Caderno apontamentos

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caderno de apontamentos o deus da fortuna Coletivo Alfenim





CADERNO DE APONTAMENTOS

O Deus da Fortuna

Apoio

Realização alfenim

COLETIVO DE TEATRO

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2010


© 2013 - Coletivo de Teatro Alfenim coletivoalfenim.com.br alfenim@coletivoalfenim.com.br Caderno de apontamentos - O Deus da Fortuna - Coletivo Alfenim Os artigos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Coordenação: Márcio Marciano Realização: Coletivo de Teatro Alfenim - João Pessoa - PB e Fundação Nacional de Arte - FUNARTE - Rio de Janeiro - RJ Abril de 2013 Organizadores: Adriano Cabral, Gabriela Arruda, Marcello Tostes e Vilmara Georgina Projeto gráfico: Marcello Tostes (Côco) Fotografia: Avati Castro, Guilherme Honorato e Sol Coelho Revisão: Márcio Marciano, Adriano Cabral e Vilmara Georgina Impressão: Gráfica JB Tiragem: 2.000 exemplares João Pessoa - Paraíba - 2013


Sumário Apresentação

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Olhares Externos Eliane Lisboa --- Uma poética lição de economia Roberto Efrem Filho --- Lâminas de corte Iná Camargo Costa --- Figurações do fetichismo Sebastião Milaré --- Olhares críticos

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Olhares Internos A metafísica do Capital --- Gabriela Arruda Dramaturgia --- Márcio Marciano e Paula Coelho Figurino --- Vilmara Georgina Música --- Wilame AC e Mayra Ferreira Cenografia e Iluminação --- Márcio Marciano Atuação Cecilia Retamoza, Lara Torrezan e Vitor Blam Adriano Cabral Daniel Araújo

Ficha Técnica

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Apresentação Este Caderno de Apontamentos não é apenas o registro das inquietações permanentes e das certezas provisórias que marcaram o processo de criação do espetáculo O Deus da Fortuna. Pretende ser o documento de uma fase de renovação interna e de ampliação do horizonte estético e político do Coletivo. Estas páginas dão testemunho da necessidade de verticalizar a experiência em sala de ensaio e de intensificar o diálogo crítico com parceiros e colaboradores. Dessa forma, além de textos produzidos pelos artistas criadores do espetáculo, o Caderno traz a contribuição de observadores externos, que servem de balizamento não somente para uma reflexão mais aprofundada de nosso trabalho, como também de provocação teórica acerca da necessidade de pensar o Teatro como instrumento de elucidação das contradições que dilaceram a atualidade. Está dividido em duas sessões: a primeira, Olhares Externos, é dedicada ao exercício crítico de pesquisadores que acompanham o desenvolvimento do projeto estético e político do Alfenim. Traz artigo do professor Roberto Efrem Filho, escrito a partir de sua fala por ocasião do Seminário A Metafísica do Capital, organizado pelo Coletivo como forma de subsidiar as discussões em sala de ensaio sobre os mecanismos de legitimação ideológica do capitalismo. Trata-se de uma instigante abordagem sobre a necessidade de os artistas contemporâneos inventarem novas formas de “vingança” contra a ação desumanizadora do Capital. O artigo é seguido pelo relato de uma descontraída conversa entre o Alfenim e Iná Camargo Costa, em São Paulo, no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, durante temporada em julho de 2012, a convite da Companhia do Latão. Como sempre, em meio a comentários irônicos, a generosidade crítica e a grandeza intelectual de Iná apontaram soluções práticas para problemas de varejo, e a presença de acertos no atacado que nos fazem cada vez mais acreditar na pertinência de nosso projeto. A sessão Olhares Externos reúne também as resenhas críticas de Eliane Lisboa e Sebastião Milaré. São observações agudas e generosas sobre O Deus da Fortuna, que nos ajudam a entender melhor o alcance de nossa experiência. A segunda sessão do Caderno, Olhares Internos, dedica-se ao registro do processo de construção do espetáculo. Inclui artigos e notas escritos pelos integrantes do Coletivo sobre dramaturgia, música, cenografia, iluminação e figurino, além de conter relatos dos atores acerca do cotidiano de ensaios e da criação das cenas. Ao Leitor que, como nós, admite que “é preciso agir sem esperança”, desejamos uma leitura com proveito. Márcio Marciano 7


OLHARES


EXTERNOS


dialĂŠtica

Eliane Lisboa


uma poética lição de economia Quando o trabalho de Bertolt Brecht espalhou-se pela Europa e chegou às Américas, nos anos 60, tornou-se frequente a realização de espetáculos apoiando-se em concepções dadas como suas, que, na maioria das vezes, implicavam basicamente num palco vazio no qual os atores, mesmo fora da cena, ali permaneciam, e quando dentro dela, a intervalos regulares dirigiam-se ao público. Embora acreditando seguir a cartilha brechtiana, muitos destes espetáculos, na maioria das vezes, não revelavam o mínimo senso dialético, sendo óbvios, redundantes quando não ministrando aulas enfadonhas, em tom professoral, ensinando a um público simplório a solução para os problemas do mundo. Ainda que nem todas as montagens de “caráter” brechtiano pecassem a este nível, muitas delas o fizeram, e por muito tempo acreditou-se que ser brechtiano era ser chato. Um risco similar, evidente, se coloca quando um grupo decide montar um espetáculo como O Deus da Fortuna, a partir de tema tão árido quanto a presença do capital financeiro nos dias atuais. Mas o Coletivo de Teatro Alfenim, que assume como base de seu trabalho o pensamento brechtiano e desenvolve uma prática que é antes de tudo um laboratório de pesquisa nesta perspectiva, nos oferece com suas montagens um outro olhar sobre as possibilidades que as experiências e as trajetórias de Brecht legaram ao mundo. Antes de mais nada, a consciência de que é essencial um trabalho de atuação meticuloso, um preparo cuidadoso do

ator no aperfeiçoamento e aplicação das técnicas de atuação utilizadas, determinantes para o prazer do público ao assistir ao trabalho, ao ouvir suas falas e cantos. E o prazer da arte é essencial. Brecht não só o compreendeu como insistentemente nos alertou sobre isso. O espetáculo é de algum modo uma lição de interpretação, de uma certa maneira de interpretar, esta também dialética, no jogo permanente de ida e vinda dos atores, onde se constrói um instante de cena em que o ator vive uma situação e quase no mesmo instante narra o que vive. Em todos estes momentos ali está o ator, narrador de si mesmo e da situação em que se insere, atuando sempre e com a mesma precisão e concisão com que os objetos cênicos são pensados. Em O Deus da Fortuna, cada um dos elementos de cena é parte de uma minuciosa seleção de materiais e composição espacial. Num palco de dimensões relativamente reduzidas, múltiplos universos têm lugar, enquanto se desenvolve uma narrativa entremeada de outras tantas, todas elas convergindo para um objetivo explícito: fazer-nos conhecer as tramas do Capital no mundo atual, revelar os distintos aspectos de um sistema que a todos engole, fazendo acreditar cegamente nos sonhos de acumulação, na esperança de dias melhores em que o Deus da Fortuna baterá à porta de todos. Como uma lição de economia e finanças pode causar tanto encantamento? O espetáculo cruza narrativas e gêneros, do 11


drama ao grotesco, do cômico ao lírico, de atores a bonecos, num jogo em que a cena, com mínimos objetos, incessantemente se transforma e re-transforma. Simples tábuas, numa incessante variação de sua disposição em cena, passam de mesa a escadas, de tablados a pontes, de empanada de bonecos a altar. Enquanto os atores se despem, vestem, tiram e colocam adereços, passando também por distintos papéis, num jogo essencialmente brechtiano em que o narrar e o atuar são faces de uma mesma figura. Onde homens e mulheres assumem papéis indistintamente masculinos e femininos com a mesma precisão e leveza. Ousamos dizer que o grupo situa-se num pós-Brecht, no sentido de desenvolver uma linguagem específica em que se apropria das descobertas e reflexões feitas pelo diretor, dramaturgo e pensador alemão, e as insere numa realidade e linguagem contemporâneas, a do próprio grupo que a cria e domina, tanto do ponto de vista temático quanto estético. E se ainda temos os atores ao lado da cena, que se preparam para as entradas e saídas à vista do público, em O Deus da Fortuna tudo é feito com sutileza e sabedoria dramatúrgica, suas imagens inserindo-se natural e poeticamente no espetáculo que a nós se revela. Estabelece-se mesmo um jogo sutil entre a cena que vemos e o ator que ao lado dela espera ou se prepara para a próxima, vestindo ou despindo figurinos, que, pendurados estes, passam imediatamente a compor o cenário, com suas cores fortes, densas, como o clima geral do espetáculo. A ideia dos quadros, das rupturas épicas, tão exploradas e defendidas por Brecht, aqui se colocam 12

como um a mais, no entrecruzar de muitas narrativas, todas afinal direcionadas a um mesmo fim, através de jogos e parábolas cômicas, em narrativas que se inserem dentro de narrativas e personagens que em poucos segundos se transmutam em outros.

O grupo situa-se num pós-Brecht, no sentido de desenvolver uma linguagem específica em que se apropria das descobertas e reflexões feitas pelo diretor, dramaturgo e pensador alemão, e as insere numa realidade e linguagem contemporâneas

Esta concepção de construção de uma cena que se define no processo de construção de sua própria dramaturgia permite também o prazer do jogo, que nela se evidencia, assim como as soluções do ponto de vista do lugar dos intérpretes, que, saltando de um para outro personagem, assumem cada um deles com o mesmo apuro interpretativo.


Intérpretes narradores interpretam sua própria (e nossa) existência, e brechtianamente não nos trazem solução alguma, mas, de algum modo, sim uma esperança, pelo menos a de que acordemos um dia. A “brincadeira” cênica aproxima-se ainda mais do pensador alemão ao tomar como impulso gerador os seus escritos, sua vontade expressa de um dia montar um espetáculo sobre este Deus presente na cultura chinesa. Por incontáveis vezes, Brecht inspirou-se no universo oriental, em particular o chinês, para desenvolver suas narrativas e fábulas. O Alfenim retoma esta prática, apresentando em cena um material plástico de rara beleza no esmero de figurinos que falam por si; cada peça, cada adereço merece um olhar atento da plateia para se compreender os meandros de sua concepção. Simples e funcionais, eles compõem poeticamente a cena, compondo também sua dramaturgia. Uma ironia latente, mas sutil – uma característica dramatúrgica que, parece, vai se revelando como própria da linguagem do Coletivo Alfenim, pontua o espetáculo ao longo de seu percurso. Em alguns momentos, ela se desmascara e revela toda a sua força, como se o cerne do espetáculo se apresentasse contido numa simples fórmula. Desde o “miserável” público da abertura, estranha saudação a este que aos poucos vai entendê-la, ao se reconhecer inserido neste sistema, acendendo metafóricos incensos ao Deus aludido, e igualmente incapaz de reagir às pressões do Capital preferindo fazer acordo com ele. Do mesmo modo, reforça-se a ironia quando os colonos vêm protestar à frente da casa. Eles são

rechaçados e recuam ao serem questionados sobre a quem pertence tudo o que eles usam: casa, terras, sementes. A violência do Sr. Wang, ao se dirigir a seus empregados, provoca o espanto de seu secretário, pois o patrão “sempre explorou com ternura as qualidades de nossa boa gente, e disso tirou seu lucro legítimo e também o nosso sustento”. O espetáculo, ainda assim, é de algum modo quase uma viagem à história do teatro, tal a profusão de referências e diversidade de linguagens que explora. A oferenda ao Deus, no início do espetáculo, nos coloca, embora no Oriente, muito próximos da tragédia grega, de uma Jocasta ou do povo de Tebas que vem pedir aos deuses do Olimpo proteção e defesa contra os males que os assolam. O momento do contrato de casamento de sua filha, Djin Djing, com o filho do, este sim poderoso, Sr. Cai Fu (em quem o próprio Deus encarna) nos remete a Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, quando o pai e a mãe selam o casamento de seus respectivos filhos, contabilizando suas rendas e posses, satisfeitos por juntar dois capitais, no caso suas terras, e desejosos de que os futuros esposos gerem muitos braços para garantir a produção das mesmas. Eram outros os tempos do Capital, mas ali também os filhos são duas mercadorias em jogo. Em O Deus da Fortuna mensuram-se outras posses e o negócio já não se dá de igual para igual, ficando bastante claro de quem é o poder, no caso, ao se concluir o primeiro encontro do Sr. Wang com o agiota, Cai Fu, quando o primeiro se põe de quatro para ser montado, esporeado e chicoteado pelo filho de seu credor. Apresentado de início 13


como um poderoso senhor, vemos o Sr. Wang humilhar-se diante daquele que nada produz, mas é quem o financia e assim garante seu poder. Esta aliança e o jogo de relações estabelecido são complexos demais para serem suficientemente desenvolvidos na peça, mas são demarcados os territórios, definidas as relações e o lugar ocupado por cada um dentro do grande jogo manipulado pelo Capital. Referência evidente a Shakespeare, mas quão oriental também, nos espectros que aparecem ao Sr. Wang, da esposa suicida e dos empregados, que morrem ao tentar retirar seu corpo do rio, quando se revela ter sido ela própria usada pelo Sr. Wang para saldar dívidas. O fantasma da mãe pede-lhe inutilmente para que não faça da filha, mercadoria. E disto ele não pode fugir, afinal não passa de “um humilde comerciante endividado”. E, por isso mesmo, “não acredita em fantasmas”, num jogo irônico onde se evidenciam as crenças como fruto das conveniências. Os recursos cômicos perpassam o espetáculo trazendo equilíbrio e contraste aos momentos de maior dramaticidade. Eles são muitos e revelam um domínio das diferentes fontes exploradas. Há, por exemplo, o recurso da história, por demais brechtiana, narrada em tom de parábola sobre o homem que, desesperado, pensa em se atirar de uma ponte quando surge um pescador apressado que o empurra para abrir passagem, acusando-o de “só pensar em si mesmo”. Em outro momento, num quiproquó molieresco, o Sr. Wang apanha de seu secretário “por engano”. As duplas cômicas, tradicional figura do gênero, 14

se sucedem ao longo do espetáculo, com a passagem dos aspirantes a eruditos e dos peregrinos. A referência cômica já se aponta no nome dos aspirantes: Ou Yang Xin e Ou Yang Xun. Perguntinha fatal dos acadêmicos: “se o Deus da Fortuna representa a promessa de felicidade universal, por que por onde ele passa só promove a desordem e a desgraça?” A mesma reflexão surge ao se apresentar o Deus da Fortuna na cena dos bonecos, em citação literal do diário de Brecht. Mas, observa-se então, que o Deus é imortal, e a multidão se retira “cheia de renovada esperança”. Por sua vez, a outra dupla cômica, a dos peregrinos, revela-se como imagem farsesca, por isso mesmo contrastante, de todos os rituais e crenças vigentes. Em meio a dramas e risos, o amor ainda encontra seu lugar na peça, sempre no contraste de dois mundos: Djin Djing interroga-se sobre o amor e Liu Po não pode sonhar, pois já nasceu escrava e prisioneira: “Não me venha dizer o que é respeito”. Assim como a Senhora Shu, ao descrever a violência do que foi a sua “primeira vez”, causa o espanto e a fuga de Djin Djing: “estes moços pensam que a vida é um pastelzinho primavera”. Jogo síntese de uma sociedade de classes, na qual aqueles que a compõem, às vezes, têm consciência disso. No banquete, a jovem tenta se imolar. Os dois jovens estão como que excluídos deste universo, o encontro dos dois é um momento lírico, poético, como simbolizando afinal a esperança de um outro tempo. No entanto, o Sr. Cai Fu não aceita cancelar as dívidas e o casamento deve ser anulado. Mas o Deus da Fortuna desce em seu corpo e faz uma proposta ao Sr. Wang. Ele, Wang, deve ser julgado,


como o Deus da Fortuna, já que é o todo poderoso frente a seus empregados. Se for absolvido, o Deus vai lhe ensinar “como o ouro se dissolve em pura aparência, como suas dívidas de hoje serão sua fortuna de amanhã.” O julgamento acontece, mas todos os empregados estão dormindo ou não têm coragem, pois se consideram dependentes do trabalho que o senhor lhes oferece, e ele é absolvido. O Deus da Fortuna vai ter templos erguidos a ele por todos os lados. O próprio Sr. Wang, que pensava colocar o Deus da Fortuna ao relento, como forma de punição por não socorrê-lo em sua falência, vai afinal erguer um templo em sua homenagem. Ao final, a lição deixada pelo Deus não é totalmente clara, de algum modo, salta-se para ela, sem deixar mais explícita, numa metáfora talvez “fina” demais – como a ideia do ouro que se dissolve - para que se possa, de imediato, como espectador captar no jogo da cena, que se trata disso, de um novo modo de exploração do Capital, de uma nova etapa do Capitalismo, agora financeiro mais do que produtivo. Se isto se coloca nos textos de apresentação do espetáculo, no espetáculo em si algo talvez precise ser melhor desenhado

a respeito. E, como se o grupo receasse nos deixar na desesperança, após a vitória do Sr. Cai Fu, ao contrário de Brecht, que mais de uma vez conclui com “crueldade” suas parábolas e peças, o Coletivo Alfenim encerra o espetáculo com a frase da Senhora Shu, alertando ao público de que está na hora de acordar. Esta piscadela para o público, de algum modo rouba a força da dialética construída, é quase um deslize, pois a partir desta cumplicidade estabelecida o público pode sair satisfeito, pois um dia as massas despertarão para “varrer as cinzas de incenso e dar um pé na bunda de Deus”. Mas a força dialética recupera-se na canção final, ironia musical em que melodia e canção trabalham em sentidos opostos, num claro, e por isso mesmo profundo paradoxo, tão sabiamente explorado por Brecht. Vozes afinadas, belas, além do luxo de ter-se um músico em cena, corpos e gestos medidos, exatos, precisos, inteligência na construção da cena e do espaço, nada em O Deus da Fortuna está fora do lugar ou em excesso. Lição de economia, o espetáculo é também uma primorosa lição de economia da cena, do melhor teatro, e honrando a Brecht.

