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Prefácio Los romances façen proceso, Diogo de Burgos

I

Somos mero amador, não cultor ex-professo, na especialidade literária a cujo quadro este livro pertence: e, porque tal é a verdade, a ela nos abrigamos.

Apraz-nos esta penumbra protectora, donde, com certo desafogo, poderemos contemplar os factos que gravitem ao alcance do nosso limitado horizonte, e esperar, respeitoso, o esclarecimento, que talvez não podemos atingir.

Dizemo-lo o, não por carta de seguro para irresponsabilidade, senão a fim de definir a nossa responsabilidade mesma.

II Os exemplares poéticos neste volume coleccionados, todos mais ou menos narrativos, e de assunto e tipo, originariamente, ou por assimilação, medievais, pertencem à classe romance e seus congéneres; foram colhidos na tradição oral dos povos destas ilhas do Porto Santo e Madeira; e da índole do objecto, bem como desta circunstância local, deriva o título do livro: Romanceiro do Arquipélago da Madeira.

Essa colheita foi realizada, parte por terceiras pessoas em obséquio a nós,


parte por nós mesmo. As pessoas que esse obséquio nos fizeram, e a quem muito agradecemos, foram as seguintes, quase todas naturais desta ilha da Madeira, e todas nela residentes, a saber:

As ex.ª sr.ª

D. Adelaide Camacho. D. Amelia de Vasconcellos Lomelino. D. Andreza & Leocadia Pitta, D. Brauliana Torres.

Os ex.mo. sr.s Daniel Simões Soares. Dr. Feliciano de Britto Correia. Feliciano de Britto Correin Junior. Jayme Pimenta. João Augusto de Vasconcellos Lomelino. João Fortunato de Oliveira. João José de Areias. José Bettencourt da camara. José Maria Teixeira de Agrella. Luiz Correia da Silva Acciaioly.


De muitas pessoas do, baixo-povo, quase todas analfabetas, tomamos directamente grande numero de exemplares, tradicionais em diversos lugares destas ilhas. Mas, nem de todas estas pessoas registamos os nomes, porque, de princípio e por tempos, íamos coligindo esses especímenes poéticos por mera curiosidade, sem intuito de os publicar. Aquelas de que tomamos nota são as seguintes:

Adelina de Sousa, da freguesia de Nossa Senhora do Monte, Francisca Jardim, da Calheta. José Maria, o Cego, de Ponta Delgada, Ludovina Augusta de Jesus, de Machico. Manoel Fernandes de Sousa, de Machico. Maria Marques, da freguesia de Santa Luzia. Maria do Passo, da Ponta do sol. Maria Sardinha, do Cabo do Calhau. Ritta Rosa de Jeslls, do Porto da Cruz. Victoria de Jesus, de São Martinho.

No índice, em seguida ao título de cada peça poética, vai apontada, por breve (1), a localidade donde obtida.

Deste modo, damos publica demonstração do nosso reconhecimento para com as pessoas que nos coadjuvaram, e autenticamos a proveniência do pecúlio poético objecto deste Romanceiro.

Às condições históricas e geográficas deste Arquiipélago da Madeira explicam o como a poesia narrativa medieval a ele passou e nele até agora tem subsistido.


Ao feudalismo sucedeu o monarquismo; ao viver aventuroso dos reis e dos nobres senhores na guerra, a residência folgada de uns e outros na corte e paços reais; aos costumes rudes e bruta! Sensualidade medievais, os afectados requebros da urbana libertinagem cortesã; a, analogamente, na esfera da literatura, à poesia narrativa dos romances daqueles férreos tempos sucedeu a poesia discursiva das canções provençalescas, arguta, erótica ou critica, de cultismo palaciano: aquela suplantada por esta, e modificada na linguagem pelos progressos aos idiomas modernos, refugiou-se, das eminências castelãs, nas camadas da população inferior; e ai até agora, mais ou menos inovada, mais ou menos viciada tem estanciado, como poesia tradicional.

Ora, decorria esta quadra, quando foram descobertas as ilhas do Porto Santo e da Madeira; no primeiro quartel do século XV: desde então até mais de meados do século XVI, aqui afluíram muitos povoadores, nobres, mercadores e plebeus nacionais em maior numero, mas não poucos estrangeiros também, espanhóis, italianos, flamengos, ingleses, franceses, e alemães que, com as ideias e costumes, ainda medievais, de cada pais, para estas ilhas transportaram a sua antiga poesia; muitos mouros, cativados na fronteira costa marroquina e para aqui trazidos, aqui difundiram seus contos e lengas-lengas (2); e, por ultimo, o domínio filipino, além do presídio de uns quatrocentos soldados castelhanos que neste Arquipélago pôs, deu azo a que novos incolas peninsulares para cá emigrassem, e, de força, uns e outros consigo importaram daqueles velhos romances, que tanto abundam na sua pátria. Este período foi o do progresso e prosperidade madeirenses: então a ilha da Madeira, pela indústria sacarina e suas madeiras de construção, tornou-se riquíssima; estes dois ramos de comércio e a situação geográfica elevaram-na a império da navegação nacional e estrangeira; e porque era a primeira e principal das colónias portuguesas, constituída foi em metrópole diocesana de todo o nosso recém-descoberto ultramar, desde


o Brasil até a Ásia, o que tudo poderosamente concorreu a atrair para esta ilha novos povoa dores, e, com eles, novos exemplares da poesia narrativa da idade média. De todos estes elementos, núcleo da população madeirense, se deduz a proveniência, variedade e riqueza da poesia narrativa tradicional neste Arquipélago.

Assim adquirida, profundamente radicou essa poesia nestas ilhas, porque, como em outro escrito (3) mostrámos, o viver e costumes; medievais aqui implantaram, e já quando no continente decaiam, cá vigoravam e com tal eficácia aclimaram, que, ainda agora a despeito de tantas inovações, em muito perduram, especialmente na agricultura. Nestas ilhas persistem (Vid. L'ARABIE HEUREUSE, por Alex. Dumas, tomo I, n.º IX, e tomo lI, n.º IV.)de nome e de facto, o senhorio, dono da terra, e o vilão, que, de colonato a meias, a explora pelo pessoal trabalho, ,seu e de sua família, como caseiro ou como meeiro, Isto é, com ou sem residência, ao modo do colono medieval adscripticio ou livre, no terreno senhorial que cultiva. E, em tal ambiente, a poesia narrativa da idade média, enjeitada do cultismo palaciano europeu, neste Arquipélago aposentou, vigente e dominadora, como o poderio quase suserano dos seus capitães donatários e os direitos senhoriais da fidalguia local, que, assegurados pelo interstício do mar e delongas da navegação zombavam do poder real e dos foros municipais.

Deste modo radicada a poesia narrativa medieval, causas não menos especiais a mantiveram até agora na tradição oral destas ilhas. A ilha do Porto Santo ficou, desde descoberta e povoada, quase esquecida na sua pequenez e inferiores condições produtivas: e a sua tradição poética escassa mas genuína, lá jaz, de há quase quatros séculos, como a sua menosprezada população, geográfica e socialmente instalada na vastidão do Atlântico. A Ilha da Madeira, suplantada nas industrias sacarina e florestal pela América e Africa, decaiu repentinamente desde o fim do século XVI, em


consequência do que, bem como de outras causas, perdeu a preeminência de império náutico e o báculo metropolitano, ficando por quase dois séculos, como abandonada à desventura na solidão das águas ate que os seus preciosos vinhos a restituíram à riqueza e convívio europeu; cada qual dos seus maiores ou menores centros de população, separados uns dos outros pelos profundos cortes basálticos do território, convergiu para o grémio paroquial ao alcance do raio visual de cada campanário; ali mesmo, cada família de colonos ou lavradores, adstrita à necessidade do trabalho quotidiano no terreno senhorial por ela fecundado, labuta e vegeta em volta do lar, que lhe é asilo e ergastulo; e a população assim duplamente insulada do contacto exterior pelo mar e pela adversidade, concentrada interiormente de mais em mais por efeito da acidentação do país e da condição servil do agricultor, tem, por isso mesmo, conservado a poesia narrativa medieval, confiada à sua tradição: - a prosperidade lha trouxe, a decadência lha manteve, nisto se cifra a história da tradição poética madeirense, até meado do século XVIII.

E tempo era de corrigir e perpetuar no livro essa tradição; porque as instituições e reformas, modernas, as novas escolas e melhores meios de comunicação internos e externos hão de produzir os naturais efeitos: 8, decorrido meio século mais, a vida nova a que a civilização chama estes povos, terá diluído, se não extinto de todo, na memória deles, a antiga poesia tradicional.

IV

Dois apostos processos ocorrem para transcrição dos exemplares dos romances e seus congéneres tradicionais. O primeiro, seguramente aquele, por cujo meio das velhas rapsódias gregas surgiram as epopeias homéricas,


e, talvez, das primitivas canções de gesta os grandes poemas medievais, foi, ao gosto do alemão Uhland e do inglês Percy, seguido em Portugal por Garrett, no intuito da vulgarização do género. No seu Romanceiro o ilustre iniciador da moderna literatura portuguesa corrige, amplia, supre lacunas, expugne viciações, completa fragmentos e variantes uns pelos outros, já socorrendo-se das análogas colecções poéticas espanholas e de outros subsídios, já sanando de própria conta, na falta de outro meio, e assim funde cada romance em urna lição única, genuína «pelo espírito e pela tendência,» que sem preterir os caracteres do género e da época, sem deixar de ser o transmpto da tradição, a exibe mais bela do que andava, «já viciada da ignorância do vulgo,... já de outra ignorância mais confiada e mais corruptora ainda, a de copistas presunçosos». - Garrett, que (não queria compor uma obra erudita... para philologos e antiquários», mas sim «popularizar o estudo da poesia tradicional, a fim de «dirigir a resolução literária por ele capitaneada; que deu o seu Romanceiro para que as paginas deste «se fizessem ler de toda a classe de leitores», hão lhe importando que «os sabias façam, pouco cabedal delas, contanto que agradem à mocidade, que as mulheres se não enfadem absolutamente de as ler, e os rapazes lhes não temem medo e tédio, como a um livro Professional»; Garrett não tinha outro caminho a seguir, e nisso prestou serviço às letras portuguesas, então de todo o ponto estranhas a tal especialidade. - Releve-se-nos esta curtíssima digressão em homenagem ao preclaro escritor, a quem devemos, precisamente pela leitura do seu Romanceiro nos já longes tempos da mocidade, o gosto pela poesia tradicional.

O segundo processo foi entre nós adoptados, a exemplo do alemão Jacob Grimm, pelo ilustre professor de literatura o sr. Dr. Theophtilo Braga, com cuja amizade pessoal e trato literário muito nos honramos. Este processo, não tanto de intuito poético, quanto histórico, linguístico e etnográfico, assegurado na ingenuidade das tradições e dos contos populares, preceitua


que, assim como «o povo os respeita bastante para os transmitir como eles são e como os sabe.,., também o colector deve seguir o «sistema de não alterar em nada os romances.»

Parece-nos, porém que, se o primeiro destes processos cai, por latitudinario, em abusivo, o segundo, tornado em toda a força autoritária do seu canon, se arrisca a incidir em supersticioso. Nem tão ampla liberdade que descambe para arbítrio, nem tanta submissão que se acatem como invioláveis as manifestas aberrações da memória, da ignorância analfabeta e da inconsciência boçal, com que os menestréis populares não poucas vezes adulteram os romances que repetem. A tradição não exclui a critica, e ambas reagem contra a viciação evidente. Estamos em que o termo médio entre os extremos dos dois processos será o que mais aproxime o texto da sua pureza originária. D. Agostinho Duran, a primeira autoridade de Espanha nesta especialidade, seguiu esse meio-termo na segunda edição do Romanceiro General: «En el texto (diz elle) no me he permitido ninguna libertad que 19 desfigure, y solo tal vez habré mudado de sitio alguna palabra, que, por descuido ó mala correccion. interrumpia la rima, ó viciaba la medida de los versos. Pecas veces. tambien se han intercalado algunos de estas, si faltaban para completar y hacer inteligible el sentido ó la frase, y eso casi siempre tomándolos de otro original impreso ó manuscrito que los contuviese.» - E, ou muito nos enganamos, ou o preclaro professor do Curso superior de letras, com a reconhecida competência que o distingue no assunto, também toma e pratica o moderno processo alemão naquele justo meio, que, conservando na poesia de tradição popular «os idiotismos, formas gramaticais primitivas, palavras de gíria, laconismos de expressão, frases que se referiam a superstições e costumes obliterados, tudo, na sua integridade veneranda», por isso mesmo, repele e corrige a viciação reconhecida e incontestável. Com efeito, para que tudo isso seja mantido no texto coleccionado, e este subsista, quanto possível, «extreme e genuíno», é


mister expurga-lo das manifestas viciações. O nosso abalizado amigo havia de encontra-las na voz popular, como nós as encontrámos; e, timbrando em reproduzir fielmente nas suas notáveis antologias os velhos romances tradicionais, deles excluiu essas maculas. - Se Garrett deparou o texto, dando aos romances tom mais culto que o próprio, e induziu, por isso, alguns estrangeiros no erro de suporem os nossos romances mais correctos que os de outras nações, quem, ao contrário, desse - as viciações populares como de texto genuíno, também induziria em erro não menos grave estrangeiros e nacionais.

Adoptámos, portanto, o segundo processo, assim entendido. - Fazemos nossa a declaração de D. Agostinho Duran acima transcrita, eliminandolhe,contudo, a frase «solo tal vez», cujo, valor, ali, não percebemos, e que, em referenda a nós, seria inexacta; porque o que o sábio espanhol quanto a si parece pôr em duvida ter feito, nós sem duvida o fizemos, e sem hesitação o dizemos, porque é verdade.

Escrupulosos em manter, na essência e na forma, na linguagem, na letra, e até na pronunciação, por meio da ortografia quer antiquada, quer phonica, onde para isso conveniente, a poesia tradicional; conservando distintas, com os títulos que o povo lhes dá, quando lhos dá, cada rapsódia, variante ou fragmento; tomando, quanto possível, como bases da classificação que adoptamos por géneros e espécies, as noções populares, e como denominações destes géneros e espécies, os termos com que o povo os designa; não hesitámos contudo, ou; mais exacto, por isso mesmo não hesitámos em expungir do texto a deturpação positiva ou negativa manifestada ror flagrante absurdo não conforme ás ideias do tempo; por obliteração ou contorção, adição ou substituição de termos; por violação revoltante da gramática natural, da medida cadencial ou do consoante obrigado do verso; ou, finalmente, por irritado barbarismo ele pronuncia: -


que tudo isto é frequente, nem podia deixar de o ser, na lição oral do baixopovo.

Mencionemos alguns exemplos (4), para esclarecimento.

O primeiro verso da Estoria do principio do mundo (pág. 4), foi-nos dado assim:

Era Deus no princípio do mundo.

Mas omitimos as duas últimas palavras, porque, além de a berrarem do tema bíblico, viciavam pensamento e metro; eram transporte que a ignorância rústica fez do título para o corpo do romance.

Na variante I do Gallo-franco, o termo punha-lar veio-nos estropeado para pinho-lar (pag. 59, v. 8.°); na II (pág. 62, v. 8.°) punhaladas,para pinholadas; restauramo-los à sua forma genuína.

No romance de Dom Duardos (pág. -199, v. 9.°), a voz popular dizia:

O' sol de duzentos raios. Dom Duardos então contrariado pela luz solar, acha-la-ia demasiada; em vez de a determinar em duzentos raios, exagera-la-ia, na proporção da impaciência com que a desejava no ocaso: restringir, pois, e a tão pequeno numero, os inúmeros raios do sol é duplo absurdo, em que a musa instintiva jamais cairia. Aquele duzentos é incontestável viciação phonica de luzentes, epíteto que perfeitamente quadra tanto ao objecto, como ao intuito e sentimento do texto. - Substituímos, portanto, sem hesitação, o termo


duzentos por luzentes como lá está.

O nome de Ruy Cid, no romance do herói (pág. 204-210), adveio-nos viciado para Rucido; o do seu cavalo de batalha, Babiéca, para Bébéco: depuramos destas bocais corrupções o texto, restituindo tais nomes à forma própria.

No romance da Nau Catherineta, variante I (pág.. 240, v. 15.º-22.º), rezava assim a lição popular:

Alviçaras, capitão, Meu capitão general! A visto costa de Portugal E costa da Hespanha: Apparecem suas ninas Postas no seu laranjal; Ambas teem seis fructos loiros E seis fios de cristal!»

Aqui pululam as adulterações. Primeiramente, a regularidade dos versos e da rima exige que o nome Espanha esteja no fim do terceiro verso, e o nome Portugal, no fim do quarto. Depois, o que este trecho assim diz, é intuitivamente impossível, e, por isso, inacreditável, ainda para os mais ignorantes e rudes, porque estes mesmos por si próprios verificam que, quando avistado o perfil de terra longínqua, ela aparece em vaga sombra, onde não há distinguir vultos e menos particulariza-los como acima se lê: este absurdo não é mais do que manifesta viciação da bela imagem original do texto, e mero resultado da inconsciente contorção phonica de alguns termos! – Por isso, corrigimos deste modo:


- « Alviçaras, capitao, Meu capitão general! Avisto costa de Espanha E costa de Portugal: Parecem duas meninas Postas no seu laranjal; Ambas teem seus fructos loiros E seus fios de crystal!»

Assim fomos restaurando o texto dos romances. E estamos convencido de que, por este modo, os exibimos mais genuínos do que os houvemos.

A tradição inconsciente e analfabeta é, sem dúvida, sincera por natureza; não mente, não pode mentir, porque a mentira pressupõe intuito na adulteração da verdade; mas importa, como atributo ingénito; o fácil e involuntário desvairamento de si mesma.

Não vacilámos, pois: onde a reflectida analise nos patenteou deturpamento incontestável, positivo ou negativo, de qualquer espécie, não o resguardamos, como venerando; expurgámo-lo, por vicioso. Claudicássemos nisto ou não, ai fica, sem ambages nem atenuações, confessado.

V

É opinião corrente, autorizada por escritores muito respeitáveis, que a poesia narrativa, isto é, os antigos romances e seus congéneres, conservada


na tradição portuguesa, é em regra, poesia nossa nacional e popular, por excelência.

Razões, porém, que nos parecem ponderosas, surgem em contrario.

A mera, leitura dos romanceiros portugueses, ou dos já publicados, ou dos já publicados agora mostra que esses romances se não formaram fundamentalmente pelo menos, da nossa individualidade nacional; da nossa raça, terra, e índole; da laboriosa gestão da autonomia portuguesa; das nossas instituições e costumes privativos; dos nossos vultos legendarios de qualquer categoria, em bem ou mal; tão pouco da grande epopeia atlântica, inspiradora quer nos trágicos e obscuros episódios da vida marítima, quer nos prósperos e preclaros cometimentos dos nossos celebrados navegadores, que mantêm imorredoura, nos faustos da civilização, essa gloriosa autonomia; e, portanto, não são o codex magnus das gestas nacionais, os elementos donde o futuro possa formar um novo Lusíadas, que, em vez de ostentoso e grandíloquo ao modo clássico, como o que temos, seja o fiel e ingénuo transmuto da nossa existência como nação e da nossa vida e missão como povo: de modo que, o poema do imortal Camões é, e continuará a ser, a única e grande epopeia nacional. - E o baixo povo, por sua parte, sim, aprende e transmite essas remotas rapsódias, mas inconscientemente, deformando-as e esquecendo-as pouco a pouco, o que denuncia não ser a tradição popular continuidade de inspiração nativa, senão viciado eco de longínqua inspiração estranha.

Estas rapsódias, forasteiras nos assuntos e personagens, salvam raras e secundarias excepções, que, por tais, confirmam a regra; elaboradas em condições históricas a nós alheias e que caducaram, estacionam, jazem na memória do nosso baixo povo; ai, não reformam nem multiplicam, senão definham, diluem, extinguem a olhos vistos, indo assim inteiramente ao


inverso da evolução histórica e social do povo, o qual, tem gradual emancipação, ascende e desenvolve: e esta oposição de destinos acusa origens e espíritos diversos.

Essa poesia precede, não procede da nossa nacionalidade e povo. Tem de nacional a linguagem, um ou outro exemplar; uma ou outra alusão; e de popular tem a tradição: mas a tradição mesma protesta contra originalidade popular, porque, de essência, atradição

é

fenómeno,

a não

produtor, se não meramente transmissor; e, se deixa de ser isto, degenera.

A rusticidade bisonha, a crassa ignorância analfabeta, e a condição servil do baixo povo não estavam outrora, como, apesar de modificadas, ainda hoje não estão, em condições de iniciativa máxima para obras de espírito. O estado em que esse povo, desde o berço, como a águia cativa no ninho, por tantos séculos tem jazido, tolheu-lhe e ainda em grande parte lhe, tolhe; o voo; o baixo povo de agora, ainda, em geral; desconhece, de facto, a fecunda civilização em que, de direito, gravita; tem a asa do génio, que aliás não é privilégio dele nem de outrem, mas, por não adestrada, mal esvoaça, pesada e rasteira, na caliginosa atmosfera das necessidades materiais e grosseiros prazeres: e, se isto ainda um tanto assim é de facto, em menos cabo do actual reconhecido direito, muito mais o seria no pretérito, por força do que então era direito reconhecido. – O Povo apropriou-se por muito bem jus, sem duvida; dessa poesia narrativa, medieval, enjeitada de senhores; mas nem por isso ela se pôde dizer obra de própria origem popular.

Se essa poesia fora a nacional, por excelência, por isso mesmo não poderia ser a, por excelência, popular no sentido historicamente próprio dos termos; porque a parte, povo, não absorve o todo, nação, incidindo em contraditório o atribuir a uma classe única o que ao mesmo tempo se proclama produto


do complexo de todas: e, por outro lado, a preponderância social do terceiro estado e a fusão dos três, clero, nobreza e povo, sob a denominação de povo, na grande unidade nacional, tornando sinónimos os termos nação e povo, é facto hodierno, ainda em fadigosa elaboração; e portanto, não influenciou, nem caracteriza a poesia narrativa tradicional, filha de outras eras; concebida em condições tão diferentes destas.

Não vemos, pois, que os antigos romances é seus congéneres, coleccionados nos romanceiros portugueses, sejam a poesia nacional e popular, senão poesia nacionalizada, principalmente peja derivação para o nosso idioma, e popularizada na tradição do nosso povo.

VI

Esta poesia, preexistente nos mesmos focos donde depois emanaram as nações cultas actuais e o povo moderno, é de origem, ainda nos contrafeitos exemplares póstumos ou neo-tradicionais, essencialmente medieval; com quanto análoga às novas nacionalidades ou por elas modificado, mormente na França, na Alemanha, na Inglaterra e na Espanha, é, sobre tudo, na sua suprema síntese, a poesia do período genesiaco da sociedade moderna, a idade média: nisto cuidamos cifrar-se-lhe o carácter ou valor específico, etnográfico e poético, histórico e literário.

Por isso, o tipo desses preciosos e insuspeitos padrões, os romances e seus congéneres medievais, está precisamente no que há neles de agro ao gosto culto e hodierno; está no bárbaro ou semi bárbaro do assunto, na nudez da ideia, no duro do sentimento, no cru do costume, no rudimental da forma, no agreste inciso da frase, embora já modificada pelo posterior


aperfeiçoamento dos idiomas; está nesse misto genial, onde, a par do amor, se ostenta o monstruoso e o hediondo moral; onde, com o sublime e o belo, ombreia o feio, o ridículo, o fútil, o vulgar, o rasteiro, o abjecto; onde, de rosto com a liberdade e a virtude primitivas, arcam a insidia desfaça da, a sensualidade bestial, o crime infrene, a vangloria da iniquidade atroz; onde, ao nível da crença viva e superstição ingénua, surgem a lúgubre religiosidade, a abusiva invenção crendeira, a impúdica e crapulosa devassidão, clerical; onde, acima da prostituída servidão dos ínfimos e da astúcia ascensional dos médios, campeiam as imunidades e privilégios, o poderio e violência dissolutos dos proceres. Os romances e seus congéneres medievais são isto, porque nisto se cifram os característicos mais ostensivos da idade média, que eles representam, sob a forma poética; são, pois, a idade, média retratada em si e por si mesma, inconsciente mas fielmente retratada; são fotografia do vivo, fatalmente realista, colhida agora no estado fóssil de tradição.

Mas, sendo isto a poesia medieval de tradição popular, será ela apenas angustiado quadro retrospectivo, sem valor actual, sem alcance futuro; comovente, mas estéril recordação de um passado, que se esvaeceu? Não.

A fermente, e já tão fecunda, vida, da civilização actual tem nessa poesia, aparentemente obscura, inestimáveis traços do período da sua gestão e berço, quanto a crenças e superstições, ideias e sentimentos, idiomas e dialectos, costumes e instituições, pessoas, família, e categorias sociais, e, por outro lado, acha nela irrefragável e espontânea prova de quão superiores são os tempos modernos a esses que alguns apelidam velhos bons tempos passados.

A idade média foi, à semelhança do caos bíblico tenebrosa e tumultuaria


fermentação dos portentosos elementos donde nasceu a sociedade moderna; e a sua poesia ministra vestígios embrionários destes elementos; em si mesma, concorre a explicar o fenómeno; comparada com ele, autentica-lhe o progressivo desenvolvimento. - De sorte que, esses caracteres, comuns à época e à sua poesia, que já desde o cultismo provençal, e mais desde o renascimento clássico, até o declinar do século passado, foram motivo do desprezo e tédio dos homens de letras contra uma e outra, são precisamente o que a ambas confere lugar distinto não só dos anais da Literatura, mas também nos da história social.

Desenterrar, pois, da tradição popular esses romances e seus congéneres, onde de mais em mais se vão obliterando; coligi-los, estuda-los, restauralos, transcende dê curiosidade, literária e de mera escavação arqueológica para necessidade vigente, historia e cientifica.

E, desde que as rapsódias medievais estejam completas e regularmente codificadas, novos diacevastas as poderão fundir na complexa e sublime, Ilíada moderna, não do povo só, mas do clero e da aristocracia também; não da mera nacionalidade, mas do núcleo desta civilização mesma; e depor ao pé da cruz do Messias proletário e supliciado, e junta aos Evangelhos, a nova epopeia digna deles. Contemplados a esta luz, parece-nos que os romances medievais assumem a sua exacta significação, e grandiosa importância: os Evangelhos foram núncios da nova ideia; esses romances são episódios para o vasto poema da génese dela.

Nesses fragmentos poético históricos, como na, Bíblia, nada há, pois, que desprezar; tudo nele tem, sou valor próprio ou relativo, por mau, feio, vulgar, baixo, fútil que em si mesmo seja ou que pareça, porque cada qual deles é uma pedra, cada novo romanceiro é um lanço mais para o


monumento do mundo medieval pela sua poesia.

Los romances façen proceso.

GENERO I

Estorias

Especie I

Romances ao Divino

Estoria do Principio do Mundo

Era Deus no principio, E tudo crear pensou, Cêo. terra, agua e fogo, Tudo do nada creou; E. assim que fez lo mundo, Tambem lo homem formou, Fel-lo do barro da terra, Que sua mão amassou. Este foi lo pae Adão, Que logo triste ficou,


Porque Deus no Paraíso Tão sósinho lo deixou; E vae Deus, compadecído, Fundo somno lhe mandou; E d'uma costella delle Nossa mãe..Eva tirou: Só da arvore da vida Los fructos; Deus lhe quitou; Que nunca delles comessem, Por lei divina mandou.

Mas contra este preceito La serpente os tentou; Comeu Eva, come Adão; Lo pecado começou. E cada um delles dois Logo sentiu que peccou; Escondeu-s` arrependido; Suas vergonhas tapou; E, d'alli desaforado, Servo da morte ficou; Eva pariu na dor; Trabalhos Adão penou.

Geração d`ambos nacida Polla terra `s espalhou; E dos filhos do peccado Lo mundo se povou E por filhos e por netos Este peccado s`herdou,


Mas Jesus na cruz morreu E nos remiu e salvou.

II

O Natal

Em dezembro, vintecinco, Meio da noite chegado, Um anjo ia no ar A dizer: « Elle é já nado..» , Pergunta lo boi: «Aonde? . La mula pergunta: «Quem? Canta lo gallo: «Jesus.» Diz la ovelha:´ «Bethlem. »

Uns pastores, acordados, Pra outros, que já dormiam. - « Arrenego de vós, gente,» Em altas vozes diziam: « Nesta hor' em que dormis, Um anjo aqui passou, Que de Jesus, em Bethlem, Lo natal annunciou. » « O' gente, seria anjo, Ou vinha de pau e sesta? Algum cego. de cajado?


Algum CO\O, de muleta

iNem cajado, nem muleta, Tão pouco de pau, nem sesta; Vinha nos ares voando, Por sol a nossa cabeça.»

Vamos, vamos, pastorinhos, Vamos todos a Bethlem, Vamos visitar Maria. Seu bento filho tambem.»

Em dezembro, vintecinco. A meia-noite nasceu Um Deus que, pra nos salvar, Seu corpo e sangue deu: nem- n`um leito de cortinas Foste nascer em Berthlem, Sobre umas pobres palhinhas. »

III

A Meia Noite

Meia-noite dada, Meia-noit'em pino, Lo gallo cantando,


Chorou lo Menino, E la mãe lhe disse Com mui muita dor: -« Calae-vos, meu filhó, Jesus, mobre que 'staes, Deitado no feno, E entr' animaes!

IV

O Menino Deus

Um pastor vindo de longe A' nossa porta bateu; Trouve recado que diz: « Lo Deus Menino naceu.»

Este recado tivemos Já meia-noite seria; Estrellas do ceo. lá vamos Dar parabens ti Maria. « .Mas que lh' emos de levar, A um Deus que tanto tem?» Ainda que muito tenha, Sempre gosta que lhe deem.»

- «Eu lhe lev`um cordeirinho,


Lo melhor qu' eu incontrei.» -- « E eu lev' um requeijão. Lo melhor qu'eu requeijei.» -- «Pois tambem eu aqui levo, Fofinhos, p'ra lh' off'reeer, Bons merendeiras de leite; Fava de mel, p'ra comer.»

- «Vamos ter c'os mais pastores, Nã se percam no caminho; Vamos todos, e depressa, Adoral lo Deus Menino.» -«Vinde tambem pastorinhas. Vinde, cortei a Bethlem ; Vinde visitar Maria, Que divino filho tem,» -«Esta noit' é sancta noite, Ind`assim mesma, tão fria; Vamos todos a Bethlem Visitar Jesus, Maria.»

- « Ai, que formoso Menino; Ai, que tanta graça tem; Ai, que tanto se parece Com sua Senhora.mãe!»

V


Os Pastores Diz um pastor:

-«Pastores, alviç`rãs, Qu`eu lo Menino, Nacido d`um`hora,

Do ventre divino: Eu rncsmo 10 vi Em suas c"rninhas, Todo nusinho, SobI' umas palhinhas. »

Diz outro pastor:

- « Vamos já, depressa. A` Virgem levar Roupinha bem alva, P'ra lo abafar. Levemos cintinho, P'ra lo apertar; Lo belIo Menino

Não ha de quebrar. Camisinha fina Emos de levar; Lo bello Menino Não ha de nu 'star.


Levemos-lhe touca, P'r'a mãe lo toucar ; Ao bello Menino Bem ha de ficar. La verde fitinha Emos de lh'atar ; Lo belIo Menino Não ha de chorar. Lençóes e coberta Lha em os de dar; Lo bello Menino Ha se de tapar. Lã branca, da nova, Tambem lh'emos dar, Lo bello Menino Ha se de deitar. Levemos também Berço d' imbalar; Lo bello Menino Vamos aninar.»

Respondem todo os pastares:

- «Vamos já, depressa, A Virgem levar Las roupas, bem alvas, P`ra lo abafar.»

Chegados ao presépio, entregam los does, e cantam todos:


-« Ná, Ná, Nino Deus, Dormi descançado; Só p`ra vos ir ver Deixámos lo gado.»

VI

Angelina Gloriosa

Angelina gloriosa, D`aonde Christo naceu, Contae como lo senhor Hi viu luz e padeceu.»

Falla Angelina, e diz:

- Vi lo Anjo Graviel Perguntar pólos pastores: « O`pastorinhos, bom dia, Muito bom dia, pastores; A Deus gloria no ceo, A todos paz, alegria; Bemdicto filho partiu La sancta Virgem Maria.» Eu vi também los Reis Magos, Cada qual com seu thesoiro,


A offerecer ao Menino Incenso, myrrha e oiro. Mui despois lá vi também Lo sancto Christo Jesus, A três cravos cravejado No sancto lenho da cruz. E vi naquelle Calvário Las três Marias lá `star Los olhos postos no ceo, Nas continhas a resar. E vi João Madanella Com toalha d` alimpar

Em busca de Jesus Christo, E lá lo foram achar. Jesus disse: - «Tem-te, tem-te, Madanella, deixa star; Qu'estas são las cinco chagas Que por mim teem de passar. » E lo vi, por fim, em Roma, Lumiado no altar, No sancto calix da missa, Na hostia, s'alevantar.»


VII

QUINTA-FEIRA DE INDOENÇAS

Quinta-Feira d'indoenças, 'Steve meu Senhor ceiando; Com sancta benignidade Los discip'los insinando.

Ninguem no dissér'então Lo que despois succedeu; Levado pola cidade. Lo Filho de Deus morreu! Polo caminho da luz, Las pedras a quebrantar, Lo Filho de Deus morrer, Morrer, para nos salvar!

Vem Nossa Senhora, e uma sancta mulher lhe diz:

- «Se vós soil la Virgem pura, Assubi áquell'oiteiro; Vereis preso á columna Lo innocente Cordeiro: E, se lo nã podeis crer, Descei-vos cá p’ra terreiro; Vereis la rua regada


Do seu sangue verdadeiro: Que lo sangue dessa rua Ha vos dar certos signaes De que é da Bom Jesus, Desse filho que buscaes: Esse innocente Cordeiro, Esse vosso Bom Jesus, Los malvados dos judeus Lo querem levar á cruz!»

Crama então la Senhora:

- «Ó vós que tendes parido, Que sabeis lo que são dôres, Vós ajudae-m'a carpir. Lo meu filho, meus amores.»

Diz la sancta mulher:

- «E las que nâ sabem tanto Adorem la Bella-Cruz. Lo real sangue de Deus, Para sempre, amen, Jesus.»


VIII

SEXTA-FEIRA SANCTA

Era sexta-feira sancta; Las horas correndo vão; E novas de mui quebranto Traz á Virgem Sã João.

Diz Sã João:

- É grande minha amargura, E maior vós la tereis. Se nestas vozes choradas, Senhora, vós m'intendeis. Que 'staes vós aqui. Senhora, Aqui sósinh' a chorar? Vosso filho Jesus Christo. Já lo vão crucificar. La cruz tamanha que leva Nem septe la levarão; Cada passada que dá, Vae de giolhos ao Chão: - «Simão (diz eIle), ajudae, Eu c'o peso nã pod'rei.» - «Forças todas da minh'alma; Todas, Senhor, vos darei.» - «Nessa ajuda, que me daes;


A esta cruz tão pesada, Bem hajaes vós, Simão; Voss’alma já 'stá salvada.» La Virgem, que tal ouviu, Vae a correr, a chorar. Polos altos, polos baixos, Sem lo filho incontrar. PoIa rua d'amargura, Polas outras por ond'ia, Quem na vê tambem chorava, E quem chorava dizia: - «Cuitada de ti, mulher, Que dor que levas comtigo! Corre, corre; se nã corres Nã no acharás tu vivo.»

Foi, e viu tres em três cruzes; Nenhum ella conhecia: De tão chagado que 'stava; Quem conhecel-o podia? Viu João e Madanella, Que lh'apontaram p’r’a cruz; Ouviu então dizer «Mãe»: - «Ai, meu filho, meu Jesus!»

Pola cruz da redempção, Que era de pau olivo, Corriam lagrimas sanctas, Com divino sangue vivo.


IX

AS ALMAS SANCTAS A' porta das almas sanctas Bate Jesus cada hora; Las alminhas lhe respondem: - «Bom-Jesus, que qu'reis agora?» - «Quero que vades commigo Ao rei da gloria cantar, P'ra que deste purqatorio Eu vos possa libertar.» - « Senhor, que muito nos pêsa E muito ha de pesar Nã termos apparelhado. P'ra comvosco caminhar.»

X

ALMA PECCADORA Ai, que triste noit'escura; Ai, que noite de tormento; Morreu alma peccadora, Sem receber sacramento!

Com seus peccados tamanhos,


Cae aos pés do Bom-Jesus; Ajoelha rependida, E faz lo signal da cruz: - «Ai meu Deus, meu Senhor, Pedir perdão aqui venho; Que sou ovelha perdida, Desgarrada do rebanho.»

Diz Nosso Senhor:

- «Alma precita, escuta. Que tambem eu t'escutei; Sempre te quiz desviar, Sempre na culpa t'achei: Quando ias p'r'a igreja, Sempre te vi retardada; Quando tu de lá sahias, Sempre te vi apressada; Quando eram meus jejuns, Sempre te vi comendo; Quando eram minhas festas. Sempre las fost'esquecendo; Quando levantav'a Deus, Nunca te vi penitente; Vae agora p'r'o inferno, Em penas eternamente.»

Acudiu Nossa Senhora Com palavras d'avangelho, E pediu-lhe por taes artes,


Que no pedir deu conselho; - «Peço-te, meu bento filho, PoIo leite que mamaste, Salva-m'ess'alma perdida, Que tu mesmo la creaste.

Diz lo Senhor:

- «Sã Miguel, pesae ess’alma, Pois que miniha mãe lo manda; Pondo d’aqui merecimentos; Peccados da outra banda.»

Do lado dos mer'cimentos Poz la Senhora seu manto; Los poccados. d'outro lado, Nã puderam pesar tanto. Foi lo manto da Senhora Que deu lo peso corrente; Pola graça de Maria Salvou-se la penitente.

Rogae por nós peccadores, O' Virgem da Conceição; Nesta e n'hora da morte, Valei-nos, p'r'a salvação.

Quem disser est’oração E los mvsterios resar


Livrarà almas penadas E la sua de penar. Quem la souber, que la diga;. Quem nã saiba, que l'aprenda. Que, no dia do juizo, Lá terá lo que pertenda.

XI

SANCTA IRIA

VARIANTE I

Estoria de Sancta Irena

Brocado de oiro E prata lavrada, Estav'eu bordando, A' minh' almofada, Quand' um cavalleiro Vem pedir pousada; Que, por noit' escura, Má é la estrada. Se meu pae Ih'a nega. Fôra eu penada;


Se não fôra eu, Lhe fôra negada.

Lo mal qu'eu fazia Eu mal lo cuidava! Que, já noite velha, Elle me furtava, E, lá polas serras, Me chacoteava: - «De teu pae na casa Como és chamada?» - «Chamavam-m'Irena, Fidalga fadada.» - «Agor' és mulher Minha mancebada.» - «Nunca Io será Irena cuitada!»

E, sem mais porquê, Ali me matava, E fez uma cova, E lá m'interrava.

Na fim de sept’annos, EIlo que passava, E, vend'um pastor, Assim lhe fallava: - «Que pedra é 'quela Ali ajunctada?» - «É la sepultura,


D'Irena cuitada; De Sancta Irena, Ali degolada; De Sancta Irena, Ali interrada.»

Então, de giolhos, Lo meu cavalleiro : - «O' Sancta Irena, Amor derradeiro, Se tu me perdôas; Serei teu romeiro.» - «Perdoar-te, como, Saião carniceiro. Se do meu pescoço Fizeste madeiro? Eu não te Perdôo, Villão cavalleiro; Maldicto amor... Meu amor primeiro.»

VARIANTE II

Morte de Sancta Iria

Eu 'stava cosendo á minh' almofada,


Vem um cavalleiro, e pede pousada. Se meu pae lh'a, nega, bem me pesaria; S'ali eu nã fôra, meu pae negaria; Eu Ih'abri la porta, e elle me saudou; Aberta la porta, logo ell' entrou; Puzera- lh’a ceia, e elle ceiou; Fizera-lh'a cama, elle se deitou.

Lo mal qu'eu fazia, eu mal lo cuidava! Qu'ao cabo da noite, treidor me furtava; E lá polas serras, a mim perguntava, - «Teu pae, lá em casa, que nome te dava?» - «Iria fidalga dell'era chamada; Agora, me chamo Iria cuitada.» Então a, cutello, hi fui degolada; Hi fez uma cova, lá fui interrada.

Na fim de sept'annos, ello que passava, E a um pastor assim demandava: - «Qu'ermida é 'quella; ali levantada?» Lo pastor lhe disse: - «D'Iria, cuitada; De sancta Iria, ali degolada; De sancta Iria, ali interrada.»

Crama então lo cavalleiro:

- «O' sancta Iria, meu amor primeiro, Se tu me perdôas, serei teu romeiro.»


Responde la Sancta:

- «Eu não t’o perdôo, ladrão carniceiro, Que, do meu pescoço fizeste madeiro. Se tu assim matas lo amor primeiro, Vae ter no inferno lo teu derradeiro.»

Morreu lo cavalleiro logo alli e em corpo e alma entrou no Inferno.

XII

SANCTO ANTONIO

VARIANTE I

Estoria de Sancto Antonio

Em Padua 'stá Sanct'Antonio, No seu sermão a prégar, Quando vem do ceo um anjo, Mandado lo avisar: - «Depressa, id'a Lisboa; Tende mão no que lá vae; Ide vós livrar da forca Lo justo do vosso pae.»


Lo sancto, que tal ouviu, No púlpito joelhou, E, resand' um padre.nosso, Logo a Lisboa chegou.

Já nas ruas da cidade. La justiça vae andando; Lo triste vae padecer; Lo meirinho, pregoando: - «Vae morrer morte na forca Quem matou por sua mão'

Um innocente sem culpa, Sem mais porquê, nem rasão.»

Palavras não eram dictas, Sanct'Antonio qu'apar'ceu, E, com estas sanctas falIas, Da parte de Deus requ'reu: - «O' vós gente da justiça, O' vós padres do altar, Da parte de Deus vos digo Um justo ides matar; E a todos vós requeiro Que d’aqui nã vades mais; Aqui mostrarei sem crime Esse justo que levaes.»

Veiu então lo juiz Contra lo Sancto dizer:


- «Quem por sua mão matou Vá por eIlo padecer; Aqui, aberta la cova, Lo morto veiu metter; Testimunhas bem juradas Lo provaram, polo ver.»

Mas Sanct'Antonio desata Sem detenç'a responder: - «Los vivos juraram, falso; Lo morto... vamos a ver. Homem morto, homem morto, Polo Deus assim lo qu'rer, Alevanta-te d’ahi; Quem te matou? - Vem dizer.»

Então da cova lo morto Logo s'ergueu e fallou: - «Esse triste padecente Nã fez crime, nem peccou; Nã me tirou êll’ a vida; Por minha vida tirou: Justiça nã lo mandeis Degraus da forca subir; Soltae-m'o já dessas cordas. Soltae-m’o, deixae lo ir. Quem me matou vae ahi,. Mas foi outroo que não elle; Quer Deus qu'eu salve lo justo, E lo crime nã revele.»


Todos, menos um disseram: - «O' grã milagre patente! Vamos dar parte a el-reí; Nã morra este innocente.» E logo vieram promptas Las reaes ordens, d'el-rei: «Cumpra-se lo que Deus manda; E' minha e vossa lei.»

- «Ámen, amen,» - dizem todos Menos um, que foi calado; Foi lo que deu la sentença, Lo juiz excommungado, E logo lo padecente. Das cordas desamarrado,

E a rir e a chorar. Assim fallou ingasgado: - «O' meu bom rev'rendo padre, Já que nã sirvo p'ra mais, Quero servir-vos de rastos; Dizei d'ond' e quem sejaes?» - «Sou vosso filho Fernando; Tomei lo nome d'Antonio, Quando p'ra Deus passei D'este mundo do demonio.

P'ra vos salvar aqui vim, A meio do meu sermão; Quero lo ir acabar;


Dae-me. pae, vossa benção.» - «Eu te la dou, filho meu; Vae de Deus abençoado: Salvaste teu pae da forca; Vae combatel lo peccado.»

VARIANTE II

Sancto António de lisboa

Sanct'Antonio 'stav'em Padua A prégar lo seu sermão, Um anjo lhe foi dizer, Com grande tribulação: - «Avia-te já, depressa;

Vê, sancto lo que lá vae; Vae a morrer em Lisboa Lo innocente teu pae.»

Lo sancto ajoelhou. E fez da cruz lo signal; Pediu um'ave Maria, E se foi a Portugal; E nas ruas de Lisboa Com la justiça topou.


Ia seu pae padecer; Lo meirinho pregoou:

Pregão:

- «Vae morrer morte para sempre Quem por sua mesma mão Um innocente matou Sem mais quê, nem mais razão.»

E logo lo sancto disse:

- «O' senhores da justiça, O' senhores do altar, Da parte de Deus vos digo: Um justo ides matar. Justiças eu vos requeiro, Que d'aqui não andeis mais; Que se mostrará sem culpa Esse homem que levaes.»

Veiu então lo juiz,

E compeçou de dizer: - «Este matou; tem sentença; Vae por ello já morrer; Testimunhas lo juraram; Aqui ell’o interrou Neste cerrado visinho, Hu lo morto s'incontrou.»


Palavras não eram dictas, Lo sancto a responder: - «Los vivos juraram falso; Lo morto... vamos a ver. Vinde commigo, senhores, A dentro d'este cerrado; Que falIará como vivo Lo morto hi interrado.»

Todos vão com Sancto António, que diz:

- «Da parte de Deus, ó morto, Pelo Deus que te creou, Alevanta-te d’ahi, E dize quem te matou.»

Alevanta-se elle, e falla: - «Esse homem qu'ahi vejo Nã fez crime nem peccou; Nã me tirou elle a vida; Por minha vida tirou. Quem me matou ahi vae. Mas foi outro que não elle:

Quer Deus qu'eu só diga isto, E lo crime nã revele.»

Todos, menos um, disseram:


- «Ó grã milagre evidente! Diga-se já a el-rei; Nã morra um innocente.»

Las reaes ordens d'el-rei Nã delongaram a vir: «Soltem-no já dessas cordas, Soltem-m'o, deixem-no ir.»

E todos dizem «bem haja,» Menos um, que nada diz: Foi lo que deu Ia sentença, Lo que vinha por juiz.

Logo foi lo padecente Das cordas desamarrado; E, na força d'alegria, A chorar diz joelhado: - «Ó meu bom rev'rendo Padre. Dizei d'hu e quem sejaes; Quero beijar voI los pés, Já que nã sirvo p'ra mais.»

Responde lo sancto:

- «Sou vosso filho Antonio; Deitae-me vossa benção; Quero m’ir para Italia,


Acabal lo meu sermão

Comenos vem la mulher, Çoberta de dó e pranto: - «Mulher minha, cá vou salvo Polo nosso filho sancto.»

XIII

SANCTA CLARA

Sancta Clara da minh'alma, Sancta do meu coração. Soil la mais perfeita joia Da nossa religião: Nã, vos dobrou vosso pae Nem a ferro da espada. Que vos nã mettesseis freira, Sancta bem-aventurada.

Sancta CIara, escrevestes Uma carta a Jesus Çhristo; Portador que vol la leva É lo Padre Sã Francisco. Sã Francisco vae descalço, Vestidinho de burel; Logo recebe las chagas Do divino Manoel,


Por amor de Sancta Clara, O divino Manoel, Essas chagas sararão, Cada qual la mais cruel.

XIV

ESTORIA DA RAINHA SANCTA

Ao Padre-Sancto pediu Lo senhor Dom Manoel Que lhe confirmasse sancta. La rainha Isabel.

Esta rainha tão sancta, Mulher d'el-rei Dom Diniz, Só fez por servir a Deus; E elle fez quanto quiz. Todal las suas esmolas Só em secreto las dava: E uma vez, qu’escondidas. No regaço las levava, Um cavalleiro privado A el-rei la delatava: E el-rei, de cubiçoso Accorreu, e perguntava:


- «Que levaes ahi, senhora, Nesse regaço tamanho?» - Eu levo cravos e rosas;

Que outras coisas nã tenho.» - «Nem sequer ha maravilhas; Menos cravos, em Janeiro! Ou serão esmolas isso, Ou isso será dinheiro?» La rainha nã fallou; Só lo regaço abriu; E eram cravos e rosas; Que dinheiro... nã se viu.

D'outra vez foi recolher-se; Seu pobre n’alcova achou; E logo lo despe e lava, E na cama lo deitou. Lo cavalleiro privado A el-rei la delatou; E el-rei, de suspeitoso, Accorreu e lhe raivou: - «Pelejo vosco, senhora, Que sou de vos aggravado. Na cama em qu'eu me deito. Quem nella está deitado? E, mui iroso, el-rei Las roupas alevantou; Viu Jesus crucificado, E logo ajoelhou.


E disse:

- «Meu Bom-Jesus do Calvario, Meu Jesus crucificado. Emendae la minha vida, Emendae lo meu reinado.»

La nossa Rainha Sancta Outros milagres obrou: A uma cega deu vista; E outra muda, falIou; Outra, que nã tinha leite; Lo filhinho aleitou; E, com tamanhos milagres. Sancta, bem sancta, ficou.

XV

SANCTA THEREZA

Cantae, anjos do Senhor, Da sua graça n'alteza; Tendes no eco grande sancta; La Madre Sancta Thereza; Essa esposa de Christo Foi d'amores verdadeiros;


Madre Sancta protectora De vint'e oito mosteiros.

Chegada á portaria: Vem um velho da pobreza Que logo assim lhe falla: - «Esmola, Madre Thereza.»

Responde ella:

- «Ai, irmão, muito me pesa, Mas, com dor d'alma sentida, Vos digo: chegastes tarde; Já dei toda la comida.» E log’uma voz lhe diz Que p'ra dar áquell irmão, Se volvess' ao refeitoiro, Ind'havera d’achar pão. E nessa voz confiada, Ao refeitoiro voltou; Tanta comida lá viu, Que lo regaço fartou! Thereza, com gracia tanta, Ao pobre diz: - «Irmão meu, Tomae lá, levae, irmão; Vossa é, que Deus la deu. E de mim, irmão, vos rogo, Aqui venhaes, cada dia, Vossa esmola receber


Nesta mesma portaria.»

Reprica lo velho:

- «Cá virei tdol los dias. Em quanto Deus, vos der luz. Por quem hei de perguntar?»

Ella responde:

- Por Thereza de Jesus.» Em cada dia despois, Nunca lo velho faltou. Mas, no dia derradeiro, Thereza lhe perguntou: - «Sou Tbereza de Jesus, De Jesus sou com certeza; E vós, irmão, vós, quem sois?»

Responde elle:

- «Eu sou Jesus de Thereza.»

Tomemos d'isto memoria; Que la divina grandeza Á gente da mer'cimentos, Como los deu a Thereza. Ó Madre Sancta Thereza,


Do jardim do ceo la frol, Seja eu herva rasteira Ao pé d'esse gyra-sol.

XVI

ORAÇÂO DE S. FRANCISCO XAVIER

VARIANTEI

Indo eu por hi abaixo Na manhã de San João,

Incontrei Nossa Senhora De cordão d'oiro na mão: Eu peço-lh'um boccadinho; Ella me disse que não; Eu lhe tornei a pedir; Ella me deu lo cordão. Nã lh'o pedi por cubiça; Pedi-Ih'o por devoção; Mas, só porque fosse d'oiro. Pesava com' um grilhão.

San Francisco Xavier, Desatae-m' este cordão, Que m'aperta septe voltas


Á roda do coração!

VARIANTE II

Incontrei Nossa Senhora Na manhã de San João: Eu vestia minhas galas; Ao, pescoço meu cordão: Pede-m' ella um pedaço; Eu respondo-lhe que não. Vai, despois, pede-m'o todo; Mas nã lhe dei lo cordão. Eu nã Ih'o neguei por mal, Nem por nã ter devoção; Mas, só porque lh'o nã dei,

Pesava nem um grilhão!

Ai, Virgem Sancta Maria, Senhora da Conceição, Eu arrenego do mundo; Dae-me, Senhora, perdão.

San Francisco Xavier, Desatae-m'este cordão. Que m'aperta septe volta. Á roda do coração!


XVII

VISITAÇÃO DAS LAPINHAS

(FIGURAS: - UM VILLÃO E UM PRETO.)

Vem lo villão, e diz:

Eu venho da serra, de Ionge, cançado; Por vel lo Menino deixei lo meu gado.

