ROTEIROS DO RIO ANTIGO (Minha Vida no Circuito)
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O CANTO
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ROTEIRO DO RIO DE JANEIRO (Minha Vida no Circuito)
Eu gostaria de refazer o roteiro do Rio de Janeiro, a partir da minha história. Nesta cidade linda vim à luz. Bairrista de nascença, nela fiquei colado até os vinte e quatro anos, em Botafogo. “Bairro chique, de bom gosto e de bom tom”, segundo a recitação exigida pelo lojista aos *Antiga Murada de pedra que circundava a orla da Urca garotos, em troca de brindes e à Ponta do Calabouço balas. Antes de cair no “Canto”, o beco da minha vida, lá no fim da Rua Álvaro Ramos, brotei como gente numa avenida, mais abaixo, como que para tomar fôlego. Aos meus cinco para seis anos, subimos o suave aclive da rua e nos assentamos no Canto da Marciana, como era ainda lembrada e homenageada a antiga moradora e proprietária insigne do pedaço. Aliás, ainda existe uma travessa, com seu nome na placa, aonde em criança vínhamos ver o antigo acendedor de lampião trazer luz ao poste da esquina. Representava o *O acendedor de Lampião resquício de uma era ultrapassada. Ele acendia, ao chegar o crepúsculo, com uma espécie de tocha esticada por um varal e, ao raiar do dia seguinte, atochava a claridade, com o mesmo cabo comprido, mas de capuz escuro na ponta. Havia uma escola tradicional no bairro, mantida pelo Hospital São João Batista, na curva da Rua da Passagem, em frente ao início da Rua Álvaro Ramos. Ficava defronte ao hospital e era muito conhecida nas redondezas por Escola das Baratas, porque o uniforme era em forma de avental, de cor parda. Parecia mesmo uma barata velha. Meninos e meninas, em classes distintas, não se misturavam, mas usavam a mesma roupa. As crianças dos quarteirões em volta, praticamente todas, 3
cursaram ali o pré-primário. Minha Mãe, meus tios alfabetizaram-se ali. Meu irmão e eu não escapamos da saia parda. Mas foi de grande importância para nós o ensino, que era dirigido por freiras, vestidas em arredondado azul marinho até os pés, com imenso chapéu branco, aberto em asas esvoaçantes. Eu com quatro anos, meu irmão um ano e pouco mais velho, recebemos naquelas carteiras escolares as primeiras letras, aprendemos a ler e até cantar tabuada. Quando fomos para o primário, eu com seis anos, já sabíamos ler, mais do que apenas folhear, as revistas que *Revista da época meu Pai trazia: a Revista da Semana, o Malho, o Fon-Fon... Nossa subida para o final da rua, sem ter sido pomposa, teve “selo, carimbo e estampilha” – lacrado por um acidente comigo: tombei sob a grade de ferro de um portão desabado pelas sacudidelas que lhe dávamos. O sangue me escorria cabeça abaixo, enquanto meu irmão chorava desmamado atrás do seu Quirino, que me carregava pelos sovacos, evitando os pingos vermelhos a lhe cair sobre a calça. Conduziram-me de ambulância para o hospital, donde voltei com dois chifres de esparadrapo no cocuruto, seis ou sete pontos de cada lado, com vestígios inapagáveis. Exibindo, pois, essa etiqueta de transporte, lá fomos todos, em 1930, para o Canto, exatamente quando eclodia no Sul uma turbulência política, que se transformou em movimento rebelde e acabou por estabelecer em nosso País um período ditatorial de quinze anos. O nosso Canto, mini geograficamente falando, é uma várzea entre o Morro da Baiana, de diminutas proporções, que desce para o cemitério São João Batista com o nome de “Morro dos Anjinhos” (porque só se enterravam ali crianças) e, do outro lado, a montanha conhecida como São João, de cujo cimo se descortina toda a Praia de Copacabana. Pois essa faixa embaixo, espremida entre o morro e a montanha, constituía domínio nosso, desde a saída da Rua Assis Bueno, até ao muro do cemitério, alto de uns cinco metros, que fechava o caminho. Havia um 4
ressalto na metade do muro que nos permitia subir o primeiro lance. Depois, na ponta dos pés, braços e dedos estendidos, alcançávamos o topo. Passávamos para as primeiras campas rasas, quase encostadas ao muro. Também podíamos alcançar o cemitério por outro esquema de assalto. A penúltima residência à esquerda era entrada de uma avenida, onde morava um dos garotos nossos. Lá em cima, havia, entre as casas e o cemitério, um fosso, de mais ou menos quatro metros de profundidade e um de largura, que separava os vivos dos mortos. Fácil distância para o pulo de garotos viventes. Logo estávamos em nosso jardim *Turma antes da “pelada” preferido, com inteira liberdade para matar camaleão ao sol, com forquilha, ou soltar papagaio (não dizíamos pipa) lá do último quadro de sepulturas, bem na base do gigantesco penhasco, ou apanhar balões, à noite, ou chegar ao Forno, onde se cremavam restos das flores, e coroas, e caixões, e folhagens secas das árvores. Tudo manipulado pelo seu Albino, o coveiro do forno, nosso amigo paternal. Enfim, já do outro lado do vale, penetrávamos o Morro dos Anjinhos, através de um longo e intricado bambuzal, donde os pescadores de araque *Morro dos Anjinhos – cemitério São João Batistas extraiam seus caniços de pesca, e desembocávamos em disparada pela outra saída do morro, numa movimentada rua, com tráfego de bondes, a General Polidoro.
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DE MANHÃZINHA NO CÉU DO CEMITÉRIO Meu hábito era saudável, mas esquisito para um menino de dez anos. Eu saia de casa bem cedo, quando todos estavam ainda dormindo, e corria para ver na madrugada das ruas a faina silenciosa dos primeiros trabalhadores. Apanhava sorrateiramente uma ou outra bicicleta deixada no meio fio, montava nelas por baixo do “quadro”, porque não alcançava chegar ao selim, e dava a minha voltinha. Às vezes era surpreendido pelo dono e tomava um chute no traseiro. Lentamente, ao raiar do dia, adentravam o nosso Canto os padeiros, caixeiros de venda, entregadores de carne em carrocinhas com balança e tampa, onde se lanhavam e pesavam as porções encomendadas. Vinham também as carroças lotadas de garrafas de leite, outras carregadas de pães, ou caminhões-pipa donde se extraía o leite por engenhocas especiais de medir o volume do produto. Eu aguardava a oportunidade e, na beirada traseira desse carro, de bom espaço, pegava carona de peito até a parada seguinte. Enfim, eu amava o raiar da aurora, girava solitário pela rua. Os sons subiam sonolentos, a cidade acordava. Eis que, na manhãzinha de um dia, o silêncio foi cortado por um estranho ruído, cavo, amplificando-se na atmosfera quieta. Crescia pelos lados do cemitério, por cima do grande muro. Meio assustador. Olhei para o céu, que parecia invadido por um vento forte. Apavorado, vi surgindo uma imensa sombra por trás do Morro dos Anjinhos. Crescia assustadoramente na paisagem. *O Zeppelin nos céus de Botafogo Na forma de um medonho peixe que respirava fundo, nadava nas nuvens matutinas o Zepelim. Caramba! Mal pude conter a respiração. O bicho ocupava o espaço de uma montanha! O dia rompeu assombrado... Naquele inesquecível recanto, floresci. Até ser colhido, lançado para fora, pela vida jardineira, cheia de flores, vinte e quatro anos depois. 6
Tornei-me adulto. Levado pelas brisas, fui ornamentar outras paisagens. Restamos, ligados até a saída para o turbilhão dos deveres, apenas cinco. Meu irmão Mií-caí-caí, Batista-canela-de-vidro, Zezé-bom-de-bola, Hiltonda-Cecy, Mário-barriguinha e eu, o Xi. Demos adeus à nossa juventude e fomos em frente. Deixamos exuberantes (sim!) lembranças. Muitas. Compuseram a nossa história, formaram a nossa personalidade. Sem choro fácil talvez, nós a repassávamos sempre durante as paradas do nosso itinerário, nos momentos de descanso e fé. De mim, dentro de mim, no meu canteiro, tenho plantada uma árvore, a da maior recordação. Lá está ela, ainda, frondosa, na calçada, sombreando o meu passado risonho. ROTEIRO DA PRIMEIRA PAIXÃO Aos treze anos, no raiar da idade dos sonhos, enamorei-me de uma doce vizinha. A casa dela tinha duas janelas altas de frente. O sistema vigente era o antigo: dificultar o acesso, Ah! o acesso! Só de longe, pendurados pelas mãozinhas. Durante mais cinco anos, recostado à árvore, distante uns dois metros da janela, trocamos as mais puras juras permitidas à época. Pois a escola noturna acabou sorrateiramente me caçando a disponibilidade. Foi faltando o tempo para postar-me diante. Voou, fugiu, desapareceu. *Fachada original da casa da namorada Restou, como profunda marca – os meus amigos já gosavam – a imagem da árvore, ligeiramente inclinada. Fui eu que entortei o tronco, que ainda assim se encontra hoje, na sua velhice, mais avançada do que a minha.
ROTEIRO DA PRAIA VERMELHA-URCA De repente, nas andanças pela estrada, já nos despedíamos da puerícia. A pueril inocência chegava de mansinho e a gente não sabia como era, não percebíamos. Tanto o vocábulo como a razão dele... O 7
risco da infância se esticava para fora do círculo de origem, abria-se o roteiro: descer a rua, para a escola primária. Após os primeiros três anos gastos na quadra perto, partíamos para completar o curso na Praia Vermelha. Distância ponderável no mapa, portanto uma responsabilidade maior. Um quilômetro mais ou menos para baixo do Canto começava a Rua da Passagem, “de passagem”, “de trânsito” para a praia. Dobrandose à esquerda, em sentido contrário ao Túnel Novo, chegava-se à Rua LáVai-Um - Venceslau Braz, de nome verdadeiro. Só era conhecida pelo apelido, devido ao fato histórico de servir de valhacouto a ladrões e assaltantes. Os incautos, quando nela penetravam, passantes, eram comentados assim: lá vai um... Iam para o matadouro. A Venceslau juntava-se à General Severiano, que nasce, ainda hoje, de um segmento da Rua da Passagem, e desaguam as duas, como um só rio na Avenida Pasteur. O Botafogo de Futebol representava um segmento entre a Lá Vai Um e a Severiano: de um lado exibia-se a graciosa sede e do outro *Túnel Novo saída em Botafogo, em frente a Igreja Santa derramavam-se pela Terezinha parede alta as arquibancadas, cheias dos furos das bilheterias onde se comprovam os ingressos. Lá, na confluência das ruas, à direita, num majestoso prédio, ainda de pé, funcionava o Hospício*, entidade muito conhecida da população. Em suas janelas, fortemente gradeadas, ficavam pendurados, braços e cabeça de fora, aos gritos e acenos, alguns obscenos, os doidos e apalermados, que chamávamos de “internados”. Lá longe, ao fundo da Avenida Pasteur, vislumbrava-se a espaçosa fachada do Quartel, de paisagem riscada no céu pelos fios do bondinho, no 8
ROTEIRO DO PÃO DE AÇÚCAR A primeira maravilha da infância. Lá no Canto, já do meio da rua, avistávamos o cocuruto do Pão de Açúcar e nele pendurado, movediço, um caixote esverdeado. Encantava-nos a cena vista de longe. Já conhecíamos o Corcovado, faltava ver de perto o deslize dos turistas na Urca montanhas abaixo. Não é que o Ministério da Educação implantou uma reforma no ensino primário e tivemos de frequentar os anos finais *Antigo Hospício atual UFRJ-Universidade do primário, quarto e quinto, na Federal do Rio de Janeiro, campus Praia Vermelha Escola da Praia Vermelha, a Minas Gerais?! Aos oito anos ainda, começamos nova aventura escolar, embarcando em viatura de adultos, sozinhos, desde a esquina das Ruas Passagem/General Severiano até a Escola, na Pasteur, defronte da Escola de Medicina e quase em baixo do trajeto dos bondinhos. Nunca fizemos aquele passeio durante nosso curso. Na volta para casa, dispúnhamos de um bonde especial, com dois reboques, que devolvia os pimpolhos para o seu bairro, até a Praia de Botafogo. Tratava-se de uma gentileza do Exército e era comandada por um Capitão Paulo, não sei se do Forte de São João ou do Quartel do III RI. Girava o comboio numa algazarra de fazer gosto. E era uma barra para o Capitão conter sentados os garotos até a partida da condução. O entra-e-sai do lado de subida e da contramão tornava-se uma azáfama generalizada. No meio dessa confusão, o Batista, ao atravessar os ferros de ligação entre os reboques, feriu profundamente a canela. Levado para a Policlínica de Botafogo, sujeitou-se mais tarde a uma operação de raspagem do osso. Ficou sendo chamado, pelos cuidados de que se cercava, de “canela de vidro”, e jogava futebol no nosso time o Marciana com uma grotesca proteção na perna mais importante, que ele era canhoto. Pelo acúmulo de alunos que ocorreu, as turmas recém-chegadas foram divididas em dois turnos. Coube a manhã ao Mií e a mim a tarde. Só nos encontrávamos na transferência do bonde, para troca de rápidas 9
mensagens. À saída, ao meio dia, o meu irmão, eu depois das cinco, nos reservávamos o direito de um mergulho no Quadrado. Uma piscina ampla, uns quatro metros abaixo da praça, que já fora de competições de nado e agora servia, com dois diminutos ancoradouros, de garagem para pequenos barcos. A nossa Escola situava-se na Pasteur poucos metros adiante. Ao findar o quinto ano, pude conhecer mais de perto a parada de embarque para o Pão de Açúcar, cujo ponto intermediário era no Morro da Urca. A estação em baixo ficava ao lado direito da entrada do Quartel. Considerado um sítio mais ou menos militarizado, a ele não tínhamos fácil acesso. Mas, logo após a liberação de nossa maioridade, aos quatorze anos, demos o primeiro pulo lá em cima, com a Turma do Canto. O bondinho já passara para a fase de adulto, não uma meninice de caixote, mas de um contorno mais moderno, mais chique, de cantos abaulados. Não sei se a cor permanecera verde, mas nossos anos nela ainda permaneciam. Conhecemos encantados o grande terraço da Urca, com um bar instalado na outra casa em que começava a linha para o Pão de Açúcar propriamente dito. Devia *Pão de Açúcar com o mecânico em seu lugar de trabalho durante a viagem ser gostoso antes de tornar-se pedra, pois tinha o feitio da lembrança. O sabor do passeio não o degustamos de todo. Deixamos alguns nacos para a maturidade. Aí então reservávamos o nosso banquete domingueiro. Quase todas as tardes daqueles fins de semana, galgávamos pelos fios do bondinho a primeira montanha e íamos brindar nosso encontro ao som da orquestra, com direito ao enlace da coleguinha-dama. Ademais, sucedia (eram vários sucessos) passarmos, nos intervalos, para o derredor... Os casais que se formavam “no ínterim” rodeavam por fora o caminho rochoso e iam bater quase no precipício para a Praia Vermelha. Poucos corajosos desciam a rampa até a beira d’água. Os casais do nosso grupo, mais cuidadosos, sem demonstrar arroubos maiores, mantinham10
