Edição nº 1 • Maio 2018 • Setúbal €1,50 (Cont.)
persona
“Viver com medo da morte é tempo perdido”
Constelação Sónia
Violência no namoro
(In)Dependência às drogas
Ex atriz, modelo e escritora, Sónia Balacó demosntra o universo artístico dentro de si
“Hoje, sinto que sou mais forte”, revela Catarina Couto, aos 21 anos, depois de sofrer física e psicologicamente
Situação familiar conturbada levou Sérgio Albuquerque às drogas; hoje, encontra-se curado
“Cada rosto, uma estória”
@Personaips fb.com/Personapt revista_ persona_ips@gmail.com Campus do IPS - Estefanilha, 2910-761 | Setúbal
SUMÁRIO 6
– Constelação Sónia
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– “Um espírito livre”
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– Quando um relacionamento termina em agressão
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– Ligada ao YouTube
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– “Sabemos que vamos, não sabemos se voltamos”
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– Um estilo de vida chamado Escutismo
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– Jornalismo, a arte de contar estórias
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– “Éramos carne para encher os batalhões”
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– Agarrado ao volante
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– Uma vida marcada pelo desporto
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– Não apenas amor, mas amor à distância
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– Mãe 21
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– O cancro nunca foi um obstáculo
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– Uma paixão pelas profundezas
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– A vida de um prodígio da Comunicação
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– No amor não se escolhe, sente-se
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– “Sou mãe, estudo e tenho sonhos”
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– Diferentes perceções sobre a fé
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– “Destino Marcado”
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– O primeiro degrau para a dependência
EDITORIAL Diretor:
Design Gráfico e Paginação:
Ricardo Nunes
Alexandre Policarpo Ana Miranda
Tipografia rápida
Chefe de Redação:
Revisão de Texto:
Daniela Cardoso
André Dinis Fatumata Bari
Tiragem: 8 exemplares
Morada:
Agenda e Publicidade:
Periodicidade:
Campus do IPS Estefanilha 2910-761 | Setúbal
Jorge Rodeia
Impressão:
Trimensal
Definida como a identidade e aparência que cada pessoa demonstra ao mundo, Persona é o nome deste projeto, desta revista. E é isso que pretendemos dela, viajar até ao íntimo de cada um, conhecê-lo, a si e às suas experiências, e espelhar na sociedade as suas vivências, as suas alegrias e as suas dores. Cada estória é uma aprendizagem, uma lição e, acima de tudo, uma inspiração. Foram, no total, 3 meses de aprendizagem, de muito trabalho e muita dedicação por parte desta equipa, 6 rostos que têm também tanto para contar. Para além de serem os nossos primeiros passos no jornalismo, estes foram também os nossos primeiros passos na vida destas pessoas. Deixaram-nos entrar pelas portas das suas vidas, aprendemos com cada um dos entrevistados e conseguimos perceber que, apesar de muito tentarmos, há vivências que nunca conseguirão ser transmitidas a 100%, de tão intensas que são. Apesar de tudo isso, a nossa equipa tentou ao máximo captar a essência de cada estória para poder realmente inspirar os nossos leitores, a partir da verdade, da simplicidade e sinceridade. Desde a pessoa que superou o seu vício às drogas, até às pessoas que têm o seu passado marcado por vivências de guerra, todos estes rostos marcam a diferença e têm algo para contar. Estas estórias fazem parte de Persona e passarão a fazer igualmente parte da vida de cada um dos nossos leitores, marcando-os como nos marcaram a cada um de nós, membros desta redação. A partir do nosso trabalho de equipa, do nosso esforço e de todas as horas dedicadas a esta iniciativa, nasce assim, Persona, o nosso primeiro pojeto jornalístico.
Daniela Cardoso
revista_persona_ips@gmail.com
Redação Licenciatura em Comunicação Social
Alexandre Policarpo Design Gráfico
Ana Miranda
André Dinis
Design Gráfico
Copy Desk
Daniela Cardoso Chefe de Redação
Jorge Rodeia Fatumata Bari Copy Desk
Agenda
PERSONA
Constelação Sónia Ex. modelo, atriz e escritora, Sónia Balacó demonstra o universo artístico que existe dentro de si
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E
ntre modelo, atriz e escritora, Sónia Balacó mostra o verdadeiro significado de mulher de armas, que demonstra não ter medo de seguir os seus sonhos. Quando a questionamos sobre o seu futuro, a atriz afirma que quer, ainda, experimentar coisas novas, novos projetos nas áreas já conquistadas e descobertas em caminhos ainda não traçados, sempre no mundo das artes: “Estou sempre com vontade de fazer coisas novas, de descobrir como se faz, é sempre uma aventura.”. Sónia Balacó nasceu na cidade de Peniche, em 1984. Peniche tem 77,7 km², mas faltava-lhe algo mais, a cidade parecia demasiado pequena para a grandiosidade de Sónia. Era como que uma prisão intelectual para a alma artística que vivia, e vive, em Sónia: “eu tinha muita sede de experiências artísticas e não havia oferta nenhuma. Não havia exposições, havia cinema, uma vez por semana mudava o filme, teatro também não havia praticamente nada.”. Viveu a sua arte na solidão. Não havia oferta para a sua imensa procura. Também os colegas e amigos a deixaram viver esta experiência sozinha, pois não se interessavam pelo mundo das artes, o mundo de Sónia. Começou a sua carreira bastante nova. Iniciou-se como manequim aos 14 anos e como atriz aos 15, ingressando no mercado de trabalho bastante cedo. Ao contrário da sua infância passada em Peniche, o mundo da moda permitiu-lhe estar em contacto com diversas pessoas que a cativavam mais, que estavam em sintonia com o seu universo, que tinham os mesmos interesses. Sónia considera toda esta experiência fundamental para a pessoa que é hoje, e para o começo da sua carreira, pois foi este mesmo mundo da moda que lhe abriu portas para novos horizontes. Quando chegou a hora de se candidatar a um curso na faculdade, Sónia Balacó escolheu o jornalismo. Na altura pareceu-lhe a melhor opção, desde criança que queria escrever, “comecei a escrever assim
que aprendi a escrever, e nunca deixei de o fazer até agora. Foi a minha primeira paixão artística.”. Mas depressa percebeu que não se encaixava naquele ramo, “percebi que o que eu queria fazer era escrita claramente artística e a escrita jornalística é outra coisa”. A escritora quer expressar-se ao mundo com as suas palavras e pensamentos, coisa que como jornalista não poderia fazer, “o jornalista é um meio, não deverá existir sequer o papel do eu no papel do jornalista”. Acabou por desistir e seguiu o seu caminho na Faculdade de Letras. Apesar de Jornalismo não ter sido o destino final de Sónia, foi uma importante passagem na sua vida. Ter estudado na Escola Superior de Comunicação Social e ter passado exatamente por jornalismo, permitiu-lhe descobrir um novo mundo e um pouco mais de si. Fez imensos amigos, amigos esses com quem fundou
"O poema sou eu" uma companhia de teatro, a Há.Que. Dizê.Lo. Apesar de ter saído da escola, a verdade é que permaneceu no seu grupo de teatro por mais 5 anos. Entrou na escola com um propósito, saiu com outro, mais adequado a si mesma. De Peniche para o mundo, em 2008, Sónia Balacó decidiu viajar para Londres, à descoberta de uma nova realidade. “Foi um ir para fora que acabou por ser um ir para dentro.” Foram 5 anos passados nesta cidade que permitiram à atriz afirmar-se como mulher e profissional que é. Foi uma viagem à conquista do mundo e de si própria. Desde muito cedo que começou a trabalhar como modelo e atriz e sentia que precisava de provar, essencialmente a si própria, que era capaz de chegar a um sítio onde não era conhecida, e conseguir triunfar. Nesta viagem para o desconhecido, teve que ir atrás das oportunidades, teve que lutar por si e pelo seu traba-
lho, teve que encarar uma realidade completamente diferente: “eu comecei a trabalhar muito cedo e nunca tinha tido trabalhos noutras coisas e quando vais para o estrangeiro tens que fazer outras coisas, tens que servir à mesa ou trabalhar numa livraria”. A verdade é que as realidades entre Portugal e Londres chocam entre si, e chocam as mentalidades. E foi disso que Sónia Balacó se deu conta quando enfrentou toda esta aventura: “Aqui nós tendemos a ter medo de sonhar, a ser pequeninos. E lá não, ninguém está a pedir desculpa por sonhar, mas também não estão a pedir desculpa por estarem a tentar ser bons…e aqui existe muito medo de quem é bom e há um reinado da mediocracia, que devia passar para meritocracia. Lá, se és bom, és bom. E ponto final.”. Apesar de todo o sucesso atingido por parte da escritora, chegar até este patamar, nem sempre foi fácil. Durante o seu percurso, admite que as pessoas sempre a quiseram rotular, sempre quiseram limitar quem a Sónia era, como se não pudesse ser tudo aquilo que é: “Existe essa necessidade de colocar em caixas”. A ex-modelo é considerada pelas pessoas, de um modo geral, como uma mulher bonita. Esse facto, numa primeira análise positivo, transforma-se bastante negativo quando o analisamos de acordo com a nossa sociedade e o papel da escritora na mesma. “Eu sou uma ex modelo que é atriz e isso normalmente não acontece, não vês muitas pessoas a sair desse meio para o meio intelectual.”. Existe sim uma tendência para as pessoas julgarem o seu trabalho pela sua aparência e, igualmente, pelo meio que vem: “eu venho de outro universo”, “Já senti que tinha que provar mais, ao chegar a uma reunião, a um encontro com pessoas, ter que provar logo ali que sou inteligente, que pertenço.”. Apesar de todos os espinhos que encontramos nesta rosa que é a carreira de Sónia Balacó, esta afirma que devemos ser superiores aos pensamentos
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e opiniões dos outros e regermo-nos por aquilo que amamos, e seguir esse caminho. Devemos dar expressão à nossa individualidade, para que não a percamos. Foi em 2015 que a escritora abriu as portas para o seu mundo, para a sua Constelação. Constelação é o seu primeiro livro e é uma enorme partilha daquela que é uma pessoa que tem tanto para dizer, mostrar
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e ensinar. É bastante claro o facto de que este livro é um pouco da alma da escritora. Num dos seus poemas afirma “O poema sou eu”, levando-nos a pensar na responsabilidade diária que temos para com a vida, de fazer escolhas. Escolher entre o bem e o mal, escolher entre servir a luz, ou não. Para a escritora, devemos construir a nossa vida sabendo que estamos a construir
o nosso próprio poema, pois o poema não é somente a arte, o poema somos todos nós. Sónia Balacó é “uma miúda cheia de sonhos” e que não tem medo de lutar por eles. A ex modelo, a atriz e a escritora já conquistaram tanto, mas têm ainda um mundo inteiro por descobrir.
Daniela Cardoso
persona Capa em papel Couché 170g
O nosso nome
A edição da revista nascida em maio de 2018
Revista 210x297 (A/4)
São estórias de lutas, sonhos e conquistas que temos para contar
2 pontos de arame
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PERSONA
“Um espírito livre” Com apenas 19 anos, Daniela Rodrigues entrega-se à arte como se de um porto de abrigo se tratasse
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“U
m espírito livre”, é assim que Daniela Rodrigues olha para si mesma. Uma pessoa envolvida na sua própria arte, como se dela dependesse. Com apenas 19 anos e a estudar em Londres, na Universidade de Belas Artes, enfrenta as dificuldades de uma pessoa que seguiu o seu sonho num país estrangeiro. Vive com saudades da sua família, dos seus amigos, saudades da sua zona de conforto. O seu coração vive apertado a cada instante, porém, saber que estuda numa das melhores faculdades da Europa a nível artístico é a sua grande motivação. Motivação essa que a faz trabalhar mais e melhor a cada dia que passa. Conciliar os estudos e o trabalho num país que lhe era totalmente estranho, totalmente desconhecido, permitiu que descobrisse uma nova Daniela. Mas afinal, quem é Daniela Rodrigues? Uma artista a tempo inteiro que começou a pintar e a criar por necessidade, “Senti que era a partir da arte que me conseguiria exprimir quando já não cabia mais nada no meu coração”, afirma Daniela. Com estas palavras percebemos que a arte surge na sua vida como que uma extensão de si própria, como se o seu corpo não lhe chegasse para todos os pensamentos, toda a criatividade, toda a ansiedade. E desde pequenina que assim foi. Mostrou-se uma criança irrequieta e que queria permanentemente criar e explorar coisas novas, foi aí que ela percebeu. Foi aí que ela percebeu que a sua vocação seria criar. Criar novas obras,
novas pinturas, novos sentimentos, novas sensações. Estava destinada a viver numa permanente montanha russa de sentimentos, sempre em busca de mais. É na fase da adolescência que aparece na sua vida a Escola Secundária António Arroio. Aqui, teve oportunidade de explorar e descobrir uma nova versão de si própria. Esta mesma escola acompanhou todo o seu crescimento enquanto pessoa e enquanto artista, acompanhou uma longa jornada daquilo que seria a sua viagem artística pelo mundo, e por si própria, sendo também ela um pequeno mundo. Mas a verdade é que não foi a Escola Secundária António Arroio que lhe permitiu um voo mais alto naquele que é o mundo das artes e da auto descoberta. Aqui, a artista encontrou um problema. Não nela, mas no sistema educacional Português, afirmando que o grande problema deste é o sufoco. O sufoco que se faz sentir na vida dos estudantes, que se encontram sem tempo para todos os trabalhos, todos os testes, para manter uma vida social e, acima de tudo, sufoco até em tentar manter uma vida saudável, mostrando-se quase como que impossível. Por estes motivos e muitos mais, Daniela decidiu clicar no botão da pausa. Precisava de tempo, de parar e admirar. Precisava de descobrir o mundo e de se descobrir a si própria. E foi o ano anterior à sua entrada na faculdade que lhe permitiu fazer tudo isso. “…tive tempo para criar, para explorar, para amar, para sofrer,
para ler, para visitar, para sentir.”, teve tempo para ser, para crescer, e para amadurecer. Apesar de todas as suas experiências de vida, tudo o que já viveu, acredita que foi a arte a responsável pela sua descoberta individual. A artista ambiciona ajudar os outros da mesma forma que a arte a ajudou. Sonha em poder liderar uma galeria e ser curadora de exposições, realizar diversas atividades nessa mesma galeria que pudessem estimular e ajudar as pessoas que a visitassem, ajudar as pessoas a descobrirem-se, como ela se descobriu. Para Daniela Rodrigues, a arte é como que um porto de abrigo, “Quando pinto ou quando crio estou habituada a dar tudo de mim. Não tenho medo de me esconder por detrás de uma máscara ou não dar confiança, com medo de sair magoada porque a arte não me irá magoar, sou eu completamente nua sem receios”. “O meu maior medo é desistir”, afirma, quando questionada acerca de quais as suas maiores dificuldades e medos em relação ao futuro. É verídico que existem diversas pessoas que passam as suas vidas a trabalhar em algo que não gostam, a fazer um constante esforço, simplesmente para que possam sobreviver no seio desta sociedade. Ela tem medo que esse mundo fale mais alto e que ela própria desista de lutar, para poder sobreviver da arte, daquilo que tanto gosta. É este o seu maior conselho para as pessoas que veem na arte o seu futuro, “nunca desistir e ser persistente”, é o fundamental. No que toca à vida, quando lhe perguntamos onde é que se vê daqui a 5 anos, tem uma resposta firme, como se o seu futuro estivesse já bem delineado. “Espero que uma pessoa feliz com um amor bonito e com muita tinta à minha volta, mas sobretudo, com muito amor”, afirma. Daniela Rodrigues sabe que, apesar de todas as voltas que a vida der, a arte estará sempre com ela, nunca estará sozinha.