Vem atraz lo preto, e falla:

Tambem ió lã deixei tudo que lá tinha, Só por vir agora ver esta lapinha.

Villãó:

Eu venho da serra; d'álem do penedo, Com meu machetinho, folgar no folguedo.

Preto:

Ó bruto dos, campo, olh'a fidarguia, Que vem á cidade trajando serguia!

Villão:


Sou branco de raça, geração limpinha; Vim vel lo Deus nado, qu'está na lapinha,

Preto:

Tu diz vem ver nado lo Deus na lapinha? Tu vem p'ra comer bom bacalbau, sardinha.

Villão:

Cal-te lá, mau preto, tu m’o pagaras; No anno que vem, tu nã fallarás.

E arrematam; cantando:

Meu Menino Deus do meu coração, Amar-vos sim, sim; deixar-vos não, não.

XVII

NOSSA SENHORA TECEDEIRA

La Virgem Nossa Senhora 'Stav' á sua janellinha, Lo seu Menino no colo,


E fiando na roquinha: La roqninha era d'oiro; Lo fuso, de prata fina; Linho que nella fiava Era p’ra obra divina. Se la teia que deitou Fosse das que vão á feira, Ó meu Deus, qnern na comprasse De tão sancta tecedeira!

La Virgem Nossa Senhora Vae depressa, logo vem; Vae talhal las camisinhas Com Sanct'Anna, sua mãe.

XIX

ORAÇÃO DE SAN JOSEPH Poz-se San Josoph á'ndar La noite despois do dia; Quando chegou lá ao ceo, Toda la gente dormia; Só 'stava lo Padr'Eterno Resando l’Ave Maria. E ao sancto perguntou: - «Como fica lá Maria?»


Responde San Joseph:

- «Maria lá ficou boa Mail lo seu bento filhinho; Lençoes da caminha d'elle São do mais fino do linho; Bercinho, em que s'imbala, É d'oiro, não é latão: Maria e seu Menino, Em Bethlem, bonsinhos 'stâo.»

Aqui acaba, meu sancto, Esta sancta oração: Seja p'ra gloria vossa, E p'ra nossa salvação,

XX

NOSSA SENHORA CUIDOSA

La Virgem Nossa Senhora 'Stá sentada na varanda; Não espera só soidades Que lo seu Jesus lhe manda; Espera tambem lo filho; Mas lo filho nunca vem:


Vae-se ter com elle então Á cidade de Bethlem.

E disse-lhe:

- «Ai, quem me dera no tempo Em que tu eras menino! Ora eu a te cuitar, E ora tu p'ra mim rindo! Hoje não sei que te diga: Em dezembro fazem annos Que nacest' entre dois brutos... E vejo-t’ entre tyrannos.

XXI

ORAÇÃO DE S: BERTHOLAMEU

Bertholameu poz-s'em pé; Seu bordão logo tomou; Seu pé direito alçando, Seu caminho longe andou. E Jesus que lo incontra: - «Onde vaes, Bertholameu? - «Ia em procura de vós, Meu Jesus e Senhor meu.» - «Bertholameu, tom' atraz;


Eu te darei um condão; Com elle não ha quebranto, Pr'a mulher, nem p'ra varão. Los quatro cantos da casa Quatro anjos guardarão; Com elles não ha, quebranto P'ra mulher, nem p'ra varão. Vinde homens e mulheres, Vind' abaixo vel lo mar; Como San Lucas, Matheus. Vinde los bens intregar.»

- «Palavrinhas do Senhor, No bico, lo que levaes?» - «Levamos los sanctos oleos

Com que christãos vos chamaes.»

Quem dest' oração disser Tres na noite, tres no dia, Assiste-lhe o Bom-Jesus, Filho da Virgem Maria: De rocha nã cahirá; De parto nã p'rigará; No mar nã s'afogará; Lume nã no queimará; Mão finada nã verá; Mã morte nã morrerá; Tres dias antes que morra, La Virgem Maria verá.


XXII

ORAÇÃO DE S: THOMÉ

San Thomé andando, por coxo parou; Logo Jesus Christo com elle topou. - «Tu ahi que fazes, que fazes Thomé?» - «Senhor eu 'stou coxo, cambado d'um pé.» - «Levanta-te, anda.» - Senhor, que nã posso.» - «Caminha», lhe manda Jesus, Senhor nosso.

San Thomé levantou-se, andou de caminho, Seu pé escorreito, que não cambadinho.

E Nosso Senhor lhe disse:

- «Quem da minha mort' e paixão s'alembrou La carne quebrada, aberta, sarou; Quem da minha mort' e paixão s'alembrou Membro, qu'era torto, logo direitou.»


XXIII

ORAÇÃO DE S. PEDRO E S. PAULO

Pedro e Paulo em Roma, E Jesus los encontrou: - «Dizei-me, que vae por cá?» Lo bom Jesus perguntou.

Respondem elles: - «Ha malinas, er'sipélas.»

E então disse Nosso Senhor:

- «Pedro e Paulo, voltae; Eu vos darei lo remedio; Ide vós, vêde, curae. Talhae lo mal das doenças Com las hervinhas do monte, E com agua de mistura, Agua purinha da fonte;

E nã falteis com azeite, Mas que seja azeite bento D'alampada qu'alumia, Lo altar do Sacramento.»


XXIV

ORAÇÃO DE NOSSA SENHORA DA LUZ

- «Vinde vel lo vosso filho. Minha Senhora da Luz, Com tres cravos cravejado Lo tão amado Jesus! Vinde vel lo vosso filho, Minha Senhora da Luz; Ali 'stá crucificado N'aquella tamanha cruz!»

Diz la Senhora:

- «Ai meu filho, meu amor, Meu tão amado Jesus, Por amor dos peccadores, Ahi morres nessa cruz!»

Quem est' oração disser Um anno, dia por dia, Tres dias antes que morra Vera la Virgem Maria.


XXV

ORAÇÃO DE SAN PEDRO

VARIANTE I Meu San Pedro, sois velho, Mas isso nã desfaz nada; Moço ou velho, soubestes Puchar da vossa espada. Vinham los perros judeus A Jesus Christo buscar, E vós, d'um golpe, lograstes Um perro desorelhar.

Mas onde vos ficou, Pedro, Essa tanta valentia, Que medo d'uma mulher Vos incheu de cobardia?! Antes do cantar do gallo, Da meia-noite p'r'o dia, Negastes lo vosso Mestre Por tres vezes, á porfia!

San Pedro, com ter peccado. Foi de sanctidade 'spanto. Oh, que milagre tamanho, Ser peccador e ser sancto!


VARIANTE II

San Pedro foi peccador, E de sanctidade 'spanto. Oh, qne tamanho milagre, Tão peccador e tão sancto! E foi tambem pescador, Para despois subir tanto! Oh, que milagre tamanho, Pescador, e Padre Sancto!

- «Dizem, sancto, que sois velho: Isso não importa nada; Que com animo soubestes, Sancto, puchar da espada.»

«Vinha Judas c'os judeus, Vinham p'ra Jesus levar; E vós. d'espada na mão, Fostes um desorelhar. Mas la vossa valentia Hi la deixastes ficar; Que bastou uma mulher Para vos acobardar: Na noite d'aquelle dia, Antes do gallo cantar, Tres vezes negastes Christo, Tres vezes, a porfiar.


Quem tal dissera, meu sancto; Quem tal houvera cuidar?! Nem nos sanctinhos do ceo Ninguem se póde fiar.»

Fez-se vermelho San Pedro. E respondeu-m' em segredo: - «Com ser sancto, tenho costas, E quem tem costas tem medo: Tinha qu'ir prégar em Roma; Nã qu'ria morrer tao cedo.»

- «Se tambem peccastes sancto Tende dó do peccador; Pescae-me no mar da culpa, Pedro sancto, pescador.»

XXVI

PRÉGAÇÃO DE SAN JOÃO

VARIANTE I

Lo Baptista no deserto, Entre flores assentado, Nuncia p'ra tod' a terra:


«Gloria, que Deus é nado!» João Baptista pregôa Voz do Verbo increado;

E lo propheta do ceo, Por quem Christo foi mostrado,

- «Meu San João, d'onde vindes; Que vindes tão orvalhado? - «Venho do rio Jordão, De fazer um baptisado.» - «E a que vindes aqui, A tamanho povoado? - «Venho d'além do deserto, A prégar lo nã prégado.» - «E que vindes insinar. Que já nã foss' insinado?» - «Que já temos Redemptor. A nos remir do peccado.» - «A mau logar vindes, sancto; Trazel lo vosso recado; Fugi; sancto, nã vos matam, Que tudo aqui 'stá damnado.»

San João nã quiz fugir; Foi na côrte degollado.

Por causa das tentações, Las mulheres que nã farão? Uma delata San Pedro,


Outra mata San João!

Quem septe dias resar, Di'a dia, ést'oração Na hora da sua morte Lhe valerá San João.

VARIANTE II

San João vem do deserto, D'entre flores escondido. Vem a prégar pelo mundo Que Jesus já é nacido. San João foi voz do Verbo Que do deserto soou; Foi como sancto propheta; A todos Christo mostrou.

- «Ai, sancto, Vós d' onde vindes. Que vindes tão orvalhado?» - «Venho do rio Jordão. De fazer um baptisado.» - «E a que vindes aqui. N'esta noite sem luar?» - «Venho d'álem do deserto Por esta côrte prégar.» - «E que vindes. San João.


Que vindes cá insinar?» - «Eu venho da Nova Lei Verdades annunciar.» - «A mau logar vindes vós Essas verdades pregando; Trazer verdades á côrte É traficar contrabando.»

Por causa das tentações. Las mulheres que nã farão?! Uma fez cahir San Pedro, Outra, morrer San João.

XXVII

A VISITAÇÃO DO ESPIRITO SANCTO

I – NO PEDITÓRlO PELAS PORTAS Vem o Imperador trazendo o sceptro e a corôa em uma salva de prata; um mordomo, com a bandeira do Espirito-Sancto; outro, com um pequeno pendão vermelho; raparigas de dez a doze annos, vestidas de branco, capinha vermelha, e ornadas com quantas peças ou joias de ouro podem; e tocadores de rabecas, machetês e violas. As raparigas n'estas folias são designadas pela denominação de saioias. Ellas cantam, acompanhadas dos referidos instrumentos.


Pelos caminhos:

Lo Divino 'Sp'rito Sancto Vem de ladeir' em ladeira; Anjos do ceo, deitae-lhe Rica flor de Iarangeira.

Divino pombinho branco Na bandeira tão bonito, Tendel los olhos pregados Nas chagas de Jesus Christo.

A' s portas dos devotos:

A esta porta parou Quem nã devia parar; Parou lo Esp'rito Sancto Esmola cã vem buscar.

Esp'rito Sancto divino Polas portas como frade! Fazei-lhe esmola, fazeil-a A Sanctissima Trindade.

Acudi, gente de casa, Abri la vossa portinha; Aqui tendes lo Divino, Na figurada pombinha.


Quando los devotos vão:

Abençoada esmola, Se la daes com alegria; Sp'rito Sancto Divino Sej' em vossa companhia.

II. - NO DOMINGO DA FESTA

Ao intrar para a igreja:

Intrae homens, intrae homens; Intrae vóz, Imperador; É hoje la nossa festa; Visitae Nosso Senhor.

Intrae vós, intrae mulheres. Da igreja para dentro; La nossa festa é hoje; Visitae lo Sacramento.

Na igreja depois de coroado lo Imperador:

Foi c'roado, bem c'roado Lo nosso Imperador; Veiu-lh' a c'rôa a sceptro Das mãos de Nosso Senhor.


No fim da festa:

Divino 'Spr’ito Saneto. Divino consolador, Consolae-m' esta minh'alma Quando deste mundo fôr.

III. - A DlSTRlBUIÇÃO DO PÃO BENTO

Vão o Imperador, os dois mordomos, as saloias e os tocadores, como foram para o peditorio; acompanham-nos homens com taboleiros em que, sobre toalhas orladas de renda, são levados pequenos pães, que foram benzidos na occasião da missa da festa; o Imperador intrega um desses pães em cada casa onde tinha sido dada esmola; e as saloias cantam, acompanhadas dos tocadores.

Pelos caminhos:

Lo divino 'Sprito-Sancto, Vem de ladeir' em ladeira; Anjos do ceo, deitae-lhe Rica flôr de laranjeira. Divino pombinho branco, Na bandeira tão bonito, Tendes los olhos pregados Nas chagas de Jesus Christo.


Á porta dos devotos:

Acudi, gente da casa, Abri cá vossa portinha; Aqui tendes lo Divino Na figura da pombinha.

Á intrega do pão bento:

Aqui tendes pão benzido; Deus é quem lo manda dar, Acceitae est’ arreliquia ; Ide la já bem guardar.

Á despedida:

Ficae-vos na paz de Deus, Da sancta fé n'alegria; Esp’rito-Sancto divino Sej' em vossa companhia.


XXVIII

ESTÓRIA DE NOSSA SENHORA DO MONTE

No correr d'este ribeiro, Lange d'esta fonte fria, Uma pastora mocinha Com seu pae além vivia: Seu gado a pastorar Inda manhã mal rompia. Á hora do pôr do sol Com seu gado recolhia. Voltando ella p'ra casa Pela noitinha d'um dia, No regaço do saiote Confeitos, maçãs trazia: E nem maçãs, nem confeitos Na ilha nã nos havia; Tudo era sertão bravo, Rara casa moradia.

- «Que coisas são estas, filha? Ninguem aqui Ias teria!» - «Linda senhora m’as deu, Que outras tantas trazia; É certa todal las tardes, Li além, á fonte fria; FalIa e reza commigo,


É la minha companhia. - «Filha, essa maravilha Só por incanto seria.»

No outro dia vindouro, Elle se poz de vigia; E seus mesmos olhos viram Que la filha nã mentia: Viram divina imagem Da Virgem Sancta Maria; La imagem a sorrir, E la filha que comia: Lo pae viu la Virgem Sancta Em imagem que sorria; Mas la filha, innocente, Em viva carne la via.

Diz lo pastor: - «Ó milagre! Venham todos á porfia; Appar'ceu aqui no Monte La Virgem Sancta Maria!»

Gonçall'Ayres, mal o soube, Uma capella fazia, E na capela devota Nossa Senhora mettia. Mas la Senhora, soidosa, P'r'a sua fonte fugia, A fallar á pastorinha, Sua fiel companhia.


Vae então todo lo povo, Sem faltar la fidalguia,

Melhor igreja levantam. Cada qual como podia: E em procissão levaram La Sancta Virgem Maria. Que, vendo tamanha fé, Lá ficou de moradia.

Em prova deste milagre, Ved'ahi la fonte fria; La Senhora na igreja, E cad'anno romaria.

XXIX

MILAGRE DE NOSSA SENHORA DO MONTE

Fuge, fuge dos cossarios, Oh, herejes qu'elles são! Não ha igreja mosteiro, Nem altar onde nã vão! Los cossarios herejes São diabos, homens não!


Lá vem um por hi arriba, E lá se vae ao altar; Minha Senhora do Monte, De lá vos vae arrancar, E na pedra dos degraus Vos joga, p'ra vos quebrar!

Vossa igreja tremeu Deste tamanho peccado; Los sinos d'ella dobraram, Tocando desintoado; Agua benta seccou; Apagou lume sagrado! E vós, Senhora do Monte. A rir no ceo, sem cuidado! Vossa imagem, inteira; Lo degrau, esmigalhado; E lo hereje maldicto, No inferno abrazado!

Ó Senhora milagrosa, No mundo tão venerada, Nenhum hereje s'attreva Contra vós, que sois sagrada.


ESPECIE II

ROMANCES PROFANOS

O GALLO-FRANCO

VARIANTE I

ESTÓRIA DO BRAVO FRANCO

La filha da Dom Rodrigo 'Stá á sua gelosia, E passou lo Bravo-Franco, E pediu quem lh'a daria. Seu padre, lhe respondeu Que daI la filha nã qu'ria, Tambem la madre fallou, Cheia de grã soberbia: Que sua filha nã dava A duque nem a marquez, Nem por tanto do dinheiro Que Ihe contassem n'um mez Mas Bravo-Franco tornou; Furtou-la, em que lhe pez. Chorava la triste moça Lagrymas a tres e tres.


Disse-lhe elle:

- «Acaba já de chorar, Cal-te, cal-te que te pez: Se choras por padr' ou madre, Nunca jamais tu los vês; Se choras por teus irmãos, Los matarei todos tres.»

Responde ella:

- «Nã choro padre nem madre, Que nunca mais hei de ver; Nã choro los meus irmãos. Que nunca mais hei de ter; Só choro minha fortuna. Que nã sei qual ha de ser.»

Disse então elle:

- «Tua fortuna ó moça, Eu t’a digo d'uma vez: Quero-te minha manceba, Ou por bem, ou que te pez.»

Vae ella finge-se contente, e falla:

- «Já nã choro la fortuna, Que bem gostei de saber;


Ser eu la vossa manceba

Eu lo desejo de ser.» E logo compeçou a despir-se, do que Bravo-Franco ficou muito namorado. Mas la donzella armou uns nós cegos nos nastros do saio, e disse:

- «Imprestae-me, Bravo-Franco, Lo vosso punhal ingrez; Quero cortar estes nós, Ou por bem, ou que me pez.»

Bravo-Franco m'imprestou Lo seu bom punhal ingrez; Eu puz-m'a lo punhalar, Facadas a tres e tres: Assim me livrei d'affronta, E meus irmãos todos tres. - «Bravo-Franco, ficas morto, Bem morto, em que te pez!»

Cavallo que me trouvera Se tornou a me levar A mi padre e mi madre. Com quem me convem estar.

Quando mi madre me viu, Me perguntou infadada : - «D'onde vindes minha filha, Que vindes tão sanguentada ?» - «De matar lo Bravo-Franco,


Que me levava furtada.» - «S'isso é como dizeis, Sêde vós abençoada, E nos valh' a Virgem Sancta. Nos acuda lo Deus Padre, E Jesus que nos defenda, Esp'rito Sancto nos guarde.»

VARIANTE II

A do Gallo-Frango

La viuva de Rogerio A sua filha mui qu'ria, E veio lo Gallo-frango, E por mulher lh'a pedia. La madre lhe respondeu, Com muita grã soberbia, Que nem a marquez nem duque Sua Ignez nã daria, Nem por tanto do dinheiro Que n'um mez se contaria.

Um duque nao era elle, Nem siquer era marquez; Nem lhe veiu contar dote, Siquer um' hora d'um mez;


Mas veiu furtar-lh'a filha, Á força, em que lhe pez! N'uma torr' a septe chaves, Presa tem Dona Ignez, Que se desfaz a chorar Lagrymas a tres e tres.

E disse-lhe elle:

- «Qu' estas tu ahi chorando? Cal-te, caIt', em que te pêz. Nã me chores la tua madre, Que tu nunca mais la vês; Tão pouco los teus irmãos, Que los matei todos tres.»

Ella responde:

- «Eu ná choro la mi madre, Nem meus irmãos todos tres: Só choro minha ventura, Que nã sei que de mim fez.»

E Gallo-frango acude dizendo:

- «La tua ventura, moça, Nestes meus olhos bem lês. Vaes ser la minha manceba, Ou por bem, ou que te pez.»


Crama então ella:

- «Ficae-vos sósinha, madre, Sem los filhos todos tres; Que cá 'stou com meus amores, Nem m'importa que te pez.»

E nisto finge que se quer despir, e falla:

- «Ai, afogado vestido, Quero rasgar-te de vez. Imprestae-me, meu Gallinho, Lo vosso punbal ingrez.»

Gallo-frango, namorado, Deu-me seu punhal ingrez; E, com tal gana lhe dei Punhaladas tres a tres. Que morto logo ficaste, Meu franguinho, que te pez! E, vingada minh' affronta E meus irmãos todos tres, No cavalto, que me trouve, Fui p'ra casa outra vez.

Chega, e sua mãe lhe pergunta;

- «D'onde vindes, qu'rida filha, Que vindes tão açodada?»


Responde Dona Ignez:

- «De matal lo gallo...frango, Que me levára roubada. La morte de meus irmãos Deixei na delle vingada...»

- «Ai, filha, que me dizeis?! Sêde, filh', abençoada.»

Deitou-lh' a benção, e acabou-se la estoria.

II

EGINHART

VARIANTE I

ESTÓRIA DE GERINARDO

- «Gerinardo, Gerinardo, Pagem d'el rei tão amigo, Quizera eu, Gerinardo, Dormil la noite comtigo.» - «Eu sou um vassallo vosso.


Senhora zombaes commigo?» - «Eu nã zombo, Gerinardo; É deveras que t'o digo.» - «E quando qu'reis vós, senhora, Que venh' aqui ao postigo?» - «Quando, já el-rei meu pae Na cama fôr dormecido; Vem na palmilha das meias, Que tu bem sabes lo p'rigo.»

Gerinardo, de contente, Dentro de si nã cabia; E, quando el-rei n'alcova A somno solto dormia. Gerinardo, descalçado. Ao postiguinho batia: E n'alcova da princeza Eu nã sei lo que seria; Mas de noite nã dormiram, Qu' adormeceram já dia.

De manhã, faltou lo pagem, Quando el-rei se vestia; Que Gerinardo no paço A sua mercê servia. Correu el-rei seu pa!acio; Ninguem Gerinardo via: Foi-s' alcova da princeza ; Elle com ella dormia!


Quedo eI-rei se ficou A cuidar no que faria.

E disse:

- «Eu, se mato minha filha, Fica lo throno sósinho; P'ra matar a Gerinardo. Criei-lo de pequeninho...» E poz seu punhal entr’ ambos, E foi fallando baixinho.

Ao despois, acordam elles Do seu somno bem dormido.

E crama ella:

- «Ai Jesus, meu Gerinardo, Que tudo está perdido! Vê lo punhal da meu pae Entre nós aqui mettido! Se tu foges, Gerinardo; Eu tambem fujo comtigo: Ou deita-t', aos pés d'el-rei; Que meu pae é teu amigo.»

Vae Gerinardo deita-se aos pés d'el-rei, e falla:

- «Aqui venho, rei senhor,


Pedir perdão, rependido.» - «Polo certo. Gerinardo, Que foste bem atrevido!» - «Rei senhor, se m'atrevi, Fui primeiro pretendido.» - «CaI-te pagem confiado; Has de ser della marido; Não és da mesma igualha, Mas és lo seu escolhido.» - «Se nã sou filho de reis, De reis, venho decendido; De bastardia de França Meu carteI trago commigo, Pouca differença d'igualha, E pago lo nã devido.»

Oh, que festas vão na corte! Oh, casamento luzido! Oh, Gerinardo mansinho, E com fama d'atrevido!

VARIANTE II

Gerinaldo

- «Gerinaldo, Gerinaldo, Lindo conde, meu tão qu'rido,


Bem podias. Gerinaldo, Ser esta noite commigo.» - «Nã zombeis de mim, princeza: Aqui 'stou vosso captivo.» - «Eu nã zombo Gerinaldo; Coração nas mãos, lo digo.» - «Que hora mandaes, princeza, Qu' eu venh' a vosso pedido?» - «Vem tu lá das dez p'r'as onze, Que meu pae 'steja dormido: Trale sapatos d'bollanda, P'ra nã seres presentido.»

Doze voltas de passeio, Outras tantas de passinho, P'r'a janella da princeza Deram leve suspirinho. - «Quem será est' atrevido?» Diz la princeza, baixinho. - «É este vosso captivo, Lo conde Gerinaldinho.» - «Ai, se vós Gerinaldo, Assubi, devagarinho.»

Deitou-lhe escada de sêda, Que nã fosse presentido.

Elles ainda no somno, EI-rei n'alcova erguido.


E chamou:

- «Gerinaldo, Gerinaldo!» Mas el-rei nã foi ouvido. Chamou lo duas, tres vezes, E nunca êll' appar' cido. - «Ou Gerinaldo é morto, Ou traição ha commettido.»

E correu el-rei á alcova da filha.

Foi-s' á cama da princeza, Lá 'stava elIe despido; Ambos 'stavam somno solto, Como mulhere marido. E vendol-los assim ambos, Diss' el-rei infurecido: - «P'ra matar a Gerinaldo, Criei-lo desde nacido; P'ra ir matar la princeza, Meu sangue vae-me perdido... Fica-te punhal entr' elles, D'aviso ao atrevido.»

El-rei deixou, ficar lo seu punhal, e foi-se imbora. Ella despois acorda e crama:

- «Gerinaldo, Gerinaldo, Meu segredo foi sabido;


Que meu pae já aqui veiu; Seu punhal 'qui 'stã mettido.»

Gerinaldo imbaçou; Ficou calado, tolhido;

- «Não imbaces, Gerinaldo, P'ra que és tu atrevido? Deita-t' aos pés de meu pae, Que de meu pae és mui qu'rido. Bem no vês, s'elle quizesse, Tu já terias morrido.»

Gerinaldo foi-se onde estava el-rei, e fallaram assim:

- «Aqui me tendes, bom rei, Mandae-me pôr a castigo.» - «Gerinaldo infiel, Foste muito atrevido.» - «Eu nã no fui, rei senhor; Fui primeiro commetido.» - «Hoje mesmo, na igreja, Serão mulher e marido.»

Gerinaldo lá casou Com uma filha de rei; Mas, se la gosou donzella, Nã sou eu que jurarei.


VARIANTE III

Leonardo

Vem la filha do rei, e diz:

- «Leonardo, Leonardo, Pagem d’el-rei tão querido, Bem puderas Leonardo, Ser duas horas commigo.» - «Nã mangueis de mim, senhora, Que sou um vosso captivo.» - «Eu nã mango, Leonardo, É deveras que lo digo!» - «Senhora, quando mandaes Que venh’ em vosso serviço?» - «Vem ás dez, ou vem ás onze, Que meu pae ‘steja dormido. Traze capa e capuz, Que nã sejas conhecido; Traze sapatos de lã, Que nã sejas presentido.»

A hora dada, Leonardo à porta.

- «Quem ‘hi bat’ á minha porta Bem se póde d’ahi ir.» - «Sou Leonardo, Senhora


Que venho por vós servir.» - «Venhas em bem, Leonardo Minha porta vou abrir.» Ambos em cama de rosas Se deitaram sem dormir, Senão sobl' a madrugada, Já manhansinh' a luzir; E a dormir inda 'stavam Despois d' el-rei se vestir. Nem Leonàrdo, nem ella, Nenhum delles appar'cia. - «Minha filha, onde 'stás?» Com Leonardo dormia. El-rei entra-lhe n'alcova Eu nã sei que lá fária. Mas acharam entre si Lo punhal que el-rei trazia.

- «Ergue-te já, Leonardo; Fuge, fuge, amor qu'rido, Que lo punhal de meu pae. Entr’ambos bem vês mettido! Fuge, fuge! Se, nã foges, Leonardo, 'stás perdido.»

Já Leonardo fugia, Sae-lh' eI-rei infurecido: - «Leonardo p'ra vassallo, Foste muito atrevido.» - «Rei senhor, se tenho culpa,


Á culpa fui commettido.» - «Ó homens da minha guarda, Seja de morte punido.»

E logo lo prenderam para ir a morrer,

La infanta, que tal soube, Vem a correr a gritar: - «Senhor pae, nã lo mateis; Quero com elle casar: E, se lo mataes, matae-me, Que tambem quero acabar.»

EI-rei chama seu conselho. Que se quer aconselhar; Mas los grandes de palacio Fallavam sem desatar; Nem el-rei nem la infanta Queriam descontentar, Que, s'el-rei então reinava, Viria Ia filh' a reinar.

Mas el-rei por fim falIou Como quem sabe falIar: - «Criei-lo de pequenino, Nã no hei de degolar; Se mando morrer la filha, Ninguem tenho a quem herdar... Ide, fidalgos da côrte, A Leonardo soltar;


Ide todos de cortejo. Pera com elle voltar. Hoje mesmo na igreja Elle e ella hão de casar_»

E tudo se fez como el-rei mandou.

III

RENAUD DE MONTAUBAN

VARIANTE I

Conde de Montalbano ou Conde nino

Lo conde morreu nas guerras, Grandes guerras d'algum dia; Seu filho, lo conde nino, Nos paços d'el-rei se cria; E no condinho creado La infanta se revia: Todos lo sabem na côrte; Só el-rei lo nã sabia.


Indo lo conde passando, Pela mãe foi incontrado: - «Teu pae, quando falleceu, Me deixou incommendado Qu' a el-rei eu t’intregasse, P'ra d'el-rei seres creado. Olha, qu'em tracto d'amores Paço real é sagrado;

E, se tu lá tens amores; Fuge, filho malfadado.»

Mas nem lo conde fugiu, Nem emendou lo peccado; Mais namorou Ia infanta, Mais foi della namorado; Passavam horas e horas N'um laranjal inrelvado: - «E se de vós, meu amor, Eu deixar de ser amado?» - «Só quando lo mar for serra, Ou la serra fôr a nado.»

No comenos, outro conde, De quem elle é invejado, Passa, vê e a el-rei Tudo conta, bem contado: - «Vind', el-rei senhor, cá ver Elle com éll' abraçado,


Lo conde mail la infanta No laranjal inrelvado.»

E el-rei foi, e cramou logo:

- «Correi, correi, meus creados; Ide lo cond' agarrar, Chamem los do meu conselho, Que me quero conselhar.»

Lo conde foi preso, e el-rei disse aos seus bispos:

- «Vinde cá, lidos prelados, Eu vos quero perguntar: Este peccado d'amor Como lo vou castigar?»

Respondem elles:

- «Paço real é sagrado; Acima só lo altar; Um reo I de tamanha culpa Caro lo deve pagar. Mandae-Ihe vasal los olhos Com que veiu namorar; Mandae-Ihe rasgal la bocca Com que la veiu beijar; Mandae-Ihe quebral los braços Com que la foi abraçar; Mandae-lhe quebral las pernas


Com que se foi ao logar; Mandae.lh' arrancar do peito Coração de tal peccar; Tudo com qu'elle peccou Mandae-lhe tudo cortar; E no laranjal relvado Que vá, por fim interrar: Fique-lh' um braço de fóra Com lettreiro p'ra lembrar; Las lettras rezem assim Em romance de rezar: «Justiça del-rei mandou, N'este conde justiçar; Morreu por crime d'amor, Amor de mortal peccar.»

Mas el-rei teve dó e disse:

- «Criei-lo de pequenino; Basta ir a degolar; Ella, só por ser quem é, Nã na mando já matar.»

La mãe delle, que tal sabe, Doida lá vae a chorar. Com ser velha, corre tanto, Que nã na ha alcançar. Quando chegou ao tronco Ia quas' a 'rebentar;


E perguntou ao conde preso:

- «Ó filho destas intranhas, Quem te poz neste logar?»

E elle respondeu-lhe:

- «Um treidor mexeriqueiro Que foi de mim delatar, Por me ver mail la infanta No laranjal a brincar.»

La condessa se poz a carpir, e fallou esta falla:

- «Ai, nunca teu pae mandasse Na mão deI-rei t'intregar! Ai, nunca te fôra eu Pôr-te na côrt' a crear! Ai, filho destas intranhas, Eu como t' hei de livrar?!» - «Oiça-me cá, minha mãe; Va-m' um recado levar.» - «Aqui me tens, filho meu. A quem no hei d'ir eu dar?»

Elle disse, e ella foi, Tão depress' a camínhar, Que, com ser velha, ninguem, Ninguem na pód' alcançar.


E, chegada, onde la infanta 'stava, lhe dsse:

- «Que vos salve Deus, lnfanta. Filha do rei a reinar, Por amor de vós, Infanta, Vae meu filho degolar.»

E ella, que tal ouviu, Poz-s' a correr sem parar. Com seus cabellos cahidos. Suas roupas a 'rrastar.

Encontra-se c'o pae, e faltam:

- «Deus vos salve, senhor pae, Neste reino a reinar, Que fez Conde Montalbano Pera ir a degolar?» - «Outra filha qu' eu tivéra P'ra no meu throno sentar, Tambcm vós, Dona Infanta, Eu mandaria matar.» - «Lo pae delle vos serviu Nas guerras a batalhar; Lo filho é meu marido; Só falta ir ao altar. Se vós lo mataes agora, Quem me ha d'a mim honrar? Que marido acharei eu, Pera pôr em seu logar?


Quem será pae deste filho, Neste meu ventr' a pular'!»

Responde el-rei:

- «Arrenego de ti, filha, E desse teu porfiar; Se são mulher e marido. Nã los quero separar.»

Lo Conde de Montalbano Lá vae solto, e vae casar; Lo conde mexeriqueiro Lá vae preso a degolar; E lo conselho d'el-rei Vae los noivos companhar, Que s’el-rei agora reina, La Infant' ha de reinar.

VARIANTE II

Conde de Montalvão

Morreu lo duque nas guerras D'antigo tempo passado; Dos quatro filhos varões,


Que tinham delIe ficado, Cada qual tev' um logar, Que por eI-rei lhe foi dado. Ao filho mais velho deu Seu real almirantado; Ao filho segundo deu Um muito rico bispado; Ao filho terceiro deu La mordomia d'estado; Esguardou p'r'o derradeiro De Montalvão lo condado! Este, por nino, ficou Pera ser d'eI-rei creado: E era d'el-rei mui qu'rido; Da infanta namorado; Com ella passava horas N’um campo bem inrelvado.

Mas d'um invejoso mau Foi est' amor espreitado; A el.rei lo invejoso Tudo contou bem contado; E el-rei foi, e los viu Ella com ell’ abraçado, Ell' e ella se beijaando No campo bem inrelvado.

E disse:

- «Prendam-me já aquell' homem,


Nã no deixem escapar, Treidor de tamanha culpa, Caro lo ha de pagar. Los saiões da minha côrte, Que se vão apparelhar; Um frade, bom confessor, Que lo vá já confessar; A'manhã de manhãsinha Quero lo ver inforcar.»

Estando lo conde preso, Pola mãe foi procurado: - «Oh! que maldictos amores De ti filho malfadado!» - «Por elles vou padecer. Sendo lo menos culpado.» - «E teu pae quando morreu, Que deixou recommendado Que t'intregass' a el-rei, P’ra oom elIe seres creado!"

Abraçou-se ao filho, e disse;

- «Ai, filho, p'ra te livrar, Cá formei minha tenção; D'onde lo teu mai proveiu Póde-te vir salvação. Aqui tens esta viola. Ó meu filho de benção; Cant' ahi antigas trovas;


Em palacio t'ouvirão.» - «Ai Jesus, ai minha mãe" Que nã tendes coração! Vêl lo filho d'oratorio, Mandal-lo cantar centão!» - «Canta, canta, filho meu; Canta, filho de benção; Nas trovas que tu deitares Pód' estar la salvação. Canta, canta, filho meu; Canta, filho de benção, Trovas que teu pae deitava Na noite de Sã João; Talvez que dell' em palacio. Por ellas se lembrarão.»

Toca lo conde na viola, e canta assim:

- «É linda manhã de flores La manhã de Sã João; Visital lo seu amor Todol los rapazes vão, Uns, com cravos; outros, rosas; Outros, com mangericão... Só eu, triste condemnado. Aqui 'stou nesta prisão! Eu nã sei qnando amanhece, Nem quando las noites são; Só se cantam passarinhos,


Ou se caladinhos 'stão.»

El-rei ouviu este cantar, e disse á filha:

- «Vinde cá, ó filha minhá; Ouvir sirena cantar; Como tão saidosa canta La sirena de la mar!» - «Senhor pae, não é sirena; É lo conde a se chorar. Senhor pae, nã lo mateis; Quero com elIe casar.»

- «Criei-lo de pequenino; Vou já mandal-lo soltar. Ide, fidalgos da côrte, P'ra lo vir acompanhar. Toma-lo tu por marido; Genro lo quero tomar.»

Logo se foram casar: e lo invejoso, que los delatou, só por muitos pedidos teve perdão da forca, mas foi desaforado.


VARIANTE III

Conde de Montalvar

Conde Montalvar nã dorme; Nã pára no cabeçal ; Salta pinotes na cama, Que nem galeão real: E brada por seus creados, Á pressa, não devagar, Que lhe dêem de vestir, Ginete p'ra cavalgar.

Fina camisa lhe trazem De se fechar n'esta mão, Cozida por tres donzelIas Na manhã de San João; Tambem lhe deram vestido, Recamado a primor, Que nem el-rei, com ser rei, Nã lo vestia melhor: No seu ginete puzeram, Á roda do peitoral, Sept' estrellas d'oiro fino, Septe do branco metal; E meteu duas nos pés, Além das do peitoral: Tres ourives las lavraram


N'uma noite de natal.

E cavalgou no ginete, Depressa, não devagar, Que Ia infanta já 'stava Na janell' a vigiar: - «Oh, que lindo corpo d'homem!...» Não p'ra com mouros brigar.» - «P'ra melhor lo tenho eu; P’ra vos servir e guardar,»

- «A pé, a pé, conde nino. Depressa, não devagar; Meia-noite já é dada; Vem commigo te deitar.»

Nisto um mexeriqueiro Vem, e los ouviu fallar: - «Palavras que vós, dissestes A el-rei las vou contar.» - «Nã vades, mexeriqueiro, Nã vades mexericar, Que vos dou este meu manto, Tão rico que nã tem par.» - «Na quero lo vosso manto; Deus vol Io deixe gosar: Palavras que vós dissestes A el-rei las vou contar.» - «Mexeriqueiro, nã vades, Nã vades mexericar,


Qu'eu vos dou tanto dinheiro, Que lo nã possaes contar.» - «Nã quero vosso dinheiro; Deus vo lo deixe gastar: Palavras que vós dissestes A eI-rei las vou contar.» - «Nã vades, mexeriqueiro, Nã vades mexericar, Qu'eu vos dou minha sobrinha, Pera comvosco casar,» - «Nã quero vossa sobrinha; Deus vol la deixe crear: Palavras que vós dissestes

A el-rei las vou contar.» - «Nã vades, mexeriqueiro; Nã vades mexericar, Qu'eu por dote vos darei Las terras de Montalvar.» - «Nã' quero las vossas terras; Deus vol las deixe lavrar: Palavras que vós dissestes A el-rei las vou contar.» - «Nã vades, mexeriqueiro, Nã vades mexericar: Se nada qu'reis receber, Nã lo queirais vós pagar.»

Dava el-rei audiencia; Na mão seu sceptro real.


E apparece lo mexeriqueiro.

- «Quem és tu, e que me queres?» - «Vosso vassallo leal. Deus vos salve, rei senhor, Neste reino a reinar: Vi vossa filh' esta noite Mail lo conde ir-se deitar.» - «Se lo dissesses secreto, Te mandava premiar; Mas em pruvico lo dizes; Cond' e tu vão a matar.»

E mandou prendel lo conde, Pera ir a degolar;

E mandou prendel lo outro. Pera ir a inforcar.

Lo conde pediu um padre, Que se qu'ria confessar; Appar' céu-lhe seu irmão, Que era padre d'altar.

Lo conde abraça-se com elle, e falla-lhe assim:

- «Rico irmão da minh' alma, Que bem me pódes saIvar. S'esta carta qu'escrevi


Vaes á infanta levar.» - «Rico irmão da minh' alma, Eu la irei intregar; Fosse caminho p'ra dias, Em horas lo hei d'andar.»

Sentada no seu estrado. Bem longe de mal cuidar, La infanta se penteia, Suas tranças a 'nastrar.

Chega lo irmão do conde, e diz:

- «Led’ esta carta, senhora. Depressa, não devagar; Se não acudis depressa, Vae lo cond' a degolar.» - «Ido-vos d'ahi, bom padre, Que de mim vindes zombar.» - «Lêde na carta, senhora Las véras do meu fallar.»

Lá vae, cabeIlos á solta, E vestidos a 'rrastar. Com suas aias atraz, La, infant'. a caminhar. E, quando se foi chegando, Ouviu assim pregoar:

Apregôa lo rneirinho:


- «Mandam justiças dei-rei:, Neste conde justiçar; Morre por crime d'amor, Amor de mortal peccar.»

Chega la infanta, e crama:

- «Meirinho, qu' hi apregôas, Pára já d'apregoar; Se não, da parte del-rei, Língua te mando cortar.» E lo meirinho ficou A tremer, e sem falIar. - «Duras justiças del-rei, Parae ahi ness’ andar; Se não, da parte deI-rei, Pernas vos mando cortar.», E las jutiças ficaram A tremer, e sem andar.

E foi mais adiante, e disse:

- «Ó vós, guardas de palácio, Arreda, deixae-m' intrar; Se não, da parte del-rei, A todos mando matar.» E los guardas, que tal ouvem, Todos, todos a 'rredar, E dizerem uns p'r'os outros:


- «Vae lo seu conde livrar.»

E, chegando onde el-rei estava, agiolhou, e disse;

- «Deus vos salve, pae e rei, Neste reino a reinar: É innocente lo conde; Nã lo mandeis degolar.»

Responde el-rei:

- «Tu com eIle, ambol los dois, Junctos se foram deitar. Outra filha qu' eu tivera P'ra lo meu reino herdar, Tambem a ti, porca filha, Te mandaria matar.»

Responde ella:

- «Quem vol-o disse mentiu, No fogo lo vou jurar. Que lo conde é meu amor Escuso é perguntar; Mas, se ai vos dizem, mentem,

No fogo lo vou jurar. Senhor pae e rei senhor, Deixae-me lo ir soltar; Dae-me-lo vós por marido;


Com elle quero casar.» Falla então el-rei, já compadecido:

- «Poi lo queres por marido, Genro lo quero tomar; Aqui tens meu sceptro d'oiro; Lo teu conde vae livrar.»

Foi la infanta a correr de sceptro na mão, abraçou-se ao conde, e disse:

- «Vem tu d'ahi, conde nino, Vem já commigo casar. E tu, mau mexeriqueiro, Lo que vinheste ganhar?» - «Senhora, ganho la morte; Mas vida me podeis dar.» - «Que possa ou que nã possa, Nã te quero perdoar. Alto quijeste subir; Pois d'alto te vão deitar.»


VARIANTE IV

Conde de Montes-Claros

Altos vão los sept’ estreIlos; Los gallos amiudar, E conde de Montes-Claros Na cama sem descançar, Sempr' a dar voltas e voltas, Que nem galeão na mar.

Chamou elle por seu creado. Por seu creado leal; Que lhe desse de vestir, Pera já s' alevantar; E seu cavallo trouvesse. Depressa, não devagar.

Montado no seu cavallo, Compeçou de caminhar; La infanta lo esp'rava Da porta no limiar. - «Que forte corpinho, conde, P'ra investir e brigar!» - «Lindo lo tendes, infanta, Pera despir e brincar.» Palavras não foram dictas. Eram mil beijos a dar,


E los abraços então, Nã los havia contar.

Vem de lá um onzeneiro Sua onzena tractar: Achou abraços e beijos. Mas nã los poude onzenar. E lo conde e elle fallaram assim:

- «Umas coisas como estas Nã são p'ra ninguem contar.» - «Umas coisas como estas A el-rei vou delatar.» - «Umas coisas como estas; A el-rei nã vas contar. Por coima dou minha capa; Peso d'oiro t' ha de dar.» - «Eu nã quero vossa capa; Nã la posso incoimar: Umas coisas como estas A el-rei vou delatar.» - «Umas coisas como estas A el-rei nã vas contar; Por coima, dou meu cavallo, Conforme tu lo vês 'star.» - «Tão pouco vosso cavallo, Nã lo posso incoimar: Umas coisas como estas A el-rei vou delatar.» - «Umas coisas como estas


A el-rei nã vas contar; Por coima dou Montes-Claros, Onde tenho meu solar.» - «Nem dal-os vós lo podeis, Nem eu los posso coimar: Umas coisas como estas A el-rei vou delatar.»

E foi, e disse a el-rei:

- «Feias coisas, rei senhor, Vos venho eu delatar: La infanta mail lo conde Eu los vi com que brincar! Tantos abraços e beijos, Que nã los pude contar.»

Responde el-rei:

- «Atrevido onzeneiro, Isto não é onzenar. Se m'o disesses secreto, Algo te mandava dar; Mas em pruvico lo dizes, Vou-te mandar inforcar: E lo conde, qu' é fidalgo, Ess' ira a degolar.»

La infanta que tal soube, Vae depress' a caminhar,


Ao vento soltas las tranças, Que compeçav' a' nastrar. Tamanhos ais ella dava, Que los ouviu el-rei dar: - «Que cramas, ó filha minha; De que te 'stás a 'ggravar»» - «Se me matam Montes-Claros,

Também eu me vou matar.» - «Septe condes ha na côrte; Outro te dou p'ra casar.» - «Todos esses condes junctos, Todos podeis inforcar. Se me matam Montes-Claros, Tambem eu me vou matar, E vós ficareis sem filha P'ra vosso throno herdar. Este cond’ é meu marido, Meu marido natural. E por vós jogou la vida Nas guerras de Portugal.» - «E creei lo pequenino... Não irá a degolar. Aqui tens meu sceptro d’oiro; Vae lo, tu filha, soltar.»

La infanta, que tal ouve, Nã corre, vae a voar; La fidalguia da côrte Mal la pód' acompanhar.


E lo conde já lá ia Na praca, p'ra degolar; Lo meirinho da justiça, 'Stava assim a pregoar: - «Manda justiça del-rei Este conde justiçar; Morre por crime d’amor, Amor de mortal peccar.»

Neste comenos, chega la infanta e crama:

- «Meirinho, qu' hi apregoas,

Pára já d'apregoar, Se não, da parte deI-rei, Lingua te mandu cortar.» E lo meirinho ficou A tremer e sem fallar. - «Dura gente da justiça; Parae ahi já d’andar, Se não, da parte del-rei, Pernas vos mando cortar.» E la justiça ficou A tremer e a olhar. - «Ó vós guardas, qu'ahi ides, Arredae, deixae andar, Se não, da parte del-rei, A todos mando matar.» E los guardas a tremer, Todos, todos a 'rredar.


- «Vem-te d'ahi, conde meu, Vem já commigo casar. E tu malsim onzeneiro. Lo que vinheste ganhar?» - «Senhora, ganho la morte, Se vida me nã qu’reis dar.» - «Quando lo conde pediu, Tu não quizeste calar; Agora, que tu me pedes, Nã quero por ti fallar.»

Justiça que se contente, Ficou um p'ra inforcar: Onzeneiro lá se vae Nos infernos onzenar.

VARIANTE V

Conde Claros

Conde Claros, com amores, Nã podia descançar, E dava pulos na cama, Nem gavião a pular.

Chamava pelo seu moç, Depressa, não de vagar,


Que lhe désse de vestir, De vestir e de calçar. Vestiu camisa tão fina Que se fechava na mão, Lavada por tres, donzellas Na manhã de Sã João. Mandou sellar seu cavallo, Que lo não houvesse igual; Duzentas e mil, campanas, Á roda do peitoral: Las duzentas eram d'oiro; Las mil do branco metal Seu vestido de brocado Luzia que nem crystal.

La infanta, da janella, Todo lo 'stav' a mirar: - «Mal empregado corpinho, Pera com mouros brigar!» - «Melhor lo tenho, senhora Pera comvosco brincar.»

E foram p'r’o rosal verde Ambos á sombra folgar.

Nisto vem um caçador, Que não houvera passar.

Diz-lhe Conde Claros:


- «Escuta-me, caçador, Se me quizeres 'scutar: Lo que vist' aqi agora A el-rei nã vas contar; Prata e oiro te darei, Quanto possas carregar; E darei minha sobrinha Pera comtigo casar; E tambem, em dote della. Las terras de Montalvar; Essas terras são tamanhas, Que da serra dão na mar.»

Responde lo caçador:

- «Nã quero vossa riqueza, Nem sobrinha p'ra casar, Nem essas tamanhas terras, Condado de Montalvar: Lo que vos ouvi e vi A el-rei la vou contar.»

E vae bater á porta de palácio, e na presença do rei agiolha, e diz:

- «Deus vos salve, rei senhor; Nesse throno de reinar, Aqui vos dou umas novas, Que nã las quizera dar, La infanta mail lo conde Ambos los vi a brincar '.


Á sombra do rosal verde, Como nã deviam 'star.»

El-rei então repricou:

- «Se com verdade e secreto Lo vieras delatar, Sancta palavra de rei, Que tença t’houvera dar: Mas pruvico lo disseste; Vaes porisso inforcar: Irá também conde Claros; Por seu crim’ a degolar.»

- «Vem cá, tu, pagem da lança, Vae la infanta chamar; Que depressa, venha já Sua fama resgatar.»

Vae lo pagem, e diz á infanta:

- «Que Deus vos salve, senhora; Filha deI-rei a reinar, Aqui vos dou umas novas, Que vo las nã qu'ria dar. Caçador mexeriqueiro

Foi a vosso pae contar, Senhora minha, que viu Vós mail lo cond' a brincar


Á sombra do rosal verde, Como nã deviam 'star. Lo caçador, que lo disse, Vae por ello inforcar; Conde Claros, que lo fez, Por ello vae degolar; E, tocant’a vós; senhora, EI-rei vos manda chamar, Que vades depressa, já, Vossa fama resgatar.» Palavras não eram dictas, La infant' a caminhar, Com seus cabelIos cahidos, Que tinha por intrançar; Seu manteo dependurado, Sem lo poder conchegar: - «Afast', afasta', villões; Caminho, quero passar!» Quantos la reconheciam Todos lhe davam logar; Quantos nã la conheceram Ficavam a perguntar.

E chegou ao pé do pae, e disse:

- «Deus vos salve, pae e rei, Nesse throno a reinar. Como hei d'eu ir agora,

Minha fama resgatar,


Se, pela morte do conde, M'acabaes de desfamar? Nã posso jurar, qu'é falso; Iria falso jurar; Resgate da minha fama Nã no ha senão casar.» - «Septe condes tem la côrte; Escolhe qual t'agradar.» - Todol, Ios outros bem podem Ir já hoj' a inforcar. Com aquelle me deshonrei; Só aquell' me pód' honrar.» - «Arrenego de ti, filha, No teu tanto porfiar; Vae tomál-o por marido; Vae-te com ell’ já casar.»

Lo caçador poz-se então de mãos erguidas a pedir:

- «E a mim, real senhor. Mandae-me vós, perdoar.»

Mas el-rei disse:

- «Corda da forca te insine A ouvir, ver e calar.»

E foi inforcado.


VARIANTE VI

Conde Alarcos

Eu passei n'um logarinho (Má hora, peior lagar). Eu bem vi lo cond' Alarcos Mail la infant' a brincar: De beijinhos e abraços Nã los havi' apartar; Como marido, mulher, Cada qual a redobrar.

E então assim fallámos (Nunca lhe foss' eu fallar): - «Estas coisas, cond' Alarcos; Hei d'a el-rei ir contar.» - «Tu cal- te, mexeriqueiro; Em paga do teu calar, Meu navio te darei, Em que tu andes na mar.» - «Nã quero lo seu navio, Qu' el-rei Ih' ha de secrestar: A el-rei vou dizer tudo; Maior tença m' ha de dar.» - «Tambern te dou minhas joias; Vaes com elIas fidalgar; São de pedras, prata, oiro,


Que las mandei eu lavrar.» - «Nã quero las suas jóias, Qu' el-rei Ih' ha de secrestar: A ei-rei vou dizer tudo;

Maior tença m' ha de dar.» - «Tambem te dou minhas terras, Las terras de Mntalvar; De tamanhas qu’eIlas são, Descem da serra na mar.» - «Nã quero Ias suas terras, Qu'el-rei lh' ha de secrestar; A el-rei vou dizer tudo; Maior tença m' ha de dar.»

E logo fui a palacio (Má hora, peior Iogar); A el-rei fui dizer tudo (Nunca lhe foss' eu fallar).

Disse el-rei:

- «P'ra que ninguem mail lo saiba; Vou-te mandar inforcar; Lo conde, p'ra que nã falle, Esse vae a degolar.»

Preso eu, lo conde preso, Cada qual em seu logar, Desatei eu a carpir,


Poz-se lo cond' a cantar: - «Por amor de ti infanta, Aqui 'stou neste penar; Por amor de ti infanta, Vou d'aqui a degolar.»

Palavras não eram dictas,

La infant' a caminhar, Vestidos meio vestidds; Cabellos por ennastrar; E, posta aos pés do pae; Se desatou a chorar: - «Deus vos salve, pae e rei; No reino a governar; Daitae-me vossa benção, Se me qu'reis abençoar. Que vos fez lo cond' Alarcos; Pera ir a degolar?» - «Lo conde te deshonrou; Sua culpa vae pagar.» - «Toda la culpa foi minha, Que lo mandei invitar; Se minha honra me deve, Com elle quero casar.» - «Pois, se lo queres por marido; Não irá a degolar. Aqui tens tu lo meu sceptro, Vae lo tu mesma soltar.»