Eliane Lisboa é professora no curso de Arte e Mídia da Universidade Federal de Campina Grande e dramaturga. Foi diretora de teatro da Cia. Teatral Jogral em Santa Catarina e atualmente dedica-se à direção de ator. Tem atuado principalmente nos seguintes temas: formação do ator, dramaturgia, história, teoria do teatro e crítica teatral.

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corte

“Mas a sagacidade do Coletivo encontra um ápice na exploração do conceito de contradição.”

Roberto Efrem Fº


lâminas de corte

sobre três estratégias para o encontro do “humano” Talvez as mais importantes contribuições intelectuais à compreensão da realidade em que um tempo se refaz (e que por ele é refeita) sejam aquelas tão maleáveis quanto afiadas. São interpretações do mundo capazes de penetrar as mais ermas searas, os mais intricados espaços, contorcendo-se, se necessário, reinventando-se. Walter Benjamin foi autor de contribuições assim. Enquanto os intelectuais de seu tempo definhavam desesperançosos diante do terror da sociedade capitalista que eles desvendavam – e que, de fato, era bastante assustadora, com seus nazismos, esteiras produtivas e surras no Pato Donald[2] – Benjamin transitava com lâminas nesses terrenos cruéis. Lá, entre todas as tiranias, com gestos de coragem e ousadia, ele alcançava o espaço-tempo em que os oprimidos, apesar de tudo o que os nega e por isso mesmo, permitem-nos alguma esperança. Foi desse modo, por exemplo, que Benjamin chegou ao trabalho do ator frente à câmera. Nos interstícios da indústria cultural, exatamente no momento em que a classe trabalhadora se fecha em uma sala escura com uma tela branca, Benjamin delineou o ato dramático de uma vingança. Ali, nos anos 30 ou 40 do século passado, frente àquela tela então – e talvez ainda – magnífica, cansados de suas jornadas de trabalho exaustivas, desejando (ser) o mocinho ou (ser) a mocinha, a classe trabalhadora se depara com o trabalho de um outro sujeito, o ator, aquele que representa. Este sujeito

que representa, tal qual os trabalhadores que a ele assistem, atua diante de uma máquina, um aparelho. Ele não conhece o público, não o enxerga. O ator vê apenas o aparelho, esforça-se para o aparelho, sorri e chora para o aparelho e é através dele, atendendo às exigências do microfone e das luzes dos refletores, que o ator afirma sua humanidade. Aqui, a vingança se perfaz. No instante em que, na sala escura, quando já não se vê a câmera – uma máquina, como são as máquinas frente às quais “os citadinos precisam alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia do trabalho”[3] – o ator se vinga do aparelho, colocando-o a serviço do seu próprio triunfo. O Coletivo de Teatro Alfenim é autor de contribuições assim. Atuando numa conjuntura histórica avessa à sua existência, em que cultura e mercado se relacionam simbioticamente, em que, como escreveu Fredric Jameson[4], a cultura se converte numa arena catalisadora de expansão do capital, o Coletivo desfere golpes igualmente cortantes sobre a realidade em que se acha implicado. Sua escolha de caminhar com Brecht – e caminhar com Marx e com os sujeitos cujas lutas restauram aquelas esperanças – e de demolir as quartas paredes, que em círculos de conforto nos domesticam, assinala um compromisso explícito que é maior com a arte ao passo que é mais intenso com as classes e grupos sociais subalternos. Em verdade, quer queira, quer não, os cortes 17


realizados pelo Coletivo sangram o corpo do próprio campo artístico, dos seus pudores em “se perder na política”, em “substituir a cena pelo protesto”. Se o Coletivo opta por uma arte engajada, dedica-se, sobretudo, ao exercício de uma metodologia criativa habilmente pedagógica, dialógica, do gosto mesmo com que Paulo Freire[5] experimentou a palavra “libertação”. Seus processos criativos politicamente orientados recepcionam platéias diversas. O público mais acostumado ao desconforto das cadeiras dos melhores teatros – e os melhores teatros são aqueles desconfortantes – senta-se nas mesmas arquibancadas ocupadas por integrantes de movimentos populares. Uns e outros compartilham o espaço cênico instaurado pelo Coletivo de Teatro Alfenim. Nele, longe de pretender “educar” as classes subalternas para o trânsito dócil nas artes burguesas, o Coletivo “deseduca” a sociedade. Desfaz-se de maquinarias e afirma a humanidade do ator no impacto frontal com a humanidade do público. A tarefa a que o Coletivo se obriga, entretanto, parece ainda mais árdua que aquela do ator descrito por Benjamin. A vingança provocada pelo ator benjaminiano vinha reivindicar, ironicamente, sua humanidade perante o aparelho, mas isso num mundo em que a noção de “humano” guardava maior sentido. Não porque as pessoas ou instituições daquele contexto fossem “mais humanas” do que as atuais. (O emprego do “humano” como um valor essencialista mistifica sua arquitetura histórica, o fato mesmo de que ser humano não tem nada a ver com ter nascido homo sapiens e sim com os preços estruturais a serem pagos para ser 18

mais, ser menos ou sequer ser “humano”[6]). Mas porque, à época de Benjamin, o “humano” pretendia-se universalizado pelos discursos liberais então dominantes, segundo uma concepção de sociedade marcada pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade. Por certo, tal concepção demonstrou sua fragilidade retórica e seu substrato material na guinada (inesperada?) de algumas nações ocidentais ao nazismo e ao fascismo. Mas até aí, no enfrentamento a essas ideologias tão capitalistas quanto o próprio liberalismo, o “humano” emergia. Agora como integrante de todo um arsenal simbólico contrário às atrocidades perpetradas pelos regimes totalitários. Esse “humano”, contudo, moldado à imagem e à semelhança do humano burguês, proprietário, livre para o exercício de direitos, sujeito para conjugar todos os verbos possíveis sob o “contrato social”, (ir)realizava-se mais materialmente em humanos para quem a única liberdade real estava em vender sua força de trabalho, submeter-se à geração da mais-valia e frustrar-se pela impossibilidade fática de se aproximar do “humano” que lhes diziam ser. Eram esses humanos que sentavam frente à tela em que o ator triunfava e reivindicava, contra a máquina, sua humanidade. São esses humanos que o atual estágio do modo de produção capitalista quer, a todo custo, negar. A tarefa do Coletivo de Teatro Alfenim é mais árdua porque há cada vez menos “humanidade” sobre as superfícies a reivindicar – ainda que as pessoas cujas vidas são dedicadas ao trabalho continuem a existir, como sempre existiram, ainda que permaneçam imersas em sonos profundos


de inconsciência de classe, como nota o próprio Coletivo, ainda que se mantenham engendrando mais-valia e sofrendo da exploração inexorável à contradição entre capital e trabalho. A tarefa do Coletivo é mais árdua porque novos subterrâneos precisam ser cortados sob as primeiras camadas do capitalismo financeiro. Porque o humano, espo-

Das inúmeras estratégias de encontro do humano desenvolvidas pelo Coletivo em O Deus da Fortuna, três me parecem especialmente afiadas e maleáveis: o deus, a China e o sexo liado nos meandros das conexões entre as bolsas de valores, as ações bancárias e o capital internacional, requer escafandristas para ser encontrado nas Chinas que as novas configurações da divisão internacional do trabalho impõem. E o Coletivo de Teatro Alfenim cumpre com essa tarefa. O Deus da Fortuna, seu quarto espetáculo teatral, constitui um avanço em territórios que as artes cênicas, pisando sobre eles como quem engatinha

em campos minados, costumam desconhecer ou evitar. Das inúmeras estratégias de encontro do humano desenvolvidas pelo Coletivo em O Deus da Fortuna, três me parecem especialmente afiadas e maleáveis: o deus, a China e o sexo. Se esses elementos ficcionais já se encontravam, direta ou indiretamente, presentes no argumento brechtiano que ensejou o espetáculo, o Coletivo os transmuta – como bem o fazem as concepções dispostas a se contorcer – ao nosso tempo. A primeira das estratégias, o deus, reúne ironias mordazes. Logo de início, um deus reconhece (metafisicamente?) encarnar o capital e decide se fazer homem. Desafia então um tigre, um felino inconsolável mantido entre as pernas do deus e que, encarnando o trabalho, ressente-se por ter de se fazer humano mais uma vez. Inaugura-se, a partir daí, um jogo cênico formado por um deus que se fez homem em busca de comprovações[7] e um tigre convencido da perda da batalha. Em meio aos dois, diferentes personagens conduzem a comédia. Tais personagens introduzem didaticamente no cenário uma série de metáforas de concepções marxistas. O fetiche religioso, o fetiche da mercadoria, a luta de classes, as formas de propriedade, o dinheiro: de uma gargalhada à outra do público, os conceitos penetram pouco a pouco a cena. Mas a sagacidade do Coletivo encontra um ápice na exploração do conceito de contradição. Ele está na sova aplicada pelo fiel empregado em seu senhor sob a desculpa da perseguição do deus; nas “traduções” elaboradas por esse mesmo empregado durante sua tentativa de conciliação do conflito entre 19


o proprietário e os grevistas; na subserviência do trabalhador que insiste em perdoar, “como um bom cristão”, as arbitrariedades do patrão etc. Num corte analítico próximo ao que Walter Benjamin procedeu ante a vingança do ator, o Coletivo enfrenta diferentes mediações do conceito de contradição. Articula inclusive a brevidade do espaço-tempo em que, tal qual o ator triunfa, o tigre mostra e recolhe suas garras. Não há, no entanto, ingenuidades em O Deus da Fortuna. As opções restam bastante claras: o deus é a negação do tigre, o tigre é a negação do deus. E, como um tigre, o Coletivo de Teatro Alfenim esgueira seus dentes sobre realidades que muitas das mais finas lâminas não alcançariam. A China é uma delas, o sexo outra. Se O Deus da Fortuna proporciona uma crítica voraz ao capitalismo financeiro, como não recorrer ao país onde o crescimento econômico aparenta não encontrar barreiras? Claro, a China do argumento de Brecht não é a China atual. Nas duas, entretanto, persistem formas específicas de sobrevivência do “arcaico” que, de um modo ou de outro, cruzam-se com os movimentos históricos de seus tempos. É percebendo isso que o Coletivo atua. Ele atinge o presente jogando com o passado – mas com um passado dialeticamente comprometido com este nosso presente. Assim, a crítica ao capitalismo financeiro se revela no seio de uma estória que se passa num tempo aparentemente longínquo. Olhares desatentos – ou pouco cortantes! – suporiam que tratar do capital em meio a um cenário “feudal” constituiria um equívoco. Não o é. O

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capitalismo não prescinde de certas arcaizações[8]. Não mantém fidelidade aos valores liberais, tampouco a concepções mais ou menos “universais”, mais ou menos “democráticas” de humanidade e sociedade. Não à toa, o capital marcha sobre a China. Ou melhor: sobre bilhões de chineses. Mas avança sem pedir qualquer licença às luzes da modernidade ocidental e à concepção de “humano” que elas nos legaram e eles desconhecem. Segue, sobretudo, valendo-se de um trabalho de retalho dos corpos e do sexo que, de regra, a tradição marxista tem ignorado. O Coletivo de Teatro Alfenim, contudo, confronta-o. A filha do patriarca sendo utilizada como moeda de troca; a empregada que é chamada a ir à cama do patrão; a narração da primeira experiência sexual da anciã, um estupro; os passeios misteriosos da mãe suicida entre os marinheiros; o pater sendo levado a “ficar de quatro” para, humilhado, servir de “cavalinho” ao filho do agiota: do início ao fim, o Deus da Fortuna atravessa relações e ocasiões que indicam como o controle sobre o sexo se mostra essencial aos mecanismos do capital. Esta terceira estratégia talvez seja a que melhor demonstra a maleabilidade com a que o Coletivo desvenda a realidade que nos cerca. Não apenas a quarta parede é derrubada. As quatro paredes do “quarto de casal” o são. Também as do “quarto da empregada”. E, inclusive, as da “sala de estar”, onde o sexo é negociado. Aqui, como em todo o espetáculo, o Coletivo de Teatro Alfenim se supera. Aqui, ele nos corta maleável e afiadamente.


Roberto Efrem Filho é professor da UFPB. Em seus estudos, discute principalmente as seguintes temáticas: marxismo, criminalização, questão agrária e sexualidade. [1] O Pato Donald é uma referência ao que Adorno e Horkheimer chamaram, em seus trabalhos, de “indústria cultural”. Nela, as surras no Pato constituíam mais uma das formas de acomodação dos espectadores às surras cotidianas a eles destinadas pela sociedade capitalista. Ver, especialmente: ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. Seleção de textos: Jorge Mattos Brito de Almeida. Trad. Julia Elisabeth Levy, Jorge Mattos Brito de Almeida e Maria Helena Ruschel. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. [2] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de

sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e histórica da cultura. Obras escolhidas, vol. 01. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed., 11ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, p. 179. [3] JAMESON, Fredric. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Trad. Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. [4] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 36ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. [5] Jorge Furtado, em seu documentário “Ilha das Flores”, vale-se de uma linguagem avassaladora

para demonstrar que portar um telencéfalo desenvolvido e polegares opositores não faz de ninguém “humano”. [6] A propósito: nossa cultura cristã conheceria alegorias desse gênero? [7] Florestan Fernandes discutiu a relação entre o arcaico e o moderno – mas a propósito do contexto latino-americano – em seus trabalhos. Indico, a esse respeito: FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4ª ed. São Paulo: Global, 2009.

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encontro

Inรก Camargo


figurações do fetichismo

conversa com iná camargo costa sobre o deus da fortuna, do coletivo de teatro alfenim (teatro de arena eugênio kusnet, são paulo, julho de 2012[1]) Iná Camargo – A conversa deve ser rápida. O assunto é O Deus da Fortuna. Como vocês viram, eu adorei. Assisti duas vezes. Da primeira, reclamei porque a cena dos bonecos é uma coisa tão maravilhosa que nem prestei atenção no texto, só na segunda vez consegui[2]. Reclamei também da cena final que sobrepõe o coro ao texto. Também na segunda vez não deu pra ouvir direito[3]. Não sei se avisaram a vocês, mas não conseguimos ouvir vários sons ao mesmo tempo, quando se trata de sons articulados em palavras. Você não consegue decifrar palavras diferentes ditas ao mesmo tempo. Leia lá, Mário de Andrade – A escrava que não é Isaura – ele explica isso didaticamente, porque a palavra articulada precisa ser ordenada, combinada de modo que se possa ouvir uma de cada vez. Então, dois discursos ao mesmo tempo fica impossível. E no caso ali não eram nem dois porque tinha também o discurso visual do 11 de Setembro e companhia. Paula Coelho – Como a música aparece em outro momento da peça, julgamos que, nessa altura, o público prestaria mais atenção à fala da personagem. É uma tentativa de ressaltar o discurso reacionário da canção e enfatizar a ironia da cena. Iná Camargo – Tem que combinar com o discurso do Wang. Tecnicamente, há várias alternativas. Com a música cantada, não adianta. É a natureza humana – você quer entender todas as palavras

tanto as da música quanto o que a personagem está dizendo. É preciso alternar, combinar. É isso o que Mário de Andrade chama de “Harmonia na Poesia”. Muito bem, feita a reclamação... Porque é uma questão técnica. Fiquei no prejuízo, continuo não sabendo o que tanto ele falou naquele final. Daniel Araújo, ator que representa a personagem Wang, diz o texto em questão, reproduzido a seguir: WANG – Já posso ver o novo templo, que não será único. Outros serão erguidos por todo o continente. Nele os verdadeiros valores da civilização circularão desimpedidos da matéria. Já posso ouvir o rumor dos cânticos. O espetáculo dos agentes transtornados pela fé na Fortuna. Bocas em espasmos, olhos esbugalhados, mãos trêmulas em gestos convulsivos. Espanto! Desespero! De repente, puro entusiasmo! Ombro a ombro, como uma onda humana, frenéticos e aloprados, como num ritual primitivo cultuando o Deus da Fortuna! Iná Camargo – Muito bom. É uma ode ao capital financeiro! Penso que em teatro desse tipo ou você acerta ou erra tudo e o grande acerto foi a proposta. Uma maneira de explicar o que é a peça de forma resumida: Figurações do Fetichismo. Quando o público entra na sala, está acontecendo uma espécie de ritual: o Deus da Fortuna cultuado. Depois, o deus toma a palavra e promete mundos e fundos. Faz as suas reclamações. Há aqui todos 23


os elementos didáticos, o que eu acho ótimo: Eu sou o Capital, me alimento do trabalho não remunerado etc. Ele está montado no Trabalho, a imagem é ótima. Em seguida, temos um “achado”, e se bobear é a primeira vez que acontece no teatro brasileiro, porque sendo o material – imagens, personagens, tirados de referências chinesas – é uma maneira de pensar a situação do Brasil. O fato de ser um proprietário vítima das dívidas, e ele, proprietário com todo o seu séquito, que vai de escravo miserável no último grau a sobreviventes descendentes de escravo, gente que não tem história, enfim, é o gado que ele explora e ele mesmo é explorado pelo capital financeiro. Eu tenho a impressão que é a primeira vez que alguém fez isso no Brasil. Eu não tenho notícia de outra tentativa. Eu imaginei, conversando com meus botões, que essa ideia ocorreu a vocês, em parte, porque vocês são da Paraíba; em parte, porque vocês têm conhecimento da luta do MST. E, seguramente, porque vocês conhecem bem a história do Brasil, pelo menos numa certa linha que coincide com a minha: a definição da Burguesia Brasileira – e seu atraso configurado na personagem Wang – como parte do Imperialismo e como procuradores do capital – o Grande Capital – e tendo a função de massacrar. Aí o massacre que ele produz vai desde a negociação da filha, passando por todas as misérias da vida doméstica nestas circunstâncias, que é super-determinada. Eu acho que tendo feito isso, o resto é lucro. Daniel Araújo – Somos nordestinos... Iná Camargo – Vocês conhecem melhor que o “sul maravilha” essa verdade sobre o Brasil, está 24

