O RETORNO DO RETORNO DE MARTIN GUERRE: NATALIE DAVIS, CINEMA E HISTÓRIA* Alberto Moby Ribeiro da Silva On me faict hayr les choses vray-semblables quand on me les plante pour infallibles. J'ayme ces mots, qui amollissent et moderent la témérité de nos propositions: a l’aventure, aucunement, quelque, on dict, Je pense, et semblables. Montaigne, Essais, 1588, l. 3, cap. 1 1 1
1. O retorno do retorno de Martin Guerre Certamente não é novidade para os profissionais da história e pessoas afins a incrível história das peripécias do fascinante embusteiro Arnaud du Tilh, que, por mais de três anos, na primeira metade do século XVI, na aldeia de Artigat, no Languedoc, se fez passar pelo camponês Martin Guerre. Essa história já foi contada e recontada várias vezes, sendo a mais conhecida entre os historiadores a brilhante reconstituição do caso feita por Natalie Zemon Davis em seu livro “O retorno de Martin Guerre”, de 1983, uma obra “que ainda permanece como referência absoluta”2. Seu trabalho foi, na verdade, a segunda e solitária etapa de uma tarefa anterior, quando Davis trabalhou juntamente com o roteirista Jean-Claude Carrière3 e o diretor Daniel Vigne4 na construção do roteiro do que viria a ser o belo filme Le retourde Martin Guerre. Concluído no ano anterior, o filme, que teve a atuação de Gerard Depardieu no papel do sedutor Arnaud, usurpador da identidade e dos bens de Martin Guerre, recebeu o prêmio César, do cinema francês, de 1983, nas categorias trilha sonora, decoração, melhores cenário original e diálogos. Foi indicado também, por essa organização, pela interpretação do ator Dominique Pinon, na categoria revelação. Além disso, foi indicado para o Oscar de 1985 de melhor figurino e para a premiação da British Academy of Film and Television Arts do mesmo ano na categoria de melhor filme em língua estrangeira. Venceu ainda os concursos da Sociedade Nacional dos Críticos de cinema dos EUA de 1983, categoria de melhor ator, com Gerard Depardieu, e do Círculo de Críticos de Cinema de Kansas City na categoria de melhor filme estrangeiro de 1984. E uma realização cinematográfica cujo currículo não deve ser desprezado – ainda que devamos
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Texto publicado originalmente em BARROS, José D’Assunção (org.). Cinema-História. Rio de Janeiro: LESC, 2007, p. 87-118, e, em edição revista, em NÓVOA, Jorge & BARROS, José D’Assunção (orgs.). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. 1
“Tornam-se-me odiosas as coisas verossímeis quando elas me são apresentadas como infalíveis. Gosto das palavras que adoçam e moderam a temeridade das nossas afirmações: ‘talvez’, ‘de certo modo’, ‘algum’, ‘diz- se’, ‘eu penso’ e outras semelhantes.” Apud GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre”, de Natalie Zemon Davis, p. 179-180. Ginzburg segue a edição de 1950 (Paris: A. Thibaudet, v. III, cap. 11, p. 1.155). (As referências bibliográficas completas encontram-se no fim deste trabalho, por ordem alfabética dos autores.) 2
PERTUZÉ, Jean-Claude. Martin Guerre n’en finit pas de revenir.
3
Formado em Letras e com mestrado em História, Carrière é romancista, roteirista e diretor com extensa produção. Foi cenarista de Bunuel durante 19 anos, até a morte do cineasta. 4
O trabalho de Daniel Vigne como diretor é considerado tão meticuloso e atento ao detalhe que essa característica tem servido de argumento para explicar sua produção relativamente limitada. Seu primeiro filme data de 1972, mas foi com “Le retour de Martin Guerre” que ele ganhou projeção internacional.
relativizar a importância, do ponto de vista do mundo dos negócios da indústria cinematográfica, tanto dos prêmios recebidos quanto das indicações não premiadas –, principalmente levando-se em consideração que a “história real” de Martin Guerre e Arnaud du Tilh, o usurpador de sua vida, era, por assim dizer, mais que “requentada”5. Do ponto de vista do que nos interessa neste ensaio, temos no trabalho de Natalie Davis como coautora do roteiro do filme6 um interessante material para pensarmos a relação entre história e cinema. Pretendo discutir aqui alguns elementos da delicada e fascinante relação entre o discurso historiográfico e o chamado filme histórico, tendo como base o trabalho de investigação de Davis e sua participação na montagem do filme, embrião do trabalho de pesquisa que resultou no livro. O que mais chama a atenção no trabalho de Davis é sua capacidade de compor um cenário (e vale aí o duplo sentido) em que teriam se movimentado os homens e mulheres das famílias Guerre, de Martin, e Rols, de Bertrande, sua esposa, diretamente envolvidas no embuste perpetrado por Arnaud du Tilh, mas também das demais pessoas que interagiam com elas no dia-a-dia da aldeia de Artigat e seus arredores. É preciso levar em consideração a constatação da autora de que, embora sejam inúmeras as versões e reinterpretações desse episódio memorável, a falta de fontes primárias para um estudo aprofundado do caso é quase absoluta. Na verdade, Davis não teve acesso aos autos do processo por impostura que resultou na condenação à forca de Arnaud du Tilh – de resto, ao que tudo indica, perdidos para o historiador de hoje –, e todas as informações com as quais trabalha relacionadas à ação do Tribunal de Toulouse, onde o processo foi concluído, provêm de dois relatos, produzidas pelo juiz do caso, Jean de Coras, e por um provável observador do processo, Guillaume Le Seuer7, ambas com primeira edição de 5
Além da grande quantidade de textos sobre a incrível história de Arnaud du Tilh/Martin Guerre ou que a mencionam em algum trecho importante e, obviamente, do filme a que nos referimos neste ensaio e do livro de Davis, não podem ficar de fora, para uma visão mais ampla do constante retorno de Martin Guerre, as seguintes obras: a) romances: FOURNIER, N. Martin Guerre. In: DUMAS, Alexandre (père). Crimes célèbres. Paris: Rue Louis le Grand - Joseph Marie Quérard, 1839-41, v. 7. Este texto costuma ser atribuído a Dumas, que, na verdade, nos vols. 7 e 8 dessa coleção de crimes célebres, contou com a ajuda de colaboradores (fonte: Le site Web Alexandre Dumas père. Disponível em: http://www.cadytech.com/dumas/work.php?key=737. Acesso: 06/03/2006); BLADÉ, Jean-François. Le faux Martin Guerre. Revue d'Aquitaine: Journal Historique de Guienne, Gascogne, Béarn, Navarre, Etc., t. 1, 1856 (fontes: PERTUZÉ, Martin Guerre n'en finit pas de revenir, cit.; Gallica: la bibliothèque numérique [Bibliothèque Nationale de France]. Disponível em: http://gallica.bnf.ir/Catalogue/noticesInd/FRBNF32856774.htm. Acesso: 06/03/2006); LEWIS, Janet. The wife of Martin Guerre. San Francisco: Colt Press, 1941 (fonte: Dana Gioia Online: Disponível em: http://www.danagioia.net/ essays/ewestern.htm. Acesso: 05/03/2006); b) filme: Sommersby: o retorno de um estranho, de Jon Amiel (1993), com Richard Gere e Jodie Foster no papel principal. Trata-se, na verdade, de uma reprise do tema, desta vez, porém, situado nos EUA na época da guerra da Secessão. Nos créditos aparecem, ao lado de Nicholas Meyer e Anthony Shaffer (roteiro), os nomes de Daniel Vigne e Jean-Claude Carrière, respectivamente, diretor e roteirista de Le retour de Martin Guerre (fonte: Internet Movie Database. Disponível em: http://www.imdb.com/ title/tt0108185/. Acesso: 05/03/2006); c) musicais: The wife: an opera libretto in three acts, de 1961, com libreto de Janet Lewis e música de William Bergsma (fonte: PERTUZÉ, Martin Guerre n'en Finit pas de revenir, cit.); The House of Martin Guerre, comédia musical (Toronto, 1993), libreto de Leslie Arden e Anna Theresa Caseio, música de Leslie Arden (fonte: Northern River Arts & Ent. Disponível em: http://northernriver.com/houseofmartinguerre.html. Acesso em: 05/03/2006); Martin Guerre, comédia musical (1996), libreto de Alain Boublil e música de Claude-Michel Schonberg; d) teatro: The Trials of Martin Guerre: imposter as hero, de Frank Cossa (2000) (fonte: Eldridge Plays and Musicais. Disponível em: http://95churchcom.web128.discountasp.net/histage/pdf/8214f.pdf. Acesso: 05/03/2006). 6 7
Nos créditos, Davis aparece como “conseilleur historique”.
