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Indique
Argumento………..…………………………………………..3 Capítulo 1……………………….…………………..…………4 Capítulo 2………………………….……………...…………10 Capítulo 3……………………….……………………………42 Capítulo 4………………………….…………………………65 Capítulo 5………………………….…………………………94 Capítulo 6……………….………….………………………126 Capítulo 7………………………..…………………………141 Capítulo 8…………………….….…………………………161 Capítulo 9…………………….….…………………………172 Capítulo 10.…………………..……………………………197 Epílogo…………………………….………………………...211 Resenha bilbiográfica……...………….…………………217
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Sinopse Se não fora pela magia, Atlanta seria uma cidade agradável para viver… Quando a magia se estende, os monstros reptan de entre as sombras e os bruxos urdem seus feitiços, enquanto que as armas de fogo deixam de funcionar e os carros se detêm. Mas a tecnologia sempre retorna, e a magia retrocede tão sigilosamente como apareceu, deixando detrás de si uma esteira de moléstias paranormais. Kate Daniels é uma mercenária feita a si mesmo que ganha a vida resolvendo esse tipo de inconvenientes mágicos. Entretanto, quando seu guardião é assassinado, seu desejo de justiça a situa no centro de um conflito pelo poder entre duas das principais facções das altas esferas mágicas de Atlanta. Os Senhores dos Mortos, nigromantes que controlam aos vampiros, e a Manada, um clã paramilitar de cambiaformas, acusam-se mutuamente de uma série de estranhos assassinatos. A morte do guardião do Kate pode ser uma das chaves para a resolução do mistério. s por ambos os bandos em sua busca do assassino, Kate compreenderá muito tarde que o caso lhe escapa das mãos. Embora o único que pode fazer é seguir adiante… «Desfrutem com uma nova e esplêndida fantasia urbana… Não posso esperar a ter entre minhas mãos o novo livro da série, ou qualquer outra coisa que escreva Ilona Andrews». Patricia Briggs, autora do Cry Wolf.
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Capitulo 1 Quando me alcançou a flutuação mágica estava sentada à mesa da cozinha, virtualmente às escuras, contemplando ensimismada uma garrafa de limonada forte Boones' Farm, As barreiras de amparo oscilaram e se paralisaram, despojando à casa de suas defesas, O televisor se acendeu sozinho, alagando a casa vazia de um som pouco natural. Enarqué‚ uma sobrancelha sem apartar o olhar da garrafa e me aposté‚ com esta a que apareceria outro boletim de notícias urgente, A garrafa perdeu a aposta. — Boletim urgente! —anunciou Margaret Chang—. O Fiscal General informa a todos os cidadãos de que qualquer tento de convocar ou forçar a aparição por outro meio de um ser sobrenatural pode ser perigoso para a gente mesmo e para o resto de cidadãos. — Não jodas —lhe disse à garrafa. — A polícia Local recebeu a autorização para impedir este tipo de atividades com todos os meios a seu alcance. Margaret contínuo tagarelando monótonamente enquanto eu me concentrava no sanduíche. A quem queriam enganar? Era impossível que a polícia pudesse
frustrar todos os intentos de invocação que se produziam diariamente. Solo um bruxo qualificado podia detectar uma invocação em processo. E qualquer idiota que soubesse ler medianamente bem e com a suficiente habilidade para utilizar seu limitado poder podia tentar uma. antes de te dar conta tênias a um deus eslavo de três cabeças causando estragos no centro de Atlanta, do céu choviam serpentes aladas e os SWAT pediam mais munição a gritos. Aqueles eram tempos muito inseguros. Embora se não fossem, seria uma mulher em parada. No plácido mundo tecnológico não havia lugar para uma mercenária com poderes mágicos, Quando a gente tinha um problema relacionado com a magia, um no que a polícia não podia ou não desejava envolver-se, chamava o Grêmio de Mercenários. Se o trabalho se produzia dentro de meu território, o Grêmio me chamava . Fiz uma careta e me froté‚ o quadril. Ainda me doía depois do último trabalho, embora a ferida se curou melhor do que esperava. Aquela era primeira e última vez que aceitava me enfrentar ao Verme Empala sem armadura completa. A próxima vez exigiria um traje de contenção de nível quatro. Alcançou-me uma fria quebra de onda de medo e repugnância. Me revolveu o estomago e uma substância azeda se hospedo em minha garganta, me deixando um gosto amargo, Um calafrio me percorreu o espinho dorsal e me arrepiou o diminuto pêlo da nuca. Uma presença maligna em minha casa.
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Deje‚ o sanduíche no prato e apreté‚ o botão do mando a distancia para silenciar o televisor, Na tela, Margaret Chang conversava com um homem de rosto pétreo e corte de cabelo militar, Um poli. Certamente da Divisão de Atividade Paranormal. Apoyo‚ uma mão sobre a adaga que tinha no regaço e me quede‚ completamente imóvel. Escutando, Esperando.
Nenhum som interrompeu o silêncio lhe reinem Se formou uma gota de água na superfície úmida da garrafa do Boone's Farm e escorregou por um de seus reluzentes flancos. Algo grande avançou lentamente pelo teto do corredor até a cozinha. Fingi não reparar em sua presença. deteve-se minha direita, um pouco detrás de mim, de modo que não tive que fingir muito. O intruso duvido um instante, deu-se a volta e se sujeito ao ângulo que formava o teto e a parede. ficou ali, obstinado à madeira com suas enormes garras amarelas, imóvel e silencioso como uma gárgula a plena luz do dia. Dava um rápido gole da garrafa e a deje‚ sobre a mesa para poder ver o reflexo da criatura nela. Nu, sem cabelo e com um corpo magro e fibroso. Sem a menor presencia de graxa. Sua pele se esticava de tal modo sobre os duros tendões de seus músculos que parecia estar a ponto de rasgar-se. Como uma magra capa de cera sobre um modelo de anatomia. O típico e amigável Spiderman. O vampiro elevo a mão esquerda. Suas garras, afiadas como adagas, rasgaram o ar de um lado ao outro, como arqueadas agulhas de costurar. Torceu a cabeça em um gesto animal e me estudo com uns olhos chamejantes que transmitiam uma loucura muito particular, uma nascida da sede de sangue e despojado de qualquer pensamento ou contenção. Em um só movimento, dava-me a volta e lancé‚ a adaga. A negra folha penetro limpamente na garganta da criatura. O vampiro ficou petrificado e suas garras amarelas deixaram de mover-se. Um sangue espesso e purpúreo se acumulou na folha da adaga e, lentamente, escorregou pela carne nua do pescoço do vampiro, manchando seu peito e jorrando até o chão. Suas facções se crisparam ao tentar adotar outra fisionomia. Quando abriu seus fauces, fizeram-se visíveis duas presas curvadas como foices de marfim em miniatura. — Isso foi que o mas desconsiderado, Kate. —A voz do Ghastek me chegou através da garganta do vampiro—. Agora tendrás‚ que lhe dar de comer.
