De volta à cidade do vampiro

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Volta à Cidade do Vampiro, De / Scattolin, Francisco

1. Edição independente, 2013

Todos os direitos da obra reservados a Francisco Scattolin

Capa: Raphael Morales

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Agradecimentos

À minha família, pela confiança e suporte.

Aos amigos que leram a obra antecipadamente, pelo incentivo e consideração. Muito obrigado.

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DE VOLTA À CIDADE DO VAMPIRO

Francisco Scattolin

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CAPÍTULO 1

CHEGOU À CIDADE COMO quem não quer nada – e não queria mesmo. Ou melhor, queria. Ah, já nem se sabe mais das suas vontades quando chegou. Mas é fato que todos em Serrópolis acharam que chegou querendo muito, alguns achando que queria tudo. Ludovico comprou a antiga mansão dos Pereira Inácio, a única casa do município afastada do centro. Não ligou para o preço. A primeira moradora a tomar contato com o sujeito foi Dona Lurdes, a criada, que chegou reclamando do serviço. Que era muito, a casa grande, ela velha, e que, em suma, não podia aceitar. Aceitou. O segundo foi o vereador Constâncio de Barros, um tipo antes curioso do que oportunista, quase ingênuo, mas bastante dado à arte da fofocagem e do puxa-saquismo. Visitou Ludovico no dia seguinte à mudança, na mesma semana em que começou a nevar e não parou mais. Neve? Quem conhece a cidade haverá de duvidar ou até mesmo contar por mentira - mas, sim, neve! Cumpre esclarecer que Serrópolis não fica precisamente em uma serra, para ser justo, mas incrustada na planície de um vale. O clima, assim, não é de montanha – é de pé de montanha. Houve quem quisesse batizá-la de Valópolis, mas felizmente o nome não pegou. Aliás, Serrópolis é de uma constituição geográfica deveras curiosa, posto que cercada de água e montanhas por todos os lados; uma ilha serrana, por assim dizer. Talvez seja difícil afirmar se a topografia serropolense é propícia ou não à precipitação da neve, mas o certo é que nevou a semana inteira, e que nunca antes na história daquela cidade, como gostava de frisar o prefeito, alguém havia visto nevar. Tomou os flocos por realização da sua gestão, e choveram turistas de todos os cantos do Estado: Cachoeiros, Jassuelina, Itaipava e até da capital Rocha Grande. Se não compareceram em maior número foi por absoluta falta de espaço: o hotel La Sierra Tropical, único da cidade, teve de quintuplicar os preços das diárias para conter a demanda explosiva.

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Constâncio foi o primeiro a cortejar mais detidamente o novo munícipe. Estudioso e culto, o vereador nesses quesitos não encontrava par entre seus conterrâneos, que nem por isso valorizavam seus dotes. Talvez fosse essa a razão de recorrer à bisbilhotice para melhor relacionar-se com o eleitorado de Serrópolis - o que, diga-se, surtia efeito apenas em parte, já que não permitia que fosse figura das mais admiradas. Retornou encantado da conversa com Ludovico, especialmente por sentir que entre eles não havia necessidade de se passar por menos. Um “sujeito altivo”, classificou em seu discurso na Câmara, de “raciocínio rápido e oratória incomparável”. O curioso foi que, talvez absorto pela personalidade de Ludovico, pouco investigou da vida pregressa do indivíduo ou da sua estada em Serrópolis, abandonando a estratégia que fizera dele um homem de muitos e maus amigos. Desse modo, não pôde satisfazer à curiosidade do eleitorado que formava fila no gabinete e na porta da sua casa para saber das novas - o que era inédito, pois Constâncio aos olhos do povo sempre tivera curiosidade e língua afiadas. Bom sinal, ouvia-se à boca pequena, não havia de ser.

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Gabriela Rios e Tomé chegaram no dia das diárias quíntuplas, com orçamento de diária simples. Dormiriam ao relento não fosse a verba extra liberada às pressas pelo editor vidrado na jovem de cabelos negros e olhos azuis. A neve cobria pela cintura nos locais em que a prefeitura não cuidava de retirá-la, prato cheio para uma reportagem sobre a cidade serrana inesperadamente engolida pelo gelo. O cinegrafista, um sujeito troncudo, manco e ligeiramente míope, trazia a barba sempre por fazer, o que lhe conferia um aspecto tosco condizente com seu jeito simples no trato com todos. Casado, pai de dois filhos, era desses sujeitos acomodados, fáceis de se conviver e de pisar em cima. Tinha idade para ser pai da moça, ainda que tal condição só se pudesse exprimir pela diferença de idade. Encontrar qualquer traço físico em comum era tarefa difícil, e Gabi, inclusive, era mais alta que ele. A dinâmica da relação era desigual em favor da

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repórter, que decidia do ângulo da filmagem ao cardápio do almoço enquanto Tomé cedia aos seus caprichos num tom carinhoso e paternal. No saguão do Sierra Tropical, três ou quatro meteorologistas brigam pelo privilégio de tentar explicar o raro fenômeno na televisão. Gabi nem quis saber dos currículos, optou pelo magricelo de óculos que tinha mais cara e jeito de cientista. Os repórteres chegaram na quinta à noite, gravaram na sexta e retornariam no sábado. Mas sábado fez um sol de rachar. Rachou encanamento, fiação, ponte. A diferença de temperatura foi tão intensa e repentina que a ponte de acesso a Serrópolis abriu uma rachadura imensa, de caber corpo inteiro, que impedia a passagem de veículos sob risco de desabamento. A rede elétrica, que resistira bravamente às temperaturas abaixo de zero, não suportou o degelo e entrou em curto. Boa parte das tubulações, encanamentos e toda essa parafernália hidráulica que só se percebe que existe quando para de funcionar, aproveitou a deixa e entrou em pane. Como se não bastasse, a queda iminente da ponte impedia que se buscasse ajuda na vizinha Serra Grande. Sem luz elétrica, com a cidade às escuras e água encanada em falta para um bom número das residências, o prefeito Paulino achou por bem decretar estado de emergência. O que na prática não significava muita coisa: decretar estado disso ou daquilo nunca serviu para resolver situação alguma.

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Bastou o sol nascer por inteiro no sábado, e todos se darem conta do transtorno que veio junto, Constâncio tomou o rumo da antiga residência dos Pereira Inácio para se informar sobre os estragos na casa do mais novo e instigante eleitor serropolense. Foi Dona Lurdes quem veio atendê-lo, encaminhando-o ao escritório do patrão. Atentou que parecia mais disposta a criada, o caminhar mais ágil e o olhar mais vivo, incompatíveis com a idade da senhora. Ludovico, habitualmente gentil e persuasivo, agradeceu a visita

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e disse a ele que não havia motivo para se preocupar com o estado da velha mansão. A casa fora reformada recentemente, explicou. Fiação nova, encanamento novo, não podia ter havido dano qualquer. Comovido, porém, com as notícias do caos na cidade trazidas pelo preocupado vereador, Ludovico disse que fazia questão de contribuir com a municipalidade para o conserto dos estragos. Disse mais, ainda: não tinha por costume sair de casa, e como não pretendesse abandonar este hábito recluso, elegia Constâncio de Barros seu legítimo interlocutor nos assuntos com a prefeitura. O vereador saiu inflado da conversa, que cuidaria de relatar em detalhes mais tarde ao prefeito. Estava orgulhoso do novo cargo, informal que fosse. Baixo clero uma ova, a nova amizade lhe traria prestígio na Câmara. O anfitrião observa Constâncio deixando a casa através da janela do escritório. A claridade o incomodava, chamou por Lurdes. Que fechasse a casa e as cortinas, não atenderia mais ninguém o resto do dia. Apertando as pálpebras, Ludovico seguiu debilitado na direção do quarto. Acertou o despertador para as 9 da noite, abriu o caixão, deitou e dormiu.

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Confinada no Sierra Tropical, Gabi estava inconformada com a falta de luz, de água quente e com a demora nos reparos do único acesso que podia levá-la para longe dali. Passou a tarde pendurada ao celular, tentando em vão fazer contato com a emissora para que mandassem um novo carro buscá-la do outro lado da ponte. Tomé que voltasse mais tarde com o veículo da empresa. Gabriela Rios era uma mulher urbana, não podia suportar ficar além da conta naquela cidadezinha insossa quando o trabalho já estava feito. Ademais, retornaria à capital com a promessa de férias imediatas, compromisso adiado pelo chefe um sem-número de vezes. Sempre aparecia uma história estúpida aqui, outra ali - que invariavelmente sobravam para a novata.

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- Bateria fraca? - silêncio. - Aqui não dá sinal sempre, não. As montanhas... – o sujeito rodou o indicador em júbilo, com indisfarçável sarcasmo. Era um dos meteorologistas preterido no “exame” dos currículos, um engravatado com cara de advogado. Quando a noite caiu no hotel abarrotado de turistas em fúria, Tomé emprestou um lampião a gás na recepção e atravessou a rua até o barzinho da praça, que funcionava à luz de velas. Gostava de uma boa prosa tanto quanto da dose diária de cachaça. Companhia havia, porque se Serrópolis habitualmente tinha muito poucas opções de entretenimento noturno, sem energia é que não sobrava alternativa alguma além do bar do Lira. Se é que se pode encaixá-lo na categoria do entretenimento, noturno que seja: só o que havia eram duas mesas externas, com quatro ou cinco cadeiras cada, ocupadas pela metade; algumas banquetas vazias ao redor do balcão e uma mesa de sinuca empoeirada, que ninguém jogava porque as redes de barbante nas caçapas tinham rasgado há mais de ano. O Lira - um equatoriano baixinho de um metro e meio, na casa dos 50 - e os seus clientes mais fiéis trataram de colocar Tomé a par dos estranhos acontecimentos ocorridos na cidade, que ficou sabendo irem muito além da nevasca daquela semana (embora, neste ponto, seja forçoso ressalvar que poucas dessas narrativas guardavam compromisso com a realidade). Os animados camaradas aproveitavam-se do visitante para despejar-lhe histórias as mais descabidas. Depois de algum tempo no ofício, os membros da mesa já puxavam pela memória, ou pela imaginação, algum novo conto mito, mistério ou lenda urbana. Como a do dono do supermercado que virava lobisomem em noites de lua cheia; do chupa-cabras - que a despeito do nome ocupavase de qualquer tipo de rebanho; e do saci que protegia o bosque além-ponte. “Esse é o curupira”, objetou o cinegrafista. “Saci, é bosque. Curupira é floresta”, corrigiu o Lira, com seu sotaque carregado. A história era dele, afinal. Mas o assunto do momento era a neve que acabara de derreter, e tão logo se desocuparam de Tomé tornaram a debatê-la calorosamente. O Doutor Pestana, cardiologista da cidade que por falta de colegas fazia as vezes de especialista em qualquer ramo da medicina, teimava com Teixeirinha, o açougueiro, que a neve devia de ter alguma explicação científica mais plausível que as mirabolantes

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hipóteses aventadas no noticiário. Em vão. Teixeirinha e os demais sabiam que, de alguma forma, aquilo era obra de Ludovico. Mesmo que ninguém ali o conhecesse; e sequer o tivessem visto senão de relance, no dia da mudança. Bastou a viúva Inezita vender a casa da família para o sujeito que desandou a nevar em Serrópolis. Tomé tomou um gole da “boa”, desceu queimando. - E a Lurdes? Dizem que a senhora está dez anos mais nova, acreditem se quiserem. Enquanto bebiam, distante dali, no balcão do Sierra, a repórter queria saber das luzes acesas ao longe, morro acima. Dolores, mulher do Zenírio, dono do hotel, respondeu que vinham da mansão dos Pereira Inácio. “Não acabou a energia por lá?” Gabi vibrou imaginando o celular carregado, o telefonema para a emissora e o banho quente tomado. Só precisava encontrar Tomé para que a levasse até a casa, fazia uma escuridão dos diabos na rua.

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Há 20 anos deixara a cidade. Garoto, aos 8, órfão de pai e mãe desaparecidos no trágico acidente aéreo que chocou o país. O trajeto Rocha Grande - Romênia virou Rocha Grande - rocha grande: nenhum sobrevivente na colisão com a pedreira. Mandaram-no para a casa dos padrinhos; fugiu aos 10 e foi fazer vida por conta. Contrariando a sorte, fez fortuna com jogos de azar: jogo do bicho, cassino clandestino, casas de bingo. Ficou importante, e logo influente. Recebeu do governo autorização para abrir um cassino onde bem entendesse. Serrópolis. Caio Túlio Pereira Inácio achou que era hora de voltar e voltou. Incógnito, ninguém perceberia. Saiu criança, aos 28 o rosto muda. Só precisava de um nome novo. Jorge Wagner.

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Gabriela chegou tropeçando ao bar do Lira, embora fosse dentre os presentes a mais sóbria. Como não houvesse lampiões disponíveis no Sierra, a moça teve de atravessar a rua às escuras, o que era especialmente difícil a bordo do salto alto. A jornalista, bem... Não era dessas moças que entra num boteco como o bar do Lira e passa despercebida, e sua chegada causou um princípio de alvoroço no recinto exclusivamente masculino. “Tomé!” - Hmmmm... Hããããããã... Se deu bem, hein! - Me leva até aquela casa do morro. Eles têm energia, devem ter telefone. Eu preciso ligar agora mesmo para a emissora. A mesa do cinegrafista silenciou, solidária com o mais novo camarada. Àquela altura, já se havia especulado tanto (e com tal exagero e fantasia) sobre supostos fatos sem explicação ocorridos na casa de Ludovico, que o último lugar no mundo onde qualquer um dos marmanjos ali gostaria de estar era na mansão dos Pereira Inácio. Tomé considerou seriamente a negativa, mas não pegava bem deixar Gabi seguir desacompanhada. Não no bar, na frente de todos. Estivesse sozinho e podia deixar a coragem de lado. Além do mais, o que de mal podia haver lá? Bando de bêbados, isso sim!

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O prefeito Paulino franzia a testa enquanto caminhava irrequieto de um lado para o outro na varanda do quarto às escuras. A reeleição batendo à porta e a cidade em caos, podia haver pior hora? Evitava o campo de visão da esposa temendo acordá-la, pois nutria internamente a crença de que encarar ou movimentar-se perto de uma pessoa adormecida pudesse despertá-la ainda que não fizesse barulho algum. Paulino atentou para as circunstâncias que no passado o tinham conduzido ao cargo e à posição que ocupava; a postura passiva e oportunista com que conquistara tudo aquilo. Um golpe do destino com o qual, por justiça, não podia contar uma segunda vez. Era preciso agir, e logo. Tomar as rédeas da situação. Lamentou que estivesse com as mãos atadas. O prefeito lembrou da conversa que tivera naquela tarde com Constâncio. Hesitou. Ora, qualquer ajuda era bem-vinda, até a do misterioso forasteiro. Atravessou o quarto vagarosamente na direção da sala, os pés descalços, carregando um par de sapatos nas mãos. Girou a maçaneta com um cuidado extremo para não chamar a atenção da esposa. Enfim na sala, levou o telefone ao ouvido apenas para em seguida devolvê-lo com raiva no gancho. Teria que ir pessoalmente até a casa do vereador.

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Demorou cerca de meia hora até que subissem a ruazinha tortuosa de pedriscos que dava na mansão. De longe, os eucaliptos escondiam as curvas, dando a falsa impressão de que subiriam em linha reta. Ledo engano. Parecia tão perto que deixaram o carro no hotel, “a gente vai num pé e volta no outro”, disse o cinegrafista. Uma frase infeliz da qual Gabriela faria questão de lembrá-lo um sem-número de vezes antes que finalmente chegassem ao destino.

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Pararam, ambos, diante da entrada. Não havia campainha: apenas duas argolas pesadas de ferro presas contra a porta de madeira de aparência medieval. Ventava bastante. Um vento tão gelado que era difícil crer que de dia fizera calor suficiente para rachar a ponte. Tomé bateu forte na porta com as argolas, produzindo um barulho tão alto do lado de dentro que taparam os ouvidos do lado de fora. “Pois não!?” A voz irritada vinha do interfone, oculto entre os galhos que caíram com a ventania. “Desculpe, eu não tinha visto o botão...”

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- Constâncio! Constâncio! O prefeito a essa hora?! Paulino tinha pressa. Inteirou rapidamente o vereador da gravidade da situação, da proximidade das eleições e da necessidade de recursos para revitalizar a infraestrutura da cidade, o caixa da prefeitura andava minguado. Paulino não via problemas em escancarar suas fraquezas e ambições políticas para o vereador. Constâncio de Barros era um zero à esquerda, um bajulador a quem poucos davam crédito. Só o que o prefeito queria era convencê-lo a levá-lo até Ludovico. - Agora?! - Isso, vamos... Anda que o tempo urge!

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A empregada abriu a porta da frente contrariada. Talvez pela rudeza das batidas, ou ainda pela visita inesperada no meio da noite. É provável que ambos. Vestia o uniforme de serviço, e fez o que pôde para disfarçar a má vontade. - Telefone? Sim, como vê temos luz – respondeu, dissimulada. Não demorou para que a repórter perdesse a paciência com a criada, que devolveu a gentileza com a porta da rua, serventia da casa. Gabi não fez por menos, e ensaiou um pequeno escândalo com o dedo enterrado no botão do interfone. Que não ficaria assim, não. Amanhã voltaria falar com o seu patrão. Que era jornalista, e aquilo não eram modos de tratar visita. Ameaçavam meia-volta quando a porta abriu de novo. - Peço que aceitem minhas desculpas, o mestre insiste para que entrem e fiquem à vontade. Mestre? Tomé suspirou aliviado. Que tipo de patrão, afinal, obriga um empregado a tratá-lo por mestre? Só podia ser um excêntrico o sujeito. E o hall de entrada? A sala de estar? A decoração parecia emprestada de algum museu de história, como os que tinha visitado no mês anterior a fim de captar imagens para o noticiário das 7. Quadros com retratos antigos pintados à óleo pendiam das paredes, das quais partiam, nos intervalos preenchidos por extensos vitrais, cortinas escuras e grossas que de tão longas arrastavam-se sobre o piso de mármore. Móveis artesanais em madeira de lei, forrados em couro, completavam o cômodo de gosto duvidoso. Não eram confortáveis, considerou Tomé enquanto se sentava para esperar pelo dono da casa, mas deviam valer uma nota. Suas suspeitas sobre o anfitrião pareceram confirmar-se quando da chegada de Ludovico para recebê-los na sala. Vestia uma capa preta com forro vermelho e gola alta caprichosamente amarrada na altura do pescoço. Calça e sapatos pretos impecáveis, smoking sem gravata. Tomé conteve o riso ao cumprimentá-lo, Gabi não. - Posso usar o... - ria - telefone? - e gargalhava. Ludovico ficou tão sem jeito que não pôde ficar furioso como intentava fazê-lo.

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- Suba a escada, segunda à esquerda, depois terceira à direita. Fica no escritório, no fim do corredor em frente, a segunda porta. Era grande a casa.

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Caio Túlio chegou bufando no Sierra Tropical - não de raiva, mas extenuado. A ponte interditada obrigara o empresário a abandonar o carro na via, seguindo a pé até o hotel. Havia atravessado a cidade às escuras, uma caminhada que bem levava uma hora e tanto. Reconheceu Dolores no balcão, vinte anos mais velha. Como o tempo estraga. A recíproca seria mentirosa, a mulher não fazia ideia de quem ele era. - Pois não? - Quarto para um, por favor. - Nem pra meio, desde quinta. Bufou de raiva, agora. Com o hotel lotado, e o carro demasiado distante para as pernas exaustas, não restava outra opção para Caio Túlio senão dormir no banco da praça ou em um canto qualquer sujeito ao vento e o sereno. Pensou melhor, havia uma alternativa. Em semelhante circunstância, o que custava pedir abrigo na casa da avó? Era tocar a campainha de Inezita, explicar a situação e pedir refúgio como um turista desamparado. Ofereceria-se, naturalmente, para pagar as custas da hospedagem. Quarto vago era certo que havia. Só não sabia que a casa tinha mudado de dono.

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Gabi e Tomé subiram as escadas, viraram a segunda à esquerda, depois a terceira à direita e no final do corredor em frente abriram a primeira porta, a errada. Tatearam a parede de cima abaixo à procura do interruptor. Como não o encontrassem, combinaram que era melhor tatear em busca do telefone. A única luz que adentrava o cômodo era a do corredor aceso - suficiente para que não tropeçassem, mas incapaz de revelar do que estavam desviando. “Começa pela esquerda que eu vou contornando pela direita”, comandou Gabriela enquanto caminhava pé ante pé, mergulhando as mãos espalmadas no escuro. Tomé, prudente, tinha medo de derrubar algum objeto valioso no chão, e limitou-se a correr os dedos pela mesa esquisita posicionada no centro do quarto. Gabi levou um cinzeiro e um controle remoto ao ouvido para ver se davam linha antes de chutar o que lhe pareceu uma pequena geladeira no chão. Agachou para examiná-la, fazia barulho o motor, a porta era emborrachada nos cantos. Decidiu abri-la. Talvez porque tivesse sede, a caminhada fora longa - mas principalmente porque a claridade da luz interna ajudaria a encontrar o telefone.

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Inezita riscou o fósforo na superfície áspera da caixa, aproximando a chama do pavio. Inclinou a vela para que a cera gotejasse no pires. A primeira acendeu para si, desacostumada que estava a caminhar na nova casa às escuras. As demais para todos os santos. O ritual diário da reza no altarzinho consumia entre 20 e 30 velas, dependia do humor – e do tamanho do pedido – da velha. Naquela noite, o que pediu foi que se resolvesse tudo logo. Não aguentava mais a angústia da espera e o medo de, enfim, arcar com os atos do passado. Guardou as cartas que lhe roubavam o sono e foi rezar. Talvez não fosse a última dos Pereira Inácio.

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Algumas dezenas de copos térmicos de isopor tampados com fita adesiva eram só o que havia. A repórter levantou um deles com a mão, era pesado. “Vem cá ver, Tomé”, chamou, mas ele não atendeu. Descolou com cuidado as duas tiras de durex coladas em “X” e abriu a tampa. O cheiro doce de sangue fresco tomou conta do ambiente. O mesmo aroma que a enjoava profundamente desde os tempos em que cobria o plantão policial. Assustada, devolveu o copo de qualquer jeito na prateleira e olhou para trás à espera da reação de Tomé. Ainda que sob a débil iluminação proporcionada pela lâmpada do refrigerador, Gabi teve uma boa visão da cena toda: Tomé, petrificado, olhava para ela com as duas mãos em cima do caixão que tomou por mesa; não fazia gesto algum, embora se esforçasse para dizer alguma coisa. - No seu pé - sussurrou. - Oi? Deitado confortavelmente junto ao pé da repórter, um cão doberman se espreguiçava, despertado pela agitação da dupla ao seu lado. Gabi virou para descobrir do que se tratava, mas terminou por cravar o salto impiedosamente na pata do cachorro, que ganiu dolorido. Na hora do susto, o choro do cão passou por latido e os dois deixaram correndo o quarto de Ludovico, convencidos de que o cachorro os perseguia.

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- Pois não?

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- Constâncio de Barros. - E o prefeito - acrescentou o próprio. - Sim, e o prefeito - confirmou o vereador no interfone. Lurdes, desta feita, convidou ambos a entrarem e indicou Ludovico sentado na sala, aguardando o retorno dos visitantes. O patrão levantou incomodado, não sem uma desagradável dose de surpresa. Que tanto queriam com ele àquela hora? Teriam tirado a noite para importuná-lo? Nem bem esticou as pernas, praguejando por ter se sentado em cima da capa amassada (culpa da moça, que o tirara do sério com o escárnio, havia esquecido de estendê-la sobre o espaldar da poltrona), Gabi e Tomé passaram à toda pelo living. Detiveram-se apenas diante da porta de entrada para, por fim, se esconderem atrás da criada. Do cachorro, nada. Paulino encarou os dois, ansioso. Impossível não notar-lhes as faces lívidas. A palidez de quem acabara de ver um fantasma. Absorto por um instante, o prefeito demorou a escorregar os olhos na direção da sala, não havia notado o movimento do anfitrião até então. O terror palpável daqueles desconhecidos agarrados no avental de Lurdes não permitiu que reagisse com risos à figura do forasteiro, pelo contrário. Um calafrio percorreu-lhe a espinha diante da aproximação daquela figura lúgubre. - Acharam o telefone? – quis saber Ludovico. - Liguei sim, obrigado - mentiu. - Agora já vamos estar indo, ficou tarde, não? usava impropriamente o gerúndio quando nervosa. - Não seja por isso, vou estar dando carona! O prefeito aproveitou a deixa e adiantou-se, prestativo. Visto que a fuga podia arruinar-lhe a demanda mais que urgente, achou por bem encarregar o nobre vereador da tarefa que julgava ingrata, sem saber que este a assumiria de bom grado, e até com certo gosto. - O Constâncio fica, já expliquei tudo para ele mesmo, não é Constâncio? E se mandaram. Constâncio deu de ombros. E começou a falar.

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Há quase meia hora tentava vencer a ruazinha de pedriscos. Somado o esforço inicial a partir da ponte, completava perto de duas horas caminhando desde que chegara àquela maldita cidade. Parecia tão mais perto, lamentou. Enquanto enfrentava solitário o aclive e as curvas, conjeturava a respeito da reação da avó. Ela o reconheceria? Não, não era possível, afastou a hipótese aliviado. Era preciso que passasse despercebido. O acolheria de bom grado, oferecendo-lhe o pernoite? Sobre isso não sabia ao certo, o passar dos anos deixa os mais velhos ressabiados, não confiam mais em ninguém. Era o que faltava, Dona Inezita deixá-lo dormir ao relento. Caminhava de cabeça baixa, mergulhado em seus pensamentos. Vez por outra a erguia à procura das luzes do casarão, estimando intuitivamente a distância que faltava. Tarefa difícil com tantas curvas no caminho. Esticou brevemente o pescoço uma vez mais, estava perto finalmente. Não tornou, porém, a concatenar suas ideias como antes, havia algo errado. Suspeito, pelo menos. As luzes pareceram-lhe perto demais, além de assumirem um aspecto diferente daquele a que se acostumara. Interrompeu a caminhada por um momento, mas o farfalhar dos pedriscos não cessou, pelo contrário. Para sua surpresa, aumentava! Ergueu os olhos novamente, mas pouco enxergou. Cegado pelas luzes que o atingiram em dobro, rolou por cima do capô.

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O vereador tomou assento no sofá, acedendo ao convite de Ludovico para que se sentasse e fosse direto ao assunto. A criada preparou-lhes duas xícaras de café bem

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forte, que serviu na mesa de centro enquanto o patrão lembrava de levantar-se e sair de cima da capa. O misterioso comprador da mansão dos Pereira Inácio estava curioso para saber o motivo de toda aquela agitação em sua residência. - O prefeito Paulino veio a mim para pedir ao senhor que interceda em favor da prefeitura, da maneira que lhe for possível. O senhor bem sabe, e se não o sabe, conto agora, que a situação da administração municipal não é das melhores. Digo mais: é das péssimas, conforme me relatou o próprio prefeito em conversa reservada. Ludovico fez sinal para que Lurdes servisse algum petisco, gostava do rumo da conversa. Mal chegara a Serrópolis e se tornava essencial. Não que o tivesse planejado, mas, se assim o era, tanto melhor. Satisfazia-lhe o ego e as intenções. - As eleições não tardam a chegar - prosseguiu Constâncio - e o prefeito teme que o caos em que se encontra a cidade comprometa-lhe a reeleição que há pouco tempo era bastante certa. Mesmo porque era esperado que fosse candidato único, e digo isso com conhecimento de causa. Sou, em tese, vereador da oposição, e nas fileiras do meu partido não houve movimentação alguma no sentido de indicar um nome para concorrer à sucessão. Creio até que o prefeito não tenha conhecimento disso, ou do contrário não haveria necessidade de me pedir que lhe arranjasse esta audiência. Embora, talvez, a situação dos cofres públicos seja ainda pior do que me relatou, não posso sabê-lo. O anfitrião escutava a tudo atentamente, o que não o impedia de fazer para si ponderações em paralelo sobre se podia haver, da sua parte, interesse em interferir nos assuntos políticos da cidade. - De todo modo - continuava o vereador –, aqui estou para lhe transmitir esta mensagem, como legítimo interlocutor entre Vossa Senhoria e os assuntos da municipalidade. - Bem o faz, Constâncio, bem o faz... Lurdes serviu a bandeja com uma porção de queijo mussarela, cortado em cubos, e salame, fatiado em rodelas, dispostos ao lado do paliteiro de prata. Ludovico lamentou a falta de requinte do tira-gosto, mas não quis criar caso com a serviçal. São os trópicos, só há que se lamentar. Ademais, diante da oportunidade que se descortinava à sua frente não haveria de ocupar-se com questões menores. O que intentava, para si e para os seus,

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podia ser conquistado por outras vias, mais seguras e vantajosas. Convidou Constâncio para um passeio até o escritório.