CORAS, Jean de. Arrest Memorable, du Parlement de Tolose, Contenant uma histoire prodigieuse, de nostre temps, avec cent belles, & doctes Annotations, de monsieu maistre Jean de Coras, Conseiller em
1561, ano seguinte à execução do impostor. Seu trabalho é uma precisa reconstrução do ambiente, do cotidiano e das motivações da vida rural no Languedoc do século XVI a partir de sinais: “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, índices - que permitem decifrá-la”8. É a própria autora quem nos apresenta, em linhas gerais, seu método de trabalho: Na ausência dos interrogatórios do processo (no Tribunal de Toulouse, faltam todos os registros dos processos criminais anteriores a 1600), investiguei os registros das sentenças do Supremo Tribunal para encontrar informações suplementares sobre o caso, a prática e atitudes dos juízes. No rastro dos meus atores rurais, consultei contratos notariais em muitas aldeias das dioceses de Rieux e Lombez. Quando não consegui encontrar meu homem (ou minha mulher) em Hendaye, Sajas, Artigat ou Burgos, fiz o máximo para descobrir, através de outras fontes da época e do local, o mundo que devem ter visto, as reações que podem ter tido. O que aqui ofereço ao leitor é, em parte, uma invenção minha, mas uma invenção construída pela atenta escuta das vozes do passado.9
2. O embusteiro sedutor Para uma melhor compreensão do que está sendo tratado aqui, proponho um breve resumo deste que foi chamado pelo juiz Jean de Coras, responsável pela sentença que condenou Arnaud du Tilh à forca, como arrest mémorable. Corre o ano de 1527 quando Sanxi Daguerre deixa o país basco. Chega a Artigat, no condado de Foix, com sua mulher, seu irmão, Pierre, e seu filho, Martin, que não devia estar muito contente com a mudança, principalmente quanto aos hábitos cotidianos: os bascos eram um povo voltado basicamente para as atividades ligadas ao mar. Além disso, o nome Martin era raro em homens no Languedoc àquela época, sendo mais usado para animais como o asno. Em 1538, com idade em torno dos 14 anos, Martin Guerre se casa com Bertrande de Rols, com cerca de 12 anos, num casamento arranjado que parecia trazer muitas vantagens para os Guerre. No entanto, durante quase oito anos o casamento não se consuma. Bertrande, embora tivesse o direito de anulá-lo depois de três anos, se recusa a fazê-lo, provavelmente, segundo Davis 10 , porque isso lhe daria tempo para viver plenamente a adolescência, ao mesmo tempo em que llhe permitia subtrair-se a certos deveres conjugais. Em 1546, no entanto, Martin “é curado” da “impotência”, que até então impedira a consumação do casamento, por uma feiticeira. O casamento se consuma e nasce Sanxi. Em 1548 Martin desaparece das terras do pai e vai para a Espanha. Ele aprende espanhol e trabalha para o Cardeal Francisco de Mendoza em Burgos e em seguida para seu irmão Pedro. Entra para o exército de Filipe II da Espanha e luta contra a França.
ladite Cour, & rapporteur du process. Prononcé et Arrestz Generaulx le xii Septembre MDLX. Lyon: Antoine Vincent, 1561; LE SUEUR, Guillaume. Admiranda historia de Pseudo Martino Tholosae Damnato Idib. Septemb. Anno Domini MDLX Ad Michaelum Fabrum ampliss. In supremo Tholosae Senatu Praesidem. Lyon: Jean de Tournes, 1561. Sobre as várias versões e reedições dessas duas obras, bem como vários outros textos nem tão importantes, mas nem por isso desprezáveis sobre esse “julgamento memorável”, ver a “Bibliografia selecionada de textos sobre Martin Guerre” (DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre, p. 153-158). 8
GINZBURG. Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário, p. 177.
9
DAVIS, O retorno de Martin Guerre. cit., p. 21.
10
Idem, p. 46.
Em 1553 pela primeira vez as vidas de Martin Guerre e Arnaud du Tilh se cruzam: dois homens de Artigat tomam Arnaud du Tilh por Martin Guerre, o que lhe dá a ideia de se passar por esse homem. Arnaud aprende suas “lições” e algumas palavras em basco. Bastante direto, eloquente e possuidor de uma memória extraordinária, Arnaud (conhecido como Pansette – “Pança” devido ao seu grande apetite) na juventude era esperto e despachado e provavelmente por isso tenha sentido que sua aldeia fosse pequena demais para ele. Não está claro se ele e Martin chegaram a se conhecer. Em seu depoimento, Betrande de Rols disse que os dois poderiam ter sido colegas de regimento11, mas Arnaud confessou jamais ter conhecido o verdadeiro Martin antes de ter ido a Artigat. Em 1556 Arnaud du Tilh chega à aldeia de Pailhès, vizinha a Artigat. Passa-se por Martin e é “reconhecido” por várias pessoas, que vão levar a notícia à família Guerre. As quatro irmãs de Martin vêm ao seu encontro, seguidas de Bertrande, que primeiro recua, mas depois se convence. Bertrande o acompanha a Artigat, onde todo mundo o saúda pelo nome de Martin. Entre 1558 e 1559 Bertrande e o falso Martin vivem uma vida conjugal de sonhos, têm duas filhas, a primeira morre, a segunda é chamada de Bernarde. Segundo Davis 12, é possível que o casal seja protestante: a família Rols se converteu ao protestantismo e a confissão de Arnaud parece não ter seguido as fórmulas católicas. Esse é um argumento importante para Davis pois explicaria a simpatia aberta que Jean de Coras dedica a Arnaud du Tilh em seu relato, mesmo tendo sido obrigado a condená-lo à forca. Nessa época Arnaud começa a vender parte das terras da família Guerre, uma atividade corrente à época, mas contrária à tradição basca. Pierre Guerre, seu tio, se envergonha. Arnaud cobra do “tio” que lhe preste contas quanto aos lucros que obteve com as terras durante os mais de oito anos de ausência de Martin. Como não há acordo, o falso Martin dá queixa contra Pierre, que começa a duvidar de sua identidade, desconfiando das atitudes estranhas de Arnaud - principalmente quanto aos costumes e tradições bascos. Pierre consegue convencer os genros e a mulher - aliás, sogra de Martin, que, após a morte do primeiro marido, o pai de Bertrande, se casa em segundas núpcias com Pierre Guerre, também viúvo. Todas as suas dúvidas tinham fundamento: por que “Martin” não se interessava mais pela esgrima e pela acrobacia, atividades de lazer típicas dos bascos? Por que ele andava tão esquecido das expressões bascas? Por que a insistência em extrair uma prestação de contas do próprio tio? No verão de 1559 a vila de Artigat está dividida. No outono, um soldado de passagem pela vila conta que Martin Guerre, na verdade, está em Flandres e que perdeu uma perna em Saint- Quentin. Na mesma época um incêndio, ao que tudo indica, criminoso, atinge a fazenda de Jean d’Escorneboeuf. Trata-se de uma propriedade arrendada por alguém da pequena nobreza em terras nas quais a maioria dos camponeses se orgulhava de não ter senhores. É provável que alguns desses camponeses, descontentes 11
A questão é bastante polêmica. Embora haja pelo menos um ponto no depoimento de Arnaud que faz pensar na possibilidade de os dois terem se encontrado antes (cf. DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit., p. 56), é muito pouco provável que tenham sido amigos, ou mesmo que tenham convivido por algum tempo. França e Espanha estavam em guerra e enquanto Martin, que fora viver na Espanha, servia ao rei espanhol Arnaud lutava pela França. Além disso, segundo as evidências, Arnaud deve ter voltado dos campos de batalha da Picardia, onde fora combater, antes que Arnaud tivesse deixado Burgos, na Espanha, onde era lacaio da casa do cardeal Francisco de Mendoza, para lutar em Saint-Quentin, onde perdeu uma perna em consequência de um tiro de arcabuz. 12
Cf. DAVIS. O retorno de Martin Guerre, cit., p. 66 passim.
