disse que o marido ficaria deliciado quando chegasse em casa e descobrisse o que ela ganhara. Disse que seria uma surpresa maravilhosa para o marido. — O Sr. Pruyn fez outra pausa, sorrindo e piscando. — Entrei com a minha bolsa de couro, metido num macacão azul e num quepe que tinha comprado no dia anterior. Se quiser o nome e endereço da loja para verificar... — Isso não é necessário no momento. Conte-nos primeiro como foi o crime. Teremos tempo para verificar os detalhes depois. — Está certo. Apenas pensei... Bem, larguei a minha bolsa ... — Bolsa? — Isso mesmo. Carrego na bolsa uma chave inglesa e outras coisas assim. — Para quê? — Para usar como armas — explicou Pruyn, sorrindo e piscando — Gosto de levar todas e na hora escolho a que mais se ajusta. — Como assim? — A que mais se ajusta à personalidade da vítima. Simplesmente escolho a arma que me parece mais apropriada. Cada pessoa possui uma personalidade diferente, — Quer dizer que já tinha matado antes? — Claro, Tenente. Cinco vezes, antes da Sra. Sloane. Cinco mulheres. — E por que esperou para vir procurar a policia; por que nao veio confessar seus crimes antes? — Porque achei melhor não fazê-lo. Porque meu objetivo ainda não tinha sido alcançado. — E que objetivo era esse? 102


— Chegar a seis. No início, decidi matar exatamente seis mulheres e depois entregar-me à polícia. O que fiz. Cada pessoa deve ter um objetivo na vida. O meu era cometer seis assassinatos. — Entendo. Mas vamos voltar ao caso da Sra. Sloane. O que aconteceu depois que ela o deixou entrar? — Larguei minha bolsa numa cadeira e fui para perto dela. — E onde ela estava? — No meio da sala, observando-me. E sorria. Muito amistosa. Fazendo perguntas sobre o funcionamento do plano de conversão gratuita. Sem suspeitar de nada. Até que ... — Até o que, Sr. Pruyn? — Até que percebeu que eu não estava dando nenhuma resposta. Fiquei simplesmente parado diante dela, sorrindo, sem dizer uma só palavra. — E o que ela fez? — Ficou nervosa. Parou de sorrir. Perguntou por que eu não estava ainda trabalhando no aparelho de TV. Continuei calado, só vendo o medo aumentar cada vez mais nos olhos dela. — O homenzinho fez outra pausa. Estava agora suando, ofegando depressa. — É uma coisa maravilhosa observar o medo nos olhos de uma mulher, Tenente. Uma coisa realmente maravilhosa ... — Continue. — Ela chegou a um ponto tal de nervosismo que senti que ia gritar. Antes que ela gritasse, tapei-lhe a boca com a mão e chutei-a. Bendix prendeu a respiração. — Fez o quê? — Eu disse que a chutei... na barriga ... para tirar o ar dos pulmões dela. Assim, ela não poderia gritar. Bendix apagou o cigarro rapidamente. Talvez, pensou ele, talvez ... — O que aconteceu em seguida, Sr. Pruyn? — Fui até a bolsa e escolhi a faca. Uma lâmina comprida. Bom aço. Voltei até a Sra. Sloane e cortei-lhe a garganta. E fiquei muito satisfeito. Um objetivo alcançado e conquistado. — E isso é tudo? Se ele falar dos 21 talhos, pensou Bendix, então é o homem que estamos procurando. O chute na barriga talvez tenha sido inventado por ele. Mas se falar sobre os talhos... 103


— Oh, não Tenente! Tem mais. Rolei o corpo e deixei minha marca registrada. — E qual é essa marca registrada? O homenzinho sorriu timidamente por detrás das lentes grossas. — Algo como a Marca do Zorro. Minhas iniciais, nas costas dela. E.T.P. Emery T. Pruyn. Bendix recostou-se na cadeira e deixou escapar um suspiro. Acendeu outro cigarro. — Depois, cortei as orelhas — anunciou Pruyn orgulhosamente. — Para a minha coleção. Já tenho agora seis lindos pares de orelhas. — Estão aí com você? — Oh, não, Tenente. Eu as guardo em casa, numa caixa de metal, na minha escrivaninha antiga de pau-rosa. — Isso é tudo? — É sim. Depois que cortei as orelhas, deixei o apartamento e voltei para casa. Isso foi há três dias. Arrumei meus negócios, pus tudo em ordem e vim entregar-me. Estou pronto para ser trancado numa cela. — Não haverá cela nenhuma, Sr. Pruyn. — Como assim, Tenente? — O lábio inferior de Emery Pruyn começou a tremer. Ele levantou-se. — Eu ... eu ... não compreendo ... — Estou querendo dizer que pode ir para casa agora. Volte amanhã, pela manhã. Por volta das oito horas. Vamos tratar então dos detalhes ... como o nome da loja de roupas e tudo o mais. Veremos depois o que vai acontecer. — Mas... mas... — Boa noite, Sr. Pruyn. O guarda Barnhart o acompanhará até a saída. Da porta da sala, Norman Bendix ficou observando os dois homens se afastarem pelo corredor estreito. Um homenzinho estranho, pensou ele, realmente estranho... Emery T. Pruyn saiu com o Ford do estacionamento da polícia e partiu pelo tráfego de fim de tarde. Tão fácil! Tão maravilhosamente fácil e satisfatório! Oh, a emoção de tudo aquilo, de sua entrada na própria Cova do Leão! Quase que a mesma emoção da faca. E aquela parte do chute na barriga ... Perigosa, é verdade, mas maravilhosa! Ele recordou a expressão do tenente quando 104


falara no chute. Que maravilha! Emery Pruyn estava sorrindo enquanto guiava. Teria mais emoçþes pela frente. Muito mais...

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O CONTRABANDISTA QUE ESCAPOU Al Nussbaum Era noite de sábado e eu observava os carros que vinham de Tijuana. Os carros paravam a meu lado e eu fazia aos ocupantes as perguntas usuais: “Onde nasceu?” e “Está trazendo alguma coisa consigo?” De vez em quando examinava um caminhão ou dizia ao motorista de um carro para sair da fila, a fim de que o carro fosse revistado. Mas não o fazia com freqüência, apenas quando recebíamos o aviso de algum informante ou quando o motorista se mostrava excepcionalmente alegre e amistoso. Ou quando eu tinha um dos meus pressentimentos. Não tenho muitos pressentimentos, mas quase todos provaram ser acertados. Assim, sempre lhes dispenso a maior atenção. E tive um pressentimento quando vi Jack Wilner. Ele estava na pista oposta, seguindo para o México, ao volante de um reluzente conversível amarelo. A capota estava arriada e o rádio ligado a todo volume, sintonizado numa emissora de San Diego que só transmitia rock. Achei que estava ostensivo demais, como o truque do mágico para desviar a atenção dos espectadores. Era o início do meu turno. Eu estava trabalhando de oito da noite às quatro da madrugada, e por isso anotei a placa do conversível, pensando em revistá-lo quando voltasse. Fiquei atento à volta do carro, mas ele não apareceu até que lar106


guei o serviço. Dei aos homens que me substituíram o número da placa e a descrição do carro e fui para casa. Na noite seguinte, ao voltar para o serviço, eu tinha esquecido o conversível amarelo quase que totalmente. Tornei a vê-lo na noite de sábado. A capota estava arriada, o rádio a todo volume. E seguia para Tijuana, como na vez anterior. Tive o mesmo pressentimento que na vez anterior. Fui ao telefone e liguei para a aduana, a alfândega mexicana, pedindo que verificassem o conversível. Ao voltar para meu posto, vi que os mexicanos já haviam tirado o conversível amarelo da fila de carros. Estava cercado por homens de uniforme caqui, que revistavam a mala e o capô, desmontavam as portas. Jack Wilner — é claro que eu não sabia então como se chamava — estava de pé ao lado do carro, fumando um cigarro, despreocupado. Era alto e magro. Mesmo a distância, pude reparar que estava vestido com uma indiferença juvenil à combinação de cores. Concentrei-me nos carros que entravam no país e não olhei para o outro lado da estrada durante quase uma hora. Quando finalmente o fiz, foi bem a tempo de ver o conversível amarelo afastando-se da aduana. Wilner virou-se e acenou para as autoridades mexicanas, antes de acelerar. O que significava que os mexicanos nada tinham encontrado. Neste caso, raciocinei, Wilner só podia estar contrabandeando alguma coisa para os Estados Unidos. Fiquei atento à volta dele. Ao terminar meu turno, deixei com os outros o número da placa e a descrição do carro. Pedi que transmitissem as informações ao pessoal do turno seguinte, caso o conversível amarelo não aparecesse antes. Minhas folgas eram na segunda e terça-feira. Mas liguei para o posto da alfândega nas duas noites, a fim de indagar se o conversível aparecera. Não tinha aparecido e também não apareceu durante o resto da semana. O conversível simplesmente não passou de volta por nosso posto na fronteira. Na noite de sábado, pouco depois de começar meu turno, olhei para o outro lado e vi o conversível amarelo seguindo para o México, mais uma vez. Fiquei observando-o por um momento e subitamente censurei-me mentalmente por ser tão estúpido. Só porque o conversível deixara os 107


Estados Unidos naquele ponto, isso não significava que devesse voltar também por ali. México e Califórnia têm uma fronteira de quase 150 quilômetros e havia muitos outros lugares pelos quais ele poderia retornar aos Estados Unidos. Até aquele momento, minha averiguação sobre as atividades do motorista do conversível amarelo tinha sido justamente isso — minha averiguação. O que não era suficiente. Fui falar com meu supervisor e relatei o pressentimento que tivera. E ele imediatamente avisou os outros postos de controle ao longo da fronteira México—Califórnia. Um guarda alfandegário tem que se basear em informantes e no instinto. Os informantes são responsáveis por 90 por cento das prisões efetuadas. Os outros 10 por cento são decorrentes de pressentimentos como os meus. Voltei para o meu lugar e fiquei esperando. Deveríamos ser avisados assim que o conversível amarelo fosse revistado, na volta aos Estados Unidos. Mas não recebemos qualquer aviso. No sábado seguinte, no pique do tráfego na fronteira, avistei novamente o conversível amarelo seguindo para o México. A princípio, pensamos que nada fora descoberto na revista em outro posto de fronteira e que o pessoal de lá esquecera de nos avisar. Mas meu supervisor decidiu certificar-se e procurou descobrir em que posto o conversível passara, no retorno aos Estados Unidos. Recebeu a resposta meia hora depois: em nenhum posto. Ninguém vira o carro passar. Em algum lugar, ao longo da fronteira de 150 quilômetros, Wilner descobrira um meio de atravessar a fronteira sem ser detido pelas autoridades alfandegárias para uma revista. Ele podia seguir para o México, carregar o carro com o contrabando que bem desejasse e voltar para os Estados Unidos sem se preocupar com o pagamento de taxas e sem temer a possibilidade de prisão. Tínhamos que descobrir onde estava a falha e corrigi-la prontamente. Um telefonema para o Departamento de Trânsito revelou-nos o nome verdadeiro e o endereço de Jack Wilner, em San Diego. Foi providenciada uma vigilância de 24 horas por dia sobre o apartamento dele e ficamos à espera. Wilner só voltou para casa na quarta-feira. Deixou o conversível amarelo na garagem e subiu para o apartamento. Só saiu de casa para fazer compras e outras coisas assim, até a noite de sábado. Seguiu então na direção da fronteira do México, enquanto um 108


carro cheio de agentes alfandegários ia a 50 metros atrás. Fiquei observando os carros passarem pelo outro lado da estrada e senti-me satisfeito. Tinha certeza de que tudo daria certo e não demoraria muito para que o prendêssemos. Mas eu estava enganado. Os agentes voltaram uma hora depois. Tinham ficado presos no tráfego intenso da Avenida Revolución, enquanto Wilner entrava subitamente numa rua transversal. Tinham perdido a pista dele. Eu estava desapontado e eles furiosos. Tinham certeza de que a manobra de Wilner fora deliberada. Foi distribuído um aviso de apreensão do carro, assim que voltasse aos Estados Unidos. Se fosse encontrada até mesmo uma única semente de marijuana, Wilner estaria metido na maior encrenca. Recebi uma autorização especial para acompanhar os agentes e estava no local quando Wilner retornou a seu apartamento, na quartafeira seguinte. Ficou patente, pela surpresa que ele demonstrou ao lhe ser apresentado o mandado de busca e apreensão, que não despistara intencionalmente os seus seguidores, no sábado anterior. Era evidente que até aquele momento não desconfiava de que se tornara um suspeito. Revistamos o carro e nada descobrimos. Absolutamente nada. Ele devia tê-lo limpado recentemente, por dentro e por fora, pois o carro estava impecável. Não havia nem mesmo cinza nos cinzeiros. Wilner ficounos observando desmontar o carro e depois remontar. Mas não parecia estar tão descontraído quanto naquele dia na fronteira em que os mexicanos tinham feito a mesma coisa. A todo momento passava a língua pelos lábios, nervosamente, e deslocava o peso do corpo de um pé para outro. Ele sabia que a revista na fronteira podia ter sido uma medida de rotina, mas aquela certamente não era. Estávamos à procura de alguma coisa e ele sabia agora que continuaríamos a investigá-lo, até descobrirmos. Por isso é que fiquei espantado ao vê-lo seguir novamente para o México, na noite de sábado. Fiquei ainda mais surpreso ao vê-lo parar voluntariamente na aduana e entrar. Soubemos depois, pelos agentes que o estavam seguindo, que solicitara uma autorização de residência e apresentara todos os documentos necessários para uma longa estada no México. Ele não voltaria por algum tempo. Estava mais assustado do que eu imaginara. Pensei muito em Wilner durante os meses seguintes. Para mim, 109