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Tão logo deixaram a mansão dos Pereira Inácio, embarcaram apressados no carro da prefeitura. Tomé acomodou-se na frente, ao lado do prefeito, enquanto Gabi, no banco de trás, esforçava-se para se refazer do susto. A capa, o sangue, o caixão, tudo fazia perfeito sentido – embora não houvesse cabimento em render-se ao que a lógica sugeria. Era preciso investigar mais, inteirar-se melhor do que ocorria naquela casa e naquela cidade. Não era hora para atirar-se em conclusões precipitadas que lhe custariam a carreira e a credibilidade de forma definitiva. Mas, e se num golpe de sorte e de extrema improbabilidade, os fatos correspondessem mesmo ao que lhe pareciam? Ser-lhe-ia possível tornar-se a primeira jornalista da história a conceber uma entrevista com um... - Cuidado! A voz de Tomé despertava-lhe das divagações. Logo na primeira curva da descida, Paulino, ainda bastante afetado, quase continuou reto na direção dos eucaliptos. Corrigiu afoito o curso, fazendo com que Gabi batesse de leve a cabeça contra o vidro antes que o veículo fosse devolvido à trajetória correta. O prefeito pareceu ignorar o incidente, preocupado em descobrir quem eram aqueles dois a quem dava carona e por que fugiam às pressas da mansão do forasteiro. Tomé rebateu, defensivo, que também Paulino fugia às pressas e, o que era pior, quando nem bem tinha chegado. - Tive uma indisposição - esclareceu o prefeito. - Um leve mal-estar, talvez uma má impressão. Confesso que a visão do dono da casa, e mesmo a da própria casa, de

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alguma maneira não me fizeram bem. Mas, ora, deixe de perguntar de mim... Sou figura mais do que conhecida na cidade, e sobre mim não pode pairar dúvida alguma. Vocês quem são e o que faziam lá? Tomé olhou para trás à procura de Gabi, como quem procura no olhar do outro o consentimento e a cumplicidade para que pudesse contar àquele desconhecido o que de extraordinário havia naquela casa; mas Gabi não o encarou de volta como esperava, o que fez com que se encorajasse a narrar a história tal como lhe parecia justa. - Quem somos ou o que fazíamos – prosseguiu –, a verdade é que isso pouco importa. A pergunta certa é o que vimos, e do que corremos. Acontece que subimos as escadas à procura do telefone da residência, segundo consta o único que funciona na cidade. - Assim que achamos o aparelho - agora era Gabi quem interrompia a fala do colega - ligamos e descemos. No caminho levamos um susto com o bichinho do dono, foi só. Mas tenho certeza que é um ótimo cachorro. A repórter não entregaria a história de mão beijada para quem quer que fosse. Não apenas considerava a matéria potencialmente boa o bastante para merecer novas apurações, como também não havia evidências suficientes para sustentar tese alguma. Apenas duas mentes sugestionadas tateando na penumbra o quarto de um milionário excêntrico. A rigor, era o que tinha acontecido. Certamente seria motivo de chacota para toda a eternidade se viesse a público nesses termos, dizendo ter se encontrado com um... - Cuidado!!!!!!!! Paulino desceu trêmulo do carro, os caronas depois dele. Não viu rastros de sangue pelo chão, conquanto o corpo permanecesse inerte, esparramado sobre o piso de pedriscos. Aproximou-se com cautela, porque não fazia ideia dos procedimentos adequados em situações como aquela. Só fez perguntar se a vítima estava bem enquanto agachava-se junto dela, considerando se devia movê-la dali. Imaginou ter ouvido um “Ai” masculino, baixo, rouco e prolongado. Aproximou mais um bocado as orelhas com um movimento do pescoço. Tinha ouvido certo.

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A caminho do escritório, o vereador se orgulhava da amizade e do respeito que conquistara daquele homem tão ilustre que, não se sabia a razão, havia escolhido morar naquele fim de mundo. Serrópolis, uma cidade tão tacanha, não estava à altura de um sujeito da sua estirpe. Ludovico bateu palmas duas vezes e as luzes do cômodo se acenderam. Indicaria uma cadeira ao convidado, para, em seguida, dar a volta na escrivaninha e tomar assento em sua majestosa poltrona. De onde estava, de frente para a janela com a cortina recolhida, Constâncio enxergava projetadas as sombras fantásticas de galhos de árvore em movimento, retorcidos pelo vento. Lurdes apareceu na porta, indagando se devia trazer o café e a porção da sala para o escritório. O patrão respondeu que não, enjoado, e ordenou que os deixassem a sós. Tinham assuntos para resolver. - Antes de mais nada - começou Ludovico –, reafirmo meu compromisso de cooperar com a prefeitura no que estiver ao meu alcance. Não por altruísmo, admito, mas porque me interessa manter com a Administração o melhor dos relacionamentos. Constâncio agradeceu em nome do prefeito, e pretendeu seguir escutando - sem saber que Ludovico entendia que era hora de ouvi-lo. - Conte-me, nobre amigo, por que dizia que o seu partido não pretende lançar candidato algum? Amigo, ele disse. Respondeu com esforço para que fosse o mais preciso possível. - Somos uma agremiação pequena. Não contamos com a ajuda da máquina, se o senhor me entende, o que acaba por nos dificultar o progresso. A nós, rosistas, resta apenas compor com os inacistas a fim de amealhar uma vaga na Câmara aqui, outra ali.

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Os rosistas, ficou sabendo o forasteiro, recebiam a alcunha em homenagem a José Maria de Melo Rosa, um ex-sindicalista que não tinha uma ideologia lá muito definida, mas era contra tudo que estava “aí”. Os inacistas, por outro lado, lá estavam desde a saudosa época dos Pereira Inácio, quando Serrópolis tinha vivido seu esplendor. Ludovico se levantou e passou a dar voltas no escritório ao redor da escrivaninha e de Constâncio, ao mesmo tempo em que se decidia por onde começar. - Não sou muito afeito dessas eleições com candidato único - falava sempre olhando para frente enquanto caminhava, nunca no olho do vereador. - Afinal, o povo fica sem poder escolher, e na sua posição sei que há de concordar comigo. Constâncio não fez que sim nem que não, mas, mesmo que intentasse respondêlo, não haveria tempo. Ludovico não se interessava por este assunto em particular, e conduzia o diálogo para onde lhe houvesse proveito. - Diga-me, és popular entre os rosistas? - Naturalmente que sim. Somos apenas em três, os vereadores, e sou um deles. - O que os impede de lançar uma candidatura de oposição? - Muitas coisas impedem. Dinheiro, popularidade... Mas o principal talvez seja a falta de ambição, uma espécie de comodismo arraigado. Nos acostumamos de tal maneira à amizade com o poder que conquistá-lo interessa pouco. - Pois eu lhe asseguro, Constâncio, não poderia haver momento mais propício que o presente para que abandonem essa postura, me permita, covarde, e tomem o lugar do prefeito Paulino no próximo pleito. - Não me diga que pretende concorrer à prefeitura... - Constâncio antecipou-se. - Ora essa, eu! - Ludovico ria. - Não eu, você!

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Levantou-se com dificuldade, amparado por Tomé que tomava a frente ante a inaptidão do prefeito. Apesar das dores, nada de grave sofrera. Sequer um corte, apenas alguns arranhões na perna e cotovelos, acompanhados de rasgos nas roupas nesses mesmos lugares. Um pouco atordoado, fizeram com que se sentasse em um banco de alvenaria que havia no caminho para o descanso durante a subida. Tão logo o jovem se recompôs, mais do susto que dos ferimentos, Paulino se ofereceu para levá-lo ao Pronto Socorro e pediu desculpas pelo atropelamento. Caio Túlio aceitou o pedido, mas educadamente recusou a oferta, garantindo que não se fazia necessária. Queria, isto sim, uma carona até a mansão, que aceitaria de bom grado. - Irei deixá-lo na porta, é claro, não será incômodo algum - respondeu o prefeito, tentando dissimular o receio com que recebia a ideia de retornar às proximidades da residência. – Permita-me a curiosidade, porém. Que deseja tratar com o senhor Ludovico? - Disse com o senhor... - O dono da casa - esclareceu. Com os diabos, tudo aquilo para nada. Até atropelado fora, e o casarão, pelo que se apresentava, sequer pertencia mais à família. - Com ele, nada – respondeu, desapontado. - É que, como o hotel está lotado, eu notei as luzes acesas e pensei em aproveitar da famosa hospitalidade serropolense. Perdão, devo apresentar-me - tornou a levantar-se, não sem um gemido de dor. - Meu nome é Jorge Wagner. Sou empresário, e estou a negócios. Amanhã me encontro com o prefeito. - Pois o prefeito sou eu, José Paulino – espantou-se com a coincidência. - Veio por causa do cassino, certamente. Que mal jeito o meu, recebê-lo assim com tanta... Violência.

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O prefeito logo percebeu que as boas-vindas ao empresário tinham ido muito além do atropelamento: a ponte condenada, o blecaute, o hotel sem vagas... Um autêntico vexame público. Caio Túlio, porém, fez pouco caso das apologias. Naquele exato instante, uma remota lembrança o transportava para uma outra época, vinte anos atrás. Não podia crer porque mudara bastante, bem mais gordo. Mas o nome, os trejeitos, não permitiam que se enganasse. O motorista do pai tinha virado prefeito! Escondeu com êxito a perplexidade, e comentou que escutara, por alto, que naquela casa para onde estava indo morava uma senhora de família tradicional nas redondezas. - Que foi feito dela, morreu? - Dona Inezita não morre tão cedo, mudou-se para um sobrado em frente ao bar do Lira e ao lado da clínica do Doutor Pestana – respondeu, imaginando por que raios o empresário queria saber da velha. - Doutor Jorge - continuou Paulino, mudando o assunto –, permita-me oferecerlhe estadia em minha casa. É o mínimo que posso fazer depois de fazê-lo passar por tantos inconvenientes. - Agradeço, mas não será necessário - recusou. - Apenas me leve até esse bar, se não for muito incômodo e estiver no seu caminho. Ainda que a oferta do prefeito viesse ao encontro dos seus anseios, tomou-lhe uma necessidade urgente de encontrar-se com a avó. Como se o compromisso adiado por duas décadas subitamente não pudesse passar de hoje a despeito dos planos que possuía de manter-se na surdina. Assim foi feito. Um desconfiado Paulino largou os três na porta do Sierra, sabidamente próximo ao bar do Lira. O empresário agradeceu o prefeito e despediu-se dos jornalistas. Penitenciou-se porque só agora reparava na repórter com quem dividira o banco traseiro. Os traços finos, a pele alva, o sorriso contido com que se despedira, próprio de quem nunca se acostumaria a ser ignorada daquela maneira. Caio Túlio olhou para ela como quem quisesse desculpar-se pela grosseria, torcendo para que estivesse em tempo de consertá-la. - Um drinque, me acompanha? - Raramente recuso, mas já tomei das minhas por hoje - intrometeu-se Tomé, inocente.

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- Não bebo - respondeu de cara amarrada, ainda ruminando a indiferença do empresário. Deu as costas e tomou o rumo da recepção. Antes, uma meia-volta ligeira, um “Nem jogo”, seguido de um sorriso tímido e, Caio Túlio jura, uma piscada de canto de olho. Ao menos prestara atenção à sua história, não estava de todo perdido. Seguiu para o bar, satisfeito.

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Constâncio afastou a sugestão, resignado. Não duvidava de que fosse bastante conhecido na cidade, mas o quinhão que lhe cabia no bolo do poder correspondia a reeleger-se vereador, nem mais nem menos. Embora por orgulho e precaução nunca admitisse, sabia no íntimo que pelas costas lhe faziam troça. Que era um “zero à esquerda” a quem ninguém ouvia ou considerava. Não seria a amizade com Ludovico que da noite para o dia o alçaria à condição de candidato sério à prefeitura. O que de melhor podia fazer era preservar-se do ridículo, recolher-se à sua insignificância. Ludovico parecia ler os pensamentos de Constâncio – que suspeitou seriamente de que o fizesse, pois lhe atacou os receios em cheio. - Subestimar-se - repreendeu - é o maior pecado de um homem. Não permita que te façam crer que é menos quando, em verdade, não há limites para o que pode realizar. Olhe bem para mim e me diga o que vê. Constâncio encarou-o nos olhos pela primeira vez desde que entraram no escritório e surpreendeu-se do quão negros se apresentavam. Um tom sem vida que fez com que se perdesse naqueles olhos. - O que enxerga - continuava - é alguém que foi muito além do que lhe foi confiado ser. Com a minha ajuda, também você, meu amigo, será como eu.

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- Agradeço-lhe de coração a amizade e a confiança - respondeu, desesperançoso –, mas ainda que a sua influência possa empreender em mim semelhantes mudanças, do que não estou certo, duvido que o faça em tempo para que me candidate a prefeito. Porque é preciso que de fato ocorram e que todo um povo as note. Não basta que eu me engane, achando que progredi muito quando na realidade não saí do lugar. - Da percepção dos outros cuido eu - rebateu - ou se esquece do porque veio ter comigo em nome do prefeito? - Sim, me lembro, mas me perdoe se não consigo acompanhá-lo no raciocínio... - Não se desculpe. Não há lugar para apologias entre nós. Ludovico tratava Constâncio como um pupilo, mesmo que aparentasse menos idade. O vereador sentia-se compelido a escutá-lo com a máxima atenção, e a aceitar do interlocutor esse tom de superioridade que, ao mesmo tempo em que o inferiorizava, o incentivava a alçar voos mais altos. - Sua simples presença em minha casa, com o propósito que conhecemos, é o bastante para concluir que o prefeito depende da minha ajuda, o que me coloca na posição de condicioná-la a um e outro capricho meu. Ademais - lembrou –, tenho motivos para provocar o prefeito, e não me será desgostoso submetê-lo às minhas vontades. - Entendo - disse o vereador para deixar claro que escutava, embora fosse incapaz de compreender o plano em toda sua magnitude. - Não pedirei que minha ajuda seja posta às claras, mas quero que se faça de um modo que fique evidente que a prefeitura recebe auxílio externo. E o responsável por trazê-lo será você, Constâncio. - Tomara fosse - respondeu –, mas bem sabem todos que se alguém aqui tem condições para tanto é você, Ludovico. Pessoalmente, mal tenho onde cair morto, e isso é fato notório na cidade. - Você me decepciona, meu caro – Ludovico riu. - Naturalmente não o fará com recursos próprios. Faremos crer que foi responsável por alguma intervenção junto ao governador ou coisa que o valha, os detalhes são o de menos por ora. O prefeito vai

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confirmar se quiser ter chances no pleito, temeroso de que você denuncie o estado de calamidade em que se encontra a sua gestão, bem como os meios a que recorreu para salvá-la. Constâncio de Barros pediu um momento para organizar suas ideias. Não tinha ouvido a um devaneio de quem desconhecia os meandros da política ou da natureza humana. Tudo fazia sentido. O que o espantava, além de tudo o mais, era que fosse, pela primeira vez na vida, a peça central de uma estratégia tão ambiciosa e elaborada. Constâncio, prefeito. O prefeito Constâncio. Combinava, podia se ver prefeito. Levantou-se para dizer que aceitava, mas Ludovico já tinha lido a resposta em seus olhos. O vereador não sabia que sempre havia um preço para a ajuda de um vampiro. Um preço no mais das vezes caro demais. A garantia do compromisso e da lealdade, entre eles, se pagava com sangue. Os caninos perfuraram-lhe as carnes do pescoço em busca da jugular. Enquanto agonizava no chão, Ludovico mordeu do próprio pulso e deu de beber para o pupilo o sangue dos imortais.

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Preocupada como estava, demorou para que enfim dormisse. A má sorte daquele dia fez com que o sono tão custoso fosse interrompido no meio da noite, quando as velas no altar da sala há muito tinham sido consumidas. A octogenária era dona de um sono bastante leve, e o ruído seco do que julgou serem batidas na porta da frente do sobrado foram suficientes para despertá-la. Logo constatou que a energia não tinha retornado, o que a fez sentar-se ao lado do criado-mudo em busca do pires e das velas que ali guardava por precaução. Vestiu-se rápido, apenas o robe branco por cima da camisola de seda, e desceu as escadas com cuidado, degrau por degrau. Uma mão à frente, segurando o pires; a outra se escorando no corrimão. O final da escadaria dava na porta da rua, que abriu sem medo nem cerimônia. Esticou o pescoço para fora. Tinha

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esfriado, apertou o robe contra o corpo. Olhou para os dois lados, mas nem sinal de quem batera. Retomou o caminho do quarto, desconfiando dos sentidos que, a exemplo da memória, vira e mexe lhe pregavam peça. O esforço fez com que chegasse ofegante, mas a falta de ar foi saciada pela lufada de vento que soprou da janela escancarada. Inezita não se recordava de tê-la deixado aberta, e nesse ponto não temia que fosse traída pela memória, posto que não havia chances de que tivesse conseguido dormir com aquele vento cortante a perturbá-la. Enquanto se dirigia à janela, um mau pressentimento a tomou por inteiro, de tal modo que de imediato manifestava-se fisicamente. O coração batia acelerado, a respiração se fazia pesada. Uma vertigem súbita fez com que se detivesse por um instante. Escutou as batidas de novo, iguais às que a tinham despertado, agora na porta do seu aposento. A chama da vela não alcançava aquele espectro indistinto do qual só se podiam distinguir os contornos, entretanto não poderia alegar que não fizesse ideia de quem era. Pôde ver quando estendeu o braço em sua direção. O tiro certeiro, no coração, não viu.

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CAPÍTULO 2

ENFIM, LIVRE. De volta à emissora, não foi com surpresa que recebeu a notícia de que não ganharia descanso imediato. Primeiro, teve de cobrir as férias de um colega que se aproveitou da sua ausência para roubar-lhe a frente na escala; em seguida, a licença de um repórter do noticiário matutino que contraiu malária em viagem de trabalho. Duas semanas acordando às quatro da manhã pelo mesmo salário de fome que mal cobria o aluguel do apartamento. Apenas na última semana de labuta tivera, finalmente, um gosto efêmero do sucesso na profissão: assumiu o noticiário das seis em substituição à titular ocupada com uma série de reportagens no Oriente. Passou a ser reconhecida na rua, aqui e ali. Nunca fora fútil ou venal, mas apreciava a fama, não era hipócrita. O que nunca soube era se devia creditar a escalação à piedade que nutriam pela sua condição de quebra-galhos da Redação ou à influência do editor-chefe, sempre carregada de segundas intenções. Pouco importava, em qualquer dos casos não teria sido por mérito próprio. O importante era que, enfim, estava livre. E não gozaria das férias esparramada no sofá da sala, assistindo filmes à tarde, comendo pipoca. Gabriela Rios não dava ponto sem nó, nem nunca pecou pela preguiça. A figura de Ludovico não lhe dera trégua, a atormentar-lhe os pensamentos, perturbar-lhe o sono. Era preciso que tirasse a limpo a história dentro da história daquela insólita cidade serrana. Estivesse certa - tinha ela própria suas dúvidas - e seus dias de faz-tudo estavam contados. Porque não era o caso de abandonar o baixo escalão em favor de um nível intermediário. Sua ascensão seria meteórica. Bem documentada a façanha e Ludovico era seu passaporte para o sucesso e o prestígio. Decerto que nutria seus receios acerca de um novo encontro com o pretenso vampiro. Mas seu maior temor era que estivesse gastando tempo, dinheiro, e em especial suas esperanças, perseguindo uma miragem. Abominava a ideia de que não houvesse ali furo algum e, a despeito do seu faro e determinação, estivesse fadada para sempre à vala comum da mediocridade. Precisava crer no contrário.

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Gabi não perderia mais tempo. Por telefone, reservou um quarto simples no Sierra Tropical. Ficou sabendo que já não existia necessidade da precaução: com o fim da nevasca, quartos vazios havia de sobra. Aprontou duas malas pesadas, como quem fosse passar a temporada, e chamou um táxi até a rodoviária. Apenas Tomé ficava sabendo do seu destino e intenções, em uma mensagem na qual lhe pedia que ficasse de sobreaviso caso a entrevista se concretizasse. Não achava justo forçá-lo a acompanhá-la, envolvendo-o prematuramente em investigações e curiosidades até então pessoais. Também o cinegrafista desfrutava seu merecido descanso.

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Encontraram-no desacordado junto ao pé da escada, a arma do crime abandonada ao seu lado, no chão. Escoriações leves pelo corpo e um talho profundo na parte detrás da cabeça que encontrava seu correspondente em sangue no quinto degrau de cima para baixo. O delegado Randal não precisou de muito esforço para concluir que, consumado o crime, o assassino tivera o infortúnio de tropeçar e rolar escada abaixo enquanto empreendia fuga às escuras. A notícia do assassínio de Inezita e da prisão do homicida correu feito rastilho de pólvora na manhã do dia seguinte, especialmente porque desconhecia-se a identidade do suspeito que, capturado sem carteira ou documentos, insistia em permanecer calado. Não tardou a formar-se um aglomerado de revoltosos na frente da delegacia, embora a muito pouca gente fosse permitida a entrada. Entre os agraciados estava, é claro, o chefe do Executivo. O prefeito Paulino, para a surpresa dos policiais que não esperavam daquela visita mais do que a curiosidade satisfeita do mandatário, identificou o sujeito como um tal “Jorge alguma coisa”, não se recordava ao certo. Contou que tinha dado carona a ele na noite anterior, quando o assassino havia mencionado que procurava pela antiga proprietária do casarão de Ludovico.

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A intervenção do prefeito não foi o bastante para que o suspeito se abalasse a revelar seu nome completo, ou a prestar qualquer satisfação da sua conduta na noite do crime antes que lhe permitissem acesso ao seu advogado. O impasse só foi resolvido no final da tarde, quando se acreditava que o aglomerado popular em frente ao distrito havia diminuído o bastante para que a solução da questão não carecesse da mesma urgência. Ocorreu, porém, que ao invés de apascentar os que restavam, o nome que saiu dali só fez crescer a agitação - que não demorou a superar, em número e volume, ao tumulto da manhã. Trabalho completo, a viatura de polícia que auxiliara na desobstrução do acesso à cidade havia encontrado o carro do suspeito abandonado do outro lado da ponte. Malas, pastas e pertences encontrados no veículo foram encaminhados para a mesa do delegado e revirados no avesso até que se descobrisse o fundo falso da valise onde estavam o passaporte, o dinheiro e a carteira de identidade. Nesta última, não se lia “Jorge qualquer coisa”, como garantira o prefeito. O nome impresso nos documentos era o de Caio Túlio Pereira Inácio! Seria mesmo possível? O menino, órfão de Antonieta e Eliseo, deixara a cidade aos 8 para nunca mais retornar. Em Serrópolis, a notícia de que fugiu da casa dos padrinhos depois de separado dos pais despertou, à época, a piedade e a compaixão dos munícipes pela criança arteira e querida por todos. Desde então, evitava-se especular sobre a sorte do garoto. Na idade que contava, sozinho no mundo, era provável que tivesse morrido ou tomado o rumo da delinquência. Que o último da linhagem dos Pereira Inácio tivesse voltado passados tantos anos foi coisa que encheu de perplexidade os moradores mais antigos. Caio Túlio era, para eles, como um elo para um passado que há muito tinham esquecido. Uma época mais próspera e romântica, quando eram mais jovens e Serrópolis fervilhava como se nunca fosse parar de crescer. Caio Túlio! Queriam vê-lo. A fúria e a revolta com que se trata um assassino não recaíam sobre ele. A infância tomada de assalto pela desgraça, bem como as dificuldades que certamente enfrentara, o absolviam. Senão do crime, do ódio. O que faltava entender era por qual razão voltaria justamente para assassinar a avó, uma senhora idosa, tão pacata e inofensiva. Teria sido porque Inezita o desprezara, confiando sua guarda aos padrinhos com quem obviamente não se houve bem? Ninguém podia

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saber, não agora. O silêncio determinado de Caio Túlio no cárcere indicava que a resposta, partisse dele, demoraria a ficar conhecida.

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Constâncio mudara radicalmente de comportamento, ou antes de personalidade, e isso era coisa que saltava aos olhos do observador mais desatento. No lugar do vereador vacilante e acomodado surgiu um candidato ambicioso e resoluto, que desde os reparos emergenciais na ponte, passando pela construção da nova e de tudo o mais que a neve destruíra, exerceu papel de liderança no restabelecimento da ordem na cidade. Não mais alternava suas convicções em função do interlocutor, como quem tenta agradar a todos e, no processo, termina por trair suas próprias crenças. Definitivamente não era o caso. Estendeu o trato entre iguais que acreditava ter com Ludovico à gente miúda da cidade, mas dessa vez com tal porte e segurança que colhia respeito e, por vezes, admiração - efeito inverso ao que obtivera no passado. Ainda assim, era difícil adivinhar as suas intenções: seu discurso era vago, pré-pronto, evitava promessas e comprometimentos pontuais. Pronunciava-o carregado de empáfia e decisão, destilados na proporção exata para convencer os volúveis eleitores da cidade. Empregava, desse modo, a mesma persuasão com que tomara as rédeas do partido rosista, impondo sua candidatura a prefeito. Os serropolenses, conquanto se rendessem à sua nova postura, desconfiavam haver algo de errado com o vereador, ninguém muda assim tão rápido. Escolheram, no entanto, ignorar a causa. Constâncio passara a contribuir ativamente para o progresso da cidade, e não convinha constrangê-lo cobrando explicações de quem os beneficiava. Que tal disposição não existisse, é bom que se diga, era por mero interesse, além de uma curiosidade inconsequente que desejava descobrir até onde o vereador queria (ou podia) chegar. Porque o comportamento de Constâncio a cada dia que passava ficava mais estranho.

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Desde o começo da campanha, passou a evitar aparições diurnas. Agendava os comícios para o horário da noite, mesmo quando em finais de semana ou feriados. Acordava bastante cedo, antes dos primeiros raios de sol, talvez nem dormisse. Seguia, então, na direção da casa de Ludovico, de onde só saía durante o dia para tratar de assuntos urgentes em que sua presença se fizesse imprescindível. No mais, tornara-se inacessível. O crescimento da popularidade de Constâncio deveu-se em parte à conduta passiva do prefeito, que concedia graciosamente ao adversário os louros das conquistas que, em outras circunstâncias, caberiam à prefeitura. Paulino atendia às determinações de Ludovico, que financiava o caixa da prefeitura e a prosperidade do apadrinhado, controlando-o feito marionete. Se o prefeito agia nesses termos não era apenas porque o acordado impedia que procedesse de outra maneira, mas também porque o forasteiro causava-lhe arrepios a ponto de preferir evitar embates desnecessários. Restava contentar-se em enfrentá-los nas urnas, com o que tivesse à mão e fosse lícito utilizar - o que o deixava com poucas opções. Sabia que a plataforma da continuidade era perdida, embora estivesse logicamente obrigado a defendê-la. Resolveu aferrar-se à defesa do Pereira Inácio, primeiro pela esperança de que com isso angariasse votos; depois, pelo sentimento de lealdade que nutria pela família a quem devia o cargo. Funcionou em parte, e por pouco tempo, entre os sensíveis e saudosistas. Nem de longe o bastante. Sequer imaginava que o apoio ao acusado em breve implicaria consequências trágicas para sua combalida campanha. Continuava caindo nas pesquisas, enquanto Constâncio crescia ameaçadoramente.

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- Quarto pra um? Vai ficar no 22, querida. Aqui estão as chaves. - Obrigada.

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- Não trouxe o seu pai? – intrometeu-se, querendo puxar conversa. - Você diz Tomé, o senhor que me acompanhou da última vez? Não é meu pai. Do balcão, Dolores fez cara de constrangida enquanto reprovava por dentro. Se tentou dissimular o estranhamento, foi com pouco empenho. - Tomé é o meu cinegrafista. Sou repórter, não se lembra? - Ah sim, claro, agora me recordo, a história da neve... Desculpe ter pensado bobagem, mas sabe como são as coisas na capital, ou, melhor dizendo, nunca se sabe riu, maliciosa. Ensaiava levar as malas para o quarto quando Dolores indagou-lhe a respeito de sua estadia, assumindo que desta vez ela viesse cobrir a história da herança. Herança? Calhava uma justificativa para estar ali, não queria despertar a atenção dos outros para o seu verdadeiro intuito. Respondeu que sim, mas quase nada se interessava por aquele litígio de cidade pequena. Nem por curiosidade - atributo tão caro a qualquer jornalista, e do qual não prescindia. O destino, porém, quis que forçosamente fosse a repórter dada a tomar parte no imbróglio que envolvia boa parte da cidade. - Um minuto Dr. Penteado! A moça aqui é da televisão, veio saber do processo. Por que não lhe dá carona? O doutor Penteado era um senhor grisalho, prestes a entrar na casa dos setenta anos, muito gentil e atencioso. Advogado bem-sucedido, sócio de um dos maiores escritórios de Direito da capital, tinha vindo a Serrópolis prestar serviço a um cliente seu que se via enrascado nas áreas cível e criminal. Dolores de tal modo fez e abusou da falta de cerimônia que tanto Gabi quanto Penteado sentiram-se compelidos a fazer companhia um ao outro no caminho até a delegacia. O ilustre causídico sentou-se ao volante de seu veículo particular, aproveitandose do curto trajeto para contar à moça a história da sucessão, supostamente o motivo de ambos estarem ali. Defendia, o doutor Penteado, a um empresário de nome Caio Túlio, que se encontrava detido na delegacia do município acusado do homicídio de sua própria avó.