A burguesia brasileira, ao mesmo tempo em que é massacrada, massacra. Tem medo tanto do capital financeiro, quanto dos trabalhadores. debaixo do nariz. Márcio Marciano – Tínhamos uma dificuldade no início: nossa intenção era seguir o esquema que Brecht propõe em seus diários de trabalho, quando alude à ideia de uma peça sobre o Deus da Fortuna. “O deus sai em viagem pelo continente e por onde passa promove crimes e assassinatos”. Uma espécie de estrutura de “estações”, uma série de “casos exemplares” sobre a ação desordenadora do capital na figura do deus. Durante o processo de criação, percebemos que não teríamos fôlego. Isso implicaria empreender uma dramaturgia para cada caso e depois articular esses casos numa trajetória única. Suponho que Brecht teve dificuldade semelhante e optou por fazer um caso particular que foi A Alma Boa de Setsuan. Iná Camargo – O Deus da Fortuna me parece complementar à A Alma Boa. O ponto de partida sendo o fetiche encarnado do capital. O capital é ele mesmo o fetiche. Ora, relacioná-lo com deuses é ir para o abraço. A Alma Boa de Setsuan expõe


uma figura: a acumulação primitiva. Vocês estão falando da mesma coisa e de outra coisa, esse é o ponto fundamental para quem dialoga com o Brecht; vocês estão tratando do cu do mundo sob a figura do capital financeiro. E o importante é que isto diz muito sobre a experiência do Brasil. Eu acho que este é o grande achado. A figura do Wang e todas as peripécias: vender a filha para casar com o filho do agiota, os conselhos... aliás, a velha é de gritar como composição[4], é de gritar, porque ela é completamente filha da puta, completamente, e, no entanto, ela é portadora da sabedoria dos que conseguiram sobreviver. Então isto que está na velha da peça traduz, por exemplo, a experiência de ex-escravos e a relação que ela tem lá dentro da casa é deste tipo. O senhor Wang tem medo dela. Aliás, ele tem medo dos empregados. Este é o ponto que me interessa: Wang, a Burguesia brasileira, ao mesmo tempo em que é massacrada, massacra. Tem medo tanto do capital financeiro, quanto dos trabalhadores. Mas não é para ter dó dele, porque ele é um assassino, um sacana, ele não vende a mãe porque a mãe já morreu, mas vende a filha, certo? Então, quando eu digo que eu gostei, eu não estou brincando, eu gostei muito. Paula Coelho – E a parte dos peregrinos, dos intermezzos?[5] Iná Camargo – Ah, que delícia! Porque ali são figurações – como eu disse, é um resumo para a peça, subtítulo: Figurações do Fetichismo. Os peregrinos e os intelectuais: eu só não berrava pra não atrapalhar a cena nem a plateia, porque é isso aí, aliás, isso vem diretamente do Brecht, o esforço dos intelectuais para...

Márcio Marciano – É inspirado em panfletos do Keynes. Iná Camargo – É assim que a gente deve fazer. Aliás, vocês conhecem o que eu fiz com o Gilberto Freyre na nossa peça. Peguei um trecho, com referência, inclusive, e transformei em sermão do bispo. O bispo deu o texto do Gilberto Freyre e depois o ator fala: “Evangelho, segundo Gilberto Freyre, capítulo tal, versículo de tanto a tanto”. Você pode pegar lá o livro e ler o texto, exatamente. Isso a gente pode e deve fazer sempre. Márcio Marciano – Fazemos também citação direta ao Brecht: “O famigerado poeta Kin-jeh, bandoleiro das letras, salteador das ideias alheias”. Queríamos a todo custo inserir o fragmento do Brecht na peça. Aí criamos a cena dos bonecos. Iná Camargo – É uma maravilha. A Antigoninha[6] é uma das paixões da minha vida. Aliás, neste capítulo, formas do teatro – vocês cobrem dois, três mil anos de história; vai da Antígona ao percurso do Brecht. E eu acho isso ótimo. Márcio Marciano – Em O Deus da Fortuna sentimos dificuldade de fazer a transposição da alegoria do capital para as determinações das relações no campo privado. Optamos por fazer a passagem por degraus. No início, a figuração maior do deus que ganha vida. Ele faz um prólogo que é absolutamente marxista. Iná Camargo – O deus é marxista! Márcio Marciano – Ele adverte o Trabalho: “Assuma feição humana, não basta atirar nos relógios.” Não é só fazer a revolução, é preciso manter viva a revolução. Depois tentamos fazer a figura do deus colar à personagem Cai Fu, o agiota. É 25


uma operação que visa a humanizar a representação do capital. Iná Camargo – Mas não considero uma humanização, porque o agiota é uma figura, o agiota ali está representando bancos etc. etc., tanto faz. Eu acho que isso não é o problema, da mesma maneira que a relação do Wang com o agiota é uma figuração adequada, porque é a nossa experiência. A questão é – citando o recém-falecido Robert Kurtz: a nossa experiência cotidiana é ao mesmo tempo material e metafísica. Então, a parte metafísica, que é a parte conceitual, está presente nas relações, as mais elementares, inclusive, a do pai que empurra a filha para o casamento. Márcio Marciano – Tínhamos certo temor de manter dois planos, o plano da alegoria e o plano das determinações do capital no universo das relações privadas. Iná Camargo – Não. Porque a experiência cotidiana é inteiramente pautada por necessidades econômicas que atravessaram tudo, o tempo todo. Pois até aquela duplinha, que pesca, e o peixe voa, e “viva o Deus!” Aliás, o bicho do pé... – essa você pegou dos jesuítas, não é? – porque os jesuítas são especialistas em argumentos falaciosos. Exercício jesuítico: cai uma folha da árvore, prove a virgindade de Maria. Porque são insondáveis os desígnios do Espírito Santo. Portanto, as duas cenas são perfeitas. Eu falei: esses caras leram José de Anchieta. Porém – digressãozinha pessoal: a gente sabe disso, a gente ouve isso, eu recebo todos os dias mensagens por e-mail das provas da existência de Deus. O que, por sinal, está ficando cada vez mais forte exatamente porque a experiência está 26

desmentindo, quanto menos fé, mais as pessoas se apegam às manifestações desse tipo. Então, as duas sequências são geniais, nesse sentido, porque aí, eu diria que elas dão o complemento para mostrar que desde o discurso do porta-voz do capital até os miseráveis, que a gente nem entende o que eles falam, atravessa e é O Deus da Fortuna o tempo todo. Aí tem Feuerbach, não é? Você andou lendo Feuerbach, confesse! É uma maravilha, porque é esse o ponto que interessa. Do ponto de vista materialista, é esse: a elaboração dos deuses, a explicação metafísica com base na experiência da vida cotidiana, que vai desde o peixe que voa até as formas de submissão ao agiota. São do mesmo nível: tanto os peregrinos, que são a ralé mesmo, o último nível da sociedade, até o Wang, que tem acesso direto à principal figuração do deus, que é o agiota. Mas o agiota, para quem tem experiência de agitprop, o agiota é um banqueiro como outro qualquer. E no caso, tem esse outro dado da experiência brasileira – o agiota, a que um pequeno proprietário brasileiro tem acesso, é o banquinho ali na esquina, o vagabundo, que é a figuração da peça: o agiota é o banqueiro vagabundo. Qualquer pessoa que tenha feito os oito primeiros graus da escola na hora percebe isso. Não tem que esquentar a cabeça. Márcio Marciano – Pensamos o seguinte: ao invés de sair do mais localizado regionalmente, e tentar, a partir daí, ir para o macro; resolvemos partir das determinações macro para chegar ao... Iná Camargo – Mas aí você tem o trânsito, o tempo todo, e isso também é ótimo, é outra qualidade. Eu acho que as pessoas entendem. Estou


perguntando. Daniel Araújo – Tivemos queixas. Algumas pessoas dizem que a cena do julgamento se estende demais. Iná Camargo – Não devemos levar a sério essas impressões de varejo! Paula Coelho – Algumas pessoas não entendem, por exemplo, os intermezzos: “Por que tem aqueles caras falando uma língua que ninguém entende?” Iná Camargo – Mas aí é falta de disposição mental!

verdade. A questão é a expectativa fetichista em relação ao espetáculo. A gente não pode levar a sério esse tipo de cobrança, que eu chamo de varejo. Cobrança de varejo corresponde a desejos de público da Globo. Se vier uma questão séria no geral, vale a pena discutir. Agora para essas é o que você fez, a operação didática: “Mas o que você não entendeu? Então você entendeu! Como você está dizendo que não entendeu?” Daniel Araújo – O Deus da Fortuna sempre foi apresentado num espaço muito parecido com este (Teatro de Arena), lá em João Pessoa, para quaren-

Aqui é uma questão de hegemonia ideológica. Enquanto não aparecer uma direção revolucionária para fazer a cabeça daqueles idiotas, eles vão papagaiar o que diz o capital financeiro... Márcio Marciano – Na realidade, elas se desconcertam, porque mudamos a chave da recepção. Mas quando perguntamos: “Mas você não entendeu o quê?!” “Ah! Eu vi isso, isso, isso!” “Pois é, então você entendeu, é exatamente isso!” Iná Camargo – Então vamos lembrar a nossa situação, a nossa lama: por mais que a gente faça, explique, tal, tal, todo mundo – até pessoas que teoricamente estudam o assunto – vêm assistir com cabeça de quem assiste novela da Globo. Eles querem ritmo, querem que acelere: “Já entendi, já entendi; não precisa demorar tanto”. Não é

ta pessoas. Não sabíamos como seria a recepção num teatro de grandes proporções. Fizemos em Natal uma apresentação para uma turma de escola técnica, adolescentes entre quinze e dezessete anos. O público veio abaixo com o espetáculo. Iná Camargo – Bingo! Vocês já têm a prova empírica de que a cena é clara, que a cena é didática no que tem que ser, é divertidíssima. Então, acabou. Não vai dar ouvido pra conversa de desocupado! Márcio Marciano – Iná, eu queria que você comentasse um pouquinho a cena dos colonos...[7] Iná Camargo – Verdade! Ela é essencialmente 27


verdadeira e por isso eu adorei. Aliás, por que é verdadeira? Porque continuamos aguardando a disposição das massas para a revolução. E também isso é uma verdade do marxismo. Marx dizia: As massas não são por si mesmas revolucionárias. Precisa ser criada uma situação insuportável e ela vai se tornar revolucionária se a classe dominante não tiver mais condição de dominar, como parece que está acontecendo na Espanha e na Grécia, hoje. Mas aqui parece que ainda não é verdade. Então, nesse sentido, vocês têm que ficar espertos, acompanhando a conjuntura, que se virar, a cena fica falsa. A cena é, digamos assim, crítica. Mas, por enquanto, ela é radicalmente verdadeira. Tive uma discussão sobre a peça que não vou mais conseguir reconstituir, mas que, em resumo, é sobre o discurso do deus sobre o trabalho: afirmaram que se tratava do discurso da peça. Eu falei: “Não, pera lá! Escuta, nós estudamos Brecht há mais de

vinte anos. Você não vai me dizer: “Não, porque dá a impressão, porque não sei o quê, porque o porta-voz dos trabalhadores meio que repete...” Eu falei: “Aqui é uma questão de hegemonia ideológica. Enquanto não aparecer uma direção revolucionária para fazer a cabeça daqueles idiotas, eles vão papagaiar o que diz o capital financeiro, em diferentes formulações, mas a peça é verdadeira nesse sentido. Não me venha com essa prosa. Tem que olhar o que está sendo proposto.” Daniel Araújo – E a Senhora Shu? Ela dá a palavra final: “Está na hora de dar um chute na bunda do deus”. Iná Camargo – Ela é a sobrevivente. Ela é um elemento histórico de muita força, porque ela sobreviveu a tudo, ela entende tudo e entende também a impotência. Por isso, ela acha que está na hora de dar um pé na bunda do deus.

Iná Camargo Costa é doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1993). Pesquisadora de teatro e autora dos livros “A hora do teatro épico no Brasil”, “Sinta o drama” e “Nem uma lágrima”. [1] Transcrição de Rogério Marciano. Edição de Márcio Marciano. [2]Iná Camargo faz menção à cena em que, através de bonecos, as empregadas da casa Wang narram uma pequena fábula sobre O Deus da Fortuna, como forma de entreter o convidado Cai Fu, pai do pretendente de Djin-Jing, filha do proprietário, na noite do matrimônio. A fábula utiliza como base um argumento de Bertolt Brecht anotado em seus diários de trabalho. [3] Cena final do espetáculo. São projetadas imagens do 11 de Setembro, dos movimentos de ocupação em Nova York e Europa e de manifestações de trabalhadores da Zona do Euro. Durante a projeção, ouve-se a canção “O Deus da Fortuna baterá à vossa porta” e as falas da personagem Wang, que sonha com o futuro. [4] Trata-se da personagem Senhora Shu, uma espécie de governanta da casa Wang, representada por um ator. A composição da personagem é realizada à vista do público durante a canção “O Deus da Fortuna baterá à vossa porta”. [5] Os intermezzos constituem duas sequências de cenas complementares sobre o tema da “presença do Deus”. Com o título “A manifestação ontológica da felicidade universalizante. – Versão teórica”, anunciado por um narrador, desenvolve-se o diálogo de dois aspirantes a “erudito” acerca das manifestações do deus sob a forma fantasmagórica do capital. Após o diálogo, surgem dois peregrinos convencidos da presença do deus em quaisquer manifestações da natureza. [6] Referência ao boneco de Antígona, utilizado em peça anterior do Coletivo Alfenim, Milagre Brasileiro (2010). [7] Trata-se de cena em que os colonos ameaçam invadir a propriedade. Entretanto, quando se veem na presença do patrão, recuam e assumem para si o discurso hegemônico.

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“tudo que é sólido desmancha no ar”

Sebastião Milaré


olhares críticos A ideia partiu de uma nota do “Diário de Trabalho” de Bertolt Brecht, onde o genial dramaturgo fala de certo amuleto chinês, que comprou em Chinatown e lhe sugeriu uma peça sobre o Deus da Fortuna – o deus de quem gostaria de ser feliz. Não escreveu tal peça, mas o Coletivo de Teatro Alfenim decidiu fazê-lo. Fiel ao pensamento de Brecht e também à proposta que norteia o trabalho do grupo, de reflexão política mediante a elaboração de dramaturgia própria, buscou construir “uma parábola sobre a metafísica do Capital”, identificando o Deus da Fortuna ao capital especulativo. Tal parábola, baseada na hipótese de um proprietário de terras, minas e lavouras, que vai se desprendendo do “capitalismo à moda antiga” para se estabelecer no financeirizado, tem notável atualidade, face à nova crise do capitalismo, que vem balançando as grandes potências, arruinando povos inteiros. Sob comando de Márcio Marciano, dramaturgo e diretor do espetáculo, o Alfenim de certo modo atualiza também o discurso político da raiz plantada no teatro brasileiro e latino-americano nos idos 60, do século passado. A dialética e a didática permanecem pilares da fábula, mas sem prejuízo da teatralidade rasgada e da poesia, que tira o pensamento didático da cartilha de fases óbvias levando-o ao quase abstrato, ainda que recorrendo a Marx, como no belo pensamento de que “tudo o que é sólido desmancha no ar”, dito e repetido em cena. A teatralidade do espetáculo vai desde adereços, máscaras e bonecos imaginativos e belos, até a inteira disponibilidade dos atores para os jogos cênicos. Comédia beirando a farsa, como essa, só se realiza mesmo quando os intérpretes se permitem a caricatura, sem medo dos estereótipos, imprimindo verdade aos movimentos e conquistando a cumplicidade gostosa da plateia. Para além disso, a música ao vivo contribui generosamente na criação de diferentes atmosferas dramáticas e/ou cômicas. Vale a pena lembrar que as qualidades do espetáculo não nascem do acaso, mas de um projeto artístico. Acha-se aqui a virtude que permeia grande parte da produção do teatro brasileiro atual, especialmente aquele conhecido por “teatro de grupo”. Coletivos que se formam em torno de ideias, de desejos comuns a todos os integrantes. O Alfenim é bom exemplo dessa saga. A unidade interpretativa que se verifica no jogo dos atores, evidencia a comunhão de pensamentos: todos têm perfeita noção do que se pretende dizer com o espetáculo e cada um dá a sua contribuição. E o público, destinatário sempre de qualquer espetáculo, é assim beneficiado. Sebastião Milaré é crítico e estudioso da obra de Antunes Filho. Foi correspondente e colaborador de importantes revistas estrangeiras como La Escena Latino América. Participou de publicações internacionais como História del Teatro Latinoamericano - Sistema Textual/Brasil 1500-1990, editada pela Carleton University, Ottawa, Canadá e é organizador do projeto Teatro e Circunstância, exibido no canal TV Sesc.