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— É um ato reflito. Sonha o sino, agarro comida. Vejo um morto vivente, lanço a faca. É muito parecido. —O rosto do vampiro se sacudiu como se o Senhor de quão mortos o controlava tentasse entreabrir os olhos. — estas Que‚ bebendo? —perguntou Ghastek. — Boone's Farm. — Pode te permitir algo melhor. — Não quero nada melhor. Eu gosto do Boone’s Farm. E prefiro falar de negócios por telefone. Embora contigo, prefiro não falar de nada. — Não quero te contratar, Kate. Tão solo é uma visita de cortesia. Mire‚ fixamente ao vampiro e desee‚ poder cravar minha faca no pescoço do Ghastek. Se pudesse seccionar sua carne me sentiria de primeira. Por desgraça, Ghastek estava sentado em uma habitação blindada a muitos quilômetros dali. — você adora jogar comigo, verdade? — Imensamente. Pergunta-a do milhão de dólares era por que? — Que‚ quer? Fala rápida, o Boone's Farm se está esquentando. — Só me perguntava —disse Ghastek com uma seca neutralidade muito própria do—. Quando foi a última vez que viu seu guardião. A despreocupação com a que o disse fez que um calafrio me percorresse todas as costas. — por que?
— Por nada. como sempre, foi um prazer. Com um único e poderoso salto. O vampiro se separo da parede e saiu pela janela aberta. Levando-se minha faca com ele. Enquanto amaldiçoava em voz baixa, alargue‚ a mão para agarrar o telefone e marque‚ o número da Ordem do Auxílio Misericordioso. Nenhum vampiro podia superar minhas barreiras quando a magia estava em pleno apogeu. Como Ghastek não tênia forma de saber quando retrocederia a magia, devia ter estado observando minha casa durante um bom momento, esperando a que meus conjuros defensivos deixassem de ser efetivos. Dava um sorvo da garrafa. Aquilo significava que um vampiro tinha estado oculto em algum lugar próximo quando llegue‚ a casa a noite anterior. E não o tinha visto nem tinha percebido sua presença. Podia eliminar diretamente o de minha carteira de mercenária. Um tom. Dois. Três. Por qué‚ me teria perguntado Ghastek pelo Greg? O aparelho emitiu um estalo e uma severo voz feminina pronunciou a frase habitual: — Eu gostaria de falar com o Greg Feldman. — Seu nome? —Uma sutil nota de ansiedade pontuava sua voz.
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— Não tenho que te dar meu nome —lhe disse ao auricular—. Eu gostaria de falar com o cavalheiro místico. Uma pausa, depois da qual, uma voz masculina me disse: — Por favor, identifique-se.
Estava-me entretendo, provavelmente para rastrear A chamada. Que‚ demônios estava ocorrendo? — Não —disse com firmeza—. Pagina número sete da Carta, terceiro parágrafo, parte inferior: Como cidadã, insisto em que me passem agora mesmo com o cavalheiro místico ou me indiquem a hora em que posso encontrá-lo. — O cavalheiro místico esta morto —disse a voz. O mundo se deteve. Me deslice‚ através de sua imobilidade, aterrada e incapaz de manter o equilíbrio. Ardia-me a garganta. O coração me pulsava desbocado—. Como? —Consegui manter a calma. — Morreu em ato de serviço. — Quem o fez? — O caso está sendo investigado. Escute, se pudesse me deixar seu nome. — Presioné‚ o botão para cortar a chamada e dejé‚ o auricular em seu sítio. Mire‚ a cadeira vazia ao outro lado da cozinha. Por volta de uma semana, Greg tinha estado sentado nessa cadeira, removendo o café‚ com uma colherinha. A colherinha tinha esboçado círculos precisos, não permitindo nunca que seus lados roçassem a taça. Durante um instante, enquanto a lembrança resistia a abandonar minha mente, pude visualizá-lo ali sentado. Greg me observava com seus olhos escuros, tristes, como os olhos de uma estátua. — Por favor, Kate. Deixa por um momento de lado o fato de que não te caia bem e escuta o que tenho que te dizer, Tem sentido. — Não me cai mau. Isso é simplificar muito as coisas. Greg assentiu com aquela expressão paciente que estava acostumado a voltar loucas às mulheres, —É obvio, Não desejo te incomodar nem simplificar seus sentimentos. Só desejo que nos concentremos no realmente importante. Escutasse-me? Me eche‚ para trás na cadeira e me cruce‚ de braços.
— Escuto-te. Introduziu uma mão no interior de sua jaqueta de pele e extraiu um cilindro de pergaminho. Deixo-o sobre a mesa e o desenrolo lentamente, mantendo-o estendido com a ponta dos dedos. — É o convite da Ordem. Me lleve‚ as mãos à cabeça. — Já esta, acabo-se. — me permita terminar —disse ele. Não parecia zangado.
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Não me disse que estava me comportando com uma cria, embora eu sabia que o estava fazendo. Aquilo me pôs até mais furiosa. — Esta bem —disse. — dentro de poucas semanas fará vinte e cinco anos. Embora se por acaso solo não seja grande coisa, conduz certas conseqüências pelo que se refere ao protocolo de admissão na Ordem, É muito mas complicado ingressar acontecidos os vinte e cinco. Não impossível, mas mais difícil. — O se‚ —lhe disse—. Me enviaram o folheto. Greg soltou o cilindro e se recostou na cadeira enquanto entrelaçava os dedos. O cilindro permaneceu aberto em que pese a que todas as leis da física indicavam que teria que haver-se voltado a enrolar. Às vezes Greg se esquecia da física. — Nesse caso, conhecem as penalizações pela idade. Não era uma pergunta, mas a conteste‚ de todos os modos.