era o homem que tinha conseguido escapar. Em todo o meu tempo de trabalho como agente alfandegário, era o primeiro homem que escapara à prisão, apesar de eu ter certeza de que era contrabandista. Não tornei a ver Jack Wilner por mais de um ano. E quando isso finalmente aconteceu, tive que ir ao México para fazê-lo. Toda primavera há uma corrida de iates de Newport Beach a Ensenada. Cerca de 300 a 400 barcos disputam a regata e atraem uma imensa multidão para assistir à chegada. Fui até lá também. E de repente deparei com Jack Wilner, a poucos passos do lugar em que me encontrava. Aproximei-me dele e toquei-lhe o braço. — Olá. Lembra-se de mim? Ele lançou-me um sorriso hesitante, que desapareceu um instante depois quando se lembrou. Correu os olhos pela multidão, à procura de outros rostos familiares. — Vim apenas ver a regata — informei-o. — Não estava pensando em encontrá-lo aqui. Isso diminuiu prontamente o nervosimo dele. Ficamos parados lado a lado, observando os barcos. À medida que o dia foi passando, a cordialidade entre nós foi aumentando. Wilner falou-me um pouco a seu respeito. Era proprietário de um pequeno hotel e uma marina, cerca de 30 quilômetros ao sul de Tijuana. Estava em Ensenada para ver alguns barcos que tencionava comprar. Convidou-me a aparecer algum dia em seu hotel. — Comprou-o com os lucros do contrabando? Eu queria que ele me contasse toda a história e tinha certeza deque isso jamais aconteceria, se me mostrasse astuto e abordasse o assunto por rodeios. Ele sorriu, surpreso com minha franqueza. — Não vou assinar nenhuma confissão ... — Ele procurou imprimir à voz o tom típico dos vilões da TV. Depois de uma breve hesitação acabou assentindo e acrescentando: — Isso mesmo. Foi assim que consegui o dinheiro. — Não está mais fazendo contrabando? — Não. — É difícil de acreditar. Deve ter sido muito bem-sucedido, para poder comprar um bom negócio com os lucros. E poucos contrabandistas bem-sucedidos largam antes de serem apanhados. — Eu tinha tomado a decisão de largar tudo se alguém demons110


trasse a menor curiosidade por mim. E quando vocês se mostraram curiosos, tratei de largar. Compramos tacos de um vendedor ambulante e começamos a comer. — Neste caso, não deve importar-se em me contar como conseguia voltar à Califórnia sem ser notado, quando todos os postos da fronteira estavam a sua espreita. — Não, não me importo. Foi bem fácil. Eu sinplesmente escondia as placas debaixo do paletó e atravessava a fronteira a pé. Ele fez uma pausa e acrescentou com um sorriso: — Eu estava contrabandeando conversíveis amarelos para o México, um por semana.

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UM BOM ESCONDERIJO Joan Richter Depois que a polícia foi embora — os dois homens que tinham vindo de Nairóbi de carro e os dois africanos que tinham vindo a pé do posto policial no outro lado do rio — Matua fechou a casa e foi para seus alojamentos além da fileira de aroeiras. Jogou mais alguns pedaços de carvão de lenha no fogo, que continuara ardendo baixinho durante sua ausência, abanou até que as chamas se elevassem e novamente pôs para esquentar a caçarola com feijão e carne. E depois foi sentar-se nos degraus de pedra, para pensar. O céu estava azul, muito claro, com umas poucas nuvens brancas deslizando mansamente, bem alto. Se olhasse na direção do rio, poderia ver as copas das árvores que lá cresciam, as flores vermelhas e as folhas verdes obscurecendo o telhado alaranjado do posto policial local, que ficava um pouco mais além. Pretos ou brancos, os policiais eram iguais, presunçosos da autoridade conferida por seus uniformes, pensando que eram mais importantes do que na realidade. Tano, o amigo dele, não era diferente. Desde que Tano entrara para a polícia que já não havia mais qualquer bondade nele, desaparecera a risada divertida e espontânea. Somente depois que tirava as botas pesadas e uma caneca de pombe recentemente fermentada borbulhava em seu estômago e fluía por suas veias, é que a expressão severa 112


de Tano se desanuviava, os lábios se contraíam, sua risada voltava a soar. Mas já não era como antigamente. Naquele dia, Tano não viera como amigo. Como os outros três que o acompanhavam, aparecera como um agente da polícia. De botas. Um golpe daquelas botas e qualquer homem cairia de joelhos. Matua já vira acontecer muitas vezes. E sempre sentira, nessas ocasiões, a última refeição que comera revolver-se em seu estômago. A primeira vez fora em sua aldeia, muitos anos antes, quando ele e Tano eram meninos. Naquele tempo, a polícia só tinha homens brancos. Haviam chegado com seus uniformes e botas pesadas, os cassetetes balançando do lado. Estavam à procura de um homem. Matua já não mais se recordava do crime de que o homem era acusado, mas lembrava perfeitamente como ele e Tano haviam observado tudo das sombras de uma cabana, vendo o homem ser encontrado, chutado, espancado e finalmente arrastado para longe. Matua sacudiu a cabeça, como que a livrar-se da recordação. Recostou-se no degrau de pedra, suspirando. As coisas tinham mudado, mas não da maneira como ele sonhara. Viera a independência e agora os africanos usavam uniformes da polícia, juntamente com os europeus. Tano era um deles. E Matua ficava mais perturbado por ver um africano chutar outro. Contudo, naquele dia, Tano se mostrara estranhamente tímido. O que deixara Matua surpreso. O mesmo acontecera com o outro homem que viera do posto policial além do rio. Mas a mente perspicaz de Matua logo encontrou uma explicação. Os dois pretos sentiam-se constrangidos na presença do inglês alto e de cabelos vermelhos, com uniforme mais apurado, que tinha vindo de Nairóbi de carro, tendo como motorista um policial indiano. O rosto do inglês era pálido e inchado, com manchas roxas debaixo dos olhos. As sobrancelhas vermelhas franziam-se por cima dos olhos azuis e o bigode espesso remexia-se sobre a boca úmida, como os pendões num milharal maduro. O indiano usava um turbante engomado ao invés do quepe regulamentar e olhara para Matua com uma expressão fria e penetrante, mas também permanecera em silêncio quando o interrogatório começara. — Quando foi a última vez que viu o bwana vivo? — indagara o inglês. Matua chegara a abrir a boca, mas nada falara. Há muito que 113


aprendera que de nada servia a um africano de sua posição admitir que conhecia perfeitamente a língua do homem branco. A ignorância simulada sempre permitia saber mais e dizer menos. O silêncio dele fora recompensado. A pergunta fora repetida, como ele esperava que acontecesse, em swahili. E Matua se apressara então a responder: — Depois do jantar. O bwana disse que não desejava mais nada. Fui para o meu alojamento. Não devia ser mais do que nove horas. — Ouviu alguma coisa durante a noite? Ouvira alguma coisa? Algum grito? Como podia ter certeza? Podia ter sido um sapo, o pio de uma coruja, talvez o rosnado de um gato do mato, à procura de uma presa. Talvez tivesse ouvido apenas o ruído de seus próprios roncos. Mas a resposta que dera ao europeu de cabelos vermelhos não deixava transparecer a incerteza que o dominava: — Não ouvi nada. — Nada? — O bigode vermelho tremera ainda mais, as sobrancelhas mais se uniram. — Mas é impossível não ter ouvido nada! Olhe só para isso! Estavam na sala de estar. A paina se espalhava em pilhas pelo chão, quase que cobria inteiramente o tapete de sisal que Matua varrera e esfregara meticulosamente no dia anterior. Havia um pó branco sobre o assoalho encerado. Todos os assentos estofados tinham sido cortados e esvaziados, os móveis estavam virados, tudo vasculhado. No quarto acontecera a mesma coisa. O colchão estava todo retalhado, os travesseiros não mais existiam. As penas se espalhavam pelo quarto como folhas no outono. Ou como numa rinha depois da briga de galos. — Minha casa fica depois das árvores — dissera Matua, apontando pela janela. — E estava muito frio ontem de noite. — Era verdade. Ele até desejara ter outro cobertor. — A janela estava fechada. Não ouvi nada. O indiano virara-se para o inglês, a cabeça e o turbante movendose como uma unidade, uma expressão astuta no rosto pálido. — Quando eles dormem, parece até que estão mortos. Mas acho que este aqui está mentindo. Matua não dera o menor sinal de que entendera o inglês falado pelo indiano. Mas uma raiva antiga fizera seu estômago revirar-se todo. Sentira-se um pouco melhor ao perceber o olhar que Tano lançara ao indiano. Era de ódio, quase que incontrolável. Sentira-se novamente unido ao velho amigo, por verem naquele rosto amarelado os semblantes de 114


todos os indianos em cujas lojas tinham sido roubados e maltratados. Há muito e muito tempo, os ingleses haviam trazido trabalhadores indianos para a África Oriental, a fim de trabalharem nas ferrovias. Eram centenas, juntamente com suas famílias. Uns poucos tinham retornado à Índia, mas muitos fixaram-se ao longo da costa oriental da África e mais para o interior. Haviam-se tornado comerciantes e mercadores, rapidamente assumindo o controle de todo o comércio na África Oriental. Nas pequenas cidades e aldeias, a duka indiana era a única loja. Nas comunidades maiores, as dukas ficavam lado a lado, ligadas como contas de um colar por passagens secretas, pelas quais se fixavam os preços e transmitiam-se a notícia da chegada de um comprador africano. Se o preço numa loja parecia muito alto, nem adiantava ao africano tentar a seguinte. O preço estava fixado em todas, muito acima do normal, para qualquer mercadoria, quer fosse arroz, chá, açúcar, pano ou uma única agulha. Não é muito difícil aprender a odiar um homem que lhe dá apenas a metade do arroz que seu dinheiro deveria comprar, quando essa metade não é suficiente para alimentar a família e a moeda em sua mão é todo o dinheiro de que dispõe. O policial inglês armara uma carranca diante do comentário do indiano, mas não se dignara responder. Matua já descobrira há muito que também não havia qualquer amor entre ingleses e indianos. O interrogatório recomeçara. — Quando foi que voltou a casa? — Às seis e meia desta manhã. — É a hora em que normalmente chega aqui? — É, sim. — Mas só telefonou para o posto policial às sete e quinze, não é mesmo? — É, sim. — Por que não telefonou imediatamente? O que ficou fazendo das seis e meia. às sete e quinze? — Estava fazendo broas. O bigode outra vez tremeu mais forte e as palavras que saíram dos lábios úmidos eram pontuadas de saliva: — Mas o que me está dizendo? Broas! Seu patrão tinha sido assassinado e você foi fazer broas! — Eu não sabia que o bwana estava morto. Não entrei no quarto 115


assim que cheguei. — Por que não? Esta confusão toda não serviu para lhe mostrar que alguma coisa estava errada? Matua sacudira a cabeça. O indiano dera um passo para a frente, ameaçador. — Não sacuda a cabeça! Fale! — A ordem em swahili fora acompanhada por um bafo de alho que atingira o rosto de Matua com um impacto quase físico. — Está procurando ganhar tempo para pensar em algumas mentiras! Matua engolira em seco, fitando o indiano nos olhinhos pretos. — Não sei o que está querendo dizer com mentiras. Fui eu que chamei a polícia. Matua olhara para Tano, a ver se o antigo amigo confirmara. Mas Tano ficara olhando fixamente para a frente. O inglês voltara a falar, furioso: — Quero saber quando você descobriu que o bwana estava morto! — Eram seis e meia quando entrei na casa, pela porta da cozinha. Sempre vou até a sala de estar para abrir as cortinas. Mas não fui esta manhã, porque tinha de fazer as broas. Deixei para mais tarde, depois que as broas já estivessem no forno, quando fosse levar a primeira xícara de chá ao bwana. Eram sete horas quando saí para o corredor levando a bandeja com o chá. A porta do quarto estava fechada. Bati e entrei. Estava escuro. Deixei a bandeja na mesinha ao lado da porta e fui abrir as persianas. Tropecei em algo caído no chão. “Bwana”, chamei. Mas não houve resposta. Recuei e acendi a luz. O bwana estava caído no chão, morto. — Como soube que ele estava morto? Tocou nele? Matua franzira o rosto. — Não precisava tocar para saber. Tinha muitos ferimentos e muito sangue. Ele estava morto. — E quando foi que chamou a polícia? — Logo depois. A resposta era quase verdade. Não precisava dizer que antes saíra correndo para seu alojamento, sentara na beira da cama, tremendo de terror, perguntando-se o que devia fazer. Chegara mesmo a pensar em fugir. Mas por que deveria fugir? Nada fizera, afinal. E para onde iria? A sua aldeia era longe e não tinha dinheiro suficiente para a passagem de 116