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OLHARES


INTERNOS


a metafĂ­sica do capital gabriela arruda


a peça e atividades formativas O Deus da Fortuna é uma crítica ao capitalismo financeiro e uma provocação, em recorte cômico, ao comportamento individualista burguês em suas relações de classe, familiares, religiosas, amorosas e de gênero. Na peça, o sistema capitalista atual identifica-se com o Deus da Fortuna, Zhao Gong Ming, muito popular na China. Dessa maneira, capitalismo e religião estão fundidos em uma única estrutura. Como afirma Walter Benjamin no texto Capitalismo como religião: “a estrutura do capitalismo não é apenas condicionada pela religião, mas essencialmente religiosa”. Essa afirmação pode ser constatada em toda a peça, culminando na revelação feita pelo Deus da Fortuna de que no capitalismo financeiro a fé concentra-se na promessa de se obter riquezas futuras através de cultos ao Capital, realizados em especulações e operações financeiras simbólicas/metafísicas. As contradições subjetivas que observamos nas personagens são contradições sociais. O social, à maneira brechtiana, não escapa ao individual. Assim, o comportamento das personagens é uma dialética entre indivíduo e função social, sendo notáveis as contradições entre as posturas dos empregados e as dos proprietários da casa. A Senhora Shu, a criada mais experiente, mantém uma postura conformista e existencial, aquela que age “sem esperanças”, repassando a lição à Djin-Djing, filha do Senhor Wang, de que é preciso estar sempre de acordo. Liu Po, a criada mais

nova, demonstra certa consciência de classe mediada por sua experiência de vida, mas sua condição miserável a deixa presa aos serviços da casa. O Secretário Koo ocupa a função de conciliador das classes sociais, assumindo a postura mais antirrevolucionária da peça. Essas personagens, que vendem seu trabalho, destoam do comportamento idealista e romântico de Djin-Djing e do comportamento grosseiro e autoritário do Senhor Wang, personagens detentoras da propriedade privada. A compreensão do espetáculo está vinculada ao entendimento da estrutura religiosa capitalista na organização social, intensificada em seu estágio financeiro; ao passo que a luta de classes é perceptível em todas as cenas, se examinadas de maneira independente. Essa percepção pode ser comprovada tanto nas relações entre as personagens quanto nas relações entre personagens e recursos materiais, a exemplo do que ocorre na cena em que o discurso naturalizador do trabalho, proferido pelo Secretário Koo, se opõe às imagens do vídeo projetado na cortina ao fundo do palco. As projeções mostram as transformações históricas da mão-de-obra dos trabalhadores nas etapas comercial e industrial do capital. Na esfera das relações entre as personagens, o choque entre classes também é evidenciado, formalmente, pelas contradições postas em cena, como, por exemplo, na cena em que Djin-Djing e Liu Po conversam sobre amor e felicidade, explicitando as visões discrepantes acerca do assunto; 53


a cena em que a Senhora Shu relata a Djin-Djing como foi a sua primeira experiência sexual, deixando a filha do Senhor Wang em pânico e a cena da reivindicação dos colonos na qual o Secretário Koo representa o elo de comunicação distorcida entre os trabalhadores e o patrão. Assistir a essas cenas e a todas as outras da peça, depois de “prontas”, com as transições e já na sequência do espetáculo foi uma experiência renovadora de sentido em comparação com os processos de criação das cenas na sala de ensaio. Só depois de ver o trabalho finalizado é que pude compreender com mais clareza o sentido de algumas cenas serem descartadas e outras escolhidas e/ou modificadas. No início dos ensaios, apenas se vislumbrava a ideia geral da temática da peça, mas as cenas ainda iriam tomar corpo. A partir daí, várias cenas foram improvisadas, inicialmente, de maneira mais abrangente. Interessante na sala de ensaio é observar a tensão entre as cenas que os atores improvisam e o que é captado, transformado e proposto pelo diretor Márcio Marciano. A sala de ensaio, antes de a dramaturgia estar “concluída”, é o espaço onde a peça existe em potência. É o lugar no qual a troca entre o diretor e os integrantes do grupo cria novas relações com o espetáculo em processo. Em paralelo às atividades da sala de ensaio, organizamos o seminário A Metafísica do Capital, que contribuiu para ampliar a formação teórica do grupo. O seminário teve como objetivo discutir as

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relações simbólicas no âmbito do capitalismo financeiro. Com duração de três dias e realizado na Fundação Casa de Cultura Cia. da Terra, o evento contou com as presenças do dramaturgo e diretor da Companhia do Latão, Sérgio de Carvalho, e dos professores universitários Diógenes Maciel, Roberto Efrem Filho, Gustavo Acioli Lopes e Romero Venâncio. Durante o seminário foram debatidos temas referentes à dramaturgia épica, à trajetória do Alfenim, à metafísica das relações financeiras em um viés histórico, e também discussões sobre as relações capitalistas simbólicas que perpassam a indústria cultural, além do papel da religião na atual conjuntura do Capital. Integraram também as atividades de formação do grupo, a realização da oficina “Dramaturgia e Música”, ministrado por Martin Eikmeier, compositor e diretor-musical da Companhia do Latão, que trabalhou a música como elemento de contradição e contraste na dramaturgia épica. Todas essas atividades teóricas e práticas (pesquisas, seminários, oficinas, sala de ensaio etc.) constituíram o resultado final apresentado ao público, evidenciando o incentivo à coletividade como meio de lutar contra um deus ainda adorado e esperado por todos. Um deus imaterial que, assim como o “desaparecido político” de Milagre Brasileiro, é difícil de identificar, mas seus duros efeitos são sentidos em nossa pele a todo momento.


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dramaturgia mรกrcio marciano paula coelho


cinco tópicos para uma leitura crítica O Deus da Fortuna, peça estreada em novembro de 2011, pelo Coletivo de Teatro Alfenim, na cidade de João Pessoa, Paraíba, utiliza como modelo a estrutura da comédia clássica. De seus elementos constitutivos aproveita os mais adequados à construção da narrativa épica, sem a preocupação de uma correspondência estrita às convenções que determinam o gênero. Essa escolha metodológica nasce da observação de procedimentos semelhantes adotados por Bertolt Brecht. Embora o contexto histórico da produção brechtiana seja em muitos aspectos distinto das contradições da atualidade – sobretudo no que se refere à crise atual de expansão do capitalismo –, parece-nos pertinente a apropriação dessas ferramentas de forma a extrair dos antigos modelos os ensinamentos para a formulação de um sentido crítico para os temas de hoje. A peça tem como ponto de partida o seguinte fragmento extraído dos diários de trabalho do dramaturgo: Novembro/1941. Comprei em Chinatown um pequeno amuleto chinês por 40 cents. Penso numa peça “As viagens do Deus da Fortuna”. O deus daqueles que gostariam de ser felizes sai viajando pelo continente. Por onde passa deixa um rastro de assassinatos e atentados. (BRECHT: 2005,21) Não há dúvida de que o desejo expresso por Brecht no comentário acima se materializa na criação de A alma boa de Setsuan, uma de suas

parábolas chinesas. Nesta peça, não apenas um, mas três deuses surgem em busca de uma alma que possa comprovar a tese de que é possível exercer a bondade num mundo marcado pela exploração do homem pelo homem, cuja razão de ser é a produção em grande escala da desordem e da barbárie. Não cabe aqui discutir o emprego da alegoria na obra de Brecht, mas apenas constatar que o deus a que o Autor se refere é o Capital em sua forma de acumulação primitiva, sendo sua religião a ideologia do lucro como sinônimo de paz e bonança. No caso de O Deus da Fortuna, o tema central continua a ser o Capital, agora flagrado em seu estágio de volatilização. A partir do binômio deus-fortuna, a peça narra o aparente processo de imaterialização das relações de produção e suas consequências no mundo do trabalho, de forma a criticar a absolutização do modelo capitalista e de seus mecanismos de fetichização, algo que pode ser ironicamente denominado a “metafísica do capital”.

1. Prólogo: discurso sobre a metafísica do Capital A identificação do Capital ao Deus da Fortuna impõe um obstáculo de imediato: qual a forma mais eficaz de representar o paradoxo de sua presença imaterial? Apenas mencionar o deus como promessa de bem-aventurança financeira limita seu campo de intervenção no jogo da cena, sendo

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mais útil sua aparição concreta para que se possam estabelecer relações materiais com as demais personagens da narrativa. É o que faz Brecht em A alma boa... quando confere estatura humana aos deuses e os faz caminhar Aqueles dois senhores também não me parecem deuses: têm cara de gente bruta, que vive dando pancada, e um deus não tem necessidade disso... Já aqueles três ali: com eles parece que a coisa é outra! São bem nutridos, não têm sinal de ocupação nenhuma, e estão com os sapatos empoeirados como quem chega de muito longe. São eles, sim! Santíssimos! Wang prosterna-se, curvando-se até o chão. (BRECHT: 1992, 59) entre os mortais como pessoas de posses, bem vestidos e educados, o que leva o aguadeiro Wang[1], a personagem que os reconhece como deuses a distingui-los pela riqueza de sua aparência: No prólogo de O Deus da Fortuna, este surge literalmente como objeto de culto, com proporções extra-humanas, ricamente ornado, num altar que o eleva acima da estatura dos homens, de modo que sua imagem se impõe como ente intangível. Entretanto, assim que as personagens e o argumento da peça são apresentados (Senhor Wang, imerso em dívidas vê no casamento de sua filha Djin-Djing uma alternativa de solvência), a imagem ganha vida e se dirige diretamente ao público. Aqui os elementos da comédia prestam serviço ao recorte temático da peça. Para além do entrecho clássico do “casamento à força”, a peça se utiliza no prólogo dos artifícios da parábase para 58

alertar o público sobre o assunto que deverá permear a narrativa e que diz respeito ao estágio atual do capitalismo em seu processo de financeirização. O deus reconhece sua dimensão volátil e ridiculariza o mundo do trabalho e seus representantes como mera excrescência da dinâmica do capital. Observe-se que a caracterização do deus segue à risca a sugestão de Brecht e se baseia na imagem muito popular na China de um “deus da fortuna” representado como um guerreiro em rica armadura montado sobre um tigre. Para a economia da peça, o tigre da imagem também ganha vida e é identificado ao trabalho. Desta forma, capital e trabalho confrontam-se num debate inusitado sobre as condições atuais de sua relação dialética e a perspectiva nada alentadora - do ponto de vista do trabalho - de um futuro prestes a irromper. É preciso salientar que, assim como A alma boa..., O Deus da Fortuna é uma parábola, ambientada numa China imemorial, pré-burguesa, marcada pelas contradições de uma modernização violenta e desigual. Esse recuo histórico tem dupla função: a) estabelece aproximações produtivas entre o Brasil e a China atuais, com seus processos distintos, mas não dessemelhantes de integração ao sistema capitalista através de avanços tecnológicos em bases historicamente arcaicas; e b) permite apresentar as recentes transformações do capitalismo como o tempo presente da narrativa, de modo que o processo de volatilização do capital surja na peça ironicamente como promessa redentora de fortuna. Um dos objetivos da peça é acentuar a contradição entre o pretenso protagonismo do país no


mundo do capital financeirizado e as relações de trabalho internas ainda marcadas pela violência, pelo atraso e pela acumulação primitiva. Vejamos como o deus se manifesta: DEUS DA FORTUNA – Senhores/Desafortunados são aqueles/Dentre vós que não percebem/Como é volátil minha presença/Nos pagodes e mercados/Nas bolsas de comércio/Desafortunados são aqueles/Dentre vós que sujam/As mãos com moedas e guardam/Cédulas em carteiras ensebadas/ São tempos materialistas/De descrença no éter da Fortuna/De descrença na metafísica do capital/Vocês foram testemunhas/Da ignorância desse proprietário/Senhor Wang/Um primitivo acumulador de dinheiro/Um primitivo espoliador do trabalho/Um primitivo açambarcador da riqueza material/Ele não percebe o verdadeiro poder/De minha imaterial presença[2]. A ironia da cena se completa quando o Deus/ Capital incita o Tigre/Trabalho à reação e este expõe sua impotência, negando-se a assumir sua negatividade, enquanto o deus o convida a libertar-se de sua determinação. Apesar de longo, o trecho abaixo é esclarecedor e requer ser reproduzido na íntegra: DEUS DA FORTUNA – Tigre, assuma feição humana, desça do altar e venha cumprir seu papel na história. TIGRE (a imagem do Tigre ganha vida) – Eu me recuso. Sempre que tento assumir feição humana tomo na cabeça. DEUS DA FORTUNA – Você fala dos tempos da

revolta? Não basta sair atirando nos relógios. Entra século, sai século, você sempre comete os mesmos erros: toda vez que assume feição humana esquece seu passado de fera e age como um rato. TIGRE – Fiz a besteira de acreditar que podíamos ser amigos. DEUS DA FORTUNA – Reconheça: é impossível alterar as leis do universo. Eu sou o capital, você o trabalho. Entre nós não pode haver conciliação: ou você me destrói, coisa que eu duvido, porque no fundo precisa de mim, ou se conforma e se submete aos meus desígnios. TIGRE – Às vezes, tenho ganas de morder sua cabeça. DEUS DA FORTUNA – Ah, pobre Tigre, você se deixa seduzir pela temeridade e pela inconstância humanas. Mas saiba: os homens não são tigres. Eles fraquejam, por isso, me adoram. Você devia fazer o mesmo. TIGRE – Vá sozinho nesta jornada, você não precisa mais de mim.[3] Diante da recusa do tigre, o deus expõe didaticamente o estágio atual do combate, e tripudia ante a impotência da classe trabalhadora. Ele convida o animal a descer do altar e retomar seu papel histórico como vanguarda revolucionária. A ambigüidade do convite reforça a soberba do capital. Entretanto, é o próprio deus que, dialeticamente aponta uma saída: DEUS DA FORTUNA – Eis a grande ilusão, o meu maior triunfo! Fazer acreditar que tenho vida própria. Vamos, anime-se! Desça do altar e observe 59


seus dessemelhantes. (indica o público) Apesar das diferenças, assim como você, eles adoram o inimigo. TIGRE (assume forma humana) – O que sugere que eu faça? DEUS DA FORTUNA – Retome seu lugar no coração dos homens. Assuma seu posto na consciência deles. Em suma, promova a desordem e me destrua se for capaz.[4] Dessa forma, o prólogo abre a peça com uma provocação: ironicamente, o Deus da Fortuna oferece a alternativa revolucionária, convocando os tigres/trabalhadores a reassumir sua histórica vocação de luta. O público seguirá os acontecimentos de modo a perguntar-se sobre o verdadeiro sentido dessa sugestão.

2. Alegoria e objetivação

Frente ao desafio de tematizar o movimento abstrato do capital nos dias atuais, a dramaturgia de O Deus da Fortuna se vale da hibridização da narrativa ao operar simultaneamente os planos da ação realista e da alegoria. Se no prólogo a alegoria se impõe abertamente através da materialização do capital e do trabalho representados na imagem do deus e do tigre, veremos em seguida as determinações do capitalismo em crise nas relações materiais que se estabelecem no interior da casa Wang. É através dessas relações, marcadas pelo tensionamento da luta de classes, que o público acompanha, didaticamente, o processo que vai do colapso do sistema de produção agrária, com seu corolário de opressão e violência contra os trabalhadores,

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A peça sugere um salto sem mediações de um mundo “pré-burguês” para um novo mundo, “pós-industrial”. Nada muito distante da modernização à moda brasileira. até a solução emblemática de substituir o sistema produtivo (o que implica sua depauperização, mas não necessariamente sua destruição) pela especulação financeira, através da associação incondicional ao capital especulativo, personificado na figura do agiota Cai Fu. Nessa operação de desmonte do sistema produtivo “perderam o respeito por minha liquidez” o velho proprietário revela-se como função do sistema em nível global, servindo ao mesmo tempo de opressor das classes subalternas e agente submisso do capital em nível internacional. Dessa forma, a alegoria se objetiva na medida em que se apresenta como legenda histórica dos acontecimentos no campo privado. Nessa perspectiva,


dois intermezzos (anunciados pelo Narrador como “versão teórica”) atuam como elementos de reforço e reatualização da alegoria do prólogo, na medida em que surgem como comentários indiretos da fábula, com o intuito de ressaltar em chave debochada os artifícios ideológicos de legitimação do capital. Assim, vender a filha, enfrentar de peito aberto os colonos ou o julgar-se a si mesmo, num acesso etílico que embaralha conscientemente realidade e projeção, são atos que fazem de Wang o núcleo aglutinador das determinações do capital. Misto de agente e objeto dessas mutações da ordem econômica, o velho proprietário reafirma seu papel de agenciador tanto da acumulação primitiva, quanto dos avanços da financeirização do capital no âmbito ainda arcaico das relações de produção que se observam em sua propriedade rural.