Indo ella a correr, incontrou um tio seu, que lhe disse;

- «Aonde ides, vós sobrinha, Pela rua, ness' andar; Vestidos meio vestidos, Cabellos por ennastrar?» - «Deixae-me, tio, deixa-me; Vou cond' Alarcos soltar. La que nã vale ao marido Que mulher s'ha de chamar?

- Arreda, fugi, villões; Caminho, quero passar! E vós guardas, qu'ahi 'staes, Arreda, deixae-me intrar!» E los villões mail los guardas, Todos, todos a 'rredar.

E logo introu pela prisão dentro a bradar:

- «Aqui me tens, cond' Alarcos, Acabou lo teu penar! Por amor de mim infanta, Nã vaes tu a degolar; Vem ta d'ahi, cond' Alarcos, Vem já commigo casar.»

Vem com elles la nobreza, Que la foi a 'companhar. La infanta, que me viu,


Compeça de perguntar: - «Tu que lucraste, mofino; Com tanto mexericar?» - «Eu tudo perdi, senhora, Se me nã qu'reis perdoar.» - «Tanto lo conde te dava, Nada quijest' acceitar; Hoje pedes só perdão; Nem esse t' houvera dar; Mas dia de casamento Não é dia d'inforcar.»

Por um triz nã fui á forca; Mandou-m' el-rei perdoar.

IV

AUDA

VARIANTE I

Dona Alda

Dom Aldonso foi á guerra, Lá p'ra bandas de Leão; Em sua casa, Don' Alda


'Stá sentada no balcão: E passou pelo caminho Lindo conde, Dom Roldão. - «Senhora, daes-me pousada, Por esta noite, mais não?» - «Vinde, vinde, lindo conde, Por uma só noite, não... Meu marido foi p'r'a guerra, Onde tantos morrerão; Que lá lhe dê pelas pernas Mau pelouro de falcão; Má lança lo atravesse No lado do coração.»

Dom Roldão apeou-se, metteu seu cavallo na estrebaria, e introu com Dona Alda n'alcova de dormir ella e seu marido.

Nisto, chega Dom Aldonso, Em seu cavallo, ao portão.

E saltou delle em baixo, subiu para casa, e disse á mulher (porque elle já sabia que ella tinha lá mettido Dom Roldão):

- «Alda linda, Alda linda. Alda linda, rica flor. Má réstia de sol te deu, Que demudaste la côr; Ou isso é mal de morte, Ou mau peccado d'amor.» - «Nã me sinto mal de morte.


Nem mau peccado d'amor. Fui eu que perdi la chave Do meu forte contador.» - «Nã fôra ella de prata, De prata eu la daria; Se de prata ella fosse. De bom oiro se faria... Que cavallo é aquelle A rinchar na 'strebaria?» - «É vosso. senhor Aldonso;... Meu pae vol lo mandaria.» - «E que armas são aquellas? Quem las aqui despiria?» - «São vossas senhor Aldonso;... Que meu irmão las traria.» - «E que bargant' é aquelle, N'alcova em qu' eu dormia?»

Nisto, ia-se logo a matar Dom Roldão. Mas Dona Alda metteu-se de rneio, e disse:

- «Ai, nã mateis vós lo conde, Nã mateis lo conde, não!» Matae-me vós só a mim, Que vos armei la treição.»

Mas lo marido respondeu:

- «Alda linda, vae-t'imbora, Onde eu te nã veja mais...


Que fica na minh’ alcova Quem me pagará lo mais.»

E matou lo conde, sem ter alma de matal-la a ella.

VARIANTE II

Dom Aldonso

- «Meu marido foi á caça. Pelos montes de Leão; Que má dôr lhe dê nos perros, Má dôr dê no falcão. Dormide commigo, conde; Que los montes longes são.»

Mal lo cond' entra n'alcova, Dom AIdonso no portão.

- «Alda linda, Alda linda, Lo, que tendes, linda flor, Que, d'ind’ agora p'ra cá, Vós demudastes de côr? Isso é sina de morte, ou tendes outro amor.» - «Sina de morte não é,


Nem tenho outro senhor... Foi que eu perdi la chave Da porta do toucador.» - «Se fosse chave de prata, Ou d'oiro, e de lavor, De prat' ou d’oiro la déra, No dobro do seu valor.»

Palavras não eram dictas, Cavallo que relinchou: - «Que ginete será ’quelle, Se nenhum’ aqui ficou?» - «Vosso é, senhor Aldonso, Que... meu pae vol lo mandou.» - «E que armas serão estas, Se nenhum' aqui ficou?» - «Vossas são, senhqr Aldonso;... Meu irmão las inviou.» - «E quem aquelIe galante, Qu' esta alcova devassou?»

Palavras não eram dictas, Corre de punhal na mão...

E ella se lhe deita aos pés:

- «Nã mateis lo conde lindo. Nã mateis lo conde, não; Nã mateis, senão a mim, Que sou quem vos fez treição.»


- «Pois então morrei, treidora; Que do crime vos gabaes. Cá no toucador me fica Quem me pagará lo mais.»

E matou los ambos.

V

AUDINA

VARIANTE I

Aldina

Foi um rei: tinha seis filhas, Alvas que nem prata fina; Namorou-se da mais moça. Que lhe chamavam Aldina.

- «Bem podéras, tu Aldina; SeI la minha namorada; Dorm' uma noite commigo, Que tu serás bem casada.»

- «Nã permitta Deus do céu,


Nem na Virgem consagrada Que sendo eu vossa filha, Seja vossa namorada.»

Quando el-rei tal ouviu; Foi n’uma torre fechada, A pão duro como pedra, Agua peior que salgada.

Ao cabo de septe annos; Aberta la porta 'stava; E logo se foi Aldina Onde las irmãs esp'rava: - «Ai, irmãs da minha vida, A quem eu tanto amava, Dae m' uma gotinha d'agua, Que vou espedir minh' alma.» - «Vae-te por ahi, Aldina, Aldina desgraciada; Se nosso pae lo soubesse, Septe vidas nos tirava.»

Fôra por ahi Aldina Aonde sua mãe ‘stava: - «Rica mãe da minha vida, A quem eu tantot amava, Dae.m' uma gotinha d'agua, Que vou espedir minh' alma.». - «Vae-te por ahi, Aldina, Aldina desgraciada;


Por amor de ti, Aldina

Septe annos mal casada!.

Fora por ahi Aldina Aonde lo seu pae `stava: - « Rico pae da minha vida, A quem eu tanto amava. Dae-m' uma gotinha, d'agua, Que vou espedir minh`a alma,» - Correi, vassallos, correi, Trazei agu` a Don' Aldina, Em garrafinhas de oiro, E copos de chrystal fina.»

Quando chegaram com agua, Aldina jã morta 'stava, Toda cercada de luzes, Quê Deus do ceo lhe mandava; Uma font' á cabeceira, E la Virgem lh'a minava.

VARIANTE II

Galdina

- «Galdina, minha Galdina, Minha rica prend` amada,


Tu tens sido minha filha; Vaes ser minha namorada.» «Nã permitta Jesu christo, Nem na hóstia consagrada, Ser manceba de meu pae; De minhas irmãs, madrasta.»

Mal 'lo diss', el-rei la prende N'uma torre castêllada ;' Um ,quarto de pao por dia; De beber, agua salgada.

Na manhã dó outro dia, A' janela se chegava;. E de lá viu sua mãe, E á mãe assim fallava: - Por Deus vos rogo, vós mãe Por Deus vos venho rogar, Dae-m' uma gotinha d'agua, P'ra minha sêde matar.» - « Vae-te d' ahi. Ó Galdina. Triste filha malfadada, Que, por 'mor de ti,Galdina, Eu me vejo mal casada."

Galdina, com grande pena, .Da janella s'arredava. O' coítada de Galdina, Que de sêde se finava !


Na manhã do outro dia, A' janella se chegava ; E de lá viu las irmãs, A's irmãs assim fallava: -« Por Deus, irmãs, eu vós rogo,

Por Deús vos venho rogar; Dae-m' uma gotinha d' agua, P`ra minha sede matar.» V ae.têd'ahi, ó Galdina.; Bem na quizeramos dar; Mas, se nosso pae soubesse. Ah nos ia fechar.»

Galdina, com grande pena. Da janella,s' arredava. O' cuitada de Galdina Que de sêde' se finava!

Na manhã do outro dia, A' janella se chegava; E de lá viu seu mau, pae, E ao pae assim fallava; - «Por Deus vos rogo, vós pae, Por Deus vos venho rogar. Dae-m' uma gotinha d' agua, Pra' minha sêde matar;. Minh' alma vae espedir; A' sede vou acabar.» O'cuitada de Galdina.


Mais nã podia rogar!

E lo pae, se pae ell`era, Quedo, mudo, sem fallar! - « O`cuitado de vós, pae; Onde voss`alma vae dar! Eu, que fui la vossa filha, Quero, pae, ... vos perdoar.»

El-rei então arrependeu-se, e disse:

« Meus creados, agua, agua, Depressa, não devagar.»

Mas Galdina era morta, Quando agua lhe chegava. La Virgem l' abençoou; Anjo do ceo la Lo diabo, de raivoso, No inferno pragujava.

VARIANTE III

Gaudina

Tinh', el-rei suas tres filhas, Lindas que mais não havia: Namora-se da mais velha,


Que Gaudina se nomià; -« Quero eu,que tu:;Gaudina, Sejas la minha amasía.» - «Nã digaes vós isso, pae; Deus nã lo consentiria. O`cuitado de vós, pae Onde voss`alma cahia!» - « Poil, las penas do inferno Eu, por ti, las penaria.»

- Ai, ó minha rica mãe. Acudi-me neste dia; Esse pae, que Deus me deu, Agora me commettia.» - « Nã lhe digas tu que não; A ter com eIl' 'eu iria; Vestida com teus vestidos, Eu com elle m`haveria.» - «Pois, senhora mãe, que vá, Por mim nã m'arrriscaria.»

El-rei nã reconheceu la rainha, e disse:

- « Qu' assim 'stavas, desgraçada, Nunca eu tal cuidaria; Nem las penas do inferno Por ti nã las penaria.»

Deu-se la rainha a conhecer, e respondeu:


«Quando dormiste comigo Naquelle primeiro dia, Eu minha honra te dei; Agora, nã la trazia.»

Então, cramou El-rei:

- «Maldicta seja la filha Que lo seu pae denuncia!»

E la rainha respondeu:

- Chegou-se p'ra sua mãe Que seu pae la commettia.»

E logo presa Gaudina N'uma torre gradeada, Ahi penou hor'a hora, Té su' hora ser chegada.

Pela Virgem, Mãe de Deus, Foi Gaudina mortalhada; Por um anjo, hor'a hora, Foi ua eç' acompanhada; E tinha na mão direíta Uma carta bem cerrada: Vieram condes, marquezes, Mão cada vez mais fechada; Só nas mãos de sua mãe Foi essa carta largada;


Ella s'abriu por si mesma; Assim dizia rezada: - « Nã se me dá de morrer; Minh' alma 'stá resgatada, Só se me dá de meu pae; Su' alma é condemnada.»

El-rei, quando talouviu, Todo ficou demudado, Largou sceptro, largou c'roa. Largou todo seu estado.

E disse:

- «Vem cá, meu filho herdeiro,

Principia teu reinado; Qu'eu me vou; em penitencia, A resgatar meu peccado.»

E recolheu-se a um mosteiro onde se metteu a monge, e lá acabou arrependido.

VI

VARIANTE I

Don' Anna


Conde pae morreu nas guerras Do tempo del-rei passado; Conde filho, de menino, Era no paço creado ; E da infanta Don' Anna Ell' era lo namorado: Passavam tardes inteiras N/um verde campo relvado.

Indo elle p'ra palácio, Foi pela mãe incontrado.

E disse.lh' ella:

-« Por pedidos de teu Pae; Tens del-rei sido creado, Agora te peço eu, Fuge, filho malfadado! Que da infanta Don' Anna; Bem no sei, es namorado: E quem põe olhos tão altos D'alto póde ser deitado; Pratos d'oiro teem peçonha, Ou podes ser degolado; Que no tracto dos amores Paço real é sagrado.»

Amoestado da culpa, Fugiu ell`, a bom recado; No cabo d'uma semana,


A suas terras chegado.

Mas don' Anna, que lo soube; Toda chorosa, carpia, Perguntando á fortuna De que sorte viviria? La fortuna respondeu Que com tempo saberia. - « Fica-te imbora, fortuna; Eu, por mim; nã ficaria.»

E lá vae, d'arnor penada; Tris-t' infant' a caminhar; De dia, polos caminhos; De noite, sem descançar. No fim d'um anno, chegou;

E compeç' a perguntar: - «É aqui seu senhorio, Aqui é lo seu solar ?» - «É aqui seu senhorio; Aqui é lo seu solar; Mas anda venalteando, Nos montes a montear.»

Palavras não éram dictas, EIle na port' a chegar: - «Que fazes aqui, infanta; Que vens tu aqui buscar? -« Minha honra t' intreguei;


Venho comtigo casar.» - «Já tenho mulher e filho; Tenho outr' em teu lagar.»

Cahiu elIa pera traz; Ali veiu.acabar: E elIe queda ali, Sem falla poder fallar!

Mas fallou sua mulher, Chamada, Anna Guimar: - «Vinde cá, bom ermitão, Este caso 'consultar; Vinde cá, bom ermitão, Eu vos' quero perguntar: Tamanho crime d'amor 'Lo posso eu perdoar?» Vem lo ermitão, e diz:

- «Morreu sem rependimento, Morreu em mortal peccado; Quem assim morre d'amor Nunca s'interr' em sagrado; Interre-s' em campo verde, Onde vae pastal lo gado; Fique-Ih`um braço de fora Com seu lettreiro pregado; No lettreiro lettras grandes, Que seja bem declarado: «Quem assim morreu d'arnor" Morreu, em mortal peccado.»


VARIANTE II

Cavalleiro nã namores

- «Cavalleiro, nã namores Filha del-rei teu senhor; Tua vida pagaria Tamanho crime d'amor.» Ouviu ell' e nã fez caso; Poz-s' a cantar, sem temor; Era noite; longe, foi Lo seu cantar de primor.

E cantou assim:

«Oh, que linda: noite esta, La noite de Sã João! Conversar com seu 'amor Todol los rapazes vão.»

El-rei ouvíu, e disse:

- «Ergue-te d'ahi, Anninha, Se queres ouvir cantar; Só sabe cantar tão doce La sirena de la mar.» - « Senhor pae, não é sirena; E' mais doc' este cantar;


Senhor pae, é Dom Bernal Que m'está a namorar.» - «Soubera eu d'assim ser, Lo mandaria matar: Na ponta da sua lança Lo mandava lancear; No rabo do seu cavallo Lo mandava a 'rrastar; E, despois, já quasi morto, Lo mandaria queimar.»

Dom Bernal, quando lo soube, Oh fugir! -sem descançar: No cabo de septe mezes, A suas terras foi dar.

Don' Anninha, mal lo poude Atraz delle a caminhar: E lá vae de viII' em villa, E de logar em logar. No cabo de septe annos, Fartinha de perguntar, Tres senhoras ella viu, Todas tres a costurar: - «Que Deus vos salve. Senhoras, Bem postas no seu logar.» - «Deus vos salve, forasteira, Tão cortez no seu fallar.» - «Por quem soides, vós seIlhoras: Aqui 'stará' Dom Bernal?


ElIe ha de star aquí, Sua terra natural.» - «Aqui 'stá, mas foi á caça. ElIe não póde tardar. Se muita pressa vós tendes, Vou já mandal-lochamar.)) -« Eu pressa nã tenho muita, Tambem nã tenho vagar. Que deixei la rneza posta A meu pae. pera jantar.~

Palavras não eram dietas, E Dom Bernal achegar. Don' Anninha, mal Ib vê, Logo lo quer 'abraçar. - «Dá.m' esses braços, Bernal; Nelles me quero deitar.» .- «Já vos nã posso, senhora, Nestes braços apertar;. Já nã sou livre de mim; Acabei de me casar. Aqui 'stá minha mulher; Disso não ha ge gostar.» - «Quer eu goste, quer nã goste, Pouco vos ha dI importar Vae-te d'aqui, forasteira; Nã te posso incarar.»

Don' Anninha, d'afIroqtada, Cahiu morta, sem fallar.


Diz então elle:

-« Ai que dor tamanha esta! Ai, que tamanho pesar! O`tu, meu amor primeiro, Aqui viest' acabar!» - « Dai-Ih` um beijo, Dom Bernal ; Talvez a si vá tornar.» -« Nã zombes, mulher tyranna, Carniceira de matar; De quem Deus me qu'ria juncto Tu me viest' apartar. . Dou -lh' um beijo? Dou-lhe mil. Mas baldo é porfiar; Que tuas palavras féras La morte lhe foram dar.»

Palavras não eram dictas, Também ell` a espirar. Dom Bernal e Don' Anninha Ambos vão a interrar; Ambos fôra da igreja Cada qual em seu logar.

Na cova de Don` Anninha Naceu aIvo jasminal; Na cova do cavalleiro Naceu vermeIho rosal; Tanto pendem um p'ra outro


Que se foram inlaçar; Tanto crecerem p'ra cima, Que no ceo foram topar; Todal las aves do mundo, Todas lá iam cantar, Todas lá iam dormir, Todas lá im criar; E las folhas qu' esfolhavam; Lo vento las foi junctar! Mas la mulher, invejosa, Tudo lá mandou cortar.

V A RI A NT E III

Dona Ignez

- « O' filha, filha, vem cá Vem ouvir doce cantar: Pescador nã póde ser; Só sirena de la mar.» - « O' pae, pae, eu aqui 'stou A ouvir doce cantar: Pescador nã pode ser, Nem sirena de Ia mar.

Esta voz ind' é mais doce;


Bem parece suspirar. E se fosse Dom Bernal, Que m'estej' a namorar? -«Lo mandaria prender, E ao despois degolar.»

Dom Bernal; que lo ouviu, .Abalou, sem mais 'sp'rar; Dona Ignez de paixão, Cahiu na cam' a l'penar: Stev' em artigos de morte, Sem se poder confessar; Só na fim de septe annos Se chegou a levantar;

E disse:

- « P'ra ir ter com D. Bernal, Que traças hei d'eu armar?»

Um dia, poz éll' a mesa A seu pae, pera jantar; Jarra de prata na salva, Com agua, p'ra refrescar; Bacia, tambem de prata. Onde seu pae se lavar; Toalha de linho fino, Onde seu pae s'alimpar: E já tinha barca, prompta, Bom vento, e melhor mar.»


E, em quanto seu pae comia, fugiu ella.

- «Larga, larga, minha barca, Por hi for` a navegar! P'ra terras de Dom Bernal, Minha barc`, andar, andar! Eu deixei la, meza posta E meu pae 'stá a jantar.»

Que la infanta fugia, Quem lo houvera cuidar?

A'quellas terras chegada Fartinha do viajar, Viu tres damascassentadas; Só duas a trabalhar; La do meio, por senhora, Nada faz senão olhar.

E Dona Ignez mail la dama fallaram assim:

- «Nosso Senhor aqui seja Comvosco neste logar; Cornvosco, dama do meio, Comvosco quero fallar. -De Dom Bernal, vós senhora, Que novas me sabeis dar?» - «Deu.s te salve, forasteira, Que tão bem sabes fallar. Aqui mora Dom Bernal;


Foi la caça montear. Forasteira, se tens pressam, Depressa se vae chamar,» - «Septe annos ha qu' espero; Já ' stou fartinha d' esp'rar.»

.Palavras não eram dietas. Eil-lo de pé, no portal. - «Que fazes aqui; Ignez?» - «Venho por ti, Dom Bernal. - «Quando eu te namorei, Teu pae me quiz degolar; Agora, já sou casado, Tenh' outr' em teu logar, E tenho filhos pesquitos, Que Deus do ceo me quiz dar.» - «Ai, tu tens outra mulher! Deus te la deixe lograr. Ai, tu tens filhos pesquitos! Deus te los deixe crear. E eu que tão, longe vinha Los teus braços procurar! - « A outra los entreguei, Pelas bençãos do altar; Màs, dando ella, licença, Cá, por mim, nã vou negar,»

La dama nã quer, e diz:

- «Vae-te Porca forasteira;


Nã lo venhas attentar.»

Dona Ignaz que tal ouviu. N'um ai, que deu, rebentou; Nos braços de Dom Bernal Logo mort' ali ficou.

Então cramon elle:

- «Aqui del-rei! cá por dentro Meu coração estallou; Qe minha qu'rida Ignez Nos meus braços espirou!»

Diz-lhe então la mulher de chacota

- «Se tu lhe dás um beijihho, A' vida ella tornou.»

Responde elle:

-« Morreu ella, morro eu; Tudo na mort' acabou, Nã tenhas de mim ciumes, Que jã do mundo Dná sou!»

E cahiu morto. E ella, de arrependida, disse:

- «Ai de mim, ó carniceirá;


Já me há chamo quem sou! Matei um e matei outro: Só a mim ninguém matou!»

E mandou ambol los dois; Com grandes dós, interrar Em sepulturas sagradas;

EII' e ella, par a par. E prantou um rosal verde P'ra boa sombra lhe dar; E pediu a Deus perdão Quem lh'o houvera negar?

EsC amor, mal..começado. Mal tambem foi acabar, Mas se nã ca&aram cá, Foram.se no ceo junctar.

VII

ALARD

VARIANTE I

Conde Elarde

- «Senhor pae, dae-me marido.;


Isto só vos eu pedia; Vós bem lo sabeis porquê, Que, por al, nã pretendia.» - «Se na côrte lo houvesse, Eu marido vos daria: Só se fosse Concr Elarde, Mas casou com vossa tia.» - « Esse mesmo, s~nhor pae~ Esse 'mesmo bom seria. Pera comvosco jantar Chama e-lo já neste dia; Lá por meio do jantar, Eu lo alvoriçaria.»

EI-rei lhe mandou recado. Logo nesse mesmo dia.

Conde Elarde disse então á condessa:

- «Ind' agora vim da côrte, Já recado p'ria voltar?! Ou el-rei me quer dar tença, Ou me quer mandar matar.» E foi logo de caminho, Sem saber lo que cuidar.

E Disse a el-rei:

- «Real senhor, Deus vos salve. Vossa c'rôa a governar.


Ind' agora d'aqui fui, P'ra que me faze.is tornar? Só se é p'ra me dar tença, Ou me qu'reis mandar matar.» «NãO era p'ra te '(lar tença, Menos é p'ra fé matar; Meu recado te mandei Pera commigo jantar.»

Tem la infanta, e diz::

-«Tendes lo janttar na meza, Nã lo deixeis esfriar; Tendes nos ricos picheis Vinho do nosso lagar; Nos açafales da copa, Fructas do nosso pomar; Na rica bacia d'oiro, Agua pera vos lavar; Toalha de linho fino, Feita no nosso thear.,»

Stão todol los tres á mesa, Qual a comer, qual bebia; E, por meio do jantar, La infanta que dizia: - «Alembra-te, cond' Elarde, Alembra-t' aquelIe dia, Abaixo do rosal verde, Por detraz da fonte fria?»


-« Eu bem m'alembro, senhora, Bem m'alembro desse dia; Mas era nino chiquito; Pera mais não intendia.»

Palavras não eram dictas. Que logo eI-rei s'erguia: - «Tamanho crime de ti Nunca eu lo cuidaria! Ou com minha filha casas, Ou garrote te daria.» .- «Já casei, tenho mulher; Com outra, nã no pod'ria.» - «Vae matar tua condessa; Despois tudo se faria.»

Como houvera matal-la, Se morte lhe nã mer cia ?

- «Mando-la p'ra sua gente; Que seu pae l'acceitaria: Nem cartas ella manda va, Nem eu las receberia.» - «Vae matar tua condessa; Arrenego da porfia! Sua cabeça cortada Quero vêr nesta bacia.» Como houvera matal-la, Se morte lhe nã mercia?


- ([ Mando.la pôr n'um mosteiro; Que mais ningucm la veria: Nem cartas ella mandava, Nem eu las receberia.» - «Vae matar tua condessa, Arrenego da porfia! Sua cabeça cortada Quero ver nesta bacia,»

Como houvera matal-la, Se morte lhe nã mercia?

- «Mando-la deixar na serra, Que lobo la comeria.» -«Vae matar tua condessa;

Arrenego da porfia! Sua cabeça cortada Quero ver nesta bacia.»

Como houvera matal-la, Se morte lhe nã mer' cia?

- «Mando-la deitar na mar, D'onde nã se salvaria.. - «Vae matar tua condessa; Arrenego da porfia! Sua cabeça cortada Quero ver nesta bacia. Nem Ia troques tu por outra;


Qu'eu mui bem la conhecia. Se tu nã la degolasses. Eu comtigo m'haveria. Ou com minha filha casas. Ou garrote te daria. Manda quem póde mandar; Arrenego da porfia!.

Foi p'ra casa cond' Elarde,Triste, que mais nã podia.

- «Triste vindes, condi Elarde. Como la noite do dia.»

Poz-Ihe na mesa paão; Cond' Elarde nã comia: Poz-Ihe na mesa bom vinho; Cond` Elarde ná bebia: Tinha um nó na garganta; Comer nem beber podia. E foi deital-lo na cama, Mas lo conde nã dormia.

E ambos fallaram assim:

- «Contae-me vossa tristeza; Como contaes l` alegria.» - «Como vos hei de contar Lo que nem saber eu qu'ria? El-rei manda que vos mate;


Que seu genro eu seria.» - «Calüda, calnda, conde, Isso remédio teria;´ lMandae-me'p'ra minha gente; Que meu, pae m'acceitaria.» - «Condessa, essas palavras Eu a el-rei las dizia; Mas quer ver vossa cabeça Cortada, nesta bacia.» - «Caluda, caluda, conde, Isso remedio teria; Mandae-me pôr num mosteiro; Sancta vida lá faria.» - «Condessa, essas palavras Eu a el-rei las dizia; Mas quer ver vossa cabeça Cortadannesta bacia." - «Caluda, caluda, conde; Isso remedio teria; Mandae-me deixar na serra,

Lobo ná me comeria.» - «Condessa, dessas palavras Eu a el-rei las dizia; Mas quer ver vossa cabeça Cortada, nesta bacia.» - Caluda, caluda, conde, Isso remedio teria; Mandae-me deitar na mar, D'onde bem me salvaria.»


-«Condessa, essas palavras Eu a el-rei las dizia; Mas quer, ver vossa cabeça Cortada nesta bacia.» -«Caluda, caluda, conde Isso remedio teria; Morreu hoj' uma donzella; Que commigo se par' cia...» - «Cabeça dessa defuncta Pela voss' eu levaria; Mas el-rei já foi dizendo Que mui bem vos conhecia; Que vos ná troque por outra; Que eu vos degolaria; E que, se não, tambem eu A garrot' acabaria.»

Pala.vras não eram dictas, El-rei á porta batia: - «Ou la condessa já morta Ou los dois eu mataria. » - «Real senhor, não, é morta, Mas `sta n`hora d`agonia.» Diz então ella:

- «Dae-me, cond" aquella ninha, Qu'eu la quero aniinar; Dae-me, conde, nossa filha; Quero-la pôr, a mammar. Mammae, filhinha, mammae,


Mammae na vossa mamminha, A`manhã tereis madrasta Muito alta ,senhorinha. E a vós, conde, perdoo lnnocente morte minha; Nã vos levo emprazado, Por mõr desta creancinba.

Palávras não eram dietas; Dobre de sinos s`ouvia. Eram sinos de palacio! Quem na corte morreria?

Vem lo pregoeiro apregoando, e diz:

--- « Rezae vós, .bispos e frades; Tomae dó, vós fidalguia; Chorae, povo,.já é,morta, DeI-rei Ia fiJha Maria!»

Quando passou lo interro Toda ]a gente dizia: - «Descasal los bem casados. É coisa que Deus nã qu"ria; Viverem, em tanto peccado Deus nã lo consentiria; Morlreu quem mer'ceu morrer. Vivea quemviver mer`cia.»


VARIANTE II

Conde Alario

- «Eu ando invergonhada; Já repucha meu vestido; E vós, que sois lo culpado, Dae-me, vós pae, um marido.» - «Aqui na côrte nã vejo Quem possa ser escolhido.» - «Cond' Alario.» - «Tem mulher, .E tem já filho nacido.» -«Que tenha mulher e filho. Eu lo quro por marido; De forçá; ou de vontade. Assim fica decidido: Chamae, vós a janlar; Será por mim commettido.»

Lá por meio do jantar, Sua honra assim dizia: - «Não t' alembras, cond' Alario, Há nove mezes seria, Dos beijinhos que me déste A' sombra da fonte fria?»

Ficou lo conde calado, Çomo quem culpas ténia;


Fel lo rei sua carranca, Que de eiume seria. - «Nã t' alembram, cond' Alario, Coisinhas d'aquelle dia? Los abraços que me déste, A' sombra da fronte fria? Ficou lo conde calado, Como quem penas temia; E, só porque las temeu, Alfim lhe responderia: - «Senhora, vós me chamastes; Eu; por mim. ná lo faria.. - «Tu és pae deste meu ventre; Outro nã lo ser podia.» - « Eu seI lo pae desse ventre? Valha-me Virgem Maria!» -«Tu seras lo meu marido; Outro ná lo ser podia.» - «Eu seI lo vosso marido? Nem pol Ia Virgem Maria!»

Falla então el-rei:

-« Só por seres cond' Alario, Aqui nã te mataria, Vae matar tua condessa; Casarás ao outro dia.» - «Senhor, nã na matarei, Que sem porquê lo faria, La mandarei p'ra Castella,


Onde pae e mãe teria: Ou la metto n'um mosteiro, D'onde nunca sahiria, Onde de mim nã soubesse, Nem eu della saberia.» - «Manda quem póde mandar; Arrenego da porfia. Vae matar tua condessa; Casarás ao outro dia.» - «Senhor, nã la matarei; Animo me faltaria. Mando-la pôr no sertão, Um bicho la comeria: Mando-ia deitar na mar, No fundo s' afogaria.» - «Vae matar tua condessa; Arrenego da porfia. Sua cabeça cortada Quero ver nesta bacia: Nem me cuides inganar, Porqu'eu ná m'inganaria. Ou vem la cabeça della, Ou la tua pagaria.»

Foi-se d'ali cond' Alario, Sem bem saber por ond'ia; Chegado á sua casa, Mal se disfarçar podia.

- «Condessa, dã-me ceiar,


La fome já lo pedia.» La condessa poz-Ih' a ceia; Mas lo conde nã comia: Tanta lagryma chorava, Que pela mesa corria.

- «Condessa, vamos dormir; Lo somno já lo pedia.» Ambos se foram deitar, Mas lo conde nã dormia: Tanta lagryma chorava, Que la cam' alagaria.

Então fallaram assim:

- «Porque choras, cond' Alario? Que triste caso seria? EI-rei mandou-to chamar. Que novidades havia? - «Desgraça sobre desgraça, Que ser maior nã podia: Manda el rei qu'eu te mato; Que por seu genro me qu'ria.» - «Na me mates, cond`Alario, Qu' eu só pera ti vivia. Manda -me tu p'ra Castella; Com meus paes lá moraría: Ou mette-mo n'um mosteiro; Sancta vida lá faria: Novas de ti lá lorei,


Novas de mim te daria.» - «Palavras dessas, condessa, Eu a el- rei -las dizia: Mas da ordem que me deu Nada já lo demovia.» - «Cal-te, cal-te, conel' Alario, Polo melhor se faria. Manda-me pôr no sertão, Bicho nã me comeria: Ou que mo deitem na mar, Que me não afogaria.» - «Palavras d'essas, condessa, Eu a el- rei las dizia: Mas da ordem que rhe 'deu Nada j:i lo demovia. Tua cabeça cortada Quel-la ver nesta bacia.» - «Cal-te, cal-te, cond` Alario, Polo melhor se faria. Hoje morreu minha prima, Que meu retrato parcia; Leva la cabeça della, Cortada, nessa bacia.» - «É boa traça, condessa, A nós ambos salvaria: Mas el-rei já foi dizendo Que se não inganaria. Quer vel la tua cabeça, Ou la minha pagaria.»

La condessa, meia morta,


Assim mesmo, respondia: - «Minha morte te perdôo, Que morrer eu nã mer'cia; Nem emprazado te levo. Que muito bem eu te qu'ria.

Nã me mates de punhal. TãO pouco d'adaga fria; Dá-me cá uma toalha, Eu mesma m'afogaria. S'escrever soubera eu, A meus paes eu escrevia, Que minha morte chorassem De tamanha tyrannia. Manda cá minhas creadas, Com quem eu m'intertenia: (E de todas, um' a uma, Eu, cuitada, m'espedia). Dá-me cá essa criança, Em que tanto me revia: Mammae, filhinho, mammae Este leito d' agonia; Vae-s' imbora deste mundo Quem mamminhas vos daria; A'manhã tereis madrasta De mais alta senhoria.»

Palavras não eram dietas, Mensageiro que batia.


Diz; lo conde:

- «Quem bate á minha porta, Nesta hora d'agonia?» - «Venho da parte del-rei, Se la condessa morria?» - «Stã já prestes p'ra morrer, Vae resal l'Ave Maria.»

Não acaba Ia condessa De dizel l' Ave Maria, Já dobram los sinos grandes... Quem da côrte finaria?

-«Morreu la filha del-rei, Na hora em que devia: E morreu tambem lo filho Que della entao nacia: E, pouco tempo despois, Tambem eI-rei fallecia!

Uns e outra lo Diabo No inferno recolhia; Que la trella de los três Um só peccado fazia.»

Viveu la sancta condessa, Que sancta vida vivia.


VIII

BERNARD

VARIANTE I

Bernal Francez - «Quem bate á minha porta, A ést'hora de dormir?» - «Sou-Bernal Francez, senhora, P'ra vos bem qu'rer e servir.» - «Pois que és Bernal Francez, Minha porta vou abrir.» E saltei da minha cama, Sem cuidar de me vestir; E fui abrir minha porta (Nunca la foss' eu abril'): Apagou-me la candeia. Lo vento por li a vir; Deu-me uma rabanada, Qu' estive qúas' a cahir Meu chapim lá me ficou. Quando volvi a subir" ,

- «Pois que és Berna! Francez, Minha porta vim abrir.»


E lo levei pola mão A' volta do meu jardim; Por entre cravos e rosas, Fui deital-lo par de mim.

- «Meia noite vae passada, Outra meia vae a fim: Berna! Francez, nã me fallas, Nem te voltas pera mim? Ou dama tens tu em França, Ou já nã gostas de mim.» - «Bem sabes, nã tenho outra;

Sabes se gostei de li.» - «So te temes do meu pae, Mora bem longe d'aqui.» - «Nã me temo de teu pae; Quasi pae éll é de mim.» - «Se temes de meus irmãos, Andam bem longe d` aqui.» - «Nã temo de teus irmãos. Que são quasi irmãos de mim. » Se temes de meu marido, Longes terras foi d'aqui.» - «Nã temo de teu marido. Qu' ê!l' é mais qu' irmão de mim; Temo tu, mulher traidora, Poil lot ens a par de ti.» - «Ai, que sonho, feio sonho, Eu sonhei agor' aqui!


Inda bem qu' és meu marido; Mais te quero do qu'a mim. Ergamo-nos já da cama; Deixa-me vestir d'ahi.» - «Cal-le lá mulher treidora, Que não m'inganas assim: Antes do naeer do sol, Eu te visto de setim; Gargantilha de coraes, Que hão de sahir de ti.»

Meu marido me matou De morte que bem mer'ci. Quem me vir Berna! Francez Diga-lhe qu'eu já morri.

-«Aonde ides, cavalIeiro, Tão risonho e gentil?» - «Vou-m'a vei la minha dama Na egreja de Sã Gil.» - «Vossa dama lá 'stá morta, Que morta eu bem na vi. lnterro qu' ella levava Eu vos vou dizer aqui: Mortalha qu'ella vestia Era de rico setim; Gargantilha, de coraes, Que lhe saiam de si; Lo esquife do seu corpo, De veludo e marfim;


Damos que I'acompanhavam, Tantos que nã tinham fim. Seu marido la matou, Por 'môr de vós, não de mim.»

Palavras não eram dictas, Por morto no chão cahi; Passaram horas e horas Quando eu do chão m'ergui; E lhe fui á sepultura, Que qu'riá morrer ali: - «Abre la campa sagrada, Esconde-m' a par de ti.

Do fundo da cova triste, Sua voz então ouvi: - «Vive tu, Bernal Francez, Vive tu, qu'eu já morri:

Olhos, com que te mirava, Já de terra los cobri; Bocca, com que te beijava, Já de terra la enchi; Cabellos, que m'intrançavas, Já cahiram par de mim; Dos braços, que t'abraçavam, Las cannas vê-Ias aqui; Corpo, em que te revias, Já na terra lo perdi. Mulher com quem tu casares Tenha lo nome de mim;


Quando tu chames por ella, Lernbrada serei de ti: Conta-lhe nossos amores; Aprenda na minha fim. Vive tu, Bernal francez, Vive tu, qu' eu ,já morri.»

VARIANTE II

Dom Francêsco

- «Quem bate á minha porta, Estas horas de dormir?» - «Meu amor, sou Dom Francêsco, Só agora pude vir.» -« Se soubesse, minha porta Já tinha ido abrir.»

Da poeira do caminho Lavou-se no meu jardim; Dei-lhe camisa lavada, E deitei-lo par de mim. - «Meia noite já é dada, Meia noite pervigil! Dom Francêsco nã me fallas, Nem te voltas pera mim!


Conta-me cá, Dom rraocêsco, Disseram-te mal de mim?» - «Ninguem; nem eu consentia Me dissessem mal de ti.» - «Se temes los meus irmãos, Muito ha que los ná vi; Se temes lo meu marido, Longe foi elle d`aqui.» - «Nã temo los teus irmãos, Que são cunhados de mim; Nem temo lo teu marido, Que lo tens a par de ti.» - «Matae-me, senhor, matae-me, Que morrer bem lo mer'ci.» - «Deus do ceo assim lo quer; E' quem tem poder em ti.» - «Antes de morrer, deixae-me A Sã Gil uma vez ir; Lá m'estão já pae e mãe, Delles quero m'espedir.» .- «Eu sou mestre caçador, Nã me quero desmentir; Caça que tenho na mão Nã na vou deixar fugir.» -- «Antes de morrer, slmhor, A confessar deix.ae-m'ir.» ' - 1 Caça que tenho na mão I\ã na vou deixar fugir.» - «Deixae-me, senhor, ao menos, Las minbas roupas vestir.»


- «Chamem-me Já um coveiro, Que vá uma cov' abrir; Antes que rompa manhã, Terra te ha de cobrir; Cuida tu só da tu' alma, Que vae do corpo sahir ; Manda chamar Dom Francêsco, P'ra de confissão t`ouvir -«Dom Francêsco não é padre; Deus lo guarde de cá vir.»

Ella então disse ao coveiro, em quanto elle estava a abrir la cova:

- «Escuita cá, õ coveiro: Por caridade de mim, Vae procurar' Dom Francêsco, Dize-lho qu`eu já morri.»

Lo coveiro foi, e incontrou.se com elle, gue vinha de caminho:

- «A que vindes, Dom Francêsco, P'ra estas bandas d' aqui? » - «Venho vel Ia minha dama, Qu' esta semana nã vi.»

- «Vossa dama já é morta, Sua cova eu Ih'abri; Que la matou seu marido, Tudo por amor de si. Com estes ouvidos meus


De sua bocca ouvi Este recado, que dou Como della recebi: - « Escuita cã, ó coveiro: Por caridade de mim, Vao procurar Dom Francêsca, Dize-Ihe qu'eu já morri.»

Cramou então Dom Francêsco:

- «Corre, corre, meu cavallo, Vamos ver s'jsto é 'sim.»

E lhe fui á sepultura; E agiolhei ahi.

E disse:

- «Ai, dama desta minh'alma, Appar'cei-m' agôr' aqui,»

Apareccu ella e respondeu:

- «Ai, damo desta minh'alma, Nã tomes medo de mim; Que sou eu aquella mesma Que por teu amor morrí.

Dos olhos, que te miravam, Las covas só 'stão aqui;


La bocca, que te beijava, Só queixadas têm de si; Dos braços, que t'abraçavam, Las cannas só ná perdi; Somente ossos mo restam; Todal las carnes despi. Nã fujas, damo, nã fujas; Por teu amor `stou assim; Eu, de dia, juncto lenha; De noite, queimo, m'a mim Nas fogueiras infernaes, Pera sécula sem fim. Esse filho, que tivemos, Manda-lh`insinar latim; Que vá aprender a padre, Pr`a rezar missas por mim. Vive, vive, cavalleiro; Vive tu, qu' eu já morri.»

Palavras não eram dietas. Por morto no chão cahi; Passaram horas e horas; Acordei, já nã na vi. E, por dõr de meu peccado, Com que dôr m'arrependi! E, de triste, que fiquei, Só de tristeza morri. E, por não ir confessado,

Eu no inferno cahi.


- «Dama qu'rida da minb`alma, Aqui 'stou, vós 'staes aqui; Ao menos, ardemos junctos Nestas fogueiras sem fim!»

IX

ISEULT

VARIANTE I

Dona Ausenda

Na horta de Don' Ansenda. Ha um' herva incantada; La mulher que cheirar della. Dizem que fica prenhada.

Pôl la noite de natal, Don' Ausenda, trasnoitada. Ali mesmo adormeceu; Na horta ficou deitada: Dormiu somno de delicias Sobr' éss' herva incantada;


Mas quantos mais mezes correm; La saia mais levantada

Diz-lhe El-rei, seu pae:

- «Que tens tu, ó filha minha? Diria qu' estás prenhada!» - «Tal nã digaes, senhor pae; É da saia mal talhada; Que nunca eu tiv' amores. Nem homem me deve nada.jt EI-rei, então, chamou:

- «Vem cá tu, mestr' alfaiate De tamanha nomeada. Vem correger esta saia, Que ficou tão mal talhada.» - «Nesta saia, rei senhor, Nã vejo quo faIte nada; Só se for la dona della Mulher qu'esteja prenhada.»

Falla outra vez el-rei:

- «Que 'tens tu, ó filha minha? Diria qu`estás prenhada!» - « Tal nã digaes, senhor pae; É que me sinto inchada, Das aguas da fonte fria Bebidas de madrugada.»


El-rei tornou a chamar: - Vem cá tu, phisico meu

De tamanha nomeada, Minha filha tem maleitas? Quero que seja curada.» - «Senhor, maleitas nã são; Aqui não ha fazer nada; Las maleitas qu' ella tem É que la vejo prenbada.»

Quando ella tal ouviu, Ficou su' alma passada: - «Triste, mesquinba de mim, Mesquinha de mim, cuitada! Sendo eu moça donzella, Como posso'star prenhada?»

- «La filha que tal me fez, Diss' el-rei, quer ser queimada, Em septe carros de lenha, Fogueira bem atiçada.»

E la infanta se carpia:

. «Sem conhecel' homem nunca, Vou a morrer desfamada! .Dae-me, pae, um confessor; Quizera ir confessada.


Chamou-se um sancto frade; Que passava na estrada, Logo qu' êll' introu na horta, Colheu da herva fadada, E foi onde Don' Ausenda.

P'ra ser delle confessada.

E assim fallaram:

- « Agiolhae, Don' Ausenda; Vossa hora 'stá chegada: Confessae vosso peccado, PoI la Mãe, Virgem Sagrada.» - «Frade, nunca tiv' amores, Nem homem me deve nada; Mas artes são do demonio, Ser donzella e pejada!» - «Quanto tempo ha, senhora, Que vos sentis emb'raçada?» - «Los nove mezes faz hoje. Ali, naquelIa ramada, Pol la noite de natal, Adormeci tresnoitada, Sobre umas verdes hervas, Na minha horta, deitada: E sonhei tão novos sonhos, Tanta cousa namorada, Que d'acordar deu-me pena, Já vinha la madrugada.»


«Cheirae vós agor' ést' herva; É um' herva incantada; Pol la benção que lh' eu deito, Ficará herva sagrada.» - «Ai, este cheiro, bom frade, Eu lo senti na ramada.» ' Nã disse mais Don` Ausenda; Do somno ficou tomada.

Virtude tem aquell' herva,

Outra virtude fadada, Mu!her prenhe que la toque Logo fica alliviada. E Don' Ausenda, sem dôr, Em bô' hor' abençoada, Tev' uma linda criança, Bem nacida, bem medrada, Que lo frade levou logo Na manga arrecadada: Caladinha ia ella, P'lo fradinho aninada.

Já desperta Don' Ausenda, Já se sent' alliviada; De tudo quanto passou Nem siqner 'stav' aIembrada. Chamou por suas donzellas; Chamou por sua creada; Vestiu suas galas ricas,


Sua saia bem talhada; E foi incontrar seu pae, Qu' eslava n'alpendorada. Vendo armar la fogueira Em que la qu'ria queimada.

E disse:

«Senhor pae, aqui me tendes, Já disposta, confessada; Morra eu, de nulla culpa, Se tendes sentença dada.»

Lo pae la mira, remira, Tão bem posta, e galeada, Seu corpete tão gentil, E saia não levantada.

E disseram:

- «Com que maus feitiços, filha, Andavas infeitiçada? Quem curou los maus feitiços, De qu' estás alliviada?» - «Fossem feitiços, ou não, Ou fosse por incantada, Sancto frade lo desfez C'um' oração bem resada.»

- «Ao bom frade que darai


Por obra tão acabada?»

Palavras não eram dictas, Diz lo frade, da portada: - «Frade nã sou, que sou conde; Nem quero que me deis nada; D'Alérn-mar meu senhorio' Tem castella e lavrada. Só vos peço por mulher Don' Ausenda alliviada.

Oh, que noite de natal! Oh, que herva incantada! Incantos, de Don' Ausenda... Eram lo conde, mais nada.

VARIANTE II

Dona AIberta

Passeiava Don' Alberta, Mas de saia mal rodada. Toda cheia de tristeza, E no carão descorada.

Disse-lh' el-rei:-«Vós que tendes? Tendes la côr demudada!»


- «Das aguas frias, senhor, Que bebo de madragada.» - «Chamem-me cá um barbeiro, P'ra que já sejais sangrada.

Lo barbeiro respondeu: - «Esta dama está pejada.»

Diz el-rei:

- «Infanta, que tal figestes, Ides, por lei, ser queimada; Fogueira de septe cargas E lenha bem atiçada.»

Quando tal sentenç' ouviu, Desatou éll' a chorar: - «Quem me levass' uma carta A Dom Carlos d'Além-mar.»

Diz um mensageiro:

-«Aqui me tendes, senhora, Se de mim qu'reis confiar; Vossa carta levarei Depressa, não devagar: Fosse viagem de dias, Eu á noit' hei de voltar..

E lá foi leval la carta


A Dom Carlos d'Alêm-mar.

Compeçou este de lê-la, Compeçou de passeiar; Vestiu habito de frade, E c'roa mandou rapar; Té á porta da igreja Éll andou sem descançar.

Mal lo sol era nacido, Já Don' Albert' a passar; Vae la justiça del-rei Leval-la já a queimar.

Diz D. Carlos:

- «Oiça cá, senhor juiz, Mand' esta gente parar; Essa dama qu' ahi vae Inda 'stá por confessar.» - «Pois confessae-la, vós frade, E vá tambem commungar.» - «Eu, por Deus, tudo farei. P'ra das chammas la salvar.»

Éll`e eIla na igreja; Los outros fór' a esp'rar; Com peçam nã C'onfissão, EII' um beijo lhe quer dar. - « Deixae-me, frade mofino,


Nã me venhaes attentar. Deus que ma nã dê perdão, Nem hostia de consagrar, Se a mim outro beijasse Senão Carlos d'Além-mar.» - «Carlos d' A lérn-mar sou eu; Vamos, vamos, caminhar! Fujamos por este lado; E depressa, cavalgar!»

Vão a unhas de cavalIo. Vão a todo galopar. Brada então ella a rir: Espera por mim justiça, Bem te fartarás d'esp'rar, Que Dom Carlos cá me leva, P'ra commigo se casar. E agora que me prendam Na sola do calcanhar. I

X

BRUNHILD

Variante I

Dom Martinho


- «Hoje s'apregoam guerras De França contr' Aragão; Cuitado de mim, sou velho; Guerras já p'ra mim nã são. De duas filhas que tenho Sem nenhuma ser varão!»

La mais moça respondeu, De seu forte coração: - «Oae-me armas e cavallo, Las guerras p'ra mim serão.» Tendes cabellos compridos; Filha, conhecer-vos-hão.» - «Com thesoiras de talhar, Cortados rentes serão.» - «Tendel los olhos fermosos; Filha, conhecer vos-hão.» - «De mais formosos sei eu, E que de mulher nã são.»

-« Tendel lo rosto sem barbas; Filha, conhecer-vos hão.» - «Eu direi que sou mocinho, E que las barbas virão.» - «Tendel lo rosto mui alvo; Filha, conhecer-vos- hão.» - «Nos tres dias do caminho, Estes sóes lo queimarão.» - «Tendel los hombros erguidos;


Filha, conhecer-vos-hão.» - «Sejam las armas pesadas, Que los hombros descerão.» - «Tendes peitos altaneiros; Filha, conhecer-vos-hão.» - «Cingidos pela coiraça, Los peitos abaixarão.» - «Tendel las mãos pequeninas; Filha, conhecer-vos hão.» - «De suas guantes calçadas, ElIas grandes par'cerão.» :.- «Tendes largos los quadris; Filha, conhecer-vos-hão.» - «Vão debaixo do saiote; Homens nunca los verão.» - «Tendes tambem pernas grossas; Filha, conhecer-vos-hão.» - «Apertadas n'armadura, Ellas adelgaçarão.» - «Tendel los pés pequeninos; Filha. conhecer-vos-hão.» - «Levo çapatos de ferro, Não botas de cordovão.» - «Tendes nome de mulher; Filha, conhecer-vos.hão.» -«Me chamarei Dom Martinho; Por homem me tomarão. Venham armas e cavallo; Las guerras p'ra mim serão!»


Vestida de suas armas, Montando seu alazão, Foi ja donzella p'r'as 'guerras, Que nem que fosse varão;

No cabo de septe annos. Pazes assentadas são. Vestido de suas armas, Montando seu alazão, Passou á côrte de frança Dom Martinho, infanção. Filho dei-rei, mal lo viu, Morto ficou de paixão; E, chegando a palacio, Péd' á mãe sua benção, E lhe conta, em segredo, Pena de seu coração: ' - «Los olhos de Dom Martínho, Minha mãe, me matarão; No corpinho daquell' homem Los olhos de mulher são.»

- «Convida-lo tu, meu filho, P'ra cornligo merendar, Que, se fôr elIe mulher, D`estrado se vaesentar.»

- «Vinde, senhor Dom Martino. Commigo a merendar; Neste `stddo d'alcatifa


Bem vos podeis assentar.» Dom Martinho, eJ'avisado, Nã se deixou jogaoal': -« Lindo, estrado p'ra damas! Quem las fôra convidar! Estrado não é p'ra homens; Nã me sei hi ageitar.»

Filho deI-rei, que tal ouve, Morto fica de paixào; E, chegando a palacio, Péd' à mãe sua bênção, E lhe conta, em segredo, Pena do seu coração: - «Los olhos de Dom Martinho, Minha mãe, me matarão; No corpinho daquell' homem Los olhos de mulher são.»

- «Comida-lo tu, meu filho, P`ra nos mercados cornprar, Que, se fôr elle mulher. Nos coraes ha d'infeirar.»

- «Vindo, senhor Dom Martinho, Nestes mercados comprar; Olhae vermelhos coraes;

Bem vos podeis infeirar.» Dom Martinho, d' avisado,


Nã se deixou inganar: -«Lindos coraes são p'r'a damas! Quem las fôra convidar! Coraes nã servem p'ra homens, Que só gostam de p'Iejar.»

Filho del-rei, que tal ouve, Morto fica de paixão; E chegando a palacio; Ped' á mãe sua benção: E lhe conta, em segredo;

Pena de seu coração: - «Los olhos de Dom Martinho, Minha mãe, me matarão; No corpinho' daquell' homem Los olhos de mulher são.»

- «Convida-lo tu, meu filho, A ir no jardim passeiar; Que, se for elle mulher, De cravos s'ha d'i nfeitar.»

- «Vinde, senhor Dom Marlínho, No real jardim passeiar; Destes cravos, todos] indos, Bem vos podeis in feitar.» Dom Marlinho; d'avisado, Nã se deixou inganar: - «Lindos cravos são p'ra damas!