se langorosamente nos banquinhos intencionalmente ali instalados. Depois, os casais retornavam, na disposição de chegada e saída cada qual. O baile continuava. E seguiu juventude afora. Com o tempo a rodar, o açúcar empedrou. Visto de longe, decanta ainda, temperando um sonho passado, não simplesmente havido, muito mais do que isso: aureolado num passado mais-que-perfeito. Se eu fora Rei... ROTEIRO PARA A ENSEADA DE BOTAFOGO Para o lado da Praia de Botafogo, o bonde Praia Vermelha descia, ao lado da Policlínica Botafogo, para o Clube Guanabara. Batia no Mourisco, por onde, começava a importante Rua, já denominada da Passagem. Não havia ainda o Aterro, advindo do desmonte do Morro de Santo Antônio. De forma que a Avenida Pasteur terminava *Piscina do Clube Guanabara em cima da enseada. Continuava uma amurada de pedra, bem desenhada, que vinha desde a Urca e estancava na piscina do Guanabara. Esta avançava, qual um promontório, na Praia ainda não aterrada. Naquela enseada, demos nossas primeiras braçadas e, depois de construída a piscina do Guanabara, fomos os garotos de estreia das mais longas raias até então demarcadas. Nosso tio Nestor, que ali recebera instruções militares, como nós mais tarde, incentivou-nos ao inaugural mergulho nas águas tépidas e profundas do grande tanque. Tudo era maior em volta: a dimensão do espelho *Praia de Botafogo, com piscina ao fundo d’água, de 50 por 25 m: a 11
arquibancada longa dos dois lados; o trampolim de cimento armado, com duas plataformas de 5 e 10 m; mais uma rampa de madeira na altura dos 3 m. Tudo isso ao lado da garagem dos barcos a remo e no plano abaixo da bela sede social. No logradouro ao lado do Guanabara, quase como irmã gêmea, ficava a sede do Botafogo de Regatas, diferente do Botafogo Futebol, um pouco menor, mas concorrente impetuosa dos esportes e das atividades sociais. ROTEIRO ENTRE A PRAIA VERMELHA E A URCA Da Praia da Urca, na divisão do bairro – desde a Fortaleza de São João, passando pela Ponte do Quadrado (um pequeno embarcadouro, que nos primórdios do século foi piscina de competição de nado) e indo até o final do Iate - estendia-se essa bela amurada. O trecho final dela, para Botafogo, descia em ladeira pelas faldas pedregosas do Morro do Pasmado, e se debruçava sobre um pequeno lago formado por um longo muro de pedra, chamado Costão. Ao fim do lago assim formado, terminava a pequena pista, justamente o ponto de onde arremetiam os pequenos teco-tecos dos ricos associados do Iate Clube. Na água parada, apanhávamos, com as mãos em concha, pequenos peixinhos que levávamos em pequenas latas para o nosso tosco aquário. Uma aventura cruzar aquele trajeto entre o lago e o mar largo, onde reinava, dizia-se, um Nero feroz. Era preciso coragem. Nós a tínhamos. Meu irmão e eu a atravessamos algumas vezes, em fuga das traquinagens cometidas na Urca. Até, em certa ocasião, ao findar um dia de correria, já batendo nas paredes divisórias do Clube Guanabara, demos de cara com um guarda-civil. Na época, um policial específico do bairro, paramentado de farda verde e quepe de pala, com função mais ou menos parecida com a de guarda municipal hoje. Meu irmão, que era *Pequeno lago formado pelo “costão” de pedra chorão, com o susto e já se sentindo em frente ao Iate Clube onde funcionava o aeroporto aprisionado, abriu um berreiro que nos valeu como alvará de soltura. 12
Mas, ultrapassando o Hospício, um marco de nossa sociedade à época, indo a caminho da Praia Vermelha, ou Urca, já um bairro “bem”, alcançávamos os respeitosos prédios do instituto dos Cegos e o outro com dois grandes leões na entrada. Depois, um grande espaço vazio, como um arremedo de praça. Mais a frente, a Escola de Medicina, uma portentosa arquitetura, com imensa frequência escolar. Sustentava ao lado um grande campo de futebol, que servia aos estudantes de medicina e também aos alunos do primário *Escola Minas Gerais da Escola Minas Gerais, escancarada defronte, com toda a algazarra da garotada. Naquele colégio, Mií e eu fomos completar o primário. Chegávamos de bonde, que apanhávamos na esquina da Rua da Passagem com Álvaro Ramos e regressávamos na condução oferecida de graça pela municipalidade, com dois reboques, exclusivamente para retorno dos alunos de Botafogo, que eram a maioria. O direito de usar o gramado da Escola de Medicina se estendia ainda aos craques da redondeza, principalmente Urca e Botafogo, que, nos dias feriados e domingos, realizavam verdadeiros minicampeonatos. Adiante, ao fim da Avenida, na estação dos bondinhos, montes de turistas nacionais e estrangeiros eram puxados para cima e para baixo, pendurados nos fios, do morro da Urca para o Pão de Açúcar. Fechando a Pasteur, barrando a vista para o Atlântico, na verdade para a Praia, que penetra como um rio entre as rochas dos *Antigo quartel do III RI, na Praia Vermelha Morros da Urca e de Copacabana postava-se, altivo, dominador, todo vestido de amarelo, o Quartel General do III Regimento de Infantaria. Espontaneamente, ou pela sombra militar em volta, surgiu a Praça, toda submetida ao regime vigente. Ali, os trilhos 13
faziam uma circunferência completa, e por ela retornavam os bondes Praia Vermelha. Exercia-se nos arredores indubitavelmente o comando militar: as sentinelas na sua impecável imobilidade e os recrutas espalhados em volta. Os garotos da escola se aproximavam do portozão da fachada cheios de cuidados. Não havia convites para entrar, só olhares vigiantes, afastadores. Certa vez, porém, no estouro de uma revolução, eu, um menino de calças curtas, vim de longe, de Botafogo, lá do Canto, com uma misteriosa mensagem, e penetrei, poucos dias antes da surpreendente reação do Governo à Intentona *Pátio do III RI, junto a areia da Praia Vermelha Comunista. Portava debaixo do braço um documento sigiloso, cujos remetentes recomendavam o maior sigilo e extremado alerta. Enquanto esperava a resposta, transpus, curioso, um dos arcos cavados no imenso pátio atrás do Quartel, e qual não foi a surpresa?! Areia vermelha! Poucos paisanos tinham podido admirar aquele oceano que vinha quebrar no colorido areal. Ninguém na praia. Era um dia de cinzento temporal, que desabou, depois, na volta, em cima de mim, o mensageiro. Em seguida, talvez até no dia seguinte, foi sufocado o movimento, num supetão. O então General Dutra, da esquina da Avenida Portugal, comandava o movimento, e um tiro de canhão espocou dali, abrindo um devastador rombo na fachada do Quartel. Depois, montado na garupa de uma motocicleta - constou isso - foi chefiar pessoalmente a operação de tomada do sítio insurreto. Os escolares e moradores do local, inclusive meu Tio Mário, atraídos pela cena de desfile em plena rua, puderam ver o revolucionário Capitão Barata, de mãos atadas, liderando, altivo, pelas ruas o desfile do grupo revoltoso para a prisão.
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Depois, retomou-se a vida paisana, mais ou menos recatada, no bairro, que vivia à sombra das nuvens militares. O burburinho escolar voltou a ressoar na área conflagrada e reinstalou-se a notória calmaria na jurisdição da Urca. Na verdade, um espaço traçado ao gosto sofisticado, com sabor de simplicidade. A esquina de onde partiu o petardo oficial comandado pelo futuro Presidente da República, decorada ela mesma tradicionalmente por um posto de gasolina, era, ainda é, a única abertura para o território propriamente dito da Urca, do qual a Praia Vermelha é um segmento. Por ali, abre-se, como área de apresentação, o largo *Praia da Urca Quadrado da Urca,70 com introdução pela histórica Ponte, de onde meu irmão mais moço, Adélio, e outros valentes se arriscavam em exibidos mergulhos tipo gaivota. Os meninos da Escola Minas Gerais vinham, depois da saída, aos bandos, para a piscina. Esbaldavam-se, em trajes de anjo, sem asas, tudo nuzinho, entre mergulhos pulados dos degraus da escada alta, ou dos dois ancoradouros de madeira ali fundeados, ou lá de cima da própria amurada, suporte livre para nossas roupas e sapatos. Devido talvez à ingenuidade dos atletas e à alegria esfuziante que reinava, não havia reclamações. Os moradores das bonitas mansões em volta ou observavam calados, ou assistiam por trás das cortinas. Às quintas-feiras, dia de folga nas escolas, ou aos domingos, ali começava a escalada para a Praia da Urca. Primeiro, depois do Quadrado, uma nadada na Prainha do Souza, que era um restinho de areia em meio às rochas, caprichos da maré, sobre o qual o pessoal da calçada em frente esticou uma rampa de cimento. Servia de teste ou de batismo para os que 15
*Quadrado da Urca
programavam a praia. Chegava-se então ao areal arredondado, que a maré alta invadia e chegava, às vezes, aos baixios do Cassino da Urca. Em tempo, construíram uma espécie de dique entre uma ponta e outra da entrada d’água. Era a praia-cercada, a preferida dos então adolescentes lá do Canto. Caminhávamos, corríamos quilômetros, de madrugada para dar umas braçadas, um pulo do trampolim tosco, e voltar para o trabalho, em alta velocidade. Já estávamos na lida do adolescente pobre.
*Adélio num “anjo” no Quadrado da Urca 1950
Ultrapassando a curva da praia, do outro lado, no sentido do Forte, formava-se o centro propriamente chique do bairro. Só casas e mansões, nenhum edifício de apartamentos. Gente grã-fina. Como, aliás, todo o bairro. A Urca era discretamente sofisticada, langorosamente vestida de costumes e hábitos tradicionais, que exibia pelas ruas silenciosas. Sem comércio, botecos, quitandas ou distrações outras, que se estabeleciam mais para cá, à volta do areal, sobre a mureta. Ou abaixo, em meio às pedras que circundam toda a praia, onde se praticava a pesca tosca e se catavam mariscos, que eram caldeirados em velhas latas de banha e chupados ali mesmo. E *Murada do Flamengo prosseguia a garotada na pista pedregosa, ora mergulhando no mar, que nos acompanhava manso, ora subindo de volta para as rochas, agarrados à escarpa húmida, longa até a praia. Isso do lado de cá. Mais para dentro, do lado de lá da praia, nos deparávamos com o bastião da Fortaleza de São João. Naquele ponto 16
estancava-se a amurada bela, que contornava a orla sul da Bahia de Guanabara, desde a Ponta do Calabouço, passando pelas águas de Santa Luzia, Glória, Flamengo, Morro da Viúva, Botafogo, Iate e Urca. Visitas aos alojamentos deviam ser marcadas com antecedência, mas nós, os alunos da Escola Minas Gerais, éramos consentidos. A praça de esportes, dada a nossa relação de vizinhança no bairro, fazia parte do currículo escolar, pois que obrigatoriamente a usávamos, sob o comando de atletas militares, professores nossos do currículo de ginástica. ROTEIRO DA LAGOA Descendo ali pela Rua São Clemente, na junção dela com a irmã Voluntários da Pátria, arma-se uma pequena praça, em que, há tempos, funcionava a filial da Casa Augusto, da qual fui ciclista, na minha préhistória. O lugar à volta é conhecido como Humaitá. Inclusive a ladeira que escorrega até o início da Lagoa Rodrigo de Freitas tem esse nome. Pode ter um nome próprio, mas só atende pela qualificação de Ladeira do Humaitá. Vai bater ela, ao fim da descida, no princípio da Rua Jardim Botânico, à direita, e na primeira curva da Lagoa, à esquerda. Por esta última direção, na encosta em baixo, uma espécie de comprido cais, abria-se um bar que a Turma lá do Canto frequentava, nas tardes domingueiras. A rapaziada e as moçoilas desciam do bonde na ponta da Ladeira e seguiam a pé, na maior alegria, até o animado cais escondido na margem – a Fonte da Saudade, chamava-se. Inúmeras outras vezes, geralmente em manhãs de domingo, não desembarcávamos na ponta da Ladeira. Seguíamos direto para o fim da Jardim Botânico e pulávamos fora na praça do Corpo de Bombeiros da Gávea. Por trás, aparecia um campo de futebol tratado com o esmero 17
característico da instituição. Grama verdinha, demarcações em branco em todo o campo, plateia contida em seus lugares, sem grandes agitações, um brinco. Era o campo do Vila, ate hoje desconheço o porquê do nome. Os oficiais da corporação permitiam que cegos organizassem uma espécie de torneio dos clubes de amadores do futebol, com o pagamento do total de rifas que colocavam à venda. Então, a rapaziada se lançava, em grupos de onze de cada lado, na troca de chutes e pontapés, com direito a uma taça para o vencedor. Depois do certame, havia a marcha acelerada, através da rua lotada de bondes e ônibus, para a borda da Lagoa, atrás do Jóquei. Todos em busca do banho nas águas tépidas do território, digamos assim, ainda inexplorado. Não havia uma só construção, naqueles anos trinta ou quarenta. O que facilitava até a imersão em trajes os mais naturais. Era o refresco para o calor que subira da grama do campo pelas chuteiras e grossas meias. À noitinha, baixavam a temperatura e os modos... ROTEIRO DA BARRA Já avançados na juventude, descobrimos que havia mais história da Cidade além dos limites traçados pelo compasso e esquadro do Regente familiar. Traspassava-se o riscado. Lá ao fim da Estrada, chegávamos a São Conrado, uma pracinha com um arranha-céu novinho, parecendo uma sentinela para a subida do Joá. Não existia ainda o túnel. Contornávamos a montanha, descendo até os fundos dos motéis voltados para a Lagoa da Tijuca. Quem não dispusesse de tempo e vontade não interrompia a marcha, nem olhava para os lados, seguia em frente. Atravessando as águas ali estreitas da Lagoa, deparávamos uma espécie de igreja redonda, da cor de tijolo, com uma curta rua de ligação adiante. Pronto! A Barra misteriosa, desejada cortesã, exibia-se como *Barra da Tijuca anda deserta num quadro absolutamente 18
natural, sem retoques na fachada, doce e nua. O areal sem ocupações à margem, virgem, ainda era possível isso, das paisagens citadinas. Com o progresso, imiscuiu-se. Populou-se e se popularizou. Quem pôde, porém, admirar a natureza bela e pura, gamou para sempre. Havia só um trecho asfaltado, ladeando a praia, terminando num Bar famoso, que era frequentado pela motorizada boemia carioca. Só se chegava lá de carro. E romanticamente acompanhado. Dali para frente, até o fim da praia, a estrada deserta. Donde que pouco rodada. A nova Estrada, aquela paralela a Lúcio Costa, cognominada das Américas, suntuosa, densamente habitada hoje, atulhada de condomínios, sequer se podia pensar em traça-la. Era Mato cerrado. Bem, não havia calçada. O areal fazia fronteira rente à Estrada, e os frequentadores, seguros em seus automóveis, a portas trancadas, não se arriscavam a uma escapada até o mar, ou mesmo até poucos metros da margem. Alguns fugiam dos faróis da estrada e estacionavam mais para cima da areia. O narrador foi um. Deu-se mal, porque, na saída, ao ligar a marcha a ré, altas horas, o motor se negou, pifou. Estrondou quase um desespero na noite escura, em lugar longínquo. Que fazer?! As viaturas se recolhiam ao seu destino em alta velocidade. O casal, acenando perdidamente, até assustava. Mas, após alguns vinte minutos, uma viatura parou. E o susto?! Assalto à mão armada? Putz! Que medo! Era gente bem... Levaram os desesperados, quase desesperançados, até o início da praia, onde havia, já em posição de atendimento, um reboque com guindaste e tudo. A esperada tragédia foi rebocada até uma oficina e desapareceu calmamente no roteiro da noite.