Daniela Cardoso 11
“Senti que era através da arte que me exprimia, quando já não cabia mais nada no meu coração”
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“Quando pinto, não tenho de me esconder atrás de uma máscara com medo de sair magoada”
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PERSONA
“Hoje, sinto que sou mais forte” 14
Quando um relacionamento termina em agressão Catarina Couto sofreu física e psicologicamente, mas foi forte e deu a volta por cima
Asalarial, tualmente, para além de igualdade espaço profissional e liberdade pessoal, as mulheres lutam pelo fim dos abusos causados pela desigualdade de género em relacionamentos, de cariz tanto físico quanto psicológico. Ainda que possam ocorrer separadamente, há mulheres que experienciam ambos ao mesmo tempo. Foi o que aconteceu há cinco anos com Catarina Couto, aos 16 anos de idade, que, além de ter recorrido a psicólogos para auxiliar a sua auto-aceitação, teve de ir três vezes a hospitais por danos físicos. Hoje, com 21 anos, Catarina ainda se lembra das feridas deixadas pelo seu ex-namorado, da mesma idade. Num dia, numa discussão acalorada, ele levantou-lhe a mão; mesmo sendo alertado por ela de que isso se tratava de abuso, o primeiro embate físico ocorreu. “Não me lembro de mais nada, só me lembro de acordar minutos depois com a ajuda do irmão dele, cheia de sangue e com o nariz partido”, recorda. Os seus treinos de basquetebol eram usados como desculpas nos hospitais para os danos físicos deixados – hospitais esses que a receberam por mais duas vezes. Mesmo depois de uns e outros pedidos de desculpas por parte do agressor, Catarina Couto confessa que eram usadas facas como ameaças, e que os ataques físicos não pararam, “pensei que fosse só uma fase dele; dias depois voltava tudo a ser igual”. Os abusos, porém, não se restringiam apenas ao físico. A vítima ainda se recorda de como o ex-namorado a abusava psicologica-
mente, “partia-me os telemóveis, rasgava-me as roupas que tinha para sair à noite, como os vestidos e as saias, não me deixava falar com rapazes a não ser ele, enquanto ele mesmo falava e estava com outras raparigas nas minhas costas.” Quando não suportava mais os abusos, Catarina Couto tentou fazer-se ouvir. Resultado? Ele levou-a para a rua, num sítio remoto, e agrediu-a fisicamente, uma vez mais. “Eu gostava dele”, é a justificação que Catarina encontra para o constante perdão. Quando Catarina sentiu que a situação estava a ficar fora de controlo e que sua vida podia estar em risco, confessou à sua mãe toda a situação, o que acontecia na sua relação com o seu ex-namorado. Esse foi o primeiro passo para tentar acabar com a sua relação. “Ele disse que eu estava proibida de acabar com ele e deu-me uma cabeçada”, relembra. Nessa situação em particular, um oficial da policia, que se encontrava de serviço, viu-os e levou a vítima em segurança. “Foi aí que tudo acabou, foi a última vez que nos falamos cara a cara.” Catarina foi para casa, tratou das coisas com a polícia e, mais uma vez, visitou o hospital. Como foi o sucedido foi considerado crime público, foi aberto um inquérito
“Pensei que fosse só uma má fase dele; dias depois voltava tudo a ser igual”
e ambos tiveram de depor em tribunal. O agressor não foi preso, apenas uma indenização foi paga a Catarina. Mesmo depois do término, os problemas não ficaram por ali, “ele ameaçava-me, mandava o pai dele atrás de mim, seguia-me até a faculdade”. Até a mãe da vítima foi envolvida nas perseguições, ao ponto em que foi necessário contratar um segurança para ficar à porta do seu trabalho. A polícia foi acionada mais uma vez, o indivíduo foi avisado e os infortúnios não se repetiram. Por precaução, Catarina mudou-se de casa e de número de telemóvel. Docentes da Escola de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, faculdade em que Catarina estuda Comunicação Social, deram-lhe grande apoio. Uma delas ajudou-a a contatar a linha telefónica de informação às vítimas de violência doméstica em Portugal. Catarina também teve ajuda de psicólogos para que aprendesse a gostar mais de si. “Hoje, sinto que sou mais forte”, revela. Ainda não namorou novamente, não por medo, explica, mas por falta de confiança, mas já atua como uma defensora da causa das mulheres, “costumo ir a marchas e palestras que têm como cariz ajudar mulheres que sofreram como eu.” Apesar de não ter tido a oportunidade de alertar alguma pessoa envolvida numa situação similar à que viveu, Catarina Couto diz-se pronta para denunciar outros agressores e ajudar as suas companheiras na causa feminina.
Alexandre Policarpo 15
PERSONA
Ligada ao YouTube Mariana Ferreira faz parte de um crescente grupo de youtubers, e mostra-nos a sua perspetiva
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AMariana pesar de ser uma pessoa comum, Ferreira, de 21 anos, leva uma vida dupla. Divide o seu tempo entre o curso de Comunicação Social e o YouTube, a maior plataforma de vídeos a nível internacional. Dois mil e dezoito marca o sétimo aniversário do canal de Mariana no reconhecido site norte-americano. “Há sete anos, este mundo ainda estava a ser descoberto em Portugal. Lá fora já existiam pessoas que faziam vida na esfera digital.” Embora tenha começado a produzir conteúdo sem o sonho de construir uma carreira, pois na altura era um cenário irrealista, o objetivo hoje é a profissionalização do seu canal. “Quero tornar o YouTube num projeto mais profissional para mim. Hoje é possível atingir esse nível, mais do que na altura que comecei.” O canal conta, nesta altura, com cerca de 30 mil subscritores, mas existirá uma fórmula secreta para o sucesso? “Manter a essência, a minha personalidade ao longo destes 7 anos. O segredo do sucesso é a consistência, a dedicação, estar ali por vontade própria.” O reconhecimento súbito destas novas estrelas da internet pode trazer tanto aspetos positivos quanto negativos. Apesar de já ter uma comunidade de seguidores, é de fora deste grupo de pessoas que aparecem os comentários destrutivos ou maldosos, ou como se diz na gíria dos internautas, “hate”. “Já fui vítima. Aprendi a não dar importância. Não é uma coisa que me afete particularmente.” Atualmente, tem-se discutido
muito sobre o papel dos youtubers na sociedade. Uns defendem que o YouTube serve apenas para divertir e distrair, os mais céticos afirmam que esta comunidade tem uma obrigação educacional para com o seu público. “As pessoas não me podem ver como uma professora, eu não tenho a obrigação de educar ninguém. O YouTube é quase como um programa de entretenimento, não necessariamente educativo. Existe espaço para tudo”. O negócio do Youtube globalizou-se rapidamente, mas mesmo com as proporções monetárias que este fenómeno tomou, ainda existem muitas pessoas com um certo preconceito, e que
“Quero tornar o YouTube num projeto mais profissional para mim” não veem com bons olhos quem faz da divulgação de vídeos o seu maior rendimento mensal/anual. “Ainda existe muito descrédito pelo trabalho que é feito por nós. As pessoas consideram que é uma coisa fácil. Não é. É um trabalho igual aos outros.” Depois de todo o empenho em idealizar e produzir os conteúdos do seu canal, Mariana gosta de coisas simples: “passear ao ar livre, descansar, ir ao cinema, sair com as amigas, viajar, ou não fazer nada, simplesmente”, como qualquer jovem desta faixa etária. Os sonhos
são o combustível da vida de um youtuber, um pouco a par de uma larga percentagem da sociedade. Mariana tem o sonho de alcançar o objetivo dos 100 mil subscritores, ainda este ano! “Embora falte muito, temos de ter grandes objetivos para termos motivação, estou a trabalhar para isso.” O ofício do YouTube, geralmente, é centrado apenas num indivíduo, nas suas vivências, experiências e sentimentos. Também o tópico do narcisismo já foi debatido em praça pública. “Não sou egocêntrica, nem narcisista, faz parte do meu trabalho.” Com o progresso do seu trabalho, a jovem criadora foi descobrindo a paixão pela comunicação. Hoje, na fase final da sua licenciatura em Comunicação Social, diz: “Adoro comunicar, falar com pessoas. Gostaria muito de trabalhar em televisão.” Mariana Ferreira é uma figura pública da internet, a maior parte da sua comunidade de seguidores sabe quase tudo o que há para saber acerca dela, no entanto, pode-lhes ter escapado um dos talentos da jovem estudante de comunicação. Para além de produtora de conteúdos audiovisuais, ela é… cantora. “Também gosto muito de cantar, mas nunca levei muito a sério, talvez um dia…” Multifacetada e multitalentosa, permanece a espera e a procura de oportunidades e opções de vida. “Gosto de fazer muita coisa. Estou recetiva a todas as oportunidades que a vida me proporcionar.”
André Dinis 17
PERSONA
“Sabemos que vamos, não se voltamos” Vanessa Pessoa e Rita Moura seguiram o coração e incorporam os Bomboiros Voluntários da Moita onde, mesmo com os constantes obstáculos, se dizem concretizadas
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armos a nossa vida pelos outros é um ato heroico. Quando se é bombeiro, assume-se esse risco dia após dia, noite após noite, turno após turno. Vanessa Pessoa, de 28 anos, entrou para os Bombeiros Voluntários da Moita aos 13, contudo, o que a levou a ingressar nesta profissão foi a sua paixão pela música. “O meu pai era o chefe da fanfarra, e eu ia ver os ensaios, comecei a gostar e entrei. Quando fiz 14 anos, o comandante disse-me que era obrigatório entrar mesmo para os Bombeiros. Ao início não gostei da ideia, depois mentalizei-me. Ao fim de algum tempo comecei a gostar.”. Por outro lado, Rita Moura, camarada de Vanessa, de 27 anos, apercebeu-se que queria seguir esta área já na faculdade. “A partir do momento que comecei a fazer cadeiras de socorrismo, no 3º ano, decidi que queria ir para os Bombeiros. Entrei em 2011 para a Salvação Pública, e estou há três anos na Moita.”. Não há dúvidas que, para ter esta profissão, é necessário ter uma boa estrutura psicológica que nos permita ter a frieza requerida para a execução de planos de prevenção e salvação. A família tem um papel preponderante na vida de qualquer pessoa no quartel. Mas como é que reagem os pais quando o objetivo dos seus filhos é entrar numa atividade com estes distintivos? “O pai reagiu bem, a minha mãe nunca pensou que eu fosse capaz de enfrentar
todos os perigos da profissão”, afirma Vanessa. Por sua vez, os progenitores de Rita foram mais rígidos face à sua ambição. “Nunca me deixaram ir para uma força militar. Hoje, o maior orgulho do meu pai é ver-me marchar.” O fenómeno é antigo, a discussão à volta do mesmo também, o machismo continua vincado na sociedade, e estende-se aos quartéis. A discriminação tanto chega por doentes do sexo masculino, como por colegas de trabalho. “Muitos homens tentam passar-nos por cima. Tentam inferiorizar-nos, questionam a nossa força e as nossas competências por sermos mulheres. Provamos o contrário, somos capazes de tudo. Temos de confrontá-los, assumir uma posição.” remata Rita Moura. Entre as inúmeras dificuldades deste ofício, chegam um consenso face às principais. “Trabalhamos muitas horas seguidas, temos poucos recursos e apoios do estado, baixa colaboração e compreensão das populações, e há cada vez menos voluntários. Para o que fazemos, somos mal pagos”, declara Vanessa Pessoa. Todos nós sabemos que a Comunicação Social tem uma missão fundamental, não só pela difusão de informação, como pela educação da sociedade. As jovens lamentam que só se dê destaque (por vezes negativo) aos Bombeiros durante os três meses do verão, quando os incêndios florestais ou quando catástrofes de outra natureza arrasam
o nosso país. “Quando lhes [Comunicação Social] convém somos bestiais, quando não, somos as bestas. O Bombeiro é sempre culpado de tudo. Só somos heróis quando somos necessários”. Apesar de todas as mazelas e de todas as barreiras que estes profissionais possam enfrentar, é obrigatório ser forte e persistente para voltar ao exercício no dia seguinte. Dizem nunca ter questionado a continuidade no quartel, enfrentando cada dia como um “recomeço”. Quando optamos por um estilo de vida, uma profissão, estamos sempre reféns das suas características, dos seus contornos, e a tudo o que isso implica. Ser Bombeiro significa estar em contacto direto com perturbações de várias escalas, lidar com o imprevisto, com a morte, e, em casos mais drásticos, com a morte. O profissionalismo tem de imperar durante os momentos chave. “Quando entro em “modo bombeira”, todos os doentes são iguais. Ao sair desse “modo”, assumo os meus sentimentos, a minha dor. Esta foi a vida que escolheram. Para trás ficam mais de 130 intervenções fora da zona de atuação da Moita, o que enche de orgulho e complementa o desejo de dever cumprido no seio destes profissionais que, tal como transmite um dos seus lemas – dão a sua vida, pela vida de todos.