Quem las fora convidar!

Los homens ná querem cravos, Mas rosas....p'ra desfolhar..

Filho deI-rei, que tal ouve, Morto fica de paixão; E, chegando a palacio. Péd' á mãe sua benção. E lhEl conta, em segredo, Penas do seu coração: -«Los olhos de Dom Martinho, Minha mãe, me matarão; No corpinho daquell' homem Los olhos de mulher são.»

- «Convida-lo tu, meu filho, P'ra comtigo se deitar, Que, se fór elle mulher, Logo se ha de negar."

- «Vinde, senhor Dom Martinho, Commigo aqui vos deitar; Nesta cama de lençóes Ambos cabemos a par.» Dom Marlinho, d`avisado, Nã se deixou inganar: - «Linda cama p'ra mulher! Quem la fôra convidar! Mas dois homens n'uma cama?


Quem los mandár' açoitar!

Filho del-rei, que tal ouve, Morto fica de paixao;

E chegando a palacio, Péd`á mãe sua benção. E lhe conta, em segredo, Pena do seu coração: - «Los olhos de Dom Martinho, Minha mãe, me matarão; No corpinho daquell' homem Los olhos de mulher são.»

- «Convida-lo, tu meu filho, A ir no rio nadar; Que, se, for elle mulher, Logo se ha de negar.»

- «Vinda, senhor Dom Martinho. Commigo vinde nadar; Nestas aguas corredias Ambos podemos brincar.» Dom Martinho, d'avisado, Nã se deixou inganar: -«Aguas doces são p'ra damas! Quem las fõra convidar'! Porém nã servem p'ra homens Senão aguas de la mar.»


Filho deI-rei, que tal ouve, Morto fica de paixão; Nã foi sequer' la palacio Pedir ã mãe la benção; Desatou a suspirar Penas do seu coração. -«Vossos olhos dom Martinho,

Sabei-lo, mematarão; No corpinho sereis homem, Los olhos de mulher são.» Dom Martinho, namorado, Nã poude dizer que não: - «Sept`annos andei nas guerras De França contr`Aragão: Suspeitastes-me dos olhos, Mas outras suspeitas não.»

Nisto vem um mensageiro Uma carta lh`intregrar.

-«Que tendes vós, Dom Martinho, Que tanto vos faz chorar?» - «Esta carta que me diz. Que meu pae 'stá a cabar E duas irmãs, que semos, Semos ambas por casar. Se qu`reis sel lo meu marido. Minha mão vos quero dar.»


Filho dei-rei, que tal ouve, Já nã morre de paixão; E lá se vae a palacio Tomar da mãe la benção; Lá se vae com Dom Martinho, Sem penas no coração.

VARIANTE II

Donzella que vae á guerra

- «Hoj`apregoam las guerras De França com Aragão: Eu já nã posso fazel as; E cabo de mim darão. De tantas filhas que tenho Sem nenhuma ser varão!»

Respondeu-Ihe la mais velha, De seu leal coração: - «Pae, armae me cavalleiro, Homem serei, mulher não; E por vos farei las guerras De França com Aragão - «Tendes cabellos compridos;


Filha, conhecer-vos-hão.» - «Venham já umas thesoiras, Nest' hora se cortarão.» - «Tendes olhar acanhado; Filha, conhecer vos-hão.» - «Quando eu 'steja cem homens, Nã porei olhos no chão.» - «Tendel los peitos tão altos; Filha, coohecer-vos-hão. li - «Debaixo da armadura, Los peitos esconderão.» - «Tendel lo roslo tão a\vo; Filha, conhecer-vos-hão.» - Para me pôrem trigueira

Bastam dois dias.de verão - «Tendes mão e pé pequenos; Filha, conhecer-vos, hão.» - «Guantes, çapatas grossas Mão e pé grandes farão.» - «Tereis mêdo nas batalhas; Filha, conhecer-voshão.» - «Eu saberei ser um homem, Com minha lança na mão.» - «Tomareis por lá amores; Filha, conhecer-vos-hão.» - «Los que me fallem d'amores Bem caro lo pagarão.»

Deu- lhe armas e cavallo;


E também sua benção; E la deixou ir p'r'as guerras:" Por nã ter filho varãu.

Chegando lá ella, toma nome de Martinho, e della se namora um filho delrei.

- «Minha mãe, aquelles olhos São de mulher, d'homem não; Los olhos de Dom Martinho Máu cabo de mim darão.»

Desafiae-lo, meu filho, P'ra comvosco passeiar; Se elle fôra mulher, De galas ha de fallar.» Dom Martinho, por discreto.

De armas a conversar.

- «Minha mãe, aquelles olhos São de mulher, d`homem não; Los olhos de Dom Martinho Máu cabo de mim darão.»

- «Desafiae-lo, meu filho, A ir por 'hi namorar; Se elle fõra mulher, De homens ha de fallar.» Dom Martinho, por discreto,


De moças a conversar.

- «Minha mãe, aquelles olhos São de mulher, d`homem não; Los olhos de Dom Martinho Máu cabo de mim darão.»

- «Desafiae-lo, meu filho, P'ra na taberna folgar; . Se elIe fôra mulher, Não ha de qu'rer acceitar. Dom Martinho, por discreto, Logo prompto a intrar.

- «Minha mãe, aquelles olhos São de mulher, d'homem não; Los olhos de Dom Martinho Máu cabo de mim darão. t

- «Desafiae-lo, meu fiIho.

A ir comvosco nadar; Se elle fôra mulher, Não ha de qu'rer acceilar, Dom Martinho, por discreto, Primeiro lo manda intrar: E logo que lo vê n'agua. Martinho a caminhar,

- «Onde ides, Dom Martinho?


Assim me deixaes ficar?» - «Cá me vou p'ra minha terra; Meu pae me manda chamar, - «Dom Martinho, ou Martinha, Que nome vos hei de dar?» - «Se Martinha, se Martinho, Ide lã adivinhar!»

Chegando ella a casa, disse ao pae:

- «Andei sept' annos nas guerras De França com Aragão; Conheceram-me nos olhos. Mas d'outra maneira não.»

VARIANTE III

Hoje s`apregôam guerras

Hoje s'apregôam guerras, Lass guerras de Dom João,

E já sou velho cançado; Las guerras m'acabarão: Eu nã' nas posso lidar Las guerras de Dom João.


Que monta ler eu tres filhas. Se nenhuma é varão!» Responde la mais velha :

- « Irei eu por vós ás guerras, As guerras de Dom João; Dae-me vós licença, pae; Nã me falta coração.» - «Esses cabellos tão longos, O' filha, 'vos trahirão.» - «Las thesoiras de talhar Meus cabellos cortarão.» - «Esses peitos levantados. O' filha, vos trahirão.» - «Apertados na coiraça. Meus peitos abaixarão.» - «Essas faces e mãos alvas. O' filha, vos trahirão.» - «Geadas e soalheiras Minh' alvura crestarão. - «Esses pés tão pequeninos, O' filha,vós trahirão.. Grandes botas cordovezas Grandes pés me mostrarão.» - « Mas esses olhos tão lindos, O' filha, vos trahirão.» - Eu terei, cuidado nelles. Já que lindos elles são.» - « Ide vós, fIlh', em bó hora A's guerras de Dom João.»


E foi. E, perseguida de amores .por um principe que desconfiava ser ella mulher, nunca se lhe deu a conhecer por tal.

XI

DEBUANN

VARIANTE I

Conde Dom Germano

Bate lo sol na janella. Impina já p'ra mei'-dia, lnda conde Dom Germano Mail la rainha dormial Na côrte ninguem no sonha, Na côrte ninguem sabia, Senão sua filha mesma. Que de ciumes ardia.

E despois faltaram ellas assim:

- «O' filha destas intranbas. E a quem eu tantoqu'ria. Se de vós eu tal soubesse,


A ninguem lo descobria: Que lo conde Dom Germano Peso d'Qiro' me daria; Da cabeç' até los pés Damasco me vestiria.» - «Peso d'oiro tenho eu, E visto fino damasco. Inda tenho meu pae vivo, E já vós me daes padrasto? Mangas da minha camisa, Eu rompel-as nã chegasse, Se, vindo meu pae da guerra, Lo treidor ná castigasse.»

Palavras não eram dietas, El-rei á côrte volvia, E, entrado em palacio, La infanta se carpia, E el-rei lhe perguntava: - «Que tens tu, ó minha filha?» - «Ouvi, pae se qu'reis saber Um caso á maravilha: 'Stava eu ao meu tear E fina tela tecia, Vem lo conde Dom Germano, Tres lanços della desfia!. - «Cal-te, cal-te, minha filha, Nã tenhas disso pesar; Que lo conde Dom Germano


.É mocinho, quer brincar.» - «Leve diabo taes brincos Mail lo seu rudo, brincar, S'elle Me pegou do corpo, E saltou a me beijar.» - «Alto lá, senhor condinho, Nisso, então, devagar; Paço real é sagrado; Vou-te mandar degolar. - «Eu vos peço, senhor pae, Que venha êll` a matar No terreiro deste paço, Ond' elle me quiz afrontar.»

lnda lo sol na janella, Passante já do mei'-dia, E lo conde Dom Germano Vae a morret', ná dormia: La razão ninguem na sonha, Ninguem na côrte sabia, Senão la infanta mesma, Que de ciúmes ardia.

Vem la rainha, e diz:

- «Arrenego de vós filha, Que do meu leite mamastes! .Stando vós sempr' ao tear, Por que livro estudastes?


Responde la filha: - «Arrenego de vós, mae, Que nem lagryma chorastes! Livro por onde 'studei: Fostes vós que lo dictastes. E caIae-vos, mãe senhora, Que de bom quinhão ficastes; Tendo vós la mesma culpa, Lo mesmo fim nã levastes.»

VARIANTE II

Conde de Germanha

Já lo sol dá na janella, Impina já a mei'-dia, lnda conde de Germanha Com la rainha dormia: La infanta bem lo sabe, E ninguem mail lo sabia.

Diz la rainha :

Minha filha,qu`eu beijava, Qu`eu no colo dormecia, Guardae-me filha, segredo,


Que ninguém descobriria: Este conde é tão rico, Que d`oiro te vestiria.»

Responde ella:

-« Nã quero vestidos de oiro; Tenho los de bom damasco; Ainda meu pae `sta vivo. E ná quero ter padrasto. Las mangas desta camisa Eu nà nas chegue a romper, Se, vindo meu pae da caça, Eu nã lhe fôra dizer.» Da caça lá vem el-rei; Sua bênção deu á filha.

Diz-lhe ella:

- «Ouvide, vós pae, ouvide Um caso á maravilha: Stava eu no meu tear Lavrando na fina tela, Passou conde de Germanha, E tres fios quebrou della!»

Responde el-rei

- «Calae-vos, filha, calae-vos, Deixae vós isso passar;


Nã vol lo fez êll' a mal, Senão sóment' a brincar.»

Acode ella:

- «Tambem assim lo cuidava, E lo' mandei arredar; Mas agarrou-me das mãos, E aochãó me quiz levar!»

Tenho los de bom damasco, Ainda meu pae 'stá vivo. E nã quero ter padrasto. Las mangas desta camisa Eu nâ nas chegue a romper, Se, vindo meu pae da caça, Eu nã lhe fôra dizer.»

Da caça lá vem el-reí; Sua bênção deu á filha.

Diz-lhe ella:

- «Duvide, vós pae, ouvide Um caso á maravilha: 'Stava eu nomeu tear Lavrando na fina tela, Passou conde 'de' Germanha, E tres fios quebrou della!»


Responde el-rei:

- « Calae-vos, filha, calae-vos, Deixae vós iss opassar; Nã vol lo fez êll a mal, Senão sóment' a brincar.»

Acõde ella:

- «Tambem assim lo cuidava, E lo mandei arredar; Mas agarrou-me das mãos. E ao chão me quiz levar!» - «Isso agora, filha minha, Nã se póde perdoar; Defronte do meu palácio, Válo cond` a degolar.»

Vem el rei mail la rainha, La infant' em seu logar, Com toda la fidalguia Lo conde ver acabar.

Diz la infanta:

-«Vinde cá senhora mãe, Olhae aqui deste lado, Se qu'reis ver, lo senhor conde Como vae tão descorado! Vinde cá, senhora mãe,


Olhae aqui d'outro lado, Se qu'reis ver lo senhor conde Como ficou d'incarnado!»

Responde la mãe:

- «De viva peçonha fôra Meu leite que vós mamastes! Vós, sem aprender a ler, Que cartilha estudastes!»

Retruca la filha:

- «Fallae, mãe, devagarinho, Não oiçam vosso fallar;

Que da, morte'qu'elle teve Nã vades tambem penar.»

VARIANTE III

Conde d`Aramanha

Já dos altos dos telhados Lo sol p'ra baixo descia, Inda conde dAramanha


Mail la rainha dormia! Nã lo sonhava el-rei, Nem quantos na côrt' havia, Só la princeza real Este segredo sabia. Que da janella d`alcova Velou la noit à vigia.

- «Mangas da minha camisa Nã nas chegu' eu a romper, Se, vindo meu pae da missa, Lhe nã for Indo dizer.»

La rainha ouviu e disse:

- «Calae-vos hi, rica filha, Nada lhe vades dizer; Que lo conde vós dará Teias d'oiro p'ra romper.»

Responde la princeza :

- «Nã quero tamanhas galás; Tenho linho e damasco. El-rei meu pae nã morreu; Nã me venhaes dar padrasto. Mangas da minha camisa Nã nas chegu' eu a romper, Se, vindo meu pae da missa, Lhe nã vou tudo dizer:»


Vem el-rei da missa.

- «Subi, pae, vinde câ rriba; Muito vos tenho a contar; Conde d' Aramanha veiu Vossa casa devassar: Stava eu, a tecer tela Nos pentes do meu tear, Lo atrevido do conde Tres fios me foi quebrar!» - «Filha, nã façaes monta; Coisa é de perdoar: Fõra talvez a caso, Ou foi talvez por brincar; - «Nã lhe perdôo tal caso, Tão pouco lo seu brincar; Qu' êll', agarrado a mim, Debaixo me quiz levar.» - «Isso leva outra volta, Que bem quero castigar. Correi, correi, meus fidalgos, Minhas justiças chamar.»

Vêem los corregedores, e el-rei diz:

- «Vinde cá, velhos lettrados, Sentença no caso dar; Que lo conde d'Aramanha Bem lo quero castigar.»


Sentença dos corregedores:

- « Pena tamanha da culpa La culpa tem de pagar; - Mandae-lhe vasaI los olhos Que tão alto vão olhar; Mandae-lhe quebraI las pernas Com que se foi ao logar; Mandae-Ihe quebral los braços Com que se quiz agarrar; Mandae-lhe, por derradeiro, La cabeça degolar; Todo lo corpo, n'um feixe, Em cinzas se vá tornar,»

Diz então el-rei:

- «Meirinhos, prendam lo conde, Frades lo vão confessar; Mas basta, p' ra sua pena, Que só vã a degolar.»

E foi logo a padecer. Entrementes, la princeza e la rainha fallavam assim:

- «Senhora mãe, vinde ver, Vinde cá for`ao balcão, Lá vae conde d`Aramanha Nos braços d`um capellão.» - «Pola vida que te dei,


Polo leite que mamaste, Nã zombes, filha treidora, Da morte que lhe causaste.» -«Senhora mãe, vinde ver, Depressa, devagar não: La 'st:á conde d`Aramanha, Já no poder do sayão.» - «Pola vida que te dei, PoIo leite que mamaste, Nã zombes, filha traidora, Da morte que lhe causaste, - «Senhora mãe vinde ver, Vinde cá, a este lado; La 'stá conde d'Aramanha A rezar agiolhado. » - Pola vida que te dei, Polo leite quo mamaste, Nã zombes, filha treidora, Da morte que lhe causaste.» - «Consolae-vos, minha mãe. Que tudo 'stã acabado: Foram dois na mesma culpa, E só um lo degolado.»

VARIANTE IV

Conde d`Allemanha


Vinha lo sol dos oiteiros, Já era claro lo dia, E lo conde d' Allemanha E la rainha dormia.

La princeza qu' isto soube, De sua mãe e rainha, Foi ter com ella dizer-lhe Que tal feito nã convinha.

Diz la mãe:

- «Filha minha, já que sabes, Nã descubras, meu segredo; Que só del-rei lo sonhar, Toda eu tremo de medo.» Responde la filha: - «La camisa do meu corpo, Nã na chegu`eu a romper, Se vindo meu pae da guerra, Logo lh`o nã for dizer.»

La rainha:

- «Filha de minhas intranha, Nã me sejas desleal; Aqui me tens de giolhos; Nã lhe vás tu dizer tal: E te darei minhas joias, Que são do rico metal;


E vestidos de brocado. Que não ha oiro igual; E te prometto marido Nado de sangue real; E mais te darei em dote Todo lo meu cavedal.»

La princeza

Erguei-vos d'ahi, mãe minha; Nã sou eu la desleal: Nã quero las vossas joias; Meus oiros teem bom metal: Não quero vossos brocados; Los terei d'oiro igual: Meu pae me dará marido. Nado de sangue real; Tambem dote me dará Ve mais grosso cabedal. La camisa do meu corpo Nã na chegu' eu fi romper, Se, vindo meu pae da guerra, Logo lh'o nã fôr dizer.»

Palavras não eram dictas, Las trombetas a tocar; E nas torres da egreja Los sinos a repicar;

E las portas do castello


Abertas de par em par! É el-rei com sua tropa Pelo portal a entrar; E, chegado a a palácio, El-rei logo a desmontar, Todos contentes em roda, Só sua filh'chorar.

Diz el-rei :

- «Porque carpis, filha minha Em tão pruvico logar?

Responde ella:

-«Senhor pae, são triste novas, Qué só a vós vou contar; Tomae animo d'ouvil-las; Mal lo tenho de las dar; Que lo conde d`Allemanha Vos venho denunciar: Emquanto, vos pae, na guerra, Andastes a batalhar, Elle cá mail la rainha N'alcova s' iam deitar!»

Falla el-rei:

- «Nã los haver eu colhido Em seu peccado mortal!


Que logo lo pagariam Na ponta do meu punhal. Mas dessa tamanha culpa Que me daes vós por signal?»

Responde ella:

- «Que só elles aqui faltam A vos saudar no portal.»

E el.rei ficou calado, Só comsigo a pensar. Quantos lo viam tremem Do qu' êll' iria mandar.

E disse:

- «Venham los meus saiões, Venham los dois matar; Ao rabo do men cavallo Irá lo cond' a 'rrastar: E tambem a ti, má filha, Nã te quero perdoar; Em pruvico lo dixeste; Minh' affronta vaes penar.»

Presos foram todos tres, Todos tres a degolar; Lo conde, por ser vassallo, Foi levado a 'rrastar.


EI-rei nunca mais se riu; Em frade foi acabar.

XII

GENUIWAR

VARIANTE I

Dona Ouliva

Andava la Don' Ouliva Polos palacios reaes Penando las suas penas, E gemendo los seus ais: - «Lo meu amor da minh' alma Já se foi p 'ra nunca mais!»

Tinha lo marido longe, Mas tinha la sogr' ao lado; E pe!' arteira da sogra. Logo lhe foi perguntado: - «Que tendes vós, Don' Ouliva, Hi dentro alabarado?» Don' Ouliva então disse Lo qu'houvera ser calado: - «Eu vos peço, a Vós sogra, Por Deus vos peço, rogado;


Quando vosso filho chegue, Nada lhe seja contado;

Mas deixae-me ir além, A' quelle castello guardado; Quero ir" .. por devoção. . . Carpir naquelle finado.»

Pola mofina da sogra, Que lo filho quer vingado, Volvido êll' a palacio, Tudo logo foi contado.

Éll`ouviu; ná disse nada; Tinha cavallo sellado; Tinha esporas nos pés; Foi ao castello guardado: - «Deus vos salve, a vós guardas Deste castello guardado. Dizei-me que gent' é essa Que carpe nesse finado?» - «São donas e sãó donzellas, Pessoas de grande 'stado: Umas carpem lo irmão, Outras carpem lo cunhado, E lambem la Don' Ouliva Carpe lo seu namorado,» - «Digam lá a Don' Ouliva Que, por seu crime provado,


A cutello d'aço rijo Pescoço terá cortado, E seu corpo, n'umas andas, A seu pae será mandado.» Don' Ouliva d'onde 'stava,

Ouviu lo qu'elle dizia, E, perdida do juizo, Nestas vozes respondia: -« Manda-me viv' a men pae, Qu'eu então lhe fallaria; Qu' est' é qu'era meu amor; Qu'eu, a ti, nunca te qu'ria. De septe filhos que tive Será um de ti, se for; Esse que vista brilhante; Los outros, . .. triste rigor. Digam-me cão digam todos, Cada um e toda gente, Haverá cousa peior Do que casar malcontente? 0r` adeus, que'eu vou p'r'o ceo, Com meu amor vou p'ra sempre!» E, abraçada no morto, Morreu naquelle repente.


VARIANTE II

Dona Eurives

Andava Dona Eurives Cã e lá, em triste andar, Chorando las suas penas, Que devia de calar.

Pergunta-lhe sua sogra:

- «Lo que tendes, Dona Eurives, Que vos nã seja de grado?

Responde ella:

Por Deus, peço a vós sogra, Por Deus, vos peço, rogado, Que, em vosso filho vindo, Nada lhe seja contado: Qu'eu vou-m' além, ao castello, Carpir naquelle finado.»

Mas pola falsa da sogra, P'ra vel lo filho vingado, Tudo que la nora disse, Tudo lhe fôra contado.


Puxou elIe suas esporas; Tinha cavalio sellado...

E foi-se ao castello. e disse:

Deus vos salve, a vós guardas Deste Castello guardado. Dizei-me que gent' é essa Que carpe nesse finado?»

Respondem los guardas:

- «São senhoras e donzellas, Coisa de mui grand' estado: Uma carpe lo marido, Outras carpem lo cunhado E tambem la Don' Eurives Carpe lo seu bem-amado.»

Falla elle:

- «Digam-m' a essa ~senhora Que seuI amor é pagado: Entre duas facas finas Seu pescoço degolado; Mettido entre dois pratos, A seu pae será mandado.»

Ouviu ella, e disse:


- «Matae-me, já qu` a meu pae Eu fallar.lhe nã sabia: Qu' êst' é qu' era meu amor. E qu'eu, a vós, nã vos qu'ría. De septe filhos qu'eu tive Quatro são de vós, senhor; Los vossos vistam brilhante; Los outros, ...triste rigor. Digam quantos aqui s'tão, Digam todos, toda gente, S' ha peior coisa no mundo Do que casar- malcontente?' 0r` adeus, qu'eu vou.m' imbora, Com 'meu 'amor... pera sempre!»

Abraçou-se no morto, morreu, e foi a interrar com elle:


XIII

Don Duardos

VARIANTE I

Amores de Dona Lisarda

Foi em tempo uma princeza, Tão linda, tão ingraçada! Mais linda que flôr bella! Lo seu nom' era Lisarda: Seus desvellos e cuidados, Todos no jardim das flôres; Qu' ella então nã sabia Que coisa fossem amores.

Uma tarde, por alli, Um princip' á caç' andava: E, lâ nos altos fronteiros, A par do jardim estava. Lisarda lhe põe los olhos, E por simples, innocente, Logo, com setta d`amor, Seu peito já f`rido sente.

- «Lo amor na: tem alteza;


Eu vou arriscar quem sou; Vou arriscar minha fama; D'amor jà lhe fallar vou."

Responde-lhe sua aia:

- «Assocegue voss` alteza; Repare que nã lhe convem Arriscal la sua fama Por amor desse qu'rer.bem...

Diz Dona Lisarda:

- «Tendes razão, aia qu'rida; Ida vós, entre las flõres, Ide saber daquell' humem Se por mim anda d'amores.»

Responde ella:

-«Isso fic' á minha conta; Recolha-se voss' alteza. Que los passos p'ra nós guia Elle já, com gran lesteza.»

Chega lo principe, e falla:

- «Aqui d'entra d'estes montes-. Prantada nesse jardim. Eu luem vi 'star uma flôr,


Da brancura de jasmim, t

La aio:

- «Essa flor que vós dizeis É deste remo princeza, E deste jardim senhora, E dama que tom alteza. Ella os manda recado Que, se algum bem lhe qu'reis, Pola noit', alli á porta, Dar-Ih' uma falIa podeis.»

Elle então dá-lhé um anel, e diz:

- «Esta joia, aia minha, D' a!viçara vos offreço; Qu'eu hei de vir a gozar Essa flór q ae não mereço.»

Ella:

- «Meu rico senhor, adeus, Haja segredo, cautela Que prometto sera vossa Essa flôr, tão nobr' e bel!a.»

Elle:

- « Or`adeus, qu'rida aia;


Dizei ao meu serafim Que, por noit', aqui serei, A' porta deste jardim.»

Vae ella e falla á princeza: - «Agora, minha senhora, Póde ficar bem segura, Que lo nobre forateiro Por seu amor s`aventura.»

Diz la princeza:

- «Esta tard`, o aia minha Minhas jóias ajunctar, Que eu à noite pertendo Com meu amor m` ausentar. Chega, chega, noit`escura, Dos amantes desejada, P`ra que feliz eu alcance Prenda de mim tão armada!»

Mal anoitece, vão elle e ella, cada qual por seu lado, parar á porta do jardim, e se faliam deste modo:

- «Vós `staes hi, quy`rida minha, Minha princez` adorada?» - «Eu cá stou, lindos meus olhos, Prenda de mim tão amada.» - «Dae-me cá vos esses braços,


Que nelles me quero ver; Quero apagal lo fogo Que sinto em mim arder. - «Aqui tendel los meus braços; Juncto vae lo coração» - «Vinde ser minha mulher; Aqui tendes a minha mão - «Vamos imbora d`aqui, Antes qu`eu seja sentida; Que logo toda pessoa Saberá minha fugida.» - «Montae-vos aaui, senhora; A's ancas neste caval!o, Que bem segura vós is, Sem soffrer nenhumabalo.»

Então ella poz-se a carpir:

- «Mal la fortuna me leva; Mal la fortuna me guia; Nã sei se me furta um rei, S'homem de baixa valia! Adeus, palácios reaes, Palaciós, ond`eu vivia! Adeus, janellas tão altas, Janellas de ond' eu via Correrem las aguas claras, Las aguas da fonte fria! Adeus, aia da minh' alma, Com quem eu tanto me qu'ria!»


Respond' elle:

- «Calae-vos, senhora minha; Nã choreis, minh' alegria; Que tambem na Inglaterra Tem aguas la fonte fria; Lá tenho paços, 'janellas, E causas de mais valia; Tenho vinte-quatro damas, Que são nobre, companhia; Tudo isto e, muito mais Pera vossa senhoria.»

Dona Lisarda, ouvindo-lo, salta ás ancas do cavallo e foje com seu amor: e, olhando para traz, vae dizendo assim:

- «Or' adeus, pae da minh' alma, Qu'eu me vou p'r'a terr' alheia! La vossa casa, vasia, Fôra p'ra mim sempre cheia, Or`adeus, mãe da minh' alma, Adeus, mãe da minha vida! Hoje s'ausenta de vós La vossa filha tão qu'rida! E, s'alguem quer saber mais Parte da minha fugida, Pergunt' ao deus dos amores, Que delle me vou bem f'rida.


VARIANTE II

No jardim do seu recreio

No jardim do seu recreio, Passeia real donzella: Por linda e ingraçada, Nenhuma flôr é tão bella; Tem lo nome de Lisarda; E' na casa la primeira; Filha del'rei d'Aragão, E da c'roa la herdeira. Seus cuidados e disvellos Eram no jardim nas flores; Porque `te 'li ná sabia Que coisa eram amores; Mas nos montes defronteiros Ao jardim, ond' eIla 'stava, Um forasteiro galante Na pista da caç' andava: Ele que lhe põe los olhos, Ella que fica manente; Cada olhar, cada ferro Cravado no peito sente.

E diz ella:

- « Nã sei p'ra onde me vá,


Nem me conbeço quem sou! Stou louca d'amor por elle; Ao monte fallar-Ihe vou.»

Responde la sua dama:

- «Assocegae, vós senhora; Vêde que vos ná convem Ir jogal la vossa fama Sem lo saberdes com quem.»

Ella:

-«Bem disseste, qu'rida dama Fica tu entre las flores; Sabe-me delle quem seja; Se por mim morre d'amores.»

La dama:

- «Isso stá de meu cuidado; Recolhei-vos, vós senhora; Seus passos aqui guiando, Ello que vem sem demora.»

Dona Lisarda que entra para casa, lo forasteiro que chega e falla:

- «Daquelles montes mais alto


Vi dentro neste jardim Uma flôr, alva, formosa, Que pudéra ser jasmim.»

La Dama:

- «Essa flor, ó forasteiro, É nobre dama d'alteza; Senhora deste jardim, E deste reino princeza.»

Lo forasteiro

-«Aqui tens rico annel,´ Qu' eu d'alviçara t´offereço, P'ra deste jardim colher Linda flor, que bem mereço.»

La Dama:

- «Generoso forasteiro, Guardae segredo, cautela, Que, vós dou eu minha fé, Colhereis essa flor bella: `Sta louca d` amor por vós; E, se bem algum lhe qu`reis, Esta noit`áquella porta Ter lh`uma falla podeis.»

Lo Forasteiro:


- « O `sol de luzentes raios, Que luz ao mundo 'stás dand, Apressa mais la carreira, Que d`amor me vou penando!»

Vae la dama e falla á princeza

- «Que êll' é de nobre sangue Bem podeis ficar segura; No amor delle, senhora, Nã vos faltará ventura: 'Stá por vós louco d'amor, E, se bem algum lhe qu`reis, Esta noit`áquella porta Dar-lh` uma falla podeis.»

La princeza:

-«Chega, escuro da noite, Dos amantes desejado, Que quero eu ver de perto Aquell` amor adorado!

Cuida já, ó dama qu'rid'a, Minhas joias ajunctar; Porque, dê por onde dér, Vou m' com êll ausentar,»

La noit`escura chegou;


Passos mansinhos vem lá. Serão ambos, ou um só? Algum delles fallará?

Eram ambos, e assim se faltaram:

- «'Staes ahi, ó prenda qu'rída?» - «Aqui 'stou, prend' adorada.» - «Dêstes meus olhos sois luz.» - «E vós dos meus, prend' amada.» - «Vinde commigo, princeza, Dona do meu coração.» - «Mas, haveis d'arreceber-me Por mulher, na vossa mão.» - «Agora, vinde commigo; Ao mais ná digo que não.»

Desata ella a chorar, e diz:

- «Ficae, meu jardim das flores; Ficae, fontes d'agua fria, Onde cantam passarinhos Todal las horas do dia! Ficae vôs, dama fiel, Que mais fiel nã n' havia! Ficae-vos paços reaes, De oiro e pedraria!

Ficae-vos, vós pae e mãe, Pae e mãe qu'eu tanto qu'ria!


Furta-me nã sei s'um rei, S'homem de baixa valia.»

Responde elle:

- «Nã vos vades tão soidosa, Não choreis, minh' alegria, Qu'eu sou lo filho d'um rei, Principe d' alta valia. Tambem lá na minha terra Tem aguas lá fonte fria; Los jardins teem passarinhos, Que cantam todo lo dia; Tem la côrte muitas damas, Que vos farão companhia; Lá tenho paços reaes, De oiro e pedraria; Lá tenho paes, que serão Paes de vossa senhoria.»

Dona Lisarda então diz de contente:

-« S' alguem procurar quizer Parte da minha fugida. No reino d'amor procure, Que p'ra dá vou de corrida! Se meu pae cá perguntar; Por uma filha que tinha, Digam que me lev,' amor, Muito por vontade minha.»


XIV

BELLA INFANTA

'Stando Ia BeIla Infanta No seu eirado sentada, Com seu rico pente d'oiro Sua trança penteada, Deitou olhos a la mar, E viu uma grand' armada, Que lo capitão mai'ral Trazia mui bem guiada.

-«D'onde vindes, capitão?» - «Na.s guerras sanctas anda.» - «Vistes por lá meu marido, Oue também lá guerreava?» - «Se lo vi, nâ lo conheço. Dizei que signaes levava.» - «SeIla chapeada d'oiro, Cavallo branco montava; Na ponta de sua lança Balsão de guerra deitava.» - «Se conheço! Bem lo vi 'Té l`hor` em qu'elle finava, Lo ferro de septe lanças Seu peito atravessava;


Ha sept' annos que morreu; A par de mim batalhava.» - «Cuitada de mim, viuva; Triste de mim, cuitada! Que me vejo com tres filhas, Sem nenhuma ser casada!» - «Calae-vos 'hi, BeIl' Infanta; Quem quer bem nã desespera. Que darieis vós, senhora, A quem lo aqui trouvera?» - «De tres asenhas que ten'ho Eu todas tres voI las déra; Uma, de moer esparto; Outra, de moer canella; Outra, de farinhas trigas, Para el-rei d'lnglaterra. - «Nã quero asenhas vossas; Dizel- las minhas pudéra. Que darieis vós, senhora, A quem lo aqui trouvera?» - «De las tres filhas que tenho Eu todas tres vol las déra; Uma, pera vos servir; P'ra vos catar, outra era; La mais chiquita de todas Ser vossa mulher houvera.» -« Nã quero las vossas filhas; Isso nã me conviera. Que clarieis vós, senhora, A quem lo aqui trouvera?»


- «Daria um reino todo, Se de mim lo tivera

Mas, nem tendes que pedir. Nem tenho mais que vos dera.» - «Vós mais tendes que me dar; Eu inda nada pedi. Dae-me vós Ia voss' alcova; Senhor;'!, comrnigo dormi.» - «Vinde matar esle homem, Meus 'creados, acudi!» -«Atraz, atraz, Dons creados; Que tambem lo sois de mim.» - «Sereis vós lo meu marido?» « Eu lo sou, senhora, sim. Do annel de septe pedras. Qu'eu comvosco reparti, Amostrae vossa metade ; La minha, vêde-l'aqui.» - «Ai, vós sois lo meu marido! » - «E vós Ia mulher de mim.» - «O' marido de minh'alma, Então, digo-te que sim.»


XV

Ruy Cid

Polla veiga de Granada El-rei moiro passeiava, De sua lança na mão, Com que pássaros matava: Nã lhe dava pollos pés, Nem pollos azas lhe dava; Dava-lhe certo no bico, Que logo los derreava.

E, nisto, lhe chegam novas Ou`Alfama lh`era tomada.

E Cramou

- « Ai, Alfama,minh`Alfama, Que m`estavas mal guardada! Ainda hontem, dos moiros; Hoje, dos christãos ganhada! Ai,Alfama, minh` Alfama, A fogo sejas queimada, S`amanhã lo sol raiar Sem de moiros ser c`roada!»

E chamou por seus moiricos,


Que lh'andavam na lavrada; Nã lhe vinham um a um; Quatro, cinco, de manada.

E disse:

- «Quem é lo avenluroso Que me ganh' esta jornada?» Respondeu-Ih' um moiro velho, De cem annos, menós nada;

- «Esta batalha, bom rei, Só por vós será ganhada: E lo perro de Ruy Cid Lo tereis pela barbada; La sua Ximena Gomes Será vossa captivada; Sua filha Don' Urraca Será vossa mancehada; E la outra, mais chiquita, P'ra vos servir, descalçada.»

Huy Cid, qu` stav` ouvindo Da torre, sua morada, Logo chamou sua filha Dona Urraca chamada.

E lhe disse:

- «Veste, filha, teus brocados;


D'ir á festa mais honrada; De chapins d'oiro, não prata, Vem, tu filha, bem calçada; E já, já, põe t' á janella, Ao caminho defrontada. Em quanto vou cavalgar E cingil la minha 'spada, Detem-me tu lo rei moiro, Qu' ha de passar na estrada. Vae tu palavr' em palavra, Cada qual bem demorada; Cada uma dellas todas Que seja d'amor tocada;»

Pergunta ella:

- «Como lh`hei fallar d`amor, Se d`amor eu nã sei nada?»

Responde Ruy Cid:

- «Falla-lhe desta maneira, Uma falla bem fallada: «Bem appar`cido, rei moiro, Nesta hor`abençoada! Há sept`annos, já sept`annos, Que de vós sou namorada ; Já vae correndo nos oito; Quero m`ir por vós furtada.»


Vestida de seus brocados, De chapins d`oiro calçada, ´Sta Urraca de janella Ao caminho defrontada; E deitando olhos ao longo, Vê lo rei que vem na estrada, E lo moiro, que la viu, La saudou, bem cortejada: - «Alá vos guarde, senhora, Nesta hor`afortunada!»

Éll, então, desta maneira Fallou falla bem fallada; E de palavr`em palavra Cada qual bem demorada,

Cada uma d`ellas todas Era do amor tocada: - «Bem appar'cido. rei moiro Nesta har' abençoada! Ha sepl' annos, já sept' annos, Que de vós sou namurada; Já vae correndo nos oito; Quero m'ir por vós furtada.» - «Senhora, n'isso que qu'reis, Andaes bem aconselhada: De tantas mulheres qu'eu tenho, Só vós sais ue mim amada; Sereis rainha dos moiros, Em grandes festas c'roada;


De duzentos mil vassallos Tere-is vossa mão beijada.»

ÉIl' então lhe diz, com pena, J i talvez enamorada: - «I-vos d'aqui, meu rei moiro; Nã me cuideis refalsada. Assomar vi cavalleiros, Que lá vem de mão armada Com meu pae, lo dom Ruy Cid, A correr à desfilada.» Responde lo moiro:

- «Nã me temo de Ruy Cid, Nem de sua gent' armada; Só temo lo seu Babieca, Filho da minh egua baia:

Perdi-lo numa batalha; Bem lhe sinto la patada.»

E lo moiro lá se vae De carreira desfechada, Por meio duma courella Jã do arado cortada: - Mal haja-lo lavrador, Que fez tamanha lavrada!»

Lo moiro sempre correndo De carreira desfechada,


Vae a caminho do rio, A' barc' ahi costumada: - “Também mal hajas barqueiro, Que tens la barca varada!»

E, na sua egoa baia, De carreira desfechada, Logo se metteu ao rio, Que nã tinha qu'esp'rar nada.

E ia cramando:

- «La mulher mãe dum só filho, Ai, que mãe tão desastrada! Espora, que delle caia, Por niguem será tomada! Que lo firam, que lo matem, Nã tem la morte vingada! Mas, se desta me vou; salvo, Oh, que desforra tirada!»

No comenos, vem Ruy Cid, Vê lo rnoiro ir a nado; E,de raivoso, lh'atira Um dardo, bem apontado.

E diz:

- «Guardae-me lá genro meu, Este dardo bem guardado.»


E, no corpo do rei moiro, Ficou lo ferro cradado.

E lo moiro foi cramando:

- «Como guardar-te, Ruy Cid, Esse dardo traiçoado. Se me vae a dentro d`alma, No corpo atravessado? Mas nã môrra desta feita, Que te prometto, sagrado, Varar-te c`um cento delles. Sem precisar ser rogado.»

E morreu.

XVI

ESTORIA DA CAPTIVA RAINHA

Na minha terra de França, Menma me divertia; Era na Paschoa florida; Rosas no rosal colhia. Andarem moiros na costa Quem então lo cuidaria?


Mas, quando mal me precato, Captiva delles cahia! .-«Ai; adeus, terra de França, Ond' eu vi la luz do dia; Ai, adeús, meu rosal verde, Das rosas qu'eu só colhiá; Ai, adeus, ó padre e madre, De quem eu er' alegria; Ai, adeus, irmã chiquita, Com quem Ia noit`eu dormia! Cá me levam p'ra Moirama; Valei-me; Virgem da Guia!»

Chegados lá, fui mandada A' real alcaçaria. Lo rei moiro, que me viu Logo p'ra mim se sorria;

E eu, logo que lo vi, Toda de mêdo tremia: E fui post' a septe chaves, Quer de noite, quer de dia; Mas lo rei, louco por mim, Rainha de mim fazia.

Oh, que lagrymas chorei Das soidades que sentia! E sosinha las chorava, Que lo, rei nã gostaria; Nem eu tinh' a quem falIar


No fallar qu`eu intendia, Mas lo rei que m'espreitou, De repente vem um dia, E, voz branda, me pergunta Porque é qu`eu choraria? Levada de mim dôr Sem mais cuidar, respondia: - «Chóro la terra de França, Onde vi la Iuz do dia: Choro lá meu rosal verde, Das rosas qu`eu só colhia; Choro lo meu padr` e madre, De quem eu er`alegria; Choro la irmã chiquita, Com quem la noit`eu dormia... Mandae-me p:ra minha, terra, Qüe Deus vol lo pagaria.» - «Que não, que não,» voz é gesto, Lo rei moiro repetia. E eu, cahindo em mim,

La verdaile retorcia: - «Nas palavras que m'ouvistes, Rei senhor, eu vos mentia Que só las disse p'ra ver S'ind' amor eu vos mer`cia. Se vós me vistes chorar. Era...porque vos não via. Eu lá na terra de Françaa Rainha nunca seria.»


Lo rei moiro, mal m'ouviu, Logo p'ra mim se sorria; Mas eu, vendo-lo sorrir, Ind' assim mesmo tremia: E, voz branda, me pergunta Se de Franç' algo qu'reria? Eu, por nã ficar calada, Sem mais cuidar, respondia: - «Lo que de França eu quero.... Só uma serva seria.» - «E la tereis, não malata, Nem raça de villania.»

Palavras não eram dietas, Lo rei que se despedia, E chamou lo capitão, Que sua galera regia: La galera logo, logo, Rumo de França seguia.

Lo capitão, que lá chega, Vê vir uma romaria

Que Io conde Branca-flor Com snua mulher fazia, Por lh'estar p'ra ter um filho, Herdeiro á fidalguia. - «Al arma, al arma, moiritos (Lo capitão-mor dizia)! De tanta gente qu' hi vae


Aquella dama só qu'ria; Que não é mulher malata, Nem raça de vilhania.»

Foi la gente da galera Calada, que nem togia; Uma vae por debaixo, Outra por de riba ia; Los moiros assim commettem La devota romaria: Cae lo conde logo morto; La condessa esmor'cia; Toda la sua mais gente A ferro frio morria. Quando la condess' acorda, Já na galera se via: - «Cá me levam p`ra Moirama; VaIei-me, Virgem da Guia!»

Chegada lá, foi mandada. A' real alcaçaria: Lo rei moiro, que la viu, Logo de Ia ver sorria; Ella, que vê lo rei moiro, Toda de medo tremia.

E lo rei ná manda, vae Me dizer, em cortezia, Que de Franç' alli chegava Captiva d'alta valia,


Que não de raça maIata, Tão pouco de villania, Mas uma nobre condessa Da melhor da fidalguia; Que me la dá por oferta, Que promettida devia.

Vem la condessa 'pós elle; La triste nem se sustinha: Eu senti la sua dôr, Tamanha, irmã da minha; Quanto mais que do seu mal Culpa tambem a mim vinha; Mas calei-me por escrava, Com me chamarem rainha.

E, depois, assim lhe fallo, Quando to rei caminha: - «Ouvide, triste condessa, Vós aqui nã sois sosinha; Por vos ter a meu serviço, Por vos ter de mim visinha, Vos entrego nestas chaves Uxaria e cosinha. Servireis de cosinheira Desta captiva ... rainha. »

La condessa respondeu, Como escrava que vinha: - «Los pés vos beijo, senhora,


Por me qu'rerdes ser madrinha. Mas eu ver-me quem, eu era Feita bicho de cosinha! Nem na casa de meu pae, Nem, despois, com casa minha: Eu nunca temp'rei panella, Qu` isso a mim nã convinha. Como pod'rei cosinhar Manjares d'uma rainha?».

Mas la condess' é pejada; Pejada é la rainha; E, na dor por que passavam; La dôr dos partos lhe vinha! Cada qual, á mesma hora, Pariu sua creancinha; La cqndessa, seu rapaz; E la outra, sua ninha: Mas las falsas das parteiras, Por mór lucro que lhe vinha! Dão la filha á condessa, Dão lo filho á rainha; E tal segredo guardaram; Que ninguem lo adivinha.

Então ia triste condessa, A chorar, assim dizia: - «Fôra eu na minha terra, Filha, te baptisaria, Não com agua destes, olhos,


Mas da igreja na pia; E por nome te puzera Lo nome qu'eu gostaria: D'appellido Branca-flor, Clara te chamaria; É lo nome de mi madre E da irmã qu'eu teria, Se dos moiros da Moirama Ella captiva não ia, Quando, na Paschoa florida, Rosas no rosal colhia.»

Palavras não eram dietas, Las vão dizer á rainha, Que logo córr' á eserava, Não la escrav' á rainha: - «Venho saber como'staes Vós e la vossa filhinha.» - «Senhora, vou tendo leite Para esta creancinha.» - «E que nome Ih'ei de pôr, Eu que serei la madrinha?»

Em resposta, la condessa Lo já dicto repetia: - «Eu por nome lhe puzera Lo nome qu'eu gostaria: D'appellido Branca-flor, Clara lhe chamaria; É lo nome de mi madre


E da irmã qu'eu teria, Se dos rnoiros da Moirama

Ella captivan não ia, Quando, na Paschoa florída, Rosas no rosal colhia.» - «E, vós senhora, sabeis Que signal ella teria?» -« Nhôra 'sim, eu bem lo sei; Ella comimigo dormia: Tinha 'entr' ambol los peitos Cruz, que de sangue par'cia:» La rainha, logo, logo, "Té la cinta se despia: - «Serei eu la irmã vossa?» - «Essa é la cruz qu'eu via!» Uma na outr' abraçadas. Nem palavra se lh 'ouvia.

Entremenfe, lo rei moiro Alli tambem acudia: - «Rainha, que grande caso A vir aqui vos traria?» - «Nesta condessa de França Minha irmã descobria. Fui eu quem la fiz viúva; Quem captiva la fazia, Quando, por peccados meus, Uma serva vos pedia! Ai de mim, arrenegada!


Valei-me, Virgem da Guia! Tamanha desaventura, Quem remedio lhe daria?»

Lo rei moiro com ser moiro,

Compadecido dizia: - «La vossa irmã condessa: Livre é desd` este dia; E podeis-vos ir com ella; Ambas vós de companhia; Eu vos dou riquez' a monte, A carregar sem contia; Mais vos dou minha galera. De cem remos á porta, Com duzentos christões dentro, E a todos, alforria.»

Lo rei moiro, se lo disse, Inda melhor lo cumpria: La galera já lá vae; Rumo de França seguia.


XVII

NAU QUE VAE A GUERRA

-«Adeus, vós máe da minh' alma, Que já ná torno a ver; Lá vae esta náu á guerra Pelejar até morrer.»

Oh, que chôro vae na praia! Imbarcam los navegantes; Choram las mães pollos filhos; Las moças, pollos amantes: Todos são rapazes novos Que vão á guerra do mar; Homens velhos já nã podem Tamanhos p'rigos passar.

Quando já, de mar em fóra, Capitão terra nã via, Mandou pôl la gente prompta, Safar su' artilheria; Porque lá longe avistara Galera da Grã-Turquia.

Perguntou lo capitão: - «Quem trazeis em companhia? Ella de lá respondeu


Qu' arrenegados trazia. Elle, c'um Christo nos braços, De pôp' a prôa dizia: - «Soides neto de Sanct' A nna, Filho da Virgem Maria; Nã deixeis los moiros perros Em ponctos de galhardia, E nós, que somos christões, Em ponctas de cobardia.»

E chegaram-s' um' á outra, U ma e outr' á porfia; Entraram de combater; Uma nem outra vencia: Tanto era de cabeças, Que no convés nã cabia; Tanto já era de sangue, Que todo lo mar tingi; La bandeir' andav' a rastos; Só la pôpa combatia... Esta náu, que foi p'ra guerra, Já nã pelejava, morria.


XVIII

ESTORIA DO CAPTIVO

VARIANTE I

Fui captivo p'ra Moirama, PolIo trist' azar da guerra; Que por mim moneta desse Não houve perro, nem perra; Comprou-m' um arrenegado, Rico daquelIa má terra. Metteu-me n'um' enxovia, Onde vida se desterra; De noite, moer esparto; De dia, pisar canella, E de mordaça na bocca, P'ra que nã comesse delaa.

Uma filha tinha elle.

Que, por bem meu, bem me qu'ria; Quando seu pae 'stava fóra, Todo lo bem me fazia: Dava-m' a comer bom pão, Do qae lo perro comia; Dava.m' a beber bom vinho,


Do que lo perro bebia; Dava-me fina camisa, Das mesmas qu' elle vestia; Deitava-m' em boa cama, Na mesm' ond' elle dormia. Catando-me na cabeça. Assim me falIou um dia: - «Se fosses p'ra tua terra, Eu tambem comfigo ia.» - «Pagado lo meu resgate, Isso melnor ser pod`ria.»

Então elIa foi e veiu, E me deu grossa contia.

E disse:

- «Nã delatés; a meu pae Quem te deu tanto dinheiro; Dize que la tua gente Lo mandou do mealheiro. E vae, anda, meu christão, Acaba teu captiveiro.»

Nisto, lo perro chegando. Bem longe de mau cuidado, Se foi ver do seu captivo Duro trabalho cançado. E, então, de mim a elle Lsto ssim foi fallado:


- «Ouvi cá, meu senhor turco, Meu turco arrenegado, Eu já tenho lo meu preço Pera ir ser resgatado. - «Dize-me cá, bom christão. Pollo Deus crucificado, D'ond' houveste la moneta, Com que ser descaptivado?» - «Tenho pae e tres irmãos. Cada um foi ser soldado; Tres irmãs foram a ganho; Tudo p'ra me ver forrado. - «Ouve-me cá, bom christão: Vem ser turco renegado. Que te darei minha filha: Com quem tu serás casado.» - «Nã me falIeis em ser turco, Da saneta fé arredado; Tenho posto na minh'alma Jesus Christo retratado.» - «Fizera-te meu herdeiro Do tanto qu'eu hei ganhado.» - «Nem la filha, nem herdança; Só me quero resgatado: Aqui tendes lo meu preço Em dinheiro de contado.»

Pagou, e ogo se foi livre. La moirinha, quando lo soube, desatou a carpir, e disse:


- «Lá se vae p'ra nunca mais Quem eu qu'ria pera mim! Lo mar lhe seja de rosas, La terra lhe seja jardim. Vou pregar minhas janellas. Calafetal-las de chumbo, P'ra que nã digam los moiros Qu'eu seja mulher do mundo; Ou então melhor será CaIafetal-las de prata, P'ra que ná digam los moiros Vêde la filha ingrata.»

Seu pae ouviu e disse:

- «Oh, filha minha, vem cá, Falla-me tu, confessada; So te deve lo christão, Eu te juro bem vingada.

Ella então respondeu:

- «Da minha honra Ia flôr Fôra nell' mal impregada... Deixae vós ir lo christão; Lo christão me deve... nada.»

E, despois de seu pae se ir embora, ficou ella a chorar baixinho e a dizer comsigo:


- «Já lá se vae mar em fôra Quem não era pera mim!

A nada lh'eu disse «não»; A nada me disse «sim»! Sejas-me, terra, desterro; Sejas-lhe, terra, jardim.»

E ninguem viu mais la moirinha.

VARIANTE II

Eu fui captivo de moíros, Entre la paz e la guerra. Feio logar la Moirama; Eu nunca vi tão má terra! Não houve moiro, nem moira Que por mim moneta dera; Um turco escommungado De mim fez quanto quizera; Dava-me muito má vida, Muito má morte me dera: Eu, de noite, pisei cravo; De dia, mohi canella, E sempre freio na bocea, Pera nada provar della.


Tinha lo moir' uma filha; La filha muito mó, qu'ria; Quando elle s' ausentava, Com ella me divertia: Ella me dava bom pão

Daquelle que lo pae comia; ElIa me dava bom vinho Daquelle que lo pae bebia; Catava minha cabeça, Ao perro nã lo fazia; Deitava-m' em catre d'oiro, Onde nem elle dormia. - «Vae, christão, p'ra tua terra, Ella me disse n'um dia, - «Mas como d`aqui sahir? A' moirinh' eu respondia. - «Aqui tens tu esta lança,» La moirinha me dizia: «Se tu incontras mulheres, Cuidarão que vaes á serra; Se homens tu incontrares, Cuidarão que vaes à guerra; Assim tu irás passando, ''Té chegará lua terra.»

Indo assim por hi`fora, Sua mãe que m`appar`cia: - «Onde vaes tu, ó christão; Ond`é tua romaria?»