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- E foi ele? - perguntou Gabi, horrorizada. - Assumo o caso agora, embora o conheça há algum tempo, mas naturalmente que não... É verdade que as circunstâncias em que foi encontrado na cena do crime são um tanto quanto comprometedoras, mas cabe a mim defendê-lo. E, portanto, é inocente. Gabi fez que entendia, mas queria saber como aquele crime hediondo ligava-se à herança, pois até ali parecia tratar-se de um simples caso de assassinato. - Pois veja como é fascinante o caso - respondeu enquanto procurava pela rua da delegacia. - Caio Túlio é órfão. Fugiu da casa dos padrinhos muito cedo, para nunca mais dar notícia a familiar algum. Refiro-me à avó, que o tomava por desaparecido ou, creio mais nesta hipótese, morto. Penso assim porque a senhora, abastada e de família nobre, era dona de mais da metade dos imóveis desta cidade, os quais, em testamento, legou de herança a cada um dos respectivos locatários. O advogado estacionava cuidadosamente em frente à delegacia quando foi acudido por meia dúzia de cidadãos que pressionavam pela condenação de Caio Túlio. Queriam saber do engravatado da capital como se dignava a defender um canalha daquele quilate. Xingavam-no de cínico, mercenário, bandido, entre outros tantos elogios de baixo calão. Um munícipe mais exaltado, que acompanhava a cena do outro lado da rua, atirou uma maçã que passou pouco acima das cabeças da repórter e do advogado, estilhaçou a janela da delegacia e foi dar, rolando, no pavilhão carcerário. Os guardas precisaram sair à rua para colocar termo à confusão. Estava claro que a complacência com que Caio Túlio fora tratado de início não resistira à abertura do testamento de Inezita. - Meu cliente, como descendente, tem direito a tudo o que foi da avó, não me admiro que o queiram atrás das grades - concluiu Penteado tranquilamente enquanto entrava na delegacia à procura do delegado. Fosse Caio Túlio condenado pela morte da avó e perderia qualquer direito sobre os bens do espólio. Posto em alerta pela maçã voadora, o delegado Randal os recebeu em pé, agitado, na sala de espera onde o escrivão e um investigador os observavam de soslaio. Tentavam fisgar um pedaço da conversa. Inútil, porque era, o chefe, um homem grave, de poucas palavras, que cuidava não deixar revelar além do necessário. O doutor

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Penteado fez a gentileza de insinuar que Gabi era uma assistente sua - do contrário jamais o delegado permitiria que a jovem tomasse parte naquela visita profissional. Toda vez que algum detento recebia o seu defensor os guardas tratavam de desalojar o escrivão do quarto de despejo, um cômodo pequeno que servia a muitos propósitos na repartição. Empilhava-se de tudo naquele quartinho: material de limpeza, de escritório, lixo ocasionalmente. Principalmente papéis. Aos montes: processos, memorandos, requisições, inquéritos, portarias, nada era jogado fora. Virava tudo pilha em cima de pilha no quarto de despejo – que, aliás, possuía um inconveniente adicional para a tarefa a que se prestava no momento: comunicava-se com a rua por meio de uma janela ampla e baixa, sem grades, de modo que quando havia visita fazia-se necessário um guarda plantado do lado de fora a fim de impedir eventuais tentativas de fuga. Gabi e o doutor Penteado sentaram-se de costas para a porta e de frente para a janela, à espera do carcereiro que trazia o acusado. Caio Túlio deu duas dentadas na maçã que caiu do céu, rodeou a mesa de madeira que havia no centro e sentou-se diante da dupla. Gabi não pôde se conter quando da sua entrada, atônita porque não contava com a chance de qualquer familiaridade, por menor que fosse, com a figura do homicida. - Mas você não é... - Jorge Wagner? – adiantou-se, interrompendo. - Sim, fui. Quero dizer, nunca fui de verdade, mas naquele momento o era - confessou resignado, emendando um pensamento no outro sem dar chance de réplica para a repórter. - E você, o que faz aqui? Não precisa responder, não faz diferença agora - concluiu abatido, atropelando a própria pergunta, sem disposição alguma para ser educado com a moça. - O importante é que você veio, Penteado. Precisa me tirar daqui. Sou inocente! O advogado reagiu com naturalidade à negativa que escutava habitualmente. Eram todos inocentes, era aquela a premissa do seu trabalho. Caio Túlio confessaria a ele que realmente estivera, naquela fatídica noite, à procura da avó. Não tencionava matá-la, é certo, mas tratar de um assunto de família - o qual se recusava terminantemente a torná-lo público em que pese a insistência do advogado, para quem a situação do cliente era grave demais para que se abstivesse de revelar coisa alguma. A última lembrança nítida e consciente de Caio Túlio foi que tinha batido à porta do

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sobrado da avó, mas sequer recordava de que alguém o atendesse. Acordar todo alquebrado e ensanguentado, caído ao lado de um revólver e cercado por policiais, fora a experiência mais aterradora de que havia tomado parte. O corpo inerte da avó no andar de cima, que o delegado em sua fúria fez com que contemplasse como o produto de sua pretensa obra macabra, foi o choque de realidade de que precisou para perceber que não se tratava de um pesadelo. Calou-se desde então. O doutor Penteado esforçava-se para reconstituir com o cliente os detalhes do crime, na tentativa de esboçar uma estratégia de defesa, quando Gabi pediu para sair no que foi prontamente atendida, porque sua presença ali era absolutamente desnecessária. Desviou de uma pilha de ofícios e fichas criminais, catalogadas a esmo, desejou boa sorte ao empresário, que agradeceu desesperançoso, e, por fim, se viu livre do sufocante quarto de despejo. Fez um sinal com as mãos na direção do delegado, que não entendeu o significado, mas assentiu que prosseguisse. Como podia? O Caio Túlio da herança era o Jorge Wagner do atropelamento. Tinha simpatizado com o segundo, e o primeiro, a despeito do abatimento e das circunstâncias, pareceu sincero em seu depoimento. Que crime estranho era aquele em que o assassino não via a vítima há 20 anos? De suspeito e estranho em Serrópolis, considerou, mais do que Caio Túlio havia Ludovico. E na hipótese de que o empresário fosse inocente, como só a repórter parecia crer, o crime devia de ter alguma relação com aquele que motivara sua volta à cidade. Ou seria esse emaranhado complexo de acontecimentos um produto da sua imaginação? Se o era, talvez também o fosse a condição que atribuía a Ludovico. Confusa, Gabi suspeitou que sua obsessão pelo vampiro a estivesse influenciando no que acreditava ter de melhor: seu discernimento.

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Havia tomado o episódio por um caso fortuito, como tantos outros no passado que não mereceram maiores preocupações. Mas que tivesse retornado à cidade e, mais,

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andasse de conversa com o sujeito alvo de sua prioritária atenção, era motivo para que a mantivesse sob vigilância. Foi Constâncio quem lhe trouxe as novas, debilitado pelo trajeto que percorrera às claras. O vereador despachava acerca de assuntos inadiáveis quando, da janela do gabinete, tinha visto a repórter adentrando a delegacia na companhia do advogado de Caio Túlio. Desperto pelo fiel mensageiro com a ajuda de Lurdinha, Ludovico não completara seu período de descanso diurno, o que o deixava mal-humorado e propenso a atitudes impulsivas. Vlad, o cão de estimação, correu deitar-se sobre os seus pés, mas a atitude carinhosa do animal não bastou para aplacar-lhe o ímpeto. Se a existência imortal o ensinara algo era a não se precipitar, não agir ao sabor do humor. Lurdes, embora consideravelmente mais nova e imatura que o amo, adivinhou os seus pensamentos, e indagou a ele se desejava completar as horas de sono. Fez que sim, havia muito o que ponderar e não queria arriscar-se a dar passos em falso sobre terreno desconhecido. Quem era aquela jovem repórter e de que modo ela poderia interferir em seus planos? Chamou Constâncio de lado para uma breve preleção enquanto a criada tornava a fechar as cortinas, acender as velas do candelabro e preparar o descanso do mestre. Os da sua raça eram discretos por natureza. Em condições normais, preferem proceder dentro da legalidade, evitando suspeitas e vivendo incógnitos entre os cidadãos comuns. Agindo de outro modo não teriam se perpetuado por tantos séculos, dado que apesar de ameaçadores eram pouco numerosos. O tempo e as condições, no entanto, eram outras, considerou Ludovico enquanto Lurdinha deslizava a tampa do caixão, cobrindo-lhe a fronte, e Constâncio afastava-se, maquinando como cumpriria a penosa missão confiada pelo mestre.

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A afeição por Jorge Wagner e o crime de Caio Túlio, quis a sorte que descobrisse se tratarem da mesma pessoa, fizeram com que ela adiasse o contato com

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Ludovico. Preferiu aproveitar o resto do dia investigando o assassinato sob uma perspectiva da qual, estava certa, não tinha ocorrido à mente do delegado Randal ou do doutor Penteado. Aguardaria em seu quarto madrugada adentro, na vigília à base de refrigerante e batata chips, até que cessassem os barulhos de risadas e do bate-papo no bar do Lira – e tivesse absoluta certeza de que a rua estava deserta. Poderia sair pela janela, contornando o hotel na direção da praça, mas constatou que havia uma fileira de arbustos de galhos secos e cortantes, incrustados em uma vegetação alta que dificultava sobremaneira a tarefa. Ademais, não estava vestida para embrenhar-se no mato. Caminhou pelo corredor, com muito cuidado e silêncio, e foi dar na portaria onde Zenírio, marido de Dolores, proprietário do hotel e figura rara de se ver, cumpria o turno da noite. A seu modo, diga-se, porque roncava pesado apoiado sobre o balcão, como quem não acordaria se passasse por ele uma excursão repleta de turistas aos berros. Gabriela Rios ganhou a rua vazia sem despertar suspeitas, cumprindo o curto trajeto iluminado pelo brilho prateado da lua cheia até o sobrado de Inezita. Que há muito tempo não ocorria um crime dessa natureza em Serrópolis depreendia-se facilmente pelo despreparo da polícia na preservação da cena do homicídio: a porta da rua arrombada pelos guardas encontrava-se tão somente apoiada no batente, de onde partia uma fita amarela em que se lia “Não ultrapasse”, com os dizeres grafados em preto – mas que não constituía obstáculo, já que se podia passar por debaixo dela sem precisão de contorcionismos. Decidida, Gabi invadiu a casa da falecida, acendeu as luzes e se apressou em vasculhar o palco da tragédia - embora não soubesse ao certo o que procurava, menos ainda o que podia encontrar. Os contornos do corpo de Inezita desenhados grosseiramente no chão com fita adesiva branca denunciavam o local em que a octogenária caíra sem vida. A ausência de manchas de sangue sugeria que o quarto tinha sido limpado, o que lhe diminuía as esperanças de descobrir algo relevante para a solução do caso. Examinou gavetas, armários e pertences pessoais da vítima, mas nada parecia alimentar sua crença, e preferência, de que o crime não tivesse sido perpetrado por Caio Túlio.

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Decidiu-se por voltar ao hotel, missão fracassada. Retirava-se do quarto de Inezita quando atentou, a caminho da escada que dava acesso ao térreo, para o altar de santos da falecida com uma das velas inexplicavelmente acesa. Não reunia dúvidas de que estivesse completamente sozinha, e logo a ideia de que o responsável pelo fenômeno pudesse ser o espírito desencarnado da velha a arrepiou dos pés à cabeça. Trêmula, aproximou-se das imagens de gesso. Em um gesto vacilante, tomou o pires com a vela e assoprou a chama ao mesmo tempo em que descrevia o sinal da cruz junto ao peito. Mais que depressa, tentou sair dali tão rápido quanto podia, mas para sua surpresa iria ao chão num giro rápido do calcanhar, segura pelo pé. O grito mudo logrou aprisioná-lo, receosa, pois sua presença naquele local era claramente uma afronta à lei. Interferia por conta em uma investigação policial. Caída de bruços, estatelada pouco à frente do altar da defunta, foi com alívio que percebeu que o que a detivera não fora uma entidade do além como temia, mas o inseparável salto-agulha aprisionado numa das fendas do piso de tacos de madeira. Refeita do tombo, resgatava o calçado, envergonhada, quando deu por conta que despontava por debaixo do assoalho um pedaço de envelope branco com carimbos estrangeiros. Gabriela removeu o taco adjacente, recolhendo as cartas ocultas, para, em seguida, recompor o esconderijo e retornar triunfante para o Sierra Tropical.

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O choro de um homem feito é, quase sempre, tão ou mais deprimente para quem o presencia quanto para aquele que verte as lágrimas. Caio Túlio, em um esforço de dignidade, ao menos não soluçava, nem assoava o nariz com estardalhaço – o que seria compreensível, embora depusesse contra sua força de caráter. Chorava escondido, sentado no chão, com as costas apoiadas na parede rebocada do xadrez que tinha o privilégio de ocupar sozinho, denunciado apenas por um e outro soluço ou fungada mais fortes os quais fracassasse em tentar disfarçar. Na cela ao lado, dois ladrões de galinha,

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pés de chinelo, roncavam pesado. Compunha com eles a totalidade da população carcerária de Serrópolis. - Quer chorar, chora na cama, que é lugar quente - debochou o carcereiro, apontando para o leito de concreto sem colchão, tão frio quanto o piso da cela. Não provocava com a intenção de humilhar o detento, como pareceria a um espectador mais sensível. Queria puxar papo, começar uma conversa amistosa. A brincadeira servia para deixar claro que não se abatia com o choro de Caio Túlio a ponto de calar-se em respeito. - Não foi você, não é? – insistiu. - Como disse? – enxugou as lágrimas na camisa encardida, surpreso porque o carcereiro nunca tivesse lhe dirigido a palavra antes. - A sua avó, não foi você quem matou. - Por que diz isso? - Conheço o tipo. O dos matadores - respondeu enquanto acendia um cigarro e o trazia à boca. A fumaça espessa das baforadas desenhava figuras no ar sob o brilho da lua cheia que invadia quadrada a escuridão do cárcere. - Fui um deles - confessou, trazendo para mais próximo das grades o banquinho de madeira de onde vigiava os presos. - Matou um homem, então? – quis saber Caio Túlio, reconfortado sem entender por que pelo passado criminoso do sujeito com quem conversava. - Homem? Quem falou em homem? - tragou forte e pôs o cigarro de lado, enjoado. - Passarinho. Sabiá, pica-pau, joão-de-barro... Me deu um problema com a Justiça que nem queira saber. - Posso imaginar - rebateu o empresário, enterrando a cabeça sob os braços dobrados na altura do joelho. - Bom, mas eu dizia que não foi você - retomou o assassino ecológico. – O problema, seu problema, é que convencer a mim não serve. Cá entre nós: até o delegado, reservado que só ele, disse ter certeza de que foi você.

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- Não sabe como me anima - balbuciou em resposta. - A maneira como te encontraram, sabe, foi muito próxima do flagrante. Além do mais, não existe outro suspeito. Olha, te digo como amigo. Para o sistema aqui olhou em volta como se contemplasse com o gesto a Polícia e o Judiciário por inteiro você já foi condenado. As lágrimas escorreram novamente pelo rosto de Caio Túlio. A conversa com o prolixo doutor Penteado não tinha sido promissora, e agora o carcereiro, em sua simplicidade, escancarava-lhe a situação sem rodeios nem eufemismos. - Engole o choro, não estou aqui pra te animar - aproximou um pouco mais o banquinho da cela e segredou, maroto. - Vim pra te ajudar. - Que bela ajuda você pode me dar. - Não desdenha, homem, parece que não tem noção da enrascada em que se meteu. - Noção tenho, plena, mas não me leve a mal, vai me ajudar enquanto carcereiro ou matador de passarinho? - Olha, não me subestima rapaz, eu nem devia te ajudar. Se o faço é por justiça e dívida – elencou, sem querer alongar-se. - Primeiro porque estou convencido da sua inocência, e depois porque devia a seu pai, Seu Eliseo, e nunca pude compensá-lo em vida. Ajudar ao filho deve servir. A menção ao pai incomodou Caio Túlio. Não se considerava em dívida com o seu progenitor, como o carcereiro, mas também tinha contas a acertar com o velho. - Eu ia ser preso, sabe - continuava - me denunciaram para o delegado anterior. Seu pai interveio, disse que cuidaria pessoalmente de me botar na cadeia. Dito e feito, me arranjou este emprego de carcereiro, lá se vão vinte anos, talvez mais. Não fui preso, e de quebra ganhei um trabalho digno. Não tem cabimento ficar atrás das grades por alguns curiós, não é verdade? - Bela história, meu pai era mesmo um filantropo - interrompeu desinteressado mas vai me ajudar como?

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- Você vai fugir. - Como é? Ficou maluco? – debochou. - Não, eu ajudo. - De que me adianta escapar, levar uma vida de foragido? - Pois fique e vai levar uma vida de presidiário. Acho que você não compreende a sua situação. Quer limpar seu nome? - Mas é claro, que pergunta... - É justo, mas ninguém vai te ajudar, entende? Nem o seu advogado, se me permite a liberdade. - Está sugerindo que devo provar minha inocência sozinho? O carcereiro não respondeu, apenas tragou novamente a fumaça do cigarro, para, em seguida, tossir repetidas vezes. “Essa droga ainda me mata!”. Atirou o toco contra o chão e pisou em cima, interrompendo a névoa que impregnava o ambiente. A explanação do carcereiro, à primeira vista radical e subversiva, logo lhe pareceu lúcida e coerente. Mesmo porque aguardar enjaulado o desfecho do caso, na dependência de terceiros, era angustiante demais, e não podia negar que a ideia de escapar dali lhe tivesse ocorrido algumas vezes. A rechaçara, é certo; sequer a considerara com seriedade. Talvez por escrúpulo, mas principalmente porque sair dali parecia absolutamente impraticável. - Como pode ser feito? - É simples, preste atenção. Está vendo este cassetete? – mostrou o instrumento de trabalho que portava encaixado no cinto. - Façamos de conta que eu estou limpando aqui em frente da sua cela, como quem não quer nada, varrendo as bitucas de cigarro. Você se aproveita de uma distração minha para roubá-lo... E dá com ele na minha cabeça! Compreendeu? - Desculpe, mas vão te achar um imprestável. - Quer sair ou não quer?

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- Sim, claro, mas escuta... É mesmo preciso? - O quê? - Que te acerte na cabeça. - De leve. O bastante para fazer crescer um galo, pequeno obviamente, não mais. - Se é assim... - Então tome, pegue - o carcereiro passou o cassetete por entre as grades. - Agora?! - Isso. Antes que eu, você, ou ambos, mudemos de ideia. Depois você vai pegar as chaves, abrir a porta da cela e fugir pelo quarto de despejo. A janela dali é baixa, deve ter notado. - Notei - respondeu, atordoado com a rapidez das tratativas. - Lembre-se, não saia pela porta da frente, é dia de plantão do delegado, e se ele te vir saca-lhe o fumo. - Ok, vou lembrar disso - Caio Túlio chegou mais perto do carcereiro. - Devo te bater agora? - Não ainda, espere! O mais importante: vou te dar uma hora de vantagem para que fuja, depois aviso o delegado. Não posso “desmaiar” mais do que isso por conta de um simples galo na cabeça, ou perco o emprego. - Uma hora?! Mal dá pra chegar na ponte, o que vou fazer com uma hora? - Aí é contigo, meu amigo, eu conto o nome do santo. O milagre faz você. O carcereiro levantou-se, arrastando o banquinho para longe dali, e postou-se, de costas, à frente do xadrez de Caio Túlio. - Agora bate. Um pouco acima da nuca. O Pereira Inácio era avesso à violência. Bateu tão de leve que irritou o carcereiro.

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- Sua avó bateria mais forte, com o perdão da comparação. - É pesado isso aqui. - Por isso que é pra acertar de leve, mas não tanto. - Lá vai! A segunda pancada foi ainda mais fraca que a anterior. - Logo se vê que não foi você quem apagou a velha, me dá isso, eu mesmo bato! - Não! Orgulho ferido, porque a tarefa e o interesse eram dele afinal, Caio Túlio acertou com violência a moringa do carcereiro, que tombou desacordado sem ter efetuado a entrega das chaves, agora longe do alcance do prisioneiro. O empresário se viu obrigado a arrastá-lo com dificuldade pelos pés para mais perto das grades, quase acordando um dos presos no processo. Uma vez de posse do molho, abriria a cela, acessando enfim o corredor. Três palmadas no rosto do carcereiro não foram suficientes para despertá-lo. Era melhor que se apressasse, considerou. Uma inspeção surpresa do delegado e seria pego no ato. Completamente alheio ao que se passava no pavilhão carcerário, o delegado Randal sintonizava o rádio em uma emissora sertaneja. Em êxtase, Caio Túlio deixou para trás o corredor com as celas e rumou delegacia adentro. O quartinho de despejo encontrava-se ainda mais desarrumado do que estivera à tarde. De onde surgiam tantos papéis? Pisou em pilhas e mais pilhas deles até abrir a janela e aterrissar na rua. Ganhava a liberdade, embora do conceito desfrutasse muito pouco. Se estava livre, era unicamente para defendê-la.

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Um lapso de distração fez com que esquecesse a janela do quarto entreaberta. Um vão pequeno. Suficiente, no entanto, para que fosse observada. O corpo exausto acusava os excessos do dia: a chegada a Serrópolis, a passagem pela delegacia e a incursão clandestina pela cena do crime. Lamentou que não tivesse contatado Ludovico, tampouco investigado sobre ele entre os moradores da cidade. Fora envolvida nos crimes e litígios de Serrópolis, e na medida em que pretendia retomar o objeto de sua viagem embrenhava-se cada vez mais em acontecimentos que não pareciam guardar relação com os seus interesses imediatos. Tinha fé, no entanto, que de algum modo obscuro estivessem ligados ao excêntrico morador da mansão dos Pereira Inácio. Experimentando um misto de nervosismo e ansiedade, Gabi depositou as cartas encontradas no sobrado de Inezita sobre a penteadeira, o coração batendo acelerado. Não as tinha lido até então. Orgulhosa, sentia-se uma jornalista investigativa de verdade, destemida e aventureira, ocupada com assuntos importantes – e não a semiestagiária da emissora na capital. Queria ler o quanto antes as mensagens endereçadas à falecida, mas bastou que adentrasse o ambiente seguro do quarto de hotel para que notasse as pernas pesadas, o olhar cansado e os reflexos lentos de quem devia algumas horas de repouso ao organismo fatigado. Inclinou-se sobre a pia e lavou o rosto com água gelada, sem ganhar com isso ânimo algum. A cama de casal só para ela minava seus esforços de resistência, parecendo-lhe exageradamente convidativa. Lembrou-se que desde a chegada à cidade não tivera tempo para nada, nem ao menos um banho. Ah, um bom e revigorante banho... Era do que necessitava. Leria as cartas na sequência, roupas trocadas, no aconchego do leito. Empolgou-se com a ideia, não havia pressa na leitura - além do gosto que fazia em prolongar um pouco mais o êxtase de que desfrutava. Gabriela despiu-se no banheiro, de frente para o espelho. Conforme o ritual próprio, cultivado desde os primeiros anos da adolescência, deixava para contemplar seu reflexo apenas quando estivesse completamente nua. Virava de costas e torcia o pescoço, concentrada na imagem refletida. Retiraria por último os generosos brincos de argola, finos e prateados, retornando brevemente ao quarto para depositá-los sobre as cartas. De volta ao banheiro, escancarou a porta de correr do box, mantendo-a nesta posição porque considerava o espaço demasiado claustrofóbico para que desfrutasse do banho como desejava. Avançou pela metade no ambiente, cautelosa, um dos pés

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suspenso do lado de fora. Arriscou uma das torneiras, girando-a no sentido anti-horário. Fria! Media a temperatura com uma das mãos esticada, pequena e tensa. Gostava de banhos quentes, era melhor esperar a água amornar. Alheio à cena, o morcego penetra no quarto em silêncio, sem se fazer notar, pousando sobre uma das pás do ventilador de teto desligado. Daquela posição privilegiada, não era difícil avistar os envelopes dispostos sobre o móvel de madeira. Pretendeu escorregar planando ao encontro deles, mas se veria obrigado a bater com as asas algumas vezes antes da aterrissagem, temeroso de que se espatifasse contra a penteadeira. Não eram aerodinâmicas como gostaria que fossem, lamentou. O mamífero alado remexia as cartas com a boca, suspendendo-as pelos dentes pequenos e afiados, visto que as patas superiores as trazia inconvenientemente fixas junto às asas negras. Os remetentes ali identificados batiam com a descrição do mestre, e a destinatária de toda aquela correspondência era de fato quem presumiu que fosse. Admirou-se da astúcia da repórter. Como a jornalista as tinha obtido se a própria criatura revirara no avesso o sobrado de Inezita sem nada encontrar? Afastou a preocupação com a dúvida em prol do que considerava uma certeza: estava seguro de que Gabi, de posse das mesmas, já as tivesse lido e relido. E se a jovem estava a par dos fatos, o que lhe pareceu óbvio, também o estavam Caio Túlio e o advogado. Encontrara a única explicação plausível para o encontro dos três na delegacia pela manhã. Deveria, agora, reportar-se ao mestre. Contar a ele a má notícia de que nem tudo corria sob o sigilo que imaginavam. O morcego preparava-se para levantar voo, de posse dos envelopes que trazia prensados pelos dentinhos firmes, quando foi atraído pelo barulho do chuveiro. Aliviou a carga por um instante e planou desajeitado do móvel ao chão, decidido desta vez a resistir ao impulso de bater com as asas. O pouso forçado fez com que enterrasse o fuço no carpete. Refeito, arrastou-se envergonhado até a entrada do banheiro, de onde pôde espiar Gabi em todo seu esplendor. Os cabelos molhados da morena, compridos e lisos, moldavam-se às suas costas e nuca. A jovem de rosto delicado, expressão serena de olhos claros semicerrados, deslizava o sabonete pela pele alva, macia e uniforme. Descia com as mãos pelos ombros, escorregando-as na direção dos seios firmes e arredondados, percorrendo em seguida as coxas grossas e torneadas. Vinte e poucos anos, o corpo voluptuoso e curvilíneo de mulher convivia em incomum harmonia com seu jeito de menina. Insinuante, fechava os olhos e esboçava um sorriso enquanto a água

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morna escorria pelo rosto erguido na direção do chuveiro. Ficaria assim por alguns minutos, deliciando-se com a sensação do contato com a água enquanto aguçava a curiosidade a respeito do conteúdo das missivas. Não poderia suspeitar que o vampiro a admirava por inteiro, desprevenida, sedento por sangue, contaminado pela luxúria. Para a sorte da moça, as ordens expressas da criatura eram para que se limitasse a vigiá-la. Não havia autorização do amo para que fosse além disso, e a disciplina entre os seus sempre fora, na maior parte das vezes, um valor absoluto e inquestionável. O cessar do barulho da água caindo no azulejo, acompanhado do primeiro passo de Gabi na direção da toalha enganchada no suporte de metal, assustaram o animal. O morcego alçou voo atabalhoadamente até o vitrô basculante do banheiro, dependurandose de cabeça para baixo do lado de fora da mais alta das vitrines translúcidas que compunham a pequena janela. Gabriela enrolou-se na toalha, fazendo crer que terminaria de se enxugar no quarto, onde guardava as roupas. O vidro embaçado pelo vapor de água atrapalhava a visão do morcego, com seus olhos demasiado pequenos e ineficientes para vencer o inconveniente obstáculo. Ajeitava-se em busca de um melhor ângulo de visão - não queria perder o resto do espetáculo - quando foi surpreendido pela mão esquerda de Gabi que, sem vê-lo, empurrava instintivamente a alavanca da janela para cima. A lâmina de alumínio que fixava as vitrines cortou-lhe profundamente as patas que serviam de sustento, fazendo com que emitisse um guincho agudo de sofrimento abafado pela janela recém-fechada. Não restou alternativa para o vampiro senão retornar direto para casa, voando com dificuldade, perturbado pela dor lancinante. No quarto, Gabi termina de se enxugar, despreocupada. Sem pressa, seca os cabelos e veste o pijama, blusa e shorts curtos, de seda. Confortavelmente instalada na cama, aninhada debaixo do edredom, a repórter inicia, enfim, a leitura das descobertas daquela noite.

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Atordoado, ergue-se cambaleante. Uma das mãos apalpa o corte em busca de sangue. Apenas uma protuberante saliência perturba-lhe os sentidos. Apoia-se nas paredes, ainda trôpego, imaginando que deveria ter passado horas desacordado para que estivesse naquelas condições. O carcereiro sentia-se como se tivesse levado uma surra. Era certo que Caio Túlio havia se excedido. Exagerara de tal maneira na agressão, abatendo seu benfeitor, que este, tão logo recomposto, dirigiu-se imediatamente à mesa do delegado para comunicá-lo da escapada. Recuperou-se, todavia, mais rápido do que poderia supor, prejudicando inadvertidamente a vantagem que garantira ao protegido. O jovem havia deixado o quarto de despejo há não mais do que dez minutos, e a verdade foi que muito pouco – ou quase nenhum – progresso realizou durante o intervalo de tempo de que dispôs. No instante mesmo em que se viu livre, o empresário percebeu-se acometido por um turbilhão de ideias, as quais o incomodavam com tal pressa e vigor que não era capaz de distingui-las, ou extrair delas qualquer arremedo de ação objetiva. Paralisado na calçada lateral da delegacia feito bicho em cativeiro posto em liberdade, cogitou caminhar até a ponte, ultrapassando os domínios de Serrópolis. O tempo escasso fez com que afastasse, senão a alternativa, o meio. À pé não dava. Precisava, rápido, de um transporte rápido. Absorto, o delegado Randal cantarolava emocionado os sucessos da Rádio do Povo quando o carcereiro surgiu sorrateiro em sua sala, aparentando transtorno. Surpreendido acompanhando o refrão meloso da canção sertaneja, o delegado endireitou-se constrangido na cadeira, espalhando ao acaso alguns processos por sobre a mesa. Ocupado com o improviso da própria performance, mal se daria conta de que a maior das encenações naquela sala não era a dele, mas a de seu próprio funcionário. - O assassino fugiu! Randal limitou-se a erguer os olhos, franzindo a testa na direção do interlocutor. - Quem fugiu, Adionei? - Caio Túlio! – respondeu o carcereiro, a expressão de dor alternando entre o fingimento e a autenticidade. - Me acertou na cabeça! Incrédulo, o delegado correu até o xadrez, onde foi dar com a cela do prisioneiro vazia. A primeira providência do policial foi instruir o carcereiro para que convocasse

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todo o contingente do departamento com urgência “urgentíssima”. O autor do crime de maior repercussão na história da cidade havia desaparecido!

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A arte da fuga não é do tipo que se executa ao sabor do improviso. Requer planejamento e disciplina, em doses tão maiores quanto mais escassos os recursos para a empreitada. É necessário arquitetar um plano de ação preciso e detalhado, bem como antever possíveis imprevistos. Tratam-se de cuidados simples, cuja simples menção pode parecer desnecessária por não extrapolarem os limites do senso-comum. Observálos, no entanto, é condição imprescindível para uma fuga de sucesso, posto que previnem o perpetrador de que dependa da sorte em demasia. A traiçoeira fortuna é chegada em pregar peças. O Fusca velho, velho (de modelo e ano, note-se, porque o exterior impecável denota o esmero típico das peças de colecionador) estacionado em frente ao distrito era, para o empresário, seu passaporte para longe dali. Caio Túlio entrou no carro sem dificuldades, presumindo, corretamente, que o dono de um veículo daquela idade, em uma cidade como Serrópolis, não se daria ao trabalho de trancar as portas. De imediato, sentou-se no assento do motorista e pôs-se a vasculhar o interior do automóvel à procura das chaves. Para-sóis, porta-luvas, guarda-mapas, debaixo dos bancos e dos carpetes. Nada! Impacientava-se. Um arroubo de desespero e pretensão fez com que se precipitasse sobre a instalação elétrica, desentocando os fios debaixo do console. Parecia tão mais fácil no cinema, concluiu frustrado. Desceria do carro apenas para empurrar a porta com força, praguejando contra a tentativa infeliz. Descontou uma vez mais sua irritação no velho Fusca, aplicando-lhe um pontapé que entortou boa parte da lateral do automóvel do delegado.

