Nota sobre a proposta da nova lei de adoção

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Ref.: Projeto de Lei da Câmara (PLC) 101/2017

NOTA TÉCNICA SOBRE A PROPOSTA DA NOVA LEI DE ADOÇÃO

A ALDEIAS INFANTIS SOS é uma organização humanitária internacional, presente em 135 países e territórios, participante ativa na construção e implementação de marcos referenciais internacionais, como as Diretrizes de Cuidados Alternativos e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), liderados pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Atuando no Brasil há 50 anos, já atendeu diretamente mais de 130 mil crianças, adolescentes e jovens na promoção e defesa intransigente dos direitos à convivência familiar e comunitária, em 22 programas, distribuídos em 12 estados da Federação e no Distrito Federal. Além de serviços de cuidados alternativos e fortalecimento de famílias, possui assento em mais de uma centena de conselhos oficiais de direitos das crianças e adolescentes nos três níveis federativos, tal como em movimentos e redes, sempre buscando incidência em políticas públicas. Ainda, com assento em dezenas de Conselhos de Assistência Social na esfera Estadual, Municipal e do Distrito Federal, contribuindo para formulação de políticas públicas, na implantação e implementação dos serviços socioassistenciais que contribuem para garantia de direitos de milhares de crianças, adolescentes, jovens, famílias e comunidades.

Como organização global que conhece profundamente a realidade brasileira, a Aldeias Infantis SOS vem se manifestar publicamente sobre o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 101/2017, aprovado pelo Senado Federal no último dia 25 de outubro: 1. Sua contrariedade em relação à ausência do devido debate com a sociedade civil durante a tramitação da referida proposição legislativa; e

2. Recomendação de veto a determinados dispositivos da proposição, sob pena de prejuízo irreparável aos direitos da criança e do adolescente, tendo em vista as razões abaixo elencadas.


Inicialmente, é necessário salientar que, embora se apoie a busca por maior eficiência nos processos de adoção em curso no país e se reconheça a existência de diversos méritos na referida proposição, causa espanto e preocupação que proposta de tamanha complexidade tenha sido aprovada com tramitação em regime de urgência e – mais grave – sem a realização de convite para participar do debate ou de nenhuma audiência pública, em qualquer das etapas do processo legislativo, para que profissionais da assistência social e representantes da sociedade civil pudessem aprecia-la e debate-la com seus representantes no parlamento. Tampouco foi submetida a referida proposta aos Conselhos Nacionais (CNAS e CONANDA), enquanto órgãos paritários, deliberativos e de controle social. A participação democrática no processo decisório não é apenas um direito, mas também fundamental para a qualidade das políticas públicas e, neste tocante, houve falha grave das instituições. Ademais, Aldeias Infantis SOS Brasil vê com grande preocupação a busca por celeridade em detrimento da qualidade do fundamental e imperativo acompanhamento psicossocial de adotandos e familiares, colocando em risco a primazia do interesse superior da criança e do adolescente, ferindo assim, o artigo 19, bem como os incisos IV, X e XII do artigo 100 do ECA. Priorizar a agilidade em processos complexos, sujeitos a traumas diversos, como são as adoções, significa ofensa direta ao princípio da prioridade absoluta da tutela da criança e do adolescente, sintetizado no artigo 227 da Constituição Federal, que aduz: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Neste sentido, causam especial preocupação algumas das disposições presentes no PLC 101/2017, as quais modificam a Lei nº 8.069 de 1990 – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) –, abaixo reproduzidas. Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. (...)


§ 10. Serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de trinta dias, contado a partir do dia do acolhimento.

Considera-se extremamente perigoso o dispositivo acima. O prazo de 30 dias para colocação, seja de bebês recém-nascidos, seja de crianças e adolescentes, no cadastro para adoção é muito exíguo diante das complexas realidades que envolvem os processos respectivos. Do mesmo modo, a intensa experiência acumulada pela organização signatária permite afirmar com segurança que é muito exíguo o prazo previsto no parágrafo 5º do artigo 166, que abaixo reproduz-se. Art. 166. .............................. § 5º O consentimento é retratável até a data da realização da audiência especificada no § 1º deste artigo, e os pais podem exercer o arrependimento no prazo de dez dias, contado da data de prolação da sentença de extinção do poder familiar.

Fica evidente, portanto, que acelerar prazos é preocupante devido às diversas carências presentes no sistema de Justiça nacional e é evidente que o relatório que deve acompanhar o processo de destituição do poder familiar exige uma análise qualificada para atendimento do melhor interesse da criança, as quais podem demandar prazos superiores aos que se estabelecem na proposição, uma vez que devem ser esgotadas todas as formas de investimento na família de origem e/ou extensa para que a família substituta seja indicada. Ainda, é importante ressaltar que, o artigo supramencionado descumpre os preceitos preconizados no parágrafo 1° do artigo 19 do ECA relativos à fundamentação técnica e à reavaliação periódica para a efetivação da possibilidade de adoção. Nesse mesmo sentido, o parágrafo 10º do artigo 101, pouco condizente com a complexidade dos processos de adoção, estabelece prazo de apenas 15 dias para propositura das ações de destituição do poder familiar, reduzindo o período dos trabalhos das equipes multidisciplinares e, portanto, as chances de reconstituição das condições de manutenção da criança ou adolescente em sua família de origem. Art. 101. ........................ § 10. Recebido o relatório, o Ministério Público terá o prazo de quinze dias para o ingresso com a ação de destituição do poder familiar, salvo se entender necessária a realização de estudos complementares ou de outras providências indispensáveis ao ajuizamento da demanda.