com a intromissão de d’Escorneboeuf nas terras de Artigat, tivessem posto fogo na fazenda. No entanto, é contra “Martin Guerre” que d’Escornebeuf registra uma queixa, muito provavelmente instigado por Pierre Guerre. Arnaud é preso em Toulouse. Em janeiro de 1560 Arnaud é considerado inocente e volta para Artigat. No dia seguinte Pierre (em nome de Bertrande) faz abrir um inquérito sobre "Martin Guerre". Arnaud é preso novamente, em Rieux, acusado de impostor. Não é muito claro o verdadeiro papel de Bertrande nessa nova denúncia, mas Davis admite que Bertrande possa ter consentido em dar queixa contra Arnaud na esperança de perder o processo. Mais de 150 testemunhas depõem: 45 creem que ele é Arnaud; 30-40 acreditam que ele é Martin; 60 se negam a identificá-lo. Arnaud é condenado a pagar 2.000 libras e a ser decapitado (uma “honra” reservada aos nobres). Em abril desse mesmo ano Arnaud apela ao Parlamento de Toulouse. Em maio são ouvidos novos depoimentos de Pierre e de Bertrande. Em julho, depois de ouvir todas as testemunhas, Jean de Coras está prestes a declarar Arnaud inocente quando um homem com uma perna de pau irrompe a corte alegando ser Martin Guerre e clamando pelo restabelecimento de sua identidade, suas propriedades e sua esposa, a quem o sedutor embusteiro havia também enganado. O inventivo camponês havia quase persuadido os cultos juízes do Tribunal de Toulouse. No dia 12 de setembro Arnaud é declarado culpado de impostura. Ele deve fazer uma confissão de culpa e é condenado à forca (como um camponês). Bernarde é declarada como sua filha legítima; seus bens são entregues a Bertrande. No dia 16 Arnaud é enforcado sem ser torturado. O espantoso caso tomou conta da imaginação de toda a Europa. Contada e recontada através dos séculos, a história de Martin Guerre se transformou numa lenda, ainda lembrada na pequena aldeia dos Pirineus onde o impostor foi executado há mais de 400 anos. 3. Um episódio sedutor Retomemos a discussão central deste trabalho com uma afirmativa relativamente óbvia, com o aval de quem ocupa um lugar privilegiado no debate: “filmes históricos têm dado ou podem nos dar indicações mais complexas e dramáticas de seu status de verdade do que os polos ‘qualquer semelhança é mera coincidência’ e ‘a pura verdade’”13. Tão fascinada quanto cada um dos que tomam conhecimento desse processo tão memorável (Jean de Coras) quanto admirável (Guillaume Le Sueur), Natalie Davis diz que logo que leu o relato do juiz Jean de Coras, pensou: “Isso precisa virar um filme”14. Em seu relato pessoal sobre o efeito desse episódio fascinante sobre o seu trabalho de historiadora, Davis conta: Raramente um historiador encontra uma estrutura narrativa tão perfeita ou com um apelo popular tão dramático nos acontecimentos do passado. Por coincidência, fiquei sabendo que o roteirista Jean-Claude Carrière e o diretor Daniel Vigne iniciavam um roteiro sobre o mesmo tema. Consegui contatá-los, e de nosso trabalho conjunto resultou o filme Le Retour de Martin Guerre.15
13
DAVIS, Natalie Zemon. “Any resemblance to persons living or dead”: film and the challenge of authenticity, p. 458. 14
DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit., p. 9.
15
Idem, p. 10.
No entanto, a autora foi apanhada numa teia de sedução e repulsa, fascínio e temor – num certo sentido, de maneira bastante semelhante ao que parece ter descoberto quanto à esposa de Martin Guerre, Bertrande de Rols, em relação ao sedutor Arnaud du Tilh. É ela quem nos diz: “Quanto mais eu saboreava a criação do filme, mais se aguçava meu apetite para ir além. [...] Senti que tinha meu próprio laboratório histórico 16 que gerava, não provas, mas possibilidades históricas"17. Paradoxalmente, no entanto, Davis assinala que o filme se destacava do registro histórico, e isso a incomodava. Assustava-se com o sufocamento do espaço para as dúvidas que cada vez mais os historiadores e historiadoras vêm reconhecendo como legítimas e até mesmo necessárias para o trabalho historiográfico. “Onde estavam o espaço para as incertezas, os ‘talvez’, os ‘poderia ser’ a que o historiador tem de recorrer quando as evidências são inadequadas ou geram perplexidades?”18 Ao mesmo tempo fascinada e atônita, Davis admitia que as várias alterações no roteiro visando a conferir agilidade e ritmo ao filme são imposições necessárias a uma obra cinematográfica que visa a atingir um grande público, dando a ele “a poderosa simplicidade que permitiu que a história de Martin Guerre se convertesse antes de tudo numa lenda” 19 . Mas isso também tornava mais difícil explicar o que realmente acontecera. E ela se pergunta ainda: “Nosso filme era uma emocionante estória de suspense que mantinha o público tão incerto sobre seu final quanto os aldeões e juízes da época. Mas onde ficava o espaço para refletir sobre o significado da identidade no século XVI?”20 Há aí pelo menos duas questões para reflexão. A primeira delas diz respeito às coisas "como realmente aconteceram", à moda de Leopold von Ranke. Ou não? Em outras palavras, o que defendem os historiadores hoje como próprio à história ? Nas últimas décadas, um número significativo de autores aponta o trabalho historiográfico como aparentado com o de outras formas de narrativa, chegando-se até à postura radical de Hayden White, para quem a história é não mais que uma operação de produção de ficção. No entanto, mesmo se considerarmos que o que o historiador escreve está submetido aos mesmos critérios que estruturam outras formas de narrativa, ... não se pode negar em absoluto a dependência do que ele produz em relação aos vestígios, aos traços do passado, em relação aos critérios de cientificidade – historicamente variáveis – e às técnicas próprias do ofício.21
As preocupações de Natalie Davis eram, deste ponto de vista, absolutamente legítimas – embora isso não resolvesse o problema, já que interessava a ela diretamente, tanto quanto ao diretor e ao roteirista do filme, produzir uma nova versão, mais accessível ao público não especialista, da fascinante história de Martin Guerre e seu falso duplo (e a
16
No entanto, é preciso relativizar a expressão. Como lembra Ginzburg (Provas e possibilidades..., cit., p. 180), “a expressão ‘laboratório historiográfico’ é naturalmente metafórica. Se um laboratório é um lugar onde se realizam experiências científicas, o historiador é, por definição, um investigador a quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas.” Assim, lembra Ginzburg, em outro trabalho, quando as causas não são reproduzíveis – como é o caso do trabalho do historiador –, só resta inferi-las a partir dos efeitos (GINZBURG, Carlo. Sinais..., cit., p. 169) – e nisto consistiria, ao mesmo tempo, glória e a miséria da profissão. 17 18
DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit., p. 10. Ibidem.