ônibus. E a bandeja com o chá que deixara no quarto do bwana? E as broas no forno? Não poderia ir embora sem limpar a cozinha antes. E quando a polícia chegasse — e Matua sabia que acabaria chegando, mais cedo ou mais tarde — certamente saberia que ele estivera na casa e fugira. Todos pensariam que fora ele quem matara o bwana e iriam procurá-lo em sua aldeia. Iriam persegui-lo implacavelmente, caçá-lo como se fosse apenas um porco selvagem. Matua cobrira o rosto com as mãos, tentara repelir as imagens que se formavam em sua mente, dos filhos agarrando-se uns aos outros na escuridão da cabana, da esposa junto com as outras mulheres a soluçar, vendo-se ser espancado e arrastado pela polícia. Não fora a visão do bwana morto que o enchera de terror, mas a da panga caída ao lado, a lâmina larga com torrões de terra ressequida e manchas mais recentes de sangue já seco. — Telefonei para o posto policial onde meu amigo Tano trabalha. Tano não estava, mas os outros vieram. Levaram o corpo e me disseram para não limpar coisa alguma. Fiquei esperando, deixando tudo como estava. Matua não precisava dizer a ninguém que quase fugira. Há certas coisas a respeito de si mesmo que um homem não deve revelar aos outros. — E onde está a panga? — Eles levaram a panga quando levaram o bwana. Matua pensara na faca caída ao lado do corpo. Todo africano possuía uma panga, às vezes duas. Era uma arma de defesa na floresta, uma enxada nos campos, um machado para cortar bambus ou rachar lenha, um facão para cortar um mamão ao meio e raspar as sementes. Todas eram iguais, com cabos de madeira e as lâminas largas, podendo ser compradas em qualquer duka indiana por 15 xelins. Mal se podia distinguir uma da outra. Mas um homem conhecia sua própria panga, assim como conhecia sua própria mulher. — A panga era minha. — Ao acabar de falar, Matua vira o inglês levantar a cabeça bruscamente e fitá-lo. O indiano o fitara também, assim como Tano e o outro guarda africano. — Fui trabalhar na minha shamba ontem, plantando vagens. Quando acabei, deixei a panga encostada na porta do alojamento, ainda com a lâmina suja de terra. Estava lá ontem de noite, quando fui dormir, mas tinha desaparecido esta manhã. Eu gostaria 117


que me devolvessem a panga depois que tudo estiver resolvido. — Mas que atrevimento! — exclamara o indiano. — Ele gostaria de ter a panga de volta! O guarda africano que acompanhava Tano se adiantara nesse momento e falara pela primeira vez. Matua não sabia o nome dele, mas já o vira várias vezes na cidade, ao lado de Tano. — Uma panga custa 15 xelins. Matua tem o direito de tê-la de volta. — É a arma do crime, seu idiota! — gritara o indiano. — E o que se fará com a panga depois que a investigação estiver concluída? - indagara Tano, calmamente. — Como é que eu vou saber? — resmungara o indiano. — Sabe, sim! Vai ficar com ela! E depois a venderá a outra pessoa, por mais de 15 xelins! A panga é de Matua. Tem que ser devolvida a ele. O ódio que brilhava nos olhos de Tano fora uma satisfação para Matua. Eram novamente dois meninos juntos. — Já chega disso! — dissera o inglês rispidamente, tornando a concentrar-se em Matua. — Não ouviu ninguém se aproximar de sua casa ontem à noite? — Não ouvi nada. — O que o assassino estava procurando? Matua franzira o rosto, como se não tivesse compreendido. — Não estou entendendo. — O assassino estava procurando alguma coisa. Por que outro motivo teria feito tudo isto? — E o inglês apontara para os móveis arrebentados e virados. — Não sei. Talvez fosse dinheiro. — Mas o bwana não guardava o dinheiro no cofre que tem no quarto? — Guardava. Mas não creio que tenha muito dinheiro lá agora. Estamos no final do mês e o bwana sempre ia ao banco no dia primeiro. — O que quer que fosse, o fato é que desapareceu — comentou o inglês. — O bwana dizia que não era um cofre muito bom. Era por isso que ele não guardava muito dinheiro em casa. — E o que ele guardava em casa? Matua franzira o rosto outra vez. 118


— Não estou entendendo. — O assassino queria algo mais além do que encontrou no cofre. E revirou a casa toda para descobrir. O que era? O que ele estava procurando? Matua sacudira a cabeça. — Não sei. O interrogatório continuara por mais algum tempo, terminando abruptamente. Matua ficara satisfeito, pois não tinha mais o que dizer. O inglês autorizara-o a limpar a casa. O proprietário fora informado da morte do inquilino e já tinha alguém interessado em alugá-la. Viriam de Nairóbi no dia seguinte. Matua levantou-se e foi até o fogo. Sentiu o cheiro do guisado quase no ponto e descobriu que estava com fome. Estava pensando que seria ótimo se tivesse alguém para partilhar a refeição, quando ouviu passos no caminho do outro lado das aroeiras. Ficou em dúvida, sem saber se ouvira de fato alguma coisa ou fora apenas sua imaginação. E foi então que, subitamente, prendeu a respiração. Havia-lhe ocorrido que o assassino, se não tivesse encontrado o que fora procurar, certamente iria voltar. — Jambo — saudou alguém, do meio das árvores. — Jambo — respondeu Matua, o coração batendo como um passarinho aprisionado dentro de seu peito. — Habari gani, como vão as coisas? Matua acalmou-se no mesmo instante. Tinha reconhecido a voz. — Tano! Sentiu o cheiro da minha carne e das vagens mesmo lá do outro lado do rio! Sentaram-se nos degraus e comeram com os dedos, mergulhando bolinhos de milho no guisado. Falaram inicialmente de coisas sem importância, até que Matua perguntou: — O que a polícia pensa a respeito do assassinato do bwana? Já sabem quem é o culpado? — Um ladrão. — Um ladrão? Mas quem? — Como é que se vai saber? Ele não deixou o nome. Matua franziu o rosto. Não tinha gostado do gracejo de Tano. — Mas os homens da polícia são espertos. Eles sempre têm meios de descobrir as coisas. — Que coisas? O que se poderia encontrar na casa? Você descobriu 119


alguma coisa? Matua sacudiu a cabeça. — Não descobri nada. Só acho estranho que o bwana tenha sido morto com a minha panga, enquanto foi usada outra para fazer todo o resto. — E como é que sabe disso? — Se a minha panga tivesse sido usada para retalhar o colchão e cortar as almofadas, não mais estaria com as manchas de terra e de sangue. Tano fítou-o de maneira estranha, semicerrando os olhos. — E o que acha que isso significa? — Não sei. Talvez o assassino seja alguém que não esteja acostumado a usar uma panga por muito tempo. Demorou bastante a fazer tudo aquilo com os móveis. — Bem pensado, Matua. Tenho certeza de que aquele policial inglês de Nairóbi não pensou nisso. Mas por que disse a ele que a panga lhe pertencia? Não está precisando tanto assim dos 15 xelins. Matua baixou os olhos para a tigela. — Por que eu iria deixar o indiano ficar com ela? Tano deu de ombros. — Sei que não foi por isso que você admitiu a propriedade da panga. — Era melhor que eu reconhecesse logo de uma vez que a panga era minha, ao invés de esperar que a polícia descobrisse mais tarde. Eu teria então muitos problemas. — Mas como a polícia iria descobrir? Uma panga é igual a qualquer outra. — Há diferenças. E a polícia é esperta. — Matua fez uma pausa, percebendo que estivera falando sobre a polícia como se Tano não pertencesse a ela. — Além disso, é mais fácil dizer a verdade do que uma mentira. Uma mentira pode ser esquecida. Mas a verdade nunca o é. Tano riu e chupou o caldo da carne dos dedos. — Por que então não disse a verdade a respeito da coisa que o assassino estava procurando? Matua levantou a cabeça, desconcertado. — Como assim? — Você falou que é mais fácil dizer a verdade do que uma mentira. 120


Por que então mentir para mim, seu velho amigo? — Não sei do que está falando, Tano. — Há muito tempo, quando você começou a trabalhar para o bwana, no tempo em que a memsab ainda estava viva, disse-me que eles lhe mostraram diamantes... diamantes que o bwana trouxera do Congo e que o levariam à cadeia, se por acaso fossem descobertos. Era por isso que tinham de ser mantidos na casa, cuidadosamente escondidos. Mas onde, Matua? Onde o bwana escondia os diamantes? Diamantes! Matua ouviu Tano dizer a palavra novamente e pensou que era um tolo por ter esquecido. Percebeu, tarde demais, que Tano surpreendera um brilho de recordação em seus olhos. — Está-se lembrando! — Há muitos anos que não pensava nesses diamantes. — Pois pense neles agora. Onde é que estão? Matua franziu o rosto. Somente um tolo ou um velho podiam esquecer uma coisa depois de sabida. Por que então não consigo recordarme? A memsab falou-me nos diamantes, assim como o bwana. Disseram-me que, se algum dia a colheita de café fosse um fracasso, teriam os diamantes como último recurso. Mas não era o tipo de coisa que um europeu fosse dizer a seu criado. Por que eu tinha de saber? E por que fui tão tolo a ponto de gabar-me para Tano? Mas isso acontecera muito antes de Tano usar o uniforme da polícia. — Vamos, Matua. Somos velhos amigos. Diga-me, onde estão os diamantes? — Não sei. — Matua falou com impaciência, fitando Tano nos olhos. Depois, pegou a tigela dele e levou-a, juntamente com a sua, até a torneira do lado de fora, para lavá-las. — Vou ter que ir para casa agora, Tano. Tenho muito o que fazer por lá, já que as pessoas interessadas virão amanhã. Tano também levantou-se. — Vou ajudá-lo. Talvez você se lembre do esconderijo dos diamantes, enquanto limpa a casa. Talvez possamos descobri-los juntos. Empreste-me uma das suas camisas, Matua. Não posso voltar para o posto policial parecendo um mero criado. Matua olhou para o uniforme engomado e as botas pretas brilhando, para o relógio de ouro novo que brilhava no pulso de Tano. Ao que sabia, o salário de um guarda não era tão bom assim. Sem dizer nada, ele 121


foi até o quarto e pegou a camisa pedida por Tano. Queria que Tano fosse embora, que o deixasse sozinho com sua limpeza. Mas não podia dizê-lo, porque Tano pensaria então que desejava ficar sozinho para encontrar os diamantes. E, de certa forma, era isso mesmo. Mas não pela razão que Tano imaginava. Assim como as roupas ficam no armário, a carne na geladeira e o dinheiro no cofre, os diamantes também estavam em algum lugar. Mas não lhe pertenciam e por isso não pensara neles. O que iria fazer com um punhado de diamantes? De que tinham servido ao bwana? Enquanto Matua varria e tirava o pó, levando os enchimentos dos móveis para uma pilha no jardim, Tano revistava tudo, cavucando os cantos dos móveis com a ponta de uma faca que tirava do bolso da calça. Em determinado momento, Matua disse-lhe: — Ajude-me com este tapete, Tano. Não posso limpá-lo aqui dentro. Tenho que levá-lo para fora e batê-lo bem. Com um rápido movimento do pulso, Tano cravou a faca no braço de madeira de uma cadeira. A faca ficou tremendo. Matua fingiu nada ter percebido. Desde que Tano se tornara guarda que achava que uma panga não era suficientemente boa para ele. Mas de que adiantava uma faca pequena como aquela? Não podia servir como enxada, não podia cortar um bambu. Matua inclinou-se numa das extremidades do tapete enrolado, enquanto Tano segurava o outro lado. — O cofre no quarto ... — disse Tano, ao levantarem o tapete pesado sobre o varal de arame além da porta da cozinha. — Por que o bwana não guardava os diamantes ali? — O cofre não era forte o bastante. — Matua semicerrou os olhos contra os raios de sol inclinados que passavam por entre as aroeiras. Como Tano podia ter tanta certeza de que o assassino não conseguira encontrar o que estava procurando? Voltaram para dentro da casa. Sem o tapete, ficou bem mais fácil limpar a sala. Tano ajudou Matua a carregar alguns dos móveis quebrados para a varanda e empilhá-los a um canto. Levaram o colchão para a pilha de lixo no jardim. Matua calçou as chinelas de pele de carneiro, pondo-se a deslizar sobre o assoalho, esfregando o óleo de coco que fazia as tábuas largas brilharem. — Estou com sede, depois de tanto trabalho — disse Tano, ao se aproximarem do armário em que o bwana guardava o uísque. — Vamos tomar um drinque. 122


Matua sacudiu a cabeça. Ele gostava de pombe, a cerveja africana de sua aldeia, mas não via o menor gosto no uísque do homem branco. — O que é isso? — indagou Tano, segurando uma pequena garrafa verde. — Nunca vi esse tipo de uísque antes. Matua, no outro lado da sala, olhou para a garrafa. — Não é uísque. É uma coisa chamada ginger ale, para ser misturada com uísque. Quando a memsab estava viva, era isso o que ela e o bwana bebiam, com um pouco de gelo. Mas depois que ela morreu, o bwana passou a tomar apenas uísque puro. — Prepare-me um drinque, Matua. Um drinque como o bwana gostava de tomar. Imagine que sou agora o bwana desta casa e você é meu criado. — Está bem, Tano. Mas depois você terá de ir embora. Está-me atrasando. Tenho muito o que limpar, até amanhã. Se a casa estiver toda arrumada, pode ser que me peçam para continuar trabalhando aqui. Matua pegou a garrafa de ginger ale e a de uísque e encaminhou-se para a cozinha. Tano disse-lhe: — Tomarei meu drinque e ficarei enquanto você limpa e arruma o resto da casa. Ainda não tenho certeza se você não sabe mesmo onde é que estão os diamantes. Matua virou-se imediatamente. — Já lhe disse que não sei. A memsab e o bwana só falaram nisso uma vez, há muito tempo. E nunca mais voltaram a tocar no assunto. Além do mais, de que adiantaria saber onde estão os diamantes? — Diamantes valem um bocado de dinheiro, Matua. — E quem iria comprá-los? — Os comerciantes no bazar. — Indianos. Tano deu de ombros. — Se eu tiver diamantes e quiser arrumar dinheiro por eles, tenho que procurar quem tem dinheiro e quer diamantes. Só podem ser os indianos. Matua meneou a cabeça. — Eles o roubariam e ainda por cima o denunciariam à polícia. Tano soltou uma gargalhada. — Está esquecendo, Matua, que agora eu sou a polícia. Matua sorriu, tristemente. 123