— Se. Greg suspiro. Foi um movimento sutil, solo perceptível para aqueles que lhe conheciam muito bem. Pelo modo em que estava sentado, imóvel, estirando ligeiramente o pescoço, soube que tinha previsto minha decisão. — Eu gostaria que o reconsiderasse —disse. — Não vou fazer o. —Por um instante pude ver a frustração refletida em seus olhos. Ambos sabíamos o que ficava sem dizer: a Ordem oferecia amparo. E o amparo era primitivo para alguém de minha linhagem. — Posso te perguntar por que? —disse o. — Não vai comigo, Greg. Não me sinto cômoda com as hierarquias. Para o, a Ordem era um lugar onde refugiar-se e sentir-se seguro, um lugar de poder. Seus membros estavam completamente comprometidos com os valores da Ordem, e a serviam com tal dedicação que, a aquelas alturas, a organização já não parecia a união de seus integrantes a não ser uma entidade em se mesma; uma entidade pensante, racional e incrivelmente poderosa. Greg a tinha aceito e ela cuidava do. Eu a tinha rechaçado e quase me tinha perdido a meu mesma. — Cada minuto que pase‚ ali sentia que ficava menos de mim —lhe disse—. Como se me estivesse encolhendo, minguando. Tinha que me largar, e não penso retornar. Greg me Miro com uma terrível tristeza refletida em seus olhos escuros. A tênue luz da cozinha, sua beleza resultava assombrosa. De um modo algo perverso, me alegre‚ de que meu cabezonería lhe tivesse obrigado a vir para ver-me, e agora o tênia sentado a menos de um metro por mim, um príncipe elfo de idade indefinível, elegante e aflito. Deus, quanto me odie‚ a minha mesma por aquela fantasia de menina pequena. — Se me perdoar —lhe disse.
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Greg pisco várias vezes, surpreso por minha formalidade, e ficou em pé lánguidamente. — É obvio. Obrigado pelo café. O observe‚ enquanto se dirigia à porta. Já tinha escurecido e a brilhante luz da lua tingia de prata a erva do jardim. Junto ao alpendre, as Rosas de Síria resplandeciam entre os arbustos como estrelas dispersas. Observe‚ como Greg descendia os três degraus de cimento e se internava no jardim. — Greg? — Se? —deu-se a volta. Sua magia cintilo a seu redor como se se tratasse de um manto. — Nada. —E cerré‚ a porta. Era o ultimo lembrança que tênia do. De pé frente ao jardim, banhado pela luz da lua, envolto em sua magia. OH, Deus. Me rodee‚ o corpo com os braços. Embora tinha vontades de chorar, as lágrimas não apareceram. Tênia a boca seca. Tinha perdido o último laço que unia a minha família. Não ficava ninguém. Tinha perdido a minha mãe, a meu pai e agora ao Greg. Apertei os dentes e comecei a fazer a mala.
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Capitulo 2 A magia tinha chegado enquanto guardava na bolsa o essencial, de modo que tive que agarrar ao Karmelion em lugar de meu carro habitual. Karmelion, uma caminhonete desmantelada, oxidada, de cor verde bílis e sem luz dianteira esquerda, solo tinha uma vantagem: funcionava com água induzida por magia e podia utilizar-se durante uma quebra de onda mágica. Ao contrário que o resto de veículos, a caminhonete não produzia os habituais ronroneos, murmúrios ou outros sons típicos de um motor, mas sim grunhia, gemia, resmungava e emitia estrondos lhes ensurdecer com deprimente regularidade. Não tinha a menor ideia de quem a tinha batizado com o nome do Karmelion nem por que. Tinha-a comprado em uma chatarrería com o nome
rabiscado no pára-brisa. Por sorte, habitualmente Karmelion só devia percorrer os cinqüenta quilômetros que separavam minha casa do Savannah. Aquele dia, entretanto, obriguei-a a circular pela linha de energia, o que, por si só, tampouco o fazia nenhum mal, já que a linha a arrastou diretamente até as imediações de Atlanta. Não obstante, o atalho que cruzava a cidade não lhe sentou muito bem. Agora a caminhonete se estava esfriando em um estacionamento enquanto jorrava água e destilava magia. O gerador demoraria uns quinze minutos em voltar-se para esquentar, mas não me importava. Tinha a intenção de ficar ali durante um tempo. Odiava Atlanta. Odiava as cidades, ponto. Enquanto esperava na calçada, joguei uma olhada ao desvencilhado edifício onde supostamente estavam os escritórios da Capela de Atlanta da Ordem de Cavalheiros do Auxílio Misericordioso. A Ordem se esforçava em ocultar sua autêntica dimensão e poder, mas neste caso se passaram da raia. O edifício, um cubo de cimento de três pisos, parecia um molar picada rodeada de majestosas casas de tijolo. As paredes exteriores luziam manchas ferrugentas de cor laranja produzidas pela água de chuva desalojada do teto metálico por canelone tachonados de orifícios. As pequenas janelas estavam protegidas com grosas grades metálicas, e umas pálidas persianas cobriam os poeirentos cristais. Tinha que haver outras instalações na cidade. Um lugar onde trabalhasse o pessoal de apoio enquanto os agentes de campo se encarregavam de manter as aparências. Disporia de um enorme arsenal de última geração, uma rede de área local e uma base de dados em que estariam registradas todas as pessoas com poderes, tanto mágicos como mundanos. Em algum lugar daquela base de dados estaria meu nome enterrado em seu pequeno nicho, o nome de uma marginada, indisciplinada e inútil. Justo como eu gostava.