*São Conrado 1958
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DE VOLTA AO ROTEIRO BOTAFOGO Descendo a ladeira da Policlínica, passava-se pelos fundos do Pavilhão Mourisco, Clube Guanabara e City. Ah! Funcionava ali uma estação de esgotos, empresa com postos em toda a orla da cidade. Era inglesa, portanto bem tratada, de tecnologia avançada. Não fedia e ostentava limpeza no pedaço em volta. Após a descida, à primeira esquina, abria-se outra vez a Passagem, a rua. Ali estava plantado o cinema Guanabara, histórico exibidor do bairro, não só de filmes, como, no passado dele, das artes cênicas. Grande sala de exibição. Separava a plateia, na parte de baixo, um rico muro em madeira caprichosamente entalhada, que dava distinção, à frente, para os frequentadores “da primeira”, convites especiais. Os “da segunda”‘ sentavam-se dali para o fundo do cinema. Os mais ceguinhos, postavam-se debruçados no muro de separação. Nas escolas primárias, havia folga às quintas-feiras, e então se instalava um burburinho alegre da criançada nos bairros, na entrada dos cinemas, que abriam suas portas para a sessão gratuita de filmes infantis, com direito à distribuição de balas, bombons e chocolates a rodo. Do outro lado da esquina, uma só casa, contornada por extensa grade de ferro, separava a Rua da Passagem da já movimenta Rua Voluntários da Pátria. Uma embocadura barulhenta, com entrada e saída de ônibus, bondes e transeuntes vindos de Copacabana e Jardim Botânico. E marcava esse fluxo o Bar Sereia, todo *Pavilhão Mourisco aberto, na esquina adiante, aos grupos do cafezinho ou da cerveja amiga. Funcionava o dia inteiro até altas horas da noite.
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Mas, na descida como quem vem da Policlínica, a enseada já se mostrava bela, em baixo à direita. Suas águas batiam na amurada do Iate e demarcavam o início da Praia de Botafogo. Como um espigão nessa volta, entrava pelo mar, contornada de pedras, a piscina do Guanabara. Foi o primeiro grande clube náutico da Cidade, alcançando suas raias de competições os cinquenta metros por vinte e cinco de largura, a maior da cidade então. Disputas memoráveis ali tiveram lugar. Piedade Coutinho, fez-se campeã mundial dos cinquenta metros, treinada pelo Comandante Irineu, também patrimônio guanabarino e uma espécie de caranguejo daquele recanto da enseada. Treinava turmas de nadadores, assim como remadores de yoles, skyes, dois-sem-patrão, cinco-com-patrão, que eram os barcos destinados aos remadores efetivos do clube. Uma figura folclórica o Comandante. As baleeiras e caíques, de construção menos sofisticada, verdadeiras bacias, com capacidade maior de acomodação, ficavam para o lazer dos sócios não “profissionais” do remo. Às cinco da manhã, nos dias de trabalho, e por toda a manhã aos domingos, saíamos os rapazes lá Do Canto, para fazer o périplo náutico Botafogo-FlamengoUrca, uma estirada de fôlego até para os atletas do Clube. Encostávamos nossa embarcação até bem perto da areia e captávamos uma ou outra sereia disponível para passeio. Lance que de longe os guardas da praia, alertados, interrompiam com o apito de aviso – proibida a ultrapassagem da linha dos nadadores. Depois da ladeira, também uma famosa pista domingueira de competições ciclísticas, esporte então muito cultivado: contornava-se o Pavilhão Mourisco, cá em baixo, no fundo do Penhasco, cavado na encosta que vinha desde o Hospício até a grande esquina do velhusco Cinema Guanabara. Formava uma área escura *Competição de remo diante do Clube Guanabara onde habitavam, à noitinha, os jovens “transgressores” do botafogo, do Guanabara, e vizinhos da velha City, (uma construção para tratamento dos 21
esgotos) escondidos na fenda ceifada do Penhasco do Pasmado. Eu, menino, aos dez anos, penetrava pelo sobsolo do Pavilhão Mourisco para ir á biblioteca infantil ler, com sofreguidão, o Tesouro da Juventude, com histórias grandiosas de reis e príncipes valentes, em volumes maiores do que nossos torços. E, aos dezessete, contorciame entre as sombras fagueiras da noite e os perfumes das gatinhas em *Campo do Fluminense, onde se fazia o juramento à bandeira flor. ROTERO DE BOTAFOGO! FIGURA CENTRAL. Uma amarração, um encadeamento bairrista. Ali escoavam as ruas da Passagem, a Voluntários da Pátria, a São Clemente, para dentro e para fora do Largo dos Leões. A Praia de Botafogo fazia o seu contorno em cima do Pasmado. A Piscina do Guanabara, por cima da Venceslau Brás, descia e espetava-se como um novo cabo geográfico na paisagem, todo cercado de pedras. A curva da praia se acentuava desde o Morro da Viúva até o laguinho que morria ali no fim da pista dos teco-tecos do Iate. Um jardim, com todo o esmero traçado, enchia de graça as tardes de domingo, plenas de juventude e beleza. Na orla, belas mansões, colégios de gente fina, Igreja *O Morro do Corcovado, sem o Cristo Nossa Senhora da Conceição, a mais alta torre dominante, outro clube de remo na esquina de São Clemente e o Morro do Corcovado, ainda sem a gigantesca imagem que lhe deu característica primordial no céu- o Cristo Redentor. Nessa enseada assim formosa e tranquila cresceu para a vida a minha geração. Fomos batizados em suas águas, com lançamentos pelos braços do meu Pai que alcançavam distâncias incríveis por cima das 22
cabeças flutuantes à volta. Ali, agitamos nossas primeiras nadadeiras, dali partimos para as remadas juvenis, disputamos provas adultas, e, acima de tudo, fizemos curso da farda de “caçadores de rolinhas”, com perneiras, calças culote, quepes e todos os arreios indispensáveis ao treinamento militar. Completamos com grande esforço a Escola de Instrução Militar, no campo majestoso do Fluminense de Futebol e Regatas. ROTEIRO DO CANTO DA MARCIANA O nosso caçula nasceu lá! Dez anos depois do terceiro rebento, a mana Lourdes, inesperadamente surgiu ele. Cursávamos o Mií e eu, a Escola Pública Minas Gerais, na Urca. Havia dois turnos de frequência, e eu, do turno da manhã, me encontrava em casa, quando o sinal da chegada foi dado. Assustei-me, não só com o aparato de praxe, trazido pela mesma parteira que recebera os três primeiros, como pelo pânico de uma das sublocatárias nossas. Ela, diante da agitação clamorosa de minha Mãe, querendo ainda acalmar-me e sofrear meu incontido susto, rodopiava *Capela de Santa Cecilia, ao fundo pelo corredor externo a me puxar pelos suspensórios, abraçando-me nervosa. Nossa. Toda a casa tremeu. Mas logo o sossego voltou, o choro do pimpolho veio alegrar toda a Família. Os irmãos vieram recepciona-lo, todo inteiro e do lado de fora, o maroto, deitado num diminuto travesseiro. Eu já caminhava para os doze anos. O Mií, nos treze. Ao bebê não faltava colo, e nós o prestávamos com a recomendação e o cuidado exigidos. Ao garotinho não faltou jamais carinho e atenção. Dos irmãos e da companheirada deles, que se aproximou também cheia de curiosidade. Desenvolveu-se o renascido em meio à algaravia do lar e trouxe-nos de roldão o crescimento alegre nosso, junto com o amadurecimento jubiloso dos geradores do produto. De pronto foi acomodado num berço confeccionado por Papai, em madeira de lei, dos restos de móveis velhos do Banco onde trabalhava. 23
Recebeu de presente uma cadeira alta que o punha à altura da mesa de jantar e se transformava depois num carrinho de rodas de ferro conhecido por toda a redondeza. Vieram em seguida os anos de chumbo, a retirada dos estudantes dos templos de ensino para as vias do trabalho. O menininho já crescera algo tanto, passara do colo para os ombros dos irmãos e até dos amigos mais chegados. Eu, ciclista calouro na praça, aos treze anos, na primeira entrega marcada para a vizinhança, encaminhei-me para o nosso Canto e fui colher meu petiz no cesto atrás da bicicleta. Demos uma fugida pelos arredores. Ele cabia bem no compartimento, acomodou-se todo proso, de sorriso ao vento. O tempo veio corrido. Pedalamos todos nas rotas da vida. O caçula frequentava ainda os cursos secundários, quando mudamos de residência, para uma casa herdada por minha Mãe e designada em usufruto para uma tia. Ainda quando nos transferimos para *Avenida Beira-mar Flamengo Vila Isabel, por injunções judiciais, mantinha-se ele na posição familiar de colegial, modificada em virtude de desacertos, digamos de ordem social. Não pude mantê-lo, eu que pretendia leva-lo livre de compromissos vivenciais, até a sua chegada ao curso superior. Achava eu, que, como perdêramos nós, os mais velhos, a juventude no grande esforço de cumprir a meta trabalho-estudonoturno, deveríamos proporcionar ao mais jovem caminhos mais amenos. Melhor foi aceitar os conselhos paternos e seguir o patrocínio de uma pessoa de grande ligação com a Família para a indicação num escritório de advocacia muito credenciado. Cessaram as preocupações quanto a uma possível conduta fora dos controles. Alguns anos depois, partimos todos para Brasília.
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ROTEIRO DA LIGAÇÃO FLAMENGO-BOTAFOGO A Praia de Botafogo terminava abruptamente, com três saídas: ou pela Marquês de Abrantes, ou Senador Vergueiro, ou em torno do Morro da Viúva, havendo uma escapatória pela Avenida da Ligação. Esta jamais teve seu nome reconhecido pela minha geração. Surgiu de uma fenda aberta na grande pedra, para permitir outra saída. Do lado de cá, Botafogo; pra lá, antes, Flamengo. Justamente uma avenida entre a beirada das pedras, no mar, e uma linha *Via da ligação Flamengo-Botafogo direta do Flamengo. Claro que o corte geométrico venceu, e a linda casa da minha Madrinha, de três andares, na esquina da Travessa Cruz Lima, ganhou destaque de bela mansão, dentro do trecho contínuo. Destacava-se também no contexto a figura do meu Pai, ao raiar do sol, na quadra ao lado, a limpar os metais da portaria que ele vigiava à noite. Na velhice, aposentou-se como porteiro noturno justamente ao lado do seu primeiro emprego no Brasil... a casa de minha madrinha. O ROTEIRO QUE GIRAVA PARA A GLÓRIA Após o primário, meu irmão e eu fomos, por volta dos quatorze anos, para uma escola denominada “técnico profissional”, que significava trabalho, um batente mesmo, com horário de oito ás dezessete horas. Ali se completava o curso ginasial, pela manhã, e calejavam-se as mãos nas oficinas, o resto da tarde. Ministravam-se aulas de empalhação de cadeiras, de carpintaria, de envernização de móveis, torneiro de metal, torneiro de madeira, entalhador, trabalhos manuais, ferreiro com forja quente. E o mais. Além de tudo isso, o macacão com que éramos travestidos, na segunda etapa do dia. O nosso macacão, o meu e o do Mií, destoava de todos os outros da escola - era verde, em vez de azulão, a cor oficial dos macacões de todas as oficinas.
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Levávamos no bolso um tostão apenas, junto com o merendaço que a Mãe preparava. Uma moeda reservada para a broa vendida na cantina da escola, na hora da “gororoba”. Ai que não saísse a sopa na horinha aprazada! Tome o ramerrão, num berro só, uníssono, com acompanhamento de talheres rebatidos nos pratos: “Nós queremos gororoba! Olha a cê-ê-ê-ra!” “Mestre cuca”, que era um velhinho simpático, que se apressasse. A nossa Escola ficava para o lado do Roteiro da Avenida Mem de Sá, a mais importante daquele Centro, terminando na bem arredondada Praça Cruz Vermelha, muito conhecida pelo seu Pronto de Socorro. Atravessava a Rua Gomes Freire, virava para o Lavradio, à direita, e para o Senado, à esquerda. *Cem réis = 1 a um tostão Lugubremente ensombrada pela grande casa da Rua da Relação, reduto da violência do Estado Novo. Frequentamos por três anos a Escola Técnica Secundária Souza Aguiar e, já, em plena adolescência, o solene dever da Família pobre nos batia no rosto como ventania: ao trabalho, meninos! Malandragem acabou. Nada mais de criancice e calças curtas. Estudo só à noite. E tome recortes de anúncios dos jornais para emprego. Uma coleção sebenta que nossa Mãe nos punha entre os dedos. Meu irmão Mií encontrou um de entregador de roupas feitas numa alfaiataria da Rua São Clemente, e eu o de ciclista num armarinho famoso na Rua Voluntários da Pátria. Pé na taboa e fé em Deus. O que nos causou o primeiro impacto foi a exigência de meu Pai: a matrícula no Liceu de Artes e Ofícios. A continuação nos estudos mal iniciados, agora feitos à noite, depois do árduo trabalho de oito horas ininterruptas. Para mim, árduo e ardido, de tanto esfregar as nádegas no selim da bicicleta. Tive que mostrar, em casa, na hora do almoço, a bunda ralada para o meu Pai, que não deu como grave o caso. Aí, a coisa mudou. Passamos ao compaço de adultos, de calças agora bem compridas. Mas, valentes como elas só, iam assentar-se, após ferozes andaduras por dias inteiros, em toscos bancos escolares, à noite. Uma década estafante, com direito a formatura e retrato no álbum.