19
Ibidem.
20
Ibidem.
21
DAHER, Andréa. Da tabulação controlada.
que historiador não interessaria?), mesmo que isso significasse, em alguns momentos, sacrificar a verdade histórica. No entanto,' ... são justamente as condições de produção do discurso histórico que exigem que consideremos que, mesmo sendo uma narrativa, a história perderia a sua especialidade se abandonasse a pretensão de dizer o passado que efetivamente aconteceu Essa relação específica que mantém com a verdade, problematizada, sobretudo, a partir da temível possibilidade de produção de discursos falsos, é portanto a sua marca diferencial.22
Carlo Ginzburg chama a atenção para o fato de que o ambiente intelectual dos últimos vinte anos propiciou aos historiadores reflexões interessantes sobre a oposição entre prova e retórica. Enquanto a primeira foi constantemente identificada à historiografia positivista, a segunda era reificada pela chamada linguistic turn, que, segundo ele, seria, mais propriamente, uma rhetoric turn. Só que, segundo ele, para se opor à noção de prova, a retórica (aristotélica) foi travestida, desde o final dos anos 70, de roupagens nietzscheanas, atuando como ‘máquina de guerra cética’, no dizer do historiador italiano. Trata-se, portanto, de uma retórica auto-referencial, sem provas, ou melhor, retrataria às provas, contrariamente à retórica aristotélica, construída a partir da eloquência judiciária. 23
Dentro desse quadro a única exceção seria, segundo Ginzburg, Chaim Perelman, que propõe pensar a história a partir do estatuto científico da prova, como prática discursiva argumentativa, persuasiva e retórica, restituindo, assim, a dimensão da retórica aristotélica, concebendo a aliança entre prova e técnicas argumentativas. Essa aliança traria a possibilidade, segundo Perelman, de dizer a realidade passada e de separar o verdadeiro do falso24. Ao mesmo tempo, enquanto prática humana, a historiografia é dependente das coerções do lugar social (econômico, político, cultural, institucional) em que se articula a pesquisa, dos procedimentos técnico-científicos e das regras que governam a sua escrita. Prática científica, em particular, a história é uma forma de conhecimento que pressupõe distinções entre ficção e ciência ou fantasia e verdade. No “horizonte da historiografia”, José Américo Pessanha25 contempla tensões como essas, sempre presentes, expressas em outras variantes do mesmo binômio radical sono x vigília: mito x ciência; ser x não-ser ou mesmo x outro ou real x simulacro; verdadeiro x falso ou razão pura x razão prática; razão absoluta x linguagem; descontinuidade x duração, etc. Sem que a história perca de vista seu estatuto de cientificidade e o seu valor científico, essas tensões podem, em diferentes momentos, se radicalizar, aumentando ou diminuindo a distância que separa a prática historiográfica de um ou de outro polo do binômio.26
Aliás, a este respeito vale a pena relatar aqui, ainda que brevemente, a polêmica entre a própria Natalie Davis e Robert Finlay nas páginas da American Historical Review de junho de 198827. Segundo Robert Finlay, em resumo, Natalie Davis teria exagerado em seu livro a importância do papel de Betrande de Rols – que, segundo esse autor, seria a maior vítima da impostura de Arnaud du Tilh atribuindo a ela um papel de cúmplice de quem ela saberia ser, desde o primeiro momento, um impostor. Segundo Finlay, isso
22
Ibidem.
23
Ibidem.
24
Ibidem.
25
PESSANHA, J. A. O sono e a vigília. In: NOVAES, A. Tempo e história. São Paulo: Cia. das Letras/SMC, 1992, p. 9-18. (AM: Nota relativa ao texto da autora citada.) 26 27
DAHER, Da fabulação controlada, cit.
FINLAY, Robert. The refashioning of Martin Guerre, p. 553-571; DAVIS, Natalie Zemon. “On the lame”, p. 572-603.
explicaria a preocupação de Davis com o fato de que na montagem do filme “o duplo jogo da mulher [Bertrande] e as contradições internas do juiz [Coras] eram amenizadas”28. Em tom inquisidor, Finlay pergunta: "Na ficção histórica, onde termina a reconstrução e onde começa a invenção?", para concluir em seguida que Infelizmente, nenhum dos pontos centrais do livro [...] depende das fontes documentais. Como resultado, é dada uma reinterpretação para uma narrativa famosa que ao final assemelha-se muito mais a um romance histórico do que a um relato “fortemente ancorado nas vozes do passado”29.
E sentencia: Essa Betrande de Rols parece muito mais um produto da invenção do que uma reconstrução histórica. O mesmo pode ser dito também de Arnaud du Tilh, o falsário, e de Jean de Coras, o ambivalente inquisidor. Tão interessantes, engenhosos e complexos são esses personagens que é duvidoso que eles tenham algo a ver com a real história de Martin Guerre.30
Em sua réplica Davis, bem mais elegante, argumenta que pretendia fazer seu livro atingir também a um público não especializado e que por esta razão havia propositalmente optado por uma narrativa que permitisse a leitura do livro, caso se desejasse, como uma estória de detetive ou, como o livro de Jean Coras, de uma só tacada31. Além disso, Davis admitia ter buscado a linguagem cinematográfica em seu trabalho: “Eu quis desenvolver um estilo de exposição para a primeira parte do livro que pudesse produzir um efeito equivalente ao movimento em cinema, com mais flash-forwards do que flashbacks”. E assim mais uma vez voltamos a Martin Guerre, o filme, e às inquietações de Natalie Davis na sua dupla – e, ao mesmo tempo, angustiante e fascinante – condição de consultora de uma obra de ficção e de pesquisadora. A segunda questão colocada para reflexão pelas angústias de Davis é a do “espaço para refletir”. Se, como temia a autora, o filme, pela maneira como estava sendo conduzido, ao final iria fatalmente impor certezas ao público, elemento fundamental para prendê-lo à cadeira da sala de exibição até o fim32, não há como negar que, fosse qual fosse a solução escolhida para algumas lacunas da história, ela fatalmente iria provocar no público algum tipo de reflexão. Assim, a cada “invenção” escolhida a partir dessa disputa de encaminhamentos (discursos, em última instância) entre profissionais do cinema e uma profissional da história, corresponderia um leque de possibilidades quanto às reflexões que provocaria no público. Não necessariamente, talvez, sobre “o significado da identidade no século XVI”, mas esse foi o risco que a própria autora certamente deve ter calculado ao tomar a iniciativa de procurar o roteirista Jean-Claude Carrière e o diretor Daniel Vigne. Aliás, isso nos coloca a questão da invenção, que Carlo Ginzburg analisa em seu ensaio sobre o trabalho de Davis. Vejamos o que diz sobre a palavra “invenção” utilizada por Davis no prefácio de seu livro: O termo “invenção” (invention) é deliberadamente provocatório – mas, vendo bem, desorienta. A investigação (e a narração) de N. Davis não se baseia na contraposição entre “verdadeiro” e “inventado”, mas na integração, sempre assinalada pontualmente, de
28
DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit., p. 10.
29
FINLAY, The refashioning of Martin Guerre, cit., p. 570.
30
Idem. p. 570-571.
31
Cf. DAVIS, “On the lame”, cit, p. 575.
32
Ibidem. Aliás, a propaganda do filme refere-se a ele como “uma verdadeira história de suspense de um camponês do século XVI...”