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Duplamente maldito. O carcereiro não cumprira com a promessa da hora de vantagem e, de quebra, o delegado o surpreendia, dedo em riste da porta do distrito, vandalizando seu veículo particular. - Meu Fusca, filho da puta! Perplexo, o empresário debandou rua abaixo, correndo tão rápido quanto podia. Os músculos atrofiados pela inatividade no cárcere rendiam-lhe a aflitiva impressão de que pudesse ir ao chão a qualquer instante. Da calçada, Randal mede seu físico com o do empresário dez anos mais jovem. Não conseguiria alcançá-lo. Volta para dentro da delegacia, onde busca o revólver e a chave do carro enquanto ordena ao carcereiro que aguarde a chegada dos reforços. Não mediria forças na recaptura do Pereira Inácio.

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Indiferentes à caçada policial que movimenta a madrugada serropolense, aproveitam-se dela para adentrar a cidade sem serem notados. Soubessem a quem o delegado Randal perseguia e era possível que interviessem - mas sobre isso seria difícil precisar, uma vez que por Caio Túlio nutriam interesses ambíguos a despeito dos laços familiares de que compartilhavam. Seja como for, a prudência com que naturalmente se portavam (e que nesta cidade consideravam questão de sobrevivência a ponto de, por ora, condená-los à reclusão) certamente terminaria com qualquer intenção de ajuda imediata ao foragido. Tais conjecturas, no entanto, são meramente retóricas: o casal não estava a par dos acontecimentos das últimas horas. A ignorância dos recém-chegados (engana-se quem tomá-los por mal informados) não ia além disso. Ainda que à distância, acompanhavam atentos, por mecanismos os quais jamais conheceremos acerca dos recursos de sua raça, a tudo que

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dizia respeito à conclusão do seu projeto. Sendo assim, não foram os cartazes de “Constâncio Prefeito” espalhados pelas ruas que denunciaram aos dois que o plano original degringolara. Sabiam do assassinato e da prisão. Eliseo e Antonieta, os rostos impassíveis à passagem do tempo, instalaram-se no sobrado lacrado de Inezita, de onde acompanhariam nas sombras cada movimento do inimigo. O motorista aguardou que desembarcassem a bagagem na calçada: algumas poucas malas e dois engradados retangulares de madeira que o chofer preferiu não perguntar o que eram. Partiu calado, contabilizando os ganhos da generosa gorjeta e da corrida desde o aeroporto, comentando consigo mesmo que nunca apanhara passageiros tão exóticos quanto aquele pálido casal vestido de preto.

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Exausto, não poderia manter o ritmo por mais tempo. Agravava-lhe o ânimo o fato de correr a esmo por ruas desconhecidas. Não havia um porto seguro, uma vitória alcançável. À medida que avançava, sentia o peso do mundo em suas costas. Admiravase de como fora traído em suas expectativas desde que decidira voltar a Serrópolis; impressionou-lhe o ímpeto com que aquela cidade uma vez mais lhe soterrava as esperanças. O acerto de contas com o passado não seria realizado. Não obstante, aumentavam-lhe o débito. Parou. Inclinado, as mãos nos joelhos, parecia inútil prosseguir. O ronco estrondoso do motor do Fusca prenunciava o automóvel despontando na rua em que Caio Túlio detia-se arcado. Os faróis redondos apontaram na sua direção, banhando-o com o brilho vergonhoso da derrota iminente. Desolado, um breve filme de sua história recente passava em sua mente. Olhou para o chão, mas não viu o piso de paralelepípedos. Enxergou o próprio reflexo, vinte anos mais novo, distorcido sobre a poça d´água. Dizia-lhe que os ventos do destino eram capazes de soprar na direção contrária em um estalar de dedos. O garoto do

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paralelepípedo estalou seu dedo médio, esfregando-o contra o polegar, e desapareceu. A alucinação fez o jovem empresário compreender que era preciso resistir. Randal desceu do carro para abordá-lo, esticando o braço na direção do revólver guardado no coldre, quando Caio Túlio deu-lhe as costas e retomou a corrida, dobrando a primeira rua à direita. Embrenhava-se no matagal, que surgira inesperado, em um lance de sorte que tomaria por intervenção divina.

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- Os reforços chegaram, câmbio. Do rádio do carro, observando o terreno por onde o Pereira Inácio sumiu de vista, Randal ordena, impaciente. - Mande que venham depressa! - Para onde, senhor? - Para a mata atrás do Sierra Tropical!

*****

A vegetação fechada não concedia que enxergasse um palmo à frente do nariz. Avançava por entre galhos pontiagudos e plantas espinhosas, que lhe feriam os braços, rasgavam-lhe as roupas. O terreno acidentado e a pressa com que tentava vencê-lo

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derrubaram-no por diversas vezes, ocasiões em que não raro se levantava com cortes no rosto fustigado pela mata densa. A determinação irracional com que prosseguia era apenas isso, um impulso instintivo que fazia com que continuasse a despeito da facilidade óbvia com que se captura um suspeito em uma cidade com o tamanho e a geografia de Serrópolis. O mato alto, escuro como o breu e tudo o mais em volta, descortinava-se à força em sua frente, folha após folha, tombo depois de tombo, até o ponto luminoso, de um brilho fraco crescente, que aparecia ocasionalmente ao sabor do balanço da vegetação. Demorou para que o foco brilhante, cada vez mais luminescente, guiasse Caio Túlio até debaixo da janela do único quarto aceso no Sierra Tropical. - Penteado! Chamava pelo advogado, tom de grito, volume de sussurro. - Sou eu, Penteado! O latido dos cães farejadores e os fachos de lanterna que perscrutavam o terreno atrás dele impeliram o empresário à ação imediata. Caio Túlio dispôs de suas últimas energias para, em um esforço possível apenas àqueles a quem não resta esperança alguma, escalar a parede do hotel e invadir o quarto de Gabriela Rios.

*****

Adormecida debaixo das cobertas, o volume projetado pelo seu corpo desenhava os contornos da sua silhueta afinada, absolutamente oposta à do robusto Doutor Penteado. Diferença imperceptível para quem, como Caio Túlio, escapava de um cerco policial. - Acorda, Penteado! - o empresário sacudia a jornalista, convicto de que no hotel aparentemente deserto o único hóspede do Sierra só podia ser o seu advogado. Enganase, porque havia dois, e tinha, justamente, se enganado de quarto.

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Gabriela desvira-se lentamente, descobrindo o rosto. A visão enuviada e o torpor com que habitualmente acorda atrasam-lhe a percepção de que não se trata de um despertar natural. Horrorizada, ameaça o grito instintivo e agudo, que se precipita da garganta, mas não atinge o ar em alto e bom som como o faria não fosse a intervenção do intruso. Caio Túlio tapava-lhe a boca com as mãos enquanto pedia desculpas, implorando por silêncio. A reação de Gabriela surpreendeu o Pereira Inácio, temeroso de que dificilmente conteria os protestos da moça. Considerou que à repórter não poderia ocorrer outro propósito para a invasão de um estranho durante a madrugada senão o de molestá-la. Gabi, porém, não demorou para se acalmar e assentir que colaboraria enquanto os guardas batiam à porta do único aposento do hotel que acusava vivalma. “Abra, é a polícia!” - Rápido, debaixo da cama – ordenou, depois de desvencilhar-se de Caio Túlio. - Não vai me entregar? - Não. - Por quê? - Ora, se esconda logo e deixe de perguntas. Caio Túlio esgueirou-se para debaixo da cama às voltas com as ameaças de arrombamento do delegado. Pela segunda vez no dia ajudavam-no sem que houvesse um motivo aparente, e a julgar pelo fracasso do auxílio do carcereiro era natural que estivesse reticente quanto à cooperação espontânea da jornalista. Deitado de bruços, as pernas voltadas para a cabeceira, pôde ver e ouvir com clareza quando Gabriela abriu a porta para os policiais. Confiante, ela indignava-se do inoportuno atrevimento dos guardas, que a surpreendiam em trajes de dormir durante a madrugada. Embaraçado, Randal experimentava do mesmo espanto de sua presa encolhida debaixo do leito, certo de que aquele quarto pertencia ao doutor Penteado. Desejou retirar-se, constrangido. A responsabilidade do cargo e o cavalheirismo de sua personalidade impediram que ele descesse os olhos na direção do corpo da jovem - preocupação ignorada pelos subalternos, envergonhando o delegado que se apressou em acatar a sugestão da moça para que procurasse pelo advogado do fugitivo, e não por ela. Antes, porém, o rigor do

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homem da lei fez com que a encarasse uma vez mais, e a advertisse com severidade de que tornaria a interrogá-la no dia seguinte. - Já pode sair, eles foram embora. - Sim, eu sei, mas vão voltar - replicou depois de escorregar para fora do abrigo, -, devo ir embora. - Não, você não vai, precisa sentar e escutar. Ninguém voltará aqui hoje continuou - e talvez você saiba melhor do que eu que não há como fugir desta cidade. Estará mais seguro aqui, pelo menos até amanhã, ou que a situação mude de figura. Caio Túlio não duvidava que Gabi estivesse certa, ele próprio convencido de que o delegado não descansaria enquanto não o devolvesse, vivo ou morto, ao xadrez. O que fez com que obedecesse, no entanto, não foi a lógica do raciocínio, mas o “sentar e escutar”, expressão aberta, que bem serve a qualquer propósito, mas que no caso dele repercutia fundo em sua alma perturbada por incidentes além da sua compreensão. Gabriela pediu a Caio Túlio que se sentasse na banqueta em frente à penteadeira enquanto aconchegava-se ao seu lado, sentada na beira do colchão, as pernas cobertas pelo edredom surrado do hotel. Cuidava guardar uma distância respeitosa para que não fosse mal interpretada quanto ao teor das revelações que estava por fazer. Acertou em insistir para que ele se sentasse, e melhor o faria se lhe tivesse providenciado um assento mais confortável, tamanho o terror com que Caio Túlio a escutava. Afinal, o verdadeiro assombro é aquele que projeta no rosto do interlocutor uma não-reação, e foi desse modo estático que a expressão do jovem se comportou durante os vinte ou trinta minutos que a repórter gastou inteirando-lhe dos assuntos de seu interesse. A história, demasiado fantasiosa para um ouvinte médio, guardava a desvantagem de não colaborar, ao menos superficialmente, para a solução do crime que vitimara Inezita. Esclarecia, no entanto – e nisto era pródiga, mesmo que pouco crível – os motivos da misteriosa crise familiar que abatera os Pereira Inácio, fazendo com que Caio Túlio retornasse à cidade da maneira como tinha feito. Desorientado, o empresário desceu do banquinho e sentou-se no chão, apoiado contra a parede, olhar desfocado, perdido no nada. Acreditara em cada vírgula do depoimento da repórter, agora em pé ao lado dele, aconselhando-o novamente a passar a noite escondido no quarto. Era um

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lugar seguro, tanto quanto possível. Gabi contou, também, que havia ligado para Tomé. O cinegrafista estava a caminho. Na tarde seguinte, a dupla da emissora procuraria Ludovico em sua casa, e decerto retornariam de lá com melhores informações. Mal sabia ela que o vampiro a surpreenderia no dia seguinte, com um misterioso e antecipado convite para que o entrevistasse. Pela manhã.

*****

O indivíduo parado impassível defronte à porta ainda aberta intriga o advogado. O que podiam querer agora? A escuridão do corredor confunde a visão do provecto jurista, que imagina tratar-se do delegado ou de um dos seus guardas. A polícia de modo algum demonstrou para com o Doutor Penteado a mesma boa vontade que declinara à repórter. Quarto invadido à revelia, haviam esquadrinhado cada canto do aposento onde existisse a mais remota possibilidade de se esconder um homem. Como não encontrassem sujeito algum, esvaziaram gavetas, espalharam roupas e reviraram os pertences do hóspede à cata de qualquer pista que pudesse indicar o paradeiro do fugitivo. Abandonaram apressados o Sierra, ansiosos porque haviam perdido o rastro da presa em meio àquele entra-e-sai nos corredores do hotel. E agora lá estava aquele homem estacionado diante da porta, sem nada responder ao questionamento do porquê de estar ali imóvel. Sequer fazia menção de que pudesse adentrar o cômodo, permanecendo estático naquela posição feito uma estátua de bronze. Penteado largou a muda de roupas recém-dobradas sobre a cama e foi ter com o sujeito, aborrecido com mais esta perturbação. Não satisfeitos em fazê-lo arrumar a bagunça que fizeram, incomodavam-no novamente em busca de mais esclarecimentos. Do ponto onde se encontrava, a não mais do que quatro ou cinco metros do visitante, era impossível que lhe enxergasse o rosto. Distinguia apenas os contornos do

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corpo imerso na penumbra do corredor semideserto. Um calafrio preveniu-lhe de que aquela figura alta e robusta que aguardava por ele não respeitaria os princípios e procedimentos que norteiam a prática policial. Não. Aquele vulto indistinto julgava-se acima das regras, além do alcance da lei e à mercê de suas próprias vontades e interesses. O primeiro e vacilante passo do sexagenário na direção do estranho serviria apenas para demarcar a posição do cadáver estirado no chão. O coração alvejado do doutor Penteado bombou sangue por sobre o carpete felpudo, tingindo-o de vermelho. Seguro da missão cumprida, o anjo da morte recolheu a arma para dentro do bolso do sobretudo. A vítima, de bruços, olhos vidrados na direção do executor, gastou seu último sopro de vida tentando em vão compreender os motivos daquele que antecipara o dia do seu juízo final.

*****

Recebera o recado nas primeiras horas do dia; o vampiro queria vê-la, e não iria tolerar recusas ou postergações. Munida apenas do gravador oculto na bolsa, seguiu sozinha, ignorando os conselhos de Caio Túlio – embora os admitisse carregados de prudência e bom senso. Como não dispunha de tempo para esperar pelo cinegrafista, pediu a Dolores que o avisasse para encontrá-la na mansão assim que chegasse. O desejo urgente da criatura devia ser saciado sem demoras. Às nove da manhã, lá estava ela com o dedo no interfone. A empregada abriu a porta e a convidou para entrar, Ludovico a aguardava. Observando aquela moça que a servia, intuiu que avançava inadvertidamente nos domínios do sobrenatural. Temeu pela sua sorte, considerando que talvez não valesse a pena arriscar a alma em troca da fama, da fortuna e do sucesso na profissão. Encontrava-se, todavia, envolvida demais naquela trama para que tivesse a opção de desistir agora. O rosto e o corpo de Lurdes foram o

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que despertaram a percepção da morena, eis que sugeriam estar diante da filha, quiçá a neta, daquela serviçal que a atendera quando da sua passagem anterior. Não cogitou, porém, esta hipótese, como o faria qualquer indivíduo privado do acesso às informações que a repórter obtivera. Lurdinha acariciou o ombro do mestre e estendeu o braço livre na direção de Gabriela, cotovelo flexionado, palma da mão para cima. Um gesto que servia para apresentá-la, mas que um espectador malicioso poderia interpretar como se a ofertassem em uma bandeja. - Procuraria por mim, presumi - Ludovico a cumprimentou, cavalheiresco, beijando-lhe o dorso da mão. - Achei por bem antecipar-me. - Encantada. Creio que não tivemos a oportunidade de nos apresentarmos formalmente, não é? Gabriela Rios... - Decerto que não. Lurdes, sirva-nos o desjejum na sala, a senhorita Rios irá me acompanhar. Gabi assentiu. Enquanto o seguia, teceu um comentário tão elogioso quanto mentiroso sobre a casa e o gosto da decoração, uma vez que a considerava pouco ventilada e excessivamente soturna. Como a cada investida recebesse invariavelmente em troca respostas muito econômicas, percebeu que dificilmente controlaria os rumos da conversa, e que a entrevista com o vampiro se transformaria em um processo duro e espinhoso no qual qualquer arremedo de história deveria ser arrancado à força ou, preferivelmente, com muito jeito. A lógica da jornalista talvez não estivesse de todo comprometida, mas, seja como for, precipitara-se na avaliação. - O que deseja saber? - Perdão. - De mim, o que quer saber? - Vim como convidada - despistou. - Veio a convite, o que é diferente, porque não tomo seu comparecimento por cortesia.

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Gabi receou que estivesse demasiado exposta naquele encontro. O plano original era que fosse à mansão na companhia de Tomé e escancarasse apenas em parte as suas intenções, sob um pretexto qualquer de que trabalhavam em um documentário sobre a história da cidade ou algo do gênero. Confiança estabelecida, cuidaria lentamente de aliciar o sujeito para que revelasse tudo quanto desejava descobrir. Ocorreu que fora pega desprevenida. Subestimara Ludovico, e para sua própria segurança era natural que se postasse na defensiva, investigando sobre até onde iriam os conhecimentos do anfitrião sobre os reais propósitos dela. Iam longe. - Permita-me esclarecê-la, pois perceba que é inútil esconder-se de mim, ou preocupar-se em tomar precauções desnecessárias. Conheço a razão por que veio, e, mais do que isso, estou a par de tudo quanto a senhorita sabe. - Quer dizer que concorda - interrompia - em me contar o que vim ouvir. - Sirva-se - devolveu o vampiro, enquanto Lurdinha espaçava entre eles a travessa de brioches acompanhada do café quente e forte. Ludovico fitou com desprezo a refeição que oferecia. Àquela hora, habitualmente repousaria confinado em seu caixão; que abrisse esta exceção para receber Gabi era exclusivamente por necessidade. O enjoo à mesa não impediu que desfrutasse daquele encontro e da agradável companhia da jovem que despertava sua simpatia. Talvez a ponto de fazê-lo mudar de ideia sobre o destino que reservava para ela. - O caminho da fama e da fortuna é tortuoso, minha cara. São muitas as maneiras pelas quais se pode atingi-las, a depender da escolha que se faz e do preço que se está disposto a arcar. Não obstante, cada um desses trajetos é repleto de desvios, atalhos, becos sem saída e de sinalização confusa - Ludovico empreendeu uma breve pausa em seu discurso, concluindo-o tão logo se assegurou de que a morena o compreendesse conforme pretendia. Gabi sorveu o café da xícara, devolvendo-a ao pires, medindo seus gestos e escutando com atenção. - A escolha que fez, com a qual inocentemente tenta me ludibriar - ouviu-se a xícara da jovem chocando-se contra a porcelana, embora ainda a sustentasse entre os dedos trêmulos –, não deixa de ter sido engenhosa. Corajosa, sobretudo. Há de convir, porém, que não pode me interessar em nada que a senhorita atinja seu propósito às minhas custas, prejudicando-me de uma forma que não poderá compreender.

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Uma última e desesperada tentativa de atribuir tudo aquilo a um mal entendido foi a defesa da repórter, que cogitou escapar dali o mais rápido que podia para nunca mais voltar. O comando sereno do vampiro bastou para demovê-la da intenção de retirar-se. Gabi finalmente compreendeu que não poderia haver segredo entre eles, ao menos da parte dela. - Fique. Não posso consentir que saia enquanto discutimos assuntos em aberto e pendências em haver - Ludovico levantou-se e passou a rodeá-la, caminhando numa órbita ampla que compreendia a mesa de centro e ambas as cadeiras. - A essa altura, imagino que deva compreender que não existem alternativas para o seu caso, e que eu me encontre de mãos atadas quanto à resolução do seu destino. - Não quero te expor a quem quer que seja - defendeu-se - não represento perigo algum! Os olhos da morena começaram a lacrimejar, pressentindo que o vampiro não tardaria em tomar aquela discussão por encerrada, e com ela sua própria vida. - Junte-se a mim - ofereceu piedoso. - Nunca, prefiro morrer. Ou que me deixe ir - reconsiderou. - Não me puna com essa maldição, é o que peço, apenas. - Mito! Perceba... - pediu que olhasse em volta e contemplasse a opulência da residência –... não me tem sido tão ruim assim. Ludovico correu os olhos pelo cômodo ricamente ornado, não apenas para impressioná-la, mas também para certificar-se de que Lurdinha não os escutava. Confessou a Gabi que se sentia só. O vampiro contava mais de quatro séculos de vida. Tivera muitas companheiras, confessou, algumas paixões, uns poucos amores. A todos esses sentimentos vira arrefecer. Não pela morte, mas, antes, pela passagem do tempo. Não havia ardor que suportasse o envelhecimento da mulher amada. Resistira à tentação de convertê-las, talvez tomado de escrúpulos, convicto de que fazê-lo não era do seu direito. Impossível determinar se Ludovico era sincero quanto ao teor do seu relato, ou se o proferia apenas para compadecê-la. O coração dele, exposto, fraquejava o ímpeto

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dela em optar pela morte com a mesma convicção que o fizera instantes atrás. Apercebendo-se da dúvida – a morte, afinal, é uma solução deveras drástica para não admitir vacilos –, o vampiro a tomou pelos braços e fez com que ela se pusesse em pé, de frente para ele. A imortalidade e a juventude eterna sempre exerceram seus encantos e fascínios, e com a bela morena não seria diferente. Encarando-a de um modo penetrante, como homem algum poderia fazê-lo, Ludovico escorregou suavemente os dedos pálidos pelo pescoço de Gabriela. Os caninos afiados, então reclusos, projetaramse da boca do vampiro. Quis livrar-se dele, mas não teve forças, envolvida pela criatura em um estado quase hipnótico. - Gabi! Tomé adentrou a sala, interrompendo o ato antes de consumado. Ludovico não podia crer que Lurdes tivesse permitido aquela intromissão. “Veio vê-la”, introduziu a criada. A dupla de jornalistas deixou a mansão sob a anuência do dono da casa. Estava certo de que os dois não iriam longe, tampouco revelariam coisa alguma do que tinham presenciado. Parcialmente certo...

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CARTAS

1

Cara mãe,

Desculpe-nos, a mim e a Antonieta, do longo tempo que estivemos sem lhe dar notícias. A senhora, porém, haverá de entender que o estilo de vida o qual forçosamente abraçamos nos impede que a visitemos, bem como nos constrange de manter contato frequente enquanto não pudermos dar termo resolutivo ao mal que nos aflige. Desde já, peço-lhe que não se assuste com o recebimento desta carta. Esteja certa de que se a contatamos depois de prolongado recesso, não o faríamos senão para comunicar-lhe boas novas – e pedir que nos auxilie a dar cabo nesta maldição a qual com frequência nos referimos. Estivemos, como bem sabe, a peregrinar por todo canto do mundo em

busca

de

nosso

propósito.

Inicialmente,

era

a

cura

que

procurávamos, mas devo confessar que a escassez de informações (e o teor negativo do pouco que nos chegou) fez com que desviássemos lentamente o foco de nossas andanças. A vida em trânsito passou a acobertar os crimes hediondos que a sanha por sangue nos impôs. O rastro tenebroso de nossa passagem encheu de pânico as comunidades das quais no servimos, embora pareça claro que de modo algum tenham atinado para a verdadeira natureza de nossa condição.

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A sucessão de noites em claro e dias em trevas (não faço gosto em alongar-me na descrição do que se supõe perpétuo) solidificaram em nós uma firme predisposição para a conduta vil, egoísta e inconsequente, de modo que já nos conformávamos da nossa sorte quando casualmente encontramos nosso malfeitor. O vampiro não nos reconheceu de imediato, apenas sabia que estava entre iguais. Foi preciso que nos apresentássemos para que enxergasse em nós o produto da noite fatídica em que se aproveitou da embriaguez alheia para discorrer acerca das maravilhas da eternidade. Não houve - respondo por mim, mas creio que Antonieta compartilhe deste sentimento – desejo de vingança ou acerto de contas. Queríamos respostas, e não poderia haver sujeito mais capaz de fornecê-las do que o nosso criador. Entre um e outro gole do néctar que alimenta o sobre-humano vigor vampiresco, cortesia de nosso cúmplice (a vergonha faz com que prefira

poupá-la

das

circunstâncias

desta

pequena

reunião),

surpreendeu-nos duas vezes. Primeiro dizendo haver fundamento em nossa vontade, pormenorizando o método segundo o qual deveríamos proceder. E por último - talvez resida aqui o espanto maior, uma vez que a conduta anterior é relativamente simples –, revelou a mim e à minha esposa o local onde poderíamos confrontar a origem de nossa condenação. Espero, minha mãe, poder contar com o seu auxílio. Voltaremos a Serrópolis tão logo possível. Antecipo que não retornaremos sozinhos. A tarefa que nos foi imposta carece do auxílio de nosso instrutor. Naturalmente, não pretende ajudar gratuitamente, e neste ponto se faz necessária a colaboração da senhora. É provável que ainda agora esteja a caminho, como nosso enviado, preparando nossa chegada. Procurará um lugar para morar e, pelo que me recordo, não existem opções à sua

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altura em Serrópolis além da nossa mansão. Peço-lhe que ceda, a despeito do inconveniente da mudança.

Explicarei devidamente os

motivos na ocasião adequada. A propósito, nosso criador, o vampiro que irá procurá-la, atende pelo nome de Ludovico.

Ávido pela mortalidade,

Eliseo Pereira Inácio

66


2

À senhora minha sogra,

Escrevo-lhe esta carta a pedido de meu marido, que insiste para que tenhamos o melhor dos relacionamentos a despeito das desavenças que tivemos no passado. Eliseo está bastante entusiasmado com as oportunidades que se descortinam à nossa frente, e prefere que iniciemos nossa nova vida em harmonia com o que nos restou da família. Pois bem, sendo assim, sem mais delongas, pretendo ir direto ao propósito desta carta. Antes, uma última recomendação: empreenda uma breve pausa na leitura, respire fundo, e prepare o espírito para revelações um tanto surpreendentes. Bem

posso

imaginar

que

a

senhora

deva

ter

se

sentido

extraordinariamente sozinha desde o advento da nossa partida e o desaparecimento de seu neto. Que tenhamos voltado a nos corresponder deve tê-la enchido de vida, sonhos e esperanças – especialmente porque, creio, deva ter apreciado o teor da carta de meu marido. Nesse sentido, estas linhas que redijo agora acalentarão ainda mais as renovadas esperanças da senhora. Estou a par de que a senhora, assim como Eliseo e eu, esteve este tempo todo nas sombras quanto ao paradeiro de meu filho Caio Túlio.

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Tivemos

nós,

os

pais,

motivos

próprios

para

não

procurá-lo

(desnecessário explicitá-los). O momento e a conjuntura, todavia, mudaram. O método descrito pelo nosso criador, segundo o qual atingiremos nosso objetivo, exige a presença e a participação de meu filho. Dito isso, passamos a nos esforçar para localizá-lo, o que não foi de todo difícil com a ajuda de companheiros nossos sempre dispostos a colaborar em troca de favores ao nosso alcance. Sim, minha sogra: seu neto está vivo, sadio e, diga-se, honra o nome da família com suas realizações profissionais - principalmente quando se leva em conta o ambiente turbulento em que se desenvolveu. Não apenas o localizamos, como travamos efetivo contato. Não pessoalmente, por certo. A precaução fez com que fizéssemos uso de intermediários, nas duas pontas: um mensageiro nosso contatou o advogado

pessoal

de

Caio

Túlio.

Evitamos,

assim,

perguntas

inconvenientes às quais, por enquanto, não podemos (nem devemos) responder. pais

não

Pedimos ao advogado que avisasse nosso filho de que seus tinham

morrido.

Estavam

vivos,

e

dentro

em

breve

retornariam a Serrópolis para vê-lo. Admito que parece difícil prever com exatidão se Caio Túlio levou a sério a mensagem, ou mesmo se, tendo acreditado nela, resolverá por nos reencontrar passados tantos anos. Temo que ele não apareça e medidas adicionais se façam necessárias – estou, no entanto, otimista. Algo me diz que muito em breve meu filho retornará à sua cidade natal. Quando o fizer, não vejo motivos para que não a procure enquanto espera por nós. Pedimos que, caso ele recorra à senhora, hospede-o da melhor maneira possível, pois o garoto nos é muito útil. Peça-lhe que aguarde: mais cedo do que imagina estaremos ao seu lado. Não o mime.

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Atenciosamente, Antonieta Pereira Inรกcio

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3

Querida mamãe,

Como

tem passado? Recebemos ontem sua resposta. Fiquei

bastante contente em saber que a senhora se dispôs com entusiasmo a nos ajudar. Partilho do mesmo otimismo, devo dizer. Finalmente parece ter chegado o momento em que se fará luz sobre nossas vidas há tanto imersas em uma escuridão profunda e depressiva. O clima primaveril que paira sobre nossa casa tem contribuído, inclusive, para aplacar quase

por

completo

a

sede

maldita

a

que

fomos

condenados.

Impressionam-me os efeitos que um bom estado de espírito empreende ao corpo e à alma. Objetivo e prático como sempre fui, a senhora deve estar imaginando que eu não escreveria apenas para partilhar do bom humor que tem me feito inesperada companhia. De fato. Existe um assunto sobre o qual preciso tecer algumas considerações, e preciso fazê-las imediatamente a fim de que o planejado transcorra da maneira mais tranquila e retilínea possível. Chegou ao meu conhecimento que dentro em breve Ludovico estará em Serrópolis. Recordo-me de ter antecipado à senhora que o vampiro irá procurar um lugar para sua estada, sugerindo-lhe que ofertasse a residência da família. A instrução continua válida, em todo seu

conteúdo.

Pretendo,

apenas,

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instruí-la

mais

detidamente.