— Tem razão, Tano. De vez em quando eu esqueço. Ele tornou a virar-se e foi para a cozinha. Tirou dois copos do armário. Era um gesto automático. Uísque e ginger ale só combinavam com dois copos. Um para a memsab, outro para o bwana. Mas isso fora há muito tempo. Ele tornou a guardar um dos copos e foi até a copa, para pegar gelo. Abriu a geladeira e estendeu a mão para a bandeja de gelo à direita. Isso também era automático. Sempre a bandeja da direita. Por que não a outra? Matua ficou imóvel por um momento diante da geladeira aberta, sentiu o frio envolvê-lo, um sorriso se insinuando em seus lábios. Pegou também a bandeja da esquerda e levou as duas para a pia da cozinha. A geladeira iria precisar também de uma limpeza, Tano estava recostado na porta, brincando com a faca, olhando para Matua, com expressão pensativa. — O que você disse sobre os indianos é verdade, Matua. Se você fosse procurar um deles com os diamantes, ele imediatamente o denunciaria à polícia. Mas não diria quantos diamantes foram levados, apresentando apenas um ou dois. O que seria suficiente para metê-lo na cadeia por muito tempo. E o indiano ficaria com todo o resto. — Por que está-me dizendo isso? — Porque quero que você saiba que, sem a minha ajuda, nada poderá fazer com os diamantes. — E o que o faz pensar que, com a sua ajuda, os diamantes iriam servir-me em alguma coisa? De que os diamantes adiantaram para o bwana? Além do mais, Tano, não preciso de seus conselhos. — O que está querendo dizer com isso? — Se eu soubesse onde estão os diamantes, não tocaria neles. E se eles por acaso caíssem em minhas mãos, trataria de livrar-me deles o mais depressa possível. — Essa não! Ou você é um idiota ou um mentiroso! — Talvez um idiota, Tano, mas não um mentiroso. Tome seu drinque. Dois cubos de gelo retiniram contra o copo, quando ele o estendeu. Tano pegou o copo com a mão esquerda, enquanto esticava a mão direita, apontando a faca. — Se eu souber algum dia que você mentiu para mim, Matua, que os diamantes já estão com você ... 124


Matua fitou nos olhos aquele homem que fora seu amigo quando menino e depois olhou deliberadamente para a lâmina limpa da faca. Não estava com medo. Tano nada iria fazer-lhe. Dois assassinatos na mesma casa fariam com que o policial inglês de bigode vermelho ficasse desconfiado. Talvez até ele já estivesse desconfiado. Matua reconhecera que a panga usada para matar o bwana lhe pertencia. Mas qual teria sido a outra faca, a faca que fora usada para rasgar os estofamentos? A quem pertenceria? O inglês não podia ser o tolo que Tano imaginava. Os olhares se encontraram por cima da ponta da faca. Matua descobriu-se a imaginar se o uniforme deveria ser culpado pelo homem. Achava que o bwana não deveria ter-se importado muito de morrer. Já não era mais nenhum jovem. E envelhecera ainda mais rapidamente depois da memsab. O fato de Tano tê-lo matado era uma maldade, mas maldade ainda maior era ter usado a panga de um velho amigo. Tano levou o copo aos lábios e tomou um gole grande. — É muito bom. Por que não toma também? — Tenho muito trabalho para fazer — respondeu Matua, virandose para a pia. Esvaziou as duas bandejas de gelo dentro da pia e deixou a água escorrer sobre os cubos. Quando ficaram pequenos, empurrou-o para o ralo com a mão. A bica continuou aberta. Ele lavou as bandejas e colocouas ao lado, para secarem. Mais tarde, depois que limpasse a geladeira, iria novamente encher as bandejas, com água fresca, colocando-as no lugar. Por algum tempo, ainda faria o gesto automático de pegar apenas a bandeja da direita, jamais tocando na da esquerda. Mas sabia agora que isso já não fazia mais qualquer diferença. Tano sugou ruidosamente as últimas gotas do drinque e depois jogou os cubos de gelo dentro da pia. Matua virou a cabeça ao estender a mão para abrir a torneira e dar sumiço aos dois últimos cubos. E sorriu para si mesmo. Fora realmente um bom esconderijo.

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A “DAMA PATRÍCIA” Jack Ritchie Bernice Lecour trouxe a fotografia colorida ampliada da Dama Patrícia um pouco mais para perto do cavalete e comentou: — Ah, o sorriso enigmático! A Eterna Mulher Misteriosa! — Para mim, não passa de um sorriso afetado. Bernice deu de ombros. — É possível. Ouvi dizer que, naquele tempo, as mulheres tinham dentes horríveis e não se atreviam a sorrir de uma orelha a outra, como as nossas beldades modernas. Olhei para o relógio. — Tenho um encontro marcado na Alfândega e depois darei um pulo até o Zarchetti para roubar o carimbo de borracha. — Não seria muito mais simples ir a uma loja e mandar fazer uma duplicata do carimbo? — Seria. Mas quero que o carimbo fique absolutamente autêntico, mesmo sob um exame microscópico. A polícia certamente irá procurar Zarchetti, em busca de um carimbo determinado. E quero que o encontrem. Bernice pegou uma lente e examinou atentamente um canto de sua cópia quase concluída da Dama Patrícia. Depois, cuidadosamente, aplicou mais uma pincelada de âmbar. 126


— Já roubou alguma coisa antes? — Somente a radiografia. E isso ocorrera três semanas atrás. Eu estava com Monsieur André Arnaud, no gabinete dele, concluindo os entendimentos para a exibição americana da Dama Patrícia. Chamaram-no para resolver um problema em outro lugar. Ele ficou ausente por um tempo considerável. Comecei a andar de um lado para outro da sala, examinando isto e aquilo. Acabei abrindo um arquivo. E foi lá que descobri a radiografia da Dama Patrícia. Fiquei um pouco surpreso pelo fato de a radiografia não estar guardada a sete chaves. Mas logo pensei que a Dama Patrícia poderia valer alguns milhões de dólares, mas a sua radiografia não possuía qualquer valor intrínseco. Provavelmente só era consultada a cada dois ou três anos. Não havia motivo para que alguém desejasse roubá-la. Mas pensei no fabuloso talento de Bernice como copista e no fato de que seríamos muito mais felizes com uma grande soma adicional. E nesse momento havia nascido meu plano, adquirindo contornos rapidamente. Enfiei a radiografia debaixo do casaco. Quando Arnaud voltou, eu estava contemplando inocentemente um esboço de Rubens na parede. Bernice misturou um pouco de terra de siena na palheta. — Durante toda a sua vida, o mestre pintou 87 quadros ... dos quais 112 se encontram nos Estados Unidos. — Ela contemplou seu trabalho por um momento e depois suspirou. — Se eu tivesse vivido naquele tempo e fosse homem, também me teria tomado imortal. — Prefiro você mortal e no seu invólucro atual. — Tornei a olhar para o relógio e acrescentei: — Tenho de ir agora, Bernice. Meu encontro com Amos Pulver está marcado para as três horas. Ela afastou os olhos da tela. — É sobre o Renoir? — Exatamente. — O que você decidiu? — Que é autêntico. Ela sorriu. — E como chegou a essa conclusão? Na base do cara-ou-coroa? Beijei-a. — Até mais tarde, Bernice. 127


Cheguei à casa de Amos Pulver poucos minutos antes das três horas. Os outros dois já estavam lá, Louis Kendall, das Galerias Oaks, e Walter Jameson, que se julgava uma autoridade em Renoir. Dois meses antes, Pulver comprara um Renoir — ou pelo menos o que fora vendido como um quadro de Renoir — no leilão anual da Hollingwood. O preço fora 40 mil dólares e Pulver ficara satisfeito, até a semana anterior, quando lera um artigo sobre falsificação de quadros, numa revista que encontrara na sala de espera de seu dentista. Imediatamente, Pulver chamara a nós três para emitir um laudo de autenticidade da obra. Cada um ficara com a tela por vários dias, para examiná-la. E agora, mastigando a ponta de charuto, Pulver queria saber a nossa conclusão. — E então? Louis Kendall foi o primeiro a falar: — Na minha opinião, o quadro é uma falsificação. Jameson lançou um olhar frio para Kendall. — Está equivocado. O quadro é um autêntico Renoir. Não há a menor possibilidade de dúvida. Amos Pulver virou-se para mim. — E qual é o seu veredicto? Pensei por um momento antes de responder: — Seu Renoir é absolutamente autêntico. — Ridículo! — exclamou Kendall. — Qualquer idiota pode ver que a tela não passa de uma débil e grosseira tentativa de imitar o estilo seco de Renoir! Walter Jameson ergueu uma das sobrancelhas, uma de suas reações prediletas. — E o que você sabe sobre o estilo seco de Renoir? Eu já escrevi seis artigos a respeito! Amos Pulver sacudiu a mão, pondo fim à discussão antes que pegasse fogo. — Ao diabo com o estilo seco dele! Tudo o que eu queria era uma votação por parte de peritos e agora já tenho. — Ele tirou três cheques da carteira e entregou-os. — Mas eu teria preferido que a decisão fosse unânime. Pulver deixou que Kendall e Jameson fossem embora, mas pediu128


me que ficasse mais um pouco. Foi preparar dois bourbons com soda. — Não conheço absolutamente nada sobre quadros nem me interesso em saber. Mas como todo mundo anda atualmente colecionando obras de arte, não quero ficar para trás, sem ter o que dizer. Ele entregou-me um copo. — Vocês, peritos, sabem realmente o que estão fazendo, quando examinam um quadro? — Seu bourbon é excelente. Pulver tomou um gole. — Li nos jornais que a Dama Patrícia vai ser enviada para cá, a fim de ser expostàna Ala Vandersteen do Centro Nacional de Arte. — Trata-se de um intercâmbio cultural. A França permite que vejamos seus quadros e nós temos permissão para admirá-los. — Esse quadro vale alguns milhões de dólares — comentou Pulver, num tom de reverência. — É o maior quadro do mundo. — Tem razão. É o que todo mundo acha. — É verdade que estão tomando uma porção de precauções? Como você é curador da Ala Vandersteen, deve estar a par disso. — O quadro virá de navio. Virá dentro de uma caixa especialmente construída, hermeticamente fechada, acolchoada, refrigerada. — Estava-me referindo às medidas de segurança. Ouvi dizer que há pelo menos quatro guardas armados em torno do quadro, 24 horas por dia. E parece que, ao chegar aqui, o quadro terá ainda uma guarda de fuzileiros navais. — E com rifles carregados — falei. — Dois fuzileiros ficarão permanentemente parados ao lado do quadro, durante todo o tempo em que estiver em exposição. Pulver manifestou sua admiração pelas medidas de segurança. — Aposto que seria impossível roubar o quadro, nessas circunstâncias. — Praticamente impossível. E se tudo correr bem, o público americano poderá em seguida admirar O Irmão de Winkler. Mas Pulver estava pensando em outra coisa. — Quando a Dama Patrícia chegar aqui, haverá aquele desfile triunfal pela Avenida? Ouvi dizer que ia haver uma banda cheia de cornetas e tambores, garotos girando bastões e tudo o mais. 129


— Lamento, mas um desmancha-prazeres deu um jeito de cancelar tudo isso. Ele animou-se um pouco. — Mas pelo menos vai haver uma cerimônia grande no Centro, não é mesmo? O governador não vai fazer um discurso? — Pelo menos vai tentar. Não sei se conseguirá, pois a acústica é horrível. Fui embora logo depois. Parei na primeira cabine telefônica pública do caminho e liguei para Hollingwood. — Não vai ter que devolver o dinheiro a Pulver. A votação foi de dois a um. — Ótimo! De qualquer forma, eu tinha certeza de que o quadro era autêntico. Apostaria minha reputação nisso. — Mesmo assim, acho melhor tomar certas precauções. — Não me esqueci. Pode ficar tranqüilo que receberá seu cheque pela manhã. Fui pelo metrô até a Loja de Material de Arte, de Zarchetti. No depósito do terceiro andar, conversei um pouco com um funcionário, como de vez em quando fazia, enquanto se tiravam dos caixotes mercadorias recentemente chegadas. Zarchetti marca as suas mercadorias de duas maneiras. Usa um rótulo de papel comum, com seu nome, endereço e o preço da mercadoria escrito a tinta. Em outros artigos, no entanto, como as telas, usa um carimbo de borracha comum, com tinta indelével. Ele explicou-me certa vez que os estudantes de arte, sendo o que são, freqüentemente tiravam os rótulos das telas mais baratas e grudavam-nos sobre os das telas mais caras. Com isso, conseguiam enganar os funcionários, pagando até cinco vezes menos do que o valor real da tela. Observei o funcionário consultar sua lista de preços, depois ajustar o carimbo e afixar a marca numa tela: Zarchetti, Material de Arte, Lincoln Avenue, 218, $10,98. Havia pelo menos meia dúzia de outros carimbos semelhantes nas mesas próximas. Na primeira oportunidade, meti um deles no bolso. Duvidava muito de que alguém desse pela falta. Naquela noite, depois do jantar, li que Bernice acabara de conquistar o segundo prêmio, no valor de mil dólares, na Exposição de Raleigh. A tela intitulava-se Scylla Quatorze. Segundo o jornal, a tela era toda azul 130


com alguns toques de laranja a um dos cantos. Impressionara um dos juizes como “uma audaciosa incursão na vertigem do desconhecido, as pinceladas verticais muito firmes exemplificando a inexorabilidade do universo em explosão. E, no entanto, lá está o contraditório, insistente e incongruente laranja, contribuindo com um grito da angústia humana contra a matemática inflexível da existência”. Li o artigo duas vezes. Às oito e meia, tomei um táxi até o Centro Nacional de Arte e fui para meu gabinete. Abri a gaveta grande do fundo da escrivaninha e tirei a bolsa com minhas ferramentas e materiais. Peguei uma escada num dos armários dos faxineiros no corredor e fui para a Ala Vandersteen. Sua grande galeria a leste, como o resto do prédio, era fechado ao público às cinco horas da tarde. Fora o local escolhido para a exibição da Dama Patrícia e todos os demais quadros tinham sido removidos para essa ocasião especial. A sala fora totalmente pintada e remodelada. Durante os trabalhos, eu tratara de guardar uma das latas da tinta usada para pintar as paredes. O quadro ficaria pendurado numa pequena alcova na extremidade da sala, uma reentrância de 3,5 metros de largura e 1,5 metro de profundidade. Na frente dessa alcova havia uma grade flexível de metal, naquele momento enrolada. Fora das horas de exposição, a grade seria baixada e presa no chão, isolando assim a Dama Patrícia do resto da sala. Além disso, dois fuzileiros armados e agentes de segurança franceses e americanos ficariam de guarda durante todo o tempo na sala. Examinei meu trabalho das noites anteriores e novamente constatei que não havia a menor possibilidade de alguém ver alguma coisa. Dentro da alcova, eu havia perfurado uma série de buracos num círculo de um metro e meio, colocando ali algumas cargas explosivas. Tinha também aberto um sulco do círculo ao teto, com um fio passado por aí e depois por trás da sanca, até o outro lado da sala, descendo para um dos três botões que eu instalara atrás de um sofá pesado, praticamente inamovível. Eu usara reboco para cobrir- os buracos e o sulco, aplicando a tinta por cima, de tal forma que ninguém percebia coisa alguma. Usara o mesmo processo para a instalação das bombas de fumaça e da carga explosiva junto ao mecanismo da grade de ferro da alcova. Eu já havia instalado duas bombas de fumaça dentro da alcova, duas outras no sistema de ventilação e uma na parede, no meio da sala. Calculei que mais uma bomba de fumaça, na parede do outro lado, à mes131