“realidades” e “possibilidades”. Daí vem, no seu livro, a proliferação de expressões como “talvez”, “tiveram de”, “pode-se presumir”, “certamente” (que em linguagem historiográfica costumam significar “muito provavelmente”) e assim por diante. Neste ponto a divergência entre a óptica do juiz e a do historiador torna-se clara. Para o primeiro, a margem de incerteza tem um significado puramente negativo, e pode conduzir a um non liquet – em termos modernos, a uma absolvição por falta de provas. Para o segundo, isso obriga a um aprofundamento da investigação, ligando o caso específico ao contexto, entendido aqui como campo de possibilidades historicamente determinadas. A biografia das personagens de N. Davis torna-se de vez em quando a biografia de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar”, reconstituída com sagacidade e paciência, recorrendo a fontes notariais, judiciárias, literárias. “Verdadeiro” e “verossímil”, “provas” e “possibilidades” entrelaçam-se, continuando embora rigorosamente distintas. 33
Fica evidente no trecho acima a convergência entre as propostas metodológicas de Carlo Ginzburg sobre o trabalho do historiador-que ele denomina de “paradigma indiciário”34 – e o que foi realizado por Natalie Davis em seu livro. Para ele, “como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural” 35 , exigindo do historiador o que denomina de “rigor flexível” 36 . Por isso, a nosso ver, há uma preocupação tão grande desse autor em ressalvar o caráter “provocatório” ou metafórico da palavra “invenção” no texto de Davis. Ele entende que, do ponto de vista do rigor científico, “a tentativa de Natalie Davis de contornar as lacunas com uma documentação de arquivo contígua no espaço e no tempo àquela que se tinha perdido nunca se materializou”37, resultando apenas em uma das soluções possíveis. E em seguida condena com veemência o recurso à invenção no seu sentido mais estrito como uma das soluções a excluir terminantemente.
4. "Invenção" x invenção: cinema e história Ao que tudo indica, um dos principais temas de investigação de Natalie Zemon Davis após o trabalho em Le retour de Martin Guerre tem sido a relação entre cinema e história. E parece que não poderia ter sido diferente, dado o relativo sucesso do filme e o consequente prestígio que sua participação nessa obra conferiu a ela e que acompanhou o livro dele decorrente. Por outro lado, a confiarmos nas angústias que admite ter vivido durante seu trabalho de consultoria, registradas não apenas nas páginas de seu livro, mas em alguns outros textos seus, temos na participação de Natalie Davis na construção do filme um rico mote para a discussão sobre a questão da relação entre a história e o que se costuma chamar de "filme histórico" ou "filme de época". Vimos tentando acompanhar os passos de Davis desde a sua leitura – aparentemente casual – do Arrest mémorable de Jean de Coras, passando por sua experiência como consultora do filme e pela publicação do livro com o objetivo de nos aproximarmos das dúvidas, angústias e prazeres vividos por ela. Acreditamos que através dessa experiência relativamente singular, relacionada a uma história não menos singular,
33
GINZBURG, Provas e possibilidades..., cit.. p. 183.
34
GINZBURG, Carlo. Sinais..., cit., p. 171.
35
Idem, p. 157.
36
Idem, p. 179.
37
GINZBURG, Provas e possibilidades..., cit., p. 201.
teremos alguns elementos interessantes para pensar essa relação tão rica e cheia de contradições. No já longínquo ano de 1971 Mare Ferro, uma espécie de “pai” da preocupação com a relação entre cinema e história, dizia em um artigo: Sem pai nem mãe, órfã, prostituindo-se em meio ao povo, a imagem não poderia ser uma companheira dessas grandes personagens que constituem a sociedade do historiador: artigos de leis, tratados de comércio, declarações ministeriais, ordens operacionais, discursos. Além do mais, como confiar nos jornais cinematográficos, quando todo mundo sabe que essas imagens, essa pseudo-representação da realidade, são escolhidas, transformáveis, já que são reunidas por uma montagem não controlável, por um truque, uma trucagem. O historiador não poderia se apoiar em documentos dessa natureza. Todos sabem que ele trabalha numa redoma de vidro: "Aqui estão minhas referências, aqui estão minhas provas". Mas ninguém diria que a escolha desses documentos, a forma de reuni-los e o enfoque de seus argumentos são também uma montagem, um truque, uma trucagem. Basta se perguntar: com a possibilidade de consultar as mesmas fontes, será que os historiadores escreveram, todos eles, a mesma história da Revolução?38
Evidentemente, precisamos descontar os mais de trinta anos que nos separam dessa declaração e, portanto, uma certa concepção de história e de cinema nela embutida. Obviamente, dificilmente um historiador de hoje descreveria a “sociedade do historiador” com tais características. Tampouco iremos aqui discutir a questão da “prova”, já apontada no item anterior. No entanto, uma questão permanece atual tanto para o senso comum quanto para o universo especializado dos historiadores: a impressão, mais ou menos clara, de que os nossos “cortes”, “montagens” e “trucagens” têm um caráter radicalmente distinto dos que são realizados pelos cineastas. Mas serão mesmo apenas impressões? Parece tratar-se muito mais de uma questão de natureza dos instrumentos do que de método de trabalho. Aliás, é sobre esta questão que reflete Natalie Davis n u m texto de 1987 intitulado “Any resemblance to persons living or dead”: film and the challenge of authenticity. Na verdade, o artigo tem como objetivo explorar os elementos relativos à autenticidade histórica- segundo ela, “o que faz um relato cinematográfico parecer real e digno de crédito”39 – e argumentar que, quando corretamente entendidos, esses elementos podem se tornar uma forma admirável de se falar do passado sem perder suas características de manifestação criadora que combina som, imagem e enredo. Em seguida, Davis prepara o leitor para uma discussão mais ampla sobre a relação entre cinema e história discutindo o que, do seu ponto de vista, vêm a ser os objetivos do historiador. Vale a pena reproduzir seus argumentos: De fato, os historiadores almejam fazer a crônica do que aconteceu, mas também pretendem explicar como as coisas aconteceram e que diferença fizeram; descrever os valores centrais de um determinado período e como eles se articularam ou entraram em conflito, com o objetivo de destacar as diferentes fornias pelas quais esses mesmos eventos foram compreendidos e relatados por seus contemporâneos; mostrar a inter-relação entre as vidas individuais e os movimentos sociais mais amplos. Embora haja um diálogo inevitável entre o passado e o presente, o historiador pretende antes de mais nada deixar o passado ser antes estranho que familiar e antes particular que universal.
Usei anteriormente a expressão verbal contar sobre o passado ao invés de mostrá-lo, recriá-lo ou mesmo representá-lo. Os historiadores são sensíveis a qualquer 38
FERRO, Mare. Cinema e história, p. 83-84.
39
DAVIS, “Any resemblance to persons living or dead”, cit., p. 458.