A


aquisição de nossa mansão não constituiria, como pode parecer, um capricho gratuito da criatura: Ludovico tem planos, dos quais somos coniventes e, de certo modo, partícipes - conquanto nossa atuação seja tão somente colaborativa e limitada no tempo. O vampiro intenta estabelecer-se em solo serropolense, e o nosso imóvel é o único da cidade que corresponde aos seus desejos de luxo e discrição. Diante de sua iminente chegada, cumpre desfilar algumas regras de convívio que julgo imprescindíveis – afinal, a inobservância delas, não raro, é paga com a vida. Primeiramente, será oportuno discorrer acerca do modo como proceder na presença de um imortal. É fortemente recomendável evitar referências a livros e filmes sobre o tema vampiresco, bem como demonstrar curiosidade sobre os mitos e lendas que envolvem nossa raça. A simples menção às proezas descritas no cinema e na literatura costuma deflagrar um exibicionismo mórbido absolutamente maléfico para quem o desperta. Para tranquilizá-la, garanto que não existe necessidade de esconder o terror caso o experiencie. Pelo contrário: tomará o medo por sincero respeito, e tal sentimento dificilmente o impelirá à ação. Nunca trilhe, porém, o caminho contrário - o do escárnio e do deboche. O comportamento de um vampiro diante de semelhante afronta é assustadoramente imprevisível. Caso de amor ou morte, com previsível preferência pela segunda opção. Feitas as necessárias advertências iniciais, passemos à parte que me preocupa em especial: é preciso adverti-la de que tratar com um vampiro exige cautela extrema. Acordos selados com meros mortais nunca são feitos em pé de igualdade, e de nossa parte o menor deslize servirá de pretexto para a traição. Recorra ao nosso nome sempre que se sentir sob ameaça, e cuide para atender os desejos da criatura sem criar maiores empecilhos.

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Desejo-lhe, minha mãe, a melhor das sortes. A mesma que desejo para mim e para Antonieta. Seguramente, em breve estaremos juntos.

PS: Espero que a senhora tenha providenciado sua nova residência. Não estranhe

se

acontecimentos

fantásticos

passarem

a

ocorrer

em

Serrópolis quando da chegada de Ludovico. Ocasionalmente, a visita do mal encarnado provoca fenômenos inexplicáveis à luz da lógica natural.

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4

À saudosa senhora minha mãe,

Sinto não poder trazer boas novas nesta última missiva que lhe dirijo antes de, por fim, abandonar o campo da retórica e partir para o da ação pura, simples e impiedosa. Feriu-me o que restou de alma o desabrochar da semente da desconfiança a respeito daquele em quem confiei tolamente. Absorto pelo que nos propunha, legitimado pela condição de nosso criador, não atinei para a veracidade e substância de seus propósitos – ou, antes, para a furtiva essência de seu caráter. Falhei uma vez mais ao avaliá-lo, como havia falhado no passado quando da nossa impulsiva e odiosa conversão. A diferença, por ora, e a ruína para Ludovico, é que não enganou, desta feita, a um impotente e indeciso mortal. Não. O peso avassalador de minha inescapável vingança recairá duramente sobre ele caso se confirmem as fortes suspeitas que se acercam de Ludovico. Ainda que o processo que nos devolverá à forma humana pareça deveras fidedigno, interrogações persistem quanto a seu comprometimento em nos libertar. Espero, honestamente e para meu bem, que não passem de intrigas as informações que colhi a seu respeito. Duvido, porém, que as tenha apurado erroneamente.

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A gravidade da situação repercute na segurança da senhora. Tenho razões para crer que Ludovico procurará livrar-se de qualquer vestígio que remeta ao nosso acordo, e a participação da senhora, mesmo que indireta, será vista como suficiente para justificar uma ação criminosa. Anteciparemos nossa volta a fim de tirar a limpo as dúvidas que nos assolam. Prepare, por gentileza, um quarto em sua nova residência para nos acolher durante nossa estada em Serrópolis. Fico feliz em saber que tenha logrado instalar-se tão rapidamente, e com conforto, em uma localização central da cidade. Espero que já tenha se habituado ao sobrado, e que o imóvel agrade a Antonieta. Quanto a Caio Túlio e o que faremos dele,

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CAPÍTULO 3

A LOCOMOTIVA DESACELERA pelos trilhos até a completa imobilidade. Os primeiros dias do inverno marcavam a chegada da primeira leva de turistas: abastadas famílias que lotam o saguão com suas valises repletas da inescapável indumentária necessária para se aproveitar – e enfrentar – o frio. Límpido, o céu azul sem nuvens franqueia o acesso dos pálidos raios de sol que aquecem aquela gélida manhã, fazendo reluzir os vagões prateados do trem de passageiros durante o desembarque. A opulenta estação de Cachoeiros constituía o principal acesso à estância turística de mesmo nome. Do vagão da segunda classe, ala dos menos aquinhoados, desce um personagem incomum, extravagantemente discreto e alheio à excitação em sua volta. Óculos de grau improvisados, de aros grossos e redondos, compõem o visual, acompanhados de um bigode postiço tão fino quanto suspeito que teima em pender para o lado. Trajando com deselegância um terno surrado dois números acima, ele deixa o vagão distraído. Na confusão do desembarque, perdera-se da companheira. As lentes dos óculos emprestados dificultam que a localize, obrigando Caio Túlio a suspendê-los frequentemente, apertando os olhos para enxergar mais longe. A dificuldade adicional em meio ao turbilhão de turistas circulando por todos os lados acabou por fazê-lo tropeçar em um amontoado de malas empilhadas, esparramando-as com estrondo pelo chão. Um espetáculo que alertaria metade dos presentes, entre risos espontâneos e ofertas constrangidas de socorro. O jovem levantou-se envergonhado, endireitou o bigode e ajeitou a armação. Com essa agora... Disfarçara-se para passar despercebido quando era, naquele momento, o foco das atenções. Em pé, imóvel junto ao balcão de informações, Gabriela leva as mãos ao rosto, decepcionada, para em seguida acenar na direção do companheiro. O empresário vai ao seu encontro, reparando tardiamente que no caminho entre eles havia uma roda de policiais. Pareciam encará-lo enquanto cochichavam entre si. Seu coração bate acelerado e ele prende a respiração ao mesmo tempo em que evita olhar para os guardas.

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Escuta brincadeiras entre eles. Ri por dentro, satisfeito: antes motivo de piada livre do que respeitado atrás das grades. Ao menos a cena serviu para que se encontrassem, Gabi relativizou, mas nada disse. Tinha outros problemas em mente, e preferia permanecer calada a externar seus receios enquanto não os tivesse bem resolvidos ou elaborados. Desafiando a sorte, tinha escapado ilesa do vampiro graças à providencial intervenção de Tomé e a um enigmático acesso de piedade por parte de Ludovico. Inesperadamente sã e salva, voltara ao seu quarto no Sierra a tempo de ajudar Caio Túlio a ludibriar o cerco policial. Foi quando contaram com o auxílio do prefeito. Paulino (como era possível que estivesse tão a par dos acontecimentos?) proveu os meios para que escapassem e se mantivessem à distância. Em uma manobra audaciosa, escondeu Caio Túlio no porta-malas de seu veículo a fim de burlar o bloqueio na ponte sem que os guardas desconfiassem. O que não tinha ficado claro era a troco de quê arriscava-se auxiliando desconhecidos. A contribuição do prefeito gerava dúvidas, por certo, que deixavam sua condição de aliado em evidente suspeição. Todavia, embora desconhecessem suas reais motivações, a justificativa declarada bastava para despertar a simpatia dos inexperientes foragidos. De acordo com Paulino, os pais de Caio Túlio o haviam ajudado no passado, e ele lhes devia esta retribuição. Ademais, temia que de algum modo Constâncio assumisse os louros pela recaptura do Pereira Inácio e nada pudesse fazer para impedi-lo. O jovem carregava sobre os ombros o peso dos assassinatos e da herança familiar, o que o deixava naturalmente impopular entre os munícipes. Na avenida em frente à estação, Caio Túlio estende o braço timidamente, chamando o táxi. Ele entrega ao motorista um pedaço de papel rabiscado com o endereço do chalé do prefeito. Após livrar-se dos óculos e do bigode senta-se no banco de trás, ao lado da repórter, e suspira aliviado. Pouco conversam, mas não porque tivessem brigado. O estágio seguinte da relação de cumplicidade que se estabelecia entre eles evoluía para um silencioso e respeitoso companheirismo. Possivelmente o extraordinário da situação, e a crescente complexidade dos acontecimentos que lhes diziam respeito, o tivessem deixado de mãos atadas quanto aos seus sentimentos pela jornalista. Havia questões mais urgentes, ponderou. Como provaria sua inocência?

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Talvez devesse resguardar-se e esperar que a situação se resolvesse sozinha em Serrópolis. Mas o que fazer quanto aos seus pais? O trecho rasgado da carta enviada à avó o angustiou profundamente. Encontrasse Eliseo e Antonieta depois de duas décadas e não saberia prever das suas próprias reações, que dirá as de seus transformados progenitores. Receberiam-no com um abraço fraternal ou tomados por uma fria indiferença? Talvez de algum modo pior, mas preferiu não pensar sobre isso. O refúgio forçado patrocinado por Paulino vinha a calhar para ambos. Precisavam organizar os pensamentos, definir os próximos passos e, de preferência, agir. Tão logo possível.

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Nove da noite, apenas, e havia pouca gente circulando pelas ruas. Habituais conversas em frente às residências ou nos bancos da praça tinham sido abruptamente suprimidas do cotidiano serropolense, deformando a atmosfera serena que dominara aquelas paragens em um passado recente. As crianças menores foram proibidas de brincar fora de casa, mesmo em pacatos finais de tarde quando voltavam correndo do colégio ávidas por aproveitar o resto do dia. A cordata e afável cidade havia se rendido à reclusão voluntária, ainda que tal medida fosse sem dúvida um exagero. A polícia e o prefeito garantiam não haver perigo imediato, e uma análise mais detida provaria que estavam com a razão: àquela altura o assassino serial devia estar longe. Não obstante, o principal suspeito e suas vítimas guardavam entre si um presumível vínculo causal que não se repetiria com qualquer outro morador da cidade. Ainda assim, tinham receio. Talvez pelo ineditismo de crimes daquela ordem por aquelas bandas. Resistia ao recolhimento um famigerado grupo de destemidos cavalheiros que frequentava religiosamente o bar do Lira - e que por perigo algum estava disposto a abandonar o sacerdócio. O equatoriano, em sintonia com os seus convivas, não deixaria de abrir as portas com a cidade ardendo em chamas. Em uma das mesas, Teixeirinha, Zenírio e o doutor Pestana repercutem o tema que perturba os corações e mentes da

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população: os assassinatos de Inezita Pereira Inácio e do doutor Penteado. Empolgado, o Lira serve mais uma rodada - a terceira, de uma noite que promete – para, em seguida, arrastar uma cadeira e sentar-se ao lado dos clientes. Dificilmente dividia a mesa com seus habitués. Preferia participar pontualmente, debruçado detrás do balcão. O movimento fraco de fregueses e a vontade de especular sobre assuntos urgentes fizeram com que abrisse esta exceção. Teixeirinha, o açougueiro, relatou aos demais que em seu estabelecimento não se falava de outra coisa. Entre lombos, coxas e sobrecoxas, a clientela só queria saber era dos crimes e do paradeiro do assassino Caio Túlio. Com ares de quem sabia mais que os outros, o doutor Pestana sorveu um gole do whisky que trouxe de casa. Um hábito censurado um sem-número de vezes pelo Lira no passado, até que este cansou de reclamar e resolveu fazer a concessão ao amigo. O médico era generoso no consumo dos petiscos. Baixando o tom de voz, o doutor Pestana segredou aos companheiros que havia comparecido ao Instituto Médico Legal em Rocha Grande, onde acompanhou a autópsia nos corpos de Inezita e do advogado em auxílio aos trabalhos da perícia. Ambos os crimes guardavam entre si evidente semelhança, atestou, suficiente para que se sustentasse terem sido perpetrados por um único assassino. Tiros certeiros no coração, disparados aproximadamente da mesma distância e, pela extensão e características do ferimento, deflagrados pela mesmíssima arma de fogo. Concluída a simplificada exposição científica, Pestana começou a divagar sobre o paradeiro do fugitivo a quem se atribuía a prática dos homicídios. Acreditava que o Pereira Inácio fugira para a capital e, se fosse esperto como parecia, de lá teria alçado voo mais distante. Para o exterior, talvez. O dono do bar pediu licença para discordar, tinha uma visão diametralmente oposta. Para o Lira, Caio Túlio continuava escondido em Serrópolis. Não havia como ter se desvencilhado do cerco do delegado. E, se o criminoso lá estava, era porque algum serropolense lhe dava guarida. O equatoriano perguntou ao Zenírio o que ele achava. Calado até então, o dono do Sierra Tropical apenas concordou em monossílabos, esvaziou seu copo e pôs-se a dormir. Conseguia pegar no sono em qualquer local e a qualquer momento, nem precisava estar tão cansado.

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Absortos, não percebem quando o delegado dobra a esquina cabisbaixo, caminhando pensativo na direção do bar. Ar de quem trabalhara sem descanso, seu semblante escancarava a frustração de quem, à custa de muito esforço, nada progredira. Randal chegava em busca de uma dose bem servida, quanto mais alcoólica melhor. Tanto para esquecer dos insucessos quanto para recobrar o raciocínio, efeitos ambivalentes da bebida. Decidido, adentra o recinto. Saber que não está mais sozinho faz com que afaste a postura derrotista, recompondo-se como que por obrigação na medida que o cargo exige. Teixeirinha acena em reverência e o convida à mesa enquanto o Lira providencia mais uma cadeira para o delegado. Animado com a ilustre companhia, o doutor Pestana oferece uma dose do seu whisky clandestino. Randal recusa, não queria ser descortês com o Lira, e pede ao dono do bar que traga-lhe uma dose de conhaque, bem servida. Uma vez atendido e acomodado, seus colegas provocam-no para que tome parte na conversa, inquirindo sobre se havia fatos novos nas investigações dos crimes. Randal respondia lacônico, esquivando-se de alimentar a curiosidade alheia. Parecia aéreo, mais que furtivo. Seus pensamentos, distantes daquela mesa de bar, aproximavam-se, no entanto, e para sua surpresa, de onde ele desejava que estivessem. Talvez fosse por isso que evitasse a discussão: não queria perder a trilha do raciocínio tortuoso que começava a tomar forma em sua mente extenuada. À medida que o copo esvaziava, o lado racional do delegado cedia espaço para uma abordagem mais intuitiva, que o instigava a tratar Caio Túlio como um mero suspeito antes de assassino inconteste. Pela primeira vez, o delegado passou a questionar-se sobre se podia haver um outro assassino à solta que não o Pereira Inácio. Sabia que as evidências todas depunham contra o empresário, encontrado na cena do assassinato de Inezita e foragido quando da morte do doutor Penteado. Admitiu, porém, que não existia um motivo plausível para que Caio Túlio matasse seu advogado. O doutor Penteado era um competente e renomado jurista da capital, e única vivalma disposta - e capaz - de ajudá-lo. Fazia-se silêncio à mesa quando Zenírio despertou assustado e quase foi ao chão, divertindo os presentes. Curioso, porque não se abalara a acordar quando a conversa esteve mais inflamada. Teixeirinha aproveitou o ensejo para um desvio nos rumos da conversa.

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- E a questão do espólio dos Pereira Inácio? Quando, afinal, tomamos posse dos imóveis? Zenírio espreguiçou, desgostoso. Que má hora para acordar... Não queria saber de imóvel algum. Vaticinou que aquela herança fora a ruína de Caio Túlio, e seria também a de seus beneficiários. O médico riu do tom profético daquela maldição, mas disse que também não queria receber coisa alguma. - Vocês falam assim porque estão bem de vida, não moram de aluguel - rebateu Teixeirinha –, pois pra mim seria é muito bem-vinda! - E pra mim também. Esse bar nem é meu - completou o Lira. - Ora, deixem de disputar esmolas! - debochou o médico. - Aposto que os dois vão votar em Constâncio. - Eu vou. - Mas é claro... - Não me admira – decepcionou-se. - Duas ou três promessas vazias bastam para conquistar o eleitorado... Acham mesmo que ele vai reverter os imóveis para o povo? - Bom, se vai eu não sei - disse o açougueiro –, mas fará o que estiver ao seu alcance, disso estou certo. - Pois eu voto em Paulino - devolveu Pestana. - Constâncio é muito chegado àquele forasteiro - meneou a cabeça na direção da mansão dos Pereira Inácio - e aquele sujeito me dá arrepios. Naturalmente indiferente a quase todos os assuntos, inclusive os políticos, desta vez Zenírio fez questão de concordar. Também via com reservas a aliança entre o vereador e o forasteiro. Eram todos, porém, unânimes em concordar que Constâncio reunia boas chances no pleito. O drinque mal chega ao fim e Randal despede-se do grupo. Tinha bebido pouco e falado menos ainda. Precisava ir para casa descansar, justificou. O delegado se deu conta de que o ambiente na cidade começava a ficar demasiado complexo para

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embriagar-se. Voltaria caminhando até a delegacia em busca do Fusca com a porta amassada.

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A saída do delegado foi a deixa para que também partissem. Sacou do bolso do casaco algumas notas e um punhado de moedas e as largou sobre a mesa. Muito mais que o suficiente, que fique com o troco, calculou generoso. Cabia ser gentil antes de dar fundamento aos receios daquele grupo. - Anda, vamos... - sua companheira o apressa. A primeira incursão pública do casal serviu para que confirmassem pessoalmente o que há tempos sabiam por terceiros. Suas fontes, era pesaroso constatar, não haviam se enganado. Espionar a conversa daqueles populares no bar contribuiu para que avaliassem melhor o terreno. Por onde andavam, para onde iriam e em quem pisariam. Quando voltassem ao sobrado, acordariam que não se começa uma guerra confrontando o inimigo mais forte ou o mais odiado. Era melhor avançar pelos flancos; desfazer o equilíbrio de forças antes de lançar mão do ataque frontal. O pupilo, primeiro. Depois o mestre. Antes, porém, um recado. Ah, receberiam um belo cartão de visitas! O Lira avista o casal se afastando na rua: - Com mil demônios! Ei vocês, voltem aqui! O que eu faço com esse dinheiro estrangeiro? Onde diabos arrumaram esse papel velho?! Tarde demais. As silhuetas dos dois esvanecia naquela súbita neblina que tomava conta da praça. - Escutou algo, querida?

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- Não, nada. Só aquele dono do bar, creio que nos agradecia. - Certamente – concordou, orgulhoso. - Dei-lhe uma polpuda gorjeta. - Fez bem. - Algo errado, Antonieta? Noto-lhe um enjoo na voz. - Percebes enjoo pela voz? - Às vezes. - Não se preocupe. Sinto um leve mal-estar, apenas. Deve ter sido a groselha. Genéricos não me caem bem. Eliseo concorda, esfregando o estômago. - Da próxima vez trazemos a bebida de casa.

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O clima no casarão era mais soturno que de costume, o que não deixa de ser notável em um ambiente naturalmente lúgubre como aquele. A atmosfera densa, perfumada de perigo iminente, oprimia os presentes àquela pequena reunião improvisada. Nunca haviam presenciado Ludovico em semelhante estado de nervos, embora pareça justo afirmar que não transparecesse medo ou ansiedade em demasia. Era, o mestre, um sujeito extraordinariamente inacessível em seus sentimentos e intenções, e carregava de tal maneira em sua postura enigmática que não lhe seria possível despertar empatia em quem não estivesse ligado a ele por forçosos laços de sangue. Sufocada em fantasias aflitivas, pois desconhecia os temores de seu amo outrora inabalável, a criada escancara a janela do escritório como que para libertar-se dos

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devaneios que a perturbam. O vento frio e úmido invade imediatamente e por igual o cômodo, incomodando Vlad a deitar-se sobre o tapete felpudo enquanto rosna em desaprovação. Insensível às intempéries climáticas, o vampiro ocupa seu assento, guardando silêncio. Saboreava o que restava da curiosidade dos súditos até que, enfim saciado, inicia os trabalhos. - Meus caros, temo ser o mensageiro de más notícias – apoia os cotovelos sobre a mesa e inclina-se para a frente, inquisitivo. - Existe um traidor entre nós. Constâncio e Lurdinha entreolham-se, Vlad não se comove. A fidelidade canina aos humanos aparentemente estende-se às criaturas da noite. - Não me refiro a vocês – balbucia um “imbecis” inaudível. – Quero dizer que temos um inimigo na cidade. - Ah... - Ufa! - Aliás, não apenas um. Dois, ao menos. - Refere-se à jornalista e ao Pereira Inácio, obviamente - antecipou-se o vereador. - Não – afastou a hipótese, convicto. - Classificá-los nesta categoria seria superestimá-los, embora os reconheça como peças importantes no tabuleiro sobre o qual nos debruçamos. Quando uso o termo “inimigos” refiro-me a forças iguais, ou muito semelhantes, às nossas. - Em Serrópolis?! – Lurdinha reagiu assustada. - Sim, em Serrópolis, nossa cidade. Admito que, quando soube, eu mesmo fiquei surpreso. Certamente que esperava pela chegada de nossos visitantes, mas não agora. Não tão cedo, nem nesses termos. - A companhia de iguais... - Constâncio ensaiava suas ponderações. - Reconheço que me aterroriza a ideia. Da minha espécie só conheço os de meu convívio, e quanto aos demais, bem... Preferia que não me fossem apresentados os inimigos. De todo modo, os adversários do meu mestre são meus também.

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- Decerto que sim, meu pupilo. Aprendeste a lição melhor do que os pérfidos que nos afrontam e que carecem de um corretivo... – escolhia a palavra - definitivo. Lurdinha achegou-se ao vampiro. Sua linguagem corporal expressava a lealdade que o vereador melhor transmitia em palavras. - São dois os que nos importunam - continuou. - Um casal, para ser preciso. Creio, inclusive, que não lhes sejam completos desconhecidos. - Dificilmente. Lurdes e eu raramente deixamos Serrópolis, e nunca soubemos de alguém como nós por essas bandas. - Como se chamam, meu amo? - Eliseo e Antonieta Pereira Inácio. Constâncio sorri aliviado enquanto se levanta da cadeira. - Engana-se, mestre! O senhor chega agora à cidade, penso que não conhece muito do que se passou por aqui no passado. Eliseo e Antonieta estão mortos há décadas. - Não há engano algum. - Não me diga que... - Constâncio retornou ao seu lugar, pasmo. -... Eliseo e Antonieta? - Sim, vivos. Mais do que vivos: imortais como nós. Os dois serropolenses não podiam crer. O casal mais influente da cidade; a tragédia que calou fundo nos destinos de Serrópolis. A morte deles nunca existira? O sangue que corria em suas veias, porém, não permitiu que se enternecessem. Reagiam de um modo diferente; uma lógica torta e enviesada que enxergava vingança onde podia haver compaixão. Pagariam, Eliseo e Antonieta, pela farsa com que enganaram a todos por vinte anos. Ludovico levantou-se e começou a caminhar pelo escritório enquanto esclarecia Constâncio e Lurdes dos detalhes da história e do risco que corriam. Contou que Eliseo e Antonieta encontravam-se instalados no sobrado de Inezita, de onde tramavam seus

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próximos passos. Contou, também, da origem do casal; o perigo que representavam e o modo como deveriam proceder para terminar com a ameaça. Recém-iniciados, deslumbrados com o sobre-humano vigor vampiresco e sob a indiscutível ascendência do mestre, não lhes era concebível questioná-lo, muito menos contrariá-lo. Seguiu-se uma série de desqualificações aos traidores da classe, interrompidas pelo vereador. O legislador indagava Ludovico das razões que tinham levado o casal a perder o controle. Imaginava se não haveria alguma alternativa que resolvesse a questão e poupasse os envolvidos de um confronto evitável. Ludovico não se enfureceu com o atrevimento do pupilo. Riu do vereador, apenas, com paternal arrogância. - Constâncio, és muito novo. Conhece pouco da sua própria natureza. A ingenuidade com que se comporta, dirigindo-me semelhante pergunta, só se compara à dos vampiros com que tratei. Naquele exato instante, quando Ludovico parecia que iria esclarecer os pormenores da sua relação com os Pereira Inácio, uma rajada de vento golpeia as portas da janela, fechando-as com violência. O estrondo silencia os presentes, evocando a lembrança da iminente presença inimiga. Subitamente apreensivo, Ludovico interrompe a explanação e instrui Constâncio para que fosse ter com os Pereira Inácio no sobrado abandonado. Uma “missão diplomática”, em suas palavras, com o intuito de ganhar tempo e ludibriá-los. Acreditava que Eliseo e Antonieta portariam-se com prudência diante do vereador e nada de precipitado fariam enquanto não se esgotassem as vias do diálogo.

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O que pode ser mais limitativo da liberdade, o cárcere ou a vida eterna? Não poder desfrutar da única vida que se dispõe ou dela não poder descansar jamais? O tempo trabalhava em sentidos opostos na ótica dos problemas desses dois. Como medir

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a angústia alheia quando se está confinado à sua própria? Não se falavam, logo não podiam saber que um e outro não padecia apenas dos seus próprios medos, mas dos de sua companhia. A habilidade de, mesmo em crise, enxergar-se no outro é a mais completa prova da existência de sólidos laços afetivos. Caio Túlio dormia torto na sala, as pernas apoiadas sobre o braço do sofá de dois lugares. Atrás dele, a lareira crepitava em brasas luminosas, aquecendo o chalé naquela gélida madrugada em Cachoeiros. Sonhava que um vampiro o perseguia, acossando-o, caninos em projeção. A criatura aproximava-se dele sacudindo os braços enquanto corria, improvisando uma precária e patética alegoria de voo. Despertou assustado, suando frio. No andar de cima, em seu quarto, Gabi se contorce na cama. Em seu pesadelo, era condenada por um crime que não cometera. Caminhava pela rua, alvo de olhares acusatórios; hostilizavam-na. Em desespero, tenta escapar dos populares em fúria, sem sucesso. Queria gritar por ajuda, mas não conseguia produzir som algum. Acordou trêmula, a garganta seca. Gabriela enrolou-se no cobertor de lã e desceu à cozinha, onde encontraria Caio Túlio enchendo um copo com água. - Servida? - Por favor. Constrangeu-se com a companhia-surpresa, desacostumada que estava a dividir a casa com um estranho - muito embora não estivesse propriamente em sua casa, nem fosse Caio Túlio exatamente um desconhecido. O empresário, porém, não era seu namorado, tampouco uma amizade antiga, daí o desconforto da situação. - Não conseguiu dormir? – Caio Túlio quebrou o gelo. - Não. Tive um sonho ruim, acabou me acordando. - Sonhou com o quê? - Prefiro não contar. Trocaram um breve silêncio. Curto, mas que pareceu durar horas. - E você, pegou no sono?

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- Sim, um pouco. Não faz ideia do quanto o sofá da sala é confortável perto do concreto da prisão. - O que não te impediu de acordar no meio da noite, não é? - Tem razão - reconheceu -, mas veja pelo lado positivo: tenho de volta o conforto. Só me falta a paz de espírito. - Só? - esboçou um sorriso, querendo se mostrar simpática ao otimismo daquela simplificação. Não se podia comparar um problema ao outro, sofás confortáveis são para problemas muito mais simples. Seguiu-se um novo e embaraçoso silêncio, desta vez quebrado pela jornalista que mudava de assunto. - Você não tem cara de quem mexe com jogo. - Como é a cara de quem mexe com jogo? - De gente mais velha, de bigode, com barriga de chope e corrente de ouro no peito sobre a camisa estampada. - Descrevendo alguém em particular? - Não, só o estereótipo. Achou graça. - Gostei de saber que não me enquadro nele. - Não gostou da descrição? - Não é isso. - É o que, então? - É que as aparências enganam. - Não entendi. Ficaria assim, sem entender. Para o espanto dos dois, o aparelho de som do quarto começou a funcionar sozinho no andar de cima. O som atingia a cozinha em alto

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e bom tom, interrompendo a conversa que começava a engrenar. Assustada, ela esconde-se atrás de Caio Túlio enquanto a introdução de Tocata e Fuga em Ré Menor impregna o ambiente. O estilo fantástico da composição de Bach transmuta o chalé em um recinto sobrenatural. Requeria audácia vencer os degraus que levavam ao aposento da repórter durante a execução involuntária de semelhante obra. O jovem, porém, pouco hesitou, amparado no papel de bravura que se aventurava a representar. Subiu pausadamente as escadas, pé ante pé, e adentrou o cômodo sem fazer barulho, na expectativa de surpreender algum intruso. Quando Caio Túlio finalmente alcançou o aparelho, olhou para trás, nos olhos de Gabriela, que o acompanhava à distância. - É o alarme do rádio. Parece que Paulino é fã de música erudita, quem diria? O empresário piscou o olho esquerdo, em um sinal que combinava alívio sincero e exibicionismo adolescente, e arrancou o fio da tomada. A música de Bach interrompida pela metade não traria, no entanto, a paz de volta ao chalé do prefeito. Shhhhkazaaaaaaammm! Do andar de baixo, um curto-circuito ruidoso provoca uma fagulha medonha, derrubando a energia da casa. Reflexo do curto ou coincidência extraordinária, a faísca detona a combustão que consome a estrutura de madeira com rapidez e violência. Ofegantes, assistem à distância ao fogo exaurindo o refúgio. Pareceu-lhes, agora, claro e límpido que não podiam fugir além do incêndio, e que não restava outro caminho senão o do confronto aberto de seus demônios. Havia durado pouco o refúgio no chalé. Gabriela Rios abriu a bolsa que salvou do incêndio, sacou da carteira e contou de quanto dispunham para o caminho de volta. “Vamos!”, comandou. “E, ah...”, contemplou a tragédia, “... você conta para o prefeito”.

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Se existe algo que possa ser classificado como um estado de alma coletivo, o de Serrópolis naqueles dias que antecediam a eleição era claramente indefinível, mas com grosseiros contornos de genuína angústia. Obrigação inoportuna ter de cumprir com o dever cívico durante a crise de segurança que assolava a cidade. Da praça, o relógio da Igreja completa a volta e começa a badalar o seu sino de bronze, indicando o início da madrugada. Constâncio bate à porta do sobrado uma, duas, três vezes. Nada. Sem obter resposta, cogita que Ludovico estivesse equivocado sobre os Pereira Inácio, mas não era o caso. Retorna frustrado à mansão, especulando o porquê de não o terem recebido.