Ana Miranda André Dinis
“Quando lhes [Comunicação Social] convém somos bestiais, quando não, somos as bestas. (...) Só somos heróis quando somos necessários” 19
PERSONA
Um estilo de vida chamado Escutismo
“Se não fossem os escuteiros, de certeza que a minha educação tinha sido muito diferente”
“S e não fosse os escuteiros, de certeza que a minha educação teria sido diferente, a pessoa que eu sou hoje, em grande parte, é devido a este movimento. Recebemos os ideais e os valores necessários para vivermos em comunidade.”, afirma Alexandre Saramago. Escuteiro desde 2004, Alexandre Saramago conta que a influência dos pais foi um fator determinante na sua decisão de entrar para este grupo: “Os meus pais foram escuteiros. Como havia um agrupamento perto da minha casa, decidiram inscrever-me.”. Mas não foi apenas a influência dos pais que o fez entrar nos escuteiros, o espírito morava já em si. Durante a sua infância, foram muitos os momentos em que viu amigos seus serem escuteiros, “fiquei sempre com o bichinho”, afirma, o que o levou a querer explorar esse mundo. Em Portugal existem mais de 70 mil escuteiros, a maior parte deles ingressam muito jovens neste meio, o que acaba por ter um papel importante no seu desenvolvimento enquanto cidadãos. É o caso de Alexandre. À medida que um escuteiro vai ascendendo e completando todos os escalões do seu percurso, vai acumulando cada vez mais responsabilidades. O objetivo é passar o testemunho aos mais novos,
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tal como lhes foi passado da primeira vez. “Nós fomos e somos educados aqui, recebemos valores dos mais velhos, com o passar do tempo, vamo-nos tornando nós os mais velhos, cabe-nos incutir esses mesmos valores aos miúdos.”, afirma Alexandre Saramago. Cria-se, neste movimento, uma herança de valores que, como o escutista afirma, educa e muda as pessoas para melhor. Embora haja a possibilidade de se criarem equívocos em
“Nós fomos e somos educados aqui, recebemos valores dos mais velhos” relação à formação e às ligações que os escuteiros têm com algumas entidades, e relacionarmos, de imediato, este movimento à igreja católica, não é necessário ser crente de nenhuma religião para ser escuteiro. No entanto, várias aglomerações, em Portugal, estão sob alçada da igreja, o que pode oferecer alguns condicionamentos aos seus participantes, como conta Alexandre Saramago: “Onde eu estou, os escuteiros católicos, somos muito ligados à igreja. A religião pesa bastante,
estamos muito condicionados ao que a nossa paróquia quer de nós. Às vezes não temos tanta liberdade.” O Escutismo é independente, na sua génese está a educação e formação de jovens. No nosso país há, também, vários agrupamentos que seguem os ideais de Robert Baden-Powell de forma independente, não impedindo as relações com todos os outros departamentos. “Temos atividades em conjunto, temos uma relação boa com eles, ao fim de tudo nós somos escuteiros, todos fazemos o mesmo escutismo, partilhamos os mesmos ideais.”, afirma o jovem escutista. Sabemos, agora, que quem está inserido neste “modo de vida”, como descreve Alexandre Saramago, é exposto a vários ensinamentos e a uma educação alternativa, não necessariamente melhor ou pior de quem nunca foi escuteiro. Mas, de facto, o que é que torna uma pessoa que participa nestas atividades diferente de outra comum? Segundo o escutista, “os ideais que nós seguimos. Tal como o nosso Fundador disse, temos de “tentar deixar o mundo um pouco melhor do que o encontrámos”, não estamos cá para revolucionar tudo, mas para tentar deixar a nossa marca.”. E é isso que Alexandre Saramago tenta fazer no seu dia a dia, deixar a sua
marca. “Tento sempre manter a paz na situação, não descarregar nas outras pessoas, não tentar meter maus pensamentos e más energias nas outras pessoas. Digo sempre “Está tudo bem, vai ficar tudo bem”, dou apoio, ajudo sempre quem precisa.”, afirma. Deixar o mundo melhor, por conta própria, é uma tarefa muito desafiante, quem sabe utópica. O jovem escuteiro e os seus companheiros nacionais e internacionais tentam elevar os ideias que lhes transmitem ao praticar boas ações nas coisas mais simples da sua rotina. “O nosso lema é servir. Quando a sociedade precisar, nós estamos lá. Desenvolvemos várias iniciativas junto das populações, com o objetivo de ajudar as pessoas, é essa a nossa motivação.”, afirma Alexandre Saramago. Uma instituição desta dimensão, que lida com milhões de indivíduos, muitos deles bastantes jovens, torna-se em inúmeros casos, como uma segunda escola, ou uma segunda família, por desempenhar funções semelhantes a estas fundações. Os es-
cuteiros criam as condições favoráveis à potencialização da imaginação, inteligência, perspicácia, astúcia, espírito de grupo, liberdade de pensamento, e a amizade entre a juventude, e não só. “Aprendemos muitas coisas, ajudamos pessoas, cuidamos do meio ambiente, respeitamos os animais. Damos grande importância a situações que as pessoas não dão, no geral. Os escuteiros fomentam o pensamento livre, crítico e o espírito próprio.”, afirma Maria Inês Silva, de 21 anos. Estudante de Direito, entrou para a mesma secção de Alexandre Saramago aos seis anos, para acompanhar a irmã. “A essência do escutismo é podermos ser quem nós somos realmente. Lá fora temos que esconder muito a pessoa que somos. Aqui dentro é impossível, é genuíno.”, afirma. Para a vida leva “a partilha, o fazer bem aos outros, acho que isso é o escutismo”. Partilhando todo este estilo de vida com Alexandre Saramago, também ela é capaz de ver o lado mais genuíno do jovem escuteiro, afirmando: “É muito trabalhador, e é muito preocupado com os outros, tenta dar sempre o melhor, é boa pessoa”. O escutismo tem o poder de fascinar os seus praticantes. Os que saem, geralmente, fazem-no por razões de força maior, contra a sua vontade, podendo vir, um dia, a ser o caso de Alexandre Saramago: “Neste momento não é uma opção, deixar de ser escuteiro. Adoro isto, adoro o movimento. Se essa situação
surgir é só mesmo porque a vida não me pode possibilitar estar cá.”, afirma o escutista. E, apesar das pessoas e o escutismo poderem caminhar por trilhos opostos, o espírito de escuteiro mantém-se no interior de cada uma das pessoas, “Nós temos um lema aqui, entre os movimentos todos, que é “uma vez escuteiro, escuteiro para sempre”, não é por deixar de estar fardado que nós deixamos de ser escuteiros. Não é por deixarmos de pertencer ao movimento que deixamos de ser escuteiros, os valores estão sempre cá, estão sempre incutidos em nós”, afirma Alexandre Saramago. Há várias estórias de pessoas que moldaram os valores do escutismo a si mesmas, e que o seu percurso de vida fica marcado por esta pertença a esta comunidade durante vários anos consecutivos. Abílio Marcos, Técnico Superior de Animação Sociocultural, de 42 anos, leva uma jornada de 34 anos de escutismo. Hoje é um dos responsáveis do movimento da Baixa da Banheira. Mas o seu percurso foi igual ao de todos os demais. “Entrei com 8 anos, fiz o percurso normal. Aos 20 iniciei a caminhada para chefe. Fiz uma formação, e a partir daí nunca mais parei.”, conta Abílio Marcos. O percurso anual dos escuteiros é planeado rigorosamente em Setembro. Aí traçase um plano de atividades para todos os fins de semana do ano. “Definimos quais são as atividades que queremos desenvolver e, mais importante, quais são os objetivos e as metas que queremos atingir com as mesmas.”, afirma o escutista. Nós, o outro, a comunidade: estes são uns dos enfoques do escutismo. Ao longo do percurso que cada um faz de farda vestida, vão-se criando ligações com os colegas que, também, é um dos fatores que torna esta aventura aliciante. “O que me prende cá é o estilo de vida, as experiências vividas, e, principalmente, a amizade que fica.”, afirma Abílio Marcos.
André André Dinis Dinis Daniela Cardoso Daniela Cardoso 21
PERSONA
João Diogo
Jornalismo, a arte de contar estórias Os papéis são invertidos e, desta vez, os jornalistas são os protagonistas
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Joana Henriques
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specialistasem contar estórias, três jornalistas portugueses, de longa e de curta data, de vários meios de comunicação, desta vez têm os papéis invertidos e em primeiro plano contam as suas trajetórias de vida. Dos três jornalistas em questão, apenas João Nunes, de 28 anos, já sonhava com o jornalismo antes mesmo da época em que se deve pensar em exercer uma profissão. “Quando eu andava na escola primária, eu sentava-me muitas vezes na secretária da professora e fazia de conta que estava num teleponto”, relembra. Apesar de ter começado, há seis anos, a sua profissão na rádio, trabalha atualmente como repórter na televisão pública portuguesa (RTP). Os outros dois precisaram de certas mudanças para, enfim, se encontrarem profissionalmente. João Diogo, desistiu da Licenciatura em Direito no terceiro ano de curso para começar a trabalhar no jornal O Dia, aos seus 21 anos, devido a mudança do regime político em Portugal. Joana Henriques, frequentou durante dois anos o curso de Comunicação Empresarial, antes de se mudar para as Ciências da Comunicação. “Percebi que gostava mais de jornalismo”, explica. Hoje em dia, trabalham, respetivamente, na RTP, RDP ÁFRICA e no jornal Público. O jornalismo de imprensa sempre foi a primeira opção de Joana Henriques, diz que sentia-se mais à vontade a crescer. Aos 24 anos, começou a estagiar no mesmo jornal onde hoje trabalha, na área da cultura. Como já tinha estagiado anteriormente no jornal Já, descreve que a experiência foi ainda mais estimulante, “fiz coisas maiores, foi desafiante com alguma dose de persistência e resiliência.” Um dos trabalhos que se orgulha de ter feito recentemente foi uma série de cinco reportagens, de variados temas, ao longo de cinco semanas, o que a permitiu ter uma fotografia e paisagem incompleta das desigualdades em Portugal, mas muito significantes. Realça que não se deve desistir logo no início da profissão quando as coi-
sas correm mal, porque no início vai correr. Foi essa mesma persistência que levou João Diogo a ser o jornalista que é hoje. Para ele, o Jornalismo aprende-se com a experiência, e não por cursos de graduação. “No início, senti algumas dificuldades, o normal de uma nova profissão”, afirma. Essa experiência foi adquirida principalmente na rádio Renascença e na RTP, empresa na qual trabalha até hoje. Em concordância com a bagagem de conhecimento adquirida pelo seu colega de profissão, João Nunes diz que, “acho que a rádio é a maior escola que podemos ter, de longe”. Esse foi o meio no qual começou a sua carreira, e as diferenças desse meio para o que trabalha hoje são claras para o jornalista. “Na rádio, tens de ser o olho das pessoas, na televisão, és apenas um complemento do olho, pois a imagem
“A minha profissão tem a vantagem de ser algo diferente e estimulante todos os dias” – Joana Henriques já está ali”, explica. Tal imediatismo é um dos principais desafios para Joana Henriques no exercício da sua profissão. “Há pouco tempo para ler notícias, há cada vez mais o jornalismo mais rápido e superficial e há maior preocupação com o soundbite (frase de impacto forte) do que com analisar e explicar a realidade”, constata. João Nunes vê esse fenómeno como inevitável e afirma que “a função do jornalismo nesta era da rapidez é cada vez mais necessária, porque cada um tem acesso ao facto e à notícia, mas a forma como é trabalhada deve ser alvo de algum cuidado.” De toda maneira,
João Nunes afirma a necessidade de o Jornalismo ter o seu espaço dedicado à investigação, “fazer boas reportagens, saber contar estórias interessantes que as pessoas gostam de conhecer.” O jornalista exemplifica que, em determinada cobertura de um jogo de futebol entre uma equipa da primeira e terceira divisão, experimentou não apenas se focar nos jogadores enquanto profissionais desportivos e aos modelos clássicos de narrativa desportiva, mas tentou perceber os factos dos mesmos num ângulo maior e soube que um jogador quase perdeu um jogo, porque tinha sido impedido pelo patrão de sair mais cedo do trabalho. “Essas estórias por trás dos acontecimentos enriquecem o Jornalismo e ajudam a contar a verdadeira estória”. “Foca-se muito nas hard news (notícias pesadas) e não tens capacidade para ir além disso”, completa. Já para o João Diogo, o que falta ao jornalismo, atualmente, é a falta de formação em determinadas áreas, “as pessoas hoje em dia são postas a trabalhar sem um período de preparação, antigamente era preciso um período de seis meses para uma pessoa aprender a falar na rádio, agora isso pode acontecer no segundo dia de trabalho sem formação”. Já na visão de João Nunes, ainda que focado no desporto, este não vê a especialização como fundamental ao trabalho jornalístico. “Como qualquer colega meu aqui na RTP, acho que, se precisarmos de fazer alguma outra coisa, faremos”, afirma, sem deixar de apontar que o estudo é fundamental de toda forma. João Diogo ainda se mostra crítico em relação à forma como os jornalistas mais novos encaram a profissão. Diz que “parecem militantes de uma determinada causa, deviam se limitar a apresentar a notícia sem dar opiniões.” Na esfera televisiva, diz que “o jornalismo não pode ser a repetição das mesmas notícias de hora a hora, pois acaba por ser cansativo, repetitivo, retira a importância da notícia que se pretende transmitir.” João Nunes já é mais aber-
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to a essa situação e percebe que não há uma simples repetição para um mesmo público, mas para públicos diferentes que merecem, da mesma forma, ter acesso à informação que lhes é disponibilizada. Joana Henriques realça o facto de poder conhecer novas realidades devido à sua profissão, o que naturalmente, de forma espontânea, seria difícil de acontecer. “A minha profissão tem a vantagem de ser algo diferente e estimulante todos os dias”, afirma. Diz que o que seria ainda mais estimulante para si é um dia desenvolver um programa que permita dar formação aos jornalistas afrodescenden-
tes e de origem cigana, porque “falta diversidade nas nossas redações e é preciso criar oportunidades”. Além do gosto pelas reportagens, o que João Nunes espera é que a precariedade na profissão do jornalista, relacionada ao salário e à sobrecarga de trabalho, seja superada. “É uma conjuntura que espero, mesmo, que seja alterada o mais rápido possível”, reitera e completa que “gostava de ter melhores condições em termos contratuais”. Tem o objetivo de “talvez, algum dia, narrar um Mundial ou uma Liga Europa para a RTP”. De uma maneira geral, os jornalistas destacam que o jornalismo
devia focar-se na qualidade. Enquanto que João Diogo se preocupa com a necesssidade de os jornalistas se fixarem em produzir algo com qualidade, Joana Henriques reitera que “no jornalismo devia haver mais tempo para desenvolver as reportagens e espaço para as contar, a função do jornalismo é isso”. Mas, todos nós contribuímos para essa falta de tempo com as redes socias, remata. João Nunes realça que “o jornalismo é um bocado saber, com rigor, contar uma estória”.