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Apoiei uma mão na parede. A uns seis milímetros da superfície, meus dedos toparam com uma resistência elástica, como se estivesse espremendo uma bola de tênis. Minha pele emitiu um trêmulo resplendor prateado e apartei a mão. O edifício estava fortemente protegido contra qualquer tipo de magia hostil. Se alguém com a suficiente energia lançasse uma bola de fogo contra
ele, o mais provável é que ricocheteasse sem deixar o mais mínimo rastro na fachada cinza. Abri uma das duas portas metálicas do edifício e entrei nele. Um estreito corredor se abria a minha direita e terminava em uma porta com um enorme letreiro vermelho e branco: Solo pessoal autorizado. A outra opção era um lance de escadas que conduzia ao primeiro piso. Decidi-me pelas escadas, as quais, descobri surpreendida, estavam bastante podas. Ninguém tentou me deter. Ninguém me perguntou que fazia ali. Note, somos amáveis e nada ameaçadores. Nosso objetivo é ajudar à comunidade, e inclusive permitimos que qualquer entre livremente em nossos escritórios. Podia entender a necessidade de um edifício despretensioso, mas, segundo o registro público, o pessoal da Capela estava composto unicamente por nove cavalheiros: um protetor, um místico, um cuestor, três defensores e três guardiães. Nove pessoas para controlar uma cidade do tamanho de Atlanta. Muito acreditável. As escadas terminavam em um patamar com uma única porta grafite de verde pálido. Uma pequena adaga brilhava tenuemente em sua superfície, à altura de meus olhos. Não me pareceu adequado chamar com os nódulos, de modo que a abri e cruzei a soleira. Ante mim, um comprido corredor bombardeou meus olhos cansados com uma descomunal variedade de cores: cinza, cinza e ainda mais cinza. Gasta-a tapete era de um monótono tom cinza; as paredes estavam pintadas com dois matizes distintos de cinza: mais claro na parte superior e de um escuro cinza cinza na parte inferior. As pequenas verrugas do teto, aplique elétricos, também eram cinzas. Não era estranho que o desenhista tivesse eleito um cristal defumado para que harmonizasse com o resto da decoração. O lugar estava impoluto. O corredor tinha várias portas, depois das quais supus que haveria escritórios individuais. Ao final do corredor, um escudo ovalado e esmaltado em negro pendurava de uma porta maciça de madeira. No centro do escudo, a silhueta metálica e polida de um leão rampante. O símbolo do cavalheiro—protetor. Justo o tipo ao que queria ver. Percorri o corredor em direção ao escudo, jogando uma olhada aos escritórios à medida que passava frente a elas. A minha esquerda vi uma pequena armería. Um homem baixinho e musculoso estava sentado em um banco de madeira polindo uma dha.
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A larga folha da espada curta de origem vietnamita brilhou ligeiramente quando o homem percorreu o metal azulado com um pano empapado em algum tipo de lubrificante. A minha direita, um escritório pequeno mas imaculada. Um homem negro e corpulento, embainhado em um traje caro, estava sentado frente a um escritório, falando por telefone. Quando me viu, sorriu-me amavelmente com um gesto automático e continuou com a conversação. Se tivesse estado em seu lugar, eu tampouco me teria cuidadoso duas vezes. Levava posta minha roupa habitual de trabalho: jeans o suficientemente soltos para poder lhe chutar o pescoço a um homem mais alto que eu, uma camisa verde e cômodas esportivas. Assassina descansava em sua vagem a minhas costas, oculta parcialmente pela jaqueta. O punho me sobressaía por cima de meu ombro direito, mas conseguia dissimulá-la me recolhendo o cabelo em uma espessa trança. Era uma solução bastante incômoda: a trança me golpeava nas costas quando corria e se convertia em um cabo ideal para mim oponente durante uma briga. Se tivesse sido um pouco menos presumida, me teria talhado isso tempo atrás, mas já tinha renunciado à roupa feminina, à maquiagem e à roupa interior sexy em altares da funcionalidade. Não poderia suportar ter que sacrificar também meu cabelo. Cheguei frente à porta do protetor e chamei com os nódulos. — Um momento, querida —disse a severo voz feminina que tinha ouvido no dia anterior através do telefone. Olhei em sua direção e vi um pequeno escritório repleto de arquivos. No centro da mesma havia um enorme escritório e, ascensão a este, uma mulher de média idade. Era alta, delicada e extremamente magra, com um halo de cabelo encaracolada cinza platina sobre sua cabeça. Vestia um elegante traje calça de cor azul. junto a uma pata da cadeira, que devia ter utilizado para subir ao escritório, um par de sapatos a jogo com o traje. — Está ocupado com outra pessoa, querida —me disse a mulher. Levantou as mãos por cima da cabeça e se dispôs a trocar a frisada lâmpada do abajur feérica fixada junto a um spot elétrico—. Não tem entrevista, verdade? — Não, senhora.
— Bom, pois é seu dia de sorte. Tem a manhã livre. por que não me diz você nome e o motivo de sua visita? Assim verei o que nos poder fazer por ti. Esperei até que terminou de colocar em seu sítio a lâmpada feérica, disse-lhe que estava ali pela morte do Greg Feldman e lhe entreguei meu cartão. A mulher a aceitou sem mostrar nenhum tipo de reação e assinalou um ponto situado detrás de mim. — Ali há uma sala de espera, querida.
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Dava-me a volta e me encaminhei à sala de espera. Não era mais que outro escritório com uma poltrona negra de pele e duas cadeiras. junto à porta, sobre uma mesa pega à parede, havia uma cafeteira cercada por duas pilhas de pequenas taças de louça. junto às taças, vi um grande de açúcar, e junto a este, duas caixas do Donuts Duncan. Minha mão se desviou para as doa, mas consegui me conter. Qualquer que tivesse provado as doa do velho Scott aprendia rapidamente que resultava impossível contentar-se com um sozinho, e apresentar-se no escritório do protetor com as mãos manchadas de nata de chocolate não era o melhor modo de lhe causar uma boa impressão. Encontrei um lugar seguro junto à janela, longe das doa, e olhei ao exterior através dos barrotes, à estreita franja de céu encapotado e emoldurado pelos telhados circundantes. A Ordem do Auxílio Misericordioso oferecia justo o que seu nome indicava: auxílio misericordioso a todo aquele que o pedia. Se a pessoa podia pagar, a Ordem cobrava seus serviços; se o interessado não tinha recursos, matavam pró bônus a destro e sinistro em seu nome. Oficialmente, sua missão era proteger à humanidade contra qualquer ameaça, com a magia ou o poder das armas. O problema era que a definição de
ameaça resultava do mais flexível e, de vez em quando, auxílio misericordioso significava que o cliente acabava com o jugular seccionada. Embora a Ordem sempre conseguia sair impune. Sua filiação era muito capitalista para ser ignorada, e a tentação de recorrer a ela muito grande. O governo lhe tinha conferido a condição de terceiro ramo no triunvirato encarregado da ordem pública. Em teoria, a Divisão Policial de Atividade Paranormal, as Unidades de Defesa Paranormal do Exército e a Ordem do Auxílio Misericordioso deviam colaborar entre elas para manter a segurança da população. Na prática, não tudo funcionava tão bem. Os cavalheiros da Ordem eram solícitas, competentes e letais. Ao contrário que os mercenários do Grêmio, não se deixavam levar pelo interesse econômico e sempre se mantinham fiéis a sua palavra. Embora, ao contrário que os mere, também estavam acostumados a fazer julgamentos de valor e sempre acreditavam estar em posse da verdade. Um homem alto entrou na sala de espera. Seu vapor me alcançou antes inclusive de lhe ver, um fedor asquerosamente doce e persistente a lixo em decomposição. O homem levava um amplo impermeável marrom manchado de tinta e graxa e talher de tantas variedades de comida e restos de lixo que parecia o jovem José com seu casaco de inumeráveis cores. Levava o impermeável sem grampear, por isso pude distinguir uma abominação em forma de camisa: azul e vermelha com raias de tartán verdes. sujeitava-se as sujas calças cáqui com uns suspensórios de cor laranja. Calçava umas velhas botas de pára-quedista com as pontas metálicas e se cobria as mãos com umas luvas de pele com as pontas cortadas à altura do primeiro nódulo.