- «Vou-m` á serra caçar caça, Qu` hi p`r` além já nã n`havia:»

Eu me fui mais adiante; E seu pae que me sabia: - «Onde vaes tu, o christão; Ond`é tua romaria?» Fiquei-me de voz tomada, Sem saber lo que diria; E me volvi de caminho Ao logar d'onde fugia, A trabalhar n' atafona, Como d'antes eu fazia.

La filha do perro moiro De cada vez mais mo qu'ria: - «Vae, christão, p'ra tua tena, Ella me diz n'outro dia. - «Mas, como sahir d'aqui?» Eu á moira respondia. Foi-se ell' ao contador; Duzentas moedas trazia: - «Nã no digas a meu pae Quem te deu esta contia. Pago d'aqui teu resgate, P' ra viagem ficaria. La mulher com quem casares Será de mais fidalguia, Mas fazel lo q u' eu te faço Outra nenhuma fazia.»


N'isto, lo moiro chegou; Ficou tudo conchavado; Meu resgate lhe paguei, Em dinheiro de contado. - «D'onde te veiu, christão, Tanto dinheiro cruzado?» - «Tenho solar, tenho terras, Tenho muito grand" éstado; Esse dinheiro e mais

Tinhalo eu interrado.» - «Bem pudéras tu, christão, Ser turco arrenegado; Eu te fizera herdeiro De quanto tenho ganhado.» - «Nã quero ser turco moiro, Tão pouco arrenegado; Que Jesus de Nazareth É lo Deus crucificado:» - «Se te quizéras fazer Arrenegado christão, Bem pudéras governar Quantos neste reino são.» - «Nã quero ser turco moira, Arrenegado christão; Que Jesus de Nazareth Padeceu mort' e paixão.» - «Bem puderas tu, christão, Arrenegar Jesus Christo; Eu te dera minha filha;


Tu bem na has de ter visto.» - «Nãbquero ser turco moiro.» Arrenegado de Christo; Que Jesus de Nazareth 'Stá ouvindo tudo isto.»

Mas lo moiro, suspeitoso, Disse, de voz carregada: - «Vem cá filha, ouve cá» Falla verdade, jurada; Este mofino christão A ti nã te deve nada?»

- «La flor da minha honra; Fôra nelle mal impregada.... Deixae vós ir lo christão; A mim nã me deve nada.»

E eu, sem olhar p'ra traz, A caminhar na estrada; E eu, som esp'rar maré, Numa barca, navegada: - «Cá me vou p'ra minha terra; Adeus, moira namorada.»

La moira ficou dizendo A uma sua creada: - «Lo christão já vae andando Por aquele mar além... Mal haja lo meu pae moiro,


Que na sua lei me tem! Las janellas desta casa Mandem-las forrar de tela; Nã venham dizel los moitos: - «Lo christão lá vae á vela.» Las janellas desta casa Mandem-lhe dar calafêto; Nã venham dizel los moiros Que só casarei c'um preto.»

XIX

DOM HENRIQUE D’ ALENCASTRO

Neste cerrado aloredo, Neste bravio montado, Aqui vivo como bicho Entre rochas interrado; Vae lo dia, vem Ia noite, Nada p'ra mim é mudado; De minhas penas sustento Lo triste de mim cuitado! O' vós troncos e penedos E bichos do descampado, Vinde ouvil las tristes queixas


Deste pobre desgraçado.

Dom Hanrique d' Alencrasto E' meu, nome verdadeiro; Dos duques desta linhagem Sou lo unico herdeiro; E, sendo eu só na casa, Fui em tudo lo primeiro; Que meu pae muito me quis "Té dar lo ai derradeiro.

Com todol los meus coiteiros Fui a montear um dia; Fôra eu p' ra trazer caça, Mas outrem me caçaria. Bem longe de tal cuidar, Pista da caça corria, Quando, lá 'Iem assomando, Fermosa dam' appar'cia. - «Olhae lá, coiteiros meus, Quem la formosa seria?» - «É Dona Guimar de Crasto, Da mais alta figalguia.»

Se mais disseram nã sei, Que, por mim, nã nos ouvia; Todo eu `stava nos olhos, E não andava, corria.

- «Senhora, servo sou vosso;


Por vós aqui morreria: Acceitae-mo por marido; Por mulher vos tomaria.»

Despois qu'eu assim fallei, ÉIl' assim me respondia: - «Dom Hanrique d`Alencrasto. Isso era lo qu' eu qu'ria.» - «Jurael-lo, senhora minha?» - «Juro, por virgem Maria, Mulher só de vós serei; D'outro não, nunca seria.»

E voltou ao seu castello;

Ao de meu pae eu volvia, Est` amor de mim e della De sol a sol mais crescia. Entrementes, a meu pae, Que tão leal se tractava, Por mexericos d'um conde. Logo el-rei condemnava. Mas, quando foi la justiça, Que por elle procurava, Já não achou quem prender; De morrer êll' acabava.

Só ele nom' eu conhecia Quem lo meu pae me matava; Um conde novo na cõrte,


Que no amor m'invejava! E ao novo condesinho, Que no amor m'invejava, El-rei, com minha's herdanças, Dona Guimar tambem dava!

Calado, quedo fiquei, Que nem lagryma chorara; Ninguem m'ouviu dizer «aí»; Mas cá dentro rebentava!

Pera ir onde Guimar, De romeiro me vesti: Rondei la Casa tres dias; Nunca, nunca, nã vi! Mas passou um fidalguinho,

Todo soberbo de si: - «Dona Guimar, senhor meu, Iria longe d'áqui?» - «Stá inferma, bom romeiro; Orae por ella, por mim; Por mim, que sou noivo d'ella; Por elIa...»-Mais não ouvi. Cegou-me nã sei lo quê; Menos sei lo que senti; No ladrão do condesinho Lo meu punhal afundi.

Como êll' era quem era,


Logo foi grande motim; Cramaram, á voz deI-rei, Todos, todos contra mim. Mas lo trajo qu'eu vestia Logo, logo lo despi; Por meio da tanta gente, P'ra estes montes fugi.

- «Ai, Dona Guimar de Crasto, Quem cuidára, quem diria Que tu me foras treidora, Quando las juras t`ouvia?

Palavras não eram dietas, Dona Guimar' qu'appar'cia ; - «Dom Hanrique d'Alencrasto, Quem no dissera, mentia. Jurei ser tua mulher; D` outro não, nunca seria;

Que me custasse la vida, Minhas juras cumpriria. Tudo a ti te roubaram; Tudo por ti deixaria. Por 'mór de mim, tu mataste; Por 'môr de ti, morreria. Dona Guimar aqui 'stou, Pêra tua companhia. Eu sou tua, tu és meu; Valha-nos Jesus, Maria.»


XX

POMBA SEM FEL

Tlrste caso me fez triste Desde minha mocidade; Nunca houve mais amor Nem maior inf'licidade.

Morreu lo conde nas guerras Em que Portugal ardia; Uma filha lhe ficou. Que com sua mãe vivia: La filha, pomba sem fel, Melhor d'alma ná n' havia; Desde que nos avistámos, Nos amámos desse dia.

Mas lacondessa viuva. Era toda soberbia; E, com ser fidalgo eu, Por genro me nã qu'reria; Que só a cond' ou marquez; La sua fiiha daria: Por isso, cá fomos ambos Namorando de porfia; Mas com tamanho segredo. Que ninguem lo sonharia.


Nestes amantes cuidados, Tardo lo tempo corria; Despois, la pomba sem fel Cada vez mais 'doecia; Cada vez, maior magreza, Mais forte febre Ih'ardia; Toda só na pell' e osso, A fôgo lento morria.

E, na fim, la triste pomba, Triste, sua mãe chamava; Sua mãe, trist', acudiu; La filha, triste, fallava: - «Vinde cá, senhora mãe, Vind'á minha cabeceira; Fazei-me lo que vos peço, Por vontade derradeira: Nã posso dar alm'a Deus Sem me ver com meu amor; Nã me deixeis, mãe, morrer Afogada nesta dor!»

Sua mãe só perguntou Quem assim l'apaixonava; La minha pomba sem fel Tudo, tudo lhe contava: E la condessa viuva, Ella mesma, me buscava! Eu, quando la vi, chorei;


Ella, que me viu, córava.

E me Disse:

- «Que m' acontecesse esta, Eu nunca nem lo sonha! Minha filha vos quer ver; Que, sem vos ver, afogava.»

Palavras não eram dictas, Eu como louco fiquei; Corri logo por 'hi fóra; Que nã corria, voei: E, mais morto do que vivo, A' porta della cheguei; Chegando, nã oúvi nada; Dou um impurrão, intrei.

- «Inda bem, ó meu amor! Sem te ver não acabei.» Era ella que fallava; Eu, por mim, nada fallei. - «lnda, bem, ó meu amor, Que sem te ver nã fiquei. A' espera de cá vires,

Contr' esta morte briguei. Agora, dá-me teus braços; Dá-me cá beijos tambem; Venha cá abençoar


Tristes noivos, minha mãe.»

Chegou sua bocc' á minha Logo qu'estas fallas deu, E, no meio deste beijo, Fechou olhos, e morreu.

Giolhou la mãe commigo A chorar em altos gritos; -Neste mundo cá ficámos Dois corações afflictos.

O`morte, ó cruel morte, 0lhae que roubo figestes: Interraes meu coração A' sombra dos acyprestes! O' morte, ó cruel morte, Matastes quem Deus não quis! Sou arvor' qu'está de pé, Mas cortada na raiz.

XXI

NAU CATHERINETE

VARIANTE I


Ah nossa nau Cath`rineta, Andas perdida na mar! Jã nã temos que beber; Já nã temos que manjar; Dotámos sola de môlho, Pera um dia jantar; Mas era ella tão rija, Que nã se pôde rilhar.

Deitámos, então, em sortes Qu'al'haveramos matar; E no capitão maioral Septe vezes foram dar.

- «Vinde cá, bom pilotinho; Ajudal lo a matar.» - «Tenho feito juramento No meu livro de rezar: Capitão com quem companhe: Nã no hei d'atreiçoar.»

Palavras não eram dietas. Diz lo capitão maioral: - «Vinde cá, bom pilotinho, Meu amigo tão leal, Assubi-m' ãquelle mastro, Áquela gavea real; Vêde s`avistaes de lá Las praias de Portugal. Se vós avistardes terra,


Grande tença vos hei dar; Tanta dinheiro tereis, Que possaes nau carregar; E vos darei minha prima. Pera comvosco casar; E la minha melhor terra Em dot`éll' ha de levar.»

Responde lo piloto: - «Nã quero la vossa lança, Que só el-rei póde dar; Nã quero vosso dinheiro, Qu'inda tendes por ganhar; Nã quero la vossa prima, Que nã mandastes crear; E menos la vossa terra, Qu'inda tendes por herdar, Quero la nau Cath'rineta. P'ra com ella navegar.»

Diz lo capitão:

- « Inda la triste da nau Muito terá que passar. Levae-la vós a bom porto, P'ra que la possaes ganhar: Ide lá bom pilotinho, Meu amigo tão leal, Assubi-m' áquelle mastro, Áquella gavea real,


Vêde s`avistaes de lá Las praias de portugal.»

Sób' lo piloto arriba Da alta gavea real, E Já derriba bradou: P'ra lo capitão maioral: - «Alviçaras, capitão, Meu capitão general! A visto costa d'Hespanha E costa de Portugal: Parecem duas meninas Postas no seu laranjal; Ambas teem seus fructos loiros E seus fios de crystal!»

Palavras não eram dictas, Diz locapiíão maioral: - «Deixemos costa d'Hespanha; Vamos á de Portugal; Ahi é la minha terra, La minha terra natal!» - «Ganhei la nau Cath'rineta, Meu capitão general.» - «Mas quem vol la põde dar É el-rei de Portugal.»


VARIANTE II

Por sept` annos e um dia Sob las ondas del mar, Andou la nau Cath`rineta, E nã tinham que manjar: Da coirama, que traziam, Demolharam p`ra jantar; Mas la coirama, tão dura, Nã na puderam tragar: E então deitaram sortes, P`ra quem haviam matar.

La negra sorte cahiu No bom capitão maioral.

E disse elle:

- «Vem tu cá, mestre piloto, Que sempre foste leal, Assube-m`áquella gávea Desta nossa nau real; Vê se m`avistas la terra Do reino de Portugal.»

Lo piloto diz la riba:

- «Parabens, senhor maioral, Qu'inchergó além la terra


Do reino de Portugal: Parece moça morena Debaixo d'um parreiral; Tem, por cima, cachos d'oiro; No chão, fiogsde crystaI; E, com ser tão pequenina, Tem lança, nã quer dedaI!»

Responde lo capitão:

-«Leva-me, piloto mestre, A' terra de Portugal; Lá mataremos la fome Debaixo do parreiral; Lá mataremos la sede Nesses fios de crystal; A demais, terás em paga Muito do meu cabedal.»

Diz lo piloto:

Nã quero dos cachos d'oiro, Nem dos fios de crystál; Tam pouco vosso dinheiro: Quero voss' alma, maioral!»

Então, lo capitão, vendo que lo piloto era um diabo, cramou:

- « Eu t`arrenego, diabo; Nã me venhas attentar!


Seja minh` alma p'ra Deus; Fique meu corpo na mar.»

Lo diabo do piloto, Rebentou, sem mais fallar; Foi la nau a salvamento Logo no porto intrar.

E agiolharam todos, e lo capitão maioral resou sua oração assim:

- «Virgem Maria saancta, Mãe de Deus, e mãe de nós, Apressada is' á cruz; Apressado vim a vós. Quatro cantos tem la casa; Quatro cirios a 'rder; Está lo Anjo da Guarda P'ra do Cão me defender; E Jesus, á minha bocca; E Jesus, neste meu peito; E Jesus, por ond' eu ando; E Jesus, and' eu me deito.»

VARIANTE III

Scpte annos e um dia, Sob las aguas de Ia mar Andou Ia nau Cath'rineta, Sem já haver que manjar:


Deitaram coiros de molho P'ra nesse dia jantar, Mas tão duros eram elles Que nã los podem tragar. Tiraram então por sortes Qual haviam de matar; Foi la sorte septe vezes No capitão acertar.

Dizem los da nau:

- «Vinde vós cá, bom fradinho, Lo capitão confessar; Vinde com vossa benção Seus peccados perdoar.»

Responde lo frade:

- «Tenho feito juramento No meu livro de rezar. A capitão com quem venha Peccados nã perdoar.»

Em quanto elles fallavam, Diz lo capitão maioral: - «Vem tu cá, ó bom piloto, Meu bom piloto leal, Assube-m' áquelle tope Daquelle mastro real; Vigia s'avistas terras,


Seja da banda d' Hespanha, Ou seja de Portugal.»

Responde lo piloto lá de riba:

- «Nem d'uma, nem d'outra banda Nã nas posso avistar: Vejo só espadas nuas Com que vos querem matar.»

Disse então lo capitão Quasi sem poder fallar: - «Vinde vós cá, bom fradinho, Ajudae a me salvar.»

Responde lo frade:

- «Lo que jurei foi jurado No meu livro de rezar.»

Mas lo capitão repetiu:

- «Vinde, vinde, bom fradinho, Ajudae a me livrar: Dou-vos tanto que pod'reis Um mosteiro levantar..

E lo frade disse então:


- «Bem.. m`import' a mim mosteiro! Bem m'importa cabedal! Um frade...da mão furada Só quer Tu' alma; maioral!»

Lo capitão fez tres cruzes, E oração bem rezada: - «Vaiei-me vós, Mãe de Deus, Virgem Maria sagrada; Abrenuncio de ti; Demo, Fradinho da mão furada!»

Ainda: la reza toda Nã 'stava bem acabada, Lo fradinbo qu' estoirou Nem trovão de trovoada', Do relampago tamanho. Ficou la gent' assombrada; E quando a si tornaram, Do frade ninguém viu nada, E la nau, té li perdida, Vae direito navegada!

Disse então lo capitão; Já com vozes de maioral; - «Vem tu cá, ó bom"piloto, Meu bom piloto leal, Assube~m` áquelle tópe Daquelle mastro real; Vigia s'avistas terras,


Seja da banda d'Hespanba, Ou seja de Portugal.»

Responde lo piloto:

- «A' pôpa terras avisto, Mas são terras d'areial; São terras de Berberonia, Más terras, meu general.»

Lo capitão:

- «Olh' á proa, bom piloto, Meu bom piloto leal, Vigia s'avistas terras D`Hespanha ou Portugal.»

Lo piloto:

- «Aliç'ras, senhor, alviç`ras Meu capitão general! Terra avisto d'Hespanha E terra de Portugal: Parecem duas senhoras Postas em seu laranjal; A' cabeça, fructos d'oiro; Aos pés, fios de crystal.»

Lo capitão:


- «Essas mesmas são las terras D'Hespanha e Portugal; Lá mataremos la fome Nos fruetos do laranjal; Lá mataremos la sêde Nos seus fios de crystal: Por alviç'ras te darei Do meu grosso cabedal.» Lo piloto:

- «Nã quero vosso .dinheiro, Nem fructas, nem agua fria; Só esta naú Cath'rineta, Isso era lo qu'eu qu'ria!»

Responde lo capitão:

- «Ai, minha nau Cath'rineta!... Eu nã te la posso dar, Porque quero morrer nella; Hei de me néll' interrar: Los mastros serão las tochas, Que me hão d'alumiar; Será lençol uma vela, Que me ha d'amortalhar; E lo casco será tumba; E sepultura, la mar.»

Calou-se lo capitão, Que terra clara se via;


E la companha, contente, Qual a qual assim dizia: - «Las casinhas que lã ha Bem nas vejo alvejar; Das lareiras qu'ellas teem Eu bem vejo fumegar; Las padeiras que lá moram Bem nas vejo padejar; Fritadeiras que lá vivem Peixinho 'stão a fritar;

Las taberneiras lá sinto Da pipa vinho tirar. Anda, anda, Cath'rineta, Que já lá imos jantar.»

Palavras não eram dictas, Ferro la nau a deitar, E «Viva, vivaI» da terra E los da nau a bradar.


XXII

A’ MORTE DO PRINCIPE

Variante I

Triste Noivo Casauinha de tres dias, 'Stava na minha janella; Chegou uma pomba negra: Que nova me trará ella?

Responde la pomba:

- «Má nova trago, senhora, E mui triste, de chorar; Vosso marido é morto, Ou p`riga não escapar:

Foi de cavallo ao chão Nas terras do Arrabal; Rebentou lo fel do corpo Arriba do arenal.»

La infanta, mal lo sabe, Vai a correr, a chorar; Tantas damas depós della, Sem la poder avançar;


Chegou onde seu marido A carpir, sem descançar.

Disse-lh`elle:

- «Onde vindes, vós infanta, Acabar de me matar? Inda sais menina moça, Inda vos pocleis casar.»

Responde ella:

- «Eu nã me quero casar; Quero lograr meu marido; Nem outro tal acharia, Se vos houvera perdido. Chamem-m' aquelle barbeiro; Que venha apparelhado, Que traga lanceta d'oiro E liga d'oiro fiado; Dê picada pequenina, Dada com tudo cuidado, Que nã sinta elle dor.

Mas que fique bem sangrado.»

Vem lo barbeiro, e diz:

- «Quer sinta, quer nada sinta, Seja bem ou mal sangrado...


Mal d'amores nã tem cura, Matou-se d'apaixonado.»

Lo triste morto d'amores Que s'interre no sagrado; Nã no interrem na terra Onde vae pastar lo gado; Nem fique braço de fóra, Mas só lettreiro pintado, P'ra quem lá passar ir ler: «Morreu triste desgraçado.»

VARIANTE II

MÁ NOVA

Já casada 'stava eu Bem septe mezes havia, E passou um pombo negro Que más novas me trazia.

- «Novas, senhora; vos trago, Más novas, de grande mal; Que morre vosso marido, Infante de Portugal! Cahindo com seu cavallo Nas ribas do arenal,


Rebentou lo fel do corpo Lo bom infante real!»

E, deshi, puz-m' a cramar, Ouvido lo mau recado: - «Ide lá, phisico mestre, Ide já apparelhado Com vossa lanceta d'oiro, Sua liga de brocado; Dae-lhe sangria pequena, Nã na sinta lo cuitado.»

E lã me 'fui de carreid; Las damas m'acompanharam; Mas, por muito que corressem. Las damas nã m'avançaram. Los meus ais, quando cheguei, Lo meu infanf acordaram.

E diss` elle:

- «A que vindes cá, infanta? 'Stou aqui, 'stou a 'cabar: Ficareis menina moça; Cedo vireis a casar.»

Eu, então, aIli jurei, Polla missa do missal, Que nã qu'ri' outro marido, Nem que lhe fôra igual.

Lo meu infante morreu, Infante de Portugal,


'Li perto das aguas frias, Nas ribas do arenal.

ESPECIE III

XACARAS

I

ESTORIA DO CEGO

VARIANTE I

Lo treidor chegando, meia noit' em pino, Tres vezes bateu, na porta, mansinho. - «Dae-me gasalbado, que sou um ceguinha; Tiro-me los olhos um pelourosinho.» - «Se tu ná tens olhos, vae de vagarinho; Nã podes perder-te no d'reito caminho: Minha mãe já dorme nos lençoes de linho; Eu 'stou meio nua, já sem vestidinho.» - «Se vossa mãe dorme, fallae vós baixinho; S'estês meio nua, eu sou um ceguinho; La noit' é tã fria, dae-m'hi gasalhinho; Qu'eu m'irei imbora, manhã bem cedinho.» - «Acordae, vós mãe, mãe; é forte soninho!


Não ouvis lo cego que 'stá no caminho? - «S' elle ped' esmola, dá-lhe pão e vinho; Põe-no a carreiro, se vem perdidinho. - «Nã quero do seu pão; tã pouco, seu vinho: Guiae-me, menina., que vou perdidinho.» - «Leva tu la roca, vae fiando linho, E vae-me tu filha, pól-lo a caminho.» - «Espiei la roca, acabei meu linho; Deixae, mãe, lo cego seguir seu caminho.» - «Deixa tu la roca, se já nã tens linho, E vae-me, tu filha, pôl-lo a caminho.» - «Tende dó, menina, do triste ceguinho: Andae vós commigo só um bocadinho.» - «Ou serás, ou não, um triste ceguinho; Nã vou mais além, 'hi vae lo caminho.» - «Quer eu seja, quer não, um triste ceguinho, Menina, commigo é vosso caminho.»

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-

«Adeus alegrias do nosso cantinho;

-

Eu fui la prrdida além no caminhol O' tola mãe minha, ó falso ceguinho, Aqui me rnefteram neste mau caminho.»

-

«Nã me queixo, filha, do falso ceguinho; Só de mim me queixo, mandar-t' ao caminho.»


VARIANTE II

- «Acordae, vós madre, do doce dormir; Vind`ouvil lo cego canlar e pedir.» - «S'elle pede e canta, dá-lhe pão e vinho:

E que vá, com Deus, seguir seu caminho.» - «Nã vejo carreiro, sou triste ceguinho; Menina, guia- me no d'reito caminho.» - «Pega tu da roca; e fiando linho, Vae, filha, co`cego pôI-lo a caminho.» - «Espiei la roca, nã tenho mais linho: Ate`qüi vim eu; hi vae lo caminho.» - «Stou cego, bem cego, cegueira me tem... O' linda menina, vinde mais além.» - «Ai, gent', acudi-me; acudi, vós mãe! Neste descampado acuda-m' alguem!» - «Caluda, menina; nã virã ninguem. Vós fostes la cega; fui eu que vi bem!»

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- «Adeus, minha casa; adeus, minha terra; Uma falsa mãe assim me desterra!» - «Eu não te fui falsa, que bem le dizia Tractasses lo cego com mais cortezia.» Que mais cortezia houvera eu ter, Se lo falso cego me foi commetter? »


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- «Imbal' la criança, qu'elIa quer dormir; Nã vás, filha minha, 'star-t' a consumir.» - «Eu nã me consumo; Deus me la deu. De me deixar ir... la culpa tiv' eu.»

II

LINDA PASTORA

VARIANTE I

DA PASTORA LINDA

- «Irmã da minh'alma, cá me vou imbora, Soldado nas naus, que vão mar em fóra.» - «Ai de mim, cuitada; sem pae e sem mãe, Cá fico sósinha, irmão, sem ninguem.» - Temos 'hi um tio, com terras e gado; De favor lhe pede te de gasalhado: E adeus irmã do meu coração.» - «Ai de mim, cuitada; adeus, meu irmão.»

E foi bater á porta do tio.


- «Trus,trus.» - «Quem bateu 'hi nessa minha porta?» - «Sou vossa sobrinha; venho quasi morta; Valei-me, vós tio, que sois abastado; Lo irmão me levam, dae-me gasalhado.» - «O' moça, nã chores; deixal-lo lá ir. Queres tu, sobrinha, commigo dormir?» - «Nem la Virgem sancta, nem Jesus lo quer; Ser vossa sobrinha e ser-vos mulher.» - «Sobrinha com tio bem póde morar;

O' moça, nã chores, vem cá te deitar.» - «Mais quero na serra pastoral lo gado, Que ter com meu tio tamanho peccado.» - «Mulher altarnda, não és p'ra senhora; Quem rud' assim falIa quê vá ser pastora.»

E foi. Septe annos guardou ella gado, e sempre na mesma fiuza.

-« Ha sept` annos ando atraz destas rezes. Manceba d'um tio? Pastora mil vezes. S`outrem me quizesse, talvez eu lo qu`ria; Mas d`um tio velho nunca eu seria

Chegou nisto lo irmão a casa do tio.

- «'Trus, trus.» - Quem bateu ´hi nessa minha porta?» - «Sou vosso 'sobrinho; que venho de volta.» - «Sobrinho, que tive, era marinheiro; E vós vestís galas de grosso dinheiro.» - «Ganhei-lo no corso, que nos mouros dei.


Qu'é da irmã minha, que vos cá deixei?» - «Pastora na serra.» - «Juncta com pastores.» - «Nã cuides, sobrinho, que p´rigue d´amores. Aposto comtigo quanto hei de meu Que nã na convence christão nem judeu.» - «Aposto vos contra quanto hei de meu; Eu vou ter com ella, convenço-la eu.» - «A troco d´amores, nã larga seu gado. Lo dicto ´sta dicto, fico apostado.»

E logo lo rapaz, muito bem vestido e calçado, se foi embusca da irmã.

- «Pastorinha linda, que fazes ahi?» - «Procuro meu gado, que por 'qui perdi.», - «Menina tão linda a pastorar gado!» - «S´eu vim ao mundo p´ra ter este fado!» - «Espera, pastora, eu vou deste lado.» - «Senhor, nã se cance, eu busco meu gado.» - «Menina, lo gado, aqui 'stà voltado; De', meia de sêda, eu sou teu creado.» - «Creado tão nobre, de meia de seda! Olhe nã na rompa por essa resteva.» - «Sapatos e meias, tudo romperei; Por te dar gosto, eu tudo farei. - «Senhor,vá-s` imbora, nã me dê destroço; Nã venha, meu amo trazel lo almoço.» - «Oxalá teu amo viesse chegando; Aqui nos achára nós ambos fallando.» - «Senhor, vã-s' imbora, nã me dê pezar;


Nã venha meu amo trazel lo jantar:» - «Oxalá teu amo, viesse chegando; Aqui nos achára nós ambos fallando.» - «Senhor, vá.s' imbora, ná me dê parlenda; Nã venha meu amo trazel la merenda.» - «Sósinha na serra, 'stás em grande p'rigo; Vem, linda pastora, vem d'ahi commigo.» - «Senhor, vá-s' imbora, nã me dê tormento; Ouvir nã no posso, nem por pensamento.»

- « Adeus, pastorinha, cá,me vou andando; Outro vae de mim rir, e eu vou chorando.» - «Venha cá, espere; lo sol 'stá ardendo, E se vão las neves no sol derretendo.» - «Adeus, pastorinha, cá me vou andando;

Outro vae de mim rir, e eu vou chorando.» - «Venha cá, descance á sombra d'um ramo; Que já nã m'importa que venha meu amo.» - «Adeus, pastorinha, cá me vou andando; Tu ficas-te rindo, e eu vou chorando.» - «Venha cá, descance á beira do mato; Eu dou-Ih' um abraço, dado com recato.» - «Adeus, pastorinha, cá me vou andando, Enganar-me queres e eu vou chorando.» - «Venhá cá, escute. Que m'está dizendo? Leve-me consigo, vencida me rendo.»

- «Aqui 'stou, pastora, nej' em má tenção; Verdade, verdade, eu sou teu irmão...


- «Ai Jesus, cuitada! Irmão de minh'alma, Eu de mim só qu'ria... nã fosses á calma.»

- «Cal-te, pastorinha, nã digas tu nada. Eu fiz um' aposta que tenho ganhada..

VARIANTE II

ESTORIA DA PASTORA

- «Deus vos salve, linda, lindo seraphim; Tão gentil menina que faz por aqui?» - «Fallal la verdade que mentir nã sei, Pastõro lo gado, qu'eu aqui deitei.» - «Tão gentil menina pastorando gado?»

- «Se naci, senhor meu, p'ra ter este fado!» Mulheres na serra correm grande p'rigo: Menina, dizei-me se qu'reis ir commigo?» Razão como essa nã na ouvirei. Que dirá meu amo? Eu que lhe direi?» - «Dizei-Ihe, menina, que vos demorou Uma nuvem d'agua, que' tudo molhou.» - «Senhor, va-s' imbora; nã me vou tentar. Se vem hi meu amo trazel lo jantar?» - «Oxalá viera voss' amo agora; Aqui nos achára fallando, senhora.» - «Senhor, va-s' imbora; olhe nã m'offenda.


Se vem hi meu amo trazel la merenda?» - «Oxàlá viera já neste repente; Eu não sou lobo, nem eu como gente.» - «Senhor, va-s' imbora; nã me dê tormento; Por mim nã no quero nem por pensamento.» - «Cá m' irei imbora, cá me vou andando Ficae-vos vós rindo, que vou eu chorando.» -« Como 'stá pressado! De meias de sêda, Olhe nã nas rompa por essa resteva.» - «Só por dar-vos gosto, tudo eu farei; Sapatos e meias, fudo romperei.» - «Eu riã valho tanto; sou bruta da serra, De meus fatos grossos, e da côr da terra.» - «Serrana., serrana, fatos côr do chão, Ssim mesma vos-quero, bem do coração.» - «Senhor cavalheiro, ... dê por onde der; Levae-me, levae-me, por vossa ...mulher.» - «Commigo vos levo, mas sem má tenção; Falllal la verdade, sou vosso irmão.»

III

ESTORIA DA MORENA

VARIANTE I

FREI JOÃO


- «Ond' irás, tu, Frei João, Por tão fria madrugada, Nesse demudado trajo, Guiitarra incordoada ?» - «Vou passado de convento; Comprida é Ia jornada.»

Mas onde foi,.foi á porta Da morena mal casada.

- «Abre la porfa, Morena; Olha qu`estou à geada; Se me não abres a porta, Não és Morena, nem nada.»

Responde ella:

- «Bem quizera, Frei João, Metter-te na minha cama; Mas tenho cá meu marido, Tenho la filha na mama.»

Palavras não eram dietas, Seu marido acordava: - «Dizei-me cá, mulher minha, AIguem comvosco falIava?» - «Foi lo filho da padeira Que n'ést' hora m`avisava Que, p'r' amassar nosso pão, Agua e lenha faltava.»


Lo marido suspeitou, Se d'antes nã suspeitava; E posto de má tenção, Las suspeitas desfarçava.»

E disse-lhe:

- «Erguei-vos então, mulher, La casa a governar; Mandae los pretos á lenha; Las pretas agua buscar; Que eu, como caçador, Longe vou hoje caçar; La caça, de manhansinha, É mais certa d'incontrar.

E logo s' ergueu Morena La casa a governar: Mandou los pretos á lenha, Las pretas aguas buscar.

E sou marido lá foi Dizendo qu'ia caçar; Caça, nesta manhãsinha, Certo conta d'incontrar.

Morena, mal se viu só, Logo se foi aceiar: La boa meia de sêda, Na perna a estalar;


Seu vestido de cabaia, No corpo a requebrar; Seu fino lenço nos hombros, Pouco los pode tapar; Por cima curto mantéu, A esconder e mostrar: Assim se foi ao mosteiro Por Frei João perguntar.

Dom la ouviu Frei João, Qu' esta v' alli á portada; E logo la recolheu Na sua cella fechada: Deu-lhe fofo pão de ló, Fatias de marmelada; Ao despois, larga conversa, Que nã monta ser contada. Frei João, por despedida, Que nã quiz faltar a nada, Deu lhe da arca das missas Grossa moeda contada. - «Or' adeus, meu Frei João, Frei João da vid' airada:

Que Deus nos deixe chegar Outra manhã de geada.»

Sae Morena do mosteiro; Seu marido, na estrada: - «Vós por aqui, mulher minha,


E assim ataviada?» - «Vim á missa da matina, Que se diz de madrugada; Sempre fui muito devota Destas missas d'alvorada. Mas vós, marido, aqui? La missa já foi resada; E ou ella foi comprida, Ou curta foi la caçada.» - «Seria então la missa Que foi muito delongada; La caça, qu'eu quiz, cacei, Que la tomei descuidada. Andae lá, andae, mulher; Minha caça, 'stás caçada; Armei.t' um laço, cahiste; Vou-t apertar la laçada.» - «Matae-m' imbora, marido; Nã se me dá d'isso nada; Só me pesa minha filiha, Qu'inda não é destelada.» - «Foreis vós, como quer Deus, Commigo bem maridada, Que nã terieis, treidora, Morte nem já, nem penada.»

E no mesmo dia Morena apareceu morta.


VARIANTE II

MORENA - «Abre Ia porta, Morena; Qü' estou de pés na geada; Se me não abres la porta, Morena, nã vales nada.»

Responde Morena:

Como t'hei d'abrilla porta, Meu Frei João da minh' alma? Tenho lo filho á têta E lo marido na cama.!)

Lo marido ná dormia. Mas fingiu-lhe qu' acordava:

E disse:

- «Jurára eu, mulher minha, Alguem com vasco fallava? »

Responde Morena:

- «Foi la moça da romeira A perguntar s`amassava: S´amassasse pão de leita


- «Seja como vós quizerdes.» Lo marido repricava.

E ella, de má tençao, Fingidas faltas lhe dava: - «Se fôra eu vós, marido, Já d'aqui m'alevantava; Um ao leit' e outr' á lenha, Preto e preta mandava: E despois, sem mais delonga, A' caça me caminhava; Pollo luzir da manhã, No covil eu l'apanhava.» EIl', então, já tenção feita, Esta sentença lavrava: - «Será como vós dizeis.» E logo s'alevantava; Logo, em altos apupos, Preto e preta chamava; Ella, a ordenhar leite; Elle á lenha mandava: E logo, sem mais delonga, Ell`a caçar caminhava, Deitando los seus futuros Que no covil l'apanhava.

Marido fóra da porta, ElIa da cam' a saltar; E logo que se viu só, Eil a se foi asseiar:


La boa meia de laia Na perna a estalar; De sarja lo bom vestido Na cintur' a esgarçar; Mantilha de lã, nos hombros,

Que bem los póde tapar! E lá se foi ao mosteiro, Por Frei João perguntar.

Frei João, que la bispou, De contente já saltava, E, lá por portas travessas, A' sua cell' la levava; Fatias de pão de ló E marmelada lhe dava; Ao despois, largas conversas Com Morena conversava. Quando mal se precataram, La manhã que lh' aclarava: - «Adeus, adeus, ó Morena!» E Morena s'abalava. - «Adeus, adeus, Frei João!» E Frei João se ficava. - «Sabe Deus quando teremos Outra manhã conversada.» Morena fóra da porta, Seu marido na estrada: - «Morena, vós d'onde vindes Tão cedo, tão asseiada?»


- «Vim á missa da matina, Qu' é antes da madrugada. E vós, marido, aqui? Fizestes curta caçada.» - «Vossa missa, mulher minha, É que foi mui delongada. La caça qu'eu procurei Foi no covil apanhada; Cahiu-me viva nas mãos, Tanto 'stava descuidada;... E, como quero nã fujas, Vaes, já já, ser degolada.»

Morena então desatou a chorar, e disse:

- « La morte eu la mereço ; Níã se me dá de morrer; Só me pesa de meu filho, Qu'outra mãe nã póde ter.»

E no adro do mosteiro Seu marido la matou; Ella deu contas a Deus... Ao frade quem las tomou?

VARIANTE III

Morena e Frei João


- «Abre ta porta, Morena. Oh, que noite de geada! Se me não abres la porta, Nunca mais te darei nada.»

Responde ella:

- «Vae-t' imbora;- Frei Jõao, Qu' esta noit` é aziaga; A mamar tenbo lo filho; Lo marido, ã ilharga.»

Palavras não eram dictas, Lo marido a 'cordar: - «Dizei-me cá, mulher minha. Com quem 'staes 'hi a fallar?» - «La padeira que pergunta, Como ha d'ell' amassar; Que no pote nã tem agua; Tã pouco, lume no lar.» - «Ficae, pois, mulher, na cama; Qu' eu me vou alevantar; Duas filhas, qu' ahi temos, Ambas las vou acordar; Uma que vã pedir lume; Outra vá agua buscar; E, despois, vou por 'hi fóra, Além ás serras caçar.» Morena lhe respondeu,


Cuidando lo inganar: - «Lo mais 'stá de minha conta; Podeis ir já montear.» - «Pois, adeus. Ficae, mulher, Nossa cas' a governar; Que la horá da manhã Ê la melhor de caçar.»

Lo marido que sahia, Ella que s'alevantava; Las filhas ficam dormindo, E ella que s'ínfeitava: Boa meia, alva de neve, Que na perna lh'estalava; Sapato de cordovão No seu pésinbo calçava; Deitando la cap`aos hombros, Ao mosteiro caminhava; E, chegad`a portaria, Por Frci João perguntava.

E elle, posto de janeIla, Sua guitarra tocava; Mas, avistando Morena, S houvera correr, voava: E, aberto lo postigo, Morena por 'hi entrava, E d'ahi se foi á cella Onde Frei João morava.


Frei João deu lh`um vestido, De septe reaes á vara; Item, um lenço de sêda. Que meio sequim custara; E mais Frei João lhe deu, Que sua freira mandara, Bocetinhas do confeitos. E bom vinho que guardára.

- «Adeus, qu'rido Frei João Da minh`alma prend' amada, Que Deus nos deixe gosar Outra manhã tão folgada.»

- «Morena, que Deus nos dê Outra manhã invernada.»

Jã fóra da portaria. Lã vae ella na estrada; E, poucos passos andados, Logo se vê salteada Do marido, que pergunta: - «D'onde vindes apressada?» - «Venho do sancto mosteiro; Fui á missa d'alvorada.» - «E eu, mulher, aqui mesmo Vim fazer minha caçada. Missa má que tu ouviste Pollo Diabo resada. Aqui te mata nésl' hC/ra,


Sem siquer ser confessada.»

E, puxando de uma faca, poz-se a pregoar assim:

- «Hoje é uma sexta feira; Vou deitar alto pregão: Eu mato minha mulher, Barregã de Frei João; Duas facadas lhe dou, E ambas ao coração: Deus, se quer, que lhe perdóe; Que de mim nã tem perdão.»

E logo ás facadas matou Morena: interrou-la, e, chegando a casa, virou-se para seus vizinhos, e disse:

- «Aqui 'stou na minha casa, Da meu gabão incarnado. Saiba Deus e todo mundo Qu'eu sou um villão honrado.»

IV

ESTORIA DO BOI BRAGADO

Era um rico senhor, De mui nobre fidalguia;


Grandes honras, muitas terras; No meio dellas vivia. Se guerras se pregoavam, De tudo mais s'esquecia; Mas, se não andav' em guerra, Ai mulheres, ai villania! A todos elle lograva, Com todos se divertia, Que, no azar de seus jogos, Como senhor, nã perdia.

Uma quintã elle tinha, Sua coitada baldia; Dos creados que lá eram A um mais que todos qu'ria, Tão fiel, com ser malato, Que nem zombando mentia.

Nos gados qu`este guardava Um bói bragado havia, Que fizera septe mortes, Que, de bravo, nem dormia, Lo melhor boi da manada, Que seu amo nã vendia Nem por tanto do dinheiro Que la herdade valia. Pois teve má fim lo boi, Como ninguem cuidaria;

Um villão de por 'lli perto,


Que abastado vivia, Só por abastado ser, Lo senhor lo acolhia. Só p'ra chacotear delIe, Que p'ra mais lo nã qu'ria: - «Villlão ruim, nada vales (Lo fidalgo lhe dizia); Este malato do gado Tem muito maior valia: Tu mentes, por condição; Ele nunca mentiria.» - «Aposto que mentirá Antes que pass' outro dia. - «Aposto minha quintã Mail la coitada baldia Que meu malato fiel A mim nã m'inganaria.» - «Eu aposto quanto tenho; Vamoll o ver, senhoria.» - «Apostado, apostado,

Vamol lo ver, villania.

Lo villão, todo sanhudo, A sua casa corria, Cuidando pollo caminho Por que traças ganharia; E, logo que lá chegou, Tudo á mulher dizia: - «Mulher minha, bem lo vês


Este caso apressado; Vae-me ganhar est" aposta De lanço afortunado. Lo malato da quintã Tem um boi a seu cuidado, Lo melhor boi da manada, Boi que é de côr bragado; Que fizera septe mortes; De bravo, sempre acordado; Que seu amo nã vendia Por quanto dinheiro contado. A' quintã vae-me nest' hora Dar conta do meu recado. Por ti lo malato seja, A modo, bem conversado; Que, morto lo boi, te dê Los chavelhos do bragado.» - «Descança, marido meu; Darei conta do recado: De conversa e chavelhos Isso fic' a meu cuidado.» Suas rasões bem sab' ella Por que fall' assegurado; Malato, quando la via. Olhava imbasbacado; Ella de lo ver gostava, Por ser bem posto malato. Foi lo marido com ella Té á quintã ser chegado; Ella polla quintã dentro.


ElIe p'ra casa voltado.

Lo malato, que l'avista. Fica de cor demudado: - «Vós senhora, por aqui. Tão longe de povoado?» - «Venho pedir-t' um favor, Meu malato estimado.» - «Que poderei eu fazer Que vos possa ser de grado?» - «Malatinho, eu te peço Los chavelhos do bragado.» - «Ai, amor, nã póde ser! É lo melhor boi do gado; Lo mais qu'rido de meu 'amo, E posto a meu cuidado.» - «Dize-lhe tu que morreu De quebranto ou d'olhado.» - «Eu a meu amo nã minto, Nem mato lo boi bragado. Que nunca por mim 'té 'gora Foi meu amo inganado.» - «Malato dos meus peccados, Se queres ser meu amado, Dá-me tu lo qu'eu te peço, Lo que peças terás dado.» - «E s'en vos pedir, senhora, Lo que quer um namorado?» -«Dá-me tu lo que t'eu peco, Que terás lo desejado.»


Nã passava uma hora, Morto foi lo boi bragado; Lo que despois succedeu Nã lo sei p'ra ser contado: Nã sei dizer lo que foi, Nem que tempo foi passado; Sei qu'ella levou com sigo Los cbavelhos do bragado; E, dando-los ao marido, Deu conta do seu recado: - «Marido de meus peccados, Morto 'stá lo boi bragado; P'ra tão bons chavelhos teres, Foi trabalho porfiado.» - «Mas trabalho, mulher minha, Trabalho bem acabado.» - «Fiz diligencia, marido, Dar conta do meu recado.» - «Lo malato, que nã mente, Agora 'stá apanhado; La verdade nã dirá; E ganhei lo apostado.»

Entrementes, na quintã,

Malato sem socegar. Como peccador na culpa Que nã póde resgatar: - «Tenho qu'ir onde meu amo, A seus' mandados tomar;


Mas que lhe vou eu dizer Quando do boi, me fallar? Eu digo: - «Lo boi morreu De quebranto ou d`olhar.»

E, pau de conto na mão, Prestes vae a caminhar.

Mas, de pernas a tremer, Passada nã póde dar: - «Esta mentira nã presta; Outra melhor hei d'achar.» E, então, tomou do pau, Foi-lo na terra fincar: - «Faço conta qu'é: meu amo, Aqui, em pé a fallar: -«Como 'stá meu boi bragado?» ( Meu amo vem perguntar). Eu digo: - «Nã sei do boi., E nada mais vou contar. Mas esta tambem nã presta, Outra melhor hei d'achar.»

Nisto, duas voltas deu, E tornou a começar: - «Como 'stá meu boi bragado?» (Meu amo vem perguntar).

Eu digo: - «Lo boi morreu.» E nada mais vou contar.


Mas esta tambem nã presta; Outra melhor hei d'achar.» E mais duas voltas dando, Elle torn' a começar: - «Corno 'stá meu boi bragado?» (Meu amo vem perguntar). Eu digo: - «Cuidae meu amo, (Nã será falso cuidar) Que boa moça me veiu Com seus incantos tentar; Que, se do boi los chavelhos Eu alli lhe fosse dar, De tudo qu'eu Ihe! pedisse Nada m'havéra negar. E, meu amo, dizei cá. Fôra-vos ella rogar, Quantos chavelhos de boi Lhe mandaríeis vós dar?» Esta sim, boa resposta, Sem á verdade faltar.»

E, pau de conto na mão, Malato a caminhar.

Quando lo bom do malato Portão do amo entrava, Já lo ruim do villão Já de mais cedo lá 'stava, E, todo êll' alegria,


Escondido lo esp'rava: Seu amo, sem mal cuidar, Tambem por alli andava, E, quando lo vê, pergunta Boi bragado como 'stava?

Lo malato respondeu, Lo villão a escuitar: - «Cuidae vós, senhor meu amo, (E não é falso cuidar) Que boa moça me veia Com seus incantos tentar; Que, se do boi los chavelhos Eu alli lhe fosse dar, De tudo qu' eu lhe pedisse Nada m'havéra negar. E, meu amo, dizei cá, Fôra-vos ella rogar, Quantos chavelhos de boi Vós lhe mandarieis dar?» - «Daria, mais que daria! Nã precisa perguntar.» Lo fidalgo respondendo. Redobrava a gargalhar.

Mas lo mau villão ruim Do malato praguejava; A trôco dos bens perdidos, Com dois chavelhos ficava.


V

ESTORIA DO REAL CAÇADOR

- «Meu papagaio real, Meu papagaio, quem passa?» - «É el-rei de Portugal; É el-rei que vae á caça.»

- «Caçador, qu' ides buscar, Vindes só pollo coelho?» - «Eu venho por ti, menina De coletinho vermelho.» - «Nem de pêlo, nem de penna, Nã sou caça de caçar; Adeus, real caçador, Nã me venhaes attentar., - «Eu nã vim aqui, menina, Só por vir e p'ra voltar; Quem porfia mata caça, Á força de porfiar.»

Lá vae real caçador Sem levar um só coelho; Vae 'traz dell' uma menina De coletinho vermelho.

- «Meu papagaio real,


Meu papagaio, quem passa?» - «É el-rei de Portugal; É el-rei que vem da caça.»

VI

ESTORIA DA MAL CASADA

Lo marido 'stá na cama; Não ha mais alli que ver; Candeia á cabeceira, Mas ainda quer viver.

- «Ó mulher, cuida do linho, Qu'hei d'ajudar a romper.» Êll' a dizer isto alto, ElIa, voz baix', a dizer: - «Tenho meu linho no lago; Meu marido a morrer; Mas eu vou cuidar do linho, Que nã no quero perder: Ninguem outro me dará, Se meu linho podrecer; E marido nã me falta, Assim qu'este fallecer.»


E lá foi cuidar do linho; Que perdel-lo nã no quer. Cuitado deste marido Casado com tal mulher.

Mas passadas boas horas, Voltou éll' a deitar ais: - «Malventurada de mim; Linho meu, não escapaes! Tenho meu linho podrido! E vós, marido, saraes? Apagou-se la candeia: Marido, quando findaes?»

Nem de vida, nem de luz Em casa não ha signaes; Foi achal lo velho morto Á cancella dos quintaes.

E logo se vae correndo A do interro cuidar: - «Vinde, visinhas, commigo, Vinde-Io amortalhar. Tambem las sanctas mulheres Lo venham aqui chorar; Bem chorado, mal chorado, Êll' ha d'ir a interrar. Vêd' irmãos da confraria Como lo ides levar; Ide caminho direito,


P'ra bem depressa chegar. Fazei, coveiro, Ia cova Funda, quanto possa dar; Quanto mais funda melhor,... Melhor ha de descançar.»

Tudo foi dicto e feito, Sem nada, nada faltar:

La viuva a rir por dentro, Por fóra a se chorar; Las visinhas, cose, cose, Na mortalh' a trabalhar; Á roda, sanctas mulheres A carpir e a cramar; Los irmãos da confraria Lo foram á terra dar; Em cova de septe palmos Lá ficou a descançar.

Isto de marido velho Bem pareç' um alguidar; Mal lo velho acabou, Já outro no seu logar.

- «Viuvinha, viuvinha. De que côr qu'reis tomar dó?» - «Incarnado, meu compadre, Que nã quero dormir só.» - «Viuvinha, viuvinha,


Incarnado não é dó; Casae commigo, comadre, Que muito ha durmo só.»

Casado com tal viuva, Este compadre sandeu Só tev' um dia feliz. Quando ella lhe morreu.

VII

ESTORIA DO CEIFÃO

Era um senhor em Roma Com sua filha bastarda: Ella d'um ceifão do pae 'Stava louca namorada.

E um dia lo chamou, e lhe disse: - «Se soides um bom ceifão, Quero ser por vós ceifada; Que nã sou terra ladeira, Nem rocha dependurada; Nã na tem ninguem melhor, Terra tão bem assentada.»

Lo ceirão salt' a ceifar


'lnda não é madrugada; Era pino do mei-dia, Mal vae Ia ceifa meiada; E era já noit' escura, Sem 'star la ceif' acabada. Com tanto ceifar, ceifar, Nã findou la impreitada; Que com ser forte ceifão,

Elle já nã póde nada: Mas gallinhas e capões Lhe deram força dobrada; Lá polla noite adianto, La seara 'stá ceifada.

E então diz ella: - «Desta ceifa que figestes, Que conta tendes deitada?» - «Do meu trabalho, menina, Tive pag' avantajada; Que, por fim, sou eu quem devo, Sem que vós me devaes nada. Essa terr' onde ceifei Só por mim será lavrada; Assim é la conta justa.» - «E ficou bem ajustada.»

Nove mezes nã são findos, Já ella 'stava casada.


VIII

ESTORIA DA MENINA ROSA

- «Entre cravos e junquilhos, Vim outra flôr aqui ver. Rosa do fresco ribeiro, Daes-me vós onde beber?»

- «Tenho pucarinho novo, Vermelhinho, d'Estremor; Mas nã lo posso prestar; Bebei seja como fôr.»

- «Vão Ias aguas corredias Fugindo rente do chão; Por feliz me dera eu, Bebel-las da vossa mão. E, se me fazeis favor, Seja um favor inteiro; Dae-me vós no pucarinho Agua do fresco ribeiro.»

- «Pois se vós isso pedis, Esse favor vos faria; Agua do fresco ribeiro No pucarinho daria. Mas lo caminho p'ra lá


Um só caminho seria; Ninguem se póde perder, Vem da Senhora da Guia,» - «Eu com tanta sêde venho, Que nã vejo por ond' ia; Costumado na cidade, De caminhos nã sabia.» - «Bem dicto foi esse dicto; Ninguem melhor lo diria; Mas quem nã sabe caminho, Volta por onde seguia.» - «Sei de cór e salteado A que vim e por que via; Não é caminho p'ra mim Lo da Senhora da Guia.»

- «Cada qual tem sua v'réda: Donde se não quer volver. Dae las voltas que quizerdes, Qu'eu nã 'stou p'ra me perder.»

- «Rosinha, qu' estaes tão mestra, Muito deveis de saber; Mettei-me lá na eschola. P'ra vossa cartilha ler.» - «Mestra, eu, senhor nã sou; Com ninguém fui aprender; Mas ou ser mulher casada, Ou, como 'stou, quero ser.»


- «Rosinha dos meus amores, Dae-m' agua, p'ra nã morrer; Vou despois com vosso pae, P'ra nos irmos receber.»

- «Nem agora, nem despois, Nem agua, nem pucarinho, Porvia do que viestes, Id' a outro ribeirinho.»