Alexandre Policarpo Fatumata Bari
“O jornalismo é um bocado saber, com rigor, contar uma estória” – João Nunes
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PERSONA
“Éramos carne para encher os batalhões” Dois de muitos, Adelino Silva e António Caldeira, veteranos de guerra. São os rostos do Ultramar
António Caldeira
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onga é a história deste belo país à beira-mar plantado. No entanto, nem sempre a felicidade e a glória andaram de mãos dadas com os portugueses. Um dos capítulos mais negros ficou marcado pela ditadura, o Estado Novo, e a Guerra Colonial, que despontou em 1961 e só viria a cessar quando se deu a Revolução de 25 de abril de 1974. Quando Adelino Silva, de 63 anos, entrou na adolescência, já era evidente o cenário de guerra nas colónias portuguesas em África, em parte, abafado pelo regime. “Voluntariei-me para a Marinha aos 17 anos. Era muito jovem, não sabia muito de política. Os problemas eram escondidos da população.”. Com mais um ano de vida, aos 18, António Caldeira alistou-se no serviço militar obrigatório, em 1965. Recorda a quantidade impressionante de indivíduos que estavam destacados para este conflito. “Tudo o que era homem estava lá, até deficientes. Esses eram os ‘básicos’, éramos carne para encher os batalhões.”. Abandonar o país e ir para a guerra era um procedimento vulgar. Só quando se integrava as Forças Armadas é que se ganhava a noção do que realmente se passava nas províncias ultramarinas. “Ouvia-se, de vez em quando, falar que fulano tinha ido para Angola, Moçambique, mas nada de mais. Antes de entrar não sabia quais as dimensões daquela Guerra.”, afirma Adelino. Vida, família, projetos de futuro para trás, partiram para África. Na bagagem, para além dos mantimentos necessários e das armas, levavam a incerteza daquilo que iriam encontrar e se conseguiriam regressar à Pátria Mãe. Moçambique recebeu António em fevereiro de 1966. “Sen-
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“A guerra ainda me afeta” tia-me preparado, mas com medo, óbvio. As balas que disparei… pensava muitas vezes no que seria levar com uma.”. Bissau, a capital da Guiné, foi a casa de Adelino Silva durante 13 meses. O medo parece ser um tabu para si, e a sua fragilidade manifesta-se durante o retorno mental ao passado. “Não se fica com medo… chegas a um ponto que se torna banal, tiros para um lado, tiros para o outro, é o teu dia a dia”, recorda enquanto o verde dos seus olhos se inunda de lágrimas, e um silêncio “ensurdecedor” provoca um ruído imenso em toda a sala. Ambos combatiam uma guerra que não era sua, segundo Adelino Silva, “interessava a alguns países, exemplo da Rússia que fazia negócio com as armas (Kalashnikov).”. Quando o mais fácil seria desenvolver o ódio pelos habitantes das zonas de conflito, os antigos combatentes portugueses afirmam o inverso. “Nunca tive ódio deles, nem da cor, eu lutei ao lado de muitos negros, vivi com eles. Tive uma mulher e um filho lá”, revela António Caldeira. Por outro lado, Adelino, que demonstra o mesmo respeito pelos africanos, assistiu a episódios de alguma agressividade dos seus colegas para com os mesmos. “Tinha pena dos pretos. Tentava que não passassem frio, no entanto, haviam colegas meus da lancha que os tratavam ao pontapé…”. Todos os conflitos armados ficam marcados pelo vermelho do sangue derramado, e nunca é fácil lidar com os sentimentos da perda de alguns irmãos de armas. “Deixei lá quatro camaradas. Morreram à minha frente. Ficou lá um pouco de mim”, refere António. Depois de vários gatilhos premidos, incontáveis mortes
por esses gatilhos causadas, chacinas, explosões, campos devastados, chegámos ao dia 25 de abril de 1974, o dia em que Portugal voltou a recuperar os valores há tanto reclamados pelos seus antepassados. Depois duma crispação de 13 anos, a descolonização foi rápida e pacífica, o que espelhou as verdadeiras motivações das tropas portuguesas. “Soube-se do Golpe de Estado. De seguida ordenaram a descolonização, correu tudo tranquilamente.”, explica Adelino Silva. A estrutura familiar é, ou deveria ser, dos alicerces mais fortes que o ser-humano tem. Seja no melhor ou no pior dia das nossas vidas, o que mais queremos é chegar a casa para junto de quem nos conforta. O que fazer quando estamos numa guerra a mais de três mil quilómetros de casa? Como dois jovens na flor da idade que eram, o maior desejo ao chegar a casa foi construir família. “Matei saudades da família, casei com a minha mulher e tive as minhas filhas.”, afirma António Caldeira. Adelino Silva chegou a Portugal guiado pelo mesmo sonho. “Queria construir uma família, e fi-lo.”. Uma guerra desta dimensão não se esquece facilmente, são evidentes as mazelas físicas e psicológicas que deixaram na maior parte dos combatentes. O arrependimento não faz parte da história das suas vidas. António afirma, “O que se passou lá ficou lá”. Adelino diz não querer “apagar da memória” estes dias, mas a dor penetrante no seu olhar não consegue esconder o poder que estas lembranças têm na sua vida. “A guerra ainda me afeta”, diz entre lágrimas, sem conseguir aprofundar mais.
Ana Miranda André Dinis
“Ouvia-se, de vez em quando, falar que fulano tinha ido para Angola, Moçambique, mas nada de mais. Antes de entrar não sabia quais as dimensões daquela Guerra” – Adelino Silva
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Agarrado ao volante “Conduzir é uma das minhas maiores paixões”
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Sestrada ão quilómetros e quilómetros de em que a única companhia é a rádio. Desde pequenino que Jorge Rodeia tem uma paixão pela condução, conta, que desde os seus 10/11 anos a sua maior loucura era conduzir o trator do seu pai e poder ajudar todos os seus vizinhos nas tarefas agrícolas nas quais pudesse conduzir, mesmo para isso tivesse que faltar à escola. “Os tempos eram outros, podia conduzir à vontade nos terrenos que a polícia não chateava ninguém” é desta forma que explica esta sua paixão prematura que nos dias de hoje seria mais complicada de se desenvolver dada a legislação existente. Toda a sua vida foi, como o próprio descreve “ agarrado ao volante” . Ainda que tenha trabalhado noutros setores do mercado profissional, foi na condução que Jorge Rodeia encontrou a estrada para a felicidade. Quando aos 16 anos de idade, por decisão dos seus pais, teve que abandonar a sua terra natal em Beja, este, deparou-se com algo que não estava à espera. Deixar os seus amigos para trás e a construção de um futuro dentro do que mais gostava de fazer não era uma opção na sua vida. Foi dessa forma que, ao atingir a idade necessária para poder ser habilitado a conduzir veículos pesados, Jorge Rodeia decide tomar a “melhor decisão da minha vida”. Foi na Rodoviária Nacional, empresa criada a partir da na-
cionalização em 1975 que garantiu o seu primeiro contrato como motorista profissional e, foi aí que teve a última certeza que essa teria que ser a sua profissão até aos últimos dias da sua vida. Apesar de não se arrepender da via que iniciou tão precocemente nos transportes de passageiros, Jorge Rodeia garante que quando começou a trabalhar nos transportes de pesados, finalmente encontrou descanso na sua vida. O único reparo, a solidão. “ São muitos os quilómetros que faço em li-
“Conheço as estradas todas” nha reta. Para além disso já nada é novidade, conheço as estradas todas, já cá passei milhares de vezes”. A falta de companhia presente nesta profissão é algo que, para Jorge Rodeia tem dois lados de se entender. “Nos autocarros era demais, por vezes fartava. Aqui? Aqui nem sequer há a opção de eu querer ouvir alguém… Quanto muito ligo para o meu chefe (risos) “. Dentro do camião, tenta aproximar-se o máximo possível ao dia a dia que tem quando está em casa. As refeições nem sempre podem ser feitas nas horas ditas
normais, ainda assim, procura sempre ser o próprio a confecionar a comida “comer todos os dias fora faz com que o lucro seja pouco ou nenhum, há que poupar nas mínimas coisas”. Para dormir, o próprio veículo encontra-se equipado com uma cama. Questionada sobre o modo de vida que leva com o seu marido, Maria Rodeia refere que não é fácil. “São mais os dias que está fora daqueles que está em casa”. Por vezes, Jorge Rodeia encontra-se longe de casa durante duas semanas, pelo que a sua esposa considera que não é vida para ninguém mas que ao mesmo tempo em tempos de crise “ é preciso sujeitarmos-mos ao que há”. Contudo, o ponto interessante desta estória é que para Jorge Rodeia não se trata de se sujeitar ao que há mas sim de fazer o que o faz mais feliz. Ao longo da sua vida rodoviária já se deparou com muitos obstáculos, recentemente, um acidente causou-lhe aquele que o mesmo considera como um dos maiores sustos da sua vida. Ainda assim, em momento algum pretende abandonar aquela que é a sua maior motivação na vida, referindo ainda que quando chegar o dia em que seja necessário reformar-se, não saberá como vai ser capaz de fazer. “As lágrimas vão ser muitas”.
Daniela Cardoso Jorge Rodeia 29
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Uma vida marcada pelo desporto 30
A personalidade que deu quatro ouros olĂmpicos a Portugal
“M orri naquela noite, a 15 de Dezembro. Morri, 6 vezes”, é des-
ta forma que José Vicente Moura recorda o encontro próximo que teve com a morte. Relembrando as dificuldades do momento, afirma: “Tive um enfarte agudo do miocárdio, que é o pior. (…) estive 2 ou 3 semanas em coma, depois, logo para melhorar, apanhei uma pneumonia. Isto não era suficiente e apanhei uma bactéria hospitalar, mas recuperei.”. Foi com 78 anos, em 2015, que viveu aquilo que seria a sua oportunidade de aproveitar a vida uma segunda vez. “Tenho a consciência de que estou a viver um período extra de vida, teoricamente já morri. (…) a sorte, ou o milagre, como diz a minha mulher, deu-me um período extra de vida e eu agora estou cá para beneficiar as pessoas, para ajudar, para ser simpático (…) A minha mãe viveu até aos 102 anos, acho que não chego lá, mas gostava.”, conta Vicente Moura. Todos os médicos e enfermeiros informavam o quão difícil seria a sua sobrevivência. E, caso sobrevivesse, as limitações físicas seriam uma certeza. Quando os médicos partilhavam toda esta informação, as palavras de Vicente Moura ecoavam na cabeça da sua filha, Débora Borges: “Ele sempre disse que se algum dia ficasse inválido, que não queria, costumava dizer esta frase: “Ponham o pé no tubo”, para ele morrer. E eu falei com uma médica e um enfermeiro porque eles diziam-me que, se ele ficasse vivo, ficava com danos irrecuperáveis. E eu disse-lhes: “Não façam tratamentos porque ele não quer.”. Eles disseram que não, só se isso estivesse escrito. Mas, afinal, ele ficou bom!”. Parecendo como que um milagre, a única explicação que os médicos encontraram para esta recuperação foi o facto de Vicente Moura ter um corpo bem tra-
tado, pois fazia desporto, e tinha cuidado com a alimentação, o que fazia com que o corpo conseguisse aguentar todas estas situações extremas. Mas, a verdade, é que a sua força de vontade foi determinante para todo o processo, relembra a sua filha: “Quando ele acordou, começou-se a aperceber que estava limitado, e a primeira coisa que ele pediu foi um bloco com uma caneta, porque ele não conseguia escrever, mas treinava. E, quando começou a conseguir levantar-se, fazia exercício à volta da cama. A ideia de que eu tenho é que ele não é um homem normal.”. Desportista durante toda a sua vida, demonstra um verdadeiro agradecimento por tudo o que esta vida lhe ensinou. “Desde pequeno que me interessei pelo desporto, ainda por cima, num clube como o Sport Algés e Dafundo, que é um clube amador, com princípios éticos muito estritos. Amadorismo total, ninguém recebe um tostão, “fairplay”. O desporto pelo desporto. Foi no Algés e Dafundo que eu aprendi tudo praticamente do que sou hoje. (…) sendo apenas um clube, deu-me uma educação que completou a que recebi dos meus pais. O meu pai era sargento da armada, portanto não estava muito tempo em casa. E essa educação que, de certa forma, o desporto me possibilitou, acompanhou-me sempre até hoje. Todos os meus princípios, todos os meus valores, hoje, passados quase 81 anos, são exatamente os mesmos.”, afirma o antigo dirigente desportivo. Vicente Moura afirma ter vidas paralelas. Por um lado, é oficial da armada, da Marinha, “(…) hei-de morrer e vou fardado, não se pode mostrar mais amor pela marinha do que isto. É a minha profissão.”, afirma Vicente Moura. Por outro, viveu a sua vida como desportista e alto dirigente
desportivo: “O Desporto é uma das bases da vida”, conta o desportista. Desde 1981 no Comité Olímpico de Portugal, desempenhou vários cargos, mas foi como presidente da organização que fez história no nosso país. “Estive nos cinco continentes. Fui a 12 Jogos Olímpicos. Conquistámos cerca de 50% das medalhas que o país alcançou desde sempre.”, relata Vicente Moura. Com poucos recursos ao seu dispor, o Capitão de Mar e Guerra da Marinha revolucionou o Comité e o desporto em Portugal, contribuindo, diretamente, para o ouro olímpico de Carlos Lopes (Los Angeles 1984), Rosa Mota (Seul 1988), Fernanda Ribeiro (Atlanta 1996) e Nélson Évora (Pequim 2008), e o sucesso de muitos outros. Vicente Moura afirma que este foi o cargo que lhe deu mais prazer de assumir e, apesar do legado de conquista que deixou, o seu percurso ficou, também, marcado por alguns dissabores. “A minha maior alegria foi ver o Carlos Lopes receber a medalha de ouro, a primeira de Portugal. Uma das maiores tristezas foi nos Jogos de Pequim (2008), quando a Naide Gomes não conseguiu o apuramento para a final, na altura era a primeira do ranking internacional e, portanto, das maiores esperanças nacionais, mas o Desporto é isto… a dúvida, a alegria.”, relata Vicente Moura. Após os Jogos Olímpicos de Londres (2012) decidiu que era tempo de colocar um ponto final nas suas funções olímpicas, dando espaço à renovação da instituição. Saiu por vontade própria, após escrever uma bonita página na história desportiva nacional, que será relembrada por vários anos. “A renovação é uma palavra que é importante, às vezes não aceitamos, mas é necessária. É assim a vida… a vida renova-se.”, afirma o desportista. Apesar de ter acaba
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do de viver uma intensa aventura de mais de 20 anos, em que deu tudo de si, a carreira desportiva de Vicente Moura ainda não tinha terminado, e contaria, ainda, com um dos projetos mais desafiantes da sua vida- a vice-presidência para as modalidades do Sporting Clube de Portugal. “Eu sou sportinguista, desde miúdo, mas, nas entrevistas, eu não falava muito… escondia que era do Sporting devido às minhas responsabilidades. O Sporting sabia disso.”, conta Vicente Moura. Quando ganhou as eleições, na primeira vez, Bruno de Carvalho, atual presidente do Sporting, abordou Vicente Moura para este assumir o cargo de gestão das modalidades do clube. O seu historial e palmarés, tornaram-no um dos trunfos do jovem presidente para ter sucesso num clube que é considerado das maiores potências desportivas mundiais. Quando entrou no clube, a par de toda a direção, tinha um trabalho difícil entre mãos, pois na altura, o Sporting encontrava-se numa delicada situação finan-
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ceira e desportiva, era necessário recuperar a alma vencedora do clube. Hoje, essa mentalidade de vitória foi conquistada. “Agora vemos as provas, andamos a ganhar em todas as modalidades. Fui eu que fiz tudo.”, afirma o desportista. Apesar do sucesso que estava a alcançar no clube de Alvalade, Vicente Moura acabou por sair em maio de 2017, por divergências com Bruno de Carvalho, afirmando: “Ele é um homem inteligente, muito trabalhador, trabalha 12 horas por dia, mas tem, relativamente ao desporto, uma forma de pensar completamente contrária à minha. Na altura fez um post no facebook, a criticar os atletas, os treinadores e os dirigentes, inclusive eu, dizia que éramos uns meninos… eu, com 80 anos, já não tenho idade para me chamarem menino. Resolvi abandonar o cargo”. No desporto diz não existirem adversários, mas sim colaboradores, e embora tenha estado no Sporting, mantém uma relação amistosa com todos os rivais do clube, algo que pode ser consi-
derado excecional na atualidade. Isto diz muito acerca da boa imagem e do caráter de Vicente Moura. “O Benfica sempre me tratou muito bem, e sempre tive uma boa relação com o Pinto da Costa (Presidente do F.C. Porto)”, afirma Vicente Moura. Com a vida ao serviço do Desporto, muitas vezes viu-se privado do conforto de casa e da família, que hoje, reformado e sem intenção de voltar aos cargos desportivos, diz estar a conhecer melhor esta realidade. “Conheci o Putin, o Obama, o Papa. E agora conheço a minha mulher, a minha filha e os meus netos. É bom. Eles sacrificaram-se por mim…a minha mulher e a minha filha estavam muito tempo sós, raramente me acompanharam. O desporto marcou a minha vida. E vai marcar até ao fim.”, reconhece Vicente Moura.