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Na cabeça levava um chapéu de feltro, um Fedora passado de moda, deteriorado e sujo além do possível. Sob o chapéu, um grosso cabelo castanho esvaído lhe emoldurava o rosto em um matagal murcho e sem vida. À lombriga, tirou-se o chapéu e o sustentou entre o dedo indicador e o coração, do mesmo modo em que algumas pessoas sujeitam o cigarro. Foi então quando reparei em seu rosto: facções duras, barba de três dias e olhos pálidos, ansiosos e frios. Não havia nada especialmente ameaçador em seu modo de
me olhar, mas algo atrás daqueles olhos me fez desejar levantar as mãos e retroceder lentamente até que pudesse sair correndo para salvar o pele. — Señooooora —disse o homem arrastando muito a palavra. Pô-me os cabelos de ponta. — bom dia —lhe respondi com um sorriso. Embora minha saudação soou mas bem a «taueeeeen cão». Teria que acontecer ele se queria sair da habitação. A recepcionista foi a meu resgate. — Já pode passar, querida —me chamou desde seu escritório. O homem se apartou, fez uma pequena reverência e passei por seu lado. O lateral de minha jaqueta roçou sua impermeável, provavelmente recolhendo suficientes bactérias para aniquilar a um pequeno exército. em que pese a tudo, não retrocedi. — Encantado de me conhecê-la sussurrou ao passar por seu lado. — O mesmo digo —lhe respondi antes de me refugiar no escritório do protetor. Era uma habitação bastante espaçosa, pelo menos o dobro de grande que o resto de escritórios que tinha visto até então. As grosas cortinas de cor borgoña que cobriam as janelas deixavam entrar a luz suficiente para criar uma atmosfera confortável. Um descomunal escritório de madeira polida de cerejeira dominava todo o espaço. Sobre esta, uma caixa de cartão, um pesado pisapapeles de madeira de mezquite com um adesivo dos Rangers do Texas e um par de botas de vaqueiro marrons. As pernas dentro das botas pertenciam a um homem fornido que estava recostado em uma desproporcionada cadeira negra de pele com o auricular do telefone pego ao ouvido. O cavalheiro—protetor. Anos atrás deveu ser um homem bastante forte, mas agora seus músculos estavam recubiertos com o que meu pai chamava —graxa dura—. Seguia sendo um homem corpulento e forte, e provavelmente podia mover-se com rapidez se era necessário face à anti-estética protuberância de seu abdômen. Levava jeans e uma camisa azul com franjas. Não sabia que seguissem fazendo aquele tipo de roupa. A indumentária com a que se conquistou o Oeste —ou mas bem se submeteu— era mais indicada para tipos esbeltos. Com ela, o protetor parecia Gene Autry com problemas de sobrepeso. O cavalheiro reparou em minha presença. Tinha um rosto largo, uma sólida mandíbula e uns sagazes olhos azuis sob umas sobrancelhas povoadas.
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O nariz torcido das incontáveis vezes que a tinham partido. O chapéu lhe ocultava o cabelo, ou mas bem a ausência dele, mas me atrevi a supor que o pouco que ficava devia ser cinza e muito curto. O protetor assinalou uma das cadeiras vermelhas, mais pequenas que a sua, frente ao escritório. Ao me sentar, aproveitei para jogar uma olhada ao interior da caixa de cartão, continha uma doa de geléia médio comido. O cavalheiro continuou com sua conversação Telefónica, de modo que continuei com o repasse visual do escritório. Na parede de em frente, uma imponente livraria, também de madeira de cerejeira. Sobre esta, um grande mapa do Texas esculpido em madeira e cenário com cintas ou arame de espinheiro. Baixo ambas as peças, uma gravura apregoava em letras douradas o nome do fabricante e o ano de fabricação. O protetor terminou a conversação pendurando o aparelho sem despedir-se de seu interlocutor. — Se tiver algum documento que me mostrar, melhor que seja agora. Entreguei-lhe meu documento de identificação mere e meia dúzia de recomendações. Estudou-o tudo por cima. — Águas e Bocas-de-lobo, né? — Sim. — Para passear-se hoje em dia pelo rede de esgoto terá que ser duro ou idiota. Qual dos dois é você? — Não sou idiota, mas se lhe dissesse que sou dura, pensaria que intento lhe impressionar, de modo que me limitarei a sorrir misteriosamente. —Ofereci-lhe meu sorriso mais misterioso. Não se ajoelhou ante mim para me beijar os pés e me prometer o mundo inteiro. Devia estar me oxidando. O protetor fez uma careta ao reparar na assinatura. — Mike Tellez. trabalhei com ele. Revista aceitar seus encargos? — Mais ou menos.
— Qual foi o último? — Ao Mike estavam desaparecendo grandes peças de maquinaria. Alguém lhe disse que tinha a um marakihan recém-nascido. — São criaturas marinhas —disse o protetor—. Morrem em contato com a água doce. Um vago com problemas de sobrepeso que se alimentava de doa de geléia polvilhados com açúcar glasé tinha identificado a uma desconhecida criatura mágica sem logo que deter-se refletir. Cavalheiro—protetor. Certamente a camuflagem era extraordinária. — Resolveu seu problema? —perguntou-me. — Sim. O Verme Empala —lhe disse. Se lhe impressionei, não o demonstrou.
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— Matou-o? Muito gracioso. — Não, limitei-me a lhe fazer a vida impossível. A lembrança me golpeou súbitamente. Por um instante voltei a avançar fatigosamente por um túnel mau iluminado, com excremento líquido e lixo até o quadril. A perna esquerda me ardia de dor, mas continuei avançando, arrastando-a com dificuldade enquanto, detrás de mim, o descomunal corpo pálido do Verme vertia seu sangue vital sobre o lodo. O escorregadio sangue verde se formou redemoinhos na superfície, cada uma de suas células um diminuto organismo vivo consumido por um único objetivo: voltar a unir-se. Não importava as vezes que aparecesse aquela criatura, nem a distância entre uma aparição e a seguinte; sempre era o mesmo Verme Empala. Solo havia um e se regenerava continuamente. O protetor deixou os documentos sobre o escritório. — O que quer?