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ROTEIRO DA PRAIA DE BOTAFOGO Na bela enseada, o roteiro começa a mexer-se e crescer. Da linha que partia do ponto de ônibus da Light, bem defronte do “Manequinho” mijão que se refestelava e regava as calças dos transeuntes. Atingidos pelo esguicho, saiam todos ao vento, umedecidos, para o seu trabalho honrado. Havia várias saídas. Ou entradas. Da Praia para dentro, a Rua Voluntários da Pátria era quase intransitável, tantos veículos jorrava. De lá do fundo, pela passagem seguinte, a Rua São Clemente arremetiam aos borbotões, triciclos, bondes, taiobas, caminhões, ônibus, a minha bicicleta fagueira, com um baita cesto na trazeira, onde eu acomodava quietinho o irmão caçula. Na esquina da Rua São Clemente, outra passagem pra dentro do bairro, havia de cada lado um clube de remo, onde cabiam todas as algazarras possíveis para levar os barcos até a água. Chamava mais a atenção um arremedo de coreto que se estendia desde a linha das pedras, na orla, *Manequinho fazendo xixi no Mourisco até a rodela de gente que parecia ser expelida para fora, na ponta. O Jardim da Praia de Botafogo parecia o regaço gentil de uma senhora venturosa, a espargir perfume e adereços floridos por toda a volta. Constituía um prazer inolvidável o ir e volver dos animados grupos juvenis, nas longas passeatas domingueiras. ROTEIRO DA PRAÇA MAUÁ Quando cheguei noviço ao Centro da cidade Maravilhosa, pelo dever sacramental imposto às famílias pobres de entrar no “batente” ao fim do primário, atraiu-me logo conhecer a Praça Mauá, com seu edifício de 22 andares, o maior de nosso Estado. O d`A Noite. A pensão onde de pronto me recomendaram os tios almoçar ficava na Rua São Pedro, a última que cortava a Avenida. Sem perda de tempo, após o primeiro repasto, corri a fazer a digestão num banco da praça e fiquei a admirar a paisagem, com seu movimento frenético à sombra do afamado arranhacéu. Ali, nos últimos pavimentos, enviava suas ondas para o Brasil inteiro a Rádio Nacional, que já ultrapassava a Rádio Mayrink Veiga, até então a 27
mais ouvida. Também agitavam a praça um popular Café bem situado na esquina do prédio, a estação rodoviária ao fundo, a sede do Cais do Porto do outro lado, já na direção dos subúrbios da Central, e uma velhusca construção de três andares na outra banda da entrada pela Rio Branco.
* Edifício da Noite, Praça Mauá, sede da Rádio Nacional
Ainda nas proximidades da Praça Mauá, que dava nome aos arredores, situava-se a Rua Mayrink, bastante conhecida pela presença constante, na grande calçada de entrada, dos artistas mais conhecidos do público ouvinte. Mas já começava a perder a preferência, embora alguns programas ainda se mantivessem em alta. Era o caso do rádio Teatro, de variadas montagens, cuja audição se mantinha acesa, como as peças policiais de Berliez Junior. Um verdadeiro improvisador de textos, de tal forma que possuía um taquígrafo a quem ditava seus repentes – Eu! Seu colega também do grupo teatral criado no Ministério da Educação. Engajei-me definitivamente neste Roteiro, quando, bem mais tarde, me deparei no Clube Botafogo com a querida cantora da Nacional, Leda Barbosa, que se tornou minha esposa. !!! ROTEIROS ENLAÇADOS O domingo findava sua tarde e o tempo não mudava de aspecto: não chovia nem fazia sol, desusados a sombrinha ou o guarda-chuva. A paisagem se arrastava por trás da cena e os transeuntes nem mesmo se apercebiam. O passado devagarinho se desmontava e logo outro presente
*Amurada de Botafogo Igreja Nossa Senhora da Conceição ao fundo
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vinha se refazendo. Novas figuras iam modificando os pontos marcantes. A piscina do Guanabara perdeu o reforço das rochas que a contornavam, o Pavilhão Mourisco caiu de velho, a EIM, escola de instrução militar, que abrigava no espaço sombrio dedicado aos “caçadores de rolinhas”, os reservistas em formação, sumiu do mapa. Novos planos de arquitetura desdobraram-se no céu. A torre histórica do Colégio Nossa Senhora da Conceição perdeu altura, sumiu na arquitetura invasiva. A linha do horizonte, longe, no mar, ascendeu alguns graus. O Roteiro geral, já enumerado e com placas fixadas, como que se embolou. Da Praia de Botafogo o vento soprava para o Morro da Viúva, e voltava pela Avenida da Ligação, trazendo a aragem do Largo do Machado pelos cortes da Marquês de Abrantes e Senador Vergueiro. Os roteiros se confundiram com o passar dos tempos. O cinema Azteca, com dois poderosos dragões alados à entrada – marca registrada do RoteiroCatete-Cidade – esvaneceu-se no turbilhão do trajeto, que arrastava o texto histórico para o “Centro”, passando pelo Outeiro, Praia do Russel, Jardins da Glória, estátua de Cabral, Praça Paris, Senado da Republica, Cinelândia - abertura da Rio Branco! O garoto, perdido no rolar dos roteiros, mal distinguia as indicações.
*Antigo cinema Azteca Rua Bento Lisboa
E havia mais... ROTEIRO DO CINEMA SÃO LUIZ O indefectível programa de domingo. A turma lá do Canto, depois da praia, almoço já digerido, se reunia na esquina, todos apurados no paletó e gravata, uniforme então exigido nos cinemas, que até dispunham para empréstimo nas bilheterias essas fitas de pescoço, com nó e tudo. Entrávamos para o salão na maior algazarra, procurando grupo de cadeiras vazias. Sujeitos até às intervenções do funcionário que à época controlavam os movimentos todos da plateia. Chamavam nossa atenção e não raro expulsavam os mais acirrados baderneiros. À saída, partíamos para o cafezinho no bar Luiz, de tradicional fama. Não havia balcão, nosso 29
café era servido à mesa, por garçons de avental na cintura e duas cafeteiras- de-cabo nas mãos. Chegávamos à praça, conhecida como Largo do Machado, de bonde. Entrávamos pela Marques de Abrantes ou Senador Vergueiro, contornávamos o espaço onde se assentava tranquilamente José de Alencar, e logo se abria a *Antigo Cinema São Luiz – Largo do Machado grande estação da Light. Ali se recolhiam principalmente os reboques da Zona Sul, por sobre os trilhos que se dobravam para dentro da espaçosa entrada. Defronte, estendia-se o Largo até à Igreja, ladeado pela Galeria do cinema Politeama, à esquerda, e do outro lado, pela Escola Amaro Cavalcante. O povo se mostrava como uma massa efervescente em direção às Laranjeiras, ou a Botafogo, ou ao Catete, ou ao Flamengo. O cine Politeama nos atraía também, às quintas-feiras, com a distribuição de entradas aos escolares. Nós aproveitávamos a gratuidade que nos era concedida pelos cinemas do bairro, aceita e usada com entusiasmo. Assim varamos nossos caminhos da Juventude, como se currículos imprescindíveis fossem. Roteiros que se desfiavam aos olhos do “belo tipo faceiro que tínhamos sempre a nosso lado”. E nem nos tocávamos. O condutor tim-tim chacoalhava moedas na palma das mãos, literalmente pendurado, como em galhos, nos balaústres e estribos. Desembarcávamos balouçantes, sem sentir os toques e retoques das gentes, ao fim de uma linha cheia dos *Anúncio exposto no bonde à frente dos nós da adolescência, para outra mais passageiros séria, atada com botões de paletó e gravata. Ao trabalho, gente. O motorneiro puxava a manivela e ondas de passageiros escorregavam para fora. Era o
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ROTEIRO DA GALERIA CRUZEIRO Aportávamos no Centro - ou na Cidade, profissionalmente falando – no lugar onde se dava o entorno dos bondes da Zona Sul. Havia outros finais: na Praça Tiradentes, na Praça Quinze, na Lapa, na Central. Mas ali essencialmente se iniciava o trabalho adulto. Largavam-se as inquietudes da infância e da adolescência para tomar sentido nos afazeres da vida, que já se fantasiava de paletó e gravata, bem antes da recaída da bengala que rolava fagueira nos antebraços. *Interior da Galeria Cruzeiro por penetravam os Frequentar o Centro era a bondes constatação peremptória do “emprego”, assentado na carteira de trabalho. O Roteiro, pois, se tornava ponto sério na vida do cidadão: “Eu trabalho na Rua Senhor dos Passos 22, onde se vendem fornituras (peças e acessórios) para relojoeiros e ourives” – recitava orgulhoso o menino. Só havia três no Brasil, importadoras diretas da França e Suíça, duas no Rio e uma em São Paulo. Pronto. O cara estava fichado com jeito e roupa de trabalhador. Caminho demarcado: de casa para o trabalho; daí para a escola noturna, *Galeria Cruzeiro – Hotel Avenida ou, num pulo, de volta para casa. Malandragem não vingava no Roteiro. Pelo menos que se lembre o menino-contínuo de farda e inscrição da firma na lapela do paletó.
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ROTEIRO DO TABULEIRO DA BAIANA De repente, aí pelo final dos anos trinta, eu já em pleno exercício da maturidade, o ponto tradicional dos bondes da Zona Sul desandou no mapa. Escorregou para o início do Largo da Carioca, na entrada das Ruas Senador Dantas e Treze de Maio, caindo em cima de um tabuleiro - o da Baiana. Pretendeu-se batizá-lo com um nome ilustre, mas não *Tabuleiro da Baiana – Largo da Carioca – O Mosteiro de colou. Era o retrato físico Santo Antônio ao fundo daquelas banquetas em que trabalhavam as vendedoras de quitutes da Baia. Uma graça, em sua simplicidade. A Galeria Cruzeiro, ao lado, desabou, abalroada pelos interesses imobiliários e ressuscitou moderna, como galeria ainda, animada pelos passantes, que então dispunham de cinco andares corridos de lojas. O Tabuleiro da Baiana fixou-se no populário da cidade. Os alunos do Liceu com residência da Lapa e da Glória para baixo reuniam-se ali, ao fim das aulas, à espera de condução, morosa naquelas horas. O Quarteto do Amor, divididas as duplas feminina, que partia, e masculina, que permanecia, encerrava então seu conluio afetivo do dia. Sob o Tabuleiro corria a vida dos passageiros da Zona Sul. Apeavam, para os seus deveres cotidianos, em todos os horários, desde o raiar do sol até o findar da noite. Ao entrar da madrugada, o espaço mudava de dono. Pertencia ao povo enquadrado nos deveres noturnos ou aos perdidos do acolhedor convívio familiar, que dormitavam pelos cantos. Não sei para onde a Baiana levou o seu Tabuleiro, nem se foi arrastado pelos ferozes tratores que estenderam a Rua Almirante Barroso desde a Esplanada até a grande cratera que restou do total desmonte do Morro Santo Antônio. Formou-se nova esplanada, ali a dentro, até quase 32
a Rua do Lavradio. Engordou realmente o Centro da Cidade e facilitou um grande acesso à Zona Norte. Ficou um travo saboroso na lembrança dos passageiros do Tabuleiro da Baiana, cheios até hoje de saudade. O GRANDE ROTEIRO A Avenida Rio Branco abriuse, escancarou-se no Centro, demarcada pelo Obelisco, à beira d’água. Ei-la! Tinha o tamanho que se inventasse, porque nem se sabia o que fazer após o primeiro passo. Em frente, o Roteiro para a Esplanada do Castelo, recéminaugurado com a destruição, a derrubada do morro ali *Obelisco na entrada da Avenida Rio Branco - Palácio localizado. Vislumbrava-se ao Monroe ao fundo longe a Cantareira, um Roteiro meio que fronteira, com território duplo, fluminense e carioca. À direita, à esquerda, atrás, até pelo alto, com a benção de Santa Teresa, todos os Roteiros do Centro, fortemente interligados, mapeavamse ali: bem Junto à Cinelândia, os Arcos; estes grudados à Lapa, por sua vez descolada na beirada do Campo de Santana. Naqueles tempos, soprava para as trilhas da Central uma ventania de obras que sacudia a Praça da República e, como uma adaga afiada, de dois gumes, decepou as Ruas São Pedro e General Câmara, rasgando afinal a Avenida Brasil, *Arcos da Lapa – saída dos bondes da Zona Norte desde a Candelária até a envelhecida Praça da Bandeira. Já eu entrei pelo Roteiro da Uruguaiana, através de um corte lanhado nela historicamente. Uma pequena abertura à esquerda de quem vai para a Praça Mauá e que alcançava a outra ponta no Campo de Santana. Achei o meu primeiro Roteiro na Cidade - a Rua Senhor dos Passos 22 - minha primeira aventura de Maioridade, aos 14 anos, no embrulho dos Roteiros do Largo de São Francisco, da Rua dos Andradas, 33
subindo o Morro da Conceição. Naquela área, completei meu primeiro curriculum, desde garoto de limpeza da loja até a função de vendedor no balcão – três longos anos de vida. ROTEIRO DA LAPA Entre as Ruas Mem de Sá e Riachuelo, que embicavam juntas logo após os Arcos, havia um só prédio antigo, com algumas lojas em que se destacava uma papelaria, por onde davam a volta os bondes da Zona Norte. Minava ao redor um povaréu barulhento e agitado como o da Galeria Cruzeiro. Do outro lado, contornando um pequeno parque, vinham alguns bondes da Zona Sul, chamados de taioba, por sua cor marrom. Tomavam a pequena faixa da Cinelândia, com os cinemas Palácio, Metro e Plaza, mais a Escola de Música, na esquina de Mem de Sá, retornavam pela Rua das Marrecas e seguiam o caminho de volta pela Rua da Lapa. O taioba tornou-se nossa “montaria”, quando concluímos Mií e eu o curso primário. Papai nos matriculou, pelas dificuldades pecuniárias da Família, numa escola gratuita, com ensino profissional incorporado. Instalada na parte norte do Centro da cidade, alargamos nosso conhecimento demográfico, saímos do estreito contorno de nosso bairro. A passagem (o custo) do bonde que nos servia mais perto era de três tostões, ou seja, logo após a modificação da moeda, trezentos réis. Caro para a bolsa familiar (3+3 x 2 = *Taioba – Bonde popular de cor marron 12 tostões) mais 3 do lanche para os dois = 15 tostões! ou seja, mil e quinhentos réis. Meu Pai conferiu o cálculo e apelou para o taioba. O trajeto dele para a cidade era pela Rua Voluntários da Pátria, umas três quadras adiante. Saíamos nós cedinho de casa, encontrávamos na esquina o Batista, amigo de nascença na mesma casa, e seguíamos arrastando as pastas do material escolar, cruzando quatro ruas, até o ponto. Na Escola Técnica e Secundária Souza Aguiar, cumpríamos pela manhã o curso ginasial; almoço no auditório aberto; à tarde, oficinas. Saída às cinco. A parte administrativa centralizava-se na Avenida Gomes 34
Freire. As oficinas do outro lado da rua, até a Rua do Lavradio. De cá, o campo de esportes, terminava na Rua dos Inválidos. Tínhamos preferência, quase todos os alunos, pelo conjunto das oficinas. Ali aprendemos a manejar ferramentas, desde o material usado na Empalhação, até os formões de todos os feitios para o Torneiro de madeira; desde a plaina da Carpintaria, até as forjas e bigornas do Ferreiro; desde os utensílios para a Entalhação em madeira, até os buris para trabalhar o ferro. Isso além de aulas teóricas ministradas pelo Professor chefe das *Bonde chegando à Lapa oficinas e da atividade em separado chamada de Trabalhos Manuais. Um aprendizado para operário nenhum botar defeito. Já tínhamos a experiência herdada do fundador da prole, português imigrante, nunca naturalizado por convicção patriótica. Aqui chegado aos vinte e poucos anos, sem instrução, quase analfabeto, trazia ele a força criada na lida do campo lusitano. Consertava e reparava tudo. Armou, no canto perto do tanque, um armário em que zelosamente guardava os instrumentos, que nós os filhos aprendemos a usar. E fomos aperfeiçoar o manejo das ferramentas, ganhar o diploma de operário na Escola. Mas - repatriando o tema - a Lapa, tradicionalmente cheia de cabarés e casas de dança, abrigava: o Silogeu, lá junto da Rua da Gloria, uma instituição literária, inicialmente; a antiquíssima igreja da Lapa, que recebia, sobretudo, as rezas do meu irmão Mií, contritas de nascença, como posso assegurar, pois as acompanhei desde minha nascença igualmente; um grande cinema no canto à esquina da Rua da Lapa, que virou sala de música erudita; o Instituto Nacional de Música; e uma sala que abria as portas, nas tardes de domingo, para bailes populares. O quarteirão, de quem entra pela Avenida Beira-Mar, abria-se num mimoso jardim, vigiado à entrada por dois jacarés a beber água de uma pequena fonte. Dentro desse parque, chamado de Passeio Público, em nosso 35