Ana Miranda André Dinis Daniela Cardoso
PERSONA PERSONA
Não apenas amor, mas amor à distância “Agora basta esperar que os três meses que faltam passem rápido”
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Vziam:ersos“A longa de William Shakespeare já didistância apenas serve para unir o nosso amor. A saudade serve para dar-me a absoluta certeza de que ficaremos para sempre unidos.” Aí estão traduzidas a dor e a delícia de se manter um relacionamento quando a distância impede o contacto físico. Essa é uma realidade comum a quem se aventura a construir uma vida num novo local, enquanto se mantém a perspetiva da vida conjunta no país de origem. “Vir para cá, sempre foi uma realidade na nossa relação”, afirma a brasileira Gabriella Rodrigues, de 24 anos, natural de Guarulhos, que conheceu Gabriel Sena, da mesma idade, na época em que foi aprovada no programa de mobilidade académica no ensino superior do Instituto Politécnico de Setúbal. No início do seu relacionamento não era nada formal: “fomos ficando assim sem muitas formalizações, sem um status de relacionamento definitivo”. Mas, depois, decidiu ser ela a tomar a iniciativa e pedir ao rapaz em namoro explicando-lhe que gostava dele e queria tornar a relaçao mais sério. Com apenas cinco meses de namoro, aventurou-se, mais do que se manter junto do seu namorado numa longa viagem que duraria seis meses, e decidiram ter um relacionamento aberto ,o que possibilita para ambos ter relações com pessoas diferentes, para “evitar certas culpas de coisas que poderiam acontecer”. Foi esse tipo de relação aberta que já tinham inicialmente no Brasil, antes de embarcar para um novo país. A jovem lembra que tomou essa decisão porque anteriormente tinha vivido numa relação onde foi vítima de abuso e violência psicológica, com um parceiro que era agressivo e que a traía: “pensei que seria a melhor solução”. Atualmente, afirma que a “a maior dificuldade é gerir essa dinâmica”. “Para mim, é difícil construir subjetivamente essa separação de ter uma pessoa que eu gosto, que eu quero construir coisas com elas, mas ficar com outras
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pessoas sem compromisso”, explica. Essa prática, segundo Gabriella Rodrigues, requer muita disponibilidade do casal, pois tem de haver muito diálogo e muitos acordos mútuos de caráter prático – o que, assume, faltou no seu caso. Gabriella Rodrigues não sabia se deveriam contar um ao outro se acontecesse algo, se isso deveria ser contado por mensagem, ou se seria melhor esperar até regressar a casa. “A gente não teve tempo de fazer muitos acordos, então não me senti à vontade para ficar com outras pessoas aqui”, explica. Vendo essa dificuldade em se manter um relacionamento alternativo, em que ambos os integrantes tinham a possibilidade de se rela-
“Vir pra cá deu-me mais certezas ainda de que eu quero estar com ele” – Gabriella Rodrigues cionar com outras pessoas, Gabriella Rodrigues conta que foi melhor rever essa situação. “Nós conversámos na semana passada, sobre esse tipo de relacionamento e percebemos que para ambos que não era algo que estava a funcionar, que não era bem algo que satisfazia as nossas necessidades ou que fazia sentido nessa etapa da nossa vida”, explica. Foi aí que decidiram que manter o relacionamento sério de forma fechada, da forma padrão, poderia tornar as coisas mais simples. Afirma, portanto, que a distância fortaleceu o seu relacionamento e agora basta esperar que os três meses que faltam passem rápido: “vir pra cá deu-me mais certezas ainda de que eu quero estar com ele.” Completa que
não se arrepende, de toda forma, de manter um relacionamento à distância aqui em Portugal. “Apesar de ser bastante difícil um namoro à distância, o meu namoro está a acontecer, existe, o meu namorado apoia-me muito, nós conversamos todos os dias”, explica. Para ela, o segredo de tal sucesso está em compartilhar os momentos com o outro, integrar um na vida do outro: “Apoiamo-nos muito”. Assim sendo, as expectativas são as melhores para a sua volta ao Brasil. “Eu penso em construir o meu cantinho e, sempre que penso nisso, ele está na minha mente, nesse lugar comigo de alguma forma; estamos no começo de uma vida a dois, duradoura e feliz”, constata. Rodrigo Lopes, de 22 anos, da cidade brasileira de Lorena, e o seu namorado Rodrigo Serni, de 24 anos, estão juntos há dois anos e seis meses, e têm o ponto de vista de que seis meses é pouco tempo. Já estão habituados a manterem uma certa distância nas férias académicas, em que Rodrigo Serni tem que ir à casa dos seus pais e da sua família noutras cidades brasileiras. A partir do momento em que há consciência de que são apenas seis meses e ambos estão dispostos a fazer esse esforço, Rodrigo Lopes afirma: “eu não via motivo de terminar para vir para cá, para mim isso não faz nenhum sentido.” Se houvesse possibilidade, diz que ficaria por mais seis meses nessa situação. De toda a forma, Rodrigo Lopes assume que as dificuldades continuam a existir: “você começa a sentir-se um pouco carente, faz muita falta a presença física, a companhia”, exemplifica. O cuidado, agora, é o de não acontecer nada de mal, que possa desencadear uma discussão. “Lidar com essa situação à distância seria complicado”, afirma Rodrigo Lopes. Quando perguntado o que o conforta nessa situação, Rodrigo Lopes afirma: “é saber que, quando eu voltar, ele vai estar lá”. “É como se eu estivesse por lá, mas trabalhando muito, sem ter como ir à casa dela”, quem o afirma é
Revison Soares, de 27 anos, de Montes Claros, que namora a Maria Helena, de 21 anos, há cinco anos. Para ele, a distância não tem todo o peso como é colocado pelas pessoas. No seu entender, não faz sentido alterar a dinâmica do relacionamento que têm por causa do intercâmbio, pois as suas metas em Portugal são estritamente académicas e profissionais: “o objetivo era vir para cá para agregar mais conhecimento, melhorar o currículo.” Entretanto, Reivison Soares aborda as melhorias e as dificuldades de conversar através das redes sociais. “Conseguimos conversar em tempo real, mas a conversa fica difícil, às vezes a pessoa manda-te uma mensagem no WhatsApp e você entende a coisa totalmente diferente”, explica. Sente falta, por exemplo, de “olhar cara a cara, ver como a pessoa
está a falar”. Afirma que as motivações de um relacionamento é estar junto da pessoa que se gosta, para apoiar uns aos outros, ou simplesmente
“Eu não via motivo de terminar para vir para cá, para mim isso não faz nenhum sentido” – Rodrigo Lopes ter alguém com quem se possa falar olhos nos olhos e confiar. O companheiro não deve ser só um namorado, mas, acima de tudo, um amigo,
explica. Para lidar com questões de ciúmes, Reivison Soares alerta que é interessante conversar melhor antes de os dois saírem para festas ou algo parecido, com o intuito de evitar discussões por ciúmes, “deixar isso bem resolvido”. Diz que, no regresso ao Brasil, pretende continuar com a vida que tem vindo a construir com a namorada. É assim que, nessas três histórias, o sentimento em conjunto coexistem com os objetivos profissionais, académicos e pessoais que originaram o intercâmbio. O que pode ser tomado como facto nesses casos é que manter um relacionamento à distância não é fácil, mas, com amor e diálogo, isso é capaz de ser superado.
Alexandre Policarpo Fatumata Bari
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PERSONA
Mãe 21
“De tudo que podia correr mal, isto é o melhor”
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“Q uando é que vamos marcar o aborto?”. Foi esta a primeira frase que Teresa Osório ouviu da boca do seu médico após o resultado da sua amniocentese. Foi este o primeiro impacto, o primeiro choque. Aparentemente, a sua filha era completamente saudável, a única diferença estaria apenas no cromossoma a mais que nela se encontrava. Teresa sentiu como se lhe tivessem tirado um tapete dos pés, mas sabia que tinha que tomar uma decisão. Juntamente com o seu marido, enfrentariam nas próximas quatro semanas a difícil decisão entre o aborto ou a continuação da gravidez. Como pessoa religiosa, tem noção que sempre teve um ideal pró vida e, com a sua formação em Biologia, sabia que estes erros genéticos eram uma realidade. Apesar da difícil decisão que estava nas suas mãos, depois de consultar os seus outros dois filhos e, contra as ideias dos seus sogros, “pesou mais a vida da filha”. Inês nasceu. Nasceu e deu uma nova vida à sua família. “A Inês quando nasceu era a nossa bebé, a nossa filhota.”. Um grande apoio para Teresa foi a Associação Pais 21, encontrou nela uma família. No início era necessário obter diversas respostas para as dúvidas existentes na sua mente, estava a explorar um novo mundo que não conhecia, o mundo da Trissomia 21. Foi um apoio constante que se mostrou essencial durante toda esta caminhada, “Nós sabemos que, se precisarmos, alguém aparece a responder”. E também Teresa foi o apoio de outras famílias.
Famílias igualmente perdidas neste novo mundo com as suas crianças, visitaram a sua casa. Conheceram-na, a ela e à Inês, e encontraram como que uma pequena luz ao fundo do túnel, ao aperceberem-se que nem tudo tem que ser mau. A Inês, por exemplo, tem um ligeiro atraso no que toca ao desenvolvimento da fala, porém, ainda assim, mesmo que não consiga chegar ao final do dia e perguntar à sua mãe como lhe correu o dia, tem outras estratégias. Quando a filha percebe que algo está mal com os seus pais é a primeira a chegar ao pé deles e a colocar a sua mão em cima do ombro do pai ou da mãe, fazendo-os sentirem-se especialmente acarinhados por uma menina que arranjou uma forma diferente para atingir um objetivo. Com o passar de todos estes anos, Teresa Osório veio comprovar que realmente, o médico que lhe tirou completamente o tapete dos pés, não tinha razão para tal. Pintando um cenário extremamente negro, o médico disse-lhe que Inês seria um peso para a sociedade e que nunca iria fazer nada. Inês mostrou o contrário e a cada dia que passa demonstra que tem capacidade para fazer cada vez mais, um passo de cada vez. Teresa, ao longo do tempo, foi sentindo a necessidade de apresentar a sua filha ao médico, médico esse que ficou marcado para sempre na sua vida, “Olhe, está aqui aquela menina que queria descartar!”, mas nunca o fez. A verdade é que, um tempo depois desse momento, descobriu que esse mesmo médico tem
um filho com trissomia 21, não compreendendo como é que uma pessoa naquela situação lhe daria a notícia de tal forma. Jorge, irmão mais velho de Inês, refere que a sua irmã trouxe à família um olhar diferente sobre o mundo e que promoveu em muito o sentido de entreajuda entre a família mas também para com os outros, visto que anteriormente não tinham qualquer tipo de contacto com a Síndrome de Down e que, “de tudo o que podia correr mal, isto é o melhor” como a mãe refere. O nascimento da Inês tem sido um dos melhores acontecimentos que a família alguma vez passou. Atualmente, a família como um todo procura evoluir no que toca a este assunto e, para tal, durante o mês de Março realizou uma viagem à Madeira para um encontro de portadores de Síndrome de Down, encontro esse que prova que independentemente das barreiras que cada um de nós possa ter na vida, o mais importante é arranjar as forças necessárias para as ultrapassar. Afinal de contas, se mesmo com algumas limitações, pessoas portadoras de Trissomia 21 conseguem ser atores, professores ou mesmo bailarinos de danças de salão, todos nós, com as oportunidades certas, conseguimos ser e fazer o que mais desejarmos. “Não há receitas 100% perfeitas na nossa vida. Temos que aprender a viver com o que nos vai saindo na rifa”, afirma Teresa.