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Eliseo e Antonieta não suportavam estar à deriva ao sabor da sorte. Consideravam terem sido enganados no passado, e o gosto da traição da fortuna é quase sempre amargo além do tolerável. Especialmente quando a origem da deslealdade parte de iguais. Redobra o pesar não poder contar com o apoio de quem nunca deveria negálo. Sendo assim, era natural que agissem ativamente para a consecução de seus objetivos particulares, e eles começavam por impedir a vitória de Constâncio. Haviam passado a madrugada em claro, como de hábito, desta vez ocupados com a falsificação das cédulas, preenchendo-as com votos para Paulino. Tão logo a apuração iniciasse, trocariam os malotes, garantindo a reeleição do atual prefeito. Ludovico nunca deveria tê-los incomodado, tampouco lançado os olhos sobre a cidade deles. O contragolpe eleitoral era apenas o começo.

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De volta no primeiro trem disponível, chegaram em Serrópolis nas primeiras horas do dia. Aproximadamente ao mesmo tempo em que um ressabiado Constâncio tomava seu rumo de volta para a mansão. Talvez tivessem cruzado com ele no caminho, mas, como àquela altura dos acontecimentos eram todos muito discretos, não teriam botado reparo mesmo que colidissem entre si. Enquanto a morena dava entrada no hotel, Caio Túlio contornava o prédio, embrenhando-se no mato à espera da janela aberta pela repórter. Ainda que tivessem retornado juntos, a jornalista e o empresário tinham estratégias distintas e conflitantes, e não se furtariam de executá-las individualmente se fosse o caso – ou mesmo de escondê-las um do outro. Gabriela Rios nada comentou com o seu companheiro, mas estava certa de que havia uma íntima conexão entre o vampiro e ela. Uma estranha forma de empatia que podia fazer com que a situação evoluísse para o seu bem e o de Caio Túlio. Instalada em seu quarto no Sierra, ela aproveita o sono do empresário para telefonar às escondidas para Ludovico. Do outro lado da linha, Lurdes faz as vezes de secretária e agenda a contragosto o encontro entre o amo e a jornalista. Não havia, por parte de Gabriela, um plano claro. Ela apenas ponderava, considerando a temerária experiência anterior, que não seria possível guardar segredo de suas ações por muito tempo, e que a sinceridade de seus sentimentos pudesse ser o bastante para sensibilizar a criatura. O que a jovem nunca saberia dizer era das suas próprias intenções com o vampiro, ou, antes ainda, do modo como conduzir a conversa com Ludovico. Ele a tentaria novamente, não restava dúvida. Embora conscientemente soubesse que não devia dar ouvidos ao vampiro e às suas ofertas, resisti-lo pessoalmente era completamente diferente. A criatura despertavalhe os instintos mais primitivos. Ademais, também havia Caio Túlio. Faria de tudo para ajudá-lo, mas por que o empresário a interessava tanto? Não sabia, nem queria, responder. Era inútil investigar das suas emoções juvenis quando tinha um encontro marcado com o destino. No final da tarde, iria confrontá-lo. Precaveu-se: um local público. Uma esquina à beira da praça onde a militância acompanharia a apuração dos votos.

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A despeito dos receios da população, o comparecimento às urnas foi em massa. Em grupos, grandes ou pequenos, os eleitores de ambos os candidatos tratavam-se com cordialidade. Não houve qualquer insinuação de conflito partidário, por mais que Constâncio e Paulino diferissem entre si. Era o caso de escolher entre a continuidade e a tradição de um contra a sedução e o risco do desconhecido do outro. Um dilema emblemático para uma Serrópolis que oscilava entre a vontade de permanecer pacata e a ambição e o saudosismo de um passado de progresso. Acentuava a singularidade deste inoportuno processo eleitoral o fato de que pairava sobre a cidade um clima de dúvida generalizada, e daí a relativa tranquilidade com que tudo transcorreu. Não houve arruaça, baderna ou coisa alguma que pudesse perturbar o voto de rosistas e inacistas - o que daria a falsa impressão de que nada de ruim estava por vir. Um eleitorado sempre dividido, mas raramente convicto, indicava que o resultado da abertura das urnas era absolutamente imprevisível.

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Caio Túlio acordou animado, ávido por explicar à companheira o que pretendia fazer. O empresário contou a Gabriela que sairia à procura do carcereiro que lhe facilitara a fuga. Queria ter acesso ao inquérito dos homicídios. Insistiu para que Gabi o acompanhasse, mas ela não lhe deu muita atenção. Disse que estava indisposta e que passaria o resto da tarde em repouso no quarto de hotel.

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Contrariado, ele escapa na surdina do Sierra, de boné azul e óculos escuros. Lamentou que a jornalista não lhe fizesse companhia. Poderiam reconhecê-lo sem a participação de Gabi compondo o disfarce, mas não era só isso o que o preocupava. Talvez ela estivesse perdendo o interesse nele. O jovem logo abandonou a autopiedade quando viu a oportunidade batendo à sua porta. Estava com sorte. Adionei voltava do almoço, andando despreocupado pela rua, quando foi abordado pelo fugitivo em frente ao restaurante da praça. Assustado, ele voa no pescoço do jovem. - Depois de tudo o que eu te fiz e o senhorzinho volta pra Serrópolis! – olhava ao redor para checar se alguém os observava. - Você é burro ou o quê?! - Calma! - tentava se desvencilhar do carcereiro, falando baixo para não chamar a atenção dos transeuntes. – Só estou fazendo o que me aconselhou. Quero provar que sou inocente. E você vai me ajudar de novo, meu caro. Adionei voltou a si. Menos agitado, disse a ele que o acompanhasse até o distrito, era horário de folga do delegado. O carcereiro o encaminharia até o quarto de despejo, o lugar mais apropriado e, paradoxalmente, o de acesso mais rápido e seguro para que estudasse os arquivos da polícia. O jovem acreditava firmemente na participação de Ludovico nos crimes, mas de todo modo restava prová-la, e a tarefa era mais difícil do que podia supor.

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A última urna havia sido selada e encaminhada ao balcão de apuração improvisado na praça quando a jornalista deixou seu quarto no hotel e dirigiu-se ao ponto de encontro. Com o jovem empresário ocupado vasculhando o caótico arquivo policial, Gabi estava livre para colocar em prática sua estratégia de confrontar Ludovico. Tivesse compartilhado seu plano com Caio Túlio e ele faria de tudo para demovê-la. Ela própria admitiria que tal encontro daria ensejo a consequências

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imprevisíveis. Arriscava-se, todavia, movida pelo imperturbável desejo de descobrir a verdade por trás do enigma que envolvia Serrópolis. Quando a conhecesse, faria sua escolha. Ludovico chegara cedo. O monstro a aguardava paciente e em silêncio, ora assistindo o movimento dos eleitores que passavam apressados por ele sem percebê-lo, ora encarando, meditativo, a parede de fundos da rua sem saída. Gabriela dobrou a esquina e caminhou vacilante na sua direção. Confrontá-lo na cidade, afastado de sua mansão, não era menos apavorante. O vampiro trajava um elegante sobretudo de veludo, tão negro quanto seus olhos e o chapéu de abas largas. A cabeça levemente inclinada para baixo impedia que lhe enxergasse o rosto com precisão, mas a jovem reconheceu que era ele. E ele sabia que ela seria sua. O fluxo intenso de transeuntes à frente deles desinteressava-se do que ocorria no beco escuro onde marcaram de se encontrar. Conforme a jovem se aproximava, sentia como se mergulhasse nas trevas. Um calafrio percorreu-lhe o corpo todo. Certamente esperava por um efeito diferente quando sugeriu de encontrá-lo em um espaço público. Sozinhos em meio à multidão, ela não teve a quem recorrer diante da ação resoluta do oponente. Ludovico não queria conversar naquele local, e Gabriela nunca esteve disposta a fornecê-lo outra opção. Melhor assim, pensou, enquanto raptava a repórter e a trazia para os seus domínios.

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O trabalhoso plano não era exatamente desafiador para uma dupla de vampiros, e conseguiram imiscuir-se sem maiores dificuldades entre os componentes da mesa de apuração. Estrategicamente posicionado entre os voluntários que separavam os malotes com as cédulas, Eliseo misturou os sacos com os votos falsificados entre os originais. Preparava-se para substituí-los quando Antonieta avistou ao longe a presença de Ludovico.

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- O que quer, Antonieta? Não vê que estou ocupado? - Ele está entre nós. - Ele quem? - Ora, quem mais... - Onde está? – rapidamente inferiu de quem se tratava. - Veja, no beco – apontou. - Conversa com aquela jovem. - Sim... Agora o vejo. Parece distraído, creio que não nos viu. - Melhor assim. Vamos logo com isso, Eliseo. Não é admissível que nos surpreenda nessas circunstâncias. Eliseo agarrou os malotes e sumiu dali com a companheira. Uma pena que, distraído, coletara precisamente os sacos com os votos adulterados.

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Desde que a dúvida assentou-se decisivamente em seu espírito na noite anterior, em uma despretensiosa mesa de bar, não parou de atormentá-lo. Afinal, era mesmo possível que Caio Túlio fosse inocente? Tinha que reavaliar suas conclusões, abordar ângulos que negligenciara confundido pela premissa de que não podia haver outro assassino que não o jovem herdeiro dos Pereira Inácio. Indeciso, Randal deixou o seu escritório e foi até o quarto de despejo buscar o inquérito. Algo passara despercebido, era preciso repassar os detalhes dos crimes. Qual não foi sua surpresa ao abrir a porta do cômodo e dar, de frente, com Caio Túlio de costas. Pulava a janela, o infeliz, alcançando a rua sem ser incomodado. Não o vira, por certo. O delegado, desta feita, hesitou em persegui-lo. Não pelo receio de reviver o

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fiasco da caçada anterior, mas porque, afinal, o que um suspeito de duplo homicídio fazia de volta na delegacia de onde tinha escapado? Cada vez mais propenso a acreditar na inocência do empresário, Randal concedeu que Caio Túlio fugisse e tivesse a chance de provar sua inocência por conta. Enquanto isso, trabalharia em uma nova linha de investigação. Chamou o guarda Campos. Ordenou-lhe que se dirigisse ao sobrado, local do primeiro homicídio, e zelasse pela preservação da cena do crime. Depois de finda a agitação na praça, o delegado Randal iria reabrir as investigações do assassinato de Inezita Pereira Inácio.

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Transtornado com as semelhanças entre os crimes e, mais ainda, com o conteúdo dos autos que o implicavam sem margem para dúvidas, Caio Túlio iniciou seu caminho de volta para o Sierra depois de vencer a janela do quarto de despejo. Cruzar a praça lotada fazia parte do percurso, mas ponderou que não devia se expor aos olhares da multidão. Alguém podia reconhecê-lo. Escolheu um caminho alternativo, contornando-a pelas ruelas que convergiam para o centro da cidade. Frustrado porque em nada o inquérito fazia menção a Ludovico ou a qualquer outro suspeito, o jovem, abatido, chutou uma lata de cerveja que estava em seu caminho. A latinha vazia levantou voo coisa de meio metro, escorregando por outros quatro ou cinco até se chocar contra o cesto de lixo. Resignado, apanhou a lata e deu-lhe o destino correto. Continuou perambulando quase a esmo por aquelas vias mal iluminadas, imaginando que deveria ter tomado as atitudes corretas desde o início. Notou, porém, que a despeito da situação calamitosa em que se encontrava, era difícil identificar onde havia errado de fato. Mentiu sobre a sua identidade desde quando chegou, é verdade, mas isso não tinha acarretado grandes consequências. De resto, havia procedido com correção. Injustiçado, não pôde deixar de considerar que era, naquilo

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tudo, uma grande vítima, e que o mundo parecia ter voltado a conspirar contra ele desde que os finados pais voltaram à vida para atormentá-lo. O hotel estava próximo. Podia ouvir o barulho dos populares na praça, mas não ficou curioso com a voz das urnas. Queria que Paulino, Constâncio e tudo o mais explodissem. Quem podia querer ser prefeito daquele projeto mal acabado de cidade? Saiu da rua onde estava e contornou a praça, escondendo o rosto, para em seguida cortar caminho por uma via ainda mais estreita. A última antes que avistasse os fundos do Sierra, onde retornaria ao seu quarto. Caminhava pensativo quando escutou um pedido abafado de socorro. Alucinava? So – hmmmppfff - corro! Em dúvida, correu até o final do beco de onde partiu o som. A voz abafada soara familiar. Chegou rápido, mas não viu ninguém. Havia apenas uma bolsa feminina caída no meio da rua, e ele foi ver de quem era. Abriu o compartimento principal: dentro, em meio à desordem, uma carteira com documentos. Era a bolsa de Gabi! Perdido na valise, um bilhete onde se lia, escrito à mão: “Ludovico. Praça-matriz. 19h”. Gabriela estava em perigo, precisava ajudá-la antes que fosse tarde demais. Mas como? O que fazer? Sequer podia recorrer à polícia. Resolveu ir até a casa do prefeito. Paulino podia queixar-se ao delegado em seu lugar, entregando-lhe a bolsa e o bilhete. O empresário, porém, atinou que somente a ajuda do prefeito e a colaboração da polícia não seriam suficientes contra aquele a quem ninguém ousava desafiar sozinho. Randal era honesto e diligente, mas não estava à altura da tarefa. Para salvar Gabi estava disposto a pedir o auxílio daqueles que o haviam abandonado. Seriam mesmo, ainda, sangue do seu sangue?

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Entrou planando pela casa, vindo da praça. Transtornado, retornou à forma humana. A apuração estava próxima do final, com as primeiras parciais apontando uma pequena vantagem a favor de Paulino. Conforme os trabalhos progrediram, porém, Constâncio tomou-lhe a dianteira, dando mostras de que não perderia mais. Eliseo não entendia o que estava acontecendo. Depois de tanto trabalho com os malotes, será que Ludovico sabotara a contagem depois deles? Isso explicaria o que ele fazia na praça. Foi Antonieta quem conferiu os votos trazidos para casa e reconheceu o erro, invadindo furiosa o quarto onde Eliseo se afogava em lamentos. - Já conferiu os malotes que largou na sala? - Decerto que não, por que o faria? - Quer que o diga? - Evidente. - Você não trocou voto algum, seu imbecil! - Como disse? - Trouxe de volta os mesmos malotes que levamos. Como pôde ser tão burro? O vampiro ferveu de ódio enquanto a esposa o ofendia. Definitivamente não era um bom momento para interromper o bate-boca entre Eliseo e Antonieta, mas certas pessoas parecem ter nascido para serem inoportunas. Mortalmente inoportunas. O guarda Campos subiu as escadas e deu de cara com a dupla discutindo enfurecida. Sacou do revólver e os intimou. - Parados, os dois! Peguem esses malotes e me acompanhem até a delegacia! Eliseo esboçou um sorriso sádico e caminhou inabalável na direção do policial. Desconcertado com a afronta, as mãos do guarda tremiam com a arma em punho.

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- Prefeito! Prefeito! Caio Túlio entrava na casa de Paulino. - Se acalme, homem! O que aconteceu? Já terminou a apuração? – perguntou, impaciente. - Não sei de apuração nenhuma. É Gabi! Foi sequestrada! - Calma, calma... Conte direito a história. Quem foi que ganhou? - Ora, me escute! Ludovico sequestrou Gabi! - Mas o que você faz aqui? Não deviam estar escondidos no meu chalé? - O chalé? - gaguejou. - Houve um acidente. O chalé queimou. - O meu chalé?! - Ludovico botou fogo nele - mentiu. - Miserável! – cresceu a revolta do prefeito, que caminhava nervoso de um lado para o outro. – Não se preocupe, darei parte na polícia desse maldito incêndio criminoso. - Prefeito, não será melhor deixar para resolver depois o problema com o chalé?

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Os primeiros raios de sol expulsam as trevas e dissipam o pesado clima de inquietude que pairava sobre os fieis correligionários de ambos os partidos congregados na praça. Com a luz, o doce gosto da vitória regozijava a maioria. Constâncio vencera por pequena margem. Serrópolis tinha um novo prefeito! Os rosistas, entusiasmados, principiaram sua marcha em direção ao prédio da prefeitura, a representação simbólica da vitória de fato. O pequeno e resistente grupo que atravessara a madrugada compensava o baixo número com animação. Seu deslocamento ruidoso acordava e contagiava os moradores das ruas por onde passavam, arrebanhando novos partícipes. Mesmo os inacistas, derrotados, acompanhavam o cortejo em silêncio, com curiosidade. Queriam saber do comportamento dos que chegavam ao poder. O prefeito recém-eleito não pretendia tomar parte das comemorações, mas viu-se obrigado quando ficou sabendo do vulto e da representatividade do levante. Encontrou-lhes defronte à entrada do Paço Municipal. Havia, no pátio, um mastro solitário onde se hasteava toda manhã a bandeira do município, marcando o início do expediente. Encontrava-se, porém, não vazio como se esperava, mas coberto por uma gigantesca lona vermelha, do alto ao chão, que pronunciava um volume disforme suspenso onde deveria estar a bandeira. A pequena multidão intimou Constâncio a improvisar as palavras da vitória. Disfarçando a má vontade, o prefeito eleito tomou seu lugar no púlpito e destilou seu discurso para deleite do eleitorado. Notou, porém, que diminuía o entusiasmo dos ouvintes conforme avançava em sua fala, mesmo que a proferisse cada vez mais inflamado. A plateia olhava para cima, cutucando uns aos outros, cochichando. Falavam do mastro coberto e do volume em evidência. O que era aquilo? Uma surpresa de Constâncio, talvez tenham pensado. Uma homenagem para ele, deve ter imaginado o vereador quando se deu conta do motivo do agito. Interrompeu o discurso, era preciso pôr fim àquela distração para que pudesse prosseguir. Indeciso sobre como anunciar a revelação do desconhecido, optou pelo silêncio. Constâncio segurou a ponta da lona com ambas as mãos e a puxou com força e pompa, em um movimento único. Contemplando o exposto, restou manter-se calado. Não por dúvida, desta feita, mas por absoluta certeza de que não saberia como reagir à figura

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revelada pelo deslizar da lona. Interjeições de pavor brotaram em uníssono da plateia em choque, prenunciando a dispersão de rosistas e inacistas. Pendurado enforcado no alto do mastro, o guarda Campos jazia seco feito uma uva passa, como se não lhe restasse gota alguma de sangue. Serrópolis nunca mais seria a mesma.

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CAPÍTULO 4

ANSIOSO, APROVEITA a madrugada e o vazio nas ruas para seguir em direção ao sobrado. Sempre ouviu dizer que preferiam as horas avançadas da noite, e considerou que a humildade com que os procurava, implorando-lhes um favor, era condizente com ceder-lhes as melhores horas do dia. Além do mais, sabia que nunca lhe caberia a posição de superioridade, escolhesse o meio-dia para ir ter com eles. Atormentado por fatos concretos, mesmo que fantásticos e de difícil assimilação, foi a iminência do reencontro que fez com que se desse conta da magnitude das dúvidas que o tomavam de assalto. Vinha em favor de Gabi, era ela o motivo manifesto para ter engolido o orgulho daquela maneira. O pretexto, porém, mascarava questões mais profundas as quais pensou ser capaz de mitigá-las indefinidamente. As conexões entre um e outro assunto pareciam cada vez mais indissociáveis. Senão pela pertinência temática, que talvez não houvesse, mas porque afligiam, afinal, o mesmo homem. As angústias emocionais impactavam-lhe o mesmo recôndito obscuro do subconsciente, e era preciso que tentasse aplacá-las em conjunto. Caio Túlio deteve-se à frente do sobrado, não sabia por onde começar. Não tinha antecipado uma estratégia de abordagem, como sempre fazia ao tratar de negócios. Evitara o ensaio com a ingenuidade de quem foge de um problema fingindo sua inexistência. Mas lá estava, à sua frente, a campainha do sobrado ocupado pelos pais. Esforçou-se para abstrair a mente de conflitos e apertou o botão em ato reflexo, rápido o bastante para evitar alongar-se em digressões a respeito. A porta abriu sozinha e a escada descortinou-se depois dela, intimidadora. Reconheceria o mal-aventurado ambiente onde o encontraram desacordado na noite da morte de Inezita. Sentiu um calafrio, seguido de nojo. Do andar de cima, alheia às impressões do visitante, parte uma voz feminina, fria e impessoal, ordenando que subisse. Esperavam-no. Avançou na direção do primeiro degrau e a porta fechou-se lentamente atrás dele, obstruindo a visão da rua iluminada. Vacilou sobre se devia

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recuar. Ficou. Estava definitivamente por sua conta agora, sob os desígnios imprevisíveis de seus progenitores. Completaria a ascensão andar acima para, ao final, ouvir mais próxima a voz que vinha do quarto da avó. - Aqui... A escuridão dominava quase por completo o corredor, fazendo com que os comandos que lhe dirigiam constituíssem a melhor orientação de que dispunha. Distinguiu no trôpego caminho do quarto o pequeno altar improvisado sobre o móvel de madeira. Ao lado das imagens, um pires e o pacote com velas. Acendeu duas, iluminavam poucos metros adiante. O suficiente para discernir duas silhuetas confortavelmente instaladas em poltronas individuais voltadas para a entrada do quarto. Parou sob o batente, hesitou por um momento. Lembrou de Gabi com Ludovico. Precisava da ajuda deles. Entrou no cômodo, aterrorizado com a presença daquelas figuras sombrias a medi-lo em silêncio. - Por que demorou tanto? - a voz feminina tornou a manifestar-se. Não havia emoção discernível no modo como se dirigiu a ele. Caio Túlio nunca saberia responder aquela questão. Apesar do medo que experimentava, percebeu que a arrogância da pergunta despertou-lhe ódio. Foram os dois, afinal, que o tinham abandonado. Os próprios pais. - Esperávamos que viesse - intercedeu Eliseo. - Estivemos próximos a contatálo. O empresário continuou calado, não quis interrompê-los. Que fizessem o primeiro movimento concedia-lhe vantagem, ponderou. Saberia dos sentimentos deles antes de contaminá-los com os seus próprios. Afinal, o que esperavam dele como filho e como se sentiam a seu respeito? Eliseo caminhou lentamente em sua direção, e deteve-se a não mais do que um metro de distância. A chama da vela iluminava seu rosto envelhecido. Caio Túlio sentiu o coração disparar, os sentidos em estado de alerta. Decididamente, a companhia do casal não lhe era reconfortante. - Sente-se.

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Eliseo ofereceu a poltrona, tentando dissimular o desconforto com que se absteve de escolher um vocativo para referir-se ao filho. Talvez quisesse tratá-lo de um modo mais íntimo ou carinhoso, mas ceder prematuramente à via da reconciliação soaria como se ignorasse duas décadas de ausência. Caio Túlio não fez menção de aceitar a gentileza. De sua parte, aguardava justamente os extremos no tratamento para explodir em revolta. Eliseo media habilmente as palavras para não municiar o destempero do jovem. Era curioso que, a despeito da latente tensão afetiva, o que serviu para uni-los naquele instante foram questões alheias à relação familiar. - Penso que se sinta merecedor de explicações nossas - considerou Antonieta. - Li as cartas, sei o bastante. Receberam com indisfarçável perplexidade a notícia de que a correspondência enviada a Inezita fora interceptada pelo rapaz. O impacto da revelação desconcertou a dupla, que não poderia ludibriá-lo com meias-verdades pinçadas ao sabor da conversa. Caio Túlio sabia das motivações deles. Conhecia, em detalhes, quem eram e no que se tornaram – ao menos a versão exposta nas cartas. Diante do filho, sentiram-se nus como nunca antes desde o evento da conversão, forçados a corroborar a narrativa das missivas. A potência sobre-humana da espécie de nada valia quando confrontada com as mais elementares fraquezas da existência. Talvez tivessem mesmo acusado o baque, pois a oportunidade não passaria despercebida. - Por que me deixaram?! – explodiu o Pereira Inácio, aos gritos. Eliseo e Antonieta o encararam com seus penetrantes olhos negros sem vida. - Por que não me levaram com vocês? – chorava, agora. - Estive tão sozinho. Vocês não sabem o que é estar sozinho no mundo. Eliseo chegou mais perto dele. Comovido tanto quanto uma criatura das trevas é capaz de estar. - Vejo que não leu as nossas cartas com a devida atenção. Não percebe, também, a nossa dor? Contemple nossa condição, e veja que também nos sentimos sozinhos. Se não o procuramos esses anos todos, foi unicamente porque decidimos poupá-lo. E se

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não o demonstramos afeto aqui hoje, entenda, é porque nossa própria natureza mudou. Não somos mais seus pais, meu jovem. - Pelo menos não do modo como um dia fomos - corrigiu Antonieta, agora em pé ao lado do filho e do marido. - Somos um eco distante daqueles que o criaram. A carne - estendeu-lhe o braço - é a mesma. Mas o coração morreu. O jovem enxugou as lágrimas, enternecido. Sentiu pena dos dois. Segurou as mãos de um e outro, que recuaram com o gesto. Estava contente. Para um órfão, estar diante dos pais, um arremedo deles que fosse, era como um sonho. Em sua fantasia, Caio Túlio penetrava a alma oca dos vampiros e transportava-os para um tempo longínquo onde foram uma família feliz. - Precisamos da sua ajuda. - E eu da de vocês. - Junte-se a nós. Meu filho.

*****

Abriu os olhos lentamente, ainda confusa. Receosa, precavia-se contra a luminosidade que podia machucar-lhe a visão. Nada havia, porém, para ser visto. Só o breu. De olhos bem abertos, contemplou a escuridão e lembrou-se do encontro na praça e do modo como fora surpreendida por Ludovico investindo em sua direção. Era sua última recordação. Haviam lhe ministrado alguma droga, deduziu, pois acusava uma dor de cabeça moderada e ininterrupta. Esfregou os olhos com vigor, mas nada enxergou novamente, sequer as próprias mãos espalmadas à frente do rosto. Deitada sobre o colchão, ergueu-se não sem alguma dificuldade e uma dose de vertigem para, em seguida, sentar-se na beirada da cama. Maldita dor de cabeça. Escutou passos, mas não vinham do mesmo cômodo. Cessaram. A porta abriu silenciosa, liberando os raios de

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luz que revelavam uma silhueta feminina levando o dedo ao interruptor. Gabi protegeu os olhos com as mãos, a claridade a incomodou como temia, agravando-lhe o desconforto. - Acorde e se vista. O mestre quer vê-la – Lurdes foi ríspida com ela. Pendurou o cabide com o longo vestido branco na maçaneta da porta e retirou-se. A repórter não vestiria aquilo. Preferia permanecer com suas próprias roupas, as que colocara para ir à praça, a sujeitar-se às vontades de seu raptor. Aos poucos, conforme a dor de cabeça começava a diminuir, compreendia como fora estúpida a decisão de procurar por Ludovico. Gabriela desceu da cama e caminhou até o vestido. Parecia antigo, puído. Provavelmente usado. Pensar na história daquela peça causou-lhe má impressão. Devolveu ao cabide, definitivamente não o vestiria. Aproveitou que lá estava, com a mão próxima à maçaneta, e, na falta de vigilância, arriscou-se a deixar o quarto. Parecia fácil demais, imaginou ao constatar a porta destrancada. Excitada, adentrou o corredor, reconhecendo estar no segundo andar da mansão. Quis descer as escadas e fugir, mas logo desistiu. O cão de estimação de Ludovico guardava a passagem com o mau humor de quem não era alimentado há séculos. Tentou ser simpática com o bicho, mas ele pareceu não ter esquecido do pisão com o salto-agulha. Gabi deu meia-volta, à procura de uma rota alternativa, quando surpreendeu Lurdes e Ludovico conversando no escritório. - Ora, pare de desculpas. Traga-me Constâncio imediatamente! - Já disse, meu amo. Sumiu, ninguém sabe dele. Desde o episódio na praça. Deve tê-lo abalado. - Abalado?! Que diabo de criatura é ele? – esmurrou a mesa. À explosão de cólera seguiu-se um momento de aguçada percepção quando identificou a presença sem convite de Gabriela bisbilhotando por entre a porta semiaberta. Não se irritou, pelo contrário. - Vejo que fez pouco caso do vestido. - Não me caiu bem – mentiu, decepcionada por ter sido flagrada espionando. - Entre. Lurdes estava de saída.

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A empregada retirou-se, contrariada e cabisbaixa. Gabi sentiu-se igualmente constrangida, mas por motivo distinto. Não queria ficar a sós com Ludovico. Procurou contato visual com Lurdes, mas a criada sequer lhe dirigiu o olhar. - Não tenha medo. - Não tenho. Ludovico quis provar seu ponto. Bateu com violência a palma das mãos contra a mesa e inclinou o corpo rapidamente para frente como quem ameaçasse atacá-la, apenas para retornar à imobilidade logo em seguida. Gabi quase foi ao chão com o susto. Ludovico riu, sádico. - Idiota! Não aprovou o xingamento, mas era extraordinariamente condescendente com a morena. - Quero dizer que não há razão para temer. Você me é mais útil viva e sadia do que morta, ou mesmo... imortal. Virão à sua procura, e a sua segurança garante a minha, ao menos momentaneamente. Não creio que o vestido possa ter lhe caído mal – mudou de assunto. - Não confio em você a ponto de satisfazer-lhe um capricho. Apreciou a sinceridade da segunda resposta à primeira pergunta. O vampiro abriu a última gaveta da escrivaninha e retirou dela um gravador antigo e empoeirado, acompanhado de uma fita cassete usada, rebobinada até a metade. Entregou à repórter. - Queria entrevistar-me desde o início, não? É o seu dia de sorte - sentenciou, enigmático. Gabi alcançou o aparelho, vacilante. Não sabia como proceder. Fizesse a entrevista e ficaria mais envolvida do que já estava, se isso fosse possível. Arquivo-vivo não dura, lamentou enquanto apertava o REC. A curiosidade pessoal e profissional não lhe dava escolha: era melhor arriscar-se pela história do que se arrepender pelo resto da vida. Outrossim, e se valesse de consolo, sua decisão provavelmente faria com que não

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vivesse o suficiente para lamentos. Puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Ludovico, o gravador funcionando sobre a mesa. - A idade do senhor, para registro. - Não carece registrar. - Vaidade? - Verossimilhança. - O que faz em Serrópolis? Admirou a repórter, em silêncio. Ela havia encarado o blefe, era corajosa como ele precisava que fosse. Por um instante, pareceu reconsiderar sobre se devia contá-la a história completa. As implicações nefastas da confissão. - Enviaram-me para que eu desse termo em um assunto nosso. Uma precipitação minha, eu diria... Um erro que cometi no passado e que tem nos produzido constrangimentos desde então. Uma ferida aberta, que se não for tratada oportunamente ameaça descambar com rapidez para a catástrofe completa. - Pode ser mais preciso? - Vim conter dois dos nossos. Duas crias minhas. - Eliseo e Antonieta? – a repórter era, quase sempre, muito bem informada. - Soube que leu as cartas, as quero de volta – não foi difícil inferir de onde Gabi tirou aquela informação. - Nunca foram suas, além do mais, não as tenho comigo. De todo modo, não entendo por que não ajuda os dois e deixa a cidade. - Já disse que não vim ajudá-los, mas impedi-los – parecia incomodado. - O que havia nessas cartas? Por que me trata como se fosse eu o vilão? - Eliseo e Antonieta só querem deixar de ser como você os fez. O senhor os traiu quando desistiu de ajudá-los, e não posso entender seus motivos para ter agido nesses termos.