coisa que sugira que imagens e acontecimentos estão firmemente documentados, quando de fato eles são apenas especulações ou imaginados; em seus escritos acadêmicos eles costumam usar talvez, pode ter sido e notas de pé de página para expressarem suas dúvidas e argumentos. Quanto ao filme, frequentemente se argumenta que tais qualificações são difíceis de manter, tão poderosa é sua evocação direta da “realidade”. Mas será isso inevitável? 40 No entanto, não podemos nos esquecer de que Davis não apenas participou do filme sobre o caso Martin Guerre como, tendo procurado Daniel Vigne e Jean-Claude Carrière, insistiu nessa participação. No entanto, embora tenha tido divergências quanto ao afastamento do filme do registro histórico 41 , quando poderia ter abandonado tis filmagens não o fez, entendendo que o que se ganhava com a realização do Retour de Martin Guerre era mais do que o que se perdia. Antes de continuarmos acompanhando a trajetória de Davis, porém, vejamos como o New York Times saudou a chegada de Le Retour de Martin Guerre aos EUA: “Na escola você aprende coisas fúteis tais como ‘Idade Média significa barbárie’. No meu filme, eu conto uma estória bem moderna que por acaso aconteceu no século XVI”, afirmou Daniel Vigne, diretor de “O Retorno de Martin Guerre ». Baseado numa famosa história de amor e de tribunais que já inspirou uma peça, dois romances, uma opereta, e uma obra de pesquisa histórica, esse vitorioso filme francês estreia na próxima sexta-feira na Playhouse, na Rua 68. “O Retorno de Martin Guerre » dá uma nova vida à lendária narrativa popular insistindo na sua “atemporalidade” – do cenário, imagens, música e enredo. O filme foi rodado em uma vila camponesa da França que permanece virtualmente intacta desde a década de 1550, a 40 km de distância do real povoado onde um jovem chamado Martin Guerre, depois de ter se casado com Bertrande de Rols, desaparece da aldeia por nove anos, depois dos quais reaparece para reclamar de volta sua esposa e sua terra. Com composições visuais que lembram a pintura flamenga e uma trilha musical que mistura sons medievais com instrumentação eletrônica, o filme transmite tanto o sabor da Idade Média quanto a modernidade das questões discutidas pela história- sobre justiça, vingança e principalmente amor.42
O texto jornalístico aponta algumas questões dessa complexa relação entre cinema e história que merecem ser discutidas. Em primeiro lugar, é interessante a afirmação de Daniel Vigne de que Le Retour de Martin Guerre é “uma estória bem moderna que por acaso aconteceu no século XVI”. Segundo uma definição já clássica de Pierre Sorlin43, essa visão do diretor sobre qual a relação entre a história e seu filme poderia ser classificada como “filme de coloração histórica”: o passado é um quadro onde se exprimem valores e uma
mensagem de vocação intemporal. E o caso dos westerns: neles podemos encontrar elementos históricos (índios, estradas de ferro...), mas o que conta são os valores atemporais defendidos pelos heróis.
40
Idem, p. 455.
41
Ela afirmaria, textualmente, em seu livro: “[...] o filme se destacava do registro histórico, e isso me inquietava.” (DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit, p. 10.) 42
INSDORF, Annette. A medieval tale is relived on film. New York Times, 05/06/1983, p. Hl. Vigne afirma na mesma entrevista que essa “atemporalidade” foi também a razão da escolha de Gérard Depardieu para o papel principal: “Eu o escolhi assim que ouvi a história de Martin Guerre [...] porque há algo nele de atemporal - um certo poder no seu físico, certa maneira de se expor ao perigo. Ele transcende as épocas através do seu talento - e de uma qualidade monstruosa.” 43
Cf. MULLER, Raphaël & WIEDER, Thomas. L'histoire par le cinéma: première séance - 5 novembre 2003 - questions, problèmes, enjeux. Pierre Sorlin é professor emérito da Université Paris III, autor de vários livros sobre as relações entre história et 1 cinema, entre eles Sociologie du cinéma (Paris: Aubier. 1977).
Essa definição é reforçada pela identificação, por parte da jornalista, de que o filme reconta uma “lendária narrativa popular (folk tale) insistindo na sua ‘atemporalidade’”. Ainda segundo a matéria do New York Times, o sucesso do filme – medido pelos prêmios conquistados na França e nos EUA, além de várias indicações a outras premiações – estaria em transmitir “tanto o sabor da Idade Média quanto a modernidade das questões discutidas pela história”, induzindo o leitor a concluir pela existência no filme de uma mescla de elementos estéticos, narrativos e conceituais que agradaria tanto o espectador comum quando as pessoas com algum envolvimento, inclusive profissional, com a história. Tudo isso torna até desnecessário levar em conta o argumento do poderoso diário nova-iorquino de que o filme seria, na verdade, “baseado numa famosa história de amore de tribunais”, bem ao gosto popular médio norte-americano. O interessante é que Natalie Davis em seu ensaio sobre o desafio da autenticidade histórica no cinema, após fazer uma crítica velada à lógica da indústria cinematográfica, parte para a análise do que é comumente considerado indispensável para que um filme seja considerado histórico que se adequaria sem muitos problemas ao Retourde Martin Guerre. Para ela, filmes históricos são aqueles que têm como plano central eventos documentáveis, tais como a vida de alguém, uma guerra ou uma revolução, mas também os filmes de ficção que tenham um cenário histórico como intrínseco à ação44. Não é esta, no entanto, a definição mais aceita – pelo menos não com este nível de simplicidade. Sorlin, por exemplo, sugere outras duas categorias de filmes relacionados à história. À pergunta sobre se podemos admitir como histórico um filme de ficção cuja ação se situa no passado, ele acrescenta outras condições que levam a distinguir, além do “filme de coloração histórica”, já mencionado, na qual, a nosso ver, estaria inserido Le Retourde Martin Guerre, o “filme com pretexto histórico” e o “filme histórico” propriamente dito. O “filme com pretexto histórico” seria aquele em que o passado serve de pretexto para evocar um mundo diferente, com o objetivo de desorientar o expectador. Paradoxalmente, essa desorientação (dépaysement) é extremamente codificada, conferindo, de fato, ao filme a função de responder às expectativas do espectador: cenários colossais para a Antiguidade, planos fantásticos para a Idade Média etc. Segundo essa definição, o "filme com pretexto histórico" de fato devolve ao espectador a imagem que ele faz do passado. Quanto à categoria de "filme histórico" propriamente dito, segundo Sorlin, trata-se dos filmes nos quais a história é o sujeito central, isto é, filmes "que, partindo de uma aquisição cultural, a desenvolve, a prolonga, a completa, apresentando-a eventualmente sob uma nova luz"45. Como temos visto neste ensaio, parece ser esta, de fato, a categoria na qual Natalie Davis gostaria de enquadrar o resultado de seu trabalho com Daniel Vigne e Jean-Claude Carrière. No entanto, a questão que se coloca é como passar da experiência histórica à tela de cinema, da narrativa escrita ao filme histórico? Existe uma grande diferença entre o texto e o filme. O historiador tem como tarefa permanecer nos limites do cognoscível, permanecer dentro dos limites do verídico e, para fazê-lo, lhe é permitido contornar as lacunas, admitir a indecisão. Inversamente, consideraríamos mal feito um file histórico em que os atores não usassem roupas de época sob o pretexto de que os historiadores não puderam determinar o tipo de vestimenta usada na época da ação: seja qual for sua prudência, seu cuidado com a autenticidade, a verdade, o
44
Cf. DAVIS, “Any resemblance to persons living or dead...”, cit., p. 458.
45
MULLER & WIEDER, L'histoire par le cinéma, cit. [p. 12]
cineasta é conduzido a reconstruir – ao menos parcialmente – a imaginar os lugares, os costumes, os discursos e os fatos.46
Trata-se, portanto, de um impasse, cujo resultado será sempre uma solução negociada entre a visão do cineasta e do historiador, sempre tensa, mas quase sempre rica. Seguindo os passos de Robert Rosenstone, para destacar a diferença irredutível entre narrativa histórica e filme histórico, pode ser interessante nos interrogarmos sobre os procedimentos que permitem passar da primeira à segunda. Esse autor destaca quatro procedimentos, dentre os quais -
a invenção e a modificação: trata-se de uma invenção deliberada ou de um rearranjo de fatos confirmados pelas exigências da história, mas sem entrar em contradição com a “verdade histórica”.