Daniela Cardoso Jorge Rodeia 37
PERSONA
O cancro nunca foi um obstáculo Tiago Faquinha, ex ginasta, expõe a sua maior vitória: a luta contra a doença
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“J
á nos conhecemos. Sei tudo sobre ti, e tu sobre mim. Sem ressentimentos, não voltes mais, porque já não há espaço para ti.”. Se tivesse a oportunidade de falar com a doença que o atormentou em 2014, estas seriam as primeiras palavras de Tiago Faquinha. Ginasta de aeróbica desde os 13 anos, Tiago Faquinha conquistou vários títulos a nível nacional, assim como inúmeras representações da Seleção Nacional em competições internacionais. Hoje, aos 31 anos, já aposentado da sua carreira desportiva, é modelo e embaixador de uma marca de sapatos. Quando nada conseguia prever, entre o despoletar da sua carreira de modelo, a sua estreia no Portugal Fashion e a ambição da qualificação para os primeiros Jogos Olímpicos Europeus em Baku, no Azerbaijão, em 2015, surgiu a fase mais difícil da sua vida: o cancro. “No início pensas que a tua carreira poderá estar acabada, mas depois percebes que mesmo doente é possível trabalhar. É importante que as pessoas não se fechem quando passam por este tipo de doença.”. Quando se tem a fortuna de nunca ter tido uma perturbação deste nível, imagina-se, mas nunca se sabe, ao certo, quais são as sensações, os pensamentos, o estado de espírito de quem padece deste tipo de malefícios. E, talvez, a solução para enfrentar todo o mal, esteja em elevarmos o nosso próprio ser. “Tens de aceitar a doença, viver o teu dia-a-dia, normalmente. Nunca deixei de trabalhar, de sair, ir à praia, estar com amigos. Não me privei de nada. Foi meio caminho para a superação.”, afirma Tiago Faquinha. Desportista desde muito jovem, com uma carreira invejável, sempre ao mais alto nível, o ginasta, como expectável, respeitava todos os parâmetros de alimentação, treino e rotinas de um atleta, algo que pode ser encarado como uma ironia do destino quando lhe foi diagnosticado uma doença com este peso. “Não há fórmulas mágicas. Quando é para acontecer, acontece. Vivi um dia de cada vez, sempre com esperança,
acreditando nas palavras dos médicos, que sempre depositaram muitas garantias de que tudo iria correr bem.”. O sonho olímpico de Tiago Faquinha poderia, também ele, ter sido contaminado pelas células cancerígenas que se apoderaram do seu corpo, no entanto, a força de vontade, a paixão pelo desporto e pela sua carreira imperaram. “Tive muito medo de não conseguir recuperar a tempo da prova mais importante da minha vida [Baku 2015]. Soube que a recuperação levaria 12 meses. No entanto, ao fim de dois já estava a treinar, e de quatro…a competir. Ganhei todas as provas nacionais que garantiam o meu lugar no Azerbaijão.”, conta o desportista. Muitas vezes a incerteza domina a cabeça
“O cancro não me mudou, apenas ajudou-me a compreender-me, a escutar-me e a fazer-me ver tudo de outras formas” de um doente, a incerteza na recuperação, a incerteza no futuro e a difícil gestão dos nossos sentimentos e das pessoas que nos rodeiam, no entanto, haverá sempre a esperança na chegada de dias melhores, haverá sempre uma luz ao fundo do túnel que nos faz acreditar. “Houve momentos que vivi na angústia de pensar que podia não acordar mais. Outros, pensei que o pior já tinha passado, e que um dia tudo será recordado com um sorriso nos lábios.”, lembra Tiago Faquinha. Segundo a Liga Portuguesa contra o Cancro, em 2017, Portugal tinha 500 mil sobreviventes dessa mesma doença e perto de 100 mil doentes em fase de tratamento. Tiago Faquinha
faz parte desse grupo de pessoas que conseguiram escapar desse buraco negro que é o cancro, que retira toda a força, alegria e motivação às pessoas. E, apesar do mesmo poder ser visto como uma doença que torna as pessoas cada vez mais pequeninas no mundo, mais impotentes, mais tristes e vazias, Tiago Faquinha olhou para lá do muro que o cancro constrói em torno das pessoas. Agarrou-se aos seus maiores pilares: a família próxima, os amigos e o desporto, que não o deixaram cair. Alimentou-se dos seus pensamentos positivos e percorreu toda esta caminhada, com um único objetivo: a cura. Apesar de ser um caminho difícil, o ginasta afirma que existiram, de facto, bastantes aspetos positivos: “sem dúvida, a sensação de objetivo cumprido. Consegui aquilo que muito ambicionei. Escrevi uma página na história do meu país, ao ser o primeiro representante português numa competição desta dimensão, a representar a disciplina da ginástica que consumiu mais de 15 anos da minha vida. O que retiro de positivo deve-se, ainda, ao facto de aprender a olhar para as coisas e dar-lhes outra importância. Outro sabor. Viver com uma outra perspetiva. Nesta fase tudo ganha uma dimensão muito maior, e os pequenos prazeres da vida são, sem dúvida, todos eles os momentos altos.” Afirma Tiago Faquinha. Contra as adversidades da doença, Tiago Faquinha encontrou um conforto nas pequenas coisas da vida. E, apesar de ter percorrido este caminho armadilhado, afirma que a doença não o mudou, ajudou-o a encontrar-se: “Continuo a ser a mesma pessoa. O cancro não me mudou, apenas ajudou-me a compreender-me, a escutar-me e a fazer-me ver tudo de outras formas. No fundo apurou-me todos os sentidos.”, afirma. Testemunha desta força interior de Tiago Faquinha é D. Dores Nascimento, amiga do ginasta. Com lágrimas a cair-lhe pelo rosto, afirma: “Tão corajoso que ele foi. Acompanhei o percurso e foi muito, muito
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“Tive muito medo de não conseguir recuperar a tempo da prova mais importante da minha vida” triste a decadência do corpo, a perda do cabelo, a cor cinzenta, a falta das pestanas. Fui visitá-lo ao hospital. Uma das vezes foi num dia de grande sofrimento, num dia de uma sobrecarga de quimioterapia, que o deixava prostrado, enjoado, dorido, desconfortável e a precisar de abraços que não lhe neguei.” Conta D. Dores Nascimento. A verdade é que também ela teve que enfrentar esta dura batalha. Em 2009, enfrentou um cancro da mama. Já em 2013, pouco tempo depois de um colóquio realizado pela mesma sobre a doença, em que Tiago Faquinha esteve presente, o ginasta telefonou-lhe, preocupado com um problema no testículo, detetado por uma ecografia. A sua amiga amparou-o. “Eu entretanto já estava a ser seguida em oncologia pelo Dr. Espírito Santo, a quem liguei para lhe falar dos receios do Tiago. O Tiago foi logo recebido por este médico, que incansavelmente o reencaminhou, iniciando-se os procedimentos de diagnóstico e tratamentos. Em simultâneo a nossa amizade cada vez mais se consolidava.”, conta a amiga do desportista. Apesar de todo o apoio e carinho, D. Dores Nascimento pensa não ter tido um grande papel na recuperação do ginasta, pois o fundamental, foi a sua determinação. “Ele é muito forte ou pelo menos aparenta sê-lo, mas a doença é devastadora.
Ele sempre foi bastante silencioso, falávamos às vezes. As suas angústias fluíam e desabafavam-se em linhas escritas no Facebook, lidas por muitos, partilhadas por alguns e choradas por quase todos, que os amigos não são de ferro. O Tiago por vezes parecia de ferro, mas era apenas um menino, umas vezes perdido, outras nem tanto, mas cheio de coragem e de vontade de deixar aquela mancha para trás. Continuou a dar aulas quase sempre, foi às competições quase todas, mas a maior vitória que teve foi a superação da doença.”, conta D. Dores Nascimento. Fazendo acreditar que este pesadelo podia ter um final feliz, o ginasta aconselha as pessoas que podem estar a viver ou vir a viver esta mesma caminhada, afirmando que é essencial aceitarem a doença: “ (…) aceitem-na. Não digo para serem fortes, porque elas saberão sê-lo a seu tempo. E vão buscar forças que nem elas próprias sabem que existem. É um momento de descoberta. E o ser humano tem capacidades incríveis que desconhece. Digo-lhes para viverem. Viverem com um sorriso. A seu tempo haverá um desfecho. E que a esperança terá que ser a última a morrer, pois viver com medo da morte é tempo perdido.”
André Dinis Daniela Cardoso 41
PERSONA
A paixão pelas profundezas Paulo Neves é um entusiasta do mergulho subaquático que se ocupa de melhorar e salvaguardar a biodiversidade da Costa Portuguesa
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Para a grande maioria, o que se encontra sob a profundidade dos oceanos permanece intocável, desconhecido, e apenas fora de alcance. Misterioso e, sem dúvida, assustador, a ideia de respirar debaixo de água provoca alguns pioneiros a transformarem uma pequena experiência num hobby, e eventualmente numa paixão pela vida marítima. Paulo Neves faz parte dessa fração. O seu trajeto começou há 30 anos. Ex-caçador, viu-se obrigado a desenvolver uma nova ocupação depois da caça sofrer proibições ao longo do país, “quem começou a fazer mergulho por essa altura eram os caçadores, não podíamos caçar em terra, fomos para o mar”. Nessa altura, em Portugal, nem existiam certificações de mergulho, e os únicos com conhecimentos superiores da prática eram os oficiais da Marinha mercante, e mesmo assim o conceito de mergulho profissional não era algo certificado. Ainda hoje não o é, como explica Paulo, mergulho profissional consiste basicamente em reparações de infraestruturas submersas, levantamento de material fotográfico, dar formação e cursos a novos entusiastas, ou em atividades ligadas ao turismo. Dito isto, Paulo Neves não se considera um mergulhador profissional, mas sim amador. A sua paixão é a descoberta, é a aventura, é o conhecimento que adquiriu durante anos a exercer o desporto. Paulo Neves orgulha-se de dizer que já mergulhou por toda a costa de Portugal, de norte a sul e passando pelas ilhas, mergulhou em Espanha, teve o auge da sua experiência como mergulhador no Mar Vermelho, passou pelo Egipto e pelo Norte do Sudão, num futuro próximo pensa organizar uma expedição às ilhas Filipinas. Sendo a
sua carreira de desportista tão longa e com tanta atividade, não vem como surpresa uma quantidade respeitável de incidentes, que merecem alguma seriedade. As pessoas esticam os limites dos seus equipamentos, e dos seus físicos durante estas perigosas, embora fantásticas, viagens. De entre alguns acidentes, Paulo recorda quando ficou preso debaixo de uma rede de pesca na Costa de Portugal, ou quando mergulhou sem apoio luminoso à noite numa expedição a um navio afundado no Mar Vermelho, e ainda algo que considera mais comum, ficar sem ar na botija – seja por distração ou por
“Cada vez mais instituições e sites são desenvolvidos, e nossa pequena comunidade de mergulho está a evoluir” defeito no material – porque mesmo perante o equipamento inovador a ser desenvolvido todos os anos, sejam as máscaras, barbatanas, tubos respiradores que são elevados a novos níveis de excelência, tornando o mergulho numa experiência mais confortável e conveniente tanto para “veteranos” da área, ou para principiantes, “os acidentes são algo inevitável, vão acontecer, e cabe a quem mergulha acatar a responsabilidade, e admitir que pode não ser tão fácil subir, como foi des-
cer”. Neste caso, Paulo expõe o problema, mas também “oferece” uma solução: “O mergulho é um desporto de companhia”, em que no seu caso se faz acompanhar de um grupo que vai entre os 15 e os 20 elementos. O seu grupo ocupa-se agora de melhorar a costa do nosso País, começando exatamente por Setúbal, em programas que envolvem a Câmara Municipal, a capitania, a polícia marítima e grupos de pessoas interessadas e que consistem em recuperar a biodiver-sidade que foi sendo dizimada por anos e anos de pesca abusiva de não fiscalizada. Em zonas de proteção ao longo da Arrábida até Sesimbra, e de Tróia até à Comporta, onde o ecossistema foi sacrificado com o uso de técnicas proibidas de pesca, como as redes ilegais que ainda poluem os nossos fundos, são organizadas iniciativas onde mergulhadores como Paulo Neves assumem a responsabilidade de limpar a costa, com o apoio das autoridades, e uma série de programas de forma a permitir que as ações de recuperação corram de forma segura para os recifes, e para os mergulhadores. O mundo debaixo de água que foi outrora tão distante e assustador está hoje, devagar mas certamente, a alcançar o foco das sociedades. Em Portugal, no ano de 2016 foi até criada a primeira escola de mergulho profissional certificada – a Casco Antigo – pela Direção Geral da Autoridade Marítima, “e todos os anos este ‘mistério’ traz mais e mais mergulhadores para o mar”, repara Paulo, “e como existem cada vez mais mergulhadores, amadores ou profissionais, cada vez mais instituições e sites são desenvolvidos, e a nossa pequena comunidade de mergulho está a evoluir.”
Ana Miranda
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PERSONA
A vida de um prodígio da Comunicação “Não tinha a consciência que esta era a minha vocação, até me sentar naquela mesa a ler o monitor de computador que servia de teleponto”
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isse Fernando Pessoa, num dos seus heterónimos, que nele tinha todos os sonhos do mundo. No entanto seria no dia de Camões que nasceria, em 1997, um enorme sonhador, Filipe Gouveia do Carmo. Ex-bailarino, locutor de rádio, apresentador de televisão e espetáculos ao vivo, participante ativo na vida política da sua freguesia, um jovem multifacetado, com um futuro promissor na área da comunicação. A dança, mais precisamente o Hip-Hop, lapidou e formulou a sua personalidade. “Comecei a dançar aos oito anos, e permaneci neste ramo durante dez. Ter entrado neste meio mudou tudo aquilo que viria a acontecer na minha vida.” No entanto, não foi fácil lidar com o julgamento popular, há ainda preconceito em relação a este desporto, e ao facto de estar, constantemente, associado ao sexo feminino. “Dançar era um tabu, mas senti que, entre tudo o que podia praticar, foi o que mais se adequou a mim.” Apesar da vocação reconhecida por especialistas da área, Filipe nunca sonhou moldar a sua vida e sustentar-se desta arte. “Nunca quis ser bailarino profissional, a minha meta sempre foi divertir-me, ter um hobby.”. Este passatempo começou a ganhar outras proporções quando o jovem participou no programa da SIC, Portugal tem Talento. “Comecei a ser reconhecido na rua, encheu-me o ego, mas nunca me deslumbrei. Foi das experiências mais gratificantes que vivi. Senti-me um profissional.”. Na sua, ainda curta, jornada, 2015 fica marcado por ser um ano atribulado. Encerrou alguns capítulos marcantes da sua vida, mas abriu outros, também, com elevados níveis de importância. “Deixar de dançar foi uma decisão complicada, no entanto, tinha outros objetivos. Estava a perder tempo do qual não queria abdicar.”. Com o ingresso no curso de Comunicação Social, descobriu a sua maior paixão, o foco principal da sua vida. O responsável pela descoberta deste mundo foi um docente, da escola básica, que um dia propôs a Fili-
pe, o desenvolvimento de um projeto designado de AEQC TV, a televisão do Agrupamento de Escolas da Quinta do Conde. “Não tinha a consciência que esta era a minha vocação, até me sentar naquela mesa a ler o monitor de computador que servia de teleponto. Aquilo começou a deslumbram-me, não pelos materiais, nem pelo conteúdo, mas por o que significava.” A sua licenciatura, que se encontra na reta final, proporcionou-lhe uma mentalidade mais aberta e uma análise mais precisa daquilo que o rodeia. “Trouxe-me uma visão muito interessante sobre o mundo. Encontrei professores com uma capacidade muito forte de nos colocar a pensar sobre as coisas, coloca-las em causa. Nada é definitivo.”. Reconhece debilidades que o meio atravessa, os parâmetros e as adversidades a que os profissionais são expostos. “É uma área injustiçada.