tempo de colegiais do secundário, estendia-se um conjunto de aquários, diante dos quais permanecíamos vidrados, com prejuízo até da nossa hora de entrada no colégio. Lá, defrontando a Rua Alcindo Guanabara, exibia-se altaneiro o Palácio Monroe, ainda ocupado por repartição policial do Governo de Vargas, retornando mais tarde a Senado Federal. Com a mudança da Capital para Brasília, poderosa repartição policial-militar assumiu o prédio. Houve certo constrangimento e reação da comunidade civil, donde que o General então chefe do Governo militar, decidiu pela... derrubada, (!?) do majestoso Palácio. Pranteei mais intimamente aquele arrasamento, porque conhecia o Palácio por dentro. Fora-me consentido pelo Diretor da Taquigrafia, dada minha aprovação em concurso, praticar no recinto das Sessões ainda do Senado, alguns treinos de apanhamento taquígrafo. Senti pessoalmente o lamentável ato governamental, de natureza profundamente reacionária. Mas, a Lapa... Crescidos na vida, muitas vezes voltamos, em noites de acirrada juventude, aos bares e cabarés da Lapa, lotados de damas ao dispor de nossos convites para dançar... em todos os ritmos. ROTEIRO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO Talvez o mais central dos Roteiros. Dali partia-se para todos os pontos de importância da cidade. Pelo lado do Parque Royal, torrado totalmente pelo fogo, adentrava-se o Largo pela Rua Ramalho Ortigão, curtinha, do comprimento das lojas do Parque; já no Largo, vinha a Igreja de São Francisco; depois o prédio da A Colegial, especializada em fardamentos para todas as escolas; o sobrado onde funcionava a oficina Armazéns de Paris, primeiro e único emprego de minha Mãe, *Largo de São Francisco com a antiga Faculdade de que ali se formou costureira- Engenharia modista e donde partiu, aos 36
dezenove anos, para o casamento com meu Pai; dava ligação, por um beco, para a Praça Tiradentes, contornando a Escola de Engenharia e, pelo outro lado, onde fica o Gabinete Português de Leitura, para a Avenida Passos; rodeando o *Antiga Avenida Central (hoje Rio Branco), saída do bonde Largo, ficava na esquina da para a Rua São José Rua dos Andradas a Casa da Borracha; em seguida a boca aberta da Rua do Ouvidor, donde vinha a pé todo o povaréu das imediações da Avenida Central; na Rua dos Andradas, de grande comércio, havia uma loja que vendia só chapéus de homem, a Ramenzone; e outra grande Casa, a Drogaria Pacheco, na esquina da Rua Buenos Aires, com imenso balcão em ângulo em torno do qual se acotovelavam cinco ou seis filas de compradores de medicamentos; adiante, a rua Senhor dos Passos sediava a Casa Leal, meu emprego à época. Hoje funciona uma estação do Metro. NA MIXÓRDIA DOS ROTEIROS A RUA DA QUITANDA Com uma passada só, pulei para os Roteiros mais antigos da cidade, arrodeados pela História da Fundação. Ruas do Ouvidor, Alfândega, Conceição, Primeiro de Março, Assembleia, do Carmo, São José, outra vez a Avenida Rio Branco, antes Avenida Central. Em verdade, fui ser contínuo da Sul América, situada entre às Ruas do Rosário e do Ouvidor, ligadas pela Rua da Quitanda, que antes se chamava Sachè. Praticamente ali se encontravam quase todas as agências de bancos e empresas comerciais. O movimento nesses Roteiros era realmente intenso. Tudo rolava ali por volta, desde o *Mercado Municipal, na Praça XV, hoje resta apenas a última torre, o Mercado Municipal restaurante Albatroz até os importantes 37
edifícios públicos do Paço, Igreja da Candelária, Câmara dos Deputados, Mercado das Flores, Ofícios de Notas, Varas Cíveis etc. etc. Fardado, cheio de papéis nas mãos, cadernos de assentamentos, vaguei pelo Centro da Cidade, com toda a agilidade dos meus disponíveis anos. Passei adiante toda a documentação devida. O Chefe dos Contínuos, cargo dos mais importantes da Companhia, tinha sido auxiliar direto do Fundador da Sul América, Antonio Sanches de Larragoite, que nunca mais *Prédio da Sul América na esquina das Ruas da Quitanda e Ouvidor voltou ao Brasil, mas não esqueceu jamais do seu direto auxiliar: deu-lhe uma função indiscutivelmente distinta – não podia ser substituído, nem demitido. Morreu, como viveu: no trato com seus comandados, a verborreia preciosa de sua “refinada” educação: ”leva isso, já, correndo, seu filho do Pintacuda!” E o cara metia o pé na estrada, sem vacilar. A passagem pelo corredor era território livre do Chefão, vedada a ouvidos incautos. Depois, veio a promoção, passei de fardado a paisano, com direito a uma toalha de mão sobre o espaldar da cadeira, a “mode” de permitir uma micção asseada. Reconhecido como civil, não mais fardado, comprovado por um teste datilográfico junto ao Diretor do Pessoal, deixei a farda pela gravata-sem- *A querida máquina Hermes 2000 paletó, diante de quinze cartas de duas folhas por dia como tarefa. Seguiu-se a carreira por durante seis anos. Promovido a taquígrafo, funcionário- volante para todas as seções, terminei com diploma de professor de estenografia. Saltei do gabinete de secretário de um mandachuva para a disputa, de lápis e caderno em punho, nos recintos de debates legislativos. Percorri desde câmara dos vereadores, assembleias legislativas, câmaras estaduais, até a Câmara 38
Federal dos Deputados. Também, diga-se, consegui aprovação em concurso do Senado - surrupiada pelos detentores da Casa mais alta, que simplesmente não atenderam à ordem de classificação dos candidatos. Em virtude disso, houve *Câmara dos Deputados um ligeiro pulo de cinco anos para fora dos Roteiros consagrados na Capital Federal: titular despojado do lugar que me era devido, fui parar por cinco anos em Casa Legislativa de outro Estado, em Niterói. Por conseguinte, em Roteiro de situação diferente. Mas retornei ao ponto anterior. O ROTEIRO DA PRAÇA QUINZE Colocou-se o taquígrafo, de volta, em pontuação primeira, como ficou inscrito nos Anais Legislativos de 1951. O Primeiro colocado. Assumiu com orgulho e pompa o Roteiro, que tinha ainda o brilho das eras tradicionais da fundação. Um colorido, portanto, embora vetusto, o mais esfuziante da Cidade. Tudo em volta soava como *Praça XV – Estação das barcas canção histórica. A extensa via que partia defronte da Ilha de Villeganhon (depois aterrada e ligada ao Continente) ia até a subida íngreme para o Mosteiro de São Bento. Recebia, do lado do mar, o aeroporto Santo Dumont, prédios do Ministério da Aviação, o grande Mercado Municipal, com suas duas portentosas torres, o prédio da Cantareira aberto indisfarçavelmente para o Estado do Rio de Janeiro (o outro, do mesmo nome, que foi engolido depois) e a Escola Naval. Pela margem defronte, alinhavam-se verdadeiros monumentos históricos, tão idosos quanto as barbas de 39
Estácio. Restaurantes instalados em prédios que até flechadas guerreiras sofreram, casas de sobrado habitadas por altos dirigentes, as primeiras construções oficiais de repartições públicas, ministérios, Câmara dos Deputados, o Edifício do Paço, depois Correios, A Praça Quinze, a Escola do Comércio, a Igreja do Carmo, o Banco do Brasil, a Alfândega... Cobriuse tudo isso com uma longa ponte de cimento armado que pôs sombra e confusão maior em todos os Roteiros em baixo. Essa grande via sofreu, mais tarde, uma total derrubada, abrindo caminho mais largo até a entrada da Avenida Brasil. Fez ele parte de todo o burburinho que adveio desse aglomerado de obras. ROTEIROS NO CENTRO Retorno, para matar saudade, ao meu tempo de menino, novinho em folha. Estreei minha fatiota, de paletó e gravata a postos, nas imediações das Ruas dos Andradas com Alfândega, na pracinha onde se exibia um pesado tronco para açoites. Putz!!! Que susto. Isso mesmo. Quando ali trombei, de corpo e alma, bem jovem, reneguei quase minha condição de encantado roteirista. Não esbarrara ainda com vestígios que me tivessem ferido tão fundamente. E devo ter contribuído furiosamente para *Largo de São Francisco a derrubada do vil “monumento”. Nem me lembro. Depois, jogaram-me na panela dos Roteiros de fazer fritura de adolescentes e nela me untei até sair croquete. No Largo de São Francisco, fundos do Teatro República e umbigo da Praça Tiradentes, além de ostentar uma bela faculdade, além do Parque Royal, iniciei logo meu curso de datilografia, então a matéria mais difundida entre milhares de
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pretendentes. Sua conclusão representava um salto para os escritórios comerciais, em ebulição na Cidade. Meu lanche era indispensável, naquelas tardes saudosas, ao lado do meu Irmão mais velho. O Mií tinha vindo também do trabalho de estafeta em Botafogo, coadjuvando-me sempre no indefectível café-com- leite-epão-com-manteiga. Enquanto eu catava diminutas peças nas gavetas de nossa loja, ele procurava, já no novo emprego, casas à venda nos bairros da Zona Sul. E as achava. Até que toda a nossa orla atlântica se tornou uma imensa muralha de condomínios. ROTEIRO DO LICEU DE ARTES E OFICIOS Dentro do Roteiro da Rio Branco - que antes se chamava Avenida Central e mudou por conta de obra do Barão - desenrolavam-se muitos outros mais, de igual importância. Desde a Praça Mauá até o Obelisco, quase todas as transversais possuíam significado próprio: a do Acre, lugar dos atacadistas empresariais: a Mairinque Veiga, sede da mais importante rádio do Brasil; a do Rosário, berço maior dos *Liceu de Artes e Ofícios fachada Avenida Rio Branco cartórios, onde se erguia uma das mais tradicionais igrejas da Cidade; a do Ouvidor, de intenso movimento comercial, que se podia medir pelos transeuntes em ritmo de frenesi; os cinemas Parisienses e Metrópole, outro no meio da Avenida, perto da Galeria do Comércio, o Pathe; o Bar Simpatia, dos refrescos, quase colado a Buenos Aires; e o Edifício do Liceu, formando um só quarteirão até o Largo da Carioca.
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ROTEIROS LÁ NO FUNDO DO CORAÇÃO Rolamos, Mií e eu, da infância no Canto da Marciana para o emaranhado Central da cidade. Em volta da Galeria Cruzeiro, inolvidável local de nossa juventude, cruzavam-se nossos mais queridos Roteiros: O LICEU, (toda a área hoje do prédio Avenida Central), de fundos para o Largo da Carioca; na base dele, em toda a extensão, lojas e o primeiro grande café-em-pé da cidade, em frente ao Clube Naval, na esquina da Rua Almirante Barroso; do outro lado do LICEU, confrontando a Galeria Cruzeiro, o cinema Eldorado e o café Nice, atraente ponto de encontro noturno de artistas e notívagos da cidade; mais para dentro da Rua Bitencourt da Silva, aí nesse meio, um quase restaurante oferecia sanduiches em armários-vitrines, com abertura para introdução de moedas, conhecidos como “automáticos”, novidade que atraía mais os estudantes do curso noturno do LICEU; na esquina, debruçado para o Largo da Carioca, onde davam a volta os bondinhos de Santa Teresa e se estendia um *CINEAC – Final da Rua Chile amplo estacionamento de carros, ao sopé da temida Polícia Especial (Morro Santo Antônio), o jornal O Globo, com oficinas e máquinas em plena atividade, já lançava suas manchetes, embora de repercussão modesta; o Tabuleiro da Baiana não havia ainda sido construído à entrada da Rua Senador Dantas; no meio do Largo, um relógio, chumbado no alto de um mastro, alardeava as horas para o formigueiro dos passantes embaixo; voltando à Avenida Central, renomeada para Rio Branco por honras do Barão, como já disse, cortava, lá em cima, as Ruas General Câmara e São Pedro, sacrificadas pelo rasgo da Presidente Vargas até a Praça da Bandeira; os restaurantes da Brama e da Antártica, à entrada da passagem em cruz dentro da Galeria Cruzeiro, voltavam-se como arquibancadas para a saída da Rua São José, que começava lá nas barcas da Cantareira, na Praça Quinze; não 42
existia ainda a travessia da Avenida Erasmo Braga pela Rio Branco, ela se esgotava na Rua da Quitanda; os cinemas Parisiense e Metrópole permaneciam bem juntinhos naquele ponto que era o restinho da Rua Chile, à esquerda; do mesmo lado deles, noutra galeria , no Cineac podíamos assistir, em rápidas assentadas, a “filmes-passatempo”, às historinhas cinematográficas e aos chamados jornais da semana; *Teatro Phoenix – Rua Almirante Barroso voltado para o Clube Naval, na calçada de lá da Avenida, o Automóvel Clube; entrando por essa Rua, a Almirante Barroso, Teatro Phoenix, o mais famoso da cidade, uma construção pomposa, de propriedade municipal, recebia oficialmente as melhores companhias teatrais. Enfim, o trecho de Roteiros aqui decantados com toda a emoção inseriu-se para sempre no peito do Carioca que o percorreu e jamais o esqueceu. Há de recordá-lo para sempre. Ali aportei, aos quatorze anos de idade. De manhãzinha, saltei do bonde na Galeria Cruzeiro. Fui exercer minha primeira função, de garoto da limpeza na Rua Senhor dos Passos. Retornei, à noite, para a vívida e fatal convivência no LICEU. Encontrava meu irmão na grande portaria. Tomávamos no térreo, Mií e eu, apenas um cafezinho com pão, porque a sopa-jantar de Mamãe nos aguardava em casa. De volta ao lar, às dez horas, dormitávamos no bonde até chegar nosso Ponto. Às vezes, não despertávamos do cochilo no tempo de saltar. Nunca mais deixei aquele lugar. Na frequência prolongada dele envelheci. Completei o curso de Contador, fiz teatro amador, namorei, quase casei... Até ele sumir do mapa, para ceder o espaço à Caixa Econômica, em operação não muito justificável, dizia-se até perniciosa. E ainda hoje, estremece-me o coração, ao percorrer aquela calçada. 43
Aí nos assentávamos meu irmão e eu, à noite, depois de uma sopa servida no térreo, para o curso noturno de Contador. Eu terminei o meu em 1945, e continuei ligado por toda a vida à instituição, tendo sido até participante do Grupo de atores do Serviço de Recreação Operária, que se apresentava em eventos artísticos patrocinados pelo Ministério do Trabalho. O nosso Liceu, depois de uma operação financeira escabrosa, deixou aquela área eminentemente central e transferiu-se para local, à época, talvez não recomendável. Na fronteira do “Mangue”, área historicamente reservada ao meretrício. A tradição escolar, porém, foi mantida pelos gestores e diretores, que permaneceram e mantiveram o nível técnico e moral do ensino ali ministrado. O Presidente da Sociedade Propagadora das Belas Artes, instituição que mantinha o Liceu e todas as escolas que se desenvolviam no feérico quarteirão da Avenida Central oficinas, estúdios de toda a espécie, redações de jornais, pequeno restaurante teatro, etc. – era também taquigrafo parlamentar e meu chefe na Câmara Federal, Professor Sylvio Viana Freire. Diretor da Taquigrafia e, mais tarde, com a mudança para Brasília, Diretor Geral dos serviços *Zona do Mangue – baixo meretricio que se retiveram no Rio até a mudança definitiva. O Liceu é uma lembrança inarredável da nossa formação estudantil. Jovens adolescentes, partimos meu irmão e eu para o trabalho, com carteira assinada e vestimenta de paisanos. Não mais os uniformes estudantis e as folgas escolares. Entramos fundo, primeiro, na função de estafetas, ou de simplesmente garotos de limpeza, depois com a obrigação imposta pelo nosso Pai de completar os estudos, no curso noturno. Foi uma barra o cumprimento desse programa. Mas chegamos lá. Ou melhor: eu cheguei. Meu irmão enamorou-se logo, emproou sua corveta para o cais antigo da vizinha. Aportou. Casou.