3. Amor e luta de classes

Após o prólogo, a peça introduz o tema do casamento à força, e convida o público a acompanhar as providências de um pai de família disposto a vender a própria filha para pagar suas dívidas. Note-se que o recorte de uma “China imemorial” aproveita-se da tradição dos casamentos por dote, comum em épocas passadas, para inserir de forma sub-reptícia o tema da transformação do modo de produção capitalista. Esse expediente dramatúrgico permite abordar o tema central da peça de modo indireto, uma vez que o entrecho amoroso alimenta a expectativa do público enquanto o processo de substituição dos meios produtivos tradicionais, ligados ao cultivo do arroz e à indústria

artesanal da seda, pelas formas especulativas de ganho do capital vai se revelando como incompreensão do velho proprietário de terras (“o mundo está pelo avesso, o arroz perde o valor”), inconformado com a prática extorsiva de seus credores (“acaso são galinhas que passam o dia chocando moedas como a ovos de ouro?”). A decadência de Wang, o capitalista à moda antiga, vai cedendo lugar à ascensão e aos ensinamentos do agiota Cai Fu (“o aluguel do dinheiro exige lastro”), de modo que, ao final da peça, a construção do templo em honra do Deus da Fortuna se consolida como metáfora da “bolsa de valores” e emblema do atual estágio do capitalismo financeirizado. A peça sugere um salto sem mediações de um mundo “pré-burguês” para um novo mundo, “pós-industrial”. Nada muito distante da modernização à moda brasileira. Assim, a aparente inocência do velho Wang, na verdade surge como índice de sua esperteza de classe, capaz de perceber, com o auxílio do deus que “o ouro se transforma em pura aparência”, e que “suas dívidas de hoje” poderão se tornar “sua fortuna de amanhã”. De obstinado defensor da propriedade agrária e das relações semi-feudais de exploração do trabalho, o velho Wang irá tornar-se um representante legítimo do capital especulativo internacional, sem nunca esquecer que apesar das aparências, ele continua a se alimentar de trabalho não pago. Em paralelo aos dilemas do velho proprietário, narra-se o “drama” de Djin-Djing, a “donzela prometida” a um casamento negociado. Num encontro na Casa de Penhores, após ser submetido à humilhação de servir de “cavalinho” às brincadeiras 61


do jovem Shang, filho do agiota internacional Cai Fu, num prenúncio do que virão a ser suas relações com o capital financeirizado, Wang anuncia o contrato amoroso entre sua filha Djin-Djing e o filho de seu credor. Mais adiante, veremos que a alternativa do casamento é mero pretexto para encobrir as reais motivações do proprietário Wang: não se trata apenas de celebrar o consórcio entre duas dinastias (“nossa união será duradoura como um cerejal em flor (...) de agora em diante seremos uma só casa, a Casa Wang Fu”), o que está em jogo é a tentativa de se incorporar ao novo sistema, de modo a abandonar os velhos meios de produção (“setecentas e oitenta arvorezinhas com seus respectivos devoradores de folhas”, nos termos de Cai Fu) pela especulação, mais rentável, invisível e menos sujeita ao confronto das classes subalternas. Num momento de vulnerabilidade, após ser surrado pelo Secretário Koo, seu “braço direito”, num quiproquó em que é confundido com o “Deus em pessoa”, Wang, sob efeito da bebida, sofre uma visagem: surge à sua frente o fantasma da suicida esposa Tianshi, morta após atirar-se no lago da propriedade, num gesto febril de insubmissão aos ditames da tradição e do marido. É acompanhada por um coro de colonos fantasmas, obrigados a pular no lago para resgatar o corpo da falecida. Nesta cena, embora o tema principal seja ainda o casamento de Djin-Djing, as intervenções do coro permitem ao proprietário em vias de “modernização”, mais uma vez esgrimir em seu favor argumentos ambíguos que denotam enraizamento na tradição, pragmatismo e uma extraordinária capacidade de adaptação aos novos tempos: 62

Surge a aparição da Senhora Wang. SENHORA WANG – Wang, seu canalha! Não é por você que saio de meu jazigo de argila, mas por nossa filha Djin-Djing. SENHOR WANG – Ó, minha amada, que doce visagem! Estás mais bela do que estavas naquela terrível noite. SENHORA WANG – Cala a boca imbecil e meu ouça. SENHOR WANG – Ó, bela Tianshi, minha Chave do Paraíso, acatarei teu comando, mas antes me diga, por que se atirou no lago? SENHORA WANG – Se não quiser o mesmo destino para sua filha, faça o que ordeno. SENHOR WANG – Sim farei, meu delicado fantasminha. SENHORA WANG – Não venda a menina como a um saco de batatas! SENHOR WANG – Nunca cometerei tamanha indignidade! Minha filha vale uma boa dúzia de vacas. CORO – Infâmia! Djin-Djing não é uma vil mercadoria. SENHOR WANG – Sim, sim, têm razão, ela é uma mercadoria de primeira. Saberei vendê-la por seu real valor. SENHORA WANG – Mulheres não devem ser comerciadas, cachorro. SENHOR WANG – Mas, minha adorável Chave do Paraíso, é a tradição que exige, além do quê, pode ser um bom negócio. CORO – Ó pai cruel, não basta ter mercadejado a mulher que depois de usada virou pasto de peixes? Quer também negociar a filha? SENHOR WANG – Sou um humilde comerciante endividado.


SENHORA WANG – Chega! Nada mais tenho a dizer. Apenas que exclua Djin-Djing de suas negociatas. Do contrário, terá o fim que merece. SENHOR WANG – Não! Não vá, minha delicada Tianshi, minha assombraçãozinha adorada! A visagem se esvai.[5] Ainda sob o efeito da aparição, Wang chama Djin-Djing para lhe dar a notícia do ocorrido. Contudo, ante a suspeita esperançosa da filha de que volte atrás em sua decisão, Wang comunica: “Não acredito em fantasmas. Você se casa esta noite”. A despeito dos argumentos do coro e das admoestações da esposa morta, o proprietário somente respeita o que a tradição determina em seu favor: “O casamento é uma consequência natural da vida.”. Para melhor desenvolvimento do entrecho amoroso, o pragmatismo comercial de Wang será contraposto ao idealismo de Djin-Djing. Entretanto, para além da discussão de gênero ou do contraste entre a inocência da juventude e a experiência paterna, coloca-se mais uma vez em evidência, as relações de dominação de classe. Logo após receber a triste notícia de que deverá se casar, a filha do proprietário vai buscar consolo na cozinha, aos pés da Senhora Shu, espécie de governanta da casa. A empregada ensinará à jovem patroa – a exemplo do que fez no passado com sua mãe – a defender-se da dominação masculina estando sempre de acordo: SENHORA SHU – É preciso estar de acordo: ensinei essa lição à sua mãe. Com o tempo ela aprendeu a lidar com o Senhor Wang. Quando percebeu que

era inútil protestar, passou a confrontar a tirania do marido sempre com um sorriso nos lábios. Seu pai ficou sem motivos de esbravejar, perdeu o apetite e acabaram-se as surras. Depois disso, a Senhora Wang começou a agir de acordo com o que acreditava; ia ao mercado das sedas toda enfeitada. Às vezes voltava só depois de três dias, muda, feliz e cheirando a doce vinho. Quando seu pai percebeu, era tarde. Ele a perdeu e nem pôde reclamar.[6] “Estar de acordo aqui”, como nos ensina Brecht, é uma estratégia de luta por aquilo que acreditamos ser a verdade, ainda quando a luta seja travada numa relação de desvantagem. Djin-Djing pergunta por que sua mãe se atirou no lago, a velha cozinheira responde: “dizem que foi de tristeza, mas não, foi por amor de alguém que nunca saberemos. A tirania nunca vence”. Não à toa a cena se passa na cozinha. A senhora Shu, juntamente com Liu Po, a jovem ajudante da casa preparam um “banquete imperial”, para a cerimônia de casamento. Em meio a indicações de como preparar um pato, as empregadas desdenham do idealismo suicida da jovem patroa: DJIN-DJING – O melhor a fazer é cortar os pulsos e repousar docemente a espera da morte. SENHORA SHU – Existem boas formas de morrer, mas a mais honesta é lutando. DJIN-DJING – Me atiro nas águas como o poeta, para abraçar o reflexo da lua. LIU PO – Senhora Shu, o bicho está devidamente temperado, gengibrado e apimentado e agora? SENHORA SHU – Costure as cavidades do pato, e 63


“um dia, os pobres como eu daremos um chute na bunda dos ricos e a riqueza que produzimos será dividida entre todos” assopre a pele pelo pescoço. Minha pequena DjinDjing, é preciso agir sem esperança.[7] Ao final da cena, as empregadas recorrem a uma canção popular para ensinarem à jovem DjinDjing algo sobre a alternativa individual e o egoísmo de classe: (Senhora Shu e Liu Po cantam) A lenda de Chen Fu Chao, o suicida Chen Fu Chao, o suicida, subiu à ponte Tinha grande dívida e decidiu se matar O povo da província se aglomerou para ver o salto Do pobre Chen , nos braços da Morte A ponte ficou tomada, a guarda foi chamada Ninguém podia atravessar Gritavam:”Acabe logo com isso! Acabe logo com isso!” Mas o pobre Chen Fu Chao hesitava Hesitava o pobre Chen Fu Chao Um velho peixeiro que ia ao mercado Vender o pescado de uma noite no mar ficou indignado “Hei, se demorar mais um pouco meu peixe 64

apodrece!” Chen Fu Chao, o suicida, só pensava no dinheiro que devia Indeciso contemplava as águas turvas do rio Contemplava as águas turvas do rio Então o velho peixeiro desceu de sua carroça E sem que os guardas percebessem Subiu à ponte para ajudar Chen Fu Chao Subiu à ponte para ajudar Chen Fu Chao Deu-lhe um empurrão para águas e disse: “Egoísta, não pense só em si mesmo”. [8] Embora o ponto de vista da patroa seja criticado pelas empregadas segundo uma perspectiva de classe, o tema do “amor” constitui-se como mobilizador de uma espécie de solidariedade feminina que vai se estabelecendo ao longo das cenas. Veremos mais adiante como a visão idealista de Djin-Djing é contraditada pela conduta materialista de Liu Po, liberta das interdições morais e entregue a uma natural disposição para o amor livre. Referindo-se a algum jovem colono com quem mantém relações amorosas a empregada da casa pondera: “O amor? Não sei o que é o amor, mas gosto quando ele me deita no capim molhado e me fala de um mundo mais honesto”. Em cena subseqüente, veremos que Liu Po se verá obrigada a “aprender a servir o chá” nos aposentos de Wang. Ela o fará com o pragmatismo da sobrevivência, uma vez que, como ela própria argumenta, “nasci como bicho, me puseram neste mundo sem pedir minha opinião, nesta casa sou escrava e prisioneira... Não me venha dizer o que é respeito”. Entretanto, apesar da sujeição de classe, ela


permanecerá convicta de que “um dia, os pobres como eu daremos um chute na bunda dos ricos e a riqueza que produzimos será dividida entre todos”. Mais experiente, a velha cozinheira, demonstra através de seus conselhos a Djin-Djing que também soube sempre “estar de acordo”. Ela também submeteu-se na juventude à cerimônia do chá nos aposentos de Wang. Como diz o proprietário: “Só permito que more nesta casa por dois motivos: me fez descobrir o amor e prepara um pato assado como ninguém”. Mas também teve seus momentos de amor verdadeiro, ainda que em condições pouco favoráveis. Quando a jovem patroa lhe pergunta sobre como foi sua primeira vez, a senhora Shu lhe ensina: DJIN-DJING – Senhora Shu, tenho medo. SENHORA SHU – Não se aflija. Você verá, é como um casulo de seda: num triz ele se rompe e então você ganha alma de borboleta. DJIN-DJING – Não quero voar. SENHORA SHU – Para uma borboleta é prudente manter os pés bem longe do chão. Em todo caso, não se esqueça do ditado antigo: “serei como o bambu, que verga, mas não cede...” DJIN-DJING – Por que diz isso? SENHORA SHU – É sabedoria não contrariar a natureza. DJIN-DJING – A senhora, quando moça, me diga como foi? SENHORA SHU – Não se escreveram versos por causa disso. DJIN-DJING – Era belo? SENHORA SHU – Não sei, estava escuro.

DJIN-DJING – Ele lhe ofertou jóias? Exalava a bom perfume? SENHORA SHU – Não tinha posses, e fedia a vinho. DJIN-DJING – Ao menos flores colhidas na entrada? SENHORA SHU – Nem um agrado. DJIN-DJING – Mas como? SENHORA SHU – Tinha pressa. Foi ao pé da ponte. DJIN-DJING – O pai não permitia? SENHORA SHU – Digamos a polícia. DJIN-DJING – E a senhora? SENHORA SHU – Quanto mais rápido menor o dano. DJIN-DJING – Não compreendo. SENHORA SHU – Era destro no assunto, quase um perito. Não foi o pior que tive. DJIN-DJING – E então? SENHORA SHU – Levantou por trás minhas saias. DJIN-DJING – Disse-lhe palavras amorosas? SENHORA SHU – Rosnava feito cão raivoso. DJIN-DJING – Ao menos, acariciou sua pele? SENHORA SHU – Mordeu-me o pescoço e atirou-me no chão. DJIN-DJING – Como? SENHORA SHU – Guarde o novelo, vou lhe mostrar. [9] Djin-Djing corre assustada, e assim permanecerá até a noite de núpcias: “Um pato selvagem na mira de um caçador”. Apesar do evidente contraste entre a forma como a patroa e as empregadas lidam com o amor e o sexo, aquela com pavor, estas com naturalidade, a sujeição aos homens as faz solidarizar-se ainda que sobressaia a diferença entre as classes: 65


SENHORA SHU – O mais importante: neste mundo regido por homens... LIU PO – Temos que ser hábeis como aranhas. SENHORA SHU – Sábias como corujas. LIU PO – Fortes como tigres. SENHORA SHU – Persistentes feito mulas. DJIN-DJING – Por quê? SENHORA SHU – Os homens parecem tolos, mas são perversos LIU PO – Se nos protegem, também nos escravizam SENHORA SHU – Se nos adulam, também nos exploram DJIN-JING – E o que fazer? SENHORA SHU – Deixe-se amar sem perder o tino. LIU PO – Seduzir sem perder o controle. SENHORA SHU – Em suma: transformar-se mudando-o. [10] Por fim, quando Djin-Djing se vê diante de Shang, o filho do agiota Cai Fu, ela retomará o tema do amor, agora não mais como estereótipo da donzela amorosa, ingênua e idealista, mas como quem se pergunta sobre o abismo entre o ser e o outro, que, de resto, é da condição humana: DJIN-DJING – Por trás da seda um rosto belo e estranho Por trás do rosto de seda um mistério Por trás do mistério, um desejo Quem sabe o abismo que abarcam teus olhos? O que será de ti quando eu me perder? O que será de mim se te encontrar? É isso o amor, um espelho opaco e liquido?[11] 66

4. Intermezzos: a manifestação ontológica da felicidade universalizante O Deus da Fortuna também se vale de um recurso comum na comédia clássica, o intermezzo, que tem o objetivo de reatualizar em chave irônica o tema central. Trata-se de duas intervenções que servem de comentário ao desenrolar da ação. Em ambos os casos surgem personagens estranhas ao universo da casa Wang, descoladas do enredo, com histórias paralelas que não interferem diretamente na fábula, mas recolocam o binômio deus/ dinheiro numa perspectiva crítica. De um lado, vemos uma dupla de “aspirantes a eruditos”, figuras típicas da China Imperial, que dedicam a vida aos estudos preparatórios para os exames de admissão na burocracia da corte como mandarins. São eles Ou-Yang Xin e Ou-Yang Shun. Os nomes já denunciam o recorte irônico da cena e fazem menção a duplas semelhantes, muito comuns na comédia clássica. Do alto de sua erudição, os aspirantes especulam sobre a existência do Deus e sua “manifestação ontológica”. Percebe-se que, embora haja a tentativa de se manter o rigor filosófico nos enunciados, o resultado final da argumentação é pura retórica. OU YANG-XIN – Xun meu chapinha, estive pensando: é filosoficamente admissível que O Deus da Fortuna esteja entre nós. OU YANG-XUN – Não há ironia nesta declaração? OU YANG-XIN – Absolutamente! Isso corresponde a um desejo universal da natureza humana.