ma altura, seria o suficiente. Não havia praticamente qualquer perigo de que Fred, o vigia noturno, me ouvisse trabalhando. Eu providenciara para que ele fizesse os seus turnos de inspeção apenas de três em três horas, retirando-se depois para o seu cubículo no porão. Ele acertava um despertador para soar dali a três horas e deitava-se num sofá que havia no cubículo, caindo imediatamente num sono profundo. Era uma rotina pela qual ele deveria ser despedido, mas, no momento, tais hábitos eram-me extremamente convenientes. Pus as luvas de borracha, peguei a talhadeira e o martelo de borracha e comecei a trabalhar. Quando terminei, a abertura tinha aproximadamente 12 centímetros de profundidade e 10 de diâmetro. Coloquei a bomba de fumaça e a pequena carga explosiva. Quando eu apertasse um dos botões, a carga imediatamente destruiria o reboco, permitindo que a fumaça se espalhasse pela sala. Prendi o fio que acionaria a carga e a bomba de fumaça, abri um sulco na parede até o teto e o estava ligando a um dos circuitos principais, que corriam por trás da sanca, quando ouvi uma voz atrás de mim dizer suavemente: — O que está fazendo? Quase caí da escada. Mas recuperei-me a tempo e virei-me. — Por que tinha de fazer isso, Bernice? Ela sorriu. — Só entrei para ver se você já tinha acabado. — E como conseguiu entrar no prédio? — Está esquecendo, querido, que todas as chaves são propriedade comum. Acabei de fazer a junção e desci da escada. — Por falar nisso, Bernice, você escondeu um segredinho de mim. Tive que ler o jornal para descobrir que você ganhou o segundo lugar na Exposição Releigh. Como encontrou o título de Scylla Quatorze? Ela corou ligeiramente. — Abri o dicionário duas vezes, ao acaso. É a única maneira intelectual de se fazer essas coisas atualmente. Comecei a misturar o recobo. — É realmente um excelente quadro, Bernice. Uma audaciosa incursão na vertigem do desconhecido ... as pinceladas verticais muito firmes exemplificando a inexorabilidade do universo em explosão. E, no 132


entanto, lá está o contraditório, insistente e incongruente laranja, contribuindo ... — Ora, cale essa boca! Acabei de colocar o reboco, passei uma camada de tinta por cima e depois tirei as luvas. — Já está tudo pronto, Bernice. Enquanto o governador estiver falando, irei afastar-me por entre a multidão, até aquele sofá verde ... Quando eu apertar o primeiro botão, haverá uma pequena explosão, destruindo o mecanismo da gente de aço, que irá baixar no mesmo instante, isolando a Dama Patrícia de todas as pessoas na sala, inclusive dos fuzileiros. “Um ou dois segundos depois, apertarei o segundo botão, acionando as seis bombas de fumaça. E quando a sala estiver inteiramente dominada pela fumaça e confusão, apertarei o terceiro botão. Haverá uma explosão, abrindo um buraco na parede da alcova suficientemente grande para a passagem de um homem ou uma mulher. .. levando um quadro, é claro. Bernice sacudiu a cabeça, num gesto de aprovação. — E esse buraco dará para o depósito que fica além da alcova e a janela para o beco estará convenientemente aberta, não é mesmo? — Exatamente. Ela ficou pensativa por um momento. — Tem de esperar a cerimônia e a presença de tanta gente? Não seria muito mais fácil, se apenas uns poucos estivessem presentes? — Não, Bernice. Neste caso, há uma possibilidade de que o incidente seja abafado. E, para os nossos objetivos, precisamos de toda a publicidade possível. — Acha que eles vão desconfiar de que você teve alguma participação? — Duvido muito. Se eles tiverem alguma suspeita, será dirigida contra os operários que estiverem trabalhando aqui durante as últimas semanas. Olhei para a alcova e sorri. — Bernice, uma das vantagens de ser o curador de um museu de arte é conhecer todos os colecionadores ricos... e quanto os inescrupulosos estarão dispostos a pagar pelo que desejam. A Dama Patrícia chegou numa tarde, num carro blindado. A escolta 133


consistia de meia dúzia de carros com guardas uniformizados, policiais à paisana e agentes secretos franceses e americanos, além da delegação de autoridades francesas, chefiadas por Monsieur Arnaud. Dois pelotões de fuzileiros navais americanos chegaram logo em seguida. Depois das devidas apresentações e apertos de mão, todos seguiram para a Ala Vandersteen. A caixa especial que continha a Dama Patrícia foi aberta e o quadro ficou à mostra. O quadro estava protegido por uma placa de vidro inquebrável. Na minha opinião, depois que o quadro estivesse instalado na alcova, os milhares de visitantes só veriam praticamente a moldura e o clarão do vidro. Mas todos provavelmente partiriam satisfeitos, tendo visto as roupas do rei. Arnaud e dois assistentes levaram a Dama Patrícia para a alcova e a instalaram em seu lugar. Dois fuzileiros imediatamente se adiantaram e tomaram posição nos dois lados da alcova. Tirei o carimbo de borracha do bolso e escondi-o na palma da mão. — Com licença, cavalheiros, mas tenho a impressão de que a Dama Patrícia está ligeiramente inclinada. Fui pegar o quadro e comprimi o carimbo contra a parte de trás. Tive certeza de que ninguém reparou. Recuei. — Pronto. Agora está perfeito. No final daquela tarde, consegui sair do museu sem que ninguém percebesse e fui devolver o carimbo à Zarchetti. Ninguém dera pela falta dele. Às sete e meia da noite, a Ala Vandersteen já estava transbordando de convidados, todos olhando reverentemente na direção da alcova. Ninguém tinha ainda permissão para se aproximar a menos de cinco metros. O governador chegou às oito horas e subiu na pequena plataforma diante da alcova. Houve incontáveis apresentações e agradecimentos. Aparentemente, qualquer pessoa que tivesse tocado na caixa da Dama Patrícia merecia agora um elogio particular. Ou tinha que dizer alguma coisa. Até mesmo eu, como curador da Ala Vandersteen, fui obrigado a falar alguma coisa. Quando terminei de falar, deixei a plataforma apinhada, dando lugar ao prefeito, que iria fazer a apresentação do governador. Esgueirei-me por entre a multidão até os fundos da sala. Pus as luvas e postei-me ao lado do sofá verde, os dedos baixando na direção 134


dos três botões. Às nove e cinco, o governador finalmente levantou-se e sorriu para a audiência. Era o momento apropriado. As atenções de todos estavam concentradas nele. Apertei o primeiro botão. A reação no alto da alcova foi muito parecida com o barulho de um rifle disparado num quarto fechado. A grade pesada desceu ruidosamente até o chão, isolando a Dama Patrícia de todas as pessoas na sala. Os fuzileiros ficaram atônitos e deixaram a posição de descanso. Aparentemente, a idéia inicial do governador foi de assassinato, pois sua mão instintivamente explorou o próprio peito, à procura de algum buraco. Apertei o segundo botão. O barulho das seis pequenas explosões foi incrivelmente multiplicado pelos ecos nas paredes. Minhas bombas de fumaça expeliram seu vapor cinza para a sala. Em poucos segundos, a confusão era total e a visibilidade praticamente inexistente. Apertei o terceiro botão. Desta vez, a explosão foi consideravelmente mais alta, pois abriu um buraco grande na parede da alcova. Segui quase às cegas para a sala adjacente, mais ou menos acompanhando o êxodo geral. O ar ali estava quase claro. Observei, fascinado, diversos homens uniformizados correrem até ali para respirarem um pouco de ar fresco, voltando em seguida para a sala em que estava a Dama Patrícia. Quase todos tinham sacado seus revólveres. O governador foi um dos últimos a deixar a sala, possivelmente porque era o que tinha um caminho mais longo a percorrer. Só não vi os fuzileiros. Aparentemente, haviam permanecido em seus postos. Não pude deixar de sentir um certo orgulho nacional por isso. Depois de algum tempo, ouvi os vidros da outra sala serem quebrados e as bombas de fumaça jogadas no beco. Meia hora mais tarde, a fumaça havia-se dissipado o suficiente para que eu pudesse voltar. Dezenas de guardas e autoridades estavam concentradas diante da grade de ferro, espiando para o interior da alcova ou tentando levantá-la. Mas era evidente que estava emperrada. Havia diversos policiais uniformizados dentro da alcova. Deviam ter entrado pelo depósito do outro lado e o buraco aberto pela explosão. Um certo Tenente Nelson, da Polícia Metropolitana, coordenou os esforços dos mais fortes e depois de muita força a grade foi finalmente 135


levantada, embora não mais que um metro e meio. Abaixamo-nos e entramos na alcova. A Dama Patrícia parecia ilesa, se bem que um pouco enviesada. Arnaud torceu as mãos, nervosamente. — Nada aconteceu com ela! Isto é, acho que nada aconteceu com ela! O Tenente Nelson apontou pára o buraco na parede. — Calculo que a pessoa que deveria roubar o quadro esgueirou-se por essa abertura logo depois da explosão. Mas deve ter perdido a coragem ou então a fumaça foi demais para ela também. Por isso, a pessoa voltou e simplesmente fugiu por uma janela aberta, dando para o beco. Arnaud tirou o quadro da parede, com todo o cuidado, e examinouo. — Deixe-me dar uma olhada — pedi. Ele apertou a Dama Patrícia contra o peito. — Monsieur, ela é minha! Falei-lhe com firmeza: — Meu caro senhor, sou o curador desta galeria e deve lembrar-se de que está em solo americano. Foi com grande relutância que ele me deixou tirar o quadro de suas mãos. Examinei a frente do quadro e depois virei-o. Fechei os olhos subitamente, com uma expressão desolada. Rapidamente, tornei a virar o quadro e procurei pendurá-lo novamente na parede. — Não há absolutamente nada errado com a Dama Patrícia, senhores. Absolutamente nada! Mas Arnaud arrancou-me a Dama Patrícia das mãos. Espiou também o que havia atrás ... juntamente com todas as pessoas que estavam na alcova. Todos viram o carimbo azulado, mas foi o Tenente Nelson quem teve a coragem de ler as palavras em voz alta: — Zarchetti, Material de Arte. Lincoln Avenue, 218. Quatorze dólares e 98 cents. Ele coçou o queixo e olhou para Arnaud. — Tem certeza de que vocês mandaram para cá o quadro original? Arnaud estava pálido. — É claro que embarcamos o original! — Ele tornou a olhar para o carimbo e acrescentou, quase chorando: — Não estou compreendendo ... Ficamos todos em silêncio, até que o Tenente Nelson finalmente 136


expressou o que cada um pensava: — Será que trocaram os quadros durante a confusão, quando ninguém podia ver coisa alguma? Ninguém fez qualquer comentário e por isso ele continuou: — Ouvi dizer que alguns desses falsificadores de obras de arte são verdadeiros mestres. Podem envelhecer a tinta e a tela de tal maneira que ninguém é capaz de distinguir. Nem mesmo um perito. — Ele pensou mais um pouco e seu rosto se iluminou. — Mas, como todos os criminosos, eles cometeram um pequeno erro. Esqueceram do carimbo de Zarchetti atrás da tela! — Não seja ridículo! — falei, friamente. — Estamos com a Dama Patrícia original. Não é mesmo, Monsieur Arnaud? Ele ainda estava pálido e agora olhava para o quadro com um vestígio de desconfiança. — Não me lembro de ter visto antes esse amassado na moldura ... — Deve ter sido a explosão — apressei-me em dizer. Mas Arnaud não estava ouvindo. Todos respeitamos o silêncio pensativo dele. Arnaud finalmente chegou a uma decisão. — Só há uma maneira de ter certeza absoluta. Vou mandar buscar a radiografia em Paris. Um falsificador hábil pode iludir até mesmo os melhores peritos, mas não pode ludibriar a radiografia. É impossível duplicar todas as nuanças da tinta, a densidade maior ou menor em pontos estratégicos. E é mais impossível ainda duplicar o que existe por trás da pintura, a individualidade microscópica de cada fio da tela original. — Arnaud virou-se para mim. — Sr. Parnell, leve-me a um telefone. No meu gabinete, pedimos uma ligação para Paris e ficamos esperando. Arnaud finalmente falou com um de seus assistentes e houve outro intervalo considerável. Arnaud escutou atentamente, quando o assistente finalmente voltou a falar. Parecia estar prestes a desmaiar. Mas conseguiu recuperar-se um pouco e deu algumas ordens em francês, rispidamente. E informou, depois que desligou: — Algum idiota tirou do lugar a radiografia da Dama Patrícia. Mas não há por que se preocupar. Já dei ordens para rebuscarem os arquivos. A radiografia será encontrada de qualquer maneira. Mas é claro que jamais se encontrou a radiografia. Na semana seguinte, 20 peritos de arte americanos e franceses reuniram-se para estudar e julgar a autenticidade da Dama Patrícia. Os 137


resultados só foram divulgados um mês depois. Doze peritos declararam que a obra era realmente a original. Seis afirmaram que era uma hábil falsificação. E dois disseram que era uma falsificação grosseira. O governador tratou de proclamar publicamente que acreditava piamente na maioria das opiniões, no que foi apoiado pelo Senado Estadual, por 64 votos contra 56. A votação foi mais política do que técnica. A Dama Patrícia voltou para a França. E não demorou muito para que Paris anunciasse haver cancelado os planos de substituí-la pelo Irmão de Winkler. Apresentei-me com uma barba postiça e óculos escuros. Além disso, usava uma peruca preta e falava com ligeiro sotaque francês. Embora já me tivesse encontrado com o Sr. Duncan algumas vezes antes, tinha certeza de que ele nem sequer desconfiava da minha verdadeira identidade. Comecei a guardar o dinheiro na valise. Duzentos mil dólares, em notas não maiores de cem dólares, fazem um volume considerável. Duncan ficou olhando para o quadro, com uma expressão reverente e ao mesmo tempo triunfante. E ele exclamou: — Com que então ela foi realmente roubada! — Monsieur, nada sei a respeito de algum roubo. A Dama Patrícia simplesmente veio parar em minhas mãos... acidentalmente. Ele sorriu astutamente. — Claro, claro ... — Os olhos dele voltaram a contemplar sua nova propriedade, extasiados. — Milhões de idiotas irão olhar para aquela cópia em Paris e durante todo o tempo eu estarei com o original! — Deve compreender, Monsieur, que não poderá mostrar o quadro a mais ninguém. Absolutamente ninguém. É para sua satisfação particular. Se for descoberto que está de posse da Dama Patrícia original, as autoridades irão tomá-la no mesmo instante e ainda por cima irá parar na cadeia. Ele assentiu. — Pode deixar que ela ficará guardada a sete chaves. Ninguém a verá, além de mim. Nem mesmo minha esposa. Eu podia perfeitamente compreender a última precaução. Ela era a quarta esposa e poderia mais tarde mostrar-se vingativa, durante uma ação de divórcio. Fechei a valise. 138