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De minha parte, eu deixei levemente tombada a árvore em que apoiava os pruridos amorosos que eu soprava para a janela alta da minha namorada. Também alta, ela. Mais do que eu. Preferi uma de altura mediana e fui estudar com ela, colocado na bancada logo atrás dela. Cresci. Tornei-me homem no Liceu de Artes e Ofícios. Corremos juntos escadas abaixo para os namoricos na Cinelândia, nos jardins da Glória, confrontamos juntos os livros da Biblioteca Nacional, corremos de mãos dadas as ainda desertas ruas da Esplanada do Castelo, comparecemos à Formatura, assistimos à missa formal quase de mãos dadas. Com mais um par de colegas, inebriados os quatros, compusemos um Quarteto do Amor, que parecia ir completar uma *Biblioteca Nacional história bem sucedida. Mas não foi. Ficou perdida aquela carteira de encosto colado na outra detrás, por onde passavam os nossos sussurros. Ficamos distantes. Não casamos, os quatro entre si. Mas, diga-se a verdade, não nos desenlaçamos de todo. Os dois rapazes tornaram-se compadres. Fizeram teatro juntos. Frequentaram aqueles mesmos bailes, sempre unidos. Cada qual para seu novo lado afetivo Contraíram as núpcias separadamente, quebrando as correntes do Quarteto. Envelheceram. Desapareceram no convívio dos sonhos. O Liceu, este ficou para sempre. Inolvidável.
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OS IMPORTANTES ROTEIROS DO CENTRO Não se desembaraçaram jamais. O do Largo de São Francisco abriu caminhos de batida datilográfica para o estafeta. O da Travessa do Ouvidor, de portas abertas, recebeu o contínuo, que já vinha de caderno e lápis em punho, e lhe deu diploma de Professor de Taquigrafia. O da Agência da Sul América, esquina de Avenida Rio Branco/Sete de Setembro, proporcionou-lhe posição de Secretário de Diretoria e empurrou-o, com toda a coragem, para o trabalho parlamentar. Cruzou o Roteiro da Praça XV, na marra, quase no desemprego, *A movimentada Rua do Ouvidor dentro de velhas e carcomidas barcas da Cantareira. Desembarcou na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro, recém-saída do longo regime ditatorial vigente no País, no balanceio da maré democrática que se iniciava. De 1945 a 1951, registrou, por ofício, as orações pronunciadas no púlpito da política fluminense, também conhecida como Estado do Rio. DE VOLTA AOS ROTEIROS DA ANTIGA CAPITAL Já tinha dado várias voltas em torno das casas legislativas federais, com aprovação oficial nos concursos, mas sem a consecução devida, por determinação dos promotores das provas. Ganhava-se, mas não se levava o lábaro da vitória, doado a outros imerecidamente. Na Câmara Federal dos Deputados, em especial, a ordem de classificação dos concursos passou a ser obedecida. E o grande Roteiro do Palácio Tiradentes ganhou evidência no Rio de Janeiro, ainda Distrito Federal. Passei a ser, naquela Casa, um componente de primeira linha. Durante dez anos. Muitos outros Roteiros medraram ao redor. O primeiro em importância foi o...
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ROTEIRO DO PALACIO TIRADENTES Já com toda a experiência profissional, completada por longos cinco anos na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro, como taquígrafoapanhador – aquele que primeiro registra o discurso e o repassa, traduzido, à revisão – atingi por inteiro o objetivo de todo o esforço de minha juventude: primeiro lugar, dentre centenas de candidatos. Desde que desmontei da bicicleta do armarinho, atitude pela qual minha Mãe rezava fervorosamente, em virtude do furioso transito corrente nas ruas do bairro, entrei na rota do estudo, por exigência, incentivo impetuoso de meu Pai. Empurrava-nos para o colégio noturno, como primeira obrigação nossa, antes mesmo de conseguir o emprego de que a Família tanto necessitava. Aos catorze (como preferia meu Pai dizer) anos, tomamos o bonde para a Cidade, com o dever inicial de nos matricularmos no Liceu de Artes e Ofícios. Vontade cumprida, que nos traçou o mapa da vida. Eu, pessoalmente, tomei o bonde para o Largo de São Francisco, e saltei na escola de datilografia. Abriu-se ali o meu rumo. O menino da limpeza na loja ganhou um “estatuszinho” que lhe deu acesso maior a maquina de escrever no escritório. Depois, um salto para o balcão da loja como vendedor. Mais tarde, outros empregos, novos estudo: taquigrafia aos quinze, professor registrado no Ministério da Educação, aprovação em concursos nas casas legislativas municipal, estadual e, sobretudo, a federal, onde me foi inicialmente negada a inclusão no quadro da carreira. Mas o destaque de primeiro colocado no concurso seguinte empurrou-me para o *Taquigrafia grande jardim corporativista – com distinção, ocupei meu lugar. De novo nos
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ROTEIROS DO CENTRO ...com um acentuado desvio para o ROTEIRO ALTIGEOGRÁFICO DO CASAMENTO Antes de retornar ao Rio de Janeiro, ainda Capital da República, casei. Realizado no começo da transferência para Niterói, as boda se firmaram durante o retorno à terra carioca, alcançaram sua elevação máxima ao fim dos anos Sessenta, quando se impôs a transferência para Brasília. Na fase de consolidação da mudança, esfriaram as relações conjugais, o *Bimotor da Panair do Brasil que aconteceu a muitos funcionários, obrigados à separação pelo desajuste dos seus interesses pessoais e familiares. Fui atingido certeiramente. Não houve como evitar a flechada, que veio direta ao alvo já na pista do aeroporto. Uma troca dorida de olhares tristes que se afastavam. Eu a percebi aturdida, sozinha no mundo, paralisada. Chorava. De dentro, pela janelinha da aeronave, eu olhava o vulto imóvel. Eu pajeava dois filhos de amigos meus, em transferência também, mas contentes com a novidade. O ronco dos motores não me sacudiu. Contido, olhei-a, espreitei-a. Não se mexia. Sofria. Silenciosamente, não sei se os meninos perceberam, vieram-me as lágrimas. Para onde me fui? Onde ficou ela? Sós até o fim. *Cantora Leda Barbosa
Nesta altura dos meus escritos, permito-me dar um salto adiante, intercalando aqui, intempestivamente, o doloroso... 48
ROTEIRO DO ADEUS ...diante do corpo inerte de Leda. Que me resta nesta hora? Rememorar? Sofrer a falta que já se faz tão grande? Suportar o corte de sua imagem na estrada da vida? Lamentar a voz que se calou, mas continua audível em meus ouvidos, e o será para sempre? Chegou a hora da despedida, da separação sempre adiada, e como proceder neste espaço que se afunda ? ROTEIRO DA RUA VENCESLAU BRAS Um dia, lá longe, ainda quase na adolescência, nos descobrimos. Era o dia 18 de julho de 1948. Soavam acordes no salão do Botafogo Futebol Clube, belíssima sede até hoje muito exibida na já mencionada Rua Lá Vai Um. Ela viera com uma amiga do bairro longínquo de São Cristóvão. A música nos embalava os sonhos juvenis e nós, embraçados, sentimos que o Amor chegava em forma de canção. Ela cantava no Rádio e logo me encantou. Acompanhei-lhe a carreira, a partir dali, tornei-me seu parceiro de shows, seu guarda de segurança, nas noitadas dos bailes, buscando-a pelas ruas desertas da *Cantora Leda Barbosa madrugada, em ônibus, em bondes, ou em marcha forçada a pé. Como prêmio, recebi o honrado lugar de seu companheiro nas viagens artísticas. Bons tempos de convivência. Longos. Inesquecíveis. Recolhi para sempre as primeiras memórias nossas: na boate do Lido, famosa pelos artistas que trazia da Europa e dos Estados Unidos, onde eu a buscava de madrugada junto com seu irmão Mirinho, exímio baterista e acompanhante noturno da irmã; no Beco das Garrafas, ali ao fim da Rua Ministro Viveiros, com três barulhentas casas noturnas que provocavam a ira dos moradores indormidos, a ponto de lançarem garrafas e copos em cima do grupo barulhento, causando até a morte de um; na boate da Sears, na Praia de Botafogo, de acesso mais popular por 49
sua localização no terraço de um grande shopping; e em todos os palcos noturnos da cena carioca. ROTEIRO DE SÃO CRTISTOVÃO Do meu bairro, em plena praia do Leme, atraiu-me por inteiro a Zona Norte, numa nuvem densa de sentimentos. Descaí enamorado no campo de São Cristóvão. A Leda pajeou-me até lá. Tinha servido antes de praça militar, acolhendo as Paradas que se apresentavam na cidade em datas de festa patriótica. Servia então de treinamento dos cavaleiros do quartel nas imediações. Cercavam-no umas pilastras de ferro ou bronze, ligadas em toda a volta por grossa corda e possuía um gramado todo verde, por assim dizer impoluto, uma vez que adubado só por animais de nobre cavalariça. Não se praticava ali o futebol popularesco. Nem os enamorados debruçados em volta nele penetravam. Havia uma vigília meio que *Dia de Para militar no Campo de São Cristóvão invisível na pequena arquibancada assobradada, de caráter militar. Fui namorar em São Cristóvão. Estendi-me pelos arredores, de braços dados, pois não. Por perto se encontrava a Quinta da Boa Vista, realmente do tamanho de uma quinta real, com seus portentosos aposentos localizados bem no centro. Constava que Dom Pedro Primeiro dominava ali como nobre garanhão, e até mantinha luxuosa cortezã, em mansão chique na rua defronte da grande residência. Conhecemos em detalhes todo o parque, com museus, lagos navegáveis, jardim zoológico, gramados para o descanso e a pousada dos namorados, bicicletas para aluguel e... saída para o outro lado do bairro, por onde, na volta, contornávamos a longa pista, agradavelmente tortuosa, até chegar à Avenida onde ela habitava. Rua Bela 737, casa X, com uma escadinha de pedra à entrada. No tempo, ainda antes da 50
construção da grande estrada por sobre a rua inteira, desde Botafogo, não havia a Avenida Brasil. Naquela residência, fizemos a festa de casamento, dois anos depois, com cerimônia principal realizada na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Glória. Habitamos primeiro um pequeno apartamento lá no nosso Canto da Marciana, onde nasci. Partimos depois para Copacabana, Bairro do Peixoto. Em seguida, para a Rua Voluntários da Pátria, bem do outro lado da loja em que exerci meu primeiro trabalho, o de ciclista. Naquele apartamento, vivemos juntos dez anos. Sobrevieram inesperadamente ventos mudancistas sobre nossas vidas. Fomos envoltos para o desconhecido. ROTEIROS ESVOAÇANTES Eis que, historicamente, cumpria o país sua trajetória. Tornou-se imperativa a transferência inscrita nos Anais da Pátria e a fazer-se então realidade. Ao Planalto Central! impôs a onda mudancista. Agigantou-se como um tsunami. Fomos jogados no turbilhão das indecisões. Famílias migraram, famílias não se arredaram, famílias se dividiram. Umas penduradas nos galhos (fica-queeu-vou ou vai-que-eu-fico), como não fincaram posição, caíram na *Parlamento Brasiliense – em construção realidade: o peso da separação, com visitas semanais, depois mensais, trimestrais... Aceitamos os fatos, foi a nossa escolha. Invadiu-nos a alma a angústia da distância. Como pudemos?! O amor não morreu, mas o tempo fugia. As cartas trocadas registravam o drama: primeiro, cheias de saudade: depois, molhadas de uma tristeza que nos afogava. A leitura delas, sob a sombra da solidão, levava ao pranto. Não havia como reparar a falta do aconchego. Nada a fazer. Sem apelo. A vida seguiu por longos dez anos, em visitas quase semanais, depois se rarefazendo na distância... Ao fim, percebemos que ocorrera o esfriamento fatal. O amor, talvez sem 51
se saber ferido, buscou no tempo um conformismo que, não obstante causar escoriações profundas, arrefeceu a dor. ROTEIRO DOS CARTÓRIOS Nova década, na volta, iniciamos, e rápido sucedeu a separação. Não compreendemos bem que vontade a comandou. Não havia dissenções profundas; talvez um assentamento, uma aceitação das posições impingidas pelo destino. E lá nos fomos nós parar, meio inconscientes, levados como que por um vendaval, na rua dos cartórios: papéis voando, conversas ininteligíveis, assinaturas arrancadas vivas, dilaceradas, do fundo do coração. No poste da esquina da Rua São José, sozinhos, após esse estrondo nos céus de nossa vida, nem sabíamos que rumo tomar, um diante do outro, atônitos. Para que lado girava a rotação da terra? O que de um cada qual levava? Ou deixava... Tudo ficou e muito mais foi junto. Carreguei uma incompreensão enorme do fato cível, enquanto o nome Fonseca, por decisão sua, dela não se descolou. Nem nossos cuidados recíprocos se apagaram. Na terceira década, que se estendeu à quarta, e além da vida, permaneceu até mais forte a amizade. Sem importar-nos com imposições e compromissos, nunca deixamos de nos ver, almoçar juntos, combinar encontros para bate-papos, matar as saudades acumuladas. E eu procurava sempre ao telefone, não a Leda Barbosa, mas a Fonsequinha, caprichando no diminutivo tão carinhosamente quanto mais lhe agradava. Poucas vezes a vi, depois que a marcha do tempo diminuiu nela seu ritmo. Mas ousei. Testemunhei. Ante olhares, nem sei se condenatórios, vislumbrava o seu a me procurar. Num piscar nos correspondíamos. Quando se lhe apresentava já a etapa final, nos falamos ao telefone. Parecia uma *Corcovado visto do Cemitério São João Batista despedida a declaração balbuciada, vinda do 52
seu tão íntimo: “Te amo”, disse. Dali partiu para o catre derradeiro, aonde inda fui acariciá-la. E agora? Numa espécie de viuvez, doloroso estado que me resta, lamento o nosso destino, que poderia ter sido ditoso, embora não fosse de todo infeliz. Não nos permitiu acarinharmos o Menino, que recusamos logo no primeiro ano de nosso matrimônio. Ele me apareceu na mente, um dia, nitidamente. Era bonito. Deus o tenha guardado em sua companhia, Fonsequinha. NO RASTRO DOS ROTEIROS Em verdade, após o retorno da grande aventura ao Planalto Central, restaram apenas vestígios dos meus passos no caminho. Fatos reais se interpuseram na tranquila marcha. Houve plena aceitação de muitos, mas uma grande leva deixou para trás, sem condição de retorno, todo o seu passado, todos os bens materiais e sentimentais que desveladamente construiu. Foram-se na corrente de patriotismo que se formara. Os que tentaram resistir à maré agarraramse às boias lançadas como ajuda e pendurados nelas ficaram para trás.