-
a condensação: um personagem factível encarna uma comunidade inteira (em JFK, de Oliver Stone, uma mulher negra afirma que Kennedy fez muito pelos negros: essa mulher é a porta-voz imaginária da comunidade negra).47
Seguindo-se os passos de Rosenstone conclui-se que o filme histórico, na verdade, procede por simplificação e criação de estereótipos. E não há, em princípio, nada de mal nisso, desde que para tanto ele não diga nada de fundamentalmente falso, apenas narrando os fatos de outra forma, pelos processos próprios à sua natureza. A trama narrativa do filme é de fato uma representação dos fatos, tanto quanto o é uma narrativa produzida pelo historiador48. Há ainda uma questão que deve ser colocada ao filme histórico: ele deve ter uma mensagem particular a transmitir ou trata-se de um filme como outro qualquer? Seguiremos aqui as indicações de Raphaël Muller e Thomas Wieder49, que propõem três tipos de função que os filmes históricos podem cumprir. A primeira delas é a de divertimento. Nesta categoria estariam inseridos os filmes que Sorlin classificou como filmes “com pretexto histórico” e os “de coloração histórica”. Muller e Wieder lembram, como exemplo, Titanic e seu estrondoso sucesso. Uma segunda função seria a de ser uma parábola, tarefa, aliás, da quase totalidade da produção cinematográfica e que Sorlin vê como própria a certos filmes históricos: O filme histórico é, mais que muitos outros, um filme dependente de um contexto fora do qual ele não fará nenhum sentido. Por outro lado, ele existe sob uma roupagem de aluguel, consagrado primeiro e antes de tudo às questões contemporâneas; por uma via deturpada, ele aborda os temas da atualidade, tomando posição sobre os conflitos do momento 50.
Os autores lembram o exemplo paradigmático do Danton de Andrej Wajda (1982), no qual é clara a identidade do par Danton/ Robespierre com a dupla Lech Walesa/Wojciech Jaruzelski. Finalmente, outro elemento do filme histórico é que ele toma partido sobre fatos do passado, que Muller e Wieder denominam de "filme histórico com tese". Essa função é facilmente identificada em O Nascimento de Uma Nação, de John Griffith (1915), considerado como o primeiro filme histórico. 46
Ibidem.
47
ROSENSTONE, Robert. “‘Like writing history with lightning’: film historique/verité historique”. Vingtième siècle, n. 46, 1995, p. 164, apud MULLER & WIEDER, L'histoire par le cinéma, cit. [p. 13] 48
MULLER & WIEDER, L’histoire par le cinéma, cit. [p. 13]
49
Idem [p. 14].
50
SORLIN, Pierre. “Clio à l’écran ou l’historien dans le noir”. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, t. 21, avril-juin 1974, apud MULLER & WIEDER, L'histoire par le cinéma, cit. [p. 14]
Evidentemente, todas as tipologias aqui apresentadas e discutidas brevemente são apenas modelos que têm como objetivo auxiliar nossa reflexão sobre algumas questões cada vez mais cruciais para os historiadores em geral e em particular para os professores de história do Ensino Básico, que se veem às voltas com a proliferação assustadora de filmes históricos e a consequente pressão de seus pares e alunos no sentido de produzirem respostas rápidas e ao mesmo tempo consistentes para essa verdadeira avalanche filmográfica. São constantes, por exemplo, as indagações dos alunos sobre o "índice de veracidade" de produções cinematográficas como Tróia, Alexandre, Cruzada, A Queda etc.
5. Que história o filme narra? Propostas as reflexões acima, cabe neste item comentar algumas das soluções encontradas por Daniel Vigne e Jean-Claude Carrière para questões propostas pelo passado que os autores tenham julgado de realização mais dispendiosa, operacionalmente mais complexas ou pouco sedutoras para o espectador. Optei por dois episódios que exercem papel significativo tanto nos relatos da época e no trabalho de Natalie Davis, que os tem como guia, quanto na narrativa cinematográfica de Carrière e Vigne. Trata-se, na verdade, apenas de um pequeno exercício, já que a comparação entre o relato histórico de Jean de Coras e Guillaume Le Seuer mediada pelo trabalho de Natalie Davis e o roteiro do filme, ao qual não tive acesso, resultou impossível. Certamente, após a leitura do livro de Davis, assistir atentamente ao filmei trará à tona outras discrepâncias, que, por sua vez, poderão gerar outras tentativas de interpretação. Uma dessas discrepâncias diz respeito à assinatura de Bertrande de Rols consentindo que, um dia após ter sido libertado da prisão de Toulouse, Arnaud du Tilh voltasse a ser preso como suspeito de impostura através de uma petição em seu nome apresentada por seu tio e padrasto Pierre Guerre. Em seu livro Natalie Davis não dá a entender que Bertrande soubesse ler ou escrever, o que nos deixa em aberto seu real papel no episódio. O filme apresenta uma Bertrande que havia sido alfabetizada por Arnaud, assinando o documento, ainda que forçada. Neste caso, a construção da narrativa induz o espectador a identificar no processo de alfabetização de Bertrande realizado por Arnaud um elemento dramático a mais. Afinal, pressionada pelo tio-padrasto Pierre Guerre, por sua mãe, mais subserviente ao marido do que realmente desconfiada quanto à identidade do genro, Bertrande seria forçada, segundo a versão cinematográfica, a denunciar Arnaud usando, ironicamente, um instrumento do qual o próprio Arnaud a ajudara a se apropriar. A carga dramática contida nessa escolha é indubitável. Mas a diferença entre a narrativa de Natalie Davis e a do filme que mais chama a atenção refere-se ao momento final do julgamento do Arnaud du Tilh em Toulouse. No livro Davis analisa várias situações em que Arnaud du Tilh e Martin Guerre pudessem ter se encontrado, trocado algumas palavras ou até mesmo convivido por algum tempo51. No entanto, depois de analisá-las minuciosamente, Davis lembra que em sua confissão final Arnaud “afirmou jamais ter encontrado Martin Guerre antes de vir a Artigat”52. Davis conclui que, se Arnaud disse a verdade, o fenômeno de sua identificação com Martin Guerre seria ainda mais assombroso, fazendo com que Pansette passe a ser visto não mais 51
DAVIS, O retorno de Martin Guerre, cit., p. 56-57.
52
Idem, p. 57.
como apenas alguém que imita outra pessoa, mas como alguém que assume a vida de outrem. No filme, no entanto, o roteiro indica que os dois se conheceram na prisão, onde Martin conta a Arnaud tudo sobre sua aldeia, seus bens e sua família. Segundo o filme, é o fato de ambos já terem convivido que trai Arnaud. Fazendo a autodefesa, na tentativa de convencer o júri e as testemunhas de que é o autêntico Martin, Arnaud se irrita quando o verdadeiro Martin tem um lapso de memória e acaba cometendo um ato falho, referindo-se a algo que Martin lhe havia contado. Como solução cinematográfica, esse desfecho é, evidentemente, extremamente sedutor. O espectador é levado nutrir por Arnaud du Tilh praticamente a mesma simpatia do juiz Jean de Coras, que em vários momentos de seu relato parece lamentar profundamente ter tido que condená-lo à forca. Essa simpatia se transforma em torcida para que o adorável embusteiro leve até o final sua farsa, que as coisas voltem ao normal em Artigat e que finalmente Arnaud, já oficialmente investido da identidade e autenticidade de Martin Guerre, possa desfrutar da companhia de Bertrande, se beneficiar com os frutos de suas terras, colocando o irascível tio Pierre no desprezível ostracismo em que são colocados os que não têm charme. No entanto, como se trata de uma história contada e recontada, da qual já é conhecido o final, o espectador, preso à teia da narrativa cinematográfica, é obrigado também a acompanhar tenso e atento o lamentável desfecho do caso. Como o ritmo é o do cinema, o monótono desenrolar do processo, mesmo após a chegada do verdadeiro Martin, até que toda a comunidade o reconhecesse e, portanto, negasse a Arnaud du Tilh a identidade usurpada, não seria uma alternativa desejável, mesmo que fosse a mais próxima da verdade ou mesmo a “verdade verdadeira” Teria sido possível o filme sem pequenas alterações como essas? Por outro lado, ao promover essas alterações Vigne e Carrière não estariam manipulando os fatos históricos conscientemente (mas não por falta de prova decorrente de uma fonte extraviada ou inexistente) em nome de uma estética desejável? Ou será que não estamos fazendo as perguntas adequadas? Segundo Lionel Lacour, Um filme sobre o século XVIII não obedece às exigências de um historiador. Ele conta uma história cuja ação se passa no século XVIII. O cineasta ou os roteiristas podem ter um rigor extremo a fim de estarem mais de acordo com a veracidade histórica, mas eles não hesitarão em torcer a História se seus compromissos de produção assim o ordenam! 53
Isso vale, a meu ver, tanto para os filmes de ficção históricos – isto é, aqueles filmes ambientados em algum lugar do passado cujos personagens são de ficção, fruto de criação literária, adaptados da obra de algum escritor ou encomendados e, portanto, que já nascem para serem filmes – quanto para realizações cinematográficas que encenam histórias reais, com personagens que algum dia tiveram existência real. O fato de sua realização ter contado com a consultoria ou qualquer outro tipo de participação mais ou menos ativa de algum historiador ou equipe de historiadores não muda substancialmente o caráter do que afirma Lacour. Neste sentido, o cinema é uma fonte histórica que deve ser manipulada, sim, com um cuidado especial, mas com o mesmo rigor metodológico de uma obra literária ou pictográfica. Os não especialistas irão sempre cobrar do historiador respostas definitivas sobre este ou aquele filme – particularmente agora, que uma profusão enorme de filmes históricos tem frequentemente invadido as salas de cinema às vezes com uma curiosidade ingênua, outras, com a malícia de quem quer tomar de assalto as nossas “certezas”.