— Adeus, Monsieur Duncan. É de fato um homem afortunado por ter conseguido um quadro de um milhão de dólares por apenas um quinto desse valor. No táxi, recostei-me no assento e relaxei. Bernice Lecour fizera seis cópias da Dama Patrícia e eu não tivera a menor dificuldade em vendê-las como originais. Talvez Bernice e eu pudéssemos ter roubado a autêntica Dama Patrícia, mas neste caso todas as polícias do mundo iriam unir-se para caçar os ladrões. Fora muito mais seguro assim, simplesmente criar a suspeita de que ela podia ter sido roubada, tirando todo proveito disso. Bernice e eu bem que estávamos merecendo umas férias. O Brasil devia ser um país interessante e agradável. .. E talvez não voltássemos.

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TUBARÕES DEMAIS William Sambrot O mar estava plácido, muito azul, brilhando maravilhosamente ao sol do início da manhã. Allen Melton aspirou fundo sem olhar para Marta, sua esposa, sabendo que os olhos esverdeados dela estavam contemplando o seu corpo ligeiramente bronzeado, os músculos fortes. E eram olhos entediados e desinteressados. Allen cerrou os dentes e com um esforço tremendo continuou a olhar para os recifes, sobrevoado pelos pelicanos, em círculos lentos e graciosos. — Deve ser bom fazer uma caçada por lá hoje — disse Allen finalmente, dirigindo-se a Jim Talbot, que estava estendido, desgracioso, aos pés de Marta, sobre a areia já quente. Ele virou-se abruptamente, surpreendendo Marta desprevenida e percebendo o olhar rápido que ela trocou com Jim. Por uma fração de segundo, Marta tinha baixado a guarda e Allen pôde ver a paixão arrebatada nos olhos dela. Ele sentiu a garganta inchar de raiva e amargura. O impulso de cravar o arpão entre os seios empinados dela foi quase irresistível. Conseguiu controlar-se, abaixando a cabeça de cabelos curtos, para esconder o rosto de Marta. Ela sempre fora capaz de ler-lhe os pensamentos. Era uma pena que ele não pudesse fazer o mesmo. Mas, agora, finalmente sabia. Então era Jim Talbot. Um velho companheiro. Sempre à mão, sempre 140


disposto a formar uma trinca ou um quarteto ... ou então ficar na dupla, quando Allen Melton não estava por perto. Allen ficou mexendo nos controles da arma, vendo Marta refletida no arpão, observando os movimentos da boca adorável e falsa, qualquer barulho abafado pelas ondas que se chocavam nos recifes distantes, sobre os quais circulavam pelicanos e gaivotas, mergulhando de vez em quando para agarrar um peixe prateado, a se contorcer. Allen finalmente prestou atenção no que Marta estava dizendo: — Já estamos aqui há duas semanas e ainda não houve um único dia em que não tivesse ido até lá, para arpoar os peixes debaixo d’água. Por que não fica aqui na praia, para variar? Allen contemplou-a, os olhos correndo lentamente pelo corpo deslumbrante sabendo finalmente da paixão de que ela era capaz. Mas por que jamais correspondera a ele? O pensamento deixou-o meio tonto. Todos aqueles anos... com Jim... — Tem razão, Marta. Acho que a tenho mesmo negligenciado um pouco. Mas Jim é uma boa companhia, não é mesmo? — E Allen exibiu os dentes brancos para Jim, num sorriso terrível. E Talbot pelo menos corou. Olhou rapidamente para Marta, ergueu uma das sobrancelhas e disse, sorrindo debilmente: — Alguém tem de afastar os lobos, enquanto você está lá no fundo, arpoando metade dos peixes do oceano. — Al nunca faz as coisas pela metade — comentou Marta, indolentemente. — Ela cruzou as pernas bronzeadas e ajeitou-se melhor na cadeira de lona. — Se está esquiando, passa seis dias de enfiada sem pensar em outra coisa. Se resolve caçar um urso pardo, fica semanas no meio do mato ... — Eu sempre consigo aquilo que estou querendo — disse Allen, suavemente. — Consegue mesmo, querido? — indagou Marta, friamente. — Aposto que sim — interveio Jim Talbot, sorrindo para Marta. — Ele deve estar fazendo amor com uma sereia lá no fundo do mar. — Não se houver qualquer coisa nadando por perto que ele possa arpoar — disse Marta. — Fazer amor interfere com as atividades esportivas de um homem, não é mesmo, Al? — Interfere com uma porção de coisas — respondeu Allen, virando-se para Talbot. — E então, Jim? Vamos até os recifes? Você concordou 141


em mergulhar pelo menos uma vez, antes de irmos embora. — Eu não estava com muita vontade ... — Jim hesitou por um momento, olhando outra vez para Marta, disfarçadamente. — Acho que Marta pode perfeitamente passar pelo menos uma tarde sem você — comentou Allen, jovialmente. Marta fitou-o subitamente alarmada. Os olhos dela mudaram de cor. Ela sabe, pensou Allen. Ele sorriu novamente, um sorriso tenso, pensando em Jim e Marta sozinhos na pequena ilha deserta, a algumas centenas de metros da praia, fazendo amor desvairadamente. E Marta com um abandono e uma paixão que jamais demonstrara com ele. Fora por mero acaso que decidira voltar mais cedo no dia anterior. E deslizando na piroga, vira o movimento na relva e dera uma olhada pelo binóculo ... — Qual é o problema, Jim? Está com medo de ir? Ele desferiu um soco de brincadeira no ombro de Jim, tendo que fazer um esforço para conter o golpe nos limites da brincadeira. Mesmo assim, o corpo esguio de Jim balançou para trás. Passou o braço negligentemente pelo ombro de Jim e olhou para Marta, consciente do contraste. Allen Melton, com quase 1,90m, cintura estreita, peito forte, olhos azuis faiscantes, Jim Talbot, magro, dando uma impressão de fraqueza, pouco à vontade de calção ... mas nem tanto assim numa ilha solitária ... Sentiu o impulso súbito e absurdo de erguer Talbot acima da cabeça, exibindo todos os seus músculos, atirando-o bem longe. Ou então apertá-lo com toda força, forçando-o a gritar na presença de Marta, provando assim que era o homem inferior. Em vez disso, porém, limitou-se a dizer: — Não há nada de perigoso na caça submarina, Jim. Até mesmo as crianças daqui a praticam. Ontem mesmo vi um garoto de 15 anos arpoar um peixe de 30 quilos. — Mas por que essa súbita vontade de ter companhia? — indagou Marta. Ela mordeu os lábios e olhou na direção dos recifes, antes de acrescentar: — Parece que tem algo grande por lá, como todos aqueles pássaros. Um cardume grande não costuma atrair ... tubarões? — Provavelmente. Mas os tubarões não constituem problemas. Basta a gente ficar imóvel que eles passam adiante. — Allen virou-se para Talbolt. — E então, Jim? É um bocado divertido lá embaixo ... uma diversão boa e saudável. Talbot ficou vermelho outra vez. Engoliu em seco e acabou assen142


tindo, com uma expressão desolada. — Está bem. Eu prometi que iríamos, antes... — Ótimo! — exclamou Allen, apontando para o atracadouro. — Podemos partir imediatamente. Tenho um equipamento extra na piroga. E também alguma comida. — Apertou o bíceps de Talbot, rindo, e acrescentou: — Dentro de 25 minutos estaremos lá nos recifes. E pode ter certeza, Jim, de que será uma experiência que nunca mais irá esquecer. — Jim ... Allen ... — Marta estava de pé, enquanto os dois já começavam a se afastar, Talbot visivelmente relutante. Eles pararam. — Tomem cuidado ... Os dois assentiram e recomeçaram a se afastar. Allen sabia que ela falara especificamente para Talbot. Era um bom conselho. Uma porção de coisas poderia acontecer lá, nos recifes, a 13 ou 15 metros de profundidade. Muitas coisas mesmo ... A caminho dos recifes, Allen explicou como usar o caríssimo aqualung portátil francês. Apontou para as válvulas que controlavam o fluxo de ar comprimido para a máscara e depois, quando a piroga já tinha alcançado o lado mais distante dos recifes, longe dos outros pescadores, explicou como carregar e disparar a arma. — Não há nenhum problema — disse ele, os olhos frios percorrendo lentamente o corpo magro de Talbot e fixando-se num ponto entre as costelas. — A arma funciona com gás comprimido. Tem uma capacidade fatal até três metros de distância. — Allen pôs as nadadeiras e ajeitou o aparelho de oxigênio nos ombros. — Mas tome cuidado com a direção em que vai apontar. Pode matar um homem com esse arpão ... sem a menor dificuldade. Os dois mergulharam juntos, levantando borbulhas na água transparente. Allen foi avançando facilmente, como uma foca. Talbot batia os pés desajeitadamente, as pernas parecendo ainda mais esqueléticas com as imensas nadadeiras nas extremidades. Allen estava com os dentes cerrados. O que, diabo, atraíra Marta nele? O que teria visto naquele homem esquelético e insignificante para dar vazão a sua paixão ardente de maneira tão desavergonhada, em plena luz do dia? Ele apertou a arma com força e engoliu em seco. Um bodião colorido passou por eles, seguido por outro e mais outro. E não demorou muito para que um fluxo de peixes, de todas as cores, como um arco-íris desintegrado, passasse por eles, cada vez mais depressa. Os cardumes 143


que estavam na parte interna dos recifes nadavam na direção deles, como que impelidos por um vento forte. Pouco depois, a distância, Allen avistou o vulto sinistro de um grande tubarão azul, seguido por outros tubarões menores. Ele ficou observando os seis metros de músculos e poder assassino deslizarem velozmente. Aproximou-se de Jim e tocou no ombro dele, sorrindo satisfeito ao sentir a pele arrepiada. Encostou a máscara na de Talbot e gritou: — Fique completamente imóvel. Os olhos de Talbot subitamente reviraram, enquanto o tubarão deslizava pelas águas verdes e logo desaparecia. Allen sentiu algo bater em sua perna de lado e escorregar para o chão. Afastou-se para o lado e olhou para baixo. Era a arma de Talbot, que escorregara dos dedos inertes dele. Talbot esquecera de prender a arma no pulso, com a tira específica. Inclinou-se novamente para a frente e gritou: — Pode ouvir-me, Talbot? Talbot assentiu, gesticulando veementemente para cima, na direção do fundo do barco, uma mancha escura na água cristalina. Allen sacudiu a cabeça, saboreando a intensa exultação da expectativa pelo que ia fazer. Não haveria um lá em cima para Talbot. Nunca mais. Ali, junto aos recifes, ele iria pagar por usurpar o papel que somente ele, Allen Melton, aos olhos de Deus e dos homens, tinha o direito de representar. Iria fechar aqueles olhos zombeteiros, anular aqueles ouvidos que haviam escutado as mentiras sussurradas dela, fechar a única boca que poderia enunciar a vergonha dele. Um acidente, ele iria dizer. Avistara um peixe grande e apontara-o para Talbot. Os dois haviam-se aproximado do peixe e acidentalmente sua arma disparara. Um lamentável acidente. Uma dessas coisas que sempre podem acontecer até mesmo com os mais veteranos e experientes. Mas Marta saberia. Allen sorriu por trás da máscara. Marta saberia e essa seria a mais doce das vinganças. Abruptamente, Allen encostou novamente a máscara na de Talbot, vendo o alarma nos olhos dele. E disse calmamente: — Vai haver um acidente. E não será nada agradável... como fazer amor com Marta numa ilha deserta ... Talbot agarrou-o, as mãos frias e escorregadias, os lábios se mexendo, falando desesperada e rapidamente: — Não! Por favor ... não! — Os olhos arregalados mostravam o ter144