— Estou investigando o assassinato do Greg Feldman. — Baixo que autoridade? — A minha. — Já vejo. —recostou-se na cadeira—. por que? — Motivos pessoais. — Conhecia-lhe pessoalmente? —perguntou em um tom completamente neutro, embora o significado implícito era mais que evidente. Alegrei-me de poder lhe decepcionar. — Sim. Era amigo de meu pai. — Já vejo –repetiu—. Estaria disposto seu pai a fazer uma declaração? — Está morto. — Sinto-o —disse ele. — Não é necessário —lhe disse—. Não lhe conhecia. — Tem algo que possa demonstrar sua relação com o Greg Feldman? Poderia ter colaborado facilmente. Se tivesse comprovado meu expediente, teria descoberto que foi Greg quem apoiou minha solicitude de entrada na Ordem, mas não gostava de tomar essa direção. — Greg Feldman tinha trinta e nove anos. Era um homem extremamente ciumento de sua privacidade e não gostava que lhe fizessem fotografias —lhe disse enquanto lhe entregava uma pequena fotografia retangular—. Ele e eu o dia de minha graduação no instituto. Há uma fotografia idêntica em seu apartamento. Tinha-a em sua biblioteca, na terceira prateleira da livraria central. — Vi-a —disse o protetor. Jodidamente perfeito. — me pode devolver isso por favor? Devolveu-me a fotografia.
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— Sabe que figuras como beneficiaria da herança do Greg Feldman? — Não. Não me tivesse vindo mal um instante de introspecção para dedicá-lo à culpa e a gratidão, mas o cavalheiro—protetor não me deu pausa. — legou seu ativos financeiros à Ordem e à Academia. —Observou-me atentamente em espera de minha reação. Acreditava que estava interessada no dinheiro do Greg?— Todo o resto é teu: a biblioteca, as armas, os objetos de poder. Não disse nada. — pedi informação ao Grêmio sobre ti. —Seus olhos azuis se cravaram em meus—. Sei que é muito eficaz mas que não está muito flutuante de dinheiro. A Ordem estaria disposta a te fazer uma oferta substancial por esses objetos. Descobrirá que a cifra é mais que generosa. Aquilo era um insulto e ambos sabíamos. Baralhei a possibilidade de lhe dizer que se não tivesse sido pelas vontades de farra dos jeans do Oklahoma e as putas mexicanas, hoje em dia não existiriam os texanos, mas pensei que seria contraproducente. Não era boa idéia chamar filho de puta ao cavalheiro— protetor em seu próprio escritório. — Não, obrigado —disse com um agradável sorriso. — Está segura? —Seus olhos me avaliaram—. Me parece que não iria mal um pouco de dinheiro. A Ordem te dará mais de que conseguiria em um leilão. Um conselho: agarra o dinheiro. Compra um par de sapatos decentes. Olhei minhas gastas esportivas. Eu gostava. Quando se manchavam de sangue, podia as limpar facilmente com lejía. — Acredita que deveria comprar algo como isso? —pinjente assinalando suas botas—. Quem sabe, possivelmente dêem de presente uma camisa vaqueira com franjas. Ou uma bandagem.
Algo se agitou em seus olhos. — Miúda boquita tem. — Quem? Eu? — Todo mundo pode falar. O importante é o que pode fazer. O que pode fazer você? Gelo instável. Avançar com precaução. Recostei-me na cadeira. — Que o que posso fazer, senhor? Não farei nada que ameace ou que possa me inimizar com o cavalheiro—protetor em seu escritório por muito que ele me insulte. Seria estúpido e extremamente pernicioso para minha saúde. Solo vim em busca de informação. Solo quero saber no que estava trabalhando Greg Feldman quando morreu. Durante um instante não ocorreu nada; simplesmente nos olhamos o um ao outro.
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O cavalheiro—protetor agarrou ar pelo nariz produzindo um sonoro assobio e disse: — Tem experiência em trabalhos de investigação? — Claro. Incomodar aos implicados até que o sentimento de culpa faça que alguém tente desfazer-se de ti. O protetor fez uma careta. — Sabe que a Ordem está investigando o caso? Em outras palavras, separase de no meio, pequena, e deixa que gente mais competente que você se encarregue disso.
— Greg Feldman era minha única família –disse—. Descobrirei quem ou o que lhe matou. — E depois o que fará? — Queimarei a ponte assim que o tenha cruzado. —O protetor entrelaçou os dedos de ambas as mãos formando um único punho. — Algo capaz de dobrar ao cavalheiro—místico deve ter uma boa dose de poder. — Não por muito tempo. Refletiu um instante sobre aquilo. — Acredito inesperado.
que
pode
me ser
útil
—disse
finalmente.
Aquilo
era
— Para que demônios me quereria? —Olhou-me com o que devia considerar seu sorriso misterioso. Recordou a um urso despertando de sua letargia. — Tenho minhas razões. Isto é o que farei por ti. Poderá pegar o selo do Auxílio Mútuo em seu documento de identificação, o que te abrirá muitas portas. Poderá utilizar o escritório do Greg. Poderá lhe jogar uma olhada ao expediente aberto e ao relatório policial. Expediente aberto significava que me entregava o caso no ponto em que o tinha deixado Greg: dados áridos e poucos ou nenhum achado. Teria que voltar sobre os passos do Greg. Era muito mais do que esperava. — Obrigado —pinjente. — O expediente não pode sair do edifício —disse ele—. E não se podem fazer cópias nem tomar notas. Entregará-me um relatório, solo a mim. — Estou ligada à regra de informação do Grêmio —lhe disse. — Já me ocupei que isso —disse com um gesto da mão. Desde quando? O cavalheiro—protetor estava fazendo mais do que se esperava dele sozinho para ajudar a uma desprezível mere. por que? A gente que me fazia favores me punha nervosa. Por outro lado, era de má educação
lhe olhar os dentes a um cavalo agradável. Inclusive se quem lhe dá de presente é isso uma salsicha embutida em uma camisa com franjas. — Oficialmente não tem nenhum status —me disse—. Jódela e te converterá em pessoa non grata.