IX

LOS ESCRAVOS

- «Meu pae Braz, vamos á serra, Á lenha, p'ra meu senhor.» - «Jesu, Jesu, minha vida, Jesu, Jesu, minh' amor.» - «Eu levo bons merendeiras, E vinho 'inda melhor.» - «Vae comida e bebida? Vamos seja 'onde for.»

Foram na serr' á colmeia; Saltam no mel a colher; Saltam na cêr' a furtar;


Mel e cêra p'ra vender.

- «Ahi vem polla veréda Um branco... É meu senhor!»

- «Jesu, Jesu, minha vida; Jesu, Jesu, minh' amor!»

Chega êll' ao pé dos dois; Agora lo convidar! Sacca-me d'um azurrague; Açoite de racha-mar! Tanto dera, tanto deu, Que cançou de tanto dar; Lo azurrague largou, Mas só despois de cançar, A pretos e mouros perros Que outro ensino dar? La gent' é filha de Deus; Elles, de Cham e d' Agar.

Lo pae Braz levou, levou; Lo outro, ladino, fugia: Veiu la negr' Antoninha; Ao negro Braz acudia. Tinha ella suas artes; Muito seu amo lhe qu'ria; E gostava do pae Braz... Eu nã sei por que seria.


X

LO MESTRE DE SOLFA

Um devoto mercador, Surdo a mais nã poder, Uma só filha que tinha. A freira Ia quiz metter. Mas outras contas fez ella Na regra do seu viver: Com mestr' Affonso solfista, Casada veiu a ser.

- «Ai filha (seu pae lhe disse), Já pouco posso viver; Quero-te freira professa, P'ra socegado morrer.» - «Valha-vos Deus, senhor pae, Que muito heis de viver, E, em vez de ser professa. Casada eu quero ser.» - «Tu quizeras-te casada, Ou qu'estás 'hi a dizer? Passarem meus bens a outrem?! Puzéra tudo a 'rder.»

N'um instant' ella pensou Sua meada tecer,


E respondeu:

- «Lo qu'eu disse nã foi isso, Que nã sou louca mulher. Eu disse: Valha-vos Deus, Que muito heis de viver, E eu, em vez de professa. Casada nã quero ser. No mosteiro de meus sonhos 'Star freira é meu prazer; E, para intrar prendada, Solfas quizera saber: Mandae chamar mestr' Afonso, Com quem las hei d'aprender; Sanctas solfas qu'elIe sabe Tambem eu las hei de ler.»

Diz lo mercador:

- «Seja como tu lo queres; La paga ha d'appar'cer; No mosteiro de teus sonhos Professar eu t'hei de ver. Ó preto, vae-me n'um pulo De mestr' Affonso saber, Se m'ensinar minha filha, Quanto ha de receber?»

Atalha ella:


- «Senhor pae; esse recado Bem lo póde offender;

Em um convite cortez Vós lhe deveis escrever.» - «Tens tu razão, rapariga; Vou por lettra lhe dizer... - «Que venha (accudiu ella); Tempo não ha que perder. - «Dá-me papel e tinteiro E lo mais qu' hei de mister: Que venha já hoj’ aqui; Tempo não ha que perder.»

Lo preto foi e voltou; Vinha a rir, sem se suster; Segredo destes amores Farto 'stava de saber.

E disse:

- «Lo mestr' Affonso, senhor, 'Hi vem já, sem se deter; Se bem lo quer la menina, Tambem elle bem lhe quer.» - «Ó preto, que dizes tu?» - «Que mestr' Affonso bem quer Acudir onde lo chamam; Qu' 'hi vem já, sem se deter.»


Mestr' Affonso veiu logo, A voar, não a correr, Que lo amor lhe deu azas, Visto lo amor las ter.

Diz lo mercador:

- «Mestr' Affonso, vós sabeis Orgão, por solfa, tanger; Ensinae la minha filha, Que freira la vou metter.»

Responde lo mestre:

- «Sim senhor, p'ra vos dar gosto, Prompto vou obedecer; Las licções poucas serão, 'Té nos irmos receber.»

Lo mercador:

- «Não ouvi. Lo que dizeis?»

Lo mestre:

- «Que vos vou obedecer; Que bastam poucas licções, Se las quizer receber.»

Lo mercador:


- «Isso quer la minha filha, Oh, se quer e torn' a qu'rer! Compeçae já desta hora, Qu' eu pouco posso viver.»

Mestr' Affonso solfejando, La menin' a responder, Par'ciam dois passarinhos Á hora d'amanhecer.

Cantam elles:

- «Pouco teremos qu' esp'rar. Se vosso pae vae morrer; No mosteiro de Cupido, Menina, vamos viver.» - «Eu não quero mais esp'rar, Nem meu pae ha de morrer; No mosteiro de Cupido Ambinhos vamos viver.»

Acode lo mercador:

- «Não ouvi. Lo que cantaes?»

Respondem elles:

- «Cantamos lo bem morrer; Praguejamos de Cupido; Louvamos sancto viver.»


Lo mercador:

- «Continua, filha minha, Nã deixes tempo perder; Qu' eu me vou ao padre cura Confessar, absolver.»

Foi lo velho á confissão; Mas vindo a recolher,

Achou la filha e mestre Abraçados, sem lazer.

E bradou:

- «Ó preto, vém cá depressa La espada me trazer; A's minhas mãos los treidores Mortos ahi hão de ser.»

Mas lo inganado velho Mais nada ponde fazer; Cahiu redondo no chão, E p’ra nunca mais s'erguer.

E oito dias passados, Quem lo qu'ria, lo foi ver, Um padre casal los dois; Outros, missas a dizer.


XI

ESTORINHA DA VILLOA Ouvi pregoar, E fui ver quem vinha; Passava na rua La vllôasinha: - «Quem merca los ovos

E mail la gallinha?» - «Vinde cã, villôa, Subi vós cá 'cima.»

Ao vir á escada, No voltar da quina, Cahiram los ovos, Fugiu la gallinha. Logo la villôa Chamou: «Pia, pia!» Mas saIta-lh' um gallo Que por 'lIi havia.

- «Vae-t' imbora gallo, Que nã sou gallinha. Diabo do gallo Qu' esporões que tinha!»


XII

MARIQUINHAS

Mariquinhas vem da horta Onde só milho havia; Passando, viu um visinho Que bom repolho colhia: - «Oh, que bello repolhinho!» Ella comsigo dizia. EIle, que la viu olhar,

Off'receu que lo daria. E Mariquinhas, responde, Sem lhe guardar cortezia, Que lo fosse dar ao gado, Que p'ra si nã carecia. Mas lo triste do visinho Nem por isso s'offendia; Tamanho amor lhe tem, Que tudo lhe soffreria: - «Ai (diz ell') ai, Mariquinhas, Eu isso nã vos mer’cia : Se nã lo sabeis, sabei Que muito ha qu' eu vos qu'ria. Nã regeiteis minh' offerta; De graça nã na fazia; Em troca d'um repolhinho,


Por mulher vos pediria. Respondei-me, sim ou não?» Calada, nã respondia: Mas acceitou lo repolho, E pera casa corria. E disse a sua mãe:

- «Ouvi cá, senhora mãe, Quem tal caso cuidaria! Que lo visinho da horta P'ra casar me fallaria?» - «E tu, filha, que dixeste?» - «Eu pera casa fugia.» - «Pois, eu vou dizer que sim. Hoje fosse já lo dia.»

Foi la mãe dizer que sim, Que dava sua Maria; Ajustam no casamento; Ficaram certos no dia.

Voltando la mãe a casa, Nã cab' em si d'alegria: - «Maria, meu mealheiro Todo lo despejaria. Eu te vou comprar vestido, Como ninguem compraria; E camisa, meia, saia. Como ninguem las teria; Chanelas de cordovão.


Como ninguem calçaria; Cordão, arrecadas d'oiro. Do melhor, e mór valia.

Lo rapaz, á sua parte. Nem formig' em roda viva! Nem lo melrinho do campo Seu ninho melhor fazia! Comprou andaina de fato, Como ninguem compraria; Camisa, meia, barreta, Como ninguem los teria; Bota chã de couro branco. Como ninguem calçaria; E rez morta, pão, e vinho; Nem cantor lhe faltaria!

No dia do casamento, Promptos 'stão a caminhar:

Vae diante lo cantor Suas trovas a deitar; Los tocadores de viola De violas a tocar; E sua mãe mail la noiva, Assim lhe vae a fallar: - «Vamo-nos, filha, depressa; Lo padre 'stá a esp'rar; Cuidado no vestidinho Que pena lo é sujar.»


E vae seu pae mail lo noivo, Assim lhe vae a fallar: - «Vamo-nos, filho, depressa; Lo padre 'stà a esp'rar; Cuidado no fato novo. Que pena lo é sujar.» E padrinhos e parentes Assim se vão a fallar: - «Vamo-nos, todos, depressa; Lo padre 'stá a esp'rar; Vamos todos á igreja Ver estes noivos casar.»

Lá 'stão noivos e padrinhos. Lá 'stá lo padre no altar; Los noivos s'estão casando; Sogro e sogr' a chorar.

Arremata lo cantor:

- «Repolhinho, repolhinho, Quem lo houvera cuidar?

Por amor d'um repolhinho Se foram estes casar.»

XIII


MULATONA

Era certa noite Na port'assentado; Todos a dormir, Só eu acordado, Olhando á lua Sem ser aluado, Par'cia sonhar, Mas 'stav' acordado:

Passou polIa rua: Fresca mulatinha; Cabello nastrado Com sua fitinha; Colet' estalando Polla cinturinha; Do pé a saltar Sua tamanquinha:

Por cima de tudo, Vermelho jibão; Sua sai' azul É de gorgorão;

Por secia, levava Seu leque na mão; Debaixo dos passos Lhe treme lo chão.


E fui-me traz della; Com minha chulice, Tossindo, cantando, P'ra qu'ella m'ouvisse ; Passei-Ih' adiante, P'ra qu'ella me visse; E tanto lhe fiz, Que raivosa disse:

- «Senhor, que me segue, Senhor, que me quer? - «Serei seu amor, S' acaso quizer.» - «Senhor, é casado, Tem sua mulher.» - «Vem cá, mulatinha, Tenh' eu quem tiver.»

- «Senhor que me falla, Lo que me quer dar?» - «Dois tostõesinhos E um suspirar.» - «Com dois tostões Me quer ingodar? Procur' uma negra; Dessas vae achar.»

Apertei qu' intrasse; Seu fato despisse; Que tudo lhe dava


Quanto me pedisse: Respondeu que sim; Mas logo me disse Que nã qu'ria luz; Que ninguem na visse.

Cachorra mulata Era bem ladina! Mas dentro da porta, Passada la quina, Cendi la candeia E vi na mofina Tã feio carão, Que ninguem magina! Largou las tamancas; Tolhi-me de mêdo: Descalçou las meias; Encolhi-me quedo: Nos pés eram bichos, Um em cada dedo! Las pernas... vaquetas! La fralda... pulguedo!

........................ ................................ Que barbas par'cia De bom conselho! E eu me revia

Naquelle espelho:


- Não ha mulher feia, Nem ha homem velho.

XIV

VIDA DA FREIRA

VARIANTE I

Minha mãe, que Deus lá tenha Em sancto contentamento, Dotou-me no testamento Com qu'eu casar.

E eu me puz a cuidar Me casassem com meu bem; Quem um amor assim tem Quer ser casada.

Mas por meu pae condemnada. E tambem por meus irmãos, Trazida por suas mãos, Cá m'interraram.

Que más peitas ideiaram. P'ra me pôr nesta clausura, Onde sempr' é noit' escura.


Noite sem dia!

Fallaram na portaria Á nossa madr' abbadessa Me mettesse na cabeça Eu professar.

E, vindo eu a fallar Á 'bbadessa no meu dote, Respondeu que melhor sorte Era ser freira.

E, voltando á rodeira, Ella me deu por verdade Que melhor que freira e frade Ninguem vivia.

E eu cri no que dizia Esta gente mentirosa; E, tão menina, formosa, Morri p'r' amor.

Diante do altar-mór, Fiz dos tres votos la iura: D'aqui vou á sepultura, Aí, minha mãe!

Podendo casar tão bem, Longe de freiras e frades, Aqui só vivo saudades


Por quem eu morro!

Se longe da cella corro, Ou ando nos corredores,

Vão commigo meus amores, E eu sósinha!

Se lo sino, manhãsinha, Me chama á oração, Praguejo no coração; Nã rezo nada,

Se do sino badalada Me chama ao refeitorio, Maldigo meu purgatorio; Nã como nada,

Na hora ao dormir dada, Quando dormem las mais madres, Eu espreito destas grades; Nã durmo nada.

Ergo-m' então trasnoitada, E logo diz lo espelho: «Como tens lo rosto velho, Ó peccadora!»

Casada melhor me fôra, Tel la dor dos filhos meus,


Do que offender a Deus Neste peccar.

Mulher qu' ides professar, Nã lo consintaes vós, não; Em dois infernos cahis, Sem salvação.

VARIANTE II

Minha mãe (que Deus la tenha) Deixou no seu testamento. Lo dote do casamento Para mim.

E dizia mais assim: Que com meu bem me casasse; Que solte ira nã ficasse. Sem ter homem.

Mas meu pae (penas lo comam) E lambem los meus irmãos, Cá dentro, por suas mãos, M'incerraram.

Que todos se conchavaram, Por disporem do meu dote, Haverem-se desta sorte;


Pôr-me freira.

Veiu la madre porteira, Veiu la madr' abadessa A metter-me na cabeça Tomar véu:

Qu' esta vid' era do céu; Qu' era vida de verdade; Que não ha freira nem frade Descontente.

E eu, cuitada tão crente. Como em voz verdadeira. Disse que qu'ria ser freira, Professar.

Mas, despois d'aqui ficar Captiva nesta clausura. Conheci quanto é dura Minh' algema.

Qual será la que nã gema Nesta via dolorosa?! Eu sou moça. Fui formosa. Quem diria?!

Aquella minh' alegria Nunca mais la posso rir. De que serve eu a ti ir.


Refeitorio?

De noite, no dormitorio, Quando dormem outras madres, Vélo eu entr' estas grades, Tão mofinas!

Se cantam laudes, matinas, Chóro, então, minhas dores; Chóro pelos meus amores, Por quem morro.

E logo á cella corro, Onde tenho meu espelho;

Vejo lo meu rosto velho, Acabado!

Mais quizera ter casado, Tel la dôr dos filhos meus, Do que offender a Deus, Malfadada.

Mais quizera ser casada, De noit' imbalar meninos, Do que freir' a tanger sinos, Trasnoitar.

E, ouvindo-los dobrar, Cuidem todos quem morreu,


Foi que, morta par' amor, Morri eu.

XV

CONFISSÃO DA NAMORADA

Fui-m' á igreja do Carmo; Fui -me despois ao Collegio: - «Senhor padre, confessae-me.» - «Menina, dae cá um beijo.»

Fui-m' então á freguezia Para me desobrigar;

Penitent’ agiolhei No respeitoso logar.

Perguntou lo padre cura S'eu já tinh' algum amante: - «É verdade, senhor padre, Tenho rapaz mui gaIante.»

Lo padre, que tal ouviu, Ai, que fino pregador! Mas vá prégar a hereges.


Qu' eu nã deixo meu amor.

- «Ó filha, esquecei já Essa mundana paixão; Não intregueis a ess' homem La posse... do coração.»

«E, se não, ireis cahir No inferno abrazador, Sem que vos possa valer Esse homem tentador.»

- «Confessor, não profieis, Qu' eu nã deixo meu bem terno; Hei d'amaI-lo, inda que soffra. Negras penas do inferno.»

- «Ó filha, arrependei-vos, Neste sagrado logar; Se qu'reis qu' eu vos absolva, Ess' amor heis de deixar.»

- «Absolvei-me vós, meu padre, Não é peccar ter amor.» - «Amar, só a Deus no céu; No mundo, lo... confessor.»

- «Absolvei-me vós, meu padre, Se me qu'reis absolver; Não useis palavras dessas,


Que me vou arreceber.» - Rogou-m' então uma praga, Pera minha penitencia: - «Tu verás teu bem com outra; Menina, é ter paciencia.»

- «Eu cá sei, ó senhor padre, Eu cá sei lo qu' hei d'eu ver; Ficae vós com vossa praga, Qu' eu me vou arreceber.»

XVI

MISSA DO GALLO

- «Quem me bat' á minha porta. A taes horas de dormir?» - «Sou la visinha, visinha; Vindo vós la miss' ouvir.»

- «Quem bate na nossa porta, A taes horas de dormir?» - «É la visinha, marido; Que vamos la miss' ouvir. Hoje é noite de natal; Não é noite de dormir; Vamos á missa do gallo,


La sancta missa ouvir.» - «Vem cá deitar-te, mulher; Cançado, quero dormir: Não 'stás farta de solteira Missas do gallo ouvir?» - «Mal haja quem me casou, Para comtigo dormir; Que despois que me casei, Bem poucas m'alembr’ ouvir. - «Ó mulher, dá-me cá fato, Que me nã deixas dormir: Vigia lá nas estrellas Las horas da missa ouvir.» - «Já lá vem las Tres-Marias, Que nã se deixam dormir; Los Tres Reis já lá vem nados, Missa do gallo ouvir.»

- «Ó Maria, filha minha. 'Slarás tu já a dormir?» - «Hoj' é noite de natal; Lo qu' eu 'stou é a ouvir.» - «Sancta noite do natal, Ningucm na deve dormir; Vinde, marido; vem, filha,

La sancta missa ouvir.» - «Esta noite do natal Nã na posso eu dormir; Deixem-me chegar ao anno,


Melhor miss' eu hei d'ouvir.»

La mulher e mail la filha, Lo marido' sem dormir, Todos vão mail la visinha Missa do gallo ouvir.

XVII

CHAMA RITTA

VARIANTE I

- «Chama Ritta, não, ou sim; Chama Ritta, sim, ou não; Compadeces-te de mim? Aqui tens meu coração. Aqui tens tu la minh' alma, Cheia d'amor e ternura; Aqui tens lo rapazinho; Venho em tua procura.»

- «Olh’ agor’ a confiança Do rapaz da carapuça!

Já lhe dei lo desengano, E aind' em minha busca!»


- «Chama Ritta, Chama Ritta, Olha bem se me nã queres; Olha que por esse mundo Lo que falta são mulheres. Chama Ritta, Chama, Ritta, Olha bem se nã m’estimas; Olha que por esse mundo Lo que falta são meninas. Chama Ritta, Chama Ritta, Nã desprezes quem t’adora; Olha que por esse mundo Nã falta uma senhora.»

Chama Ritta, Chama Ritta, Chama Ritta do Paul Deitou-se na minha cama... Veiu branca, vae azul.

Chama Ritta, Chama Ritta Vae do Paul ao Caniço? Por cá nã faltam mulheres; Que vá; nã se me dá d'isso.

VARIANTE II

Chama Ritta, sim, oh, sim, Compadece-te de mim.


Chama Ritta, não; oh, não, Nã mates meu coração Chama Ritta, nã me queres? Nã me faltarão mulheres. Chama Ritta, ná m'estimas? Nã me faltarão meninas. Chama Ritta, nã m’adoras? Nã me faltarão senhoras!

Chama Ritta, sim, oh, sim, Compadeceu-se de mim Chama Rilta, não, oh, não. Nã matou meu coração. Chama Ritta do Paul Veiu branca, vae azul... Vae caminho do Caniço? Que vá; nã se me dá d'isso.

VARIANTE III

Chama Ritta, Não ou sim, Tu terás Dó de mim?

Chama Ritta, Sim, ou não,


Queres meu Coração?

Chama Ritta, Nã me queres? Ha no mundo Mais mulheres.

Chama Ritta, Nã m’estimas? Ha no mundo Mais meninas.

Chama Ritta; Nã m'adoras? Ha no mundo Mais senhoras.

Chama Ritta Do Paul Veiu branca, Vae azul.

XVIII

ESTORIA DO SOLDADO «Eu por aqui vou de ronda: Annicas, cheg' á janella,


P'ra saber que triste noite Um pobre soldado vela. Esta vida d'um soldado É tel la cama no chão,

Beber agua da cisterna, Comer pão de munição. Lo soldado da fileira Nã tem um' hora de seu; Nacem-lhe dentes na fórma. E em soldado morreu. Coronel dá no major; Major dá no capitão; Assim vae até lo cabo; Todos no soldado dão.»

Responde Annicas:

- «Bem haja eu, que nã quero Ter amor soldado, não; Nã quero á minha porta... Recados do capitão.»

Reprica lo soldado:

- «Annicas, abre la porta. A este pobre soldado; Abre, da parte d'el-rei,... P'ra ser teu aquartelado. Annicas, abre la porta;


A'manhã serei sargento, Com meu penachinho verde, E que lindo fardamento! Annicas, abre la porta;... Chegarei a capitão.»

Arremata ella:

- «Tenho medo; eu nã quero Ter amor soldado, não.»

XIX

LO DEGRADADO

Sou mais triste que la folha Nacida do pé da faia; Não ha desgraça no mundo Que nest' infeliz nã caia.

Sou mais triste que la folha Nacida do pé da vinha; Não ha maldade no mundo Que nã seja culpa minha.

Sou mais triste que la folha Nacida do pé do endro;


Padecer é meu fadairo; E' mundo, vamos soffrendo.

Eu sou la mais triste coisa Que neste mundo cahiu; Todos teem sua fortuna; ÉIl' a mim nunca me viu.

Dos filhos que meu pae teve Eu só fui lo desgraçado; Ha sept’ anos na cadeia; Agora, vou degradado.

ESPECIE IV

CASOS

FREIRAS DE SANCTA CLARA

Las freiras de Sancta Clara Andam sempr' em roda viva, Ora no côro de baixo, Ora no côro de riba.

Las freiras de Sancta Clara, De seu biquinho na testa, Namoram no parlatorio,


Dão beijinhos polla fresta.

Las freiras de Sancta Clara, Oh, que freiras qu' elIas são! Dão a Deus los padre-nossos, Dão lo mais ao capellão.

Las freiras de Sancta Clara, Em lavando los pésinhos, Podem pôl-Ias... no altar, Junctas com... seus sanctinhos.

II

FRADES DA GRAÇA

Lo nosso picheI, Deixai-lo 'hi 'star; De freiras, nem frades Não ha que fiar:

Não ha que fiar Dos frades da Graça; Cada um comsigo Traz sua cabaça:

Traz sua cabaça


De canad' e meia, Que beb' ao jantar, Que bebe na ceia.

Lo nosso picheI, Redondo, redondo, Deixal lo 'hi 'star: Kirie 'Ieisono!

III

LA MULHER DO ALMOCREVE

La mulher do almocreve, A um frad' alcovitada, 'Stando seu marido longe, Em casa lhe deu intrada, Quer de dia, quer de noite, Como com elle casada; E disto la visinhança Cramava injuriada: - «Deixem chegaI lo marido, Esta lhe será contada.»

Palavras não eram dictas, Seu marido na portada.


- «Ai, marido.» lhe diss' elIa. Logo com êll' abraçada, «Desta visinhança má Anda la gent' affrontada; Dizem que teu chapéo novo É coisa de gargalhada, Por não intrar, nem sahir Na tua grenha riçada.»

Bem sabia la mulher Como dava la pedrada; Acertou com éll' em cheio Onde la quiz acertada.

Seu marido, chapéo posto E cabeça levantada, Salt' a meio do terreiro, E dá faIl’ assim fallada: - «Que toda la visinhança Fique bem desinganada: Se lo invejam por novo, Sigam Ia mesma pisada; Quer sim quer não, entr’ ou saia, Ninguem com isso tem nada; Ninguem s'importe d'eu ter La minha grenha riçada.»

Las visinhas, que tal ouvem, Ficaram bocca tapada; Lo marido, no engano;


E la mulher, descançada.

IV

FREI JOSÉ SEM CUIDADOS

La mulher mail lo marido A dormir já 'stão deitados,

Quando, polla noite velha, Ouvem andar nos telhados. - «Ai, mulher, isto que é?» - «Serão almas do finados, Que andam aqui penando Á conta de seus peccados.»

Mas quem, de verdade, foi, Foi Frei José Sem-Cuidados, Que, como por barra livre, Vinh' entrar poI los eirados.

Diz então lo marido:

- «Ai, mulher, que mêdo tenho Destas almas dos penados!»


E responde ella:

- «Eu las vou afugentar Com meus responsos resados: Ó almas do outro mundo, Que vindes remir peccados. Meu marido está em casa, Vossos passos são baldados.»

Palavras não eram dictas, Já Frei José Sem-Cuidados, Dando de pôpa no vento, Los deixou assocegados.

V

MARIANA - «Marianna, Marianna!» - «Quem é você, que me falIa? -« Bem no cuidas, Marianna.» - «Veja você se se cala.»

- «Marianna; Marianna!» - «Que quer você, que me chama?» - «Padeço de mal d'amor.» - «Você que se cur' na cama,»


- «Marianna, Marianna!» - «Diga você lo que quer,» - «Abre la porta, Marianna.» - «P'ra frade nã sou mulher.»

- «Morro aqui, Marianna!» - «Morra você n'outro cabo.» - «Morro por ti, Marianna!» - «Vã morrer pol Io diabo.»

VI

PADRE AMARO

Padre Amaro, sem ser velho, Anda d'igrej' em igreja; Nã fica sancto nem sancta Que Padre Amaro nã beja.

Ó meu Padre, Padr' Amaro, Sem ser velho, e já sem dentes! Nã fosses, Padre, guloso.... Em comel las papas quentes.


VII

VIDA EDIFICANTE

Lo vigairo dá no cura; Lo cura, no thesoureiro; Thesoureiro, no sachrista; Lo sachrista, no sineiro.

Lo vigairo mail lo cura São ambos homens honrados; Elles teem 'inda mais filhos Do que los que são casados.

São capazes de vender Até la sobrepelliz, P'ra irem comprar tabaco Com qu' atulhar lo nariz.

Los olhos do padre cura Mail los do padre vigairo São quatro tochas acesas, Lumeando lo sacrairo.


VIII

LO JUIZ DE FÓRA

- «Lo juiz de fóra Já lá vem da missa. Esconde-te, Rosa, Da sua justiça» - «La sua justiça 'Hi venha imbora: Eu tenho bem preso Lo juiz de fóra.» - «Lo juiz de fóra Vem mui carrancudo.» - «Por quê, eu lo sei... Mas nã póde tudo.»

IX

LOS NAMORADOS NA MISSA

Los teus olhos me citaram, No adro, ao ir á missa; Á sahida me prenderam; São meirinhos da justiça.


Fui á missa, nã n'ouvi; Levantou Deus, não orei; Eu só via los teus olhos... Ai, minh' alma, que pequei!

Foi á missa, p'ra resar; Vim em peccado mortal: De sentido só em ti. Nã vi padre, nem missal.

Fui á missa, nem benzer-me! Minha mãe me resingou: - «Rapariga, lo juizo Aond' é que te ficou?»

- «Eu nã no deixei na serra, Nem tã pouco no caminho;

Eu todo lo trago posto Nos olhos do meu bemsinho.»

Tanta gente na igreja, Ó meu amor, te cubiça! Mas tu nã vês quem te vê, Nem quem te vê ouve missa.


X

AMA DO PADRE CURA

- «'Stás preso, José Fidelio, 'Stás preso, nã tens soltura.» - «Ai, porque, senhor juiz, Tamanha pena tão dura?» - «Por dar abraços e beijos Na ama do padre cura.»

XI

FRADE CAÇADOR

Lo frade lá-vae de bragas Na Mangerona caçar; Qual la caç' a qu' elle foi Bem será d'adivinhar: E por lá perdeu las bragas... Na Mangeron' a caçar! Quem nas ache nã las dê, P'ra lo frade invergonhar. Ai, meu frade tão rev'rendo, Olha nã te vão caçar; Nã te vão a linhas brancas.


Algum remendo deitar.

XII

TRIPOLÉ

VARIANTE I

Truz, catruz! - «Ai, quem é?» - «Frei Antonio Tripolé. Trinta réis, Mestre Zé, Dae de vinho E rapé!» - «Cal-te, leigo Tripolé. Tanta bulha,

Lo que é?» Truz, catruz. - «Mestre Zé, Venha vinho E rapé!»


VARIANTE II

Truz, catruz. - «Quem é?» - «Sou Frei Tripolé. Trinta réis de vinho, Dez réis de rapé!» - «Ai, tanta tormenta, Por tão pouco é?!»

XIII

SANCTA MENINA

Sancta menina, Devota madre, São lo regalo Do pobre frade. Quem, quem d'um frade Ter dó não ha de?

Que Deus livre Nosso convento Do seu prelado Ser rabugento.


XIV

AMOR E SOPAS

Mangerona: - «Vae á porta.» Segurelha: - «Quem 'stá 'hi?» - «Sou lo cravo, minha rosa, Que chego agor' aqui.» - «Ferve, ferve, panellinha, Se não fervo eu por ti; Que quero tiraI las sôpas, Qu' a meu bem las prometti.»

XV

FRITAE LOS OVOS

Fritae los ovos, Mas não só um,

P'ra Marcellina, Quebrar jejum.

Fritae los ovos, Mas não só dois, P'ra Marcellina,


Comer despois.

Fritae los ovos, Mas não só tres, P'ra Marcellina, Que vem de vez. Fritae los ovos, Mas não só quatro, P'ra Marcellina, Que quer bom tracto.

Fritae los ovos, Mas não só cinco. P'ra Marcellina. Que bem na sinto. Fritae los ovos, Mas não só seis, P'ra Marcellina. Que bem na veis.

Fritae los ovos, Mas não só septe, P'ra Marcellida, Que se derrete.

Los ovos todos Fritae, fritae, P'ra Marcellina Comer n'um ai.


XVI

CASAR SEM DOTE

Meu sogro, p'ra qu'eu casasse, Dava I' azenha que tinha; Despois de me ver casado, Nem um sacco de farinha!

Minha sogra, lá por si, Dava-me duas ovelhas; Despois de me ver casado, Dellas nem vi las orelhas!

E casar sem trazer dote É remar contra maré; Casar com mulher sem dote É andar só com um pé.

XVII

DOIS VELHOS Lo velho perdeu la velha Entre l’aresta do linho; Ficou lo pobre do velho Sem lo seu agasaIhinho.


XVIII

JÁ SOU VELHO

Eu já n'algum tempo 'stive No rol dos amantes qu'ridos; Agora, que já sou velho, 'Stou no rol dos esquecidos.

Já eu n'algum tempo fui Do teu prato boa sôpa; Agora, que já sou velho, Sou resalgar dessa bocca.

XIX

BRIGA CASEIRA

Com la colher do melaço La velh' ao velho chegou; Lo melaço 'slava quente, E las barbas lhe queimou. Cuitado do pobre velho; Ai, lag dôres qu'elle passou!


XX

E MEU PAE SEM UMA NÓRA

Tanta perinha podrida; Podrido tanto limão; Tanta rapariga louca Por seu rapaz maganão!

Tanta laranja dourada; TanIa maçã, tant' amóra; Tanta menina bonita... E meu pae sem uma nóra!

XXI

CASO DOS CALÇÕES

Passei na tua portada; Incostei-m' aos cancellões; Mas, olhando, vi teu pae... Nã sei que fiz nos calções.


XXII

CARVALHEIRA

Debaixo da tua sombra, Carvalheira, é qu' é 'star; Tens frança bem tapadinha; Nã lh'entra sol, nem Iuar. Carvalheira, nessa sombra. Dois amantes vi brincar. Carvalheira, se fallasses, Lo qu'irias tu fallar?

XXIII

LA MENINA DO BALCÂO

Ai, menina do balcão, Quem fôra do vosso grado! Tendes em vós tanto oiro, Que bem tereis mil cruzado! E mil cruzado é pouco P'ra brio tão fidalgado; Só do vestir e calçar Nã vos ficava um chavo! E airosa, bem fallada;


Olhos, carvão abrazado; Dentes, que nem lo marfim; Rosto, moreno, rosado... Ai, menina do balcão, Eu aqui 'stou amarrado: Um arco fazei da bocca; Matae-me a beijo frechado,

XXIV

LA PRISÃO DO LIMOEIRO

Fui de cadei' em cadeia; Fui parar ao Limoeiro; Só me valeu um amigo, Que se chamava Dinheiro.

Septe grades me fechavam E de todas me livrei; Tres de ferro, tres de bronze, Uma d'oiro qu' é del-rei.


XXV

EU FUI P'RA CASAR NO NORTE

Eu fui p'ra casar no Norte, Á fama do muito vinho; Nã vi lã senão balseiros, E gente de mau focinho,

Eu fui p'ra casar no Norte, Á fama do seu feijão;

Nã vi lá senão balseiros, E gente de mau carão.

Eu fui p'ra casar no Norte, Á fama do muito gado; Nã vi lá senão balseiros, E povo mal incarado.

Eu fui p’ra casar no Norte, Á fama de mais do qu' isso... Nã vi Iá senão balseiros, E... Adeus, ó meu feitiço!


GENERO II

CONTOS

ESPECIE I

CONTOS DE FADAS

PRINCEZA INCANTADA VARIANTE I

Las tres cidras do amor Foi el-rei a montear, Montear, como olia; E, quanto mais monteava, Menos la caç' appar'cia: Los perros iam cançados; Los falcões, ninguem los via; Mas, na fim, vem uma corça; E traz déll' el-rei corria: La corça saltou um cor'go; E el-rei lá cahiria, Se não é uma cidreira,


Quo lo cor'go defendia.

'Stava na terra das fadas, Mas el-rei nã lo sabia; Porisso, som mal cuidar, Tres cidras alli colhia, Com que ir matal la sêde Da calma, qu' éss' hor' ardia; E, tomando sua faca, La mais maneira partia: Desta cidra quartejada Linda menina sahia!

- «Quero agua, se não, morro.» Ella, voz alta, podia; Mas, naquelles arredores D'agua nem signal havia: E la menina tão linda Logo á sêde morria!

Com este caso tão triste, EI-rei, mui triste, fugia; E, da pressa que levava, Mais forte sêde sentia; Porisso, sem mal cuidar, Segunda cidra partia: Desta cidra quartejada Outra menina sahia! Se la primeira foi linda, Esta mais linda seria!


- «Quero agua, se não, morro.» Ella, voz alta, pedia; Mas, naqueIles arredores

D'agua nem signal havia: E la menina tão linda, Logo á sê de morria!

Com mais este caso triste, El-rei mais triste fugia; E, da pressa que levava, Mais forte, sêde sentia: Mas jurava de morrer, Se l'outra cidra parlia, Se não quando s'achegasse Á beira de fonte fria.

Indo assim de caminho, Polla sêde acabaria, Se, na raia do seu reino, Uma fonte nã nacia! Derriba da mesma fonte Verde loireiro s'erguia; Dos ramos, com sua frança, Fresca sombra la cobria; La agua, cahida d'alto, Já lá de longe so ouvia: E el-rei, que la ouviu, Logo á fonte corria; Chegado, tanto bebeu,


Que sem sentidos cahia; Com el-rei cahiu la cidra, E quartejada partia: Desta derradeira cidra Outra menina sahia!

Se las outras eram lindas. Esta mais linda seria!

- «Quero agua, senão, morro,» ElIa, voz alta, pedia; E, tendo la font' á mão. Logo bebeu, e vivia: Mas, vendo-se toda nua. Vergonhosa s'escondia Naquelle grande loireiro. Onde, ligeira, subia.

Comenos, el-rei acorda, Como quem somno dormia: - «Ai, ó cidra de minh' alma!» Outro «ai» lhe respondia; E então logo s'ergueu, A ver quem assim gemia: Era la menina linda Que no loiro s'incolhia; Lo brilho dos olhos della Luz d'estrellas resplendia; Mas la braza dos del-rei Não era brilhar, ardia;


Porque, lá 'rriba olhando. Toda nua bem la via: Mas, discreto namorado, La sua capa despia, E la deu, por esconder Lo que ver desejaria; Que lo amor é menino; Quer e nã quer, á porfia.

- «Que fazeis aqui, senhora? (EI-rei, pasmado, dizia): Só de princeza de sangue Tanta lindeza seria.»

Lá derriba do loireiro La menina respondia: - «'Septe fadas m'incantaram Por sept' annos e um dia; Hontem findaram los annos, E hoje findou lo dia: Que meu incauto findado, Quando menos cuidaria, De ser princeza de França A rainha passaria.» - «Pois, senhora (diss' el-rei), Por mulher vos recebia. Eu sou rei destes logares; Commigo vos levaria.» - «Bem quizera ir comvosco; Mas isso como seria,


Se mal vestida me vejo, Sem damas de companhia?» - «Eu, el-rei vos vou trazer, Antes que finde lo dia, Ricos vestidos de côrte E damas, á cortezia: Esp'rae vós ahi senhora; Só morto nã voltaria; Palavra de rei sagrada, A qu' eu nunca faltaria.» Palavras não eram dictas. EI-rei á côrte volvia; E, da pressa que levava, No andar desappar'cia. Da princeza, no loireiro, Só la cabeça surgia; Deitando olhos á fonte, Seu rosto nella revia.

Quando já sosinha 'stava, Uns passos d'alguem sentia, E viu vir mulher malata, Com seu pót' á fonte fria; Malata d'olhar de fogo, Que las neves derretia; Malata de dentes alvos, Com que beijos desafia; Peitos altos a tremer, E cintura que pedia Abraços a redobrar...


Com ser malata, valia. Mas, á vista da princeza, Nem comparal-las havia! A demais, malata má, Que d'inveja se mordia. Indo a laval la cara, Lindo rosto n'agua via! Lo da princeza, não della, Lindo, que mais nã podia; Mas cuidando seI lo seu La malat' assim dizia: - «Eu, que sou tão bonitinha,

Vir de pót' á fonte, fria?! Quebra-te, póte, nas pedras!» E logo lo póte partia. Nisto, ouv' uma risada, Sem saber d'onde viria; Olhando despois arriba, La princeza descobria: Que do caso Ia princeza. Sem parar, 'inda, se ria. La malata lhe deitou Olhos de malataria: Malas atrtes de malata, Quem então las cuidaria!

- «Que fazeis aqui, senhora? (Ella, pasmada, dizia): Só de princeza de sangue


Tanta lindeza seria.»

Lá derriba do loireiro La princeza, respondia: - «Septe fadas m'incantaram Por sept´annos e um dia; Hontem findaram los annos. E hoje findou lo dia: Que, meu incanto findado, Quando menos cuidaria, De ser princeza de França A rainha passaria. Destes logares el-rei 'Ind' agora d’aqui ia

A trazer vestes de côrte, E damas, á cortezia; Que por mulher me tomava. Comsigo me Ievaria; Que lo esp'rass' eu aqui; Só morto nã voltaria; Deu-me palavra de rei Que nunca me faltaria: E lo 'stou aqui esp'rando Antes que finde lo dia.»

La malata, d'invejosa, Tredas palavras volvia: - «Tamanha fortuna, senhora, Nunc' a mim me chegaria...


Della vos dou parabens; Veiu a quem la mer’cia. Mas eI-rei, quando vier, De certo mui gostaria Que já bem pentead' achasse Quem por noiva escolhia. Decei, pois, senhor' abaixo, Eu aqui vos pentearia; Já que nã póde ser mais. De grado vos serviria.» E la princeza contente De ter aIli companhia, E consid'rando rasão No que la mulher dizia. Deceu para se pentear Como la malata qu'ria,

La malata s'assentou Nas pedras da fonte fria; Da princeza, recostada, Las longas grenhas abria, E, despois que la princeza Descuidada dormecia, E, no colo da treidora, A somno solto dormia, Na cabeça Ih' interrou Alfinete qu' escondia; Alfinete de malata Cheio de feiticeria, Que da princeza, tão linda,


Uma pombinha fazia!

La pombinha, dand' um ai, Da malata se fugia; La malata, ás risadas, No loireiro s'assubia.

'lnda sol não era posto, Jã el-rei bem perto ia, Ricos vestidos trazendo, E damas, e fidalguia: - «Princeza, minha princeza!» Mas ninguem lhe respondia, A nã ser voz d'uma pomba, Que por alli se gemia. Chegava, então, el-rei Á beira da fonte fria, Junto do loireiro verde Que de sombra la vestia,

E, deitando olhos altos, La malata descobria: - «Qu' estás tu ahi, malata?» (E, sanhudo, lh' investia). Da princeza, qu' 'hi deixei, Della que feito seria? Se della me não dás conta, Cabeça te cortaria.»

La malata lhe retruca,


E nem la voz lhe tremia: - «Antes fôra eu maIata; Eu d’aqui m'escaparia. Sou la princeza de França, Que vossa mulher seria. Se me vêdes demudada, Praga foi que rogaria Feiticeira de má morte. Que d'inveja se mordia. Culpado desta desgraça Só é sua senhoria.» - «Mal hajam las feiticeiras!» (De raiva el-rei bramia). «Se la feição vos demudam. Nã vos mudam gerarchia. Nem la palavra de rei Nunca eu la negaria. Descei-vos d'ahi, senhora, Vind' em minha companhia.»

La malata se vestiu De seda com pedraria; A seu lado vae el-rei; Vão damas, á cortezia; Segue tambem, mais atraz, Lo melhor da fidalguia.

- «Ella tem olhar de fogo (El-rei, comsigo dizia); ElIa tem los dentes alvos,


Com que beijos desafia; Peitos altos a tremer; Cintura, que já pedia...» Cada vez que la mirava, Mais formosuras lhe via: El-rei, se vae neste andar, 'Stou em dizer, doidecia. E, porisso, Ia malata; Á sorrateira se ria. - «De que vos rides, senhora? Sabel-lo desejaria.» - «Ri de mim; do quee me fez La negra feiticeria, Que me cuidastes malata Da maior malataria! E, se eu fôra malata?...» - «Malato me tornaria.» - «Ai, meu rei e senhor meu, Eu tanto vos nã mer’cia.»

Logo qu’intrados na côrte; Grandes festas d'alegria; El-rei no altar sagrado, Por mulher la recebia.

E, amoroso, com ella, Muito captivo vivia Daquell’ olhar tão de fogo, Que las neves derretia; Daquelles dentes tão alvos,


Com que beijos desafia; Dos peitos altos, que tremem; Da cintura, que pedia Abraços a redobrar... Com que lo indoidecia. Se la princez' appar’cesse EI-rei como s'haveria?

Todal las tardes seguidas, Sem passar uma, se via Nos loireiros de palacio Uma pomba que dizia: - «Como 'stá el-rei senhor Nesta má malataria, Com sua mulher malata. Má, que ser mais nã podia?» Em quanto el-rei nã farta La paixão que nêll' ardia, Da pombinha dos loireiros Ninguem las vozes ouvia. Mas, despois que da malata Já el-rei s'abhorrecia, Dão ouvidos á pombinha, P'ra saber lo que diria: - «Como 'stá el-rei senhor Nesta má malataria Com sua mulher malata, Má, que ser mais nã podia?»

E la pomba dos loireiros


Tanto isto repetia, Que lo rei uma vez disse Quem viva l'apanharia.

Então, lo coiteiro-mór, Sem mais delonga sahia, E, um' hora não passada, La mansa pomba coIhia, E viva, ás mãos d’el-rei, Logo, logo, la trazia. El-rei, como gostou della, Mão por cima lhe corria, E, na cabeça cravado, Um alfinete lhe via!

E disse:

- «Cuitada de ti, pombinha, Quem tanto mal te faria?»

E tirando l'alfinete, La pombinha nem gemia; Que, naquell' instante mesmo; A ser princeza volvia; Aquella mesma princeza Do loiro da fonte fria. Do brilho dos olhos della Lo d'estrelas resplendia;

Mas la braza dos del-rei


Não era brilhar, ardia. - «Como foi isto, senhora?» Sanhudo, el-rei inqu'ria; Ella, chorosa, contou; Elle, raivoso, ouvia: - «Justiça, rei meu senhor, Dessa malata vádia!»

La malata, logo presa, Por ordem d'el-rei morria, Posta dentro d'uma pipa Crivada de pregaria; Dos tampos ambos tapada, La pipa rolando ia, PolIas ruas da cidade, Onde lo sangue vertia; Tantas voltas, tantas mortes La malata padecia.

La princeza, na mesm' hora, Com el-rei s'arrecebia; E el-rei arrematava Dizendo, á cortezia: - «Dei-vos palavra de rei; A elIa nã faltaria.»

VARIANTE II

La rainha mulata


Foi el-rei, foi a caçar, A caçar como solia, E, de cançado, deitou-se Ao pé d'uma fonte fria, Por debaixo d'um loireiro Que tambem alli havia, E em riba da relvinha Que pol lo chão s'estendia.

Como 'stava lá sósinho, Vae nã vae qu' adormecia, Quando ouviu um suspiro De mulher que se carpia; E, ouvindo-lo, s'ergueu, Por ver quem assim gemia: Viu então uma donzelIa Que nas ramas s'escondia; Uma donzella formosa. Como outra não havia; Dos olhos da cara d'ella Luz de sol se resplendia.

E disse:

- «Quem soides, e que fazeis Nesta serra tão bravia? Se soides princez' ou fada, Sabel-lo desejaria;

Porque, se princeza soidos,


Á côrte vos levaria, E, como rei destes reinos, Eu comvosco casaria.»

Responde ella:

- «Eu ,sou princeza ,de França, E incantada vivia: Septe fadas m'incantaram Por sept' annos e um dia; Hoj’ acabou meu incanto Juncto desta fonte fria. De grado el-rei senhor. Comvosco me casaria, Mas 'stou aqui mal vestida, E nã tenho companhia: Caminhar d'aqui assim Nã quer minha gerarchia.» - «Tendes vós rasão, senhora; Nem tão pouco eu lo qu'ria: Ricos vestidos tereis, E damas, á cortezia. Ficae-vos ahi quieta; Antes de findo lo dia, Tudo isso vou buscar; Só morto nã voltaria.»

E, logo, logo, el-rei Por onde veiu volvia; Caminho da sua côrte:


A toda la pressa ia:

La princeza mui alegre. No loireiro s'escondia, Donde nas aguas da fonte Seu lindo rosto revia.

Corrida menos d'um' hora, Los passos d'alguem sentia: Era mulata aguadeira, Que vinha á fonte fria: Se lhe tirassem la côr, Com ser mulata, valia. Mas, á vista da princeza. Quem comparal-las podia? Chegada que foi á fonte, Se debruçou, e lá via Um rosto que seu cuidou. Alvo que mais nã podia. E disse: - «Como sou linda!» E lo seu póte partia. Nisto ouv' uma risada, Sem saber donde viria; Mas, despois, olhando alto, La princeza descobria: - «Quem soides, e que fazeis Nesta serra tão bravia? Se soides princez' ou fada. De vontade vos seguia.» - «Eu sou princeza de França,


E incantada vivia. El-rei por aqui passou; Prometteu que tornaria; Que de volta me levava,

E commigo casaria.» - «Mas el-rei, quando chegar, De certo nã gostaria Ver assim desguedelhada Quem p'ra mulher escolhia. Decei, pois, senhora, abaixo; Eu aqui vos pentearia.» La princez' achou rasão No que la outra dizia; E, porisso, do loireiro. Sem demora se decia; E no colo da mulata Sua cabeça pendia: Senão quando, somno solto Ella, cuitada, dormia, Na cabeça, Ia treidora Um espinho lhe mettia; Um espinho de silvado, Cheio de feiticeria. Que bem fundo se cravou Até anda ser podia: E da tão linda princeza Mui feia c'ruja fazia.

La c'ruja gritou um ai.


E logo d'alli fugia; La mulat', em logar deIla, Ao loireiro se subia.

Inda sol não era posto, Já el-rei p'ra lá volvia,

Ricos vestidos trazendo, Damas e mais fidalgia: - «Princeza, minha princeza!» Mas ninguem lhe respondia. A nã ser piar de c'ruja. Que por 'lli perto gemia. Chegando el-rei á fonte, La mulata descobria: Qu'estás tu ahi, mulata?» ÉII' affoita, respondia: - «Sou la princeza de França. Que incantada vivia, A quem promettestes vir Antes de findo lo dia: E, como rei, fiançastes Qu' eu comvosco casaria. Eu sósinha vos esperava Entr' esta rama sombria; Se minh' alvura perdi, Só a vós lo deveria; Foi praga que me rogou Quem d'inveja se mordia.» - «Mal hajam las invejosas


(Raivando, el-rei dizia): Se la côr vos demudaram. Nã vos mudam gerarchia; Nem á promessa de rei Eu nunca vos faltaria. Decei-vos d'ahi, senhora; Vinde nesta companhia.»

Logo qu'intraram na corte,

Todos fingem alegria; EI-rei, no altar sagrado, Por mulher la recebia; E, cego d'amor por ella, Muito captivo vivia. Se lo rei bem lo soubera, EI-rei que lhe nã faria?

Mas quando todal las tardes. Tocava l'ave-maria. Nos eirados de palacio Triste la c'ruja appar'cia. E no seu piar, piar, Estas palavras dizia: - «Justiça, el-rei senhor, Dessa mulata vádia!»

E la mulata rainha Uma vez qu' isto Ih' ouvia, Sem mais tir-te nem mais guar-te,


Um dardo lhe despedia. Mas lo tiro só tocou Onde lo espinho havia, E logo lo arrancando. La c’ruja desappar'cia; La princez', em logar della. Toda la gente la via! - «Justiça, el-rei senhor, (Toda la gente dizia): Justiça, el-rei senhor, Dessa mulata vádia!»

La mulata, na mesm' hora, Ás mãos do povo morria: Por sua mulher, el-rei La princeza recebia.

VARIANTE III

La filha del-rei de França

Foi el-rei longe caçar, A caçar como solia; Vão los perros já cançados; Cançado lo falcão ia; E el-rei tambem, cançado,


Já comsigo nã podia; E no bravo alvoredo. Onde casaes não havia Nem palhoças de pastor, A el-rei anoitecia: Porisso, com ser quem era, Como melhor não havia, Abrigou-s' a um loireiro, Ao pé d'uma fonte fria: E, porque fosse de v'rão, Depressa lh'amanhecia.

Viu, então, sobl' lo loireiro Uma formosa donzilha, De seu cabello tão basto,

Que lo corpo Ih'escondia; De seus olhos tão senhores, Que tudo lh’obedecia; De sua bocca tão linda, Que, sem dizer, fallaria; E logo lhe perguntou: - «Que fazeis aqui, donzilha?» Do loireiro lá em riba, La donzilha respondia: -- «Septe fadas me fadaram No collo da madre minha; Qu' incantad' aqui andasse Por sept' annos e um dia; Que na fim do meu incanto,


Mui formosa ficaria: Hontem findaram los annos, E hoje findou lo dia. - «De pequeno, minha madre M'insinou la cortezia. Decei, pois, d'ahi, senhora, Qu' eu vos não offenderia; Até onde vós quizerdes, Eu vos dera companhia; E, se qu'reis ir de cavallo; Eu aqui vos levaria.»

De ficar alli sosinha La donzilha se temia; Ir de cavallo com elle Isso não lhe conviria; Pollo que, lhe foi mentindo, E assim lhe respondia:

- «Obrigada, cavalleiro. Eu ahi cavalgaria; Mas sou filha de malatos Da maior malataria, E cavallo qu' eu montasse Logo arrebentaria.»

El-rei, então, apeou-se, E a par della seguia; Mas, por meio do caminho, Um abraço lhe pedia.


-

«Arredae-vos, cavalleiro. -

Um abraço vos daria;

Mas sou filha de malatos Da maior malataria, E homem que me tocasse Malato se tornaria.»

EI-rei, então, arredou-se, E la donzilha sorria. - «Senhora, porque vos rides? De mim, ou de quem seria?» - «Foi ver qu'um estorninho, Dum' azeitona fugia.»

Chegados entre casaes, Mais la donzilha se ria. - «Senhora, porque vos rides? De mim, ou de quem seria?» - «Eu me ri do cavalleiro De tamanha cobardia, Qu'incontra mulher na serra,

E lha guarda cortezia; Que, de medos inganado, Um menino me par'cia! Quem não ri do estorninho Que d'azeitona fugia?» - «Tendes vós rasão, senhora: Mas 'té 'noitecer é dia...» - «Minha jornad' acabou;


Já cheguei aonde qu'ria; São estados da meu padre, Ond' eu menina vivia.» - «Mas, senhora, vós quem sois? Qual Ia vossa gerarchia?» - «Eu sou princeza de sangue Que mais nobre não havia; Sou filha deI-rei de França, E neja por bastardia.» - «Ai, então, bem conselhado Vos guardei eu cortezia; Que vós soiI Ia irmã minha Qu' eu julguei nunca veria! EI-rei, nosso pae, morreu; Rei sou eu, por varonia: Muitos me qu'riam lo throno, Mas só a mim competia.»