“Tens de ter um padrão para saberes onde queres chegar” Hoje, as empresas priorizam o negócio, ao invés da qualidade de produção e de conteúdo.”. O protagonismo e rivalidade são temas de debate constante da esfera das profissões ligadas à Comunicação, contudo, Filipe Carmo vê a rivalidade como uma ferramenta que potencializa as suas qualidades. “Tens de ter um padrão para saberes onde queres chegar. As pessoas só melhoram se houver rivalidade. O problema é a forma como cada um encara essa rivalidade.” Na Quinta do Conde, tem um programa de rádio na estação local. A Noite É Nossa foi um programa criado à sua imagem, onde vários amigos, uns são colegas de curso, compõem o restante painel. “Sinto-me parte do desenvolvimento deles. Sou um padrinho, um propulsor, é um orgulho justo. O nosso programa tem muita qualidade, e um propósito, é feito com rigor.” A multiplicidade de atividades a que se propõe, obrigam a
que as críticas, construtivas ou destrutivas, sejam um dado adquirido. “Nunca estamos preparados para lidar com a crítica, não estamos formatados para isso. Quando chegam, tento entender a sua natureza, e melhorar com isso.”. Dança, e Comunicação para trás, é tempo de abordar uma vertente nova na vida do futuro comunicador, a política. Ambicioso por natureza, fez parte da CDU, lista vencedora da autarquia quinta-condense, embora não se queira comprometer com nenhuma fração partidária. “De todos os projetos que me foram apresentados, este foi o mais coerente. Aliei-me às pessoas, não ao partido.” O seu objetivo é “servir bem os outros”, e não a si próprio. Não descarta que o seu futuro passe por funções de caráter político. “Não afasto esse cenário, tenho imenso gosto em estar envolvido neste tipo de projetos. É impressionante o poder que o discurso político tem.”. Todas as componentes acima referidas, elevam o jovem de 20 anos a um outro nível, diferente da generalidade dos jovens da sua idade. “Sim, procuro ser diferente, não me conformar. Hoje em dia há muita falta de compromisso, muito desinteresse. Caminhamos para uma sociedade onde gostamos de ver as coisas feitas para nós, em vez de as produzirmos.” Quem hoje conhece Filipe Carmo, desconhece que a sua infância ficou marcada por episódios de bullying. “Era mais frágil que os outros. Esse tempo não significa uma âncora na minha vida. Aprendi a ser mais forte. Tinha de arranjar uma forma de mostrar que eu também tinha valor.” Afirma-se uma pessoa feliz e realizada, sempre à busca dos seus objetivos, rodeado de pessoas que o próprio estima e reconhece a preponderância do papel no seu desenvolvimento. “Procuro a felicidade diariamente. Faço aquilo que me completa. Tenho muitas pessoas fantásticas e talentosas ao meu redor, isso inspira-me.”. “O talento trabalha-se”, remata o jovem.
André Dinis 45
PERSONA
No amor não se escolhe, sente-se Orientações sexuais que fogem do padrão heterossexual guiaram a infância e a vida de muita gente
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“A minha mãe é um bocado conservadora, disse-lhe que gostava de mulheres, achou que era uma fase, ainda hoje acha que vai passar”, afirma Inês Ferro, de 19 anos. No seu entender, toda a gente pensa que é heterossexual durante a infância, antes de descobrir a sua sexualidade, depois “começas a perceber quando todos falam de rapazes e tu não estás interessada”. A jovem diz que quando pensa no passado, consegue perceber que gostava de mulheres antes sequer de ter a noção disso. Inês Ferro afirma que a primeira pessoa com quem falou sobre o que estava a sentir foi com um colega que já se identificava como homossexual, que conheceu numa escola privada para a qual se mudou no 10.º ano. “Sempre me senti confortável com ele para falar sobre isso”, explica. No seio da sua família, não sofreu nenhum tipo de preconceito, tal como os amigos que reagiram bem quando descobriram que gostava de mulheres. Realça que a mãe sabe que namora, atualmente, com uma mulher, e a reação dela foi: “não a tragas cá a casa, mas sei que com o tempo isso passa”. Cresceu no sul do país, em Faro, e considera que teve uma infância privilegiada e feliz. Recorda com alegria que fazia coisas de crianças “roubava laranjas aos vizinhos”. Mudou-se para Lisboa aos 18 anos, para fazer o curso de Filosofia na Universidade. É ativista desde os 16 anos, com causas ligadas ao movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgéneros e Intersexuais (LGBTI) e defesa dos animais. “Gosto de pessoas”, é o que Flor de Matos de 20 anos diz, sobre a sua homossexualidade. Afirma
que durante a sua infância nunca se questionou se gostava de meninos ou meninas. A jovem diz que gostava de uma amiga inglesa com quem falava diariamente, por isso na altura pensou que era normal, “por falar muito com ela”. Só no décimo ano de escolaridade é que começou a perceber que “sentia atrações por mulheres”. Quando teve a certeza do que estava a sentir decidiu falar com a mãe. “Ela nunca quis saber muito, é mais do género faz o que quiseres”, afirma. Lamenta, porém, não ter tido a oportunidade de contar à avó durante a vida desta, que gostava de mulheres “sei que ela apesar de ser de outra geração e ter vivido noutro contexto iria aceitar-me”. Diz que nunca sofreu preconceito por parte dos familiares nem dos amigos. Na escola, sentiu olhares indiscretos, contudo não sabe dizer se é por ser homossexual ou se é devido a sua forma de vestir na altura. Flor de Matos nasceu em Lisboa, mas passou a sua infância em Mafra, algo que descreve como interessante e feliz. Lembra que só tinha 10 colegas de turma no ensino básico. Por isso, quando voltou a viver na cidade que a viu nascer, sentiu uma grande diferença. “A minha turma tinha 30 pessoas e falavam num calão que não percebia, era frustrante” afimra. Sempre foi um pouco solitária, o que dificultava o processo de fazer amigos novos. Diz que, “acontecia coisas que não percebia, como, por exemplo, se estavam a rejeitar-me não por aquilo que sou, mas pela ideia que têm de uma coisa que sou, mas penso que é algo que acontece com qualquer tipo de minorias”. Atualmente, é estudan-
te universitária, por isso, sempre que pode nos trabalhos académicos, aproveita para dar a conhecer aos colegas a causa LGBTI. É ativista desde os 15 anos, e faz parte de um projeto “Dream Deals” que pretende “educar para a sexualidade nas escolas”. Foi aos 13 anos que Lucas Anselmo, hoje com vinte e um, teve a certeza da sua orientação sexual. “Desde a infância, eu já sabia que eu era diferente de alguns meninos, mas eu ainda não tinha a definição ‘gay’” explica. O jovem lembra que sofria bullying (atos de violência física ou psicológica) na escola, na natação por não ser “masculino o suficiente”. Não convivia com ninguém que se identificava como homossexual e, no seu entender, nas telenovelas e em demais programas televisivos estes eram sempre representados de “forma sarcástica e preconceituosa”. Diz que, por isso, decidiu numa noite fazer uma pesquisa na Internet. Acabou por encontrar um site de ativismo homossexual que, de acordo com ele, falava sobre todo esse universo, das relações pessoais à religião. “Nessa noite, eu vi tudo e pensei: “é, eu sou gay’”, relembra. Logo aos 14 anos, apenas um ano depois de finalmente conseguir-se identificar como tal, assumiu para a família o que sentia. Explicou que, de início, a receção dos pais não foi das melhores, que foi um período de grande turbulência na sua casa. Contudo, foram compreensivos e pensaram na felicidade do filho. Até que a sua mãe descobriu o Grupo de Pais de Homossexuais (GPH), associação sem fins lucrativos, que tem como objetivo estabelecer um contacto entre as pessoas que vivem
“Começas a perceber quando todos falam de rapazes e tu não estás interessada”
“A minha mãe (...) deu um novo significado ao que antes era dor, tristeza e medo”
“Já tive pessoas que me
– Inês Ferro
– Lucas Anselmo
quiseram agredir, não sei bem (...) se por ser lésbica ou por outra razão” – Flor de Matos
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esta mesma situação. Essa descoberta, a seu ver, foi uma grande mudança na sua relação familiar. “A minha mãe tornou-se parte desse grupo e ela deu um novo significado ao que antes era dor, tristeza e medo” afirma. Hoje em dia, os seus pais continuam a fazer parte do movimento, ajudando outras famílias que estão nesse contexto. Mesmo com pouca idade, decidido, Lucas Anselmo diz que não queria mais ter de se esconder também para os outros membros da família. Recorda que disse aos seus pais, na altura, “eu quero que vocês contem a todos, porque antes eu tinha uma dúvida, agora eu tenho uma certeza”. Essa descoberta prematura fê-lo “viver uma adolescência muito tranquila e muito deliciosa, com novas descobertas, de uma maneira leve”, o que o permitiu relacionar-se com outras pessoas. Em comum, todos se queixam do
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mesmo, o preconceito que sofreram sobre o facto de assumirem-se como homossexuais. Inês Ferro afirma que, em Lisboa, nunca sofreu preconceito, mas em Faro sim. Lembra que decidiu andar uma vez com uma amiga de mãos dadas numa rua com bares, “ouvi bocas de pessoas que gritavam paneleiras”, mas acrescenta que isso não a afeta. Flor de Matos, também já foi vítima do mesmo, declara que: “já tive pessoas que me quiseram agredir, não sei bem por que razão, se é por ser lésbica ou por outra razão. Ainda há pessoas que gritam constantemente fufa, lésbica”. Lucas Anselmo diz que o preconceito continua a existir ao seu redor, como nos comentários que ouve das pessoas “olha lá o viadinho” na rua e em bares de Belo Horizonte, cidade na qual nasceu e vive, no Brasil. Percebe, porém, que as coisas estão a mudar aos poucos. Mesmo
por detrás dos julgamentos e estereótipos, afirma que “hoje temos uma maior liberdade de expressar quem nós somos”. O brasileiro ainda explica que “opiniões diferentes vão existir a todo momento, o que é maravilhoso”. Conclui dizendo que “as pessoas partem para a agressividade, querem impor o que é certo e o que é errado.”. É nisso que, para ele, deve ser um dos maiores focos de mudança, para que, por fim, haja uma sociedade mais igualitária. A vida dos que assumem a sua sexualidade publicamente não é fácil, e é por esta razão que dizem que se juntam em manifestações de movimentos LGBTI, para chamar a atenção sobre os seus direitos.
Alexandre Policarpo Fatumata Bari Jorge Rodeia
“Cada rosto, uma estória”
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PERSONA
“Ser mãe não é o bicho de sete cabeças como toda a gente me dizia”
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“Sou mãe, estudo e tenho sonhos” Inês Samina é emigrante portuguesa e construi o seu futuro com a pequena Aaliyah
“F oi em 2016. Tinha acabado de fazer 18 anos e emigrei para Inglaterra com um foco, um objetivo, um sonho”. Inês Samina faz parte dos mais de 30.000 portugueses emigrantes no Reino Unido nesse ano, segundo o Observatório de Emigração. O objetivo é comum: encontrar novas possibilidades, alcançar novas conquistas, procurar num país estrangeiro o que a sua “casa” não foi capaz de oferecer. E por isso lutou. Instalou-se com o seu parceiro, inscreveu-se no curso superior de Gestão de Recursos Humanos na Universidade de Northampton e arranjou trabalho, mas Inês não se esquece de referir as constantes dificuldades que um emigrante enfrenta, não tanto ligado à língua ou a algumas diferenças culturais, mas principalmente em integrar uma sociedade que em pleno século 21 ainda olha de lado quem vem de longe, apenas porque vem de longe, “em Inglaterra há muita gente que não gosta de nós (…). Para eles somos inferiores, não sabia que nos acham burros porque não somos da terra deles”. No entanto vê também o lado bom de ser emigrante: o estilo de vida é diferente, a moeda poderosa, ter possibilidade de viajar e comer fora todas as semanas, algo que em Portugal lhe era impossível, “num ano fui a Paris 3 vezes, e visitei 5 cidades. Em Portugal? Nem em 5 anos conseguiria”. E se a jornada já era complicada, então uma notícia veio abalar a recente estabilidade da adolescente. “Soube que estava grávida. Estava aterrorizada? Muito!”. Em Portugal, uma média de seis adolescentes dão à luz
todos os dias, segundo dados mais recentes em relação ao caso, datados de 2015, os últimos disponíveis, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística. Mas mais do que uma estatística, Inês é a personificação dos medos de uma jovem mulher, “vi o meu futuro ser destruído, comecei a imaginar as críticas, a reação dos meus pais, na minha cabeça era a vergonha da família.” Medos e paranoias criadas por estereótipos tão enraizados nas sociedades, ligados à imagem de uma mulher frágil, jovem, que “estragou a vida dela” por carregar uma criança, imagens que deixam a sua marca. Inês fala das vezes que considerou o aborto, fosse por medo ou vergonha, mas no fim o apoio do seu parceiro e familiares foi o suficiente para manter a vida que crescia dentro dela e começar, mais uma vez, a organizar o seu futuro. Optou por adiar o curso e mais tarde por o concluir virtualmente, preparou o seu lar para a chegada da pequena Aaliyah, mas conta com amargura as constantes dificuldades que o seu
novo país lhe apresentava. Devido a uma gravidez de risco, foi necessário permanecer em repouso absoluto o que causou o seu despedimento, que só mais tarde descobriu ser ilegal. E ser mãe? “Ser mãe não é o bicho de sete cabeças como toda a gente me dizia, não me perdi, não deixei de fazer a minha vida”, óbvio que encontrou dificuldades, no fundo uma gravidez é toda mistura de sentimentos, frustrações, medos e conquistas diárias que contribuem para um crescimento pessoal, “havia alturas em que não tinha cabeça para dar mama sequer, andava mais em baixo, afinal éramos só nós, e agora vamos ter sempre alguém connosco”, e as lutas interiores não são o pior, no exemplo de Inês “os olhares de lado, os comentários desnecessários e os conselhos que não pedimos” mostram exatamente isso. Numa sociedade onde uma mãe é julgada por fazer e por não fazer, em que tem de pensar sempre e apenas na filha, esquecer o seu Eu, “a mãe não pode estudar, a mãe não pode ter sonhos, a mãe não pode ter vida própria senão é má mãe”, Inês toma o seu lugar, “sou do contra, sempre fui, e vou deixar a minha filha orgulhosa da mãe que tem”. É uma mulher adulta que estuda, que faz a filha sorrir todos os dias, que sonha, e que é isso que fará com o seu futuro: fazer de si alguém de sucesso. E porquê? Porque “ter um filho não nos corta as pernas! Nunca desisti de mim nem nunca o vou fazer, e é o conselho que dou a toda a gente. A vida é o que fazes dela”.