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— Entendido. — acabamos —disse. Quando saí de seu escritório, a recepcionista me fez um gesto para me aproximasse e me pediu meu documento de identificação. O entreguei e observei como pegava sobre ele um pequeno adesivo do Auxílio Mútuo, um — selo— oficial que representava o interesse da Ordem em meu humilde trabalho. Aquilo me abriria algumas leva e faria que muitas outras se fechassem em meus narizes. Que demônios. — Não faça muito caso ao Ted —disse a recepcionista ao me devolver o documento— . Às vezes é um pouco severo. Meu nome é Maxine. — E eu Kate. Poderia me indicar onde está o escritório do cavalheiro—místico? — Encantada. A última porta à direita. — Obrigado. Sorriu-me e continuou com seu trabalho. Uma empregada entusiasta. Quando cheguei frente ao escritório do Greg, fiquei na soleira. Algo não encaixava. A luz do sol entrava por uma janela quadrada e banhava o chão, um estreito escritório e duas velhas cadeiras. A minha esquerda, uma livraria profunda cobria toda a parede, ameaçando vindo-se abaixo pelo peso de uns volúmenes meticulosamente ordenados. Quatro arquivos metálicos tão altos como eu ocupavam a parede de em frente. Pilhas e pilhas de pastas e papéis se amontoavam nos rincões, em cima das cadeiras e o escritório.
Alguém tinha inspecionado os documentos do Greg. E o tinha feito a consciência. Não é que tivessem saqueado o escritório, mas alguém tinha registrado todos os arquivos e não se incomodou em voltá-los para colocar em seu sítio, limitando-se a empilhá-los na primeira superfície horizontal a seu alcance. Aqueles eram os documentos privados do Greg. Por alguma razão, incomodou-me a idéia de que alguém tivesse registrado e manuseado suas coisas e lido seus pensamentos atrás de sua morte. Entrei no escritório e senti um feitiço protetor fechando-se detrás de mim. Símbolos ocultos se fizeram visíveis com um brilho alaranjado, formando complexos desenhos sobre o tapete cinza. Umas largas linhas matizadas conectavam os símbolos, entrecruzando-se e serpenteando por toda a habitação. As intercessões estavam marcadas com resplandecentes pontos vermelhos. Greg tinha selado seu escritório com seu próprio sangue e me tinha entregue a chave; de não ser assim, não teria podido ver o feitiço. Qualquer tipo de magia que levasse a cabo naquela habitação permaneceria dentro de seus limites, e o eco da mesma não passaria da porta. Um feitiço daquela complexidade requeria semanas de preparação. A julgar pelo intenso brilho das linhas, devia absorver uma grande quantidade de eco. por que se teria incomodado em fazer algo assim?
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Abri-me passo entre as pilhas de documentos até a livraria. Nela vi uma velha edição do Calendário de Criaturas Místicas, uma edição ainda mais antiga do Dicionário Oculto, uma Bíblia, uma formosa edição do Corán encadernada em pele e com gravados dourados, vários volúmenes de temática religiosa e um diminuto exemplar da rainha das fadas, do Spenser. Continuando, aproximei-me dos arquivos. Estavam vazios, como esperava. Os classificadores estavam marcados com o código pessoal do Greg, o qual desconhecia. Tampouco me importava. Escolhi a pilha de documentos que tinha mais perto e coloquei a primeira pasta no arquivo metálico. Duas horas depois terminava de ordenar os papéis amontoados no chão e as cadeiras e me dispunha a começar com a montanha de arquivos que cobria o escritório. E então um sobre marrom chamou minha atenção. Estava sobre a
pilha central, de modo que meu nome, rabiscado com rotulador negro no itálico do Greg, era perfeitamente visível. Deixei os montões de papéis no chão, aproximei uma cadeira e esvaziei o conteúdo do sobre no escritório. Duas fotografias e uma carta. Na primeira foto apareciam dois casais posando. Reconheci a meu pai, um homem corpulento e de cabelo avermelhado, os enormes ombros estendidos e rodeando com um braço a uma mulher que tinha que ser minha mãe. Alguns meninos conservam lembranças de seus pais falecidos, uma voz, o rastro de um aroma, uma imagem. Eu não recordo nada dela, como se jamais tivesse existido. Meu pai não guardava nenhuma sua fotografia —devia resultar muito doloroso para ele— e eu sozinho sabia o que ele me tinha contado. Havia-me dito que era bonita, e que tinha o cabelo loiro. Contemplei à mulher da fotografia. Era baixa e miúda. Suas facções harmonizavam com sua constituição: bem formadas, delicadas, embora não pareciam frágeis. Sua pose transmitia segurança e naturalidade, e sua figura estava envolta em uma espécie de encanto mágico que revelava uma aceitação evidente de seu poder. Era muito formosa. Tanto meu pai como Greg me haviam dito que me parecia com ela, mas por muito que estudasse sua imagem naquela fotografia, não podia encontrar nenhum parecido entre ambas. Minhas facções eram mais marcadas. Minha boca era maior e não poderia fazer panelas com ela. Tinha conseguido herdar a cor de seus olhos, marrom escuro, mas meus tinham uma forma estranha, amendoados, ligeiramente dilatados. E minha pele tinha um tom mais escuro. Se abusasse do perfilador de olhos e do rimel, poderia passar por cigana. Não todo se acabava aí: o rosto de minha mãe tinha uma doçura muito feminina. O meu não, ao menos quando o comparava com o seu. Se tivéssemos estado uma ao lado da outra em uma habitação cheia de gente, ninguém se teria fixado em mim.
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E se alguém se deteve para conversar comigo, ela o tivesse chavecado com um simples sorriso.
Bonita... Claro. Ficou curto, papai. Por outro lado, se aquela mesma gente tivesse que escolher a uma das duas para lhe partir o joelho a alguém, não me houvesse flanco muito me fazer com todos os votos. Greg estava junto a meus pais, acompanhado de uma mulher asiática. Anna. Sua primeira esposa. Ao contrário que meus pais, eles dois estavam ligeiramente separados, mantendo uma distância quase imperceptível, como se seus corpos ameaçassem desprendendo faíscas ao menor roce. Os olhos do Greg transmitiam uma profunda tristeza. Deixei a fotografia de barriga para baixo sobre o escritório. Na outra foto aparecia eu. Devia ter uns nove ou dez anos, e me estava lançando a um lago dos ramos de um álamo gigante. Não sabia quem tinha tomado aquela fotografia, nem tampouco quando. Li a carta, umas quantas linhas sobre uma folha de papel, um extrato do poema do Spenser. “Um dia escrevi seu nome sobre a areia, Mas chegaram as ondas e o apagaram: Voltei a escrevê-lo com a outra mão, Mas chegou a maré e fez de minhas penas sua presa.” Sob o poema, quatro palavras escritas com o sangue do Greg.