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- Foi o que escreveram? - Foi. Ludovico riu, admirado. - Não existe volta – revelou, com toda a naturalidade do mundo. - Não poderia ajudá-los se o quisesse. Gabi checou o gravador, incrédula. A reviravolta deixava o caso mais interessante. - Não faz sentido. Por que mentiriam? - Perderam o controle, ambos. Acreditaria em mim se soubesse das barbáries que praticaram, e que muito nos colocaram em evidência. Se voltaram à terra natal, foi porque não são bem-vindos em parte alguma. Minha missão é colocar um fim nisso tudo, antes que seja tarde. - Não sei em quem acreditar. - Não esperava que soubesse. O tempo dirá que estou certo. - Supondo que diz a verdade, do que não estou convencida... Por que assassinou Inezita e Penteado? - Ambos sabiam das cartas e das supostas motivações do casal, e foi esse o motivo de terem morrido. Sabiam demais, e nunca é bom saber além da conta - serviu de indireta para a repórter. - De todo modo, não os matei. Tampouco ordenei morte alguma. - Com essa agora... – duvidou. - Quem mais poderia tê-lo feito? - Quer mesmo saber? - Mas é claro... Ludovico se levantou e caminhou até o armário próximo, descerrando as vitrines translúcidas. Retiraria da prateleira um surrado estojo de madeira onde guardava o

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cachimbo de marfim ricamente ornado com motivos vitorianos. Sem pressa, preparou o fumo e o acendeu antes de responder à jovem. - Meus inimigos possuem um contato de especial valor nesta cidade. Bastante influente, ainda que recentemente eu tenha logrado esvaziar-lhe a importância. A senhorita, mesmo, parece já ter feito uso de seus serviços. - Nada tenho a ver com seus inimigos, ou com os contatos deles, sinto informar. A não ser que... bobagem, parece improvável. Não me diga que... - Digo. - O prefeito Paulino? - A senhorita é deveras perspicaz. - Não compreendo. Foi o prefeito quem nos ofereceu abrigo quando fugimos da polícia e de... – recuou. - De mim? - Sim, de você. Não banque o inocente, não lhe cai bem o papel. Sei do que fez com o vereador e a criada. Não posso confiar em você. - Não irei julgá-la por isso, nem tirar-lhe a razão. Sou o que sou. Mas converse com Lurdes e Constâncio. Verá que nada fiz que fosse sem o consentimento deles. E nada farei que seja sem o seu. Gabriela estremeceu. Lembrou-se de quando foi salva por Tomé. Ludovico sabia ser irresistivelmente persuasivo. Era melhor trazer a conversa de volta para um rumo mais seguro e produtivo, sem divagações. - Por que Paulino nos protegia? Que quer conosco? - Esqueça o prefeito. Paulino é um covarde, não é com ele que deve preocuparse. Eliseo e Antonieta o ajudaram desde sempre, mas nunca foi um de nós, no sentido estrito. Obedece aos seus mentores temendo que lhe roubem a alma. Quanto a você, minha cara, Paulino nada queria contigo. Foi a senhorita mesma quem forçou sua entrada neste perigoso circuito de maneira irreversível. Penso que, de um modo ou de

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outro, não sairá ilesa. Ameaça a mim porque quer me expor, e ao casal pela sua proximidade com o jovem. - Sempre tive consciência de que me envolvi voluntariamente, mas quanto a Caio Túlio e o princípio disso tudo... Continuo sem saber por que mandaram chamá-lo. - Querem que o filho lhes faça um serviço. - Sou toda ouvidos. - Matar-me. - Fariam melhor sozinhos. - Não podem fazê-lo, infelizmente. Ou deveria dizer “felizmente”? – pontuou, indeciso, tendendo para a indiferença. - Fui eu quem os criou - continuou – e uma criatura jamais derrama o sangue de seu criador. É esta a nossa mais sagrada lei, e estou certo de que mesmo o mais petulante dos traidores não ousaria ignorá-la. Caso não a observem, passarão da condição de mero incômodo para o de notórios inimigos da raça. E foi precisamente por isso, essa minha, digamos, imunidade, que fui escolhido. Eliseo e Antonieta jamais se atreveriam a confrontar-me abertamente. O jovem será convertido, e virá a mim com a intenção de assassinar-me. E a senhorita será a peça de convencimento. - Por que me raptou? - Para que me ouvisse. - O que faremos agora? - Nós? Vejo que confia em mim, afinal. - Que alternativa me resta? - Nenhuma. - Caio Túlio corre perigo? - Mais do que imagina.

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Quando Gabi voltou ao seu quarto e disparou o trecho da fita com a gravação da entrevista, o áudio do aparelho, cristalino, acusava tão somente a voz aveludada da repórter, entrecortada por inquietantes pausas silenciosas onde deveria haver as respostas do entrevistado.

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Ah, a traição! Foi quando Constâncio procurou Paulino. Renhidos adversários quando sob o comando de seus mentores, desta feita o tom é respeitoso e conciliatório. Mais do que isso, talvez o adequado fosse dizer que temiam um ao outro. A execução do guarda Campos intimidara Constâncio, enquanto, do outro lado, a simples presença de um adversário sobre-humano paralisava de pavor o atual prefeito. A reunião na casa do mandatário serviu para selar a aproximação. O vereador e futuro prefeito não queria associar-se ao lado mais fraco e menos ousado. Paulino prontificou-se a fazer as honras: a adesão carecia ser informada urgentemente. Avisou à esposa que sairia com Constâncio, e que não esperasse por ele. A senhora ficou sem entender nada, curiosa com a inesperada amizade entre os dois depois do grotesco episódio na praça. Caminhando lado a lado, seguiram para o sobrado.

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O diligente delegado reuniu o efetivo, reforçado com policiais de Cachoeiros e adjacências, e ordenou rondas ostensivas madrugada adentro. O assassinato daquela

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manhã fora o último sob a sua vigília, prometeu para si, ou entregaria o cargo para outro mais competente. A população, horrorizada com a cena dantesca do guarda hasteado no pátio da prefeitura, rendeu-se sem resistência ao toque de recolher. Era triste constatar que mesmo o bar do Lira preferira as portas fechadas a sujeitar-se às barbáries do serial killer serropolense. Distribuídas as funções entre as patrulhas, o delegado convocou dois dos seus melhores para acompanhá-lo e saíram em marcha pela cidade. Empenharia-se pessoalmente nas investigações do crime contra o guarda Campos, seu amigo particular e funcionário exemplar do distrito. O pequeno grupo começaria por refazer os passos do moribundo, iniciando pela incursão ao sobrado. Randal puxava a fila no curto trajeto a partir da praça quando avistou dois senhores entrando no sobrado àquela hora da madrugada. Não fosse semelhante movimentação suspeita por si só, mais ainda o era considerando a suposta identidade dos comparsas. Vira à distância, que se pondere, mas o delegado podia quase jurar que se tratavam de inimigos figadais. Intrigado, dispensou os guardas com rispidez, ordenando-lhes que retornassem antes que também reconhecessem os dois homens. Pressentiu que o que estava prestes a descobrir não deveria ser revelado a mais ninguém. Solitário, seguiu para o sobrado.

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Constâncio e Paulino pensaram estar sozinhos. Imaginaram que ninguém os seguira. Principalmente porque vez por outra espiavam ao redor e por sobre os ombros enquanto tomavam o rumo do sobrado, e nada haviam detectado. Ledo engano. O experiente homem da lei era hábil em suas técnicas de perseguição. O prefeito passou por debaixo da fita adesiva que lacrava precariamente a entrada da casa. Atrás dele, Constâncio imitou a manobra. Atraídos pelas vozes que partiam do andar de cima, os dois subiram as escadas na direção do aposento onde Eliseo,

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Antonieta e Caio Túlio conversavam. Precavido, Paulino preferiu não interromper o diálogo em família, e detiveram-se no corredor. - Quer dizer que nada pode fazer para impedi-lo? - Temo que não, meu filho – respondeu a mãe, em um tom artificial de lamento que passou despercebido por Caio Túlio. - Tanto eu quanto o seu pai descendemos dele. Eliminá-lo, o único meio de salvar a jovem de que fala, nos é absolutamente impraticável. - Não posso crer que não exista nada que possamos fazer – recorreu ao pai. - Temos que encontrar um jeito, e rápido! - Pensaremos em algo. - Há, sim, um modo... – quis passar a impressão de que a ideia lhe ocorrera naquele instante. - Qual? Como faremos? - Não... Não podemos pedi-lo, Antonieta – a encenação estava completa. - Tem razão, não seria justo - concordou. - Eu quero saber. Conte-me. As recentes emoções em família haviam cegado o jovem, normalmente tão perspicaz, bloqueando-lhe o acesso ao juízo racional. Vulnerável e indefeso, ele tornarase um arremedo do homem que fora antes do fatídico retorno a Serrópolis. Quanto mais convivia com os pais, mais seu estado se deteriorava. Sua personalidade fragmentava-se e perdia coesão submetida à influência dos desígnios do casal. - Que você o mate. - Que eu o mate?! – reagiu com espanto. - Evidente. Seria capaz? - Talvez o fosse – para a sua surpresa, reflete com seriedade sobre a sugestão. Parece justo depois de tudo o que ele fez para mim e para os meus familiares – aceita,

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contrariando sua natureza e esquivando-se de ponderações morais a respeito. – Sim, eu penso que seria capaz. Mas não tenho meios. - Por enquanto, meu filho. Por enquanto... O prefeito percebeu que entrariam em um assunto do qual não queria tomar parte, sequer assistir, e pigarreou forte para que lhe notassem a presença. Antonieta virou-se na sua direção, atravessando-o com um olhar frio e lancinante. Eliseo o encararia com intensidade semelhante, para em seguida interpelar Paulino sobre sua impávida companhia. - Que faz este sujeito aqui? – perguntou Eliseo, sem dar quaisquer mostras de sentirse ameaçado pelo intruso. Constâncio é anunciado e a tensão escala. No térreo, depois de esperar alguns minutos do lado de fora, Randal penetra a residência sem ser notado. O delegado margeia a escadaria, abrigando-se em um canto escuro onde o silêncio e a acústica permitem que escute incógnito o que se passa sobre sua cabeça. - Trouxe Constâncio, a pedido dele. Procurou-me em minha casa, queria ter com vocês. Trago boas novas... – garantiu, depois de concluir que Eliseo e Antonieta reprovavam a presença do convidado. - Pretende unir-se a nós. - Terei prazer em segui-los – Constâncio tomou a palavra, ansioso para adular os Pereira Inácio. – Como verdadeiros representantes de minha raça, devo pedir desculpas por ter reconhecido tão tarde o lado ao qual pertenço e devo fidelidade. Sou novo em minha condição, e inocente em meus julgamentos. Ofereço, porém, meus préstimos como fiel seguidor e novo prefeito eleito – fitou Paulino, com desdém. Caio Túlio anima-se, Ludovico perdia força com a deserção de seu braço direito. Eliseo e Antonieta notaram o florescente brilho de esperança nos olhos do jovem. Não poderiam agir como queriam na frente do filho sob o risco de perderem, dentre aqueles, seu mais necessário aliado. Do andar de baixo, Randal acompanhara a apresentação de Constâncio curioso com o tipo de pacto capaz de unir aquele grupo tão heterogêneo. Mais importante, queria descobrir a quem se dirigiam os atual e futuro prefeitos naquele tom subalterno em

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plena cidade onde constituíam as autoridades máximas. Frustrado porque não se tratavam pelo nome, aguçou-lhe a curiosidade o fato de que não conseguia reconhecer as vozes dos figurões desconhecidos. Forasteiros, sem dúvida, mas quem eram? - Fico contente que nos ajude. Precisamos agir antes que seja tarde. Uma quinta voz, que até então o delegado não ouvira, manifesta-se. Era Caio Túlio. Cada vez mais confuso, Randal endireita o corpo rapidamente, desequilibrando-se no processo e quase denunciando sua presença. Agora que não entendia mais nada do que se passava no sobrado onde Inezita tinha sido morta. Confiante, Constâncio inicia um prolixo discurso de agradecimentos que se pretende cheio de elucubrações. - É evidente que serei deveras útil e leal à causa que ora se vislumbra. Naturalmente que... - Cale-se! – Eliseo interveio enérgico, para a surpresa e receio dos demais. - Paulino, queira deixar-nos a sós com Constâncio. Devemos tratar com ele em particular. Leve meu filho consigo e retornem amanhã, pela manhã. Conversaremos com mais calma – Caio Túlio assentiu, assustado com a reação do pai. Eliseo temia que o vereador revelasse além da conta, era essa a razão para ter agido tempestivamente. Não obstante, desconfiava dele. Traidores nunca são bem recebidos. O prefeito e o empresário deixaram juntos o sobrado, caminhando apressados. Caio Túlio puxou assunto. Queria saber da natureza da relação de Paulino com os seus pais. O prefeito, aéreo, era lacônico quando respondia. Randal decide deixar o sobrado depois deles e os segue, mas não por muito tempo. Tão logo chegam próximos à residência do prefeito, ele saca um revólver do coldre e outro, menor, do tornozelo, encostando o cano das armas nas costas da dupla. - Os dois aí! Já para a delegacia. Vão me explicar direitinho o que está acontecendo. - Mas eu sou o prefeito... - E eu o delegado!

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Naquele exato instante, sem que o trio suspeitasse e longe dos olhos da lei e da ordem, uma afiada estaca de madeira trespassa o coração de Constâncio de Barros.

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CAPÍTULO 5

CONFINADAS NA MANSÃO, uma olhando para a cara da outra, aguardavam impassíveis na sala principal pelas notícias dos acontecimentos que se desenrolavam naquela agradável noite estrelada. O sumiço de Constâncio havia forçado o mestre a assumir pessoalmente – e com incomparável destreza - a tarefa de espionar os excessos do casal. Como se deliciara com o castigo imposto ao desertor. Quase fez tudo valer a pena. Assim que voltou ao lar, depois de uma breve ausência de uma hora e meia, Ludovico tratou de comunicar a Lurdes e à nova parceira o desenrolar da crise que afetava toda a cidade. Gabriela recebeu estarrecida a notícia da traição de Constâncio e da bárbara reação do casal. Não havia mesmo limites para a cólera dos Pereira Inácio. Enquanto ouvia o relato detalhado de Ludovico sobre o novo crime, a repórter não pôde evitar uma recaída abrupta sobre algo que supunha ter aberto mão após a fracassada entrevista do dia anterior. Imaginava que bela matéria aquilo tudo rendia, por mais que não contasse com o depoimento do vampiro. Um livro-reportagem, sem dúvida. Um documentário, talvez. Voltou a crescer dentro dela a vontade de contar ao mundo o que presenciava, mas sabia que há muito perdera o controle, ou mesmo a compreensão, do apuro em que se envolvia. Aquela irresponsável aventura tinha ficado perigosa demais, e a escalada da violência parecia nunca chegar ao fim. Ninguém em Serrópolis poderia sentir-se seguro. Muito menos ela, a jovem indefesa que ousou investigar sobre o que nunca foi convidada a saber. Talvez, no entanto, houvesse uma maneira de publicar aquilo - caso tudo saísse ao seu contento e, especialmente, ao de Ludovico. O mestre concluiu sua exposição, mas permaneceu no cômodo. Andava de um lado para o outro, em silêncio. Começava indo até o extenso vitral que desembocava no jardim externo e o contemplava por alguns segundos. Em seguida, retornava até bem próximo da porta principal da casa. Assim que chegava, efetuava meia volta e repetia o trajeto. Parecia meditar sobre o interessante rumo dos acontecimentos. Gabi olhou para

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ele, pensativa. O apoio da criatura não a garantia segurança alguma, haja visto o triste destino do vereador. Sentiu na pele a precariedade de sua situação, pois não haviam ficado claros, para um e outro, os termos daquela aliança. Talvez desde o início ambos soubessem que nada podia existir de definitivo em tão insólita associação, pois nunca conseguiriam domar seus instintos adormecidos sob o frágil manto do interesse objetivo e mútuo. Não obstante, a absoluta falta de alternativas fez com que prosseguisse, evitando alimentar maiores crises ou questionamentos. Subitamente, o vampiro deixou a companhia das duas e seguiu para os seus aposentos. Ludovico estava certo de que podia contar com Gabriela para o propósito de frustrar os planos de um inimigo comum. Era o que suficiente por ora, embora algo além daquilo o perturbasse. Algo não declarado e desconhecido. A verdadeira questão, para ele, provavelmente se resumia sobre se a consumação do plano bastava para que desse o trato por cumprido e abandonasse a cidade como chegou. Gabriela fitou de soslaio o vampiro se afastando. Ele deslizava enquanto se movia, transmitindo a impressão de que caminhava sobre nuvens. O futuro da jornalista ligava-se cada vez mais aos desígnios de Ludovico. Era ele quem precisava ser piedoso com ela. Calava fundo no espírito da jovem o medo de que pudesse ceder deliberadamente aos encantos do monstro. A tentação da imortalidade na lábia do hábil vendedor de sonhos era um produto deveras irresistível. Em que pesassem as evidentes fragilidades, o pacto entre os dois pedia um plano. O vampiro, contudo, jamais recorreria a quem quer que fosse para que o instruísse como proceder. Decidiria por conta e pelos dois, era como funcionava. Experiente, só ele sabia como surpreender e provocar os verdadeiros traidores, e não pouparia recursos na tarefa. Se houvesse baixas, deu de ombros, o que podia fazer?

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O efetivo ocupado com as rondas noturnas garantia privacidade na delegacia quase vazia. Melhor assim. O delegado os conduziu até a sua sala e trancou a porta, não queria ser incomodado. Intuía que as confissões daquela conversa não poderiam ser reveladas a mais ninguém. Randal dispensou algemas e vozes de comando. Apenas a ameaça silenciosa da arma ao seu alcance bastava para que o obedecessem. Ademais, não lidava com prisioneiros comuns. Caio Túlio, um foragido, jamais esperaria sair dali em liberdade. Paulino, prefeito e cidadão respeitável, acreditava estar cumprindo uma mera – e estúpida – formalidade. A baixa ansiedade de ambos quanto ao futuro imediato contribuiu para que o interrogatório se desenrolasse com naturalidade, apartado dos rigores burocráticos do trabalho policial. Como Randal sonhara com aquele momento em que veria decifrado parte do mistério. Disfarçando a excitação, o delegado acende um cigarro com o seu isqueiro prateado e apoia os cotovelos sobre a mesa, inclinandose como se estivesse prestes a baforar sobre os dois. - Pois então, quem começa? Entreolham-se, apenas. - Parece que preferem passar a noite no xadrez... - Não ousaria! – o prefeito ensaiou indignar-se por estar ali. - Três pessoas morreram, Paulino! Três! A autoridade aqui sou eu! - O senhor perdeu a noção de autoridade. Não sabe um terço do que se passa debaixo do seu nariz. Randal engoliu o desaforo, precisamente porque era o tipo de reação que desejava provocar em um ou outro. Satisfeito, tragou forte e esmagou o cigarro quase inteiro contra o rústico cinzeiro de pedra. - Pois trate de esclarecer, doutor, ou vai daqui para a cela – ameaçou, com o dedo em riste. Apesar do gesto, estava mais calmo agora. - Eu posso começar – Caio Túlio interveio, não em socorro. Precisava se abrir, e vários motivos concorriam para que o fizesse prontamente. Tinha que provar sua inocência, evitando uma nova prisão. Ao mesmo tempo, era imperativo convencer o delegado de que Gabriela corria perigo.

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– Diga por onde devo iniciar - pediu. - Sei que devo ser preciso. Do porquê de eu estar no sobrado? De minha fuga? - Esqueça a fuga por enquanto. Comece pelo começo, de preferência. Deve contarme desde o princípio. O empresário endireitou-se na cadeira, era chegada a hora de contar sua história. Não perante um júri, por certo, mas pelo menos diante da autoridade imediata do delegado. - Sou órfão de pai e mãe, como o senhor bem sabe. Ainda muito jovem, era somente uma criança, minha avó entregou-me aos que me criaram, por razões que até hoje desconheço e muito gostaria de vê-las esclarecidas. - Por curiosidade mata-se! – provocou Paulino, mas Caio Túlio não deu importância. - Mesmo sendo muito pequeno - retomou – apavoravam-me os hábitos de meus tutores. Sempre considerei que não deveria dar crédito às lembranças fantasiosas da infância, mas percebo agora que nada tinham de fantasiosas, por mais extraordinárias que parecessem. Pois foi tomado de imenso terror que, mesmo em tenra idade, optei por fugir e ganhar o mundo. A partir daí, se me recordo ao certo, abandonei qualquer vínculo com minha família. Caio Túlio pediu um gole de água, tinha sede. O delegado foi até o galão e retornou com um copo cheio até a metade. – Saí-me – continuou – bastante bem para um órfão, imagino, e nada mais havia de minha origem que eu quisesse tomar ciência. Ocorre que, infelizmente, os laços de sangue são mesmo indeléveis, e não pude sequer identificar o tipo de sentimento que me acometeu quando recebi o recado de Penteado a respeito dos meus finados pais. Ora, como era possível? O que podia haver de verdadeiro naquele disparate? De primeiro, imaginei que se tratava de uma brincadeira de extremo mau gosto. Suspeitei até de Penteado, mas como o episódio não deixasse minha alma em paz, garantindo-me noites em claro, percebi que o único curso de ação possível era seguir as determinações do mensageiro misterioso e retornar a Serrópolis. Receber aquela mensagem tinha feito

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com que, de súbito, eu necessitasse de respostas para perguntas que há muito não me perturbavam mais. - Entendo. Foi quando voltou. - Sim, foi quando voltei. Achei conveniente apresentar-me com um nome falso em minha chegada. Facilitaria que eu colhesse as informações que julgava importantes. O senhor sabe que a minha história e o meu sobrenome são por demais conhecidos em Serrópolis. Além disso, persistia de minha parte uma forte dúvida sobre a veracidade daquele recado. - Conte sobre a noite do assassinato de sua avó. - Certamente. Não vejo mais sentido em manter o silêncio nas atuais circunstâncias. Sinto, no entanto, que irei frustrá-lo, delegado. Não há rigorosamente nada que eu possa reportá-lo de útil. A última recordação que guardo daquela noite foi que bati à porta do sobrado. Quando dei por mim novamente estava estirado ao pé da escada, cercado por policiais que me acusavam de homicídio. - Recordo-me da cena como se participasse dela agora – o delegado lamentou. - Foi quando o prendemos, e quando tudo começou. O senhor fugiu logo depois. - O camarada prefeito aqui me ajudou – Paulino fulminou o empresário com um olhar decepcionado. Não esperava pela delação, quanto mais naquele tom de deboche. Fugi do bloqueio escondido em seu carro particular. Depois arranjou para hospedar-me em seu chalé em Cachoeiros. Caio Túlio não estava disposto a continuar mentindo para acobertar quem quer que fosse. Atenuou-lhe a culpa pela deslealdade lembrar-se de que nunca confiara em Paulino. A relação secreta que ele mantinha com os seus pais apenas contribuía para confirmar suas suspeitas: o prefeito escondia algo. Os dois encararam Paulino, ávidos por respostas, mas ele continuava quieto como quem não dispusesse de ânimo ou interesse para defender-se. Randal o provocou, fez ameaças. Jurou que o prenderia ali mesmo, mas nada do que disse convenceu o prefeito a expor seus motivos para ter acobertado Caio Túlio. Paulino não protestou sequer quando o delegado se levantou para chamar os guardas. Apenas balbuciou, enigmático,

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a frase que passou despercebida ao homem da lei: “Você não pode me proteger”. Mudou de ideia quando se convenceu de que Randal falava a sério sobre encarcerá-lo e interveio, pedindo a gentileza de que não o levassem imediatamente. Queria acompanhar o restante do depoimento de Caio Túlio. Randal assentiu - acareações são sempre mais reveladoras – e o interrogatório continuou de onde o empresário tinha parado. - Estávamos, eu e Gabriela, a repórter me fazia companhia, escondidos em Cachoeiros quando houve um acidente com o chalé onde estávamos; sua estrutura de madeira foi toda consumida pelo fogo. Penso que o incêndio não tenha passado de um desastre infeliz, mas sobre isso prefiro não mais opinar. - Investigarei a respeito oportunamente. Prossiga. - Pois bem. O incidente acabou por antecipar nossa volta à cidade. É claro que eu poderia optar por continuar foragido, mas entendi, como ainda entendo, que o meu retorno era imprescindível para que tentasse provar minha inocência de modo definitivo. Sendo assim, voltamos. - Não esperava que voltasse. Mas, se o fez, decerto tinha um plano. Qual era? - Sim e não, porque nada tinha de plenamente estruturado. Sabia apenas do passo seguinte, na realidade, e esperava que a partir dele os demais surgissem naturalmente. No entanto, seja como for, o senhor não poderia compreendê-lo. - Por que diz isso? - Tenha paciência, irei colocá-lo a par. Caio Túlio ficou quieto por um instante, estudando a melhor maneira de abordar aquele assunto com o delegado de um modo que lhe parecesse mais verossímil. - O senhor é um homem crédulo? - Acredito na lei. - E no homem? - Quando diz a verdade.

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- Serei tão sincero quanto possível, e neste caso em especial o senhor verá que acreditar apenas na lei não é o bastante para compreender questões além do homem, pois são desta natureza os acontecimentos em Serrópolis. Antecipando os trágicos desdobramentos da revelação iminente, o prefeito reagiu com desespero. Paulino levantou-se. Pediu a Randal que o algemasse e conduzisse até a cela. Estava disposto a impedir o empresário de contar a verdade sobre seus pais, mesmo que o preço para tanto fosse trazer fatos novos à mesa. - Aguarde, vai ouvir o jovem. Não foi pra isso que decidiu ficar? - Não mais, a mim basta. Leve-me preso, quero confessar imediatamente. - Reconhece ter acobertado um fugitivo e obstruído o trabalho da polícia? - Não. - Ora, homem, não entendo – o delegado irritou-se. - Que quer confessar, então? - Inezita e Penteado. - Que tem eles? - Fui eu quem os matou. O assassino sou eu.

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Insone, a repórter repousava em seu aposento quando Ludovico mandou Lurdes chamá-la. Gabriela estranhou porque, desta feita, a criada não a tratou com despeito ou rivalidade. Lurdes parecia ter pena dela. A complacência da serviçal ainda a incomodava quando adentrou o escritório onde ele a esperava. Ludovico a chamara para comunicá-la dos próximos passos. Gabriela, ingênua, imaginou que os discutiriam em conjunto, mas não era essa a intenção do vampiro. Ele disse que seu plano era simples,

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embora arriscado, e que à jovem bastava segui-lo à risca para que saísse ilesa. Gabi argumentou, disse que preferia um plano onde não corresse risco algum, mas não houve jeito. Ludovico pediu a ela que ouvisse, antes de criticá-lo, e a morena acabou cedendo à vontade do imortal. Detalhista, a criatura havia dedicado especial atenção à resolução do conflito. A seu modo, encarava a disputa como um intrincado jogo de xadrez onde o desfecho do golpe vencedor resultava de uma estratégia que não poderia ser direta senão quando do seu momento capital. Era preciso mexer as peças com ousadia, ensinou, sem perder de vista que também os adversários antecipavam seus movimentos. A execução do guarda Campos falara alto, os obrigava a reagir com urgência. - Em primeiro lugar – iniciou a exposição –, parece-me perfeitamente claro que a senhorita não poderá permanecer em minha residência por mais tempo, pois é precisamente onde nossos inimigos desejam que esteja. - Não vim sozinha, foi você quem me trouxe. - Sim, deixe-me terminar... – não gostava que lhe cortassem o raciocínio. – Estou certo de que já expliquei o motivo de tê-la trazido até aqui. Como dizia – continuou, – sua presença aqui lhes é conveniente porque serve a um propósito específico. Convencer Caio Túlio a ajudá-los contra mim. - A essa altura tenho medo que ele possa ter sido... – hesitou - que tenham feito dele...- desviou o olhar - um de vocês. - Não creio que seja este o caso ainda, mas pouco importa – rebateu, insensível. – Devemos nos ocupar com a estratégia imediata, e traçá-la com os elementos que temos à mão. Sendo assim, digo que devemos surpreendê-los no ponto onde pensam ser mais fortes, desfazendo-lhes a ilusão e perturbando-lhes a moral. - Como faremos isso? - A senhorita irá até eles. - Eu?! – mal reuniu forças para oferecer oposição. A ideia de confrontar o casal parecia-lhe aterradora.