*Avenida Atlântica - Copacabana
O Horizonte clareou-se, vislumbrou-se um novo céu sobre a terra já agora povoada. Tempo de regressar, para os que não ganharam, ou não quiseram, nova cidadania. Alguns se esforçaram com todo o sentimento por manter a nova “nacionalidade”, sem abandonar a condição secular, embora perdedores, de históricos “federativos”. Retornaram, cedo ou tarde, à posição inarredável: cariocas da gema. Eta, Gente! A volta à cidadania primeira, legítima.
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ROTEIRO DO EGRESSO Eis-me, meio encanecido, no avião de regresso. O Aeroporto por onde preparei tantas escapadas abriu-se para a liberdade, o retorno definitivo. Parecia o óbvio, mas não era. Minha Família, por insistência de minha Mãe, que amava a nova Capital, opôs-se à partida, reteve-se mais alguns meses. Até que não suportou mais a divisão do nosso lar. Eu, de cara, entrei, regressei a minha terra. Já tinha mais ou menos promessa de trabalho. Pus a mão no portal da minha Cidade, varei o meu percurso natal, cruzei sítios da minha lembrança antiga, mas não me pude acomodar. Em virtude do que se houvera interposto. Mií, sem tomar partido, acolheu-me em seu... ROTEIRO DA GLORIA Mudara-se ele, pouco antes, para a Rua Benjamim Constant, no começo do Largo da Glória, a pra ali fui ter, como que fugido, o casamento meio desfeito. Nunca mais voltei a dormir em nossa alcova. Trouxe minha Mãe e minha Irmã para o Rio. Procurei nova moradia.
*Vista da Igreja da Glória
ROTEIRO DO LEME Achei para morar um beco sem saída. Parecia o da Marciana. Só faltava o cemitério atrás, porque muro tão alto possuía. Arrasou-se depois o muro, mas a rua continuou sem saída. O Beco da Roberto, da Roberto Dias Lopes. Tornou-se o centro do meu mapa na Cidade. Daquele lugar emanaram os novos empreendimentos da vida. Zarpei para atender a um convite, de Brasília ainda , no... ROTEIRO DA PRAÇA ONZE Na Rua da Conceição, esquina de Presidente Vargas. Fui nomeado Assessor geral da Campanha de Alimentação Escolar, do Ministério da Educação. Recém-saído do rigor do meu trabalho, anos a fio, na 54
Taquigrafia parlamentar, vindo de um ambiente, digamos, mais exigente funcionalmente, mas sem autoritarismos direcionais, esbarrei num campo de silenciosa ebulição. O comando era exercido de forma impositiva, mas sem estardalhaço. Havia mistérios supra administrativos que entortavam as linhas de comando. Inevitavelmente, um dia causaram impasse. Sem necessidade de explicações ou justificativas, o comando central, em ausência habitual da Cidade, convocou de longe toda a chefia para uma reunião. Sem qualquer aviso sobre a pauta de assunto, na data e hora marcada, ainda assim compareci ao circunspecto recinto. Sentei-me entre o Superintendente e sua secretária – a “chefinha”. Com meu dicionário debaixo do braço, - minha propriedade única declarada, exposta acomodei-me à grande mesa, já com a decisão despencando-me dos lábios: “Antes de tudo, queria apresentar, neste momento, pedido de demissão do meu cargo, podendo ou não continuar, conforme resolução dos presentes.” Ocorrida uma pequena pausa, levada a questão aos presentes, foi-me permitido prosseguir, pelos colegas ansiosos. Desabafei, entornei o caldo. Contive-me, amaciei o verbo e conclui. E, pois, já com a presença discreta do meu substituto, o General, Superintendente da Campanha de Alimentação Escolar, do Ministério da Educação, encerrou a reunião. E eu? Entrei de peito aberto na paisagem que já ante mim se punha, colorida e franca, sorridente e acolhedora, dos... ROTEIROS CENTRAIS Livre, rodopiei pela Presidente Vargas até a Cinelândia. Cortei a Avenida Passos em direção a Candelária, superei a Primeiro de Março, cumprimentei todos os entrelaçados da minha juventude, Rosário, Buenos Aires, Assembleia esquina com Rio Branco (onde se instalou a Agência Metropolitana da Sul América, meu vínculo derradeiro *Cinelândia no comércio antes de ingressar na área política), Sete de Setembro, São 55
José... Em cada ponto uma historia, em cada recanto uma lembrança. Troquei passos na escadaria do Teatro Municipal, ajoelhei-me ao pé da Biblioteca Nacional, sapateei na entrada do edifício Odeon, contornei a estátua “Não Sobe Mais Ninguém” (gozação carioca em virtude do excesso de personagens na base do monumento) em frente à Câmara de Vereadores, penetrei na Praça Paris, mon amour d’enfance, explodi de alegria! De novo livre, na convivência ampla dos meus mais íntimos sentimentos. Ah os passeios, após o expediente, com meu querido irmão, abraçados no ombro, sorriso aberto no rosto, gargalhada estrondando natural, a tarde sumindo no efêmero da praça. O destino? Escondido nas nuvens, ainda imperceptível, mas expectativa de novos caminhos rolando no ar. Em poucos dias, espocou um convite para o... ROTEIRO DAS LARANJEIRAS A Família, meu aconchego, manteve-se em Brasília, na esperança do meu retorno. Minha Mãe e minha Irmã rezaram fervorosamente alguns meses mais, na expectativa de que eu retomasse o caminho de volta. Mas me dominava ainda o amor ao Rio, que só arrefeceu anos depois, quando somei o sentimento *Palácio da Guanabara - Antiga sede da República da terra de nascença àquele advindo do assentamento pioneiro. Formavam o meu orgulho de cidadão, com registro formal em duas capitais. Entrou, pois, novo Roteiro em minha carta geográfica: o Palácio das Laranjeiras, que foi Sede da República brasileira, tendo acolhido o Governo do Estado da Guanabara, recém-criado com a transferência da Capital para Brasília. Logo em seguida, uniu-se o Estado do Rio, Capital Niterói, ao território da Cidade do Rio Janeiro, ambos com o mesmo nome. Juntou-se, assim, a terra carioca à fluminense, predominando a sigla Estado do Rio de Janeiro. Complicado, não? Mas, vamos lá, calma 56
no Brasil, eu sou é carioca, da gema, com todas as transposições que possam ter ocorrido nas águas mansas da Guanabara. Encontrava-me, pois, ao sabor da brisa de Copacabana, quando um companheiro de trabalho de Brasília, ex-assessor da Mesa da Câmara, convidou-me para o novo Governo que se formava, e lá fui eu secretariar seu Gabinete. Flechado em pleno voo rasteiro dentro do meu Roteiro à beira mar, aterrissei no belo jardim das Laranjeiras. Um marco histórico da Cidade, desde o primeiro Governo de Vargas. Residência oficial do Presidente, abrigou depois outros chefes de Estado - Lacerda, Dutra, Amaral Peixoto. De forma que minha sala de trabalho instalou-se numa esquina do prédio, na qual se acomodara Dona Santinha, mulher do Presidente Marechal Dutra. Tomara posse como primeiro Governador do Estado recéminaugurado o proprietário do jornal o Dia, jornalista e Deputado Federal Chagas Freitas. Parecia ter assumido eu, politicamente falando, um dos mais importantes Roteiros de minha vida. Não foi tanto assim. Introduziram-me numa rotina que eu ignorava inteiramente: a dos valores que compõem e exercitam o comando. Eram diferentes de tudo que eu até então conhecia. Iniciei-me no serviço público pela via do concurso. Sistema que sempre regulou nosso *Praia de Copacabana – anos 70 comportamento no exercício da função. Por este caminho, segui a minha carreira, obedeci aos seus mandamentos e dentro dele encaneci. Tudo se enquadrava na lógica do cumprimento do dever, segundo conceitos fixados. Raramente se feria a linha da moral estabelecida. Assim, de peito aberto, alcancei a posição de Secretario de Estado, particularmente junto ao Gabinete do Governador. 57
Até chegar lá, por três anos exerci minha função específica, mais dedicada à redação de documentos e correspondência em geral. Eu era, na Câmara, Taquígrafo Revisor de Debates. Haviam-me, pois, escalado pela especialidade. Mas, ao fim dos três anos, ou já depois de três meses escolhido, a burocracia ainda não me tinha chamado ao exercício da função. Houve um momento de riso, brincadeira do colega que me delegaria a função, e eu peguei meu dicionário, da minha algibeira pessoal fiz um bilhetinho ao chefe superior e me mandei. Não me descobriram, a não ser depois de o fato consumar-se. Saí aliviado do Roteiro. Restaram algumas pregas no esticar da peça, algumas tricas e futricas da juventude, mas o meu ferro de engomar, com têmpera certa, alisou. Não falo delas, porque desliguei totalmente a tomada. Levo a saudade do trajeto rotineiro: Praia de Botafogo, cinemas, Sears, Igreja Nossa Senhora da Conceição, entrada para Laranjeiras, Rua Paissandu, Largo do Machado, Cinema São Luiz, Estação Geral de Bondes, Catete... Tudo ficou para trás. Principalmente o breve... ROTEIRO DO CRISTO REDENTOR O Corcovado, na minha infância, era só um penhasco. Visto de longe, lembrava uma corcova que subia muita pontuda para um lado e quebrava a vertiginosa linha da montanha, formando para baixo um precipício pontudo, como um castiçal em pé a exibir seu lado santo. Essa linha da montanha não tinha em nossa infância a aura que a imagem cristã lhe veio dar. Andávamos pelos oito anos, meu irmão Mií e eu, quando a Revista da Semana, *Cristo Redentor em construção - 1930 que meu Pai toda a semana trazia do Banco onde trabalhava, começou a publicar reportagem de uma imponente obra de escultor italiano. Nós, no curso primário da escola pública, já líamos diariamente os jornais e as revistas do dia anterior, trazidos pelo Pai-porteiro, zeloso das leituras de seus filhos. Acompanhávamos semana a semana a chegada das sólidas peças do 58
Santo, se não me engano vindas da Itália, todas encaixotadas em armações de madeira - cabeça enorme, gigantesca, barbuda; braços compridos, prontos para a acolhida generosa; a manta abençoada, comprida até abaixo dos joelhos; a cabeça, o gesto, o olhar a intenção, tudo do benfeitor, do protetor. O portento dos órgãos era comparado com desenhos de caminhões, carros e casas mesmo, enfatizando as dimensões a que chegaria a estátua a ser erigida no cimo da cadeia. E nós fomos crescendo juntos. O passeio primeiro nosso era até as Laranjeiras, no meio do caminho para as Águas Férreas, que era um bairro de alta linhagem. Lembrava as estações de águas medicinais, como Caxambu, Poços de Caldas, São Lourenço... Recheada de ricas mansões, povoada de gente bem, famílias abastadas que lá iam passar grandes temporadas. Ainda hoje, embora talvez menos do que antes, considera-se um bairro privilegiado, pela vizinhança que ainda *Bonde Águas Férreas – Cosme Velho mantém, mesmo à entrada de populosas favelas implantadas para cima do largo do Boticário, por onde começou a pobreza a crescer. Laranjeiras, certamente advindo o nome das laranjas, fruta farta ali, ficava no meio do grande caminho para o Corcovado. Por ali, através da pequena via férrea, a grande população do Rio iniciou a sacralização do pico de nossa Montanha, hoje altar das mais sentidas rezas populares. No mesmo tempo, inaugurou-se a estátua, assentaram-se os trilhos e poderosa fé se implantou no peito do carioca. O povo até de joelhos sobe lá. Prostra-se contrito e reza. Minha Família, que por nossas leituras semanais acompanhava de perto a instalação do novo altar, de pronto encaminhou-se morro acima, já pelo trenzinho em alegre funcionamento. Tudo era alegre mesmo: meu Pai, de roupa domingueira, com paletó e gravata; minha Mãe, de vestido por ela mesma confeccionado, longo, chique, barrete de platina no peito; 59
nós, os três pimpolhos primeiro nascidos, anda sem o caçula, todos na mais chique indumentária infantil. Pedimos encarecidamente a proteção do nosso grande Santo para encontrar o valioso barrete de minha Mãe, mas foi difícil para Ele também – minha Mãe perdeu a joia. Nós, porém, não perdemos a graça. Valeu o passeio, inesquecível. Ficou para sempre, indelével em nossa memória. Crescidos, já a postos para o doce viver da juventude, voltamos algumas vezes ao íngreme caminho. Pessoalmente, subi a estrada uma ou duas vezes, já pilotando meu carro, para... (perdoai-me, Senhor) namorar, num recanto meu conhecido, abaixo dos pés agrados do Senhor. Remissão concedida... Certa vez, meu irmão e minha cunhada, mais eu e minha noiva, entramos os quatro numa cansativa aventura – subir desde a Rua das Laranjeiras, até o cimo, a pé. Pela estrada asfaltada, longe dos trilhos, andando e conversando, subindo e gravando retratos cheios de carinho para a *Bica da Rainha - Águas Férreas posteridade. Conseguimos! Vencemos a meta, sem cansaço. Continua lá o Cristo, hoje, agora, 13 de setembro de 2015, um dia chuvoso como foi o da inauguração em l930. Da Itália, o construtor do monumento pretendia acender uma luz, de saudação ao evento. Frustrou-se o propósito, porque se mostrava o céu tão fechado como agora, cinzento e molhado há vários dias. Nada se viu... ROTEIRO DA PAISSANDU Dele não exponho assentamentos, nem mesmo os guardei, porque representou uma parada brusca e inadequada no meu itinerário. Por contingências de peso contrárias ao meu modo de ver a vida, corto risco do meu relato qualquer referência a este Roteiro.