Além disso, é muito grave que a proposta relativize a essencialidade do grupo de profissionais a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, especialmente em momento de intensa redução de recursos no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Entende-se, portanto, que o parágrafo único do artigo 151, abaixo reproduzido, abre a possibilidade para ingresso no processo de adoção de profissionais sem o conhecimento e a experiência adequados para cumprir a contento as funções deles esperadas. Os processos de adoção conformam hipóteses de incidência de Proteção Especial de Alta Complexidade, conforme preconiza a Resolução 109/2009 do Conselho Nacional de Assistência Social, o que não pode ser avaliado por pessoas sem formação superior e específica para tal. Deve, portanto, ser admitida a nomeação de perito com comprovada competência técnica, com formação em Psicologia, Serviço Social ou Pedagogia, apenas até que as equipes interprofissionais judiciárias sejam efetivamente garantidas no orçamento do Poder Judiciário, conforme o disposto no Provimento 36 do CNJ. A manutenção do dispositivo abaixo é extremamente perigosa, ainda, diante da perspectiva real, e talvez até provável, de que se passem a verificar indevidas manipulações de processos de adoção.

Art. 151. .............................. Parágrafo único. Na ausência ou insuficiência de servidores públicos integrantes do Poder Judiciário responsáveis pela realização dos estudos psicossociais ou quaisquer outras espécies de avaliações técnicas exigidas por esta Lei ou por determinação judicial, a autoridade judiciária poderá proceder à nomeação de perito, nos termos do art. 156 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

Nesse mesmo sentido, também é arriscado o parágrafo 4º do artigo 161. Entende-se que esse dispositivo, abaixo reproduzido, igualmente abre a possibilidade de manipulações, e até de que se organizem esquemas eventualmente criminosos, para direcionar as conclusões de processos de adoção. Art. 161. Se não for contestado o pedido e tiver sido concluído o estudo social ou a perícia realizada por equipe interprofissional ou multidisciplinar, a autoridade judiciária dará vista dos autos ao Ministério Público por cinco dias, salvo quando este for o requerente, e decidirá em igual prazo. § 4º É obrigatória a oitiva dos pais sempre que eles forem identificados e estiverem em local conhecido, ressalvados os casos de não comparecimento perante a Justiça quando devidamente citados.


Além da violação dos princípios acima apontados, há risco de grave injustiça social caso seja sancionado o parágrafo 4º do artigo 158 do ECA, conforme reproduzido abaixo: “Art. 158. O requerido será citado para, no prazo de dez dias, oferecer resposta escrita, indicando as provas a serem produzidas e oferecendo desde logo o rol de testemunhas e documento. (...) § 4º Na hipótese de os genitores encontrarem-se em local incerto ou não sabido, serão citados por edital no prazo de dez dias, em publicação única, dispensado o envio de ofícios para localização."

No caso de famílias já em situação de exclusão social, não é razoável esperar que a citação por meio de edital seja suficiente para dar conhecimento à decisão do órgão público responsável, consistindo este dispositivo em verdadeiro rito sumário de extinção do poder familiar, violando-se o direito de defesa facultado aos requeridos que não disponham de condições materiais para serem localizados pelo Estado com maior facilidade. Por fim, esta poderá ser mais uma brecha ao criminoso comércio de crianças acolhidas, por meio do uso abusivo do procedimento de suspensão do poder familiar. Além de lidarem com a escassez de recursos e políticas públicas, os profissionais de assistência social serão pressionados pelos prazos exíguos da nova legislação, cujo objetivo de trazer celeridade ao processo de adoção não pode minimizar a complexidade da situação de crianças e adolescentes que estão em situação de vulnerabilidade social. Mas há que salientar que avanços no projeto, como por exemplo a inclusão do apadrinhamento como uma política pública para resposta à situação vulnerável de crianças e adolescentes, uma iniciativa exitosa das Aldeias Infantis SOS Brasil e demais entidades e organizações que atuam no tema. Por fim, além de recomendar à Presidência da República os vetos parciais aos dispositivos acima referidos e reproduzidos, pelas razões aduzidas, ressalta-se que qualquer política de adoção deve sempre ter como fundamento a participação efetiva da criança, com escuta qualificada, bem como a participação prioritária das famílias no processo de acolhimento excepcional e transitório e no processo de adoção, a despeito de condições socioeconômicas desfavoráveis, com a busca do interesse superior do adotando em detrimento de todos os


outros, conforme expressa determinação da vontade constitucional positivada no artigo 227 de nosso Pacto Fundamental. Por todo o exposto, recomenda-se veto parcial para excluir os seguintes dispositivos da referida proposição, relativos à Lei 8.069 de 1990, o ECA: 1. Parágrafo 10º do Artigo 19-A; 2. Parágrafo 10º do artigo 101; 3. Parágrafo único do artigo 151; 4. Parágrafo 4º do artigo 158; 5. Parágrafo 4º do artigo 161; 6. Parágrafo 5º do artigo 166.

ALDEIAS INFANTIS SOS BRASIL


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