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- Acalme-se, minha cara. Deixe que explique como será feito e verá que a execução é mais segura do que sugere a teoria. Ludovico exalava confiança enquanto tecia suas considerações. Impressionaria a qualquer ouvinte o modo como era capaz de fazer parecer trivial o que, na verdade, era audaz e perigoso. Naquele estado semi-hipnótico, o vampiro convenceria qualquer um sobre qualquer coisa. Ludovico instruiu Gabi para que se dirigisse ao sobrado e entregasse um bilhete ao casal, convidando-os para um encontro a sós com ela. A repórter concordou, e não poderia ser diferente, mesmo que não compreendesse a extensão do plano do mesmo modo que o seu maquiavélico mentor. Para seu lamento, deixou a mansão rebaixada. Nenhuma situação é ruim o bastante que não possa piorar, aprendeu. A jovem, antes romântica peça de convencimento, agora não passava de reles isca para vampiro.

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CAPÍTULO 6

ERA O DIA SEGUINTE à morte de Constâncio. Não houve remorso, mesmo porque nunca tinha havido. Não pelo guarda, muito menos pelo vereador. Se havia algo que o crime lhes despertava era uma vontade intensa de tornar a praticá-los. Cada vez mais cruéis, violentos e próximos uns dos outros. Não seria justo dizer que contrariavam sua natureza; talvez fosse mais preciso assumir que a abraçavam por completo – e era este o erro que os expunha irremediavelmente. Eliseo e Antonieta eram incontroláveis em suas vontades e propósitos. Agitados pela rotina sangrenta recém-estabelecida em Serrópolis, os cônjuges pouco dormiram, despertando em plena manhã. Impacientes, perambulam pelo sobrado à espera do retorno de Paulino e Caio Túlio. Por que demoravam tanto? Como era inconveniente não poder prescindir da participação de terceiros. Queriam agir logo, nunca abdicariam de tomar a iniciativa. Ao contrário de Ludovico, eram predadores e apenas isso. Renunciariam à paciência em favor do arrojo, especialmente quando inebriados pelo êxtase do sangue fresco - ocasiões em que, não raro, agiam unicamente por instinto. O dia avança, adentrando as primeiras horas da tarde, mas nenhum sinal do filho ou do prefeito. Conjecturavam sobre o que teria acontecido a eles quando soou o toque da campainha. Antonieta desceu, intrigada – não esperava visita do tipo que pede para ser recebida –, e deu com um garoto desconhecido parado em frente à sua porta. Segurava um peão de brinquedo em uma das mãos e um envelope na outra. Curioso, contrariava a orientação de Gabriela para que tão somente largasse o bilhete no chão e tornasse a brincar na rua. A pálida senhora recebeu o recado com estranheza, agradecendo-o com improvável doçura. Leria para si as breves linhas diante da criança, que a observava atentamente. No minuto seguinte, Antonieta amassa o papel com uma das mãos e o engole de um só bocado. O teor e o sabor do bilhete agravaram-lhe o

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humor, mas não deixou transparecer além daquele arroubo involuntário. Incomodada, notou que o moleque permanecia estático como quem não fosse sair dali. - Um trocado, senhora? – pigarreou. - Quer uma gorjeta, infeliz? – o garoto podia ser útil, resolveu mudar o tom. – Façamos o seguinte, meu filho: por que não vai até a casa do prefeito e dá um recado meu a ele? Diga que o aguardam com urgência e que se ele não aparecer dentro de meia hora corto-lhe a garganta. Faça tudo direito e ganhará uma bela quantia. E, ah! – chamou de volta o garoto, que saía a galope. - Não conte nada a mais ninguém, ou não recebe nada.

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O prefeito dormira na prisão, e foi essa a razão para não ter trazido de volta o jovem Pereira Inácio conforme o combinado. A confissão da noite anterior – maldito Caio Túlio por tê-lo obrigado àquilo! – fez com que passasse o dia seguinte enfurnado no sufocante quarto de despejo. Como era contraproducente aquele teatro... Estava decidido a não revelar coisa alguma, o delegado que fizesse o seu trabalho e descobrisse por conta, se fosse capaz. As horas se arrastavam com morosidade, era o segundo interrogatório do dia. A segunda sessão de perguntas ingênuas e respostas evasivas. Esperava mesmo vencê-lo pelo cansaço? Sim, porque a primeira tentativa fora tão extensa quanto improdutiva. O delegado não queria acreditar em parte alguma da história contada, mas os detalhes da confissão eram tão ricos e precisos que era difícil duvidar da veracidade do depoimento. Quanto ao empresário, como ainda houvesse outro homicídio sem solução, o do guarda Campos, achou por bem manter Caio Túlio detido para averiguações - em que pese a existência de um réu confesso. O jovem repousava em sua cela sem ser incomodado enquanto o delegado voltava à carga com o prefeito.

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- Não sei por que insiste. Já disse mais de mil vezes o que tinha a dizer, e nada fará com que mude minha versão. - Versão? Nunca ouvi quem dissesse a verdade referir-se a versões. - Talvez. Não minto, porém. Embora omita, quanto a isso não posso negar – riu. - Seja razoável, Paulino! Não é de hoje que nos conhecemos. Parece-me incrivelmente difícil que tenha de fato assassinado Inezita e o advogado do rapaz. E tão ou mais difícil que isso me é compreender a razão que o leva a comportar-se com ironia, como se discutíssemos assuntos sem importância – Randal suspirou, desacorçoado. – Esqueça que sou delegado, trate-me como amigo. Sua situação não pode mesmo piorar. Apenas peço, por caridade, que me dê uma luz. - Meu caro Randal, saiba que é melhor sentir-se frustrado que... – recuou. – Sabe, são poucas as pessoas que sentem sobre si todo o peso de uma escolha errada – fez uma pausa. – E eu sou uma delas – seus olhos principiaram a lacrimejar e ele parou de falar. Não via utilidade no choro. - A ponto de assumir os crimes de outro? - A ponto de cometê-los, com efeito. - Não posso compreender. Sequer sei do que está falando. - Não quero perder minha alma, Randal! É tudo que posso dizê-lo quanto aos reais motivos do meu silêncio. Contarei, no entanto, dos crimes, mas será exclusivamente para sua satisfação e convencimento. Paulino esfregou os olhos, afrouxou a camisa e olhou para baixo como quem considerasse por onde começar e o que relatar. Randal era um sujeito honesto e confiável, talvez devesse mesmo alguma consideração pelo seu trabalho. – Esteja certo de que não tive prazer algum em executar a pobre Inezita. Eu nunca tinha feito aquilo antes, nem mesmo algo parecido. Consolou-me saber que ela não tardaria a morrer por conta, idosa que estava, mas não o suficiente - demorou um pouco. Parecia reviver a cena, e aquilo o incomodava. - Fui instruído a matá-la porque a velha era esperta e desconfiada demais. Descobriu, devem tê-la contado, que era usada

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em uma farsa. Tão logo sua presença passou a comprometer o plano e ela teve que ser eliminada. - Quem ordenou, Paulino? A que plano se refere? - Poupe as perguntas, Randal. Não contarei nada além do que pretendo, mas prometo inteirá-lo daquilo que não me comprometa em demasia. - Prossiga – não era hora para brigas. Aos poucos conquistaria a confiança do interrogado. - Os perigosos e fatais conhecimentos de Inezita - continuou - eram os mesmos do doutor Penteado. Tiveram acesso a eles pelas mesmas fontes. Devo reconhecer, porém, que a ciência de Penteado era presumida. Inferimos que soubesse de tudo, e sobre isso era possível que estivéssemos enganados. Mas como arriscar, não é mesmo? Mais tarde, depois de presenciar a rotunda ignorância de seu cliente, parece-me que o doutor de nada sabia e sua execução foi, digamos, desnecessária... Mas isso pouco importa agora - deu de ombros, desinteressado. - Como ficou assim, Paulino? – a desumana indiferença do prefeito chocou o delegado. - Você não viu o que vi, tampouco imagina o que quero evitar. Do contrário, entenderia. - Conte-me. Quem sabe eu possa ajudá-lo. Paulino abaixou a cabeça e apoiou a testa com as mãos, fazendo cara de tédio. Detestava ser repetitivo. Tudo o que queria, agora, era ficar quieto em sua cela, mas o delegado o importunava. Talvez o casal pudesse dar cabo do policial e voltar para resgatá-lo do cárcere. Talvez, ainda, Randal fosse capaz de confrontá-los. Achou graça desta última alternativa. De todo modo, resolveu que qualquer dos resultados o favorecia. - Descobrirá sozinho, meu amigo, descobrirá sozinho... De minha parte, continuarei calado por ora. No entanto, e se me permite uma humilde sugestão, por que não volta ao sobrado de onde nos seguiu? Não será tão tarde para respostas quanto o fiz supor. Agora, se não se importar, daremos essa conversa por encerrada, certo?

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E assim calou-se definitivamente, para a cólera do delegado Randal. Quisesse prosseguir com suas investigações, restava ao delegado acatar a sugestão do prefeito e aventurar-se no covil dos vampiros.

*****

A companhia do cão, apenas. De resto, sozinho. Ludovico contempla o final de tarde através da varanda do escritório. Sabia que naquela noite que caía tudo seria resolvido. Confiava que os assuntos correriam ao seu modo, mesmo porque sempre fora assim. Curioso que estivesse confiante na mesma proporção em que restava amargurado. O intelecto e a experiência indicavam-lhe a maneira correta de proceder; no entanto, permanecia melancolicamente esparramado em sua poltrona, o olhar passeando sem rumo pelo horizonte distante. Sozinho e eterno. Que combinação mais insólita para um sujeito tão brilhante e poderoso quanto ele. Ah, o pôr do sol! Que cena mais deprimente. Aquilo o deprimia quase tanto quanto a expectativa da reação. Mas lá estava, pronto para novamente cumprir com o prometido. Pela primeira vez ocorreu-lhe a ideia do fracasso - pálida, como uma centelha virgem e débil. Era possível que falhasse, por que não? Desdenhou, parecia absurdo. Percebeu, entretanto, que parte dele desejava sair derrotado. Fez pouco caso, não fazia qualquer diferença: a noite prometia! Dentro em breve, o temível Ludovico encarnaria mais uma vez o caçador infalível, porque, afinal, precisava ser assim. Levantou-se, chega de descanso. Pensou em Gabi e nas circunstâncias as quais a tinha exposto – mas pensou especialmente nela, e depois nas privações que o acometiam quando se lembrava da jovem. Afastou os devaneios românticos, precisava canalizar suas energias de um modo mais produtivo. Eliseo e Antonieta pagariam pelos pecados deles e pelas frustrações de seu criador. Duplamente condenados. Enquanto saía do escritório, chutou o cachorro.

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O sol se pôs e as trevas dominaram por completo a belicosa cidade de Serrópolis. A escuridão que impregnava aquela noite nada tinha de ordinária: era como se o ar de súbito tivesse se tornado mais denso e se fundido com o céu sem estrelas, constituindo uma massa única e inusualmente negra. Tão negra quanto o manto com capuz que cobre a senhora caminhando solitária pelas ruas desertas que levam ao distrito. No interior da delegacia, dois guardas de plantão se aprontavam para a expedição ao sobrado, aturdidos com a chance de ver solucionado o mistério por trás dos crimes na cidade. Só botam reparo na senhora quando, toda curvada, ela entra pela porta da delegacia. Era fácil perceber que mancava um pouco, com seus passos curtos e arrastados conferindo-lhe um penoso aspecto de fragilidade senil. Atencioso, um dos guardas abandona seu posto para ajudá-la. A senhora empaca, contrariada, e o adverte para que se afaste. O vigia achou graça da rabugice. A tomou por orgulhosa – e foi este seu maior erro. Desprevenido, ele abre um sorriso enquanto parte em seu auxílio, amparando-a pelo braço. Antonieta Pereira Inácio retribuiu a gentileza a seu modo: desvencilhou-se com facilidade do policial e, ela própria, agarrou-lhe o braço com fúria. O guarda gritou de dor enquanto ela esmagavalhe o membro impiedosamente; em seguida, ele seria arremessado vários metros adiante, tombando desacordado. O segundo guarda, inerte, não sabia se socorria o colega ou avançava covardemente sobre a vetusta senhora. Antonieta aproveitou da indecisão e dirimiu-lhe a dúvida, empurrando-o violentamente contra a parede. Caminho livre, a criatura prosseguiu sem resistência pela carceragem, ordenando ao carcereiro que a conduzisse até a cela de Caio Túlio. Adionei e a velha senhora pareciam partilhar de um enigmático sentimento de cumplicidade, embora nada de íntimo conversassem entre si. Marchavam pelo corredor estreito do xadrez quando, por um breve momento, Antonieta deteve-se em frente ao cubículo solitário de Paulino. O

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prefeito ousou encará-la, em súplica, recebendo em troca não a liberdade como desejava, mas um olhar fulminante que causou arrepios em sua alma atormentada. Submisso, o carcereiro retirou do bolso o molho de chaves e libertou um Caio Túlio confuso. - Ande, meu filho, temos pressa. É chegado o momento. - Para onde vamos? – perguntou, contente em vê-la, porém reticente em escapar agora que conquistava a confiança do delegado. - Irá salvar-nos todos. Se estiver preparado... - Não sei se estou. - Deve estar disposto a vingar-se, meu filho. Por mim, por seu pai, pela garota e por si próprio. Não deverá medir esforços, tampouco consequências. - Farei o que for preciso – consentiu, sem imaginar quão enganoso pode ser o acesso a uma única versão da história. Ganhariam a rua quando deram com Randal obstruindo a saída. O delegado sacou a arma e a apontou para a agressora, pronto para atirar. Antonieta parou à sua frente e, com toda a calma do mundo, levantou o capuz, revelando-lhe a face. Perplexo, Randal escorregou os olhos na direção da senhora, depois para o jovem. Novamente para a senhora. Seu rosto pareceu-lhe incrivelmente familiar. Incrédulo, hesitou. Teriam os mortos revolvido o túmulo e voltado à vida para assombrá-lo em sua cidade? Deu voz de prisão à invasora, mas seu tom foi vacilante. Antonieta tomou-lhe o revólver em um movimento rápido, entortou o cano de aço com as mãos nuas e o devolveu. Sorriu, irônica, enquanto partia com o filho a tiracolo. Apressado como quem sabia ser aquela sua última chance, Randal correu até a sala de armas. Espiando pela janela entreaberta que dava para os fundos da delegacia, teve a sorte de flagrá-los escapando avenida abaixo. A dupla tomava o rumo do Cemitério Municipal. O intrépido homem da lei escolheu um revólver e partiu atrás deles. Sozinho.

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Lutando contra o frio, encolhida junto ao pé da tumba erigida em homenagem póstuma a Eliseo e Antonieta. Aguardando para encontrá-los em vida. Irônico, não fosse lúgubre. Segurava a lanterna na altura da cintura, a mão próxima ao bolso do casaco. O cemitério de Serrópolis, escuro e silencioso, assemelhava-se às ruas abandonadas da cidade. Barulhos somente os de grilos, corujas e outros animais noturnos que zanzam sobre a relva, as árvores e as sepulturas. A expectativa pela chegada do casal era provavelmente mais torturante do que o seria quando estivessem de fato presentes. Distraída com pensamentos negativos, a imaginação da jovem alçava voos longínquos. Sua mente pregava peças, alimentandolhe a ilusão constante de que houvesse algo por perto, sempre à espreita. Que ideia estúpida ter ido até lá! Cada minuto parecia estender-se por horas; cada volta do relógio multiplicava-lhe as dúvidas sobre o sucesso do plano. Ludovico era excessivamente presunçoso, ponderou, bem como ousado demais quando não era ele quem corria os riscos por conta. Exposta defronte a lápide, Gabriela sente-se como a presa indefesa que aguarda o ataque inescapável do predador faminto. O frio e a ansiedade apertam. Gabi desliga a lanterna com o intuito de acalmar-se ao passar incógnita, mas não funciona. A sensação de terror escala exponencialmente, para muito além do suportável, e ela volta a ligar o farolete. O frio se intensifica mais ainda, tornando sua respiração visível. A jovem começa a especular o que aconteceria a ela se nada corresse conforme o previsto. Lembrou de Penteado. Do modo como, por muito menos, se livraram dele. Seria o castigo imposto ao advogado o que de pior podia ocorrer a ela? Havia cenários mais sombrios, aparentemente. Queria ser otimista, mas era difícil raciocinar no cemitério, com aqueles jazigos enfileirados sugerindo-lhe um futuro fúnebre. Circulou em volta do túmulo, era preciso manter-se aquecida. O farfalhar previsível e terapêutico das folhas secas estalando no chão a acalmava tanto quanto possível - mas não por muito tempo.

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Quando, repentinamente, parou para descansar, notou que o crepitar das folhas não tinha cessado. Virou para investigar o barulho de passos em meio às trevas, mas contemplaria tão somente um vulto locomovendo-se nas sombras sem revelar traços de sua identidade. Reparou, porém, desde o túmulo, na projeção de uma capa bastante semelhante à de Ludovico.

*****

Calado, Caio Túlio segue Antonieta a quatro passos de distância. Livre do disfarce, ela agora caminha velozmente, obrigando-o a se esforçar para não ficar pra trás. Receoso, ele evita perguntas. Sabia que ao fazê-las se arriscaria a reconsiderar sua participação - o que seria francamente inoportuno de sua parte. Não fazia ideia de para onde sua mãe o levava, mas tinha perfeita noção do tipo de sacrifício que esperavam dele. O jovem tinha um encontro marcado com o desconhecido, uma espécie de óbito momentâneo ao cabo do qual renasceria transformado imediatamente depois. Caio Túlio estava prestes a abdicar de tudo, submetendo-se a um juízo final onde o único veredicto disponível era a pena perpétua. Deveras assustador para qualquer indivíduo a quem fosse concedido o questionável privilégio do livre-arbítrio sobre tão misteriosa questão. O importante, sabia, era que para enfrentar Ludovico seria preciso ser como ele - e semelhante condição só se alcançava pela renúncia à natureza humana. Era esta a ideia que povoava seus pensamentos, sem, no entanto, constituir propriamente um dilema: o jovem estava resolvido a atuar do modo que se mostrasse necessário. O pesado portão do cemitério, de ferro maciço e grades vazadas, estava encostado apenas. A pesada corrente que servia para impedir a entrada de ladrões de túmulos e jovens arruaceiros restava atirada com displicência na calçada. Tão logo invadiram o recinto, Antonieta contou que se dirigiam ao túmulo da família, onde surpreenderiam Gabriela e Ludovico. Sim, havia chegado o momento, concluiu aflito. Caio Túlio começou a imaginar como seria quando a mãe ou o pai – onde ele estava

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quando mais precisava dele? – cravassem os caninos em seu pescoço. Se sentiria dor, se desmaiaria, e como seria afinal a imortalidade. Que curiosa ironia do destino! Eliseo e Antonieta, seus pais em dobro. Uma segunda oportunidade para melhor desempenharem o papel no qual haviam falhado miseravelmente. Percebeu crescer dentro dele uma ponta de curiosidade, bem como um temerário flerte com o poder. - O que faremos agora?- perguntou o Pereira Inácio ao avistarem a lápide. - Aguarde, por enquanto – instruiu Antonieta. Mantinham confortável distância da tumba, mas nenhum sinal de movimento. O brilho intenso da lua cheia que se desvencilhara das nuvens concedia uma visão tão satisfatória quanto extraordinária do entorno da sepultura. Ocultos atrás de uma fileira de arbustos, afastando os galhos com as mãos, ambos viram quando Gabriela finalmente apareceu. Caminhava em círculos, aflita, alheia à presença de espectadores. Caio Túlio animou-se porque ela estava sã e salva. Ensaiou ir ao encontro dela, mas Antonieta interferiu. Sabia o que estava por acontecer. Se o filho, incauto e crédulo, tivesse prestado melhor atenção teria visto quando ela deixou escapar um sorriso sádico de canto de boca. Eliseo, o furtivo, emergiu por trás da moça, que o perceberia tarde demais. O vampiro trajava uma capa idêntica à de Ludovico. O ataque, na penumbra e à distância, não permitia uma identificação precisa. Para o jovem, era o seu maior inimigo quem estava na iminência de praticar o odioso crime de assassinar-lhe a paixão correspondida e não consumada. Bastava. Era aquele o convencimento final que o passaria de corpo e alma para o lado do casal. Frio e insensível para o todo sempre. Terminava qualquer arremedo de dúvida, e germinava com vigor a semente do ódio contra os inimigos da família. Impotente diante da ação do vampiro, lastimava a própria sorte e a de seus próximos. Gabriela virou de costas e protegeu o rosto instintivamente, mas não havia tempo para defender-se. Sequer gritou. O único e imediato lamento expresso em seu corpo foi verter uma lágrima solitária, que escorreu do seu olho esquerdo enquanto o monstro alcançava sua jugular pulsante. Eliseo escancarou a mandíbula, os caninos salientes próximos a rasgar-lhe as carnes do pescoço quando o impensável aconteceu. O triunfo oportuno. Ludovico, o vingador, surge no momento mais vulnerável do inimigo. Ascendia da sepultura como quem viesse das profundezas do inferno em busca do

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antigo pupilo. Em um movimento único, dilacerou-lhe a garganta com um punhal. O sangue frio e sem vida de Eliseo jorrou por sobre o túmulo dos Pereira Inácio. Atônita, dominada pelo terror e a tristeza, Antonieta abandonou o filho e deu meia volta para partir em fuga. Inútil. Lurdes cravou-lhe a estaca no coração. Precisa e impiedosa.

*****

Os acontecimentos recentes na delegacia deixaram explícito que se tratava, sem dúvida, de um caso extraordinário e, ao que tudo indicava, indiscutivelmente sobrenatural. Ao delegado, era forçoso - embora reconfortante - admitir que sobre tal matéria não possuía jurisdição. No entanto, lá estava. Exorbitando suas funções, pois era, afinal, a sua cidade, e se houvesse alguém responsável por procuração por crimes daquela ordem, certamente seria ele. Oculto entre duas estátuas robustas que decoravam o túmulo de alguma abastada família serropolense, observara passivamente o aumento na conta dos assassinatos. Dois homicídios, mas teria mesmo havido crime? Era difícil saber o modo correto de proceder. Devia dar voz de prisão às criaturas, sujeitando-as à lei do homem? Quanto às vítimas, aplicava idêntico raciocínio. Legalmente mortas há décadas, não eram propriamente as do tipo que o Direito socorre. Randal avaliava as alternativas enquanto Ludovico caminhava na direção de Caio Túlio. O jovem, ajoelhado e deprimido, tentava assimilar o que acabara de ocorrer diante de si. Gabriela estava salva, é verdade, mas seus pais restavam extintos, estirados a poucos metros dele. Caio Túlio se deu conta de que era órfão novamente, e que dessa vez não poderia fantasiar, se o quisesse, sobre a bondade e o carinho dos pais ausentes. Tinha sido enganado pelo próprio sangue, uma vez mais. Felizmente, a linhagem maldita terminava nele, concluiu o último Pereira Inácio. Soluçou, abandonado e triste.

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Ao erguer os olhos, deu com Ludovico materializado à sua frente. Assustou-se: não podia confiar no vampiro. Não confiaria em mais ninguém. A criatura recuou um passo, pediu que se acalmasse. Disse que havia cumprido sua missão e que não perturbaria mais ninguém naquela cidade. Que fatalmente a dor que o empresário sentia um dia terminaria, e que era ele um afortunado porque não sofreria o pesar da separação por toda a eternidade. Ludovico o consolava, talvez tivesse mesmo se afeiçoado ao jovem. Estendeu o braço para erguê-lo, e foi quando Randal julgou que era hora de agir. Caio Túlio estava prestes a tornar-se a terceira vítima da trágica madrugada. O derradeiro mártir da moribunda família. Aquele, sim, um crime que não permitia omissão. O policial se interpôs entre os dois e, à curta distância, descarregou os seis tiros do revólver no peito do vampiro. Ludovico levou as duas mãos ao coração ferido. Que estrago as balas tinham feito à sua camisa nova. Maldisse o delegado, e assegurou que a ofensa só passaria impune porque estava de muito bom humor. Ludovico foi até Gabi, a morena ainda se recuperava do susto, e a amparou, afetuoso. - Estou livre, não? – perguntou a repórter. - Foi o que prometi – assentiu. Olhou para Lurdes, partiriam definitivamente. – Lembre-se do combinado, senhorita Rios. Lembre-se do combinado... - a morena fez menção de agradecê-lo, mas Ludovico entendeu o recado antes que ela o verbalizasse. Ele sempre entendia. Apenas respondeu com o olhar, profundo e negro, que não era o caso para agradecimentos. Desapareceram, enfim, e a jovem ficou imaginando para onde iriam e se era aquela a última vez que os veria. Randal correu até Gabriela, ávido por explicações. - É uma longa história, delegado. Que tal deixá-la para amanhã?

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CAPÍTULO 7 – EPÍLOGO

PASSARAM O DIA trancados na sala do delegado. O pequeno grupo acordou em conjunto o modo como viriam a público – e quando saíram do cômodo tomaram rumos distintos. Paulino, quem mais havia contribuído para a explicação do caso, retornou para a sua cela. Assumiria os crimes – os seus e os de Eliseo e Antonieta. De todos, foi o que saiu mais satisfeito, aliviado com a ruína dos que o assombravam. Acalmou-lhe o espírito a crença de que pagava seus crimes pela lei do homem e, por extensão, pela que a sobreviesse. Suas contas com o oculto estavam saldadas. Randal trancou-se em sua sala depois de conduzir o prefeito ao xadrez e despedir-se dos forasteiros. Só sairia de lá depois de concluir a redação do inquérito. Cansado, tinha passado a noite em claro pensando naquela reunião e em suas consequências. Abriu a porta até a metade, lembrando de pedir à assistente que o servisse um café bem forte. Estava convicto de que a fantástica realidade jamais poderia chegar ao conhecimento de todos. Primeiro, e era este o argumento que mais o convencia, porque era preciso conter o pânico em uma combalida Serrópolis atormentada por eventos além de sua compreensão; depois porque tinham, os quatro, motivos bastantes para temerem represálias. Ludovico e Lurdes estavam vivos, afinal, e retaliariam

os

envolvidos

muito

além

do razoável

caso

fossem

expostos

desnecessariamente. Caio Túlio e Gabi deixaram a pé a delegacia. Estacionado atrás do Fusca do delegado, lá estava o carro do empresário à sua espera, apreendido desde a fatídica noite quando foi obrigado a abandoná-lo diante da ponte interditada. Caio Túlio rodou o chaveiro entre os dedos, estava radiante. Percorrera caminhos tortuosos para finalmente alcançar o propósito de quando veio. A desolação da noite anterior fora apenas passageira. Havia exorcizado os demônios do passado, e a ausência deles abria espaço

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para toda uma vida que se descortinava à frente dele. Construíra para si um novo conceito de felicidade. Um conceito antagônico, onde estar livre era tão melhor do que estar preso. Como era bom saber que estava solto! Carregara um peso além do dele, mas agora viajava sem bagagem, o que talvez abrisse espaço para companhia. Apenas uma coisa ainda o incomodava. Estava intrigado com o silêncio de Gabi no distrito. Por que nada revelara sobre o período em que foi prisioneira do vampiro? Talvez quisesse acobertá-lo, mas, se assim o fosse, não poderia conceber semelhante relação de cumplicidade entre eles. Gabriela sacou do celular, ligava para Tomé vir buscá-la. Caio Túlio interferiu. - Eu te levo. Vai para a capital, não vai? - Não precisa se incomodar – mentiu. - Faço questão. O caminho é longo, será bom tê-la ao lado – deixou escapar um sorriso. - E temos muito o que conversar. Fingindo timidez, ela aceita o convite. Depois do que passaram juntos, não faria mesmo sentido que se tratassem como estranhos. - Passamos no hotel primeiro? Preciso buscar as malas. A morena sentou no banco do passageiro, procurou o espelho e prendeu os cabelos. Por fim, recostou-se no banco, reclinando-o, olhou para o teto como quem se espreguiçasse e suspirou. Estava exausta. - Gabi? - Sim. - Que vai fazer com a história? Não vai publicá-la como queria. - Vou, sim. O jovem brecou o carro, assustado como se tivesse ouvido algo que desencadearia uma reação em cadeia que os traria de volta ao olho do furacão. - Está louca?!

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- Fiz um acordo com Ludovico – respondeu, despreocupada, ainda olhando para o teto. - Não resta dúvida que enlouqueceu. Quem faz acordos com alguém como ele? - Deixou que a publicasse em forma de romance. É claro que vou mudar o nome das pessoas, dos lugares e alguns detalhes da história. - É loucura - protestou, apenas para logo em seguida mandar a cautela às favas. Mas se ele diz que concorda... - Agora vejo como são os vampiros. Adoram uma autopromoção.

*****

Portões trancados. Uma única vivalma incomoda grilos, corujas e animais noturnos que zanzam sobre a relva, as árvores e as sepulturas. O coveiro Régis golpeia a terra com a parte de trás da pá de ferro e cabo de madeira no terreno reservado aos indigentes, amassando-a com capricho e zelo. São os retoques finais no jazigo dos cadáveres encomendados a ele pelo delegado. O coveiro não fazia perguntas. Não queria saber quem eram, do que morreram ou de onde vinham. Enterrava, apenas. Retirava-se quando notou uma pequena rachadura sobre o amontoado de terra que cobria a sepultura. Perfeccionista, tomou da pá e a consertou, mas a fenda tornou a precipitar-se em seguida. Enfurecido, desferiu-lhe uma pancada seca que retornou um ruído distinto - como se tivesse atingido algo além de terra batida. Agachou-se para examinar, curioso.

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Dos sete palmos de terra emerge a mão espalmada, pálida e encardida. Depois dela, os corpos de um e outro de volta à vida. Eliseo limpa o terno com as mãos sob o olhar petrificado do coveiro. Antonieta cospe terra, engasgada. - Imortais, não? – comentam com o perplexo coveiro antes de desaparecerem na escuridão do cemitério

F I M

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Biografia

Francisco Scattolin nasceu em Sorocaba, interior de São Paulo, em 1982. Formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e Administração de Empresas pela FGV/SP, é editor do blog EmTempo desde 2005. “De Volta à Cidade do Vampiro” é o seu romance de estreia.

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