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O ROTEIRO DE VOLTA Mas, eis-me de novo eu em minha casa materna, em chinelos, de almoço e jantar encomendados. A Princesa Isabel. Minha Mãe reassumira a função de essencial moradora na chefia dos assuntos caseiros. Já entabulara contatos com as vizinhas mais próximas, com as quais trocava as ideias e informações rotineiras. Uma delas era mãe de uma filha solteira. Ora. Ela quis, precisava de uma ajuda para acessar o carro que comprara, antes de contratar um professor de direção. Bem, eu estava no lugar certo, disponível. As senhoras ajustaram por conta *Saída da Princesa Isabel para a praia em 1960 própria o encontro motorista-aluna. Deu certo, resultou numa aprovação no exame logo em seguida realizado. Daí até mais adiante, as relações dos condôminos tomaram novo rumo e chegaram Lá. Emitiu-se a declaração permissionária para eventos que tais. Realizaram-se, pois, pois. Concebeu-se assim uma aproximação, com todos aqueles reparos inerentes à parceria em distância: tu ali, eu cá, amanhã nos vemos. Mas, o andar de baixo, tem o outro logo em cima. Sabe-se o que se ouve pela proximidade e pelas circunstâncias locais. A aragem vigente nos corredores torna presentes todos os sons e veraz toda a convivência. Não se faz *Propaganda de carro DKV 1970 mister a colagem num só cenário. Donde se conclui que a moça evoluiu de senhora para você. Ou tu: queres dar uma volta no meu carro? Aceitou. Incluía o convite percursos maiores, afinal cumpridos pelos anos afora. Assistimos irem-se todos: nossas Mães, nossos irmãos, depois minha Irmã... Como não podia 61
deixar de ser, a paisagem familiar foi-se encurtando, aproximando as cenas, o panorama da Família. AINDA NO ROTEIRO DO LEME Nós procuramos preenchê-lo com todo o esforço nosso. Longe nos projetamos, e devagarinho, no até agora. Utilizamos os recursos de nós mesmos. Programas tranquilos, médicos atentos, preenchemos até faltas no ensino humanitário, criando um pensador completo para nossas ideias. Demos lugar primordial ao computador, em nossa casa. Entramos nele de corpo e alma, preferindo-o sobre todos os arranjos da lógica antigos. Aparece na tela toda a sorte de programas e informações de que necessitamos. Para sobreviver, não para ganhar vida – dom exclusivo do Criador, que nunca nos será dado conhecer. Aproveitamos como se fosse tudo, embora o essencial sempre nos falte saber. Aí, penetrou a sala sorrateiramente a novidade do século que eu mal compreendia, cujo manejo eu sequer adivinhava qual fosse. Procurei até em anúncios de jornal. Achei um curso de informática, que nem dava *Primeiras noções de informática aulas, apenas nos colocava, aos alunos, diante da aparelhagem (!) com o dever de copiar as instruções, como se fosse uma máquina datilográfica. Bom, eu arrasei, como datilógrafo que sempre fui desde menino. E fui embora, em busca de maiores esclarecimentos sobre o “monstro” preto pousado em minha mesa. Encontrei outro curso, administrado por dois jovens, que tinham comprado três máquinas novas para comercializar aulas, mas também não sabiam como fazê-lo e entregavam a tarefa para outro jovem, que, acanhado, executava separadamente a tarefa para cada um dos dez alunos do curso. Muito demorado o ensino. Sem aproveitá-lo, me mandei. Outro curso estava anunciado, com aulas nos porões de um edifício da Praça General Ozório. Corri para lá. Aí encontrei uma sala de 62
aula, com mesas, cadeiras e realmente uma professora. Mas eram instalações num subsolo apertado, donde que saímos para outro, um conjunto em Ipanema mesmo. Fazia parte, ressoava em nosso recinto de aulas um rangido renitente, causado pela preceptora ao sapatear, no vai e vem das aulas, sobre o extenso tablado em que se assentavam os móveis. Trazia uma graça à seriedade daquele ministério de avançada tecnologia. Ganhei ali capacidade para dedilhar o aparelho recém-lançado, e fui adiante em horas extras. Criei uma espécie de escritório dentro do meu ROTEIRO DO LEME Agora meu bairro definitivo. Sem parentes, só no pedaço de tempo e espaço que me restara, procurei aprofundar a amizade com o novo companheiro, de formidável energia disponível ao simples toque. Descobri e explorei o dígito, em teclas mais suaves. Enquanto a ocupação se dava, agora meio aposentado das rotinas do trabalho, alarguei a minha disponibilidade no Roteiro. Estendi o olhar para paisagem do Leme, outro Canto na minha vida. Lá na rocha iam bater as ondas, aonde chegava também o areal branquinho e cantante a cada pisadela nossa. Figuras da minha admiração desde jovem, antes mesmo do aterro pelo barro vermelho do Morro de Santo Antônio. Costumávamos quando meninos vir ao banho de mar na Praia do Lido e consequente estirada à Pedra do Leme, cuja maré se esticava até à *Praia do Leme 1970 murada do Forte e nos oferecia animados e barulhentos mergulhos. Agora, já assentado no acréscimo da linha d’água, que arredou para fora o mar, vim pegar, no peito, braços abertos, sem taboa, os jacarés que “boiavam” na rebentação. Com o tempo, vieram as pranchas, e afundaram o prazer do deslize na espuma da onda. Segui vivendo e envelhecendo. Os bondes, o ponto final deles no Leme, os condutores e motorneiros, tudo foi recolhido. O cineminha, no 63
primeiro quarteirão da Praia, teve a diminuta plateia reduzida e logo destituída pelo desenvolvimento voraz da construção civil. O pé direito dos imóveis alcançou nível de morros e montanhas, ceifando da vista as mansões e casas remanescentes. O Bairro povoou-se e em consequência se popularizou. Perdeu o seu tom aristocrático. A linha demarcatória do seu terreno, a Princesa Isabel, desapareceu com o crescimento. A duplificação do Túnel Novo, cavado sobre o clube de tênis ali instalado, causou um impulso populacional, advindo das duas mãos de trânsito. O espaço criado foi logo preenchido. Passou-se a atravessar do Leme para *Duplificação do Túnel Novo Copacabana num pulo de sinal verde, quase sem tempo de correr. Ficou irreconhecível como linha divisória dos locais, uniu-os. É tudo Copa. Os defensores, naturais do Canto do Mar, ainda persistem. Eu, por exemplo, não me ajustei: moro no Leme, na Roberto Dias Lopes, na fronteira. Ainda no Roteiro inicial, quis desenvolver-me no conhecimento da informática. Já dera os primeiros toques e retoques, queria manipular a máquina com mais destreza e largueza de ação, aproveitar-me dela com maior agilidade e proveito do que conseguira no manuseio datilográfico. Verdade se diga que, com minha tarrafa nonagenária, já vou alcançando algum resultado. ROTEIRO TRISTE DO LEME Certo dia, encontrava-me em casa, de manhã, Mamãe e Lourdes nas compras, entra minha irmã esbaforida, chorando. “Oh! Céus! Que foi Lourdes?! - Mamãe caiu na rua! Não pode se levantar!” A mana, de apenas “dez” anos, segundo levantamento médico, já no decréscimo de sua capacidade física e mental, atordoou-se completamente. Deixou minha Mãe caída na calçada e correu em busca do meu socorro. Encontrei-a já tombada sobre uma cadeira, completamente desapoiada. 64
Gemia de dor, em virtude de deslocamento do quadril. Dali para o Pronto de Socorro, depois sala de operação. Ao nos despedirmos dela, já noite, subindo na maca para a operação, chamou-me para perto, aspecto terrível de medo, perguntou-me como quem pede socorro: acha que está tudo bem comigo? Estava meio inclinada, já quase sentada, dominada pelo pavor. Tranquilizei-a, respondi que sim, já meio sem saber o que dizer ou fazer. ROTEIRO DA TRAGÉDIA Altas horas da noite, meu irmão Adélio assovia da rua no mais alto tom, faz-me um aceno. Desço correndo, vamos os dois para a Rua Bento Lisboa, o hospital do INPS, onde minha Mãe fora operada. Fizemos, eu e meu irmão, esse trajeto em completo silêncio. No corredor, ele fazia sinais para as enfermeiras no sentido de que se calassem, com o dedo cortando os lábios, como se fosse possível esconder-me o drama. Percebi o sinal de uma enfermeira no topo de uma escada e desabei, explodiu-me no rosto como uma bomba. Senhor meu *A tristeza baixando no Leme Deus! Como foi possível suportar? Para onde fui? Que fazer com minha irmã, uma septuagenária de “dez” anos de idade, já com propensão a desfazer-se de mais algum tanto de juízo? Não sei como pude encarar a realidade que se postou diante de mim. Como chegar à cena do féretro, cumprimentar amigos e parentes? Escondi-me, debrucei-me sobre a dor, não pude estancar as lágrimas, que me cegaram. Fugi. ROTEIROS TODOS EMBOLADOS Na grande planície da vida, perdemo-nos, minha irmã e eu. Para onde ir, quem procurar? Parentes, amigos onde estavam que não os víamos mais perto? Muitos passavam indiferentes. Outros condoídos, mas sem ação efetiva. Fomos do Rio para Brasília, retornamos sem achar eu um meio de colocar minha irmã no centro em que nascera com toda a 65
imagem infantil com que sempre posara. Procurei. Em Botafogo, busquei um casal amigo, que sempre se condoera do estado psíquico de minha irmã e tinha por ela muita preocupação. Ouviram-me como estranhos. Postei-me na posição de necessitado, quase implorei ajuda. Surgiu-lhes na face um vinco de indiferença, uma falta de compreensão da minha verdadeira súplica. Rolei mais alguns Roteiros, já desesperado, quando resolvi voltar ao quarto de minha Mãe, que estava desesperadamente de luto ainda. A cama na sua parede, defronte do leito onde dormia minha Irmã. Lençóis, travesseiros esticados, um crucifixo, do tempo de meu Pai, sobre o catre arrumado e vazio. Na casa toda um silêncio sepulcral, de velório ainda. Escapou-me quase um grito: Mãe volto pra casa! Retornei ao lugar de onde não devia ter-me afastado. Estava ali a parte sequente da minha existência. Digo, é aqui! Ressurge o ROTEIRO DA SERRA Voltei ao ambiente familiar, à casa do nosso último Beco, nossa guarida final. Sossegou-me o coração. Minha irmã e eu reentramos na rotina. Às vezes, tropecei, quase perdi o rumo, a direção mesmo. Lá do fundo do meu carro, de repente, no trânsito intenso da Rua Barata Ribeiro, seu peito estourou de saudade, gritava aos prantos ”Eu quero minha Mãe! Onde está Mamãe?! Mamãe!” E desatou em soluços que me invadiram a alma, tolheram-me o senso. Nem sei como encostei o carro, ou o que fiz para consolá-la. Chorei também. Órfãos inconsoláveis, perdidos na multidão. Reengrenei, passei a marcha, fui pra diante. Minha irmã, naquela altura, não se perdeu. Voltou a sorrir, a rir, a gargalhar, como era seu hábito. Aposentei-me de vez, livrei-me de de todas as responsabilidades profissionais. Fui viver da aposentadoria somente. Deu. Foi *Serra de Teresópolis da minha janela dando. De tal forma, que fomos parar em Teresópolis, em apartamento nosso, onde curtíamos os fins de semana. Minha irmã disfarçava-se de tal maneira que parecia quase normal. Sem deixar perceber sua deficiência, conversava animadamente 66
com todos os meus amigos da Casa do Hélvio, companheiro mais antigo da Câmara dos Deputados. A mansão onde morava, nas Pitangueiras, bairro privilegiado de Teresópolis, nos acolheu, a mim e minha irmã, como familiares antigos, com todas as mordomias. Eu ficava admirado de ver minha irmã de tal forma entrosada nas conversações que mal se percebiam suas falhas de comunicação. Meu apartamento, no último andar de um prédio, na chamada Reta, formada por três ruas, desde a entrada, no Alto, até a pracinha central, embaixo, vislumbrava defronte a Serra de Teresópolis, absoluto destaque da paisagem. Todos os picos e montanhas enfileirados ante nossos olhos embevecidos. Passávamos os fins de semana no tranquilo convívio da terra teresopolitana, respirando o ar de montanha que ela inteira esparzia. Tempo correu em alta velocidade para todos nós. Os vestígios de sua passagem roçavam nossos passos. Em meu companheiro de longa amizade apareceram os primeiros sinais da doença que o corroeu. Nem vale recordar o que adveio para nós. A fatalidade desceu sobre a mansão, uma nuvem escura lentamente arrebatou de nós o corpo do querido amigo e o levou para Cataguazes, o berço de onde veio. Alterou-se minha rotina semanal. Os fins de semana na Serra tornaramse escassos. A mansão do meu amigo esvaziou. Sentimentos arraigados desceram pela encosta, reinou a tristeza. Regressei com minha irmã à planície, ao apartamento em que nós, só nós, órfãos, moramos. VOLTA DEFINITIVA AO ROTEIRO DO LEME Descemos a Serra numa reta só. Minha irmã adorava a estrada. Em silêncio, observava atenta a paisagem, que voava em sentido contrário, do lado de fora, admirava as curvas e ultrapassagens. Enquanto eu quase dormia, não obstante o trajeto sinuoso.
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Uma falha grande do meu lado motorista. Cochilava. Numa dessas, já em baixo da serra, de volta ao Rio, acordei com a trazeira de um caminhão tocando no meu para-choque dianteiro. Íamos mais ou menos devagar, e ele, buzinando, dava uns arranques rápidos e parava, eu batia, ele se afastava um pouco, estancava um pouco novamente, eu encostavame a ele... Caramba! Me manquei. Não tinha ultrapassado o meu lado, seguia na faixassem sentir. Foi Deus que me acordou. Dei-me conta do desastre já quase ao ponto de explodir. Assumi a direção, desviei-me para a abertura de um posto. Uff! Religuei o motor com a intenção de vender o carro ao fim da viagem. Dormira já, antes, algumas vezes. Mas foi preciso ainda outro dramático aviso, em plena Avenida Nossa Senhora. Num sinal de trânsito, eu dormia à espera do verde. Fui alertado pelo buzinaço. Desandei. Tomei a decisão, naquela hora, de vender o carro, o que faria dias depois. Passei adiante, quase novinho em folha, o meu companheiro, um Monza vermelho. Nunca mais dirigi. Fiquei estacionado no meu cantinho de *Meu querido Monza vermelho rua, no Leme. Paradão. Já com profunda saudade do meu camarada de aventuras. O ritmo do trânsito amainou. Sosseguei o facho. Minha irmã e minha Mãe se foram e, com elas, desapareceram os ruídos de vida em nossa casa. O silêncio tomou volume maior. O vazio alastrou-se. Uma sombra, porém, restava, qual vigia do cômodo esvaziado: mudo e quedo, o meu computador, à espera dos dedos retidos na dor. Ressuscitei-o, remontei ali o escritório de trabalho, então quase abandonado no canto do meu quarto. A essência do meu ser desandou. Pessoas amigas me reabriram o caminho da informática. Num curso e na vizinhança, descobri a saída para os meus pesares. Voltei à escola, primeiro, e reassumi, em consequência, a bancada de trabalho em casa.
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Resta agora a expectativa. Como se dará o desfecho? Qual será a conclusão? O mistério ronda ainda hoje o... ULTIMO ROTEIRO Conto decifrá-lo um dia, entre as estrelas no céu...
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