ror pelo que via nos olhos de Allen. — É verdade! Mas por que me matar? Eu não sou o único! — As mãos sacudiram o corpo forte de Allen, como se ele quisesse assim afastar a morte iminente. — E os outros? Mecanicamente, como se não o fizesse por vontade própria, Allen repeliu-o com os pés, levantou a arma e puxou o gatilho. Ficou observando o arpão fino penetrar no corpo de Talbot, um pouco à esquerda do esterno. Um disparo certeiro. Esperou mais um pouco, contemplando o esguicho vermelho que se elevava na direção da superfície. Não era verdade. Allen observou as borbulhas subirem, se dissolve rem, irem-se tornando cada vez mais escassas, até finalmente cessarem. O que Talbot dissera não era verdade. Fora a tentativa final de um homem desesperado procurando escapar à morte que vira inevitável nos olhos dele, Allen. Agachou-se ao lado do corpo imóvel, segurando-o pelos ombros, o cérebro perfeitamente sob controle. Não havia nenhum outro. Talbot fora a única mancha em sua virilidade, o único que a tomara nos braços. O único ... Sabia que já deveria estar subindo, levando o corpo. Esperar demais poderia parecer suspeito. Mesmo assim continuou lá no fundo, procurando angustiadamente tranqüilizar-se. Todas as montanhas que ele escalara e conquistara, todos os rios que atravessara a nado, os animais astuciosos e traiçoeiros que vencera ... Provara que era um homem, vezes sem conta. O grande e vigoroso Allen Melton, desportista,macho de verdade, casado com uma mulher maravilhosa e apaixonada. Apaixonada demais. Ele não deveria ter feito tantas viagens. Nunca deveria ter ficado longe por períodos tão prolongados. Não estava fugindo dela, da sede insaciável dela. Absolutamente. Era apenas a sua natureza, querer sempre medir forças contra tudo que existisse de forte e brutal no mundo. E vencer. Era homem o bastante para ela ou qualquer outra mulher no mundo. Homem bastante ... Allen inclinou-se, pegou o corpo frio nos braços e começou a subir, batendo os pés vigorosamente. Olhou para o rosto branco tão perto do seu. “Sempre consigo aquilo que estou querendo.” “Consegue mesmo, querido?” E subitamente os peixes começaram a voltar, hordas assustadas a nadarem ao redor, esbarrando nele, enquanto fugiam pelas águas verdes transparentes. Abruptamente, Allen compreendeu o perigo em que esta145


va. Tinha esperado demais. O tubarão estava voltando, sentindo o cheiro de sangue, o sangue de Talbot, que ainda subia lentamente, uma fita vermelha a se desenrolar para a superfície. Ele largou o corpo, avistando a distância o vulto do tubarão a atacar, cada vez maior e maior ... Por um instante indefinido, tentou permanecer imóvel, desafiando a gravidade, suspenso entre o céu e o inferno. Mas lentamente, muito lentamente, começou a afundar, seguindo o corpo de Talbot, que ia girando suavemente. A maldita fita vermelha envolvia Allen, impregnando-lhe o cabelo, o calção, com o cheiro sinistro. O instinto lhe dizia para nadar, para bater as pernas vigorosas e subir até a superfície e a segurança a toda velocidade. Mas o cérebro, frio e lógico, preponderou. Não se mexa. Mexer-se é a morte instantânea. E ele continuava a afundar, cada vez mais. O grande tubarão azul, um torpedo estreito de destruição implacável, girou lentamente e ficou de frente para ele, esperando por um movimento qualquer para explodir em ação assassina. Allen olhou para baixo. E avistou na areia, ao lado do corpo do amigo que finalmente atingira o fundo, o brilho metálico da arma de Talbot, ainda com o arpão no lugar. Nesse momento, ele tomou uma decisão. Com um impulso poderoso, lançou-se desesperadamente na direção da arma. Pelo canto dos olhos, viu o movimento rápido do tubarão, arremetendo em sua direção. Freneticamente avançou para a arma, a poucos metros de distância. No momento mesmo em que já ia alcançá-la, o corpo de Talbot virou mais uma vez, deixando escapar um fluxo vermelho mais forte, balançando para um lado e outro. Um segundo depois, ouviu um baque e viu as borbulhas se levantarem, quando o tubo de respiração de Talbot bateu na arma e disparou-a. Allen ficou agachado ali, na eternidade de um segundo, olhando para o rosto branco do morto, ouvindo novamente suas últimas palavras, compreendendo que eram verdadeiras. Ainda tinha a faca, mas não fez qualquer movimento para pegá-la. Havia tubarões demais. O oceano ... o mundo ... havia tubarões demais, em toda parte. De olhos brilhantes, dentes afiados, criaturas de apetite insaciável. Tubarões demais. .. E Allen ficou agachado, não tendo mais qualquer defesa, apenas esperando ...

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CHRISTOPHER FRAME Nancy C. Swoboda Christopher Frame olhou pela vitrina de sua pequena loja para a chuva que caía lá fora. Passava um pouco das cinco horas da tarde e pessoas de guarda-chuvas e capas coloridas passavam apressadamente de um lado para outro, voltando para casa, depois do dia de trabalho. Isso era tudo o que as pessoas faziam atualmente, pensou Frame. Estavam sempre correndo para seus empregos e para suas casas, correndo pela vida. E já não restava qualquer orgulho. Ele remexeu o carvão na pequena lareira até que ficasse com um brilho alaranjado sobre a grade enegrecida. E voltou ao trabalho, em sua escrivaninha grande. O prédio era incongruente naquela rua moderna do centro da cidade. Tinha dois andares, não era muito alto e ficava espremido entre duas estruturas de aço-e-vidro, de aparência impessoal. Por cima da porta e nas vitrines grandes dos dois lados havia um letreiro antiquado, dizendo apenas MOLDURAS. Há 82 anos que o pai dele e depois o próprio Christopher Frame estavam no negócio de fotografia, especialmente restauração, pinturas e molduras. Agora, Christopher estava sozinho, tanto no negócio como na vida. Morava nos aposentos dos fundos do velho prédio, usava o segundo andar como depósito. Aquele prédio antigo era seu lar e seu mundo há 30 anos. Aos 15, tornara-se aprendiz do pai, no mesmo ano em que a mãe 147


morrera. Os dois Frames tinham ido viver no lugar em que trabalhavam. O pai morrera quando Christopher tinha 30 anos, deixando-lhe um imóvel de valor excepcional, no qual estava encerrada toda a existência dele. A chuva se transformou numa garoa e a tarde cinzenta foi rapidamente se transformando em noite. Christopher preparou um chá com torradas e estudou a fotografia sobre a mesa, a sua frente. Estava contemplando-a e pensando a respeito desde que o Sr. Walters a trouxera, quatro dias antes. Era uma fotografia muito antiga, de um passeio de família, provavelmente um piquenique. Estava bastante apagada e amassada. O Sr. Walters queria que fosse restaurada, para dar de presente à esposa. Parecia que a fotografia era da família dela, uma mulher sentimental com relação a tais coisas. Evidentemente, o Sr. Walters esperava que Christopher Frame fizesse um excelente trabalho. Chegara até mesmo a escolher uma moldura folheada a ouro, muito bonita. Mas Christopher não tinha condições de executar o trabalho. O Sr. Walters mencionara rapidamente que a esposa tinha olhos azuis e que os cabelos eram louros quando ela era criança. Mas . . . e o resto das pessoas? De que cor seriam os cabelos? Os olhos? As roupas que usavam? O quão azul seria o céu? Ao fundo, Christopher podia divisar o que parecia ser uma cidadezinha adorável, com a torre de uma igreja se erguendo no céu claro. Mas a fotografia estava desbotada e o grupo em primeiro plano, posando num outeiro, estava indistinto, em vários graus de branco, manchados de marrom. Christopher punha orgulho e perfeição em todos os trabalhos que executava. Agora que a restauração de fotografias estava-se tornando tão popular, incomodava-o não ser capaz de reproduzir as fotografias fielmente. A maioria das fotografias antigas era em marrom ou sépia. As pessoas que as compravam não tinham, é claro, a menor idéia das cores, já que eram jovens demais ou nem sequer tinham nascido. Christopher adorava criar as cores para as fotografias que trabalhava, mas sentia que, de certa forma, estava distorcendo o passado. Como restavam poucos artesãos verdadeiros! Ninguém mais tinha tempo ... nem se importava. Era algo parecido com a diferença entre as molduras esculpidas à mão que ele guardava lá em cima e as molduras modernas, impessoais e sem qualquer interesse, que ele estremecia quando tinha de usar em algum trabalho. Christopher voltou a remexer o fogo e acrescentou mais um pou148


co de carvão. Depois, foi para o cômodo de teto alto que havia nos fundos do prédio. Estava mobiliado como um quarto, com móveis antigos de mogno, uma cama com quatro postes, uma colcha de retalhos. Era um quarto de homem, mas era aconchegante e agradável... e antiquado. Tinha levado a fotografia. Colocou-a em cima da cômoda ao pé da cama e acomodou-se em cima da colcha para tirar um cochilo. O despertador que usava para revelar fotografias estava na mesinha de cabeceira. Acertouo para soar dentro de uma hora. Depois, recostou-se para contemplar a fotografia que tanto o perturbava. Se ao menos pudesse estar lá .... pelo menos o tempo suficiente para ver a cena real, as cores verdadeiras. Seria maravilhoso! Ele terminou cochilando, embalado pelo tique-taque do despertador. A combinação de algo a lhe comichar no ouvido e uma claridade intensa despertou-o de um sono profundo, meio estonteado. Abriu os olhos e contemplou a relva muito verde e, mais acima, um horizonte de céu azul. Estava deitado de lado, debaixo de uma árvore, e era um lindo dia de sol! Cautelosamente, rolou e sentou-se. O ar cheirava a cravo-da-índia e o repicar de um sino flutuou preguiçosamente pela brisa quente de verão. Estava no alto de uma colina, por cima de uma aldeia de casas bran cas, aninhada contra uma colcha de retalhos de campos arados e encostas verdejantes. Ficou sentado ali, extasiado, aspirando o ar puro e inebriante. Mas logo ouviu risos e vozes, fazendo-o compreender que estava num lugar estranho, numa situação ainda mais estranha. Lentamente, Christopher Frame levantou-se e olhou ao redor. Ficou boquiaberto, uma expressão de incredulidade no rosto. A sua frente, vivos, respirando e posando, estavam as mesmas pessoas da fotografia em cima de sua cômoda! O fotógrafo, de costas para Christopher, estava orientando as pessoas a se colocarem neste ou naquele lugar, instruindoas para que ficassem completamente imóveis, a fim de que pudesse bater a fotografia. As cores eram tão vívidas ao sol do verão! Christopher olhou para o grupo e procurou memorizar o máximo possível, tomando também algumas anotações no caderninho que sempre levava consigo. É claro que estava sonhando, mas talvez fosse algum tipo de telepatia que provinha da fotografia, causada por sua ansiedade em saber mais alguma coisa a respeito dela. No momento em que a garotinha do grupo olhou para ele, Chris149


topher sentiu a cabeça latejar e dar a impressão que explodia, com sinos a repicar. A cena diante dele escureceu. Quando pôde ver novamente, estava olhando para o teto do seu próprio quarto e o despertador tocava insistentemente. Sentou-se na beira da cama e olhou para a fotografia. Mas que sonho realista!, pensou ele. Apalpou o caderninho de anotações no bolso do paletó e soltou uma risadinha. Decidiu começar a trabalhar imediatamente na reprodução, enquanto a cena ainda estava nítida em sua mente. Se não acurado nos detalhes, aquele trabalho seria pelo menos inspirado. Ele se levantou e espreguiçou-se. E, num impulso súbito, tirou o caderninho de anotações do bolso. Estava quente, por ficar tão perto de seu corpo. Abriu-o . . . e prendeu a respiração. Lá estava, em sua letra meticulosa, uma descrição da fotografia. Em seu excitamento, o caderninho caiu das mãos trêmulas. Ao abaixar-se para pegá-lo, viu as pontas de relva presas nos saltos dos sapatos. Confuso, tonto, sentindo uma estranha exultação, tornou a sentar-se na cama. Cautelosamente, pegou o despertador e examinou-o. Era o mesmo que há muitos anos vinha usando. Não havia nada de estranho nele agora. Tornou a colocá-lo em cima da mesinha de cabeceira e ficou a olhá-lo fixamente, por um longo tempo. O significado da experiência deixava Christopher confuso. Ficara pairando entre a realidade e o nível de consciência em que mergulhara, qualquer que fosse, quando assistira à cena da fotografia. Lentamente, ele saiu do quarto e seguiu para os aposentos na frente do prédio antigo. O carvão era agora cinza branca na lareira e a chuva cessara. Nada havia de diferente no ambiente familiar. Abriu a porta da frente e respirou o ar frio. Tudo lá fora também continuava igual. Gostava mais de sua rua durante a noite. Os sinais luminosos faiscavam contra as estruturas de aço e vidro, fazendo com que os prédios frios e impessoais parecessem agradáveis e amistosos. Por muitas vezes tivera a sensação de que seu prédio antigo era uma fortaleza, da qual podia olhar para fora e ver as antigas e maravilhosas lojas serem impiedosamente arrasadas, surgindo monstros de concreto em seu lugar. As pessoas eram cada vez mais apressadas, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, recomeçando tudo no dia seguinte. De certa forma, o negócio que ele mantinha ali, naquele prédio antigo, era um monumento ao passado. E Christopher tencionava que assim continuasse. 150