De content', el-rei de França Dentro de si nã cabia; Chegados que são á côrte, Grandes festas d'alegria.

II

GATA BORRALHEIRA Houv' uma mulher viuva; De seu trabalho vivia;


Tinha comsig' uma filha, Que se chamava Maria. E visinho, d'alli perto, Tinha sua moradia Um viuvo c'uma filha, Tambem chamada Maria. Tem elle terras e gado; La viuva tem lo dia; Se se visse mulher delle, Por feliz se contaria; E, porisso, botou sortes Se com elle casaria; Que sim las sortes dixeram, E qu' isso nã tardaria.

La viuva, de contente, Dentro de si nã cabia; Mas, por mais que se mostrasse, Lo viuvo nem la via; Cada vez menos esp'ranças. Quanto mais tempo corria:

- «Ou eu nã serei quem sou, Ou eu delle mulher seria!» E, urdindo sua teia, Suas tramas estendia.

La Maria do viuvo, Quando la tarde cabia, Como menina, que era,


Ao terreiro se decia; E, la outra da viuva Logo alli appar'cia; E, ambal las duas junctas, Cada qual mais brincaria; Que cada qual dellas duas La mesma idade teria. E l'arteira da viuva, No dar de l'ave-maria. Mel novo e pão meado De merendar lhe trazia: Era merenda fidalga Que la viuv' offer'cia; Mas, 'traz tempo virá tempo; Caro alguem lhe pagaria.

La Maria do viuvo Nestes mimos se prendia; Captivada da viúva, Nad' a ella negaria; Que la tinha por amiga, Como nenhuma seria: Porisso, sem mal cuidar, Naquella teia cabia.

E vae, então, la viuva, Que bom isto conhecia, Nestas fallas bem falladas Disse lo que de della qu'ria: - «Vae-me dizer a teu pae


Se commigo casaria. Se com ell’ eu me casasse, Mais mel e pão te daria; Se hoje sou tu' amiga, 'lnda mais eu lo seria. Teu pae, casado commigo, Bem casado ficaria: Casa que não tem mulher É casa de maltezia.»

Se Maria bem ouviu, 'Inda melhor lo dizia: - «Ai, rico pae da minh' alma, Uma coisa vos pedia. Casa que não tem mulher É casa de maltezia. Casae-vos mail la visinha; Eu mui lo estimaria: Meu pae, casado com ella, Bem casado ficaria; Qu' éll' é muito minh' amiga, E 'inda mail lo seria; Ella dá-me pão e mel; Mais mel e pão me daria.» Diz lo pae: - «Ó rica filha, Sempre madrasta seria; Se t' offerta pão e mel,

Só pau e fel te daria.» - «Rico pae (respondeu ella).


Isso nã 'conteceria. Casae-vos, mail la visinha; Eu mui lo estimaria.» Diz lo pae: - «Lo que tu pedes Lagrymas te custaria: Quando porcos ponham ovos, Só então me casaria.»

Á viuva, bem depressa, Contar tudo foi Maria; Tudo que seu pae lhe disse ÉII' á viuva dizia: - «Quando porcos ponham ovos, Que só então casaria.»

Nem com esta má resposta La viuva esmor'cia; Que logo, palavras promptas, Assim ella respondia: - «Só morte cura não tem, Lo mais remedio teria. Fôra eu em teu logar, Eu tudo arranjaria; Antes que teu pae s'erguesse, Eu da cama saltaria, E, n'um canto do chiqueiro Septe ovos lá poria, De maneira escondidos Que la rez los nã comia; Ao despois, na minha cama


Outra vez me deitaria: Em teu pae se levantando. Tambem me levantaria; Indo êll' a vel lo porco, Tambem eu com êll' iria, Quando menos precatado. Los ovos lhe descobria: Que fossem ovos da rez ElIe crente ficaria; E, então, eu apostava Se sim, ou não, casaria.»

Se la viuva lo disse. Ella melhor lo fazia. E lo viuvo, pasmado. Á sua filha dizia: - «Lo nosso porco põe ovos! Quem tal milagre diria? Seja lo que Deus quijer; Eu me casarei, Maria. Vae tu dizer á viuva Se por marido me qu'ria.»

Foi Maria, foi saltando Contar lo que succedia; Foi n'um pé e veiu n'outro; «Sim» de resposta trazia: E, logo tudo tractado Antes de findo lo dia, PolIo cabo da semana,


Lo noivado se fazia.

Lo primeiro mez passou Da boa paz n'alegria; Mas la filha do viuvo Cêdo s'arrependeria: Do novo amor captivo, Seu pae della s'esquecia; Que la mofina madrasta Artes p'ra tudo sabia. Findado lo mez primeiro. Á madrugada do dia, La madrasta la chamou: - «Ergue-te d'ahi, Maria; Tu, que tens boa saude, Nã tenhas calaçaria.»

Palavras não eram dictas. La entiada s'erguia: - «Aqui tens tu p’ra comer (La madrasta lhe dizia) Uma sardinha, um pão; Isto p'ra ti bastaria: Aqui tens tu este linho, Qu'eu pezei como sabia; Tem um arratel seguro, Nem nada lhe faltaria: E vae já guardal lo gado Na serra todo lo dia. E quando voltes, á noite,


Tudo tambem voltaria; Inteiros, pão e sardinha; Linho em linha viria, Toda prompta, sarilhada, Se não, eu te lo diria.»

La Maria da madrasta A somno solto dormia; La Maria do viuvo A guardal lo gado ia; Ia cramando, cuitada, Que bem seu pae lhe dizia Que la mofina madrasta Sempre madrasta seria; Qu', em logar de pão e mel, Só páu e fel lhe daria.

Entre las vaccas do pae Mui linda vaquinh' havia, Que lo pae tinha comprado P'ra sua filha Maria; Vaquinha, tão atinada. Que falIar até sabia; E tão amiga da dona, Que por ella morreria.

La dona chegou-s' a ella, Triste, que mais nã podia; E la vaquinha pergunta Por que tão trisle viria:


Então, Maria lhe conta Lo que la madrasta qu'ria. - «Cal-te (disse la vaquinha). Isso nada monlaria; Segue tu lo meu conselho. Tudo bem te sahiria: Se commigo isso fosse, Deste modo m'haveria: Eu comia do miolo, Mas la côdea nã partia; La espinha nã quebrava, Mas da sardinha comia; Comendo d'ambal las coisa, Inteiras las volveria; E la tarefa do linho... Eu, já, já, lo fiaria; Acabado de fiar, Nos páus lo sarilharia: Assim los preceitos postos, Certo que los compriria.»

No meio de suas penas, Uma e outra se ria, A cuidarem com que cara La madrasta ficaria; Que tudo assim se fez Como la vacca faria: E, chegada la noitinha, Chegou a casa Maria. - «Qu' é do pão e da sardinha?


(La madrasta lhe dizia): Qu' é do linho sarilhado, Como eu mandei e qu'ria?» - «Compri los vossos preceitos Como compril los podia: Pão e sardinha inteiros, Que nada nelles partia; Linho prompto, sarilhado, Que nada lho faltaria.»

E la madrasta, pasmada, Quasi sem crer lo que via, D'ajuda de coisa má Neste caso desconfia.

La madrasta, de raivosa, Nessa noite nem dormia; Porisso, logo s'ergueu 'lnda nem alva luzia, E chamou la entiada: - «Ergue-te d'ahi Maria; Tu, que tens boa saude, Nã tenhas calaçaria.»

Palavras não eram dictas, La entiada s'erguia. - «Aqui tens tu p'ra comer (La madrasta lhe dizia) Doze tremoços sem pão; Isto p'ra ti bastaria:


Aqui tens tu este linho, Qu'eu, pezei como sabia; Tem dois arrates seguros, Nem nada lhe faltaria: E vae já guardal lo gado Na serra todo lo dia. E, quando voltes á noite Tudo tambem voltaria; Los tremoços, inteirinhos; Linho em linha viria, Toda prompta, sarilhada, Se não, eu te lo diria.»

La Maria do viuvo A guarda llo gado ia; Ia cramando, cuitada, Que bem seu pae lhe dizia Que la mofina madrasta Sempre madrasta seria; Qu', em logar de pão a mel, Só páu e fel lhe daria.

La Maria da madrasta Que desta vez nã dormia, 'Sp'rando, bem acordada, Atraz da outra seguia; Que sua mãe la mandava Para ver se descobria L'ajuda de coisa má, Que do caso desconfia:


E viu tudo, sem ser vista... Mais feliz se lo nã via; Mal s'ingana quem seu bem Do mal alheio confia.

Vae Ia don' á sua vacca, Triste, que mais nã podia; E la vaquinha pergunta Por que tão triste viria: Então, Maria lhe conta Lo que la madrasta qu'ria: - «Cal-te (disse la vaquinha), Isso nada montaria; Segue tu, lo meu conselho. Tudo bem te sahiria.

Se commigo isso fosse, Deste modo m'haveria: Em vez de comer tremoços, Eu bom leite beberia; E la tarefa do linho... Eu, já, já, lo fiaria; Tu ahi póst' a fiar, Eu aqui sarilharia: Assim los preceitos postos, Certo que los compriria.»

No meio de suas penas, Uma e outra se ria, A cuidarem com que cara


La madrasta ficaria; Que tudo assim se fez, Como la vacca dizia.

Mas la filha da madrasta, Que mais nada saber qu'ria, Logo se poz a caminho, Que não andava, corria; E á mãe, sem faltar nada, Contou tudo que sabia: - «Eu te juro, filha minha, (La mãe diss' e repetia) Vae amanhã a matar La vaquinha de Maria.» E quando era la hora Que lo marido viria, La mofina da madrasta Feios gemidos gemia.

- «Mulher minha, que tens tu?» Lo marido lho dizia. - «Eu mo sinto a morrer (La mulher lho respondia): E um só remedio sei Que lo meu mal curaria; Caldos de vaquinha nova, A cada hora do dia: Manda la tu já matar La vaquinha da Maria; Só da carne dessa rez


Eu los caldos tomaria.» - «De tantas vaccas que tenho, (Seu marido acudia) Escolhe dentr' ellas todas; La melhor eu mataria. Logo foste cubiçar Essa da triste Maria?» - «Antes morra essa vacca, Qu' eu me veja n'agonia. Quem m'acode, qu' arrebento, Com tamanha tyrannia!»

Lo marido só chorava, Que p'ra mais nã s'atrevia. Quando chegou la noitinha, Chegou a casa Maria: - «Senhor pae, porque choraes? Quem assim vos penaria?» - «Eu choro por 'mor de ti, Qu' amofinar-te ná qu'ria. Quem penas a mim me dá...

Nem eu bem lo saberia; E, se nellas ha culpado. Eu, por mim, nã lo seria. Doeceu tua madrasta E diz que se curaria Com caldos da tua vacca Todal las horas do dia. Que los caldos fossem doutra,


Cuido nã importaria; Mas, imbora qu' assim seja, La vontad' eu lhe faria; Quem uma rez te comprou, Outra melhor te daria: Antes quero la rez morta, Do que maior agonia: Como isso tem de ser, SeI lo já melhor seria. Vae, filha, trazel la vacca; Aqui eu la mataria. - «Já e já (dil la madrasta); Só isso me salvaria.»

Lá vae caminho da serra, Lá vae a correr Maria: - «Vaquinha, minha vaquinha. Meu amor, minh' alegria, Querem, querem qu' eu te leve. E meu pae, te mataria: Fuge, fuge, se não foges, La vida to custaria.» - «Da sina com que naceu Ninguem nunca fugiria:

La minha sina foi esta; Uma vez isto seria: E, com ter tão triste fim. Infeliz me nã diria; Que Ia minha má fortuna


A bem teu se voltaria. Vae lavar Ias minhas tripas Na ribeira corredia; Das tripas ha de sahir Vara d'oiro luzidia, Uma vara de condão Como ninguem Ia teria; Qu’ irá boiando, boiando. Á tona de I'agua fria; E tu vae da riba vendo Aonde ella pararia: Ahi pára tu tambem; É finda la romaria: Guarda primeiro la vara Sempr' em tua companhia; Que tudo que lhe pedires, Todo ella te faria. Ahi verás de tres fadas La casa de moradia, De porta 'scancarada, Como de quem nã temia: Todo bem que tu lhe faças Fidalga paga teria; Que las tres donas da casa; São fadas de fidalguia: Por ellas serei vingada Como por ninguem seria;

E tu subirás tão alto Como ninguem cuidaria.


Assim, morrerei contente; E adeus, qu'rida Maria.» - «Ai, adeus, adeus, vaquinha, Nã me falles d'alegria, Que, p'ra te salvar la vida, Por negra me venderia.»

E Ia vaquinha morreu, Como quem adormecia. - «Las tripas (dil la madrasta), Que Ias vá lavar Maria.» E lá vae ella, chorando, Á ribeira corredia.

Tudo que la vacca disse, Como diss' acontecia: Das tripas logo sahindo La varinha luzidia, Á tona d'agua corrente Boiando, boiando ia; E Maria, de pós ella, Polla riba la seguia; Parou uma, parou outra; É finda la romaria: E, guardando la varinha, Olhos de redor volvia; Logo perto da ribeira La casa das fadas via, De porta 'scancarada, Como de quem nã temia:


E lá foi, e na aldraba De vagarinho batia; E, entrando mui cortez, «Salve Deus, muito bom dia,» Achou la casa sem gente. Que deserta bem par'cia: Vae então por alli dentro, Todal las casas corria; Achou lo chão por varrer, E logo lo chão varria; Achou camas por fazer, E logo todas fazia; Incheu-Ihe los potes d'agua; Lume no lar accendia; Poz tudo em seu Iogar, Que melhor ninguem poria; E, despois de tudo prompto, Assustada s'escondia Por detraz d'umas cidreiras, Porque vir alguem sentia.

Eram las fadas que vinham. Todas tres de companhia; E, portas a dentro vendo Lo arranjo qu' alli ia, Todas tres maravilhadas, Cada qual assim dizia: - «Que mulher ou qual dos anjos. Fez tanta bemfeitoria?» Dil la mais velha: - «Fademos


Quem bemfadada mer'cia; Eu te fado tão formosa, Que tanto ninguem seria.» - «Eu te fado tão discreta (La do meio respondia), Que, de todal Ias mulheres, Tanto nenhum' haveria.» - «E eu (diz la derradeira) Rainha te fadaria; Serás mulher d'um infante, Que será rei algum dia.»

Maria la bemfadada, De vergonhosa, fugia; E, qu'rendo voltar a casa, Porque, já lhe ‘noitecia, Como nã sabe caminho, Desvairada se perdia; Lembra-Ih' então la varinha, Qu' alli comsigo trazia: - «Minha vara de condão, Condão que Deus te daria, Põe-m' em casa de meu pae Ainda com ar de dia; Que, se não, minha madrasta Mau cabo de mim daria.»

Palavras não eram dictas, ElIa na porta batia; E por isto conheceu


Quanto la vara valia: - «La vaquinha da minh' alma, Cuitada, nã me mentia.»

Logo no intrar da porta La madrasta Ih'investia; Mas, por la ver tão formosa, Quasi la nã conhecia: - «Lo debulho que lavaste Aonde te ficaria?»

Maria ficou calada, Que desculpa nã teria; Lembrou-Ih' então la varinha, Qu' alli comsigo trazia: - «Minha vara de condão, Condão que Deus te daria, Põe-me na mão lo debulho, Que lá 'rriba m'esquecia; Que, se não, minha madrasta Mau cabo de mim daria.»

Palavras não eram dictas, Lo debulho appar'cia; E, pasmada, la madrasta, Vozes mais brandas, dizia: - «E quem te poz tão bonita? Aqui ha feitiçaria.»

Maria, la bemfadada,


Por discreta respondia; - «Descendo ribeir' abaixo, Achei nobre casaria, De porta 'scancarada, Como de quem nã temia; É casa d'umas tres fadas, Que moram de companhia: Eu lá fui, e na aldraba Com toda força batia; E, entrando não cortez, Sem salve Deus, nem bom dia, Achei la casa sem gente, Que deserta bem par'cia: Fui então por alli dentro, Todal las casas corria; E nã sei lo que me deu, Qu' eu tudo lá revolvia: Lo chão varrido, sujei; Camas feitas, desfazia; E no lume da lareira Los potes d'agua vertia; Tudo puz em desarranjo, Que maior ninguem poria: E, despois, tornando em mim, Assustada m'escondia Por detraz' d'umas cidreiras, Porque vir alguem sentia. Eram las fadas que vinham, Todas tres de companhia; E, portas a dentro vendo


Desarranjo qu' alli ia, Todas tres maravilhadas, Qual folgava, qual se ria, Disputando entre si Qual melhor me fadaria: Uma fadou-me formosa; Outra, discreta me qu'ria; La terceira, qu'um infante Commigo se casaria.»

La mofina da madrasta, Em quanto isto Ih' ouvia, Má teia de mau fiado Comsigo mesma tecia: Nã quiz que ninguem mais visse La bemfadada Maria; Fêl-Ia gata borralheira, P'ra trabalhar noit' e dia Na fornalha e no forno Da casa d'amassaria; E, chamando sua filha, Que d'inveja se comia, Tudo que la outra disse. Por miudo lhe dessfia; E que foss' onde las fadas, Fazer peior que Maria; Que, quanto peior fizesse, Mais bemfadada viria.

Foi la filha da madrasta,


E fel lo que la mãe qu'ria; Fêl lo mal pollo peior, Que ser peior nã podia: E, despois de tudo feito. Assustada s'escondia Por detraz d'umas cidreiras; Porque vir alguem sentia. Eram las fadas que vinham. Todas tres de companthia; E, portas a dentro vendo Desarranjo qu'alli ia, Todas tres maravilhadas, Cada qual assim dizia: - «Que mulher ou qual diabo Fez tanta malfeitoria?» Dil Ia mais velha: - «Fademos Quem malfadada mer’cia; Eu te fado por tão feia, Que tanto ninguem seria.» - «Eu te fado indiscreta (La do meio respondia), Que, de todal las mulheres, Nenhuma tanto sandia.» E eu (dil la derradeira) Por tão vil te fadaria, Que nem um sayão del-rei Te quizess' em algum dia.

Maria, la maIfadada, De pezaroza, fugia:


Era já noite fechada Quando na porta batia. Logo no intrar da porta Sua mãe que lhe sahia; Mas, por tão feia la ver, Quasi la nã conhecia: - «Ai Jesus, ai minha filha, Quem feitiços te faria?»

La Maria malfadada Já do juizo sandía; Ao que sua mãe pergunta Só sandices respondia. Mas Ia mãe, que lá por elIa Em amor se derretia, La calçava do melhor, E do melhor la vestia; La infeitava de joias De oiro e pedraria, Que, por festas, la mais rica Mais rica nã trajaria.

La Maria bemfadada Discreta se divertia, Que la vara de condão Las vontades lhe fazia; E, por ser d'incantamento, La madrasta nã sabia. Calçando igual à outra, Igual á outra vestia;


Igual s'infeita de joias De oiro e pedraria; Que, por festas, la mais rica Mais rica nã trajaria: Se la outra vae á rua, Ella despois tambem ia; Antes que l'outra voltasse, Ella tambem recolhia: E que foss' ella quem era Ninguem sequer sonharia. Feita gata borralheira, Quem é que la conhecia? Uma vez que, demorada, Ella p'ra casa volvia, PolIa pressa que levava, Lo seu chapim lhe cahia, E, com ir assim descalça, Voava, que nã corria: Dom Infante, que 'traz della, Namorado 'doidecia, Lo chapim lhe apanhou, Mas de vista la perdia; E, vendo intrar la outra, Elle na porta batia. La madrasta diz: - «Quem é?» Dom Infante respondia: - «Abre, da parte del-rei.» Logo la porta s'abria. - «Uma filha que tu tens, Eu, agora, vel-Ia qu'ria.»


La madrasta deu-se pressa, E sua filha trazia, Que, chegada da igreja, Ainda nem se despia. Calçando igual á outra, Igual á outra vestia; Igual enfeite de joias, De oiro e pedraria; Que, por festas, la mais rica Mais rica nã trajaria. Mas, olhando, d'um' a outra, Que diff'rença não havia!? Uma, do feio da noite; Outra, linda nem lo dia! Uma, de seus pés tamanhos, Ambol los chapins trazia;

Outra, de pés pequeninos, Um só chapim se lhe via! Nã sabe lo Dom Infante Lo que disto cuidaria; La madrasta nada sabe. Nem siquer lo desconfia. - «Esta é la tua filha?» Lo Dom Infante s'inqu'ria. - «Eu outra filha nã tenho.» La madrasta repetia. - «Então, mudou por incanto,» Lo Dom Infant' acudia: Mas, cego d'amor qu'estava,


Cuidou desincantaria: E logo lo Dom Infante A leval-la s'off'recia: - «Montae nesta mulla branca; De gosto vos levaria.»

Lá se vae com Dom Infante La malfadada Maria; Vão ambos de cavalgada No meio da fidalguia.

Mas la outra bemfadada, Que tudo isto ouvia. Á varinha de condão Lá comsigo mui pedia: - «Minha vara de condão, Condão que Deus te daria. Não deixes tu qu'ella vá. Porque sou eu qu' elle qu'ria.»

Palavras não eram dictas, Á cavalgada sahia Féra bicha incantada, Qu' escontra Ih' arremetia. E disse la bicha féra, Como lo dizer sabia: - «Parae ahi, Dom Infante, Que levaes de companhia Moeda falsa por boa, E la boa ficaria.»


Dom Irifante, que tal ouve, Logo prompto se volvia: - «Atraz, atraz, minha gente; Aquella mulher mentia; Que me dê já l'outra filha. Se não, la inforcaria.»

La madrasta, logo presa, Como lo vime tremia; Lo Dom Infante, de féro, Quasi que nã s'intendia: - «Nã quero moeda falsa, Se não de boa valia; La mulher qu'eu aqui levo Não é la mulher qu'eu qu'ria, Ou me dás l'outra que tens, Ou aqui t'inforcaria.» La madrasta, de medrosa, Fallava que mal s'ouvia: - «Outra filha, nã na tenho. Minh' entiada seria? Mas essa, senhor Infante, Ninguem la incontraria; Porque nunca vae de casa, Galas tão pouco trazia; 'Stá quasi nua, descalça, E ao lar todo lo dia.» - «Seja ella quem eu vi (Dom Infante respondia),


Que lo mais nã me dá cuita; Eu com ella m'haveria: Toma esta minha capa, Que toda la taparia, E traze-Ia tu comtigo; Ao despois se caIçaria: Viesse nu' ou desçalça, Isso nã m’importaria.»

La madrasta, de medrosa, Na embaixada corria: - «Aqui tens tu esta capa; Dom Infante la envia; Nã quero ser inforcada; Vem cá depressa, Maria.»

La Maria bemfadada A lhe responder sorria: - «Leve lá essa capinha; Eu della nã carecia; Tenho vestir e calçar, Que nem rainha teria.»

La varinha de condão Tudo logo lhe trazia; Vestido d'azul e oiro, Que nem rainha vestia; Nem estrella d'alvorada Tão linda no céo nacia! Mas faltava-lh' um chapim;


D'um só pé calçada ia.

Dom Infante, que la vê, Todo nella se revia; Lo chapim, qu'ella perdêra, Logo a ella volvia; Calçado no pé descalço, Sem mais, nem menos, servia: Agora sim, era certo; Nenhum ingano havia. E logo lo Dom Infante A leval-la s'off'recia: - «Montae nesta mulla branca; De gosto vos levaria. Todos vos bejem na mão, Infanta Dona Maria, A'manhã minha mulher E rainha algum dia.»

La madrasta, d'invejosa, Como cobra, se mordia; Lo pae se ficou atado, Sem saber lo que diria.

E lá vae com Dom Infante La bemfadada Maria; Vão ambos de cavalgada,

No meio da fidalguia. Lá 'diante na estrada,


Ella, baixinho, dizia: - «Minha vara de condão, Condão que Deus te daria, Põe-me viva la vaquinha Que por 'môr de mim morria.» La varinha respondeu Que dar vida nã podia.

Dom Infante lo que disse 'Inda melhor lo compria. Oh, que festas vão na corte! Outras taes ninguem veria! Mas 'stando todos contentes, Só 'stava triste Maria: - «Que vos falta a vós, Infanta, Que nã tendes alegria?» - «Falta-me la minh' amiga, Que por 'môr de mim morria.»

III

LOS INCANTAMENTOS DA GRANDE FADA MARIA

Lo senhor rei d'Aragão. Que Ramires se dizia, Lo seu gosto era correr Venturas da mancebia:


Era seu certo costume La noite de cada dia Andal-la á desgarrada Per onde Ih'apetecia, Seu padeiro, seu copeiro Só tendo por companhia; Porque, fiusado nelles, Outros comsigo nã qu'ria. Toda la côrte lo sabe; Toda la gente lo via: Mas não era só el-rei Que ranchos destes trazia.

E, uma noite de v'rão, Que pouco luar luzia, Um ranchinho de tres homens, Que no caminho seguia, A descançar seu boccado, No caminho s'estendia. Por debaixo d'um balcão Que n'esse logar s'erguia; Lo balcão do aposento Ond' era de moradia Uma honesta viuva Que com tres filhas vivia: E las filhas todas tres, 'lnda néss' hora tardia, No seu balcão a folgar, Viram la sucia vádia: Mas nã fugiram medrosas,


Como la caça bravia; Antes entre si falIavam Per modo de zombaria. E los tres foram ouvindo, Que nenhum delles dormia.

Cada qual das tres irmãs Estas palavras dizia: - «Quem serão estes birbantes? Quem los adivinharia?» - «Bem pudéra 'ser eI-rei Mail la sua companhia.» - «Se dos tres um fôss' eI-rei, Los outros já eu sabia; Lo pádeiro e copeiro De sua real senhoria; Toda Ia côrte lo sabe, Toda la gente lo via.» - «Pois, se fosse lo pádeiro (La primeira assim dizia), Eu com elle nã peccava, Mas com ell' eu casaria, P'ra que da meza del-rei Comesse minha fatia.» Ouvindo estas palavras, Cada qual dellas se ria. - «Pois, se fosse lo copeiro (La segunda assim dizia), Eu com elle nã peccava, Mas com ell' eu casaria,


P'ra que da copa deI-rei Bebesse minha contia.» Ouvindo estas palavras Cada qual d'ellas se ria. - «Pois fossem condes nem duques (La terceira assim dizia), Com nenhum delles peccava, Nem com nenhum casaria. Désse lá por onde désse. Só a el-rei me daria; E, sem ter papas na lingua, Logo assim lhe falIaria: Aqui me tendes, senhor, Honrada, como nacia; Mas tres filhos d'um só ventre Eu de vós senhor, teria.» Ouvindo estas palavras, Cada qual dellas se ria; Dizendo umas p'r' ás outras: - «Quem é que lo juraria. Que los tres birbantes sejam Quem la gente cuidaria?»

- «Juro eu», diz um de baixo, E ao balcão já subia; Lo rancho dos outros dois Logo traz delle seguia; E cada qual das irmãs Para fugir se volvia; Mas, pollos tres agarradas,


Nenhuma fugir podia. No comenos deste caso, La mãe dellas acudia: - «Aqui deI-rei, quem m'acude!» La viuva repetia. - «EI-rei sou eu em pessoa, (Logo eI-rei respondia); Ouvindo fallar em mim. Quiz vir saber quem seria: E, como caça cacei. Fical-la nã deixaria; Ou las moças vem commigo; Ou caro te custaria.»

Quando del-rei, car' a cara. Esta sentença ouvia, La cuitada da viuva Nem sequer fallou, tremia; Mas sua filha mais moça. Sem medo, assim dizia: - «Nã a'assuste, minha mãe; Bicho el-rei nã seria. Nem las tres filhas que tendes. Costaleiras sem valia.»

E lá vão todal las tres Mail los tres de companhia, Dando intrada em palacio Polla porta travessia. E el-rei, logo que chegam,


Desta maneira dizia: - «Soides vós las tres irmãs Qu' eu ind' agora ouvia, Todal las tres no balcão FoIgando á zombaria?»

La mais velha nã faIlou; La do meio s'incolhia ; La derradeira, por todas, Afoita lhe respondia: - «Las mesmas semos, senhor. P'ra servir su' senhoria; Mas lo dicto no balcãa Nã no foi á zombaria.» - «Lo qu'entre vós lá dixestes Aqui, voz alta, lo qu'ria: E quero verdade inteira; Mentira nã soffreria.» - «Verdade vos é devida, Nem eu voI la mentiria. Todas tres semos solteiras, Todas como ser devia; Não ha 'qui que deitar fóra Costaleira sem valia: Uma, tem vint' annos feitos; Outra, vae nesta contia; Eu ando já nos dezoito; Nenhuma quer ficar tia: E, porisso, la mais velha. Vosso pádeiro qu’reria;


Do copeiro la do meio Por contento se daria; Nenhuma nisto peccava; Só casar desejaria. La mais moça, que sou eu, Nem condes, nem duques qu'ria; Com nenhum delles peccava, Nem com nenhum casaria; Désse lá por onda désse, Só a el-rei se daria. Aqui me tendes, senhor, Honrada, como nacia; Mas, tres filhos d'um só ventre Eu, senhor, de vós teria.» Ouvindo estas palavras, El-rei em amor ardia.

Las duas irmãs mais velhas Casaram no outro dia. Mas la mais moça das tres Nunca ninguem mail la via, Salvo las suas irmãs A lhe fazer companhia; Que nas alcovas reaes; Só p'ra ser del-rei vivia.

Correndo nos nove mezes Que grande ventre trazia! Quando lo ventre creceu. Tanto amor no rei crecia.


Mas ás suas irmãs ambas Assim não acontecia. Cada qual antes do tempo, Um filho morto paria; De cada qual lo marido Da mulher s'abhorrecia; E, porisso, má inveja Ambal las duas mordia.

'Stando ellas á conversa; Um' a outr' assim dizia: - «Ai, irmã (dil Ia mais velha), Nunca eu tal cuidaria. Que la mais moça das tres Tanta fortuna teria! Ou por Deus, ou por Diabo. Isto lo seu fim teria.» - «Ai, irmã (dil la do meio). Mata caça quem porfia. Ella 'stá p'ra cada hora; E hoje fosse lo dia; Hemos da sêl las parteiras. Qu' el-rei d'isso gostaria; Lo resto, la gente duas Entre si arranjaria: Filhos que nacessem d'ella: Eu logo esconderia; Numa cesta bem fechados. Logo los injeitaria;


E, no lugar desses filhos, Feios sapos eu poria. Que, quando el-réi los visse. Mãe e sapos mataria.» - «Ai, irmã (dil Ia primeira). Isso bem feito seria, P'ra que Ia mais moça veja Que não é de mais valia.»

E d'alli vão conchavadas Como tudo se faria.

Sem demora, p'ra palacio, Uma e outra corria; Abraçadas na irmã, Ninguem melhor fingiria Que d'amor polla mais moça Uma e outra morria. - «Ai, irmã (dizem las duas), La gente aqui vos requ'ria Na queiraes outras comadres, Qu' isso vergonha seria, Senão estas irmãs vossas, A quem vossa dôr doía.»

Se las duas s'offr'eceram La outra melhor lo qu'ria; Logo, por isso, a el-rei La mais moça lo pedia: - «Nã quero outras comadres,


Qu' isso m' invergonharia; Quero las minhas irmãs, A quem minha dôr doia.» EI-rei relpondeu que sim, E que muito gostaria.

Chegada la sua hora, Ella tres filhos paria, Uma nina e dois ninos, Lindos que mais nã podia. Logo nacidos, choraram, Condição de quem nacia.

Lo Diabo qu' attentára, A uma e outra tia. Pollas mãos d'ambal las duas Na cesta los escondia; La do meio los levou Perto da ribeira fria; Injeitados los deixando. A palacio recolhia.

No comenos, la mais velha, Em quanto l'outra lá ia, No logar das tres crianças Tres sapos feios mettia. La parida nem por sonhos Da treição se presentia. - «Eu agora (disse ella) Esses meus filhos ver qu’ria.»


- «Será quando puder ser,» La irmã le respondia.

Já ambal las tias 'stavam, Quando el-rei appar'cia; E assim qu' ellas lo veem. Cada qual mais se carpia. La parida perguntou Porque chorar las ouvia? El-rei perguntou tambem Que mal aconteceria? - «Ai Jesus, rei meu senhor (Uma e outra respondia), Los tres filhos 'qu' ella teve Ser gente nenhum seria.» Levantados los lençóes Feios sapos el-rei via.

La parida deu um aí, Como quem alli morria; Sem mecher braço nem perna, Nã fallava nem ouvia. El-rei agarrou dos sapos; Cabeça Ihe retorcia, E, mortos, los interrou Na sua estrebaria, P'ra que ninguem no soubesse, Qu' isso vergonha seria: La parida nã matou, Mas tambem vel-Ia nã qu'ria;


E, p'ra que ninguem no sonhe, La metteu na inxovia, Onde só las irmãs della Lhe dão comer cada dia: E, ou la corte nã soube, Ou fingiu que nã sabia; Que alguem que lo dixesse, Ou sim, ou não viviria.

Lo coiteiro-mór deI-rei, Que sempre caçar solia, Indo perto da ribeira Pollo tardecer do dia, Viu seu cão a farejar Que d'alli se nã sahia; Volvendo, então, ond' alIe, Chorar de ninos ouvia; E, chegando-se mais perto, Logo la cest' appar'cia, E dentro los injeitados, Lindos que mais nã podia.

Foi por Deus lo cão de caça; Foi por Deus que Deus não qu'ria Que morressem sem bauptismo Tres innocentes n'um dia,

Lo coiteiro-mor deI-rei Logo a casa volvia; Como vae de cest' ás costas,


D'reito caminho seguia; E, chegando, á mulber deu Estas fallas d'alegria: - «Or' aqui tons tu tres filhos. Pera nossa companhia; Uma nina e dois ninos, Lindos que mais nã podia, Que los achei nesta cesta, Juncto da ribeira fria; Fina tela que los tapa Mais rica nem rei teria: Certo elles são nacidos De mui alta fidalguia; Certo lo seu nacimento Grande segredo teria, P'ra vir assim recatado Quem injeitado seria. Por bem de nós e bem delles, Nem eu, nem tu fallaria; Lo segredo disto tudo Mais ninguem lo sonharia; Que segredos ha de morte No que ninguem cuidaria. Cala tu la tua bocca, Eu la minha calaria, E criemol-los por filhos Na lei que nos alumia, Dizendo qu' esta ninhada D'um só ventre te nacia; Que, de póz tanta demora,


Tres filhos Deus nos trazia.» - «Ai marido da minh' alma, Filhos meus, só meus los qu'ria; Mas tenha-los eu finjida, Já que meus nã los teria.»

E, por taes artes finjiu Que los tres filhos paria, Que la parteira despois Parida la juraria.

Las crianças vão medrando, Como no verão lo dia; Como de manhã lo sol, Lo primor nelles crecia; Formosuras, sem senão; Corpos, todos galhardia; Almas, limpas de peccado, Ricas de sabedoria: Lettrados que lh' insinavam Nenhum mais nada sabia;

Se quem los visse pasmava, ‘Inda mais quem los ouvia.

Lo coiteiro, inlevado Nos filhos que Deus lh' invia. Por certas fallas dei-rei Do mesmo rei desconfia Nã lh' invejasse los filhos


Em que tanto se revia: Er' el-rei que s' alembrava Dos filhos que ter podia; Dos feios sapos gerados Nos seus, amores d'algum dia; E ver los filhos do outro Muito lo jntristecia. Lo coiteiro teve mêdo S'el-rei lois cubiçaria ; Ou lo pae, sabe Deus quem, Na corte Ih' appar’ceria: E, então, sem mais delonga, Por velho se despedia, E, com mulher e com elles, Foi p’ra nova moradia; Castello da corte longe, Onde nã diz, nem ouvia: Lá tinha torre bem alta Donde tudo descobria, Sem faltar sua capella, Nem padre pago por dia. Nem gente de suas terras. Em quem todo se confia.

Mas, quando mal se precatam, La mort' á porta batia. Pouco tempo de chegados, Negra pest' alli ardia, Que matou lo bom coiteiro; La mulher, no outro dia;


E, matando muita gente. Dos tres ninos se desvia.

Assim ficaram sósinhos Todos tres de companhia, Entre los villões crecendo, De quem eram l'alegria. Los irmãos iam á caça; La irmã com elIes ia; Elles nem ella teem mêdo Dos ussos na montaria: ElIes, de sangue real, Nã conhecem cobardia; E la nina, com ser nina. Dos irmãos nã desmentia.

Vinda nã se sabe donde, Uma velhinh' appar'cia, Que la missa da capella Todol Ios dias ouvia. Esta velhinha contava Muitos casos d’algum dia; Adivinhava futuros, E los passados sabia, La nina, já mulher feita; Que tão sósinha vivia;

Á conversa la chamava, Quando da missa sahia. Logo da primeira vez,


La velhinha lhe dizia: - «Lá nos montes de Leão. Onde ninguem cuidaria, S'escond' um logar d'incantos, Como nenhures haveria: Ha lá um’ ave fallante De muita sabedoria; Arbores, onde lo vento Canta linda cantoria; E fontes d'agua doirada, Que veios d'oiro par'cia.» - «E dizei-me cá, velhinha. Isso para quem seria?» - «Muitos lo tem commettido, Mas foi baldada porfia; Que lhe faltou p'ra vencel-lo Vir de real varonia: Só um infant' ou infanta; Outrem nã no ganharia.» - «Nem p'ra mim, nem meus irmãos, Isso, então, nunca viria; Filhos de monteiro-mór, Só contamos fidalguia.» - «Los infantes d' Aragão (La velhinha respondia), Nã teriam melhor sangue, Nem pae de maior valia. Aporfiae, porfiae; Mata caça quem porfia.»


Uma vez por cada festa, La velha isto dizia; E, quando los tres irmaos Contam vint' annos e dia, La velhasinha da missa Tudo a elles repetia, Arrematando lo caso A dizer como solia: - «Aporfiae, porfiae; Mata caça quem porfia.» E vae nina, d'inlevada Da tanta cousa qu' ouvia, Pera seus irmãos olhando, Disse como quem pedia: - «Ao menos, l'ave que falla Eu tel-la bem gostaria.»

Palavras não eram dictas, Lo mais forte respondia: - «Eu lá vou, e la trarei, Antes que pass' outro dia.» - «Rico irmão da minh'alma, Isso eu nã consentia. Quem me diz que por 'hi fóra Nenhum mal vos 'contecia?»

Em quanto ella fallava, Elle já la não ouvia; Montado no seu cavallo, A correr desappar'cia:


E ella fic’ a chorar Cuidosa que lo perdia.

Já los montes de Leão Ell’ apressado subia; E, da carreira que leva; Seu cavallo lhe morria: Chegando á cumeada, Estalaj’ ahi fazia; Mas, quando mal se precata, AIguem alli lhe sahia. Era um velho; tão velho Outro nã no haveria: Feia grenha, maranhada, Todol los hombros cobria; Las sobrancelhas tamanhas, Que los olhos ninguem via; E logo vinha la barba, Oue 'té la cinta decia. Da pelle dos ussos negros Todo lo corpo vestia; Descalço de pé e perna, Bordão e sacco trazia: Escura furn', alli perto, De casa lhe serviria: E, de cançado que vinha, Logo lo velho cahia.

Lo mancebo, que lo viu, Sem lh' importar quem seria,


Ambal las mãos lhe deitou, Logo do chão lo erguia, E lhe dava da bebida Que no seu cantil trazia.

Alevantado, lo velho, Desta maneira dizia: - «Sejaes vós, senhor, quem fordes, Eu la vida vos devia; E, désse lo que vos désse, Sempr' a dever ficaria, Se nã foss' um bom conselho Que são e salvo vos guia: No caminho que trouveste Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo, d'animoso, A se sorrir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria: Incontrar lo qu'eu procuro Isso era lo qu'eu qu'ria. Cá nos montes de Leão, Onde ninguem cuidaria, S'escond' um logar d'incantos, Como ninhures hav'ria? Tem cá um' ave fallante, De muita sabedoria? Arbores, onde lo vento Canta linda cantoria?


E fontes d'agua doirada, Que veios d'oiro par'cia?»

Responde lo velho:

- «Sim; senhor. E, se nã fôra. Menos desgraças havia.

La raia desse logar Aqui mesmo principia; Com feios p'rigos lo véda Sua fada senhoria; Seu captivo, aqui vigio, Ha sept' annos menos dia... No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo. d'animoso, A se sorrir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria; De quanta gente cá vem Nem toda cá ficaria.»

Acude lo velho:

- «Cada qual dos que voltassem Desta triste romaria


Uma moeda de oiro No meu sacco deitaria: 'Té 'gora, neste meu sacco Siquer um chavo cahia. No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo, d'animoso, Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria:»

Acude outra vez lo velho:

- «Nessa furn', aonde móro, Eram bóIas sem contia; Cada pessoa que vinha Uma bóIa recebia: De tantas, só tenho tres,..» - «Uma só me bastaria,» Lo mancebo, d'animoso, Mas sem se rir, respondia. Então, arrematou lo velho:

- «Tomae-la, por vossas mãos; Eu las minhas lavaria. Deitae-Ia vós a correr, Quanto mais, melhor seria; E correi vós depós alia, A ver onde pararia;


E, ouvide lo qu' ouvirdes, La bocca nã fallaria, Nem la vista desses olhos Olhar atraz tentaria: Ond' elIa parar, parae; Quem lá chegar... ganharia. E adeus, adeus, senhor, 'Té do juizo lo dia.»

Lo mancebo, d'animoso, Com quanta força podia Deitou la ból' a correr Na incosta que decia,

E foi correndo 'pós della A ver onde pararia, Desejoso d'alcançar Aquillo p'ra qu' alli ia.

De cá de riba, lo velho Ás gargalhadas se ria, Gritando a bom gritar, Que ser bem ouvido qu'ria: - «Parae vós ahi, menino; Eu no que disse mentia.»

Lo mancebo, de raivoso, Porque zombado se via, Logo parou e olhou... Mas incantado cahia:


E quem olhasse despois. J á nem viv' alma veria! Tudo era mato bravo Por aquella serrania. La irmã mail lo irmão, Vendo a cahir lo dia. Já, d'afreimados qu' estavam, Ninguem los ouvir podia: Quando chegou lo sol posto, E que ninguem appar'cia, Davam cada ai tamanho, Que lo coração partia. Quando foi noite fechada, Éll' a éll’ assim dizia: - «Eu lá vou, e lo trarei, Antes que pass' outro dia.» - «Rico irmão da minh' alma...»

Elle já la não ouvia; Montado no seu cavallo, A correr desappar'cia : E ella fic’ a chorar Cuidosa que los perdia.

Já los montes de Leão ÉlI' apressado subia; E, da carreira que leva; Seu cavallo lhe morria: Chegando á cumeada, Estalaj' ahi fazia;


Mas, quando mal se precata, Alguem alli lhe sahia, Era um velho; tão velho Outro nã no haveria: Feia grenha, maranhada, Todol los hombros cobria; Las sobrancelhas, tamanhas. Que los olhos ninguem via; E logo vinha la barba, Que 'té la cinta decia; Da pelle dos ussos negros Todo lo corpo vestia; Descalço de pé e perna, Bordão e sacco trazia: Escura furn', alli perto, De casa lhe serviria: E, de cançado que vinha, Logo lo velho cahia.

Lo mancebo, que lo viu, Sem lh'importar quem seria, Ambal las mãos lhe deitou, Logo do chão lo erguia, E lhe dava da bebida Que no seu cantil trazia.

Alevantado. lo velho, Desta maneira dizia: - «Sejaes, vós, senhor, quem fordes, Eu la vida vos devia;


E, désse lo que vos désse, Sempre a dever ficaria, Se ná foss' um bom conselho, Que são e salvo vos guia: No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo, d'avisado, Seu segredo calaria; E, todo de si animoso. Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida mo custasse. Eu atraz nã volveria: Incontrar quem eu procuro Isso era lo qu'eu qu'ria. Cá nos Montes de Leão, Onde ninguem cuidaria, S'escond' um logar d'incantos. Como nenhures hav'ria? Tem cá um' ave fallante, De muita sabedoria? Arbores, onde lo vento Canta linda cantoria? E fontes d'agua doirada, Que veios d'oiro par'cia?»

Responde lo velho:

- «Sim, senhor. E, se nã fôra, Menos desgraças havia.


La raia desse logar Aqui mesmo principia; Com feios p'rigos lo véda Sua fada senhoria; Seu captivo, aqui vigio, Faz sept'annos neste dia... No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo, d'animoso, Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria; De quanta gente cá vem Nem toda cá ficaria.»

Acude lo velho:

- «Cada qual dos que voltassem Desta triste romaria

Uma moeda de oiro No meu sacco deitaria: 'Té 'gora neste meu sacco Siquer um chavo cahia... No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

Lo mancebo, d'animoso, Mas sem se rir, respondia:


- «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria.»

Acude outra vez lo velho:

- «Nessa furn', aonde móro, Eram bólas sem contia; Cada pessoa que vinha Uma bóIa recebia: De tantas, só tenho duas...» - «Uma só me bastaria,» Lo mancebo, d'animoso, Mas sem se rir, respondia.

Então, arrematou lo velho:

- «Tomae-Ia, por vossas mãos; Eu las minhas lavaria. Deitae-Ia vós a correr, Quanto mais, melhor seria; E correi vós depós ella, A ver onde pararia; E, ouvide lo qu' ouvirdes, La bocca nã faIlaria, Nem la vista desses olhos Olhar atraz tentaria: Ond' ella parar, parae; Quem lá chegar... ganharia; E adeus, adeus, senhor, 'Té do juizo lo dia.»


Lo mancebo, d'animoso. Com quanta força podia Deitou la ból' acorrer Na incosta que decia, E foi correndo 'pós della A ver onde pararia, Desejoso d'alcançar Aquillo p'ra qu' alli ia.

De cá de riba lo velho Ás gargalhadas se ria, Gritando a bom gritar, Que ser bem ouvido qu'ria: - «Parae vos ahi, menino; Eu no que disse mentia.»

Lo mancebo nã fez monta Se lo velho zombaria, E nã parou, nem olhou, Nem incantado cahia; Todo elle só cuidava Se lo irmão acharia: E lá vae atraz da bóIa, A ver onde pararia.

Se não quando, 'pós de si. Muitos açoites ouvia; Los açoites estallando, Muita gente que gemia;


E entre gritos de tantos, Los do irmão bem ouvia: - «Rico jrmão da minh' alma, Livra-me desta agonia!» Palavras não eram dictas, Lo mancebo que volvia, E, já d'espada no ar, PolIo irmão acudia: - «Rico irmão da minh'alma...» Mas incantado cahia: E quem olhasse despois Já nem viv' alma veria! Tudo era mato bravo Por aquella serrania.

La irmã, sem los irmãos, Vendo a cahir lo dia, Já, d'afreimada qu' estava, Ninguem la ouvir podia: Quando thegou lo sol posto, E que ninguem appar'cia, Dava cada ai tamanho, Que lo coração partia. Quando foi noite fechada, Ella comsigo dizia: - «Eu lá vou, e los trarei, Antes que pass' outro dia.»

Palavras não eram dictas, Armas dos irmãos vestia,


E, montando seu cavallo, A correr desappar'cia, Desta feita sem chorar, Nem cuidar que los perdia.

Já los montes de Leão, Éll' apressada subia; E, da carreira que leva; Seu cavallo lhe morria: Chegando à cumeada, Estalaj' ahi fazia; Mas, quando mal se precata, Alguem alli lhe sahia. Era um velho; tão velho Outro nã no haveria: Feia grenha, maranhada, Todol los hombros cobria; Las sobrancelhas, tamanhas, Que los olhos ninguem via; E logo vinha la barba, Que 'té la cinta decia; Da pelle dos ussos negros Todo lo corpo vestia; Descalço de pé e perna, Bordão e sacco trazia: Escura furn', alli perto, De casa lhe serviria: E, de cançado que vinha, Logo lo velho cahia.


La infanta, que lo viu, Sem lh'importar quem seria, Ambal las mãos lhe deitou, Logo do chão lo erguia, E lhe dava da bebida Que no seu cantil trazia.

Alevantado, lo velho, Desta maneira dizia: - «Sejaes, senhora, quem fordes, Eu la vida vos devia; E désse lo que vos désse, Sempre a dever ficaria. Se nã foss' um bom conselho, Que sã e salva vos guia: No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

La infanta, d'avisada, Seu segredo calaria; E, toda de si animosa, Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria: Incontrar quem eu procuro Isso era lo qu'eu qu'ria. Cá nos Montes de Leão, Onde ninguem cuidaria, S'escond' um lagar d'incantos. Como nenhures hav'ria?


Tem cá um' ave faIlante. De muita sabedoria? Arbores, onde lo vento Canta linda cantoria? E fontes d'agua doirada, Que veios d'oiro par'cia?»

Responde lo velho:

- «Sim, senhora. Se não fôra, Menos desgraças havia. La raia desse logar Aqui mesmo principia; Com feios p'rigos lo véda Sua fada senhoria; Seu captivo, aqui vigio, Faz sept' annos e um dia... No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

La infanta, d'animosa, Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria; De quanta gente cá vem Nem toda cá ficaria.»

Acude lo velho:

- «Cada qual dos que voltassem


Desta triste romaria Uma moeda de oiro No meu sacco deitaria: 'Té 'gora neste meu sacco Siquer um chavo cahia... No caminho que trouvestes Volvei polla mesma via.»

La infanta, d'animosa, Mas sem se rir, respondia: - «Em que vida me custasse, Eu atraz nã volveria.»

Acude outra vez lo velho:

- «Nessa furn', aonde móro, Eram bóias sem contia ; Cada pessoa que vinha Uma bóIa recebia: De tantas, só tenho uma...» - « Eu nã trago companhia;» La infanta, d'animosa, Mas sem se rir, respondia.

Então, arrematou lo velho:

- «Tomae-Ia, por vossas mãos; Eu Ias minhas lavaria. Deitae-Ia vós acorrer, Quanto mais, melhor seria;


E correi vós depós elIa, A ver onde pararia; E, ouvide lo qu' ouvirdes, La bocca nã fallaria, Nem Ia vista desses olhos Olhar atraz tentaria: Ond' ella parar, parae ; Quem lá chega... ganharia. E adeus, adeus, senhora, 'Té do juizo lo dia.»

La infanta, d'animosa, Com quanta força podia Deitou la ból' a correr Na incosta que decia, E foi correndo 'pós della A ver onde pararia, Desejosa d'alcançar Aquillo p'ra qu' alli ia.

De cá de riba, lo velho Ás gargalhadas se ria. Gritando a bom gritar. Que ser bem ouvido qu'ria: - «Parae vós ahi, menina; Eu no que disse mentia.»

La infanta nã fez monta Se lo velho zombaria, E nã parou nem olhou...


Nem incantada cahia; Toda ella só cuidava Se los irmãos acharia: E lá vae atraz da bóia, A ver onde pararia.

Se não quando, 'pós de si Muitos açoites ouvia; Los açoites estalIando, Muita gente que gemia; E entre gritos de tantos. Los dos irmãos bem ouvia: - «Rica irmã da noss' alma, Livra-nos desta agonia!»

Palavras não eram dictas, Ella quasi que volvia; E, já d'espada no ar, Por elles acudir qu'ria... Mas, na carreira que leva, Voltar, nem olhar podia; E assim chegou abaixo Onde lo monte decia.

- «Vae-te d'aqui, tu menina,» L'ave fallante dizia; Mas la ból' então parou, E Ia ave se rendia.

E disse:


- «Perdoae-me, vós senhora, Minha tamanh' ousadia; Que são las ordens qu'eu tenho Da grande fada Maria: Eu agora bem conheço Que p'ra vós aqui 'staria. Mas, s' até aqui viestes, Muito 'inda faltaria. Vêd' aqueIle vaso d'oiro Por baixo da penedia, Todo elle cravejado De tão rica pedraria; Tão grosso; que nem de ferro; É lo vaso dos incantos Da grande fada Maria: Quem lo vier a quebrar Los incantos quebraria, E tanta gent' incantada Toda desincantaria. Que seu dominio perdêra La grande fada Maria; Mas quem lo quebrar nã logre Só a mim me levaria.»

La infanta, n'um relanço. Logo viu que nã podia; N'um reIanço, logo viu Como lo passo vencia: E d'um pulo se galgava A riba da penedia.


Onde c'um pé impurrou Um penedo que pendia; E lo penedo, rolando, Em mil boccados partia Lo rico vaso d'incantos. Que debaixo s'escondia.