Ana Miranda 51
PERSONA
“A
ntes de saber o que era religião, eu já era religiosa”, quem o diz é Ana Pessoa. Sempre esteve ligada à religião Católica, por influência da família, tem 60 anos, nasceu em Lisboa e viveu maioritariamente nesta cidade. Karolyne Lima, de 22 anos, brasileira natural de Nova Friburgo, também nasceu num berço religioso, por sua vez, Protestante. Diz que os princípios da sua família sempre foram com base na Bíblia e foi o que lhe transmitiram. Seguiram, porém, caminhos diferentes, e enquanto a fé continua a mover a jovem no seu objetivo na Terra, Ana Pessoa acredita que o uso da razão a afastou da crença. Foi batizada aos quatro meses de vida no dia de Natal, começou a ir à missa aos seis anos de idade, foi catequista e chefe do primeiro catecismo. Diz que acreditava seriamente que tinha fé, realça que gostava de frequentar a Igreja pela biblioteca de biografias lá existentes. “Era algo que me fascinava”, relembra. Já na adolescência, por volta dos 17 anos, mais fortemente após o 25 de abril, foram-lhe surgindo questões que começaram a pôr em causa a sua fé. Questionava-se sobre o vínculo da Igreja com o feminismo, a economia, as relações sociais e a política. “São as mulheres que organizam a igreja e, portanto, nada disso é visível”, exemplifica. Tornou-se crítica à história cristã e às perseguições realizadas aos povos muçulmanos, por exemplo. Na altura, achou importante confessar-se a um padre sobre as suas dúvidas, mas declara que este a alertou que estava a fazer “perguntas da razão, que não podiam ser respondidas com questões de fé”. Por respeito, portanto, decidiu afastar-se da Igreja. “Por exemplo, vou a Fátima e não sinto nada, e isso é uma questão de fé, a minha razão sobrepõe-se a tudo isso, não acredito que haja outra vida”, afirma. Por outro lado, essas questões não afetaram Karolyne Lima e a sua relação com Deus. “A gente acredita no que a gente sente,
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“Para mim, Jesus é uma pessoa muito viva”
Diferentes sobre
A religião tomou rum Karolyne Lima
Karolyne Lima naquilo que é vivo dentro da gente e, para mim, Jesus é uma pessoa muito viva”, declara na sua fé. Assim como Ana Pessoa, nasceu num lar crente, e
esse foi o seu primeiro contacto com a religião evangélica, neopentecostal. “Meus pais me falavam ‘até certo ponto, você me acompanha. Depois,
perceções e a fé
mos diferentes para e Ana Pessoa
“Vou a Fátima e não sinto nada, e isso é uma questão de fé”
Ana Pessoa se não quiser ir mais, você não vai’”, recorda. Entretanto, seguiu o caminho por “livre e espontânea vontade”. A crença de que temos um objetivo
maior na Terra é o que move Karolyne Lima: “o Reino dos Céus, que foi criado por Jesus, precisa ser expandido e levado a mais pessoas que ainda não
o conhece”. Para atingir esse reino depois da morte, só é preciso acreditar. “O que te salva [para o Reino dos Céus] é a sua fé, o importante é acreditar em Deus”, afirma a jovem, que tem feito isso muito fortemente. É por isso que não desvalida outras religiões: “eu não sou muito apegada à religião em si nem acredito na verdade absoluta, mas, sim, na personificação de Jesus.” Algumas igrejas evangélicas, na visão de Karolyne Lima, têm-se esquecido desse propósito maior, o que a desanima da Igreja enquanto instituição. “Muitas vezes o cristianismo tem caído nessa vertente de glorificar ou idolatrar pessoas que estejam à frente de alguma igreja, e às vezes as pessoas esquecem o verdadeiro motivo de estarem ali, que é Jesus”, reflete. Observa, porém, que isso nunca a abalou em relação à fé em Deus. A passagem bíblica que mais a agrada é a da mulher prostituta salva por Jesus quando estava a ser apedrejada: “é isso, estender a mão para quem está errado, ninguém merece ser apedrejado”. “Jesus era o cara mais humano da vida”, completa. Hoje em dia, esse sentido humanitário também é valorizado pela docente Ana Pessoa, que considera ótimo ter tido a educação ligada à religião Católica, por esta lhe ter transmitido valores fundamentais, como o pensar primeiro no próximo. “Aprendi que a ordem deve ser sempre outros, outros, e só depois eu”, declara. Karolyne Lima também tem essa visão e acredita que, se pudesse, a sua prioridade como humana seria “dar comida e casa para geral”. Ambas, portanto, foram criadas na fé religiosa, seguiram caminhos diferentes depois de certa idade, mas unem-se na valorização de certos ensinamentos cristãos. “Temos que ter uma estaca, mesmo que seja para passarmos a vida toda contra ela”, racionaliza Ana Pessoa, mais uma vez.
Alexandre Policarpo Fatumata Bari 53
PERSONA
“Destino Marcado” Tiago Correia: a estória de quem o fado faz parte da sua identidade
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L
á fora o ruído era imenso, a chuva forte não dava tréguas e as rajadas de vento sopravam arduamente em ruas que têm como tradição o silêncio por instantes. Luzes ambiente, ao fundo, ouve-se a típica guitarra portuguesa a ser afinada e uma voz que nos pede solenemente “silêncio que se vai cantar o fado“. Essa é a vida de Tiago Correia desde à 10 anos atrás, quando a pertinente paixão por este género musical começou. Desde pequeno que adorava cantarolar, mas ao contrário de todos os outros jovens que cantavam as populares músicas pop da altura, Tiago preferia as melodias portuguesas que os avós cantavam e posteriormente lhe ensinavam. Melodias essas que despertaram no seu jovem ser um interesse particular pelo fado, principalmente por perceber que seria um campo musical no qual com empenho e dedicação poderia criar uma ligação intima num mundo em que o sentimentalismo e alma estão fortemente relacionados. O seu primeiro contacto com o fado deve-se ao seu avô, o qual descreve com uma forte inspiração para a pessoa que é nos dias de hoje, ouviram Fernando Farinha. Foi aí que tudo começou. Poucos anos mais tarde, Tiago Correia tinha a sua estreia no mundo do fado ao pisar o palco de um aclamado concurso televisivo de seu nome “Uma canção para ti” no qual acabou por não conseguir vencer, contudo, não desistiu e em 2011 uma vez mais Tiago tentava a sua sorte. Desta vez, foi na RTP que o jovem fadista procurava ser um dos sortudos a pisar o palco do Casino Estoril para encenar na peça musical de Filipe La Féria “Fado História de um Povo” e conseguiu. Ao longo de um ano Tiago procurava conciliar tanto a vida artística quanto a vida escolar, o que refere que não encontrou uma dificuldade acrescida, uma vez que as suas notas escolares até aumentaram. Foram estes sucessos com um relativo pouco tempo de trabalho que deixaram o fadista intrigado com o que poderia contribuir e
construir nesta realidade musical. Atualmente, atua no Bairro Alto numa das casas mais antigas por ali existentes e, é dessa forma que diariamente pode demonstrar a todos que o ouvem a paixão e o significado com que interpreta cada uma das músicas do seu reportório. O seu percurso “profissional” Tiago não consegue descrever com apenas uma palavra, preferindo utilizar o título de uma das músicas da autoria de Fernando Farinha “Destino Marcado” pois apesar do trabalho e esforço diário, o jovem refere que a sua vida “acontece-me, bate-me à porta” pelo que as oportunidades que lhe surgem são constantes e que mesmo numa época em que se encontrou relativamente mais afastado do fado, o mesmo nunca lhe saiu completamente da sua vida, até porque considera que o fado nunca vai desaparecer do seu quotidiano. “Todos os dias cantava, nem que fosse só para eu próprio me ouvir”, o jovem dá conta que a música é essencial na sua vida e que mesmo que já se tenha afastado dos palcos à uns tempos atrás, nunca pensou numa “retirada definitiva” afinal de contas para o fadista “não há dia que seja dia se não ouvir o meu fado”. No dia 5 de março de 2018, 10 anos depois de “tudo começar” Tiago Correia lança o seu primeiro single com
o objetivo de homenagear o seu avô que faleceu em Junho de 2017. “Simples Lamento”, canção carregada de sentimentalismo e de saudade, revela a forte ligação que Tiago tivera com o seu avô, a sua inspiração e fonte de motivação. O falecimento do seu avô foi um dos momentos mais conturbados da vida de Tiago, afinal, o principal motivo do seu sucesso, partiu. Foi então através deste single com que o neto procurou transmitir toda a sua gratidão, amor e principalmente a falta que sente do seu “mestre”, como o mesmo gosta de lhe chamar. Num futuro próximo, Tiago Correia pretende publicar um CD, nomeadamente até ao fim de 2018, para tal pretende até essa mesma data produzir mais músicas da sua autoria com o propósito de fazerem parte do seu projeto. Esta é a vida de um jovem fadista que se numa primeira fase adorava cantarolar as músicas populares portuguesas com os seus avós tendo como consequência o gosto ganho à música, de hoje em dia sente que não consegue viver sem a tranquilidade e estabilidade que a mesma lhe transmite, o mesmo acresce de significado quando se fala de fado, a sua grande paixão que dificilmente encontrará igual nesta vida.
Jorge Rodeia
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PERSONA
O primeiro degrau para a dependência “Dei por mim a olhar para o espelho, coberto de sangue, à procura de uma veia”
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M ilhares de libras, solidão, viagens constantes, sofrimento,
este foi o paradigma de Sérgio Albuquerque ao longo de dois meses da sua vida. Dois meses que refletem de forma muito breve aquilo que foram os seus últimos 12 anos de existência. A sua infância perturbada desencadeou um conjunto de problemas que um indivíduo com 16 anos não espera ter de ultrapassar em tão tenra idade, pois, foi nessa mesma altura que o vício descontrolado por drogas começou. Sérgio, nascido em 1977, era uma criança como as demais na sua altura. A diferença deu-se quando o mesmo foi abandonado pela própria mãe com apenas 6 anos, acabando por se reencontrar com a mesma 3 anos mais tarde, prometendo-lhe uma vida melhor. Do Norte de Portugal foi morar para o Distrito de Setúbal. Os 7 anos seguintes “foram dos melhores, senão os melhores anos da minha vida… Vivia com os meus primos, tios, sentia que tinha ali uma família…”. Contudo, Sérgio não se encontrava sozinho a viver com a sua mãe, morava também com o seu irmão, meses mais velho. Apesar de muito unidos, uma pequena discussão entre irmãos foi motivo suficiente para a sua mãe o confrontar com uma situação que para a maioria dos jovens é algo completamente impensável. Foi de malas postas na rua que Sérgio encontrou a sua casa no dia que regressara do trabalho e, foi com essa mesma perspetiva na vida que o mesmo teve de batalhar. “Foi aí que tudo começou, foi aí que comecei a fumar as minhas primeiras ganzas de forma constante, e no meu ponto de vista esse é o primeiro degrau, para uns pode ser insignificante, mas é o primeiro degrau”. Sozinho, sem uma visão de futuro, devido à inexistência de estudos, Sérgio vivia
a vida em casa de amigos e conhecidos e, por vezes, por poucos meses, a sua mãe abria-lhe a porta de sua casa para que o mesmo voltasse, mas até aí tudo corria dentro da “normalidade”. A sua vida nesse momento é descrita como um período de relativa paz e tranquilidade, tudo mudou aos 24 anos. Com essa idade, Sérgio foi viver para a Madeira com uma mulher que fizera parte do seu grupo de amigos, mulher essa que pertencia a uma família que se encontrava diretamente ligada ao tráfico de droga, nomeadamente o seu irmão. Se, inicialmente, o seu contacto direto no mundo das drogas tinha começado de forma esporádica, com o motivo de “Só te quero ajudar a ganhar algum”, uns meses mais tarde, Sérgio en-
“Foi aí que comecei a fumar as minhas primeiras ganzas de forma constante” contrava-se viciado naquilo que para muitos indivíduos é o início do fim, a adição à heroína. Durante cerca de um ano e meio, quando se deitava para dormir, a única barreira entre a sua cabeça e a rua era um teto de uma casa abandonada que o mesmo encontrou. O trabalho deixou de ser uma prioridade e o consumo de forma completamente descontrolada começou a fazer parte do seu dia a dia, deixando de lado a forma convencional de consumir droga e acabando por se injetar de forma. Em 2014, surgiu-lhe a oportunidade de, através de trabalhos ilegais, conseguir juntar algum dinheiro. Era a sua luz ao fundo do túnel. Todas as semanas viajava de forma constante, trabalho que lhe garantia milhares de euros ao fim da semana, o que po-
deria garantir um retorno à vida “normal” de um cidadão comum, contudo, foram outros caminhos pelos quais Sérgio optou. Ao fim de uma semana de trabalho com cerca de 1800 euros dentro da sua carteira, eram necessários cerca de 2000 para que o seu organismo se encontrasse satisfeito e, por vezes, ainda ficava a dever dinheiro, o que lhe causava ainda mais problemas. Foi nesta vida de altos e baixos, prestes a sucumbir com o que o destino lhe proporcionara que Sérgio recebeu a notícia que o seu irmão mais novo havia falecido, foi o fim. Não o fim da sua vida, mas sim o ponto final naqueles que tinham sido 12 anos de adição às drogas. Atualmente, Sérgio vive numa residência pertencente à “Comunidade de Vida e Paz”, em Fátima. O seu principal objetivo é conseguir reconstruir o seu futuro e conseguir viver tudo aquilo que não pôde fazer nos últimos anos. Tendo como sonho de vida ser pai, faltam apenas 3 semanas para que Sérgio, ao fim de 14 meses de um plano de reinserção social possa voltar a ter o controlo total na sua vida, desta vez em Leiria, local que a comunidade lhe destina. Sérgio não garante nunca mais voltar a relacionar-se com o motivo de destruição da sua identidade, contudo, assegura que fará os possíveis e impossíveis para que isso não volte a acontecer. Prova disso dá-se quando um dos maiores gostos de Sérgio, a escrita, só acontecia quando o mesmo se encontrava sob o efeito de substâncias ilícitas, contudo, dois anos depois do início do tratamento, foi possível sentir-se inspirado e motivado a fazer uma das coisas que mais lhe dá prazer na vida, essa inspiração veio através da sua maior motivação atual, ser saudável e principalmente, feliz.
Jorge Rodeia 57
“Cada rosto, uma estória”
persona .PT
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