53
LACOUR, Lionel. Le cinéma, une source de Thistoire.
Falando sobre a “angústia recorrente” dos estudantes que costuma recepcionar no Instituí Lumière de Lyon sobre a verdade contida nos filmes históricos, Lionel Lacour comenta que, ao chegarem ao instituto, a pergunta é inevitável: “o que eles [os filmes históricos] mostram é verdade?” E responde: E tempo de tranquilizar esses estudantes. Não. Evidentemente, o cinema não diz a verdade. Não mais que Aristófanes, não mais que Zola. Mas se ele não diz a verdade, ele diz uma verdade, uma de seu tempo. A escolha de revelar essa verdade deve ser feita com consciência, com as mesmas precauções metodológicas que se teria com relação a não importa que outra fonte, seja uma obra inteira ou um extrato (como uma obra literária), com o único compromisso de respeitar o sentido da obra (e, portanto, do autor) na escolha do extrato.54
Aliás, Lacour acrescenta a essa consideração uma nota de pé de página em que lembra que, afinal de contas, trata-se, na verdade, de uma questão de honestidade intelectual muito mais do que de método. Com relação a Le Retour de Martin Guerre, o complicador, objeto central deste ensaio, foram a angústia e as hesitações de Natalie Zemon Davis, historiadora que, ao ter se oferecido como consultora de Daniel Vigne e Jean-Claude Carrière para assuntos históricos – este último também historiador de formação –, que tentei transformar em motivador para algumas considerações (nenhuma delas, é verdade, muito conclusivas) sobre as múltiplas, interessantes, conflituosas e ao mesmo tempo ricas relações entre cinema e história. Algumas delas já estão plenamente mapeadas, outras mal começam a ser reveladas; outras, ainda, aguardam trabalhos mais substanciais. Termino este trabalho com uma reflexão de Mare Ferro, defensor incansável do cinema como fonte histórica e um dos pioneiros nos estudos sobre a relação entre cinema e história: Na ficção histórica, o princípio da organização é dramático e estético. A história, neste caso, tanto se apresenta pela beleza dos planos quanto pelas guinadas da narrativa e do suspense. Mas a história tal como ele foi vivida ou tal como ela se finaliza, não obedece a uma regra estética - tampouco às leis do melodrama ou da tragédia. Assim como na informação, imaginar que vemos a História se realizar ao vivo é, em parte, uma ilusão. Decerto, como notou Ignácio Ramonet, a aparição das imagens, como por ocasião de um jogo, é o princípio da ordem – com a ubiquidade – mas um jogo obedece a regras que conhecemos e que dominamos, o que não é o caso de uma guerra ou da história das sociedades.55
Ao se oferecer como consultora de um filme que tinha como objetivo contar, nessa linguagem específica e particular que é o cinema, uma história já tantas vezes recontada, Natalie Zemon Davis assumiu um risco calculado: afinal, estava em jogo seu prestígio acadêmico, mas, principalmente, sua capacidade de, a partir de fontes históricas escassas e fragmentadas, ensaiar mais uma tentativa de narração, compreensão e explicação para um conjunto de acontecimentos que há quase quinhentos anos fascinam milhares de pessoas não só na região do Languedoc. Seu trabalho revelou mais uma vez as semelhanças entre o ofício de historiador e o do detetive, já há muito apontado por R. G. Collingwood56, cujos passos foram seguidos por Carlo Ginzburg57 e Robin Winks58, 54
Idem, destaques meus.
55
FERRO, Mare. O conhecimento histórico, os filmes, as mídias.
56
COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história, particularmente nos seus Epilegómenos (parte V), p. 257-401. 57
GINZBURG, Sinais..., cit. Ver também e GINZBURG, Carlo. Morelli, Freud and Sherlock Holms.... p. 5-36. 58
WINKS, Robin (org.) The historian as detective: essays on evidence.
entre outros. Assim como no trabalho do detetive, também no trabalho historiográfico a especulação é fundamental. Se assim o é para esse conjunto de profissionais que costumam acreditar serem capazes de apresentar uma versão pelo menos bastante verossímil do que pode ter sido a verdade histórica, torna-se problemático cobrar uma cota de verdade – de resto, impossível de se precisar – do realizador cinematográfico. Neste sentido, todo o conjunto de méritos apresentado pelo filme Le Retour de Martin Guerre, reconhecido internacionalmente por realizadores cinematográficos, produtores, críticos e por vários historiadores, me parece suficiente para redimir Natalie Davis de suas angústias. Se isso não fosse o suficiente, poderíamos enquadrar o filme (para usarmos a linguagem cinematográfica) como um importante documento de nossa época, que nos revela não apenas algumas pistas sobre o século XVI e sua vida rural, mas também muito do século XX que se debruçou sobre ela para, com essa desculpa esfarrapada, tentar entender-se a si mesmo um pouco melhor. REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGEL, Henri. O cinema tem alma? Belo Horizonte: Itatiaia, 1963. CARDOSO, Ciro Flamarion & MAUAD, Ana Maria. “História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 401-417. CERTEAU. Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Lisboa: Presença, 1981. DAHER, Andréa. Da fabulação controlada. Rio de Janeiro: UFRJ/ ICHF - HUMANAS CBJ.NET, out. 1998. Disponível em www.ifcs.ufrj.br/~humanas/0034.htm. Acesso em 05;/03/2006. DAVIS, Natalie Zemon. “‘Any resemblance to persons living or dead’: film and the challenge of authenticity”. The Yale Review, n. 86, p. 457- 82, 1986-87. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. DAVIS, Natalie Zemon. “On the lame”. The American Historical Review [Washington: American Historical Association], v. 93, n. 3, p. 572-603, jun. 1988. FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FERRO, Marc. “O conhecimento histórico, os filmes, as mídias”. O Olho da História [Salvador: Oficina Cinema-História - UFBA], ano 10, n. 6 [2004]. Disponível em_www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/ sobremidiasconhecimento.pdf. Acesso em 02/03/2006. FINLAY, Robert. The refashioning of Martin Guerre. The American Historical Review [Washington: American Historical Association], v. 93, n. 3, p. 553-571, jun. 1988. GINZBURG, Carlo. Morelli, Freud and Sherlock Holmes: clues and scientific method. History Workshop, n. 9, 1980, p. 5-36. GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis”. In: GINZBURG, Carlo. A micro-historia e outros ensaios. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 179-202.
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