Lo trovão tamanho foi, Que Ia montanha fendia: Toda Ia gent' incantada Daquellas fendas sahia; Los dois irmãos vem diante; Todos choram d'alegria; Lo vento nos alvoredos Canta linda cantoria; Das fontes l'agua doirada Em veios d'oiro corria! 'lnda um instante antes, Quem é que lo cuidaria?!

Abraçados na irmã. Cada irmão lhe dizia: - «Rica irmã da noss' alma, Livraste-nos d'agonia.» Nos seus irmãos abraçada, La infanfa respondia: - «Ricos irmãos da minh' alma, Só por Deus isto seria.» E la mais gente, liberta, A dar vivas, repetia:


- «Viva quem logrou vencer La grande fada Maria.»

Já lá vão los tres irmãos E los mais de companhia, Que los vão levar a casa, Em mui nobre romaria: La tal ave, por fallante, Na mão da infanta ia, Como lo falcão levado A' caça d'altaneria; Agua doirada das fontes Todol los cantis inchia; E das arbores, que cantam, Cada qual sua colhia, Pequenina, que levava Por palmito d'alegria, Em signal de ser vencida La grande fada Maria.

Chegados que são a casa, La infanta logo ia Dar logar na sua horta, Pera tudo que trazia: Dos cantis l'agua doirada Em septe fontes vertia. E I'agua das septe fontes Logo doirada luzia; A cad' arbor' cantadeira Cada cova se lh' abria,


E todas elIas pegaram, Que nem uma se perdia; E la tal ave fallante, Impoleirada se via, A' sombra d'aIto loireiro, Que los ramos estendia. Esta horta do palacio Um paraiso par'cia. La fama destes incantos Logo ao longe corria, Até que lo proprio rei Mandou que los ir ver qu'ria,

Antes qu'el-rei lo dixesse, La ave bem lo sabia, E, então, estas palavras A los tres irmãos dizia: - «Lo senhor rei d'Aragão Aqui virá por mei-dia; Tendes que daI lo jantar A sua real senhoria; Ond' el-rei vae d'aposento Ahi tem comedoria : Lo jantar seja melhor Que da real uxaria, Porqu' el-rei, p'ra desforrar-se, Tambem vos convidaria; Vós, por offerta, levae-me, Que tudo por bem seria.»


E, se bem lo disse ella, Melhor 'ind' acontecia.

El-rei, logo que chegou, Toda la horta corria: Viu las fontes côr do oiro; Las arb'res cantar ouvia; Ouviu la ave fallar, E mui bem la intendia: - «Meu senhor rei d' Aragão, Tenhaes vós muito bom dia.»

Pasmado destes incantos, 'Ind' agora la 'staria, Se lo nã vinham chamar, Que lo jantar refécia.

Á meza el-rei sentado, La infanta lo servia; 'Stão los dois irmãos atraz Com toalha e bacia. Quando el-rei acabou, E despois que se benzia, Convidou los tres irmãos A jantar no outro dia.

Vestidos de seus brocados De oiro com pedraria. Entraram los tres irmãos Na real alcaceria,


Levando l'ave d'offerta A sua real senhoria: E el-rei lh' agradeceu Tão fidalga bizarria, E mandou qu'onde jantassem La av' ahi ficaria, Porque la quer de si perto, Que melhor la ouviria.

Compeçado lo jantar, Logo la ave dizia: - «Falt' aqui uma senhora, Qu' está presa d'inxovia, E del-rei, vint' annos ha, Estes tres filhos paria: Duas irmãs, qu'elIa tem,

La inveja las comia; Por tres sapos los trocaram, Quando cada qual nacia, E los foram injeitar Perto da ribeira fria, Onde lo coiteiro-mór Ao despois los recolhia, E, postos na casa delle, Como a filhos lhe qu'ria.»

Quando el-rei tal ouviu, EI-rei chorava e ria, Nos tres filhos abraçado,


Sem saber lo que fazia: La presa logo foi solta E a palacio subia, Toda cercada de damas E da maior fidalguia; Mas, d'acabada qu' estava, EI-rei nem na conhecia: Suas irmãs, qu' isto sabem, Cada qual logo morria.

E então disse el-rei:

- «O, minha ave fallante De tanta sabedoria, Serás av', ou quem serás? Serás Ia fada Maria?»

Se respondeu sim ou não, Ninguem alli juraria: Ella, voando, fugia; Ninguem nunca mais la via.


ESPECIE II

CONTOS ALLEGORICOS

CONTO DOS DISPARATES

Se me quizerdes ouvir, Nest' hora vos contaria Lo conto dos disparates, Que seus acertos teria.

Infindas ovelhas sahiram, Por serem de valentia, A pastar n'um sêrro nu, Onde só pedras havia; E tanto ficaram fartas, Que lá nenhuma comia. A um solar d'alli perto Lo tal sêrro pertencia; Lo solar era tão velho, Que nem p'ra curral seria; Lo senhor delle, por pobre, Magro cavallo teria: Mas nas ovelhas vingar, Su' affronta promettia Deitando pregões de guerra, Logo p'ra lo outro dia.


E á guerra das ovelhas. Lo cavalleiro corria, Sósinho, não por valente, Mas por nã ter companhia. Cavalgado, n'um' aranha, Las suas armas vestia: Capacet', uma cabaça, Que la cabeça cubria; Lo pennacho d'um' canniço De pennacho lhe servia; Uma vara de pinheiro; Por lança, na mão erguia; Por espada, uma canna Da cintura lhe decia; Por escud', uma joeira Elle no braço prendia.

Mas tiveram las ovelhas Sua propria bizarria, Ou algum amigo lobo Las ovelhas defendia; Certo é que las ovelhas, Lo senhor nã las vencia; E, a pé e desarmado, P'ra sua casa fugia.

Mas, da pressa com que foge, Nem dar passada podia, E a pedir gasalhado N'uma taberna batia.


Intrando, lo qu'elIe viu Quem então lo cuidaria? Tudo era por avesso. Do qu' outro tempo seria: Lo marido... 'stá de parto. E la mulher... assistia; La cadelIa... 'stá nos ovos, E la gallinha... latia; Lo gato... foge do rato. E lo rato... Ih' investia.

Mas não é d'admirar Se tudo isto se via, Que nem las ovelhas d'hoje São las mansas d'algum dia.

II

CONTO DAS MENTIRAS Lindo conto de mentiras Eu agora vou contar: Quem quijer que venha ouvir Novos casos de pasmar.

Era eu homem p'ra tudo; Eu ia a todo logar; Eu fiz lo que ninguem fez;


Vi lo que não ha sonhar. Onde lo mundo acaba, Fui uma vez eu parar; Lo que me lá 'conteceu, Ninguem pód' adivinhar: Em terra, colhi sardinhas. E rosas pesquei no mar; Incontrei um pecegueiro Grandes maçãs a crear, E, quando voltei los olhos. Tinh' ameixas a vergar; Assubi a riba delle, Com marmelos vou topar; Chega lo dono da terra Por figos a perguntar; Respondi que eram pepinos Lo qu' eu 'stava a 'panhar; Dando-Ih' eu lo salve Deus, Elle salt' a praguejar, A qu'rer qu'eu pagu' em dinheiro Lo qu'eu nã quero comprar; Mas logo lhe dei lo troco, Antes do preço pagar; Atirei-lhe c'um assôpro. Uma pedra lhe foi dar; Deu la pedra na canella. Mas quebrou lo calcanhar; Elle foi quem apanhou, Eu quem rompeu a gritar: La justiça deI-rei veiu


Çompeçou a devassar; E agora lo mentir,

Testimunhas vão jurar: Juraram qu'eu fui roubado; Que viram outrem furtar; Lo queixoso ficou preso, E eu fiquei a folgar.

III

CONTO DO PASSARINHO

Uma vez nobre donzella No seu jardim s’ assentava; Soidosa do seu amor, Nunca de chorar cançava.

Tudo, então, 'hi de redor 'Stava quieto, calava; Las aguas corriam mansas, E lo vento socegava.

FaIlando elIa comsigo, Desta maneira fallava: - «Todo meu dinheiro juncto


De boa vontade contava, Se deste meu captiveiro Agor' alguem mo livrava; Que la riqueza que tenho, Por me ver livre, trocava. De que me serve ter tanto, Se tenho vontad' escrava?»

Nestas rasões consirando, Calada e triste ficava.

Então, vem um passarinho, Que defronte lhe poisava; E, 'stando assim poisado, P'ra cada banda olhava; Nã na viu, nã viu ninguem; Cuidou ser só, e cantava.

ÉII', ouvindo lo cantar. Em sua pena avivava; La sorte do passarinho Em sua dôr invejava: - «Ai, s'eu fosse passarinho, Sem mais espera voava; Iria, nas minhas azas, Onde meu amor 'stava.»

Lo passarinho, ouvindo Como ella se queixava, Desatou noutro cantar.


Triste cantar, que chorava:

- «Donzella, não invejeis Lo meu viver malfadado; Mal cuidaes la triste sina Que já por mim tem passado: Eu fui moço, fui galante;

Por meu mal, fui namorado; Nunca eu tomass' amores; Nunca tivess' eu casado!...»

Aqui la donzelIa vem Com seu fallar maguado: - «Tambem me doem amores, Amores me teem matado. Mas dize tu, passarinho, Aqui te peço, rogado, Porque te choras tu tanto? Porque maldizes teu fado?»

- «Eu vos conto (respond' elle) Este meu viver penado, Tão triste, que 'té las pedras De mim teriam chorado. Meu pae e mãe m' injeitaram Com mez e meio de nado; Voei do ninho p'ra fóra, Pollas fomes obrigado: E, sem saber por ond' ia.


Perdido no descampado, Incontrei uma faminha; Fui, despois, seu bem amado: Eu voav', ella voava Nest' amor tão namorado; Até que figemos ninho N'um alvoredo fechado. Seis ovinhos ella poz, Cada qual delles gallado; Alli era meu desvelo;

AlIi era seu cuidado; E, quando chegou lo tempo, Seis filhos tinha tirado, Que despois impenujaram. Cada um mui bem pintado: P'ra que los filhos tivessem Lo seu comer abastado, Era por mim e por ella Todo lo campo rondado.

Uma vez que, junctos ambos, Eu cantava descuidado, Vem tyranno caçador. Com seu tiro treiçoado: E eu vi da companheira Lo corpo ensanguentado Cahir sem vida no chão, Do tiro atravessado. Eu não sei lo que senti.


No coração assaltado; Eu não sei lo que bradei Contra homem tão malvado: - «Ó del-rei! um caçador; Ó del-rei! um desalmado; O del-rei! que dois matou D'um só tiro apontado!» E lo cru do caçador, Por minha voz avisado, Segunda p'ra mim seu tiro, Por meu mal, então errado. Aqui tendes vós, donzella,

Lo passarinho invejado. Nunca eu tomass' amores; Nunca tivess' eu casado!... Acceitae lo meu conselho; Nã tomeis vós novo estado: Eu nã seria viuvo, Se nã tivesse casado.»

Aqui veiu la donzella Com seu fallar maguado: - «Eu tambem 'stou só e triste; Amor me tem acabado. Mas nem lo que tu me contas, Nem lo teu conselho dado, Nada me tira de mim Est' amor commigo nado. Toma nova companheira,


Anda mais acautelado, E ganharás lo perdido, E serás afortunado.»

- «Já é tarde (respond' elle) P'ra desandar no andado; Eu novas penas nã quero; Sobejas tenho penado. Adeus, donzella; cá vou A pastar no alecrim; Deus vos dê sorte melhor Que la que me deu a mim.»

- «Adeus, adeus, passarinho; Vae pastar no alecrim;

Deus te dê sorte melhor Que la que me deu a mim.»

IV

CONTO DOS COELHOS Andava lindo coelho PolIo mato a brincar; Vendo linda coelhinha, A correr lhe foi fallar: - «Se vós sois 'inda donzeIla,


Eu tambem 'stou por casar; Eu vos quero por mulher. Vossa mão vós me qu'reis dar?» - «Quem te deu la confiança; D'aqui me vir assaltar? Eu nã quero ter marido; Quero de véo professar; Quero me metter a freira, E ir los sinos tocar, Ter certo lo meu comer, E socegada rezar.» - «Ai, ó mansa coelhinha, Nã me queiraes vós matar; Sem lo vosso sim, eu juro D'aqui pé não arredar.» E éll' a dizer que não;

E elle sempre a rogar: Que lh' havi' ella fazer Senão, por fim, acceitar? - «Antes que d'aqui me vá, Est' annel vos quero dar, Signal dado e recebido D'á promessa nã faltar.»

Los pregões, do casamento, Quem quer ouvir pregoar? Marcado ficou lo dia Em que se casa este par: E lo sol não era nado,


Lo coelho a saltar, P'ra se irem receber. La coelhinha a buscar. No bairrinho dos coelhos, Todos los vão festejar; Tanto velhos, como moços Vão comer e vão bailar.

Fizeram ninho los noivos N'uma toca escondida; Septe filhos teve ella, Da primeira vez parida.

Uma vez, la triste mãe A pastar era sahida, E do cão d'um caçador Chegou a casa malf'rida. - «Lo que tens?» Dil lo marido, - «Fui alli d'um cão mordida;

Vae-me chamar um doutor; Costella tenho rendida.» E, chegado lo doutor, Logo la viu perdida: - «Aqui já não ha qu' esp'ra.r; É de mort’ aquella f'rida,» - «Ai, adeus, ó meu marido.» - «Adeus, minha mulher qu'rida.» - «Adeus coelhinhos meus...» E n'isto, perdeu la vida.


Lo coelho, então, cramou: - «Ó pobre de mim, cuitado! A pedir pão tanto filho, E eu aqui amarrado! Esforça-te, coração; Nã me caias desmaiado; São septe filhos que tens, Todos só a teu cuidado!» Lo coelho não esp'rou Nem um instante passado; Interrada la mulher, E lo ninho conchegado, Despois dos filhos lembidos, E tudo bem farejado, Los filhos sós lá deixou, E foi a correr seu fado.

Quando lo coelho volta, Vê-se sem filhos, roubado: - «Aqui del-rei, los meus filhos, Que los roubou um malvado!»

Logo alli, juncto da cova. Era lo chão vermelhado; Um pellinho, fino, fino, 'Stava no chão espalhado; E, no alto d'um penedo, Um gato negro sentado ‘lnda lembia los beiços, Do seu festim regalado.


Lo coelho, que tal viu, Quiz alli arrebentar: - «Sósinho, assim, no mundo, Que faço eu cá ficar?» - «Casae commigo, visinho (Ouviu éll', então, fallar); Um só mez de casamento Vae tudo remediar; Saudades d'uma coelha Outra las ha de sarar; Por septe filhos, que choras, Outros sept' em seu logar.» - «Mas quem tem mulher e filhos Sempr' ha de ter que penar; Ou bem ser cão, ou ser gato, Ou sósinho vádiar.»

E lá foi lo coelhinho, Sem nunca mais se casar; Que logar sem cão, nem gato Nunca lo ha d' elle achar.

V

CONTO DOS RATOS Era um casal de ratos; De filhos uma ninhada;


Lo pae morreu n'uma loisa; La mãe 'stá desimparada: E, porque se viu sósinha, Mail los filhos esfaimada, Dizia desta maneira La pobre rata, cuitada: - «Aqui com tantos filhinhos, Á fom' e sêd' acabada, Meu remedio é morrer N'um muro imburacada; Que me morreu lo marido N'uma loisa treiçoada, Quando buscava comida, Ond' estava mal guardada: Nem p'ra lucto, nem p'ra pão Nã terei esmola dada. Nem la soubera pedir; Só la gostára furtada; Nem achara quem la déra, Se fôra por mim rogada; Ratos são bichos damninhos,

Nem pedem, nem lhe dão nada. Por ninguem eu posso ser Como por ell' estimada; Morreu-me tambem com elle Minha alegria passada. Era elle quem farejava La comida desejada; Cada vez que delle me lembro


Inlouqueço, desgraçada. Mamae, mamae, pequeninos; Dormi sésta descançada; Sem lo uso da rasão Não ha vida tormentada.»

La rata, muito penosa, Tudo isto consirava, Senão quando, outro rato Em casa la procurava, E, com palavrinhas dôces, Deste modo lhe fallava: - «Viuvinha, viuvinha, Eu comvosco me casava.» La rata, que tal ouviu, Do sentido variava; Do marido que morrera, Já nem sequer se lembrava. - «Viuvinha, sim ou não?» Lo rato lhe perguntava. - «Digo-te, rato, que sim; Feio não nunca te dava.»

Elle quiz, ella tambem;

Tudo ficou conchavado; Ambos, de boa união, Foram tractar do noivado. EIIa, honesta viuva, Teve logo lo cuidado


De convidar p'ra madrinha. Outra de muito recato: Levava lo seu cabello Pollo meio apartado; Vestia vestido roxo, Mas tirante a rosado; Tendo la côr de viuvo, Era vestido gabado: Lo noivo tambem levava Seu bom chapeu desabado; Camisote, fino linho; Golla punho bordado; Tambem tinha sua véstia De gorgorão debruada; Suas cuecas do mesmo, E sapato, alteado. Nunca ninguem viu de ratos Lindo par tão aceiado.

Lo padrinho destes noivos, Rato de rabo pellado, Posto no cabo da mesa, Deu seu conselho bem dado; Licção de mestre d'officio, Aviso de bom lettrado, Mas qu'introu por um ouvido, E sahiu do outro lado:

Pollo que, 'inda lo anno A bem dizer nã passado.


Los noivos morrem na loisa; Pollo que levam furtado; E los filhos que deixaram, Por este mesmo peccado, Uns morreram a peçonha; Outros, morte d'inforcado.

VI

NEGRO MELRO

Lo ladrão do negro melro Aond' elle vae cantar! Vae, nem que fosse solteiro, Sem mulher que aturar. Vinde lo vós cá ouvir Lo negro melro cantar: - «Quem bem casa s'arrepende, Que fará quem mal casar?»

Lo ladrão do negro melro Toda la noite cantou; Polla fresca madrugada, Deu ás azas e voou E, como ás azas deu, Depois que lo tanto cantou;


Lo ladrão do negro melro De todo desaforou.

Leva elIe agua no bico Naquelle tanto cantar: - «Olha lá nã, cantes tanto. Que te nã façam calar.» Mas tanto cantou, cantou, Que na gaiola foi dar: - «Nã fôras, melro, magano; Nã fôras bico molhar.»

E vinde lo vós ouvir Lo negro melro chorar; Já 'gora nã canta, chora, Depois de tanto cantar.

VII

CONTO DO RATO NA ESCOLA Quando á luz deste mundo Eu de minha mãe nacia, Foi n'uma noite d’inverno; Loga, de frio, tremia; Logo, da fome que tinha, Eu cá de dentro gemia, E minha mãe m'abafou


E la têta m'estendia.

Quando fui já maiorinho, Á eschola del-rei ia Aprender nã sei lo quê, Que lá pouco s'aprendia. Um rato era lo mestre, Que, por ser velho, treslia: - «B, a, bá, fugiu la burra,» E pouco mais ler sabia. - «Tudo que seja comer (Mestre rato assim lia) Furta-lo como poderes, Quer de noite, quer de dia.» Era esta la doutrina Que la cartilha dizia; Esta era la Iicção Que la gente repetia.

Já de cór e salteado Eu na cartilha corria, Quando, á hora do descanço, Minha licença pedia; Tinha que jantar mais cedo, E depressa voltaria. Mestre rato todo sério, Deste modo respondia; - «Dou-te licença que vás, Mas com condição seria; Boccado bom, que tu vejas,


Por ti furtado viria.» E eu assim lo fui fazer, Conforme lo promettia; Vi queijo, fui lo furtar;

Na ratoeira cahia: Fiquei com meu rabo preso; Outro, que foss' esmor' cia ; Mas eu tanta força fiz. Que lo deixei, e fugia.

Todo eu invergonhado, Porque sem rabo ma via, Do eôto a pingar sangue, A' eschola recolhia. - «D'onda vens tu, morganhinho?» Mestre rato me dizia. - « Fui ao queijo, vim sem rabo.» Eu ao mestre respondia.

- «Ó sandau (crama lo mestre), Diabo me levaria, Se, 'stando perto do queijo, Eu sem queijo voltaria. Vaes ver com' um rato velho Seu officio intendia.» N'isto poI la 'sechola fóra Lo mestre rato sahia.

Eu ,atraz, êll' adiante.


Buscal lo queijo corria: Mas, quando lhe deita dentes, Na ratoeira cahia: Onde perdi lo meu rabo La vida elle perdia.

Ninguem vã por manhas mãs Onde por bem não, iria; Antes vida trabalhada, Que forca ou inxovia.

VIII

QUEIXUMES DO PORCO

Fui chamado á cidade No mez do Natal um dia, Pera eu feitorisar Grande casa morgadia; E levei, para meu negocio, Uma cabra, sua cria, Um porco e um carneiro, Commigo de companhia.

Vae lo porco vagaroso; Arrastado bem par’cia;


Todol los mais vão calados; Só Io porco se carpia; Los gemidos qu' elle dava, La cabra nã los soffria; - «Cal-te porco. Porque choras? (La cabr' ao porco dizia) Vês lo carneiro caIado; Eu calada tambem ia; Lo filho que vae commigo

Nem de mamar me pedia; Pára tu já de grunhir, Que ninguem te soffreria Por tão longa caminhada Tão seguida gritaria.»

Lo porco, sem se calar, Estas rasões respondia: - «Cada qual conta da festa Como na festa Ih' iria. Vocês vão viver no pasto Com farta comedoria; Lo carneiro, p'ra dar lã; E tu, leite cada dia; Mas cã eu, só dou toicinhos; Só minhas carnes daria; Tenho meus dias contados; Só m' espera l' agonia.»

Tinha lo porco rasão.


Quem tambem nã chiaria? Polla festa de Natal Lo triste porco morria.

ESPECIE III

CONTOS DE MENINOS

CONTO DO MACACO

Er' uma vez um macaco; Fazel la barb' introu N'uma tenda d'um barbeiro. Que lo rabo lhe cortou; Lo macaco, por desforra, Uma navalha furtou; Fugindo logo d'alli, Pera longe caminhou.

Foi elle mais adiante; Uma velha incontrou, Que á unha escamava Las sardinhas que comprou; E á velha das sardinhas La navalha lh' imprestou; Mas la mofina da velha Dar la navalha negou;


Lo macaco, por desforra, Uma sardinha furtou; Fugindo logo d'alli, Pera longe caminhou.

Foi elle mais adiante; Um moleiro jncontrou, Que sem conducto comia Um pão secco que comprou; E la sardinha que tinha, Por farinha la trocou; Mas lo mofino moleiro La farinha lhe negou; Lo macaco, por desforra, Um saco, della furtou; Fugindo logo d'alli, Para longe caminhou.

Foi elle mais adiante; N'uma eschola introu; Muitas meninas lá 'stavam; Com fome todas achou; E á mestra das meninas La farinha imprestou; Mas la mofina da mestra La farinha lhe negou; Lo macaco, por desforra, Uma menina furtou; Fugindo logo ,d'alli, Pera longe caminhou,


Foi elle mais adiante; Lavadeira incontrou, Que, já cançada, lavava

Camisas que nã sujou; E, p'ra la ir ajudar, La menina imprestou; Mas la mofina mulher La menina lhe negou; Lo macaco, por desforra, Uma camisa furtou; Fugindo logo d'alli. Pera longe caminhou.

Foi elle mais adiante; Violeiro incontrou, Que, por pobre, sem camisa La semana trabalhou; E ao pobre violeiro La camisa imprestou; Mas lo mofino do homem La camisa lhe negou; Lo macaco, por desforra, Uma viola furtou; Fugindo logo d'alli, Pera longe caminhou.

E, sem ir mais adiante, Alto telhado trepou; Por bem fazer mal haver,


Já de todo se fartou; Pollo que, de lá de riba Na sua viola tocou, E, ao som da violinha, Desta maneira cantou: - «De meu rabo fiz navalha; De navalha fiz sardinha; De sardinha fiz menina; De menina fiz camisa; De camisa fiz viola! Ferrum-funfum, ferrum-funfum! Adeus, que me vou imbora.»

II

CONTO DA CAROUCHINHA

La Carourchinha Poz-s’ á janella  ver quem qu'ria Casar com ella: - «Quem quer casar Com Carouchinha, Qu' éll' é fermosa E bonitinha?»


Passou um porco: - «Quero-vos eu.» - «Que comes tu?» - «Do que Deus deu.» - «Fó, fó, ó porco, Eu nã te quero; Melhor marido Que tu espero.»

- «Quem, quer casar Com Carouchinha, Qu’ éll é fermosa E bonitinha?»

Passou um cão: - «Quero-vos eu.» - «Que comes tu ?» - «Do que Deus deu.» - «Fó, fó, ó cão, Eu nã te quero; Melhor marido Que tu espero.»

E assim vão passando muitos animais repetindo-se, com cada um delles a mesma convers,) até acabar deste modo:

- «Quem quer casar Com Carouchinha, Qu' éll' é fermosa


E bonitinha?»

Passou um rato: - «Quero-vos eu.» - «E tu que comes?» - « Lo bom é meu.» - «A ti, ó rato, A ti eu quero; Melhor marido Nã no espero.»

E casaram. Elle ficou d' ahi por diante chamando-se senhor Jão Ratão. E viviam muito felizes. Um domingo, já casados, Ambos dois á missa vão, Deixando posto ao lume Seu jantar no caldeirão. Carouchinha, na egreja, Vê-se sem leque na mão: - «Esqueceu-me Io meu leque; Vae lo buscar, Jão Ratão.»

EIIe foi; e lá em casa Foi provar do caldeirão; Mas dentro deIle cahiu Lo triste de João Ratão.

Vem Carouchinha da missa Sem leque nem Jão Ratão; Procura na casa toda;


Só falta no caldeirão: - «Ai Jesus, lo meu marido! Ond' estás, meu Jão Ratão?» E lo foi incontrar morto. Cosido no caldeirão.

- «Ai Jesus, lo meu marido! Ai de mim, meu Jão Ratão, Que te vim incontrar morto, Cosido no caldeirão!»

III

SERMÃO DE SAN COELHO

Lo sino 'stá a tocar, Que sermão se vae prégar; É sermão de San Coelho, Que lo diz este fedelho: - «Lo meu sancto, San Coelho. De seu barrete vermelho, Com espada de cortiça, Veiu matar Ia Carriça: Logo que puxou do ferro, La Carriça deu um berro; La Carriç' arrebentou; Toda Ia gente 'spantou;


E la Carriça morreu I E quem lo prégou fui eu»

ESPECIE IV

L E N G A S – LE N G A S

I

NEVOEIRO (Lenga-lenga serrana)

Nevoeiro Corriqueiro, Já lá vem Pae foIleiro. Com se pau Marmelleiro, P’ra furtal lo Seu carneiro!

Mé, mé, mé, mé! Nevoeiro Corriqueiro, Já lá 'stá Pae folleiro.


Com seu pau Marmelleiro.

A furta lo Seu carneiro! Mé, mé, mé, mé !

Nevoeiro Corriqueiro, Já lá vae Pae folleiro, Com seu pau Marmelleiro. E, às costas, Seu carneiro! Mé, mé, mé, mé !

O’ folleiro, Lo diabo És inteiro! Lá em riba No.oiteiro, Comes tripas Do carneiro! Mé, mé, mé, mé!


II LENGA – LENGA DO GATINHO - «O' galinho, Dá-me rato, Para rato Me dar rabo.» - «Dae-me leite.» - «Quem no dá?» - «Dá la cabra.»

- «O' cabrinha. Dá-me leite, Para leite Dar ao gato. Para gato Me dar rato, Para rato Me dar rabo.» - « Dae-me herva.» - «Quem na dá?» - «Dá lo campo.»

- «O' campina, Dá-me herva, Para herva Dar á cabra, Para cabra Me dar leite, Para leite


Dar ao gato, Para gato Me dar rato, Para rato Me dar rabo.» - «Dae-me agua.» - «Quem na dá?» - «La levada.»

- «O' levada, Dá-me agua, Para agua Dar ao campo, Para campo, Me dar herva, Para herva Dar á cabra Para cabra Me dar leite Para leite Dar ao gato. Para gato Me dar rato, Para rato Me dar rabo.» - «Dae-m’ enxada.» - «Quem na dá?» - «Lo ferreiro.»

- «O' ferreiro,


Dá-m' enxada, P'ra enxada Dar levada, P'ra levada Me dar agua, Para agua Dar ao campo, Para campo Me dar herva, Para herva Dar á cabra; Para cabra Me dar leite, Para leite Dar ao gato, Para gato Me dar rato; Para rato Me dar rabo.» - «Dae carvão.» - «Quem no dá?» - «Carvoeiro.»

- «Carvoeiro, Dá carvão, P'ra carvão Dar ao ferreiro. P'ra ferreiro Dar enxada; P'ra enxada


Dar levada, P'ra levada Me dar agua, Para agua Dar ao campo, Para campo Me dar herva, Para herva Dar á cabra, Para cabra Me dar leite, Para leite Dar ao gato, Para gato Me dar rato. Para rato Me dar rabo.» - «Dae-me lenha» - «Quem na dá?» - «Dá la serra.»

- «Alta serra, Dá-me lenha, Para lenha Dar carvão, P'ra carvão Dar ao ferreiro, P'ra ferreiro Dar enxada, P'ra enxada


Dar levada, P’ra levada Me dar agua,

Para agua Dar ao campo, Para campo Me dar herva, Para herva Dar á cabra, Para cabra Me dar leite, Para leite Dar ao gato, Para gato Me dar rato, Para rato Me dar rabo.» - «Dae-me terra.» - «Quem dá terra?» - «Quem fez tudo Qu' éll'encerra.

III

LENGA – LENGA DA FORMIGA


La formiga vae à serra, E seu pé na neve prende. - «O’ neve, tu és tão forte, Que meu pé em ti se prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que luz do sol me derrete» - «O' Sol, e tu és tão forte, Que derretes fria neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer nuvem me tapa.»

- «O' nuvem, tu és tão forte, Que tapas la luz do sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer vento m'espalha.»

- «O' vento, tu és tão forte Qu' espalhas la negra nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer muro me veda.»

- «O' muro, tu és tão forte, Que vedas lo rijo vento; Lo vento, qu'espalha nuvem;


La nuvem que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer rato me fura.»

- «O' rato, tu és tão forte, Que furas lo grosso muro;

Lo muro, que veda vento; Lo vento, qu' espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer gato me come.»

- «O' gato, tu és tão forte. Que comes esperto rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento; Lo vento, qu'espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que um cãosinho me mata.»

- «O' cãosinho, és tão forte, Que matas lo bravo gato;


Lo gato, que come rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento; Lo vento. qu'espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve. que meu pé prende?» - «Eu, formiga sou tão forte Que um pausinho me bate.»

- «O' pausinho es tão forte. Que bates no cão valente; Lo cão, que mata lo gato; Lo gato que come rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento; Lo vento; qu'espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - '«Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer lume me queima.»

- «O' lume, tu és tão forte, Que queimas lo duro pau; Lo pau, que bate no cão; Lo cão, que mata lo gato; Lo gato que come rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento;


Lo vento, qu' espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve; que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte. Que qualquer agua m'apaga.»

- «O' agua, tu és tão forte, Qu' apagas lo vivo lume; Lo lume, que queima pau; Lo pau, que bate lo cão; Lo cão, que mata lo gato;

Lo gato, que come rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento; Lo vento, qu'espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu formiga, sou tão forte, Que qualquer cabra me bebe.»

- «O' cabra, tu és tão forte, Que bebes la fria agua ; La agua, qu'apaga lume; Lo lume, que queima pau; Lo pau, que bate no cão; Lo cão, que mata lo gato; Lo gato, que come rato;


Lo rato, que fura muro ; Lo muro, que veda vento; Lo vento, qu' espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que qualquer faca me mata.»

- «O' faca tu és tão forte, Que malas ligeira cabra; La cabra, que bebe l'agua; La agua, qu'apaga lume; Lo lume, que queima pau; Lo pau, que bato no cão;

Lo cão, que mata lo gato; Lo gato, que come rato; Lo rato, que fura muro; Lo muro, que veda vento; Lo vento, qu' espalha nuvem; La nuvem, que tapa sol; Lo sol, que derrete neve; La neve, que meu pé prende?» - «Eu, formiga, sou tão forte, Que n'um ai perdi lo córte.»

Del lo alto 'té lo fundo, Nad' é forte neste mundo.


IV

LENGA – LENGA DO DOMINGO

Um dia, domingo, Ao pé do caminho, Cantava lo galo No campanairinho; Lo galo é forte, Salta-me no sino; Lo sino é d’oiro. Esperla lo toiro; Lo toiro é bravo, Vae marrar no padre;

Lo padr' é medroso; Bradou ao fidalgo; Fidalgo, valente, Vae, mette lo toiro Na cova d'um dente!

V

LINGUE – LINGUE

VARIANTE I


- «Lingue-lingue, Tu que fazes?» Lingue-lingue: - «Faço papas.»

- «Lingue-lingue, Qu' é das papas?» Lingue-lingue: - «Nã tem sal.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do sal?» Lingue-lingue: - «Tem rendeiro.»

- « Lingue-lingue, Lo rendeiro?»

Lingue.lingue : - «Foi ao mato.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do mato?» Lingue-lingue: - «Lume queimou.»

- «Lingue-lingue. Qu' é do lume?» Lingue.lingue: - «Agu' apagou.»


- «Lingue-lingue, Qu' é da agua?» Lingue-lingue: - «Boi bebeu.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do boi?» Lingue.lingue: -- «'Stá na eira.»

- «Lingue-lingue, Qu’ é da eira?» Lingue-lingue: - «Stà com trigo.»

- «Lingue-lingue, Qu’ é do trigo?» Lingue-lingue: - «Ave comeu.»

- «Lingue-lingue, Qu' é da ave?» Lingue-lingue: - «’Stá nos ovos.» - «Lingue-lingue, Qu' é dos ovos?» Lingue-lingue: - «Frade levou.»

- «Lingue-lingue,


Qu' é do frade?» Lingue-lingue: - «É de missa.»

- «Lingue-lingue, Qu' é da missa?» Lingue-lingue: - «No altar.» - «Lingue-lingue, Qu' é do altar?» Lingue-lingue: - «Na egreja.»

- «Lingue-lingur. Qu' é d' egreja?» Lingue-Iingue: - «'Stá na terra.»

- «Lingue-lingue, Qu' é da terra?»

Lingue.lingue: -

«Tu 'stás nela.»

VARIANTE II

- «Lingue-lingue; 'Stás lá dentro?»


Lingue-lingue: - «Fiz fermento.»

- «Lingue-lingue, Lo fermento?» Lingue-lingue: - «'Stá no pão.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do pão?» Lingue-lingue: - «Nã tem sal.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do sal?» Lingue-lingue: - «Tem rendeiro.»

- «Lingue-lingue, Lo rendeiro?» Lingue-lingue: - «'Stá cambado.»

- «Lingue-lingue, Quem no cambou?» Lingue-lingue: - «Foi lo pau.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do pau?»


Lingue-lingue: - «Lume queimou.»

E segue corno na variante antecedente.

VARIANTE III

- «Lingue-lingue, Que figestes?» Lingue-lingue: - «Fiz fermento.»

- «Lingue-lingue, E qu' é delle? Lingue-lingue: - «'Stá no pão.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do pão?» Lingue-lingue: - «'Stã no forno.» - «Lingue-lingue, Qu' é do forno?» Lingue-lingue: - «'Stá acceso.»

- «Lingue-lingue, Quem accendeu?»


Lingue-lingue: - «Foi lo lume.»

- «Lingue-lingue, Qu' é do lume?» Lingue-lingue: - «S'apagou.»

- «Lingue-lingue. Quem apagou?» Lingue-lingue: - «Foi la agua.»

- «Lingue-lingue. Qu' é da agua?» Lingue-lingue: - «Boi bebeu.»

E segue como na variante I.


ESPECIE V

PERLENGAS INFANTIS

I

ACALENTAR MENINOS - «Imbala, preta, imbala Menino do teu senhor; Canta-lhe bem amoroso; Anina-lo com amor. Imbala, preta, imbala, Como lo fez San Joseph, Que los anjos cantarão: Pater noster, domine.»

- «San Joseph, a trabalhar, Imbalava com seu pé: «Calae-vos, Jesus Menino, Nacido em Nazareth,» Meu San Joseph, acudi; Dae-me vós da vossa graça, Com qu' inxugue meu menino Suas lagrymas de prata.»

- «Imbala, preta. imbala, Como la Virgem fazia,


Que los anjos cantarão: Gratia plen', ave, Maria.»

- «Cantigas cantou la Virgem, Quando imbalou Jesus: «Calae-vos meu bento filho, Qu' haveis de morrer na cruz.» Nossa Senhor', acudi; Dae-me do vosso thesoiro, Com que cale lo meu menino, Que chora lagrymas d'oiro.»

II

BICHO PAPÃO

Lo feio bicho papão 'Stá em riba do telhado, Pera ver lo meu menino Se 'stá no berço deitado: - «O' papão, tu vae-t' imbora De riba desse telhado; Deixa dormir lo menino Seu somninho descançado.»

Agua que corre na cança Já de longe faz zoada;


Ao som de l'agua corrente, Dormi sésta descançada.

III

MENINA BONITA

Menina bonita Nã sób' á janella; Que bicho papão Carrega com ella.

Se quer alvos ovos, Arroz com canella, Menina bonita Nã sob' á janella.

IV

PALMINHAS Palminhas e mais palminhas, Que mãe-mãe dará maminhas, E pae-pae, quando viel, Dará sopinhas de mel.


V

MÃO MORTA

Mão morta, Mão morta Te bate Na porta. S ná tens que lhe dar, Da-lhe do sal do mar.

VI

DEDO MENDINHO

Indicando com um dedo da mão direita cada um das da esquerda, a começar pelo mínimo:

Dedo mendinho, Seu visinho, Pae de todos, Furta bolos, Mata piolhos.


VII

DEDOS DA MÃO

Um dedo da mão direita vae indicando cada um dos da esquerda a começar pelo pollegar.

VARIANTE I

Este diz que merendemos; Este diz que pão nã temos; Este diz que Deus dará; Este diz que nã qu'rerá; E este, que é pequenino, Furta lo seu poucochinho.

VARIANTE II

Este diz que merendemos; Este diz que pão não temos; Este diz que lo furtemos; Este diz – furtar aonde? Este diz – casa do conde.


VIII

EM CASA DA AVÓ

- «Que faz la menina Em casa d'ávó?» - «Barrer Ia casinha; Sacudir lo pó; Catal los piolhos; Fazel lo cócó."

IX

BICHINHA GATA

- «Bichinha gata, Tu que papaste?» - «Sopas de leite.» - «Nã me guardaste?» - «Sim, guardei-te.» Com que tapaste?» - «Rabo do gato.» - «Sape-te gato, Bicho do mato; Sape-te gato.»


GENERO III

JOGOS

ESPECIE I

JOGOS PUERIS

I

SARRA MADEIRO

Duas crianças, menino e menina, dando as mãos e imitando os movimentos dos serradores, dizem alternadamente, ao compasso desses movimentos:

Sarra madeiro Carapeteiro; Sarremos nós, E sarrae vós, Los cavaquinhos, P'ra fritar filhós. Sarrae, comadre; Sarrae, compadre, No madeirinho De senhor padre.


II

JOGO DA ARGOLINHA

Um, dois, três, Argolinha! Põe lo pé, Pampulhinha! O' rapaz, Jogo faz; Faz um jogo De capão; Conta bem, Manoel João; Conta bem. Vinte são; E recolhe Teu pésinho, Qu' está coxo D'um dedinho.

III

REI, RAINHA Rei, rainha Vão ao mar


Pescar sardinha, Pera dar Ao pae Luiz, Preso á ordem Do juiz. Salta pulga Da balança E vae ter Até França. Cavalleiros A correr, Las meninas A prender: - «Qual será Mais bonita Que se vá Arrecolher?»

IV

JOGO DAS GALINHAS

Uma criança é o gallo; está em pé, no meio: as demais crianças são as gallinhas; estão sentadas em roda.(Diz o gallo, tocando em cada. gallinha successivamente)


- «La gallinha da papada Muitos ovos põe, ou nada: Põe a um, e põe a dois; Põe a dois, e põe a tres; Põe a tres, e põe a quatro; Põe a quatro, põe a cinco; Põe a cinco, põe a seis, Põe a seis, e põe a septe; Põe a septe e põe a oito.»

(Assim vae até a ultima gallinha, e, por fim., batendo palmas, diz:)

- «Vão pôr seus ovos no coito.»

(Então, as gallinhas mettem as mãos fechadas debaixo dos sobacos, para as aquecer; fecham os olhos e permanecem quietas, como gallinhas no ninho. - Esperando curto espaço, o gallo canta, e diz:)

- «Vós já tendes ovo quente?»

Todas as gallinhas cacarejam, e depois cada qual responde:

- «Eu já tenho ovo quente.»

Gallo e gallinhas continuam cacarejando, e no emtanto gallo vae apalpando as mãos de cada uma, e dá uma palmada em cada mão que acha fria.


V

JOGO DA BASSOIRINHA

VARIANTE I

Uma criança é cabeça do jogo. Todas as outras, sentadas no chão, fazem roda, junctando as mãos abertas de palmas para baixo. A cabeça do jogo, correndo circularmente com a mão direita por cima das mãos das demais crianças, diz:

- «Bassoirinha, bassoirinha, Barre tu esta casinha: Bassoirinha, bassoirão, Barre-m' este casarão.»

Depois, dando ligeiros beliscos nas costas das mãos das companheiras, continúa:

- « Sirolico, tico, ,tico; Quem te deu tamanho bico? Seja d'oiro, ou de prata,

Mette-te já na Buraca.»


As outras crianças mettem as mãos no seio; depois de curta espera, vae uma por uma deitar a cabeça no colo da principal do jogo; e esta, batendolhe nas costas, pergunta:

- «Tem pão quente?»

Cada qual vae respondendo que sim, e a cabeça do jogo, apalpando-lhes successivamente as mãos, dá uma palmada em cada mão que acha fria.

VARIANTE II

Começa pelo modo acima referido, dizendo a cabeça do jogo: - «Bassoirinha, bassoirinha, Barre tu esta casinha.» - «Muito bem la barrerei, Como la casa del-rei.»

Depois dando ligeiros beliscos nas costas das mãos das Companheiras, continúa:

- «Sirolico, tico, tico, Quem te deu tamanho bico? Dois, quatro, seis e oito; Safa já, Cozei biscoito.»


As outras crianças mettem as mãos no seio e fingem dormir. A cabeça do jogo pergunta-lhes septe vezes:

- «Tem pão quente?»

A cada uma das vezes as crianças vão respondendo:

- «Estou peneirando.» - «Estou amassando.» - «Está levedando.» - «Estou a tender.» - «'Stou a 'cender.» - «'Stou a cozer.» - «Quente, a ferver.»

Á ultima resposta, a cabeça do jogo vae apalpando as mãos das companheiras, e dá uma palmada em cada mão que acha fria

VI

JOGO DAS VISINHAS

Duas crianças, acocoradas, são simultaneamente. visinhas e patos; dialogando, dizem:

- «Nhôra visinha, Tem lá panella?»


- «Cahiu lo funuo.» - «Tem uma saia?»

- «Falta-lhe coz.» - «Tem lá patinhos?» - «Mas nã são meus.» - «Elles que comem?» - «Milho miudo.» - «Elles que bebem?» - «Agua do rio.» - «D'onde vieram?» - «D'além, da feira.» - «Quem los comprou?» - «Foi meu compadre.»

Nisto, ambas as crianças trocam de logares, indo de cocoras, aos saltos, e, grasnando á imitação de patos, dizem:

- «Quá, quá, quá, quá, quá.»

E, dialogando, continuam:

- «Elle que mais trouxe?» - «Comprou-m' um gabão.» - «De que côr é?» - «É côr de limão.»

E logo as duas crianças voltam de pé aos primitivos logares, e, fazendo


gestos como quem toca viola, concluem, cantando:

- «Ferrum, fum, fum; Ferrum; fum, fão.»

ESPECIE II

JOGOS DE ADULTOS

I JOGO DO PÉSINHO

Rapazes e raparigas, em numero impar, fazem roda, dando as mãos; adiantam o pé direito, e, tocando com o bico deste no chão repetidas vezes a compasso, dizem, cantando:

- «Ponh' aqui. Ponh' aqui Lo seu pésinho ; Ponh' aqui, Ponh' aqui Ao pé do meu; Ao tirar, Ao tirar Lo seu pésinho,


(nisto, vão retirando o pé)

Ai Jesus, Ai Jesus, Que lá vou eu.»

E soltando todos de repente as mãos, abraçam-se aos pares, cantando:

- «Estou contente do meu par; Foi condão Deus me lo dar.»

A rapariga que fica só, perdeu, e é a viuva para o jogo seguinte.

II

JOGO DO PUNHO Este jogo deve ser de rapazes somente, e poucos. Todos, excepto um, fazem roda; fecham as mãos, deixando os pollegares levantados, e, pondo umas sobre outras, ligadas pelos pollegares, formam dellas como que uma torre ou castello. O jogador exceptuado é o assaltante da fortaleza: vae com a sua mão direita apalpando, de baixo para cima, as mãos encastelladas; interroga cada um dos outros jogadores, e cada qual destes vae respondendo :

- «Que tem por dentro?» - «Pão bolorento.»


- «Que tem por fora?» - «Cordas de viola.»

E, examinada assim a torre, diz o inimigo:

- «Quem me déra Camartello, p'ra arrazar Este castello.»

E logo, dando de punho fechado por um e outro lado da torre de mãos, se esforça por desfazel-a, ao passo que os outros jogadores se empenham em mantel-a. Aquelle que primeiro perder a posição, perde o jogo e para o seguinte fica, como assaltante, fora da roda.

III

JOGO DA VIUVA

Rapazes e raparigas, em numeros pares, fazem roda, gyrando de mãos dadas. A viuva volteia no centro da roda, cantando:

- «Eu sou viuvinha Da banda d'álem; Quero-me casar; Nã vejo com quem.»


E, apontando successivamente para cada um dos rapazes do jogo, repete:

- «Comtigo, não.»

Chegando, porém, áquelle que ella prefere, bate palmas, e, abraçando-se com esse, exclama:

- «Comtigo, sim»

Ao mesmo tempo os demais jogadores se abraçam aos pares, ficando urna das raparigas só. Esta que é a viuva para o jogo seguinte, permanece calada. Todas as outras pessoas do jogo, no instante em que se abraçam, dizem, cantando:

- «Minha viuvinha Do meu coração, Casada, sim, sim; Viuva, não, não.»

IV

JOGO DA CONDESSA Septe raparigas, de mãos dadas, são filhas da condessa, já entradas no mosteiro para professar. Juncto dellas está uma rapariga, a quem por sorte coube ser a condessa. Septe rapazes, tambem de mãos dadas, se dirigem para a condessa; são cavaleiros que lhe veem pedir as filhas em


casamento. Dizem elles:

- «Aqui las vimos pedir Pera com eIlas casar.» Responde ella:

- «Nem por ouro, nem por prata, Nem por sangue de dragão. Eu nã dou las minhas filhas Do mosteiro ond' estão,»

Despedem-se elles:

- «Tão alegres que vinhemos! Tão tristes que voltaremos! Que las filhas, da condessa Por mulheres não levaremos. Pois sabei que todos temos Senhorio sem igual; Que todos semos fidalgos Que nem de sangue real.»

E vão-se retirando; mas a condessa os detem: - «Volvei a mim, cavalleiros: Por serdes homens de paz, lde cada um à grade Escolhel la que vos 'praz.»

Elles voltam, acceitam, e cada qual; por sua ordem, observando cada urna


das filhas da condessa de per si, vae tomando para noiva a que lhe agrada.- Diz o primeiro cavalleiro:

- «Esta não, nem esta quero; Esta coma pão de cento; Esta, vinho de cabaça; Esta, carne do assento; Esta, carne do assem: Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.»

Diz o segundo:

- «Esta não, nem a quero; Esta coma pão de conto; Esta, vinho de cabaça; Esta, carne do assento: Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.»

Diz o terceiro:

- «Esta não, nem esta quero; Esta coma pão de cento; Esta, vinho de cabaça: Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.»

Diz o quarto:


- «Esta não, nem esta quero; Esta coma pão de cento: Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.» Diz o quinto:

- «Esta não, nem esta quero: Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.»

Diz o sexto:

- «Esta não, mas esta quero; Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.»

Diz o septimo:

- «Esta é de meu contento; Andae commigo, meu bem.» À proporção que as noivas são escolhidas, vae cada par, de mãos dadas, enfileirando com o antecedente; por fim, dançando e cantando, fazem todos roda á condessa; e acaba o jogo.

Para o recomeçar, é tirada nova sorte, a ver qual das outras raparigas será condessa, ou, á occasião da roda e dança final, é vendada a condessa do jogo findo, e a rapariga a quem ella lançar mão fica sendo a condessa do jogo seguinte; e ainda este processo póde ser modificado; vendada a condessa, escondem-se as filhas; o primeiro cavalleiro dá um apupo e


desvenda a condessa; esta procura as foragidas; e a primeira que acha fica sendo condessa.

FIM


ERRATA

Para melhor representar a pronúncia popular, tivemos, como dicto fica no prefácio, de recorrer á orthógraphia antiquada e á phonica: d'isto resultaram divergencias e lapsos, que não prejudicam o sentido e são de facil emenda; pelo que, sómente para esclarecimento, aqui mencionamos, em geral, uns e outros, a saber: Acima, 'cima, por - a riba, 'riba. Ajoelhar, joelho, por - agiolhar, giolhar, giolho. Arriba, derriba. 'rriba, por - a riba, de riba, 'riba. Depois, por - despois. Em, en, no principio de palavras, por – im, in: v. g., embora, por - imbora; entrar, por - intrar. Manter nas variações verbaes o r ou s final, em vez de mudar para I qualquer destas lettras, quando se lhe segue o pronome lo, los, la, las: v.g. furtar-lo, por - furtal-lo; tendes-lo, por - tendel-lo. Lhe o, lhe os, lhe a, lhe as, lh'o, lh'os, lh'a, Ih'as, por- lo, los, la, las. O, os, a, as, por - lo, los, la, las. M'o, m'a, por - me: v.g. pede-m'o, por - pede-me. Pelo, pelos, pela, pelas, polo, polos, pola, palas, com um l em lagar de - ll. P’r’o, p’r’os, p’r’a, p’r’as, em logar de - a, ao, aos, á, ás, p'r'a. T'o, t'os, t'a. t'as, por - lo, los, la, las, te.


Os outros erros mais importantes são os seguintes:

Pag. Lin. Erros 2 11 tredicional 5 15 no 16 43 vamos a 18 32 vamos a 25 41 Assiste-lhe o 27 25 Da meia noite p’r’o dia 28 31 Nuncia p’ra tod’a 32 6 m’as 32 13 incanto 33 25 attreva 34 12 Eu t’a digo d’uma vez: 34 45 E nos valh’a 38 23 Ai, se vós 38 39 vendol-los 41 20 lo 41 34 lo 44 13 Esguardou p’r’o 48 21 jutiças 49 27 E conde de 55 4 Mntalvar 55 55 deixa-me 65 56 fôra 66 15 invejosa 67 44 Deus, 79 12 ‘sim 80 11 Pôl la noite de Natal 81 39 Pôl la noite de Natal 82 52 Oh, que noite de Natal! 87 49 la 99 18 rijo 101 11 fronceiro 104 24 morre 104 31 alto 105 8 Ter lh’ 109 28 Alá 110 41 cradado 111 51 é 112 39 Uma vae por debaixo, 115 24 do 115 52 todo lo 116 3 P’ra

Emendas tradicional do vamol lo vamol lo Lh’ assiste lo Na noite daquelle dia Nunci’ a toda la las milagre atreva Eu te la digo de vez: Nos valha la Se vós soides vendo-los no la E guardou ao justiças E lo conde Montalvar deixae-me fóra d’invejosa Deus ‘ssim Na noite de San João Na noite de San João O’ noite de San João! a fino fronteiro anda altos Ter AlIah cravado e Uma por debaixo vae, de toda la á


116 30 117 31 120 12 123 50 128 44 136 40 144 34 161 34 164 27 167 17 178 57 185 24 221 15 230 25 244 4 246 5

elle Lo aquelle Contr’ d’ aguas falço Olh’ agor’ a parlatorio beja Descei-vos Foi ver em Fugidon do ao

elIa La aquelIa Com da agua falso Olhem-me la palratorio beija Decei-vos Foi por ver a Fugindo de na


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