OU YANG-XUN – Não duvide da existência do Deus. Atenha-se aos fundamentos materialistas da questão. OU YANG-XIN – Para admitir sua presença é preciso antes de tudo verificar sua manifestação ontológica. OU YANG-XUN – Descrê das evidências materiais? OU YANG-XIN – Absolutamente! Imagine que O Deus da Fortuna decidiu andar entre nós. Para isso, assumiu uma forma imaterial porém reconhecível, algo como o dinheiro. OU YANG XUN – Que aliás, não temos. OU YANG XIN – Não digo a forma vil, material do dinheiro. Não! Digamos que ele tenha assumido uma forma mais complexa... OU YANG XUN – Letras de câmbio? OU YANG XIN – Algo como a promessa de uma riqueza que não existe hoje mas poderá futuramente

existir. OU YANG XUN – Cartas de crédito? OU YANG XIN – A representação da esperança de que um dia toda a humanidade será feliz. OU YANG XUN – Títulos públicos? OU YANG XIN – E assim, ele circula mundo afora como a promessa de que, um dia, todos serão saciados. [12] Como se vê, o discurso procura ser enfático, de forma a legitimar a “promessa da felicidade universalizante”. Contudo, percebe-se que, embora o argumento pareça inquestionável, os próprios eruditos estão à margem da argumentação. Vejamos como o raciocínio se desenvolve: OU YANG XIN – Então pergunto: se ele está em toda parte... 67


OU YANG XUN – Menos no nosso bolso. OU YANG XIN – E circula de mão em mão... OU YANG XUN – Menos pelas nossas. OU YANG XIN – Isso não quer dizer que, ontologicamente falando, ele é a felicidade universal? OU YANG XUN – Justamente. OU YANG XIN – Mas se for assim, por que por onde ele passa, só promove a desordem e a desgraça? OU YANG XUN – Eis aí o nó filosófico. OU YANG XIN – Isso não lhe parece uma tremenda contradição? [13] As reflexões dos eruditos servem de prólogo para o segundo “número” do intermezzo: vemos entrar em cena dois peregrinos. Se a força da argumentação prevalece na cena anterior – no “número” dos eruditos um narrador anuncia: “versão teórica” –, agora o mesmo argumento é desenvolvido na prática, ou melhor, sem falas. Trata-se de uma “gag” física: dois andarilhos estão nos picos gelados de uma cordilheira, provavelmente a caminho de algum templo. A pobreza de seus trajes denota que vivem de esmolas e que jejuam inopinadamente. Em frente a um desfiladeiro, erguem preces a Zhao Gong Ming, o Deus da Fortuna. São fiéis ardorosos, capazes de “sentir” a presença do deus na mais ínfima manifestação da natureza. Eis que, em meio aos cânticos que entoam nas alturas, o “augusto” dessa dupla clownesca surpreende-se ao ver que há um verme instalado sob a pele da planta de seu pé. Imediatamente, seu companheiro “branco” providencia extirpar o intruso dando-lhe uma mordida na falange. Já com o verme entre os dentes, oferece-o ao companheiro. Este, ao ver 68

a presa contorcer-se, tem uma epifania. Percebe o deus no verme e se prostra entoando novo cântico. O outro, porque a fome o acossa, engole o verme satisfeito. No segundo intermezzo, denominado “Da solução universal dos problemas econômicos”, o “nó filosófico” é desatado. O argumento é uma peça de retórica vulgar, com fortes tintas keynesianas, muito semelhante aos diagnósticos dos economistas de plantão: OU YANG XUN – Honorável chapinha Xin, desatei o nó filosófico. OU YANG XIN – O Deus da Fortuna está entre nós? OU YANG XUN – Falemos do futuro! Daqui a cem anos, será o fim de todo obscurantismo. Nenhuma

A narrativa não se encerra com a última cena, mas antes se projeta como negação de ambas as trajetórias, deixando ao público a incumbência de realizar o desdobramento das ações para além da fábula.


desordem. Reinará a virtude e a bondade. OU YANG XIN – Mas como, e o que será da mais notável vocação da humanidade? OU YANG XUN – Você se refere ao nosso instinto natural de acumulação? OU YANG XIN – Naturalmente. OU YANG XUN – Estaremos livres para descartar tudo o que afeta a distribuição da riqueza. Quando todos forem ricos, prestaremos honras aos lírios do campo que não trabalham nem fiam. OU YANG XIN – Ó que belo futuro para a humanidade! OU YANG XUN – Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. OU YANG XIN – Não? OU YANG XUN – Durante os próximos cem anos devemos fingir para nós mesmos e para os outros que o bom é ruim e que o ruim é bom. OU YANG XIN – Como assim? OU YANG XUN – Ora, o ruim é útil e o bom não é. Meu caro chapinha Xin, a avareza, a usura e a especulação devem ser nossos deuses ainda por algum tempo. OU YANG XIN – Entendo. OU YANG XUN – Somente eles podem nos tirar do tenebroso túnel da necessidade econômica.[14] O “número” dos eruditos, mais uma vez serve de prólogo para nova aparição dos peregrinos. Desta vez, estão em busca de alimento. Tentam caçar um pássaro com uma atiradeira. Observam os céus, apontam o estilingue e desferem o golpe. Acontece o inusitado: a presa atingida cai sobre suas cabeças, mas ao invés de uma ave, vemos

um peixe. Apesar do insólito, o peregrino “augusto” tem nova epifania, vendo no peixe abatido uma nova manifestação do deus. Ele se prostra para as homenagens, e eis que o peixe lhe é arrebatado das mãos. A fome mais uma vez interfere nos arrebatamentos da fé. Para além da discussão sobre os mistérios da fé, os intermezzos põem em evidência os mecanismos ideológicos de perpetuação do Capital através do desmascaramento do discurso acerca do caráter universal da riqueza produzida. O contraste entre a fome dos que creem e a promessa da universalização fala por si mesmo.

5. O deus no banco dos réus

Embora siga o esquema da comédia clássica, a fábula de O Deus da Fortuna articula dois entrechos que se relacionam dialeticamente até a cena final. Entretanto, não ocorre, como é comum na comédia, o desfecho que acomoda os acontecimentos numa nova ordem, mais harmônica. Ao contrário, a narrativa não se encerra com a última cena, mas antes se projeta como negação de ambas as trajetórias, deixando ao público a incumbência de realizar o desdobramento das ações para além da fábula. O que, vale dizer, corresponde ao trabalho de refletir sobre o atual estágio do capitalismo financeirizado e suas implicações na sociabilidade brasileira atual. Ou em outros termos, refletir sobre o lugar dos trabalhadores no metabolismo do capital em sua fase atual de reprodutibilidade. O deus aponta a saída: “Vou lhe revelar o futuro. O senhor vai edificar um templo em minha honra. Cai Fu colocará à disposição o capital que for preciso. 69


Será o Templo da Fortuna.” Desde o prólogo, desenvolvem-se duas trajetórias que se imbricam e condicionam. Num pólo, acompanhamos a decadência do proprietário de terras Wang: suas dívidas aumentam, a produção do arroz e da seda perde valor de mercado e os colonos ameaçam invadir a propriedade. Seu credor Cai Fu já não lhe acena com novos empréstimos, a filha se opõe aos ditames paternos e a criadagem da casa não lhe presta as devidas homenagens. A situação é tão periclitante que até fantasmas surgem para reprovar seus desmandos. No pólo oposto, mas complementar, acompanhamos o dilema da jovem Djin-Djing, em pleno vigor da juventude, mas condenada a um casamento de conveniência. Não é exatamente a venda da filha que faz Wang beber e sentir-se melancólico (“Estou sentimental”), mas o fato de que a venda não ocorra em condições favoráveis (“Minha filha não é uma vil mercadoria, saberei vendê-la pelo seu real valor”). Contudo, apesar do cálculo de comerciante, Wang revela seus sentimentos de pai. Ao referir-se à perda de Djin-Djing, numa conversa franca com seu homem de confiança, Secretário Koo, conversa regada a saquê, Wang desabafa: “Ah, velho Koo, não é todo dia que entregamos nossa filha aos cuidados de outro homem”. A cena final da peça é dedicada à cerimônia matrimonial e aos seus inesperados desdobramentos. Após a filha exibir seus dotes artísticos ao jovem pretendente, chega o momento decisivo para Wang. Cai Fu faz menção de retirar-se com seu filho Shang, este levando consigo sua nova esposa. Wang percebe que seu último trunfo para 70

renegociar suas dívidas esgota-se sem o resultado esperado. Perderá a filha, sua última garantia, se não agir rápido: SENHOR WANG – Djin-Djing só sai desta casa depois que minhas dívidas forem honradas. CAI FU – A honra de sua filha não paga suas dívidas. SENHOR WANG – O senhor está em minha propriedade. CAI FU – Não por muito tempo. SENHOR WANG – Isso é uma ameaça? CAI FU – Seu prazo expira amanhã. Se não pagar, executo. Por lei estas terras terão um novo senhor. [15] Diante do fato consumado, resta ao proprietário partir para o ataque. Aos gritos, numa bravata calculada, ameaça romper os laços do matrimônio, assim como as relações cordiais que mantém com seu convidado. A tática de desrespeito aos ritos matrimoniais e às regras de hospitalidade surte efeito e o agiota aceita, também de maneira calculada, as desculpas de seu anfitrião. Aqui, não é o matrimônio que está em jogo, trata-se, sobretudo, de uma disputa entre negociantes. Após a distensão dos ânimos, a conversa evolui para o seu verdadeiro interesse. O trecho a seguir é extenso, mas se justifica por sua clareza. SENHOR WANG – Venerável irmãozinho Fu, perdoe minha exaltação. Os tempos estão negros. Não bastasse a dívida, os colonos ameaçam invadir a propriedade. As amoreiras secaram e os arrozais apodrecem sob as águas das últimas cheias. Tentei em vão recorrer ao Imperador, mas ele não me


recebeu. Ah, Mestre, como é ingrata a vida de um proprietário, refém da preguiça dos servos, das intempéries do clima, e dos juros extorsivos. Perdão. O senhor me conhece, sou um rude homem do campo, não tenho o requinte e as luzes de sua instrução. Crédulo, amigo de todos, generoso como uma vaca, perderam o respeito por minha liquidez. O que fazer, senão recorrer aos seus empréstimos? Reconsidero, seu filho não é completamente parvo, ele há de fazer Djin-Djing feliz. Quanto a mim, o que será deste pobre lavrador? Cansei de fazer oferendas ao Deus da Fortuna. Cheguei a mandar vir da capital uma estátua e ergui em sua honra um altar. Mas de nada adiantou. O Deus não quer saber de mim. Por isso, peço mais uma vez que ponha seu dinheiro a trabalhar em meu favor. CAI FU – Senhor Wang, apesar das ofensas, aceito suas desculpas. Quanto a novos empréstimos, o senhor sabe, sou um comerciante de dinheiro que precisa de garantias. Sugiro que aumente as oferendas ao Deus. Talvez ele bata à sua porta. SENHOR WANG – Mesmo que viesse com um saco de dinheiro, eu o poria no suplício. CAI FU – Sem ao menos um julgamento? SENHOR WANG – Seria fácil condená-lo à morte. CAI FU – Por que razão? SENHOR WANG – É um impostor. Oferece ao crédulo a ilusão de que a felicidade é um bem para todos. Mas o que vemos é só miséria e desolação. Eu mesmo, pobre de mim, já sonhei que ele me traria alento. Mas quando percebo o ódio nos olhos de meus criados, tenho certeza de que a felicidade dele é para poucos. CAI FU – O senhor não se inclui?

SENHOR WANG – Como poderia, se estou a cada dia mais endividado? CAI FU – Então, o melhor a fazer é julgá-lo e decidir se deve ser condenado à morte. SENHOR WANG – Um Deus, que se diz imortal? Quem o destruiria? Eu, se pisar nesta casa. Mas antes, voltemos ao tema do empréstimo. Cai Fu deposita sobre a mesa um saco de moedas que até então ocultara. A cena sofre uma mudança de atmosfera de modo que o ator que representa Cai Fu passa a representar o Deus da Fortuna. SENHOR WANG – Ó, Mestre Cai Fu, grande irmão das horas difíceis, fundo inesgotável dos resgates providenciais. Diga quais serão as condições implacáveis desse novo empréstimo. Estou disposto a qualquer submissão. DEUS DA FORTUNA – É o Deus da Fortuna que lhe oferece a saída. [16] O gesto de Mestre Cai Fu é emblemático: a saída para Wang não está propriamente no novo empréstimo que custearia por mais algum tempo a agonizante produção de arroz e de seda, mas numa mudança radical dos meios de produção com seu corolário de destruição e desintegração social. A sugestão pode parecer num primeiro momento estranha ao velho proprietário de terras (“Maldito vinho, por que me prega peças?”), mas aos poucos percebemos que o aparente descompasso do capitalista à moda antiga era apenas parte do processo de transformação, já em curso desde a primeira cena. Cabe salientar que, no prólogo, o tigre dá a senha para a capitulação do mundo do trabalho, e o deus, ironicamente, o aconselha a destruí-lo 71


antes que seja tarde: TIGRE – “Vá sozinho nesta jornada, você não precisa mais de mim.” DEUS DA FROTUNA – Eis a grande ilusão, o meu maior triunfo! Fazer acreditar que tenho vida própria. Vamos, anime-se! Desça do altar e observe seus dessemelhantes. Apesar das diferenças, assim como você, eles adoram o inimigo. TIGRE assume forma humana – O que sugere que eu faça? DEUS DA FORTUNA – Retome seu lugar no coração dos homens. Assuma seu posto na consciência deles. Em suma, promova a desordem e me destrua se for capaz.[17] Veremos que a jornada do Deus da Fortuna se cumpre simbolicamente na propriedade de Wang. Mas para que a transformação de fato aconteça, o Deus deverá ser julgado. Somente após sua evidente absolvição pelas classes subalternas é que ele poderá circular, “desimpedido da matéria”, virtualmente, como capital financeirizado. Diante dessa providência, mais uma vez, Wang manifesta sua calculada incompreensão: WANG – Está bem, eu me rendo, se é O Deus da Fortuna, o que quer de mim? DEUS DA FORTUNA – Muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos. SENHOR WANG – Desembucha. DEUS DA FORTUNA – Antes terá de sustentar o julgamento. SENHOR WANG – Mas que diabo de julgamento? 72

DEUS DA FORTUNA – O Deus da Fortuna deverá ser julgado. SENHOR WANG – E quem dará o veredicto? DEUS DA FORTUNA – Eu mesmo, o Deus. SENHOR WANG – Irmãozinho, estamos tendo alucinações. O Deus em pessoa senta no banco dos réus e ele mesmo quer fazer a autocrítica! É melhor que vá embora, este mundo está pelo avesso. DEUS DA FORTUNA – Você representará o réu. SENHOR WANG – Eu? DEUS DA FORTUNA – Quem reina poderoso nesta propriedade? SENHOR WANG – Eu, naturalmente. DEUS DA FORTUNA – Quem tem o poder sobre a vida e a morte dos empregados? SENHOR WANG – Eu, naturalmente. DEUS DA FORTUNA – E quem é o senhor soberano de toda fortuna destas terras? SENHOR WANG – Mais uma vez a resposta é Wang, o senhor da fortuna, com a permissão de meu sereníssimo credor Mestre Cai Fu. DEUS DA FORTUNA – Pois então, é o senhor que deverá ser julgado e condenado. Entretanto, se for absolvido, hipótese que o senhor mesmo descarta, ensinarei como o ouro se dissolve em pura aparência e como suas dívidas de hoje serão sua fortuna de amanhã. [18] Durante a conversa com o Deus, Wang faz menção ao descontentamento de seus colonos decididos a invadir a propriedade. Em cena anterior, um grupo de trabalhadores chega a ameaçá-lo em coro: “Wang, cagão, saia da toca, venha enfrentar nossa fúria.”. Mas são brutalmente rechaçados:


“Voltem para suas malocas, bando de imprestáveis. Vão chorar as pitangas ao Deus da Fortuna! Agora, o mesmo grupo será convidado a participar no julgamento. Contudo, diante da alternativa de ruptura com as relações ambivalentes que mantêm com o Patrão, relações de submissão e vantagem, de cordialidade e violência, os trabalhadores hesitam:

“O que adianta conhecerem a miséria se não têm consciência de onde ela provém? (provocando) Vamos, desperte os companheiros, e juntos me expulsem daqui.” COLONO (entra e se surpreende com a situação) – O que se passa aqui? DEUS DA FORTUNA – É você é o líder da rebelião? COLONO – O que fez ao meu paizinho? DEUS DA FORTUNA – Este homem é o tirano destas terras, seu maior inimigo! COLONO – Ele é um bom patrão. DEUS DA FORTUNA – Se fosse, não estariam fazendo ameaças. COLONO – Quando se perde a colheita e a fome maltrata nossos filhos, somos obrigados a fazer

barulho. DEUS DA FORTUNA – Vão invadir a propriedade, derrubar as amoreiras, incendiar os armazéns de arroz? Eis o que deviam fazer. COLONO – Gritamos um pouco, às vezes quebramos uma vidraça, mas não gostamos de violência. No final, sempre nos entendemos. DEUS DA FORTUNA – Covarde, aproveite a ocasião. Não percebe? Esta é a hora de assumir feição humana. COLONO – Vou chamar meus companheiros e juntos lhe daremos uma boa sova. Entra o Coro dos Colonos. DEUS DA FORTUNA – Seus companheiros? (Estala os dedos e o grupo adormece) Veja, estão entorpecidos pela promessa da Fortuna. COLONO – O que é isso? DEUS DA FORTUNA – O embotamento dos sentidos. O sono dos insaciados. COLONO – Mas como? DEUS DA FORTUNA – Despertarão depois do julgamento. COLONO – Que julgamento? DEUS DA FORTUNA – Este miserável dever ser julgado, condenado e executado. COLONO – Por quem? DEUS DA FORTUNA – Por você e pelos de sua classe. COLONO – Não temos classe, somos pessoas simples. [19] Neste ponto, a cena realiza uma perversa reversão de expectativa. Na cena anteriormente referida, os colonos surgem em atitude afirmativa, bradando as razões de seu descontentamento 73


e fazendo ameaças, numa operação explícita de identificação com o público, uma vez que representam o lado humilde e vitimado do embate com o Patrão. Porém, eles são exemplarmente rechaçados, o que reforça a empatia com o grupo e sua causa. Ressalte-se que o Secretário Koo, mediador do confronto, uma vez sozinho em cena após a situação ter sido remediada, desabafa: SECRETÁRIO KOO – Isso vai acabar mal. Que diabos, não é assim que se trata um trabalhador. As dívidas estão deixando o Senhor Wang sem freios. Ele sempre foi bom patrão, sempre explorou com ternura as qualidades de nossa boa gente, e disso tirou o seu lucro legítimo e também o nosso sustento. [20] A incompreensão quase cínica do empregado, que age como mediador de interesses antagônicos, ao mesmo tempo em que revela a ambigüidade do pelego, que oscila entre ambos os lados, serve de preparação para o revide dos humilhados. Entretanto, na cena em que são chamados a “assumir feição humana” e condenar à morte o Patrão, percebemos que o conhecimento de classe não se traduz em consciência de seu poder revolucionário, de forma que o líder da rebelião justifica de modo afetivo e, por isso mesmo, quase abjeto as ações de Wang: DEUS DA FORTUNA – Faça a acusação. COLONO – Não posso acusar quem me dá abrigo e comida. DEUS DA FORTUNA – Ele explora o trabalho de 74

gerações. COLONO – É um bom homem. DEUS DA FORTUNA – Manda bater se lhe desagradam e matar se lhe ameaçam. COLONO – Está no seu direito. DEUS DA FORTUNA – Fornica e violenta, humilha e corrompe. COLONO – É um ser humano. DEUS DA FORTUNA – Está vendo Wang, como é espantosa a ignorância dessa gente? O que adianta conhecerem a miséria se não têm consciência de onde ela provém? (provocando) Vamos, desperte os companheiros, e juntos me expulsem daqui. Tenta acordá-los, em vão. COLONO – Feiticeiro canalha, o que quer de nós? DEUS DA FORTUNA – Faça a acusação. COLONO – Já disse, não posso. DEUS DA FORTUNA – Então, ouça. [21] Em face da obstinada e vexatória defesa do réu, num ápice de didatismo dialético – que não implica, necessariamente, rebaixamento do jogo –, a cena assume abertamente o comentário, e produz uma nova reversão de expectativa, à medida que confere consciência ao coro dos adormecidos. Contudo, a lucidez e positividade de suas palavras surgem como impotência emblemática de uma classe em retroação histórica, porque impossibilitada de se reconhecer ideologicamente como força social revolucionária. Para além do fervor do discurso, a justeza do diagnóstico confere dimensão melancólica e desajustada à necessidade e inevitabilidade do confronto entre classes. COLONO 1 – Se não estivéssemos dormindo o sono


da ignorância COLONO 2 – Bovinamente, entorpecidos pela promessa enganosa de que um dia também seremos contemplados COLONO 1 – Se não estivéssemos dormindo o sono dos injustiçados COLONO 2 – Bovinamente, acomodados na crença dos valores eternos COLONO 3 – Eis o que diríamos: TODOS – Morte aos canalhas proprietários! Morte aos espoliadores do trabalho! Morte aos especuladores bandoleiros! Criaremos um novo mundo. COLONO 3 – Mas estamos dormindo COLONO 1 – Sonhando o pesadelo da consumação dos antagonismos COLONO 2 – O pesadelo do gozo hedonista COLONO 4 – O pesadelo da igualdade metafísica COLONO 3 – Portanto, esqueça o obstinado inconformismo COLONO 1 – Abandone as trabalhosas utopias COLONO 2 – Desista das veleidades coletivas COLONO 4 – Dormindo somos indivíduos TODOS – Brindemos à morte em vida![22] A ambiguidade dessas afirmações, que vão da acusação explícita à sujeição mais sem-vergonha exige do público uma reação imediata. O coro, antes de voltar ao sono profundo da alienação, deixa ao espectador uma incumbência: caberá a ele decidir sobre a atualidade e evitabilidade da capitulação. Assim, o que num primeiro momento sugere desajuste e nostalgia, imediatamente transforma-se em devir histórico e cobra do público um

posicionamento: TODOS – Amigos do contra Sejam pacientes Um dia acordaremos E então ninguém sabe o que vai ser.[23] Entretanto, ainda que a advertência do coro comporte certa dose de esperança, na medida em que não descarta a possibilidade futura de uma reação não apenas explosiva como revolucionária, o gestus teatral da impotência soa como autocrítica (da qual participa o coletivo de artistas em cena), o que exige do público diretamente interessado a imediata ponderação sobre “que fazer?” Contudo, antes que se dê tempo de resposta, essa operação reflexiva é sobrepujada por nova provocação do ator que representa o deus: DEUS DA FORTUNA – Depois desta comovente defesa, o réu espera o veredicto. [24] Aqui, a dramaturgia expõe de maneira crua e decisiva o bem sucedido mecanismo de amortecimento ideológico empreendido pelo Capital de forma a manter sob controle a insatisfação da massa de trabalhadores em suas relações de produção precarizadas na periferia do sistema. Sabendo de antemão a resposta, e em face da capitulação do líder dos colonos, o deus conclui os termos de sua equação oferecendo a Wang uma perspectiva: COLONO – Não cabe a nós a decisão. Não ouviu? Seja paciente, o Deus da Fortuna baterá a nossa 75


porta. DEUS DA FORTUNA – Eis o veredicto. Está vendo, senhor Wang? Sua gente é ordeira e pacata, amante da harmonia entre as classes. (Desamarra-o) O senhor está desimpedido para agir. O futuro lhe espera. (aos colonos) Agora podem ir. Voltem à amistosa ruminação de todos os dias. (Saem. A Wang) Vou lhe revelar o futuro. O senhor vai edificar um templo em minha honra. Cai Fu colocará a disposição o capital que for preciso. Será o Templo da Fortuna.[25] A revelação do futuro na parábola corresponde aos dias atuais. Wang, numa espécie de delírio premonitório, descreve o funcionamento das bolsas de valores. Simbolicamente, o proprietário assume sua nova função no sistema periférico não apenas como elo de opressão no processo de acumulação primitiva, mas também como agenciador do capital especulativo[26]. SENHOR WANG – Já posso ver o novo templo, que não será único. Outros serão erguidos por todo continente. Nele os verdadeiros valores da civilização circularão desimpedidos da matéria. Já posso [1] Em O Deus da Fortuna, a personagem que “reconhece” o Deus, assim como o aguadeiro, também se chama Wang. Tratase de uma citação da obra de Brecht, apesar de as personagens serem diametralmente opostas por pertencerem a classes sociais antagônicas. [2] Márcio Marciano. O Deus da Fortuna. João Pessoa, Edição do Autor, 2011, p. 03. De ora em diante citado como ODF. [3] ODF, p. 04.

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[4] ODF, p. 04. [5] ODF, p. 19. [6] ODF, p. 05. [7] ODF, p. 05. [8] ODF, p. 07. [9] ODF, p. 16. [10] ODF, p. 25. [11] ODF, p. 30. [12] ODF, p.

10. [13] ODF, p. 11. [14] ODF, p. 22. [15] ODF, p. 32. [16] ODF, p. 33. [17] ODF, p. 04.

ouvir o rumor dos cânticos. O espetáculo dos agentes transtornados pela fé na fortuna. Bocas em espasmos, olhos esbugalhados, mãos trêmulas em gestos convulsivos. Espanto! Desespero! De repente puro entusiasmo! Ombro a ombro, como uma onda humana, frenéticos e aloprados, como num ritual primitivo cultuando o Deus da Fortuna![27] Apesar do caráter apologético dessa retumbante ode ao Capital, proferida por Wang a plenos pulmões, a cena não confere ao proprietário a última palavra. No epílogo, Liu Po e Senhora Shu, as empregadas da casa, surgem na escuridão iluminadas pela chama de uma vela. Num brevíssimo diálogo, que serve como uma nova abertura, elas sugerem que a História ainda não acabou: LIU PO – Senhora Shu, o que está acontecendo nesta casa? SENHORA SHU – Vivemos tempos sombrios. Não te parece que estamos sonhando? LIU PO – E o que será de nós? SENHORA SHU – Está na hora de acordar, varrer as cinzas de incenso e dar um pé na bunda do Deus.

[18] ODF, p. 35. [19] ODF, p. 37. [20] ODF, p. 24. [21] ODF, p. 37. [22] ODF, p. 39. [23] ODF, p.

39. [24] ODF, p. 39. [25] ODF, p. 40. [26] Na encenação do Coletivo de Teatro Alfenim, durante essa fala e ao som da canção “O Deus da Fortuna baterá à vossa porta”, são projetadas imagens atuais das principais bolsas de valores; da repressão policial aos distúrbios na zona do Euro e do atentado de 11 de setembro em Nova York. [27] ODF, p. 40.



figurino vilmara georgina


espaço em obra O Alfenim já vinha trabalhando na criação de O Deus da Fortuna quando fui convidada a me integrar ao Coletivo. O texto estava quase concluído e o universo do espetáculo sendo constituído com os atores. Havia também, pela primeira vez, um espaço para desenvolver esse processo de criação colaborativa, a Casa Amarela, sede do grupo, lugar de experimentação, um laboratório para as ideias serem testadas. A proposta era inventar uma nova maneira de se vestir inspirada na cultura chinesa, sem necessariamente reproduzir um rigorismo de costumes. Um trabalho de sobreposição excessiva, mistura de materiais e texturas, com muita cor e estampas, trazia algo do que se pensava para o figurino. Mergulhamos então nos filmes sobre uma China antiga, num mundo pré-capitalista, acostumando o olhar a uma nova forma de vestimentas. Recolhemos imagens de pinturas, gravuras, selos, tudo enfim que nos subsidiasse nesse aprendizado. Com todas essas informações em mente, reuni materiais diversos e levei para o grupo começar a “brincar”. Trabalhei com a ideia de sobreposições, usando a técnica de moulage, em um processo artesanal de costura, bordados, tramas e tingimentos. Uma urgência era como tornar visível Zhao Gong Ming, uma divindade chinesa representada geralmente por estátuas, sempre acompanhada de um tigre siberiano. Como sugeria o argumento de Brecht, de onde partimos, o deus foi escolhido para simbolizar a dialética entre o “capital” e o “trabalho”. Entrei no campo da fantasia, da fábula, pesquisei a Ópera de Pequim, o teatro kabuki, bebi nas fontes do teatro de animação, de modo a descobrir como materializar plasticamente esse deus. Apostei então em bonecos vivos, uma escultura de tecido para vestir os atores, estátua com movimento. Outro desafio foi a troca rápida de figurinos em cena, já que na primeira versão do espetáculo eram cinco atores para dezenove personagens. Tivemos que criar uma “logística” que permitisse essas trocas, quase imediatas, sem contar o revezamento constante dos atores durante todo o espetáculo, em um palco sem coxias, com tudo exposto ao público. Acompanhei os ensaios para verificar as necessidades dos atores, as composições das cenas que iam nascendo do texto, seus movimentos, seus tempos. Este convívio, desde os ensaios até o fim da temporada revelou soluções, apontou erros, descobriu caminhos, formas e cores, num movimento contínuo e até exaustivo de produção compartilhada. O trabalho em atelier refletiu o processo vivido pelo grupo na construção do espetáculo, pude produzir e experimentar ao mesmo tempo em que eles tornavam visível cada cena. A conclusão só se deu semanas depois da estréia, assistindo cada sessão e fazendo os ajustes para o dia seguinte, nesse “espaço em obra” que se chama teatro. 79


mĂşsica wilame ac mayra ferreira


música do espetáculo wilame ac

Durante o processo de criação musical de O Deus da Fortuna, as conversas em sala de ensaio apontavam para a experimentação de uma sonoridade que sugerisse remotamente padrões orientais. A partitura do espetáculo, criada em processo colaborativo a partir de poemas sugeridos pelo dramaturgo, incorpora sugestões melódicas trazidas pelos atores como parte das improvisações de cena. Em trabalho posterior, fora da sala de ensaio, essas canções foram harmonizadas para dar mais vigor e enriquecimento às vozes ora cantadas em coro ou simplesmente em solo. Juntamente com o processo de elaboração musical e experimentação na sala de ensaio, ocorreu também a oficina Dramaturgia e Música, ministrada por Martin Eikmeier, compositor e diretor musical da Companhia do Latão (SP). A oficina contribuiu significativamente para reforçar e amadurecer algumas composições já concebidas pelo Coletivo. Além de canções, a capella, como A Lenda de Chen Fu Chao, o suicida, Casinha bem quentinha e O Dinheiro (a partir de fragmento de poema de Bertolt Brecht), as músicas que integram o repertório de O Deus da Fortuna são executadas com teclado, tambor, flauta doce e xilofone, sendo que, na segunda versão do espetáculo (2012), foi incorporado um violoncelo. Alguns elementos que compõem a cenografia também são utilizados, a exemplo do que ocorre na cena em que a personagem Wang leva uma surra, acompanhada sonoramente por quatro atores que entram, um a um, batendo ostinatos rítmicos em semicolcheias. Ou na cena em que colonos utilizam bastões de madeira percutidos no chão, cujas batidas são intercaladas por coros que protestam contra a exploração do proprietário de terras falido. Um momento emblemático do caráter narrativo que a música assume no espetáculo ocorre quando os papéis de músico e ator se invertem; a partir de uma base de piano programada no teclado (posteriormente substituída pela execução no violoncelo), atores assumem o lugar dos músicos enquanto estes participam da cena como personagens.

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exemplos de temas e músicas mayra ferreira

A parte musical de um espetáculo teatral pode ser chamada de trilha sonora ou música cênica. Em O Deus da Fortuna, ela compreende canções, efeitos sonoros e temas instrumentais. Mas no Coletivo Alfenim a música cênica não é concebida em segundo plano, já que os elementos cênico e musical operam em conjunto. Ou seja, a música interfere diretamente na cena e vice-versa. Essas questões são exploradas em sala de ensaio a partir de um processo colaborativo que envolve todos que participam diretamente do espetáculo.

1. O mantra ao Deus da Fortuna

O mantra ao Deus da Fortuna abre o espetáculo e tem início com uma nota entoada pelo violoncelo intercalada com batidas amétricas de um pequeno sino. Estes dois sons são os únicos acompanhamentos para o coro dos atores que cantará o mantra repetidas vezes durante a entrada do público. Os atores cantam a letra “Não sei ao que eu oro”, dirigindo-se ao Deus da Fortuna.

Mantra

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transcrição e edição de partituras: nuriey castro


2. MĂşsica do Teatrinho

Enquanto dois atores narram a lenda de Zhao Gong Ming - o Deus da Fortuna, um tema com motivo oriental ĂŠ tocado ao piano.

Teatrinho

nuriey castro

Lento quasi moderato

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3. Instrumentos musicais executados em cena

Xilofone, tambor, flauta doce, sino e sineta, agogô, violoncelo e piano são os instrumentos musicais utilizados em O Deus da Fortuna para produzir sons que compõem não só a trilha musical do espetáculo, mas também atuam como signos sonoros. O próprio violoncelo e o piano participam dessa tarefa de produzir sons não convencionais. Além dos instrumentos musicais, os atores também recorrem a objetos cênicos, como tábuas, facão, aquário, bastões, para gerar efeitos sonoros que enriquecem e reforçam a ambientação sonora do espetáculo. Segue abaixo, o tema executado no xilofone para transições de cenas a fim de marcar a entrada e saída dos Intermezzos I (diálogo filosófico dos eruditos) e II (cenas com os peregrinos).

Intermezzo (Xilofone) Allegro

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4. Canções

Historicamente, desde as óperas, até os dias atuais, o canto mantém uma estreita ligação com o fazer musical e artístico, além do vínculo natural com a palavra. Canções de O Deus da Fortuna: 1. Abertura – Canção do Deus da Fortuna (voz solo e coro, piano e cello) 2. A Lenda de Chen Fu Chao, o suicida (voz solo e coro a capella) 3. Casinha bem quentinha (voz solo e coro, piano e cello) 4. O Dinheiro (voz coro a capella) 5. Moços se abismam (voz, xilofone e cello) 6. Canção do Julgamento (voz coro, piano e cello) Segue abaixo, a partitura da Canção do Deus da Fortuna, que é cantada também no final da peça indicando o que representa este deus.

Abertura Moderato

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O Coletivo Alfenim entende o canto como um componente fundamental a ser trabalhado na sala de ensaio, levando em consideração os seus mais diversos aspectos: técnicas de afinação, ritmo, emissão vocal e também a criação de melodias para as letras. A composição das melodias, bem como dos arranjos para divisão de vozes, voz solo, coro, arranjos para acompanhamentos das canções, tudo isto é decidido em grupo (atores, músicos, direção geral, direção de arte e produção) ao longo do processo de construção do espetáculo. De tal forma que os músicos assumem o papel de indicar as melhores alternativas e soluções para o trabalho musical.