Muitas noites, enquanto esquentavam os pés ao fogo da lareira, o pai de Christopher falara dos tempos antigos, quando se levavam semanas para fabricar um único móvel, como as coisas eram feitas para durarem uma vida inteira, como os homens eram artesãos e artistas, ao invés de meros operários apressados. As fotografias muito antigas que as pessoas lhe levavam, para serem restauradas, faziam com que aqueles tempos se tornassem ainda reais e desejáveis para Christopher. Depois que o pai morrera, ele se abrigara ainda mais na casa e se empenhara mais a fundo em sua profissão. Ansiava pela companhia de uma esposa, mas era também antiquado demais para ser atraente para as mulheres. Ou pelo menos era o que pensava. Assim, contentava-se com seu trabalho e com a segurança do velho prédio. O ar ajudou-o a limpar a mente e a dispersar o que ainda perdurava do sonho. Mas teria sido mesmo um sonho? A relva e a descrição detalhada em seu caderninho de anotações eram fatos tangíveis. Mas, ansioso em transferir para a fotografia tudo o que “vira”, adiou qualquer especulação e pôs-se a trabalhar. O sol já estava projetando um clarão rosado sobre o prédio cinza claro do outro lado da rua quando ele finalmente terminou. Era como olhar para uma cena real, dentro de uma moldura dourada. O próprio Christopher estava surpreso com a nitidez com que reproduzira a cena. Olhou para a torre distante da igreja e para a pequena aldeia, mal discernível além do grupo sorridente. Sentiu um débil anseio nostálgico. O excitamento superou a melancolia, e ele pegou o telefone para avisar ao Sr. Walters de que o trabalho já estava pronto. Mas compreendeu, antes de sequer iniciar a ligação, que ainda estava amanhecendo. Era cedo demais. Decidiu deitar-se para tirar um rápido cochilo. Depois de colar sua etiqueta atrás da fotografia, foi para o quarto. Após um momento de hesitação, resolveu usar o despertador antiquado que tinha no quarto, em lugar do que usava para revelar as fotografias. O dia transcorreu sem qualquer novidade. O Sr. Walters ficou satisfeito com a restauração e a moldura da fotografia, mas não se mostrou muito impressionado. Ele não tinha, é claro, uma noção da estranha experiência de Christopher. Recebeu diversos fregueses, mas não os tratou da maneira meticulosa habitual. Sua mente estava ocupada por outros pensamentos. Continuava a pensar no que lhe acontecera. Só podia ter sido verdade. Não havia relva por quilômetros ao redor e ninguém escre151


via tão precisa e coerentemente durante o sono, como ele fizera ao tomar anotações no caderninho. Sabia que tentaria fazer com que acontecesse novamente ... assim que fechasse. E sabia qual a fotografia que usaria. Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que transcorreu lentamente até cinco horas da tarde. Trancou a porta da frente e ficou parado por um momento, a observar o desfile apressado das pessoas correndo para os pontos de ônibus, estacionamentos, todos querendo fugir do trabalho, sobre o qual haviam deslizado durante o dia inteiro. A verdade é que ele fizera a mesma coisa naquele dia. Mas fora uma exceção. Estava ameaçando chover novamente. Christopher acendeu um pequeno fogo na lareira, apagou todas as luzes, menos a de um abajur em cima da mesa, e depois foi para o quarto. Em cima da cômoda, assim como fizera com a primeira, havia outra fotografia antiga. Era um grupo de rapazes, posando numa calçada de madeira, diante da vitrine de vidro de uma loja. Quantas vezes o pai de Christopher não lhe falara daqueles rapazes alegres e de como se divertiam! Eles, inclusive o pai de Christopher, eram todos aprendizes em diversas lojas e oficinas, aprendendo um ofício em troca de casa e comida, de vez em quando recebendo um dinheiro extra, se haviam executado alguma tarefa particularmente árdua. Cautelosamente, acertou o despertador para soar dentro de uma hora e estendeu-se na cama. Talvez despertasse na praça da cidadezinha, em frente à loja. Como seria estranho ver o pai quando era jovem! Apesar de seu excitamento, Christopher acabou dormindo. Mas quando o despertador tocou, ainda estava em seu quarto, sem qualquer sensação de ter estado em outro lugar. A fotografia permanecia intacta em cima da cômoda. O desapontamento e a dúvida diluíram o benefício do descanso que tivera com o rápido cochilo. Passou quase toda a noite sentado diante do fogo, pensando. Por que não funcionara? As circunstâncias eram quase as mesmas. Talvez tivesse de ser um passado que desconhecesse inteiramente. O desejo de voltar, principalmente pela ânsia de provar ou refutar a realidade de tê-lo feito, dominou-o. Deu uma olhada no relógio. Ainda faltava algum tempo antes do amanhecer e sentia-se um pouco sonolento. Cuidadosamente, examinou as fotografias antigas que estavam esperando para serem restauradas e escolheu a que fora trazida pela Sra. Nellie Hampton. Nada sabia a respeito da fotografia ou da mulher, apenas uma freguesa a mais. 152


Colocou novamente a fotografia em cima da cômoda e acertou o despertador para soar uma hora depois. Deitou-se na cama e estudou a fotografia esmaecida. Era, evidentemente, a fotografia de uma festa no quintal dos fundos da casa de alguém. Havia lanternas japonesas penduradas de fios estendidos da varanda até as árvores, mesas compridas cheias de comida e um grupo sorridente, usando as melhores roupas, muito empertigado nos degraus da varanda. Espere um pouco! Christopher levantou-se e foi examinar a fotografia mais de perto. Deveria trazer algo de volta, uma prova qualquer de que realmente estivera lá. Ah, isso mesmo! A balaustrada da varanda era de estacas finas, com pequenas bolas de madeira em cima. Poderia facilmente arrancar uma dessas bolas. Voltou a deitar-se na cama e, depois de uma última olhada na fotografia, fechou os olhos. Foi o movimento de balanço que o despertou. Estava na varanda da casa em que se realizava a festa, olhando para o quintal, sentado numa cadeira de balanço grande, pendurada do teto por duas correntes de ferro. E a balaustrada a sua frente era encimada por pequenas bolas de madeira! Levantou-se e caminhou lentamente até o lado da varanda. Lá estava o grupo da fotografia posando, esperando que o fotógrafo o dispensasse. Um momento depois, todos desceram os degraus. Ele estava lá! Olhou para si mesmo. Estava de calça e em mangas de camisa, mas não destoava muito, pois vários homens estavam assim também, arremessando ferraduras no quintal. Desceu os degraus e permaneceu perto das moitas, de onde podia observar aquela maravilhosa festa dos tempos antigos. Sentiu-se tentado a experimentar a comida. Os aromas deliciosos que flutuavam até suas narinas faziam com que sua boca ficasse cheia d’água. Havia galinha, bolos e tortas, pão feito em casa. Ao lado, havia uma tina cheia de gelo, cercando um galão grande de sorvete de morango. — Olá. Não quer comer alguma coisa? — A voz suave deixou-o aturdido. Girou rapidamente e deparou com os olhos mais azuis e o rosto mais meigo que já vira. — Co ... como? Oh, não, obrigado! Eu... eu já comi... — É novo por aqui, não é? Meu nome é Sarah Phillips. A moça fitava-o com um interesse genuíno. Somado à sensação inebriante de estar ali, isso fez com que ele sentisse uma estranha e estonteante exultação. 153


— Sou, sim. Acabei de chegar, para a festa. — Fico contente que tenha vindo, Sr. ... Desculpe, mas não me lembro do seu nome. — Christopher . . . Christopher Frame. — É de que parte do país? Ela o fitava com interesse e Chistopher podia sentir que estava curiosa por sua aparência. — Sou . . . fotógrafo. Viajei um bocado. — Vai ficar aqui muito tempo? — Os cachos dourados brilhavam ao sol. — Creio que não. Mas ainda não sei. Christopher fitou-a atentamente, tentando fixar a imagem dela em sua mente. Depois, ouviu a zoada em sua cabeça, — Está-se sentindo bem, Sr. Frame? — Estou, sim. Mas peço que me dê licença. Gostaria muito de ficar, mas tenho que ir agora. — Lamento que tenha de ir. Espero que tornemos a nos encontrar. — Ela franziu ligeiramente as sobrancelhas. — Eu também espero, Srta. Phillips.. . Sarah. Adeus. O barulho era agora ensurdecedor. Ele tinha que apressar-se. Contornou a casa rapidamente, desaparecendo das vistas de todo mundo. Mal conseguiu arrancar uma das bolas de madeira antes da campainha soar. Estava deitado de costas quando despertou. Os primeiros raios do sol entravam pela janela, lançando um brilho rosado no teto. Tinha medo de mexer-se, medo de deixar para trás o último fragmento do mundo que encontrara, mas que não podia conservar. Recordou-se então da bola de madeira. Talvez tivesse mesmo estado lá! Lentamente, fechou as duas mãos. Nada! O desespero invadiu-o, não apenas por perder o passado, mas principalmente por perder Sarah Phillips. Fora a vítima de seus próprios sonhos, nítidos demais, sonhos que abriam as comportas para anseios que mantivera reprimidos dentro de si por tanto tempo. Levantou-se e foi até a fotografia. A jovem estava ali, sorrindo-lhe. Mas a fotografia esmaecida obscurecia a beleza dela. Como fora um tolo em apaixonar-se pelo passado e por uma moça que ao passado pertencia! Mas pelo menos a Sra. Nellie Hampton teria uma restauração imaginati154


va. Com um suspiro, Christopher encaminhou-se para a frente do prédio. Começar a trabalhar imediatamente poderia ajudar um pouco. Parou e olhou para o despertador. Talvez devesse comprar um novo. Seus olhos passaram pela cama, voltaram. E ele soltou um grito. Quase escondida sobre a colcha de retalhos, havia uma pequena bola de madeira! Agarrando a fotografia e aquele precioso pedaço do passado, um eufórico Christopher Frame cambaleou até sua mesa e sentou-se. Era tudo verdade. Voltara realmente ao tempo daquelas duas fotografias antigas. Foi então que um pensamento terrível ocorreu-lhe. Por quanto tempo seria capaz de voltar? E se o despertador quebrasse? Ternamente, pôs a fotografia em cima da mesa e acendeu a luz. Examinou atentamente o rosto querido de Sarah, com uma lente. Súbito soube o que devia fazer. Trabalhou sem parar durante o dia inteiro, procurando terminar o máximo de trabalhos que era possível. O orgulho e a honestidade ainda governavam suas ações, apesar dos pensamentos tumultuados que dominavam sua mente. Além do mais, queria estar bastante cansado quando a noite chegasse. Como era seu hábito, fechou a loja por uma hora, para o almoço. Subiu para o segundo andar. Estava tudo arrumado, impecável, na mais perfeita ordem. Contemplou os bens antigos da família. Passou a mão pelos entalhes da cadeira de encosto alto, ergueu uma taça contra a luz, examinou a incrustração de madrepérola na pequena escrivaninha. Hoje, qualquer um daqueles objetos estaria fora do alcance das pessoas médias. No passado, porém, aquelas coisas maravilhosas estavam à disposição de todos. Isso lhe deu uma vontade intensa de trabalhar entre aqueles artesãos, que se empenhavam a fundo em concluir com perfeição os mínimos detalhes de qualquer trabalho. Na hora de fechar, Christopher estava satisfeito com o que conseguira fazer e sentia-se realmente cansado. Olhou pela vitrina como se esperasse ver alguma coisa que não o rush habitual das cinco horas. Deu de ombros e virou-se. Cuidadosamente, tirou a fotografia da mesa, olhou ao redor e foi para o quarto. Era agora quase um ritual. Novamente colocou a fotografia antiga em cima da cômoda, exatamente como fizera na noite anterior. Sarah ainda estava ali, sorrindo-lhe do passado. Além da fotografia, podia ver-se no espelho da cômoda. Os cabelos estavam despenteados e a camisa manchada de tinta e preparados químicos que usara. Rapidamente, pois sentia-se invadido por um cansaço extremo, vestiu uma camisa limpa e penteou os cabelos. Depois, com 155


as mãos trêmulas, acertou o despertador para soar dentro de uma hora. Sentiu-se tentado a marcar um período maior, mas receou afetar assim o padrão estabelecido nas duas ocasiões anteriores. Soltando um suspiro nervoso, estendeu-se na cama e fechou os olhos imediatamente. De muito longe, podia ouvi-la chamando, depois mais perto . . . quase em seu ouvido. Sentiu a cabeça aninhada em algo macio. Lentamente, abriu os olhos e deparou com a expressão preocupada de Sarah Phillips. Ela o mantinha com a cabeça em seu colo. — Christopher! Está-se sentindo bem, Sr. Frame? — Sarah! — Ele fez menção de levantar-se. — Não. Fique deitado mais um pouco. Não parecia estar passando bem quando correu para o lado da casa. Vim atrás e encontrei-o caído aqui. — Encontrou-me? — Isso mesmo. — Eu ... eu acho que foi o calor . . . — Está-se sentindo bem o bastante para levantar? Posso ir buscarlhe um copo de limonada. — Não precisa, obrigado. Estou-me sentido muito bem. — Lamentando, Christopher deixou o paraíso do colo dela e levantou-se. — Eu me sentiria ainda melhor, se pudéssemos dar uma volta. Christopher precisava saber se o reino do passado se estendia além da casa, o quintal, o grupo sorridente nos degraus da varanda. Ofereceu o braço a Sarah, que o tomou, com um sorriso tímido mas satisfeito. Caminharam para a frente da casa. Estava tudo lá, a rua margeada de árvores, as grandes casas brancas. Passearam lentamente. Christopher começou a absorver a riqueza do ambiente. Dois quarteirões adiante, chegaram à praça da cidadezinha, luxuriante e bem-cuidada, cercada por lojinhas encantadoras, em prédios de madeira e pedra. Era ali que ele desejava viver. Se ao menos ... e foi então que ele ouviu a zoada começar. — Sarah, decidi ficar aqui. Isso .. . isso iria agradar a você? Isto é, estou querendo dizer.. . — Agradaria, sim, Christopher. Eu ficaria muito contente . . . Mas você está novamente com aquela expressão estranha. Talvez tenhamos andado demais. — É possível. Vamos voltar para a festa. Sarah ... só por um momento, segure minha mão. E não a largue por motivo nenhum . .. 156


Ela parecia assustada e a zoada na cabeça de Christopher era agora ensurdecedora. Ele podia sentir a pressão suave da mão dela na sua. Chegaram finalmente à casa e foram para os fundos. Pouco antes de a campainha disparar, Christopher apertou mais ainda a mão de Sarah e fechou os olhos. Três dias se passaram antes que alguém avisasse a polícia da ausência inexplicável de Christopher Frame. Vários fregueses com fotografias prometidas pelo consciencioso Sr. Frame ficaram preocupados e dois detetives foram até a casa. Não descobriram nada errado, também não encontraram o menor vestígio de Christopher Frame. Um dos detetives viu a fotografia em cima da cômoda. — Ei, Charlie, dê um pulo até aqui! Quero que você dê uma olhada nisto. — E o que é? — Está vendo esta fotografia? Olhe bem, para saber por quem está procurando. Deve ser um parente muito antigo do velho Chris. Parece um bocado com ele. — Qual deles? O detetive encostou o dedo imenso na fotografia esmaecida. — Este aqui. O que está de mãos dadas com a moça, na varanda . . .

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