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cenografia iluminação márcio marciano


a concepção do espaço cênico Nos processos de criação do Coletivo Alfenim, a concepção do espaço cênico surge como síntese dos tensionamentos que se criam na sala de ensaios entre as diversas forças produtivas da cena, mobilizadas para produzir elementos formais que se pautem pela clareza do enunciado e pela economia dos meios expressivos. Estão presentes nesse contínuo movimento de negação recíproca as soluções que se originam na improvisação dos atores, nas sugestões da dramaturgia, nos recursos da cenografia, do figurino e da iluminação. Através da superação dos obstáculos impostos pela narrativa, delineia-se o conceito que virá a orientar o trabalho de construção de um espaço cênico capaz de se formar e transformar na medida das necessidades da cena, de modo a sugerir os diversos ambientes nos quais se desenvolve a fábula. Em O Deus da Fortuna sentiu-se a necessidade da criação de um espaço fantasioso, relativo a uma China imemorial como que materializada a partir de ilustrações chinesas antigas. Para que se evitasse qualquer efeito decorativo, o conceito de “ilustrações que ganham vida aos olhos do público”, norteou o diálogo entre cenografia, figurinos e iluminação. De imediato, constatou-se que as figuras vivas teriam maior efeito quanto maior fosse a neutralidade do fundo. Sendo assim, cenografia e iluminação se aliaram de forma a criar uma “tela”, na qual os figurinos pudessem ganhar não apenas relevo, como também uma dimensão mais fantasiosa, uma vez que estariam livres para desenhar sobre um fundo neutro variações de paleta de acordo com as composições de volumes exigidas pela cena. Para tornar mais eficaz essas composições, a cenografia criou pequenas plataformas de madeira pintadas à mão que, de acordo com a progressão da narrativa, assumem funções diversas na criação dos espaços e possibilitam a elevação dos planos das cenas. Como moldura dessa tela onde se movimentam as figuras de uma “China de papelão”, a cenografia trabalha com uma cortina de tecido, também utilizada para projeções de imagens e um piso de lona trabalhado de forma a criar texturas a serem exploradas pela iluminação. Esta, por sua vez, obedece ao princípio de tornar o mais visível possível o trabalho dos atores, e evita a sugestão de atmosferas que possam influenciar o olhar do espectador. Dessa forma, “esfria” a temperatura da luz de modo a fazer com que as expressões e gestos dos atores ganhem maior destaque em relação ao intenso cromatismo dos figurinos. A iluminação contribui na criação do espaço cênico ao instalar lanternas chinesas nos limites da moldura. Estas são utilizadas como sinalizadores durante as cenas de transição. Por ser a música do espetáculo executada ao vivo, os instrumentos estão acomodados junto às laterais do espaço cênico a vista do público, juntamente com os demais objetos. Este espaço é também ocupado pelos atores como coxia, nos momentos em que se preparam para retornar a cena.

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atuação Cecilia Retamoza Lara Torrezan Vitor Blam Adriano Cabral Daniel Araújo 90


um relato escrito a seis mãos cecilia retamoza, lara torrezan e vitor blam

Em julho de 2011, o Coletivo de Teatro Alfenim abriu inscrições para a oficina “Exercícios para uma cena dialética”, que foi realizada na Casa Amarela, sede do grupo em João Pessoa, Paraíba. A oficina marcou o início de uma série de ações formativas desenvolvidas pelo Alfenim, com o intuito de apresentar procedimentos de trabalho colaborativo a serem utilizados no processo de criação de seu novo espetáculo, O Deus da Fortuna, e selecionar possíveis estagiários. Como graduandos do curso de Teatro da UFPB e alunos de Paula Coelho, atriz do Coletivo, tínhamos conhecimento da trajetória do grupo e nos inscrevemos na oficina com o intuito de experimentar a sua proposta de trabalho fundamentada nos procedimentos épico-dialéticos indicados por Bertolt Brecht. Nos cinco dias de oficina exercitamos formas de dialetização da cena através de recursos épicos de distanciamento, narrativa, legendas e de suspensão da ação, desenvolvidos em improvisações individuais e coletivas. Nesses exercícios foram introduzidos elementos da cultura oriental como haicais, fábulas e exercícios de grammelot explorando a sonoridade da língua chinesa. Dessa maneira, iniciou-se a etapa de seleção de materiais que se identificavam com a temática de O Deus da Fortuna, assim como reflexões acerca do atual estágio do capitalismo. Na semana seguinte ao término da oficina, fomos convocados para uma reunião. Conversamos

sobre o estágio e o projeto de renovação do grupo que incluiria a nossa participação e também a de Gabriela Arruda, como assistente de produção. Assim, fomos incorporados ao processo de montagem do novo espetáculo. Nossos encontros aconteciam três vezes por semana, totalizando 12 horas de trabalho, cujo desenvolvimento seguiu a metodologia utilizada na oficina, com o diferencial de propormos situações modelares para a criação de cenas e personagens, utilizando como estímulo criativo os adereços e figurinos trazidos por Vilmara Georgina, figurinista do espetáculo. Desse modo, estabeleceu-se um diálogo constante visando à funcionalidade desses elementos na narrativa da peça. A partir de nossas improvisações na sala de ensaio foram surgindo cenas, personagens e canções que comporiam a estrutura de O Deus da Fortuna. A geração desses materiais dramatúrgicos em sala de ensaio subsidiou a dramaturgia concebida por Márcio Marciano, que nos entregou uma primeira versão do texto no dia 10 de setembro. Durante a etapa de montagem, deu-se continuidade ao conjunto de ações formativas previstas pelo grupo, o que também contribuiu para a constituição do espetáculo. Em outubro de 2011, na Fundação Casa de Cultura Cia. da Terra, o Alfenim promoveu o seminário A Metafísica do Capital, cujo objetivo foi reunir especialistas para discutir o atual estágio do capitalismo e a influência da 91


religião como sustentação ideológica do Capital. Partindo da premissa de que o espetáculo iria apresentar essa discussão em chave cômica, o seminário foi bastante importante para adquirirmos informações sobre o funcionamento dos mecanismos do capitalismo atual, como se caracterizam as relações sociais e econômicas e quais as formas de persuasão ideológica que o Capital exerce em nossa sociedade. Tudo isso nos ajudou a ter mais clareza sobre o conteúdo abordado em O Deus da Fortuna, além de instrumentalizar nossa compreensão crítica a respeito do texto da peça. Ainda no mês de outubro, o grupo promoveu a oficina Dramaturgia e Música, ministrada por Martin Eikmeier, compositor e diretor musical da Companhia do Latão, de São Paulo, que contou com a participação de atores, estudantes de teatro e músicos. Se o seminário A Metafísica do Capital contribuiu para nossas reflexões teóricas acerca da temática da peça, a oficina de música se caracterizou não só como um momento de novas aprendizagens, mas também como um reforço para as experiências musicais construídas na sala de ensaio. Após o término da oficina, tivemos a oportunidade de mostrar a Martin as canções que seriam incluídas no espetáculo, bem como discutir a função das mesmas nas cenas. A oficina ministrada por ele e suas considerações sobre o desenvolvimento de nosso trabalho musical foram muito pertinentes para entendermos o papel essencial da música no teatro épico proposto por Brecht e, consequentemente, de sua apropriação em O Deus da Fortuna.

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Em novembro, passamos a ensaiar na Fundação Casa de Cultura Cia. da Terra, local de nossa primeira temporada, e já na segunda semana do mês realizamos ensaios abertos para convidados, entre eles, os demais participantes das oficinas, o que resultou num maior amadurecimento do espetáculo. Iniciamos a temporada com espetáculos de sexta a domingo, sendo que aos sábados, fazíamos sessões gratuitas às 17h para grupos convidados. Recebemos os alunos do curso de Teatro da UFPB, da Escola Estadual Almirante Tamandaré (crianças e adolescentes que assistiram ao espetáculo com surpreendente interesse), alunos do curso de História para os movimentos sociais do campo PEC-MSC da UFPB, internos do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira e participantes do Movimento Levante, que além de assistirem ao espetáculo, participaram de um debate sobre as impressões da peça, nosso processo de trabalho e a temática que abordamos. Tais experiências propiciaram momentos riquíssimos para este percurso inicial de O Deus da Fortuna, cuja finalização ocorreu no mês de dezembro, com o encerramento da primeira temporada do espetáculo. O período de estágio com o Coletivo de Teatro Alfenim representou uma etapa de valiosas descobertas e de intenso aprendizado para nós, jovens atores, ainda nos firmando no meio teatral e também como alunos graduados e graduandos do curso de Teatro da UFPB.



dialética com diversão adriano cabral

Já dizia Brecht logo na abertura de uma de suas obras teóricas mais importantes, o Pequeno Organon para o Teatro: “(...) a função mais geral do Teatro é a de divertir.”, mais adiante, temos: “No princípio, o objetivo do Teatro, como das demais artes, era entreter pessoas. E é esse empenho precisamente que lhe confere uma dignidade particular. Como característica, basta-lhe o prazer: o Teatro não necessita de outro passaporte”. Escolhi este mote para arriscar algumas breves e pontuais considerações a respeito do Teatro que abraçamos como ofício, bandeira de luta e, porque não dizer, também diversão. Perdi a conta de quantas vezes me deparei com gente torcendo o nariz, se coçando e se contorcendo na cadeira ao ouvir falar em Brecht. Alguns (na verdade, muitos) acreditam ou são levados a crer que teatro épico-dialético, teatro político e “outras fatias do mesmo bolo” são coisa ultrapassada, obsoleta, anacrônica, cheirando a mofo e naftalina histórica. Sem contar os que teimam em sustentar que se trata de teatro panfletário, metido a intelectual, hermético e estéril. Em suma, inacessível ao homem comum que vive “a vida como ela é”. Ainda tomam parte neste coro, os que acham, por ignorância ou má-fé, que diversão e reflexão crítica são forças excludentes, antagônicas, e que nunca se misturam, como água e óleo. Para refutar essas incompreensões, mistificações e equívocos, recorro às oportunas palavras de 94

Fernando Peixoto, um dos mais importantes divulgadores da obra de Brecht no Brasil, “Outro equívoco geralmente repetido é que as propostas de Brecht conduziriam a um teatro frio e mecânico, a um racionalismo desprovido de emoção e sentimentos. Brecht insiste em esclarecer que o que é frio e mecânico não se coaduna com a arte.” Quem já teve a oportunidade de assistir a espetáculos que dialogam e se apropriam da poética e do pensamento de Brecht numa perspectiva de superação histórica – e não me refiro especificamente aos espetáculos do Coletivo Alfenim, pode confirmar a citação acima. Realmente, o que é frio e mecânico não combinam com Brecht nem com os pressupostos de seu teatro, não por acaso, os mesmos pressupostos que alimentam nosso projeto, pautado pelo desejo de criar espetáculos que ponham em relevo as contradições de nosso tempo e lugar, com vista a uma possível e necessária transformação social. Agora, sem querer arrastar o filé para o nosso espeto, também não posso omitir o fato de que já perdi a conta de quantas pessoas revelaram surpresa com nossas peças, chegando, inclusive, ao “cúmulo” de dizer que se divertiram com elas. Isto posto, me permitam afirmar: diversão e reflexão crítica podem e devem andar juntas, como faces de uma mesma moeda, como gêmeas xifópagas. Não divorciadas, como querem os mal-intencionados de plantão.


E como já dizia um poeta das antigas, também ele acusado de panfletarismo, “sabemos que a diversão pela diversão, como meio e fim, serve apenas de entorpecimento e pasto para a vida de gado nos velhos rebanhos da alienação”. Enfim, Inês é morta e burro come capim. Então, para não continuar insistindo na mesma tecla, finalizo este ligeiro comentário com uma nota que deve ficar bem marcada: quando fincamos o pé no tablado da diversão, temos sempre em mente, a nos nortear, a seguinte reflexão: que tipo de diversão queremos e devemos oferecer? Diversão para quem e com que objetivo? Sendo assim, desejo a todos que lerem este Caderno e aos que assistirem a nossos espetáculos uma boa dose de diversão! 95


a construção do espetáculo Passados seis meses do início do processo, procuro ver com objetividade a construção do espetáculo O Deus da Fortuna, sobretudo, quando nós atores contribuímos em certa medida para a criação da dramaturgia. Apesar de a influência de Brecht e do teatro dialético nos acompanharem desde a fundação do Coletivo, em 2007, a receita nunca foi óbvia. Vejo hoje, depois de certo aprendizado, com mais clareza o método de trabalho aplicado a nossos espetáculos. Além dos procedimentos dialéticos mais visíveis no texto e na encenação, o mecanismo também se faz presente no trabalho do ator durante as improvisações. Nesses cinco anos de trabalho e experimentação, muitos assuntos foram tratados, as questões sociais que envolvem a sociedade brasileira sempre estiveram no centro de nossas preocupações. Isso não quer dizer que o aspecto investigativo do ator tenha sido deixado de lado. A formação dos elementos da peça (texto e encenação) ocorre levando-se em conta dois fatores fundamentais: os estudos teóricos e sua subsequente transferência para o palco sob a forma de exercícios. Ambos convergindo para um objetivo comum: a problematização das soluções formais encontradas no trabalho anterior, em função das potencialidades do material a ser utilizado no novo processo. O grupo se move e se transforma colocando em perspectiva crítica o conhecimento anteriormente adquirido, jogando-se no futuro sem 96

daniel araújo

nenhuma espécie de pré-concepção. Neste sentido, o ingresso de novos integrantes com pouca experiência de palco foi fundamental. A renovação do Alfenim com a chegada de atores oriundos de uma oficina ministrada no início do processo, em julho de 2011, foi extremamente salutar. Em todo início de processo, a palavra de ordem é “desapego”, porém o reverso da moeda, o “apego”, é algo que gruda como visgo. Tem dias que você acorda com o peso do mundo em suas costas e não adianta espernear ou sacudir, ele ficará lá o dia inteiro. Nesses dias, eu tento “dar o golpe”, algumas vezes dá certo, mas, em geral, a farsa é descoberta e não adianta argumentar. Nestas horas, tento me explicar: por receio ou medo de adentrar por uma vereda onde, de antemão, não posso aferir o resultado, recorro, por comodidade, a um padrão gestual conhecido de meu histórico teatral para garantir de imediato um bom resultado. A sensação é ótima, a plateia responde positivamente, o ego vai às alturas! Mas passada a euforia, vem a crítica, bate a consciência e, em seguida, surge a crise. A vigilância e a disciplina são o remédio indicado! Os caminhos mais fáceis estarão sempre à espreita, basta um vacilo e eles tomam as rédeas. Enfim, o dinamismo do grupo possibilitou os avanços em direção a uma encenação peculiar, com técnicas interpretativas variadas, revelando a visão de um


mundo imaginário que se consolidava à medida que nos aprofundávamos e nos aprimorávamos acerca da matéria, do assunto da peça. O pensamento materialista que preside o projeto artístico do Alfenim separou o joio do trigo. Junto à matéria cênica crua das improvisações era aplicada uma dose dialética de realidade. Julgo que o efeito foi positivo.

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Ficha técnica O Deus da Fortuna fez sua primeira temporada em novembro/dezembro de 2011, na Fundação Casa de Cultura Companhia da Terra, no Centro Histórico de João Pessoa. Em parceria com a Fundação, o espetáculo realizou uma nova temporada em abril/junho de 2012. Em julho do mesmo ano, a convite da Companhia do Latão, participou do projeto de ocupação do Teatro de Arena Eugenio Kusnet, cumprindo temporada em São Paulo. Além disso, o espetáculo já foi apresentado em Natal, Fortaleza, Juazeiro do Norte e participou de diversos festivais, como o VIII Festival de Teatro de Fortaleza, o XIX Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, a Mostra SESC Cariri de Culturas e o XV Festival Recife de Teatro Nacional. Em janeiro/fevereiro de 2013, integrou o projeto Visões Coletivas do Nordeste Contemporâneo, ficando em cartaz no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro.

Ficha Técnica – Primeira Formação - 2011 Elenco: Adriano Cabral, Daniel Araújo, Lara Torrezan, Paula Coelho, Vítor Blam e Wilame AC Músico: Wilame AC Composições musicais: Cecilia Retamoza, Paula Coelho, Márcio Marciano, Vítor Blam e Wilame AC Cenário: Márcio Marciano Figurino, bonecos e adereços: Vilmara Georgina Iluminação: Ronaldo Costa Assistente de Produção: Gabriela Arruda Direção e Dramaturgia: Márcio Marciano

Ficha Técnica – Segunda Formação – 2012/13 Elenco: Adriano Cabral, Daniel Araújo, Cecilia Retamoza, Lara Torrezan, Paula Coelho, Verônica Sousa, Vítor Blam e Wilame AC Músicos: Mayra Ferreira, Wilame AC/Nuriey Castro Composições musicais: Cecilia Retamoza, Paula Coelho, Mayra Ferreira, Márcio Marciano, Vítor Blam e Wilame AC Cenário: Márcio Marciano Figurino, bonecos e adereços: Vilmara Georgina Iluminação: Márcio Marciano Produção Executiva: Gabriela Arruda Direção e Dramaturgia: Márcio Marciano

Equipe atual

Adriano Cabral, Gabriela Arruda, Lara Torrezan, Márcio Marciano, Mayra Ferreira, Nuriey Castro, Paula Coelho, Vilmara Georgina, Vítor Blam e Zezita Matos 99



alfenim

COLETIVO DE TEATRO


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