Amehe Tervan Senehe Ud
As palavras cintilavam com um fogo vermelho. Um forte espasmo me percorreu todo o corpo. Me contraíram os pulmões, me nublou a vista e, através uma densa névoa, ouvi os batimentos do coração de meu coração como se se tratasse do sino de uma igreja. Um matagal de forças se formou a meu redor, me apanhando em uma frisada maré de correntes de poder escorregadias e elásticas. Alarguei a mão e as apanhei, e elas me arrastaram até o coração do amálgama de luz e som. A luz me atravessou e se transbordou no interior de minha mente, enviando uma miríade de faíscas através de minha pele. O
sangue no interior de minhas veias fulgurava como se fosse metal líquido. Perdida. Perdida em um torvelinho de luz. Abri a boca e lutei por expulsar a palavra.
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resistia a me abandonar e pensei que ia morrer, mas finalmente cedeu quando verti todo meu poder sobre o delicado som. «Meu Hesaad. A palavra deixou de dar voltas e encontrei meu lugar nela. As quatro palavras esperavam frente a mim, exigindo ser pronunciadas. Contive meu poder e as articulei, as aceitando, obrigando a que se convertessem em parte de mim. «Amehe. Temam. Senehe. você» O fluxo de poder retrocedeu. Frente a mim solo ficou a folha de papel. As palavras tinham desaparecido e um pequeno atoleiro carmesim manchava a folha. Ao tocá-lo, senti o comichão da magia. Meu sangue. Sangrava-me o nariz. Levei-me a mão ao bolso e extraí dele uma atadura. Sempre levava várias comigo. Pressionei-a contra o nariz para cortar a hemorragia e joguei a cabeça para trás. Mais tarde me asseguraria de queimar as ataduras. Olhei o relógio em minha boneca e vi que eram 12:17. Tinha perdido hora e meia embora tinha a sensação de que solo tinham acontecido uns segundos. Quatro palavras de poder. Obedece, Arbusto, Protege e Morre. Palavras tão "primitivas”, perigosas e poderosas que conduziam consigo a magia mais pura. Ninguém sabia quantas havia, de onde procediam nem por que entesouravam um controle tão formidável sobre a magia. Inclusive a gente que jamais as tinha utilizado, reconhecia o significado daquelas palavras e estava exposta a seu poder, como se formassem parte de uma antiga lembrança racial que todos compartilhássemos. Não era suficiente as conhecendo; tinha que as possuir. No processo de aquisição não havia segundas opções. Ou as conquistava ou morria no intento. O que explicava por que havia tão pouca gente que as dominasse. Assim que
as fazia tuas, pertenciam-lhe de por vida. Deviam ser utilizadas com precisão, e ao fazê-lo, consumia-se uma quantidade enorme de poder que estava acostumado a te deixar completamente exausto. Tanto Greg como meu pai me tinham advertido que existia gente capaz de opor resistência às palavras de poder, mas até o momento não tinha tido a oportunidade das usar contra um oponente que soubesse fazê-lo. Eram o último recurso quando todo o resto falhava. Agora tinha seis palavras. As quatro que me tinha dado Greg e dois mais: Meu e Soltar. Meu pai me tinha ensinado isso fazia muito tempo. Tinha doze anos e estive a ponto de morrer durante o processo de aquisição. Com as do Greg todo tinha sido muito fácil. Talvez o poder do sangue aumentasse com os anos. Tivesse-me gostado de poder perguntar-lhe ao Greg. Comprovei as linhas desenhadas no chão. Os traços alaranjados das barreiras do Greg brilhavam tão tenuemente que logo que podia as ver.
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Tinham absorvido todo o eco possível. As palavras uivavam em minha mente, sacudiam-se, giravam sobre si mesmos, tentando encontrar seu lugar. O último presente do Greg. O mais valioso que podia me legar. Lentamente, fui consciente de que alguém me estava observando. Levantei a cabeça e vi um esbelto homem negro na soleira da porta. Tinha-me sorrido ao passar frente a seu escritório umas três horas antes. — Encontra-te bem? —perguntou-me. — Resíduos de um conjuro —resmunguei com a atadura ainda me tapando o nariz—. É normal. Estou bem. —O homem me olhou atentamente. — Está segura? — Sim. —De acordo, sou uma idiota incompetente, te largue já.
— Trazia-te o expediente do Greg. —Não fez gesto de entrar na habitação. Menino preparado. Se eu tinha cansado na armadilha do Greg, a ele também poderia lhe afetar—. Sinto ter demorado tanto. Tinha-o um de nossos cavalheiros. Aproximei-me dele e agarrei o expediente de suas mãos. — Obrigado. — De nada. —Observou-me durante um segundo antes de partir. Pincei no escritório do Greg em busca de um espelho. Todo feiticeiro respeitável sempre tinha um à mão. Muitos conjuros o requeriam. o do Greg era retangular, emoldurado com uma singela moldura de madeira. Quando vi meu reflexo nele, estive a ponto de deixar cair a atadura. Brilhava-me o cabelo. Irradiava um débil luminescência cor burdeos que cintilou ao me passar as mãos por ele, como se cada um dos fios que o conformavam estivesse recubierta de pintura fluorescente. Agitei a cabeça, mas o resplendor não diminuiu. Grunhir tampouco serve de muito; não tinha nem a mais mínima idéia de como me desfazer daquilo. Refugiei-me no rincão mais escuro da habitação, onde ninguém poderia lombriga da porta, e abri o expediente. Se não poder fazer que desapareça, o melhor é esperar a que o faça sozinho. A última vez que assimilei palavras de poder tinha acabado exausta. Agora me sentia excitada, loja de comestíveis de magia. Esforcei-me por conter toda a energia que se agitava em meu interior. Desejava saltar, correr, fazer algo. E, em lugar disso, devia permanecer oculta em um rincão e me concentrar no expediente que tinha frente a mim. O expediente continha o relatório do juiz de instrução, um resumo do relatório policial, umas quantas notas apressadas e diversas fotografias da cena do crime. Em um plano general apareciam dois corpos tendidos no asfalto: um gasto, pálido e completamente nu, e o outro, uma massa sanguinolenta de tecidos rasgados e triturados. Primeiro encontrei o primeiro plano do corpo destroçado.
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O cadáver estava tendido com as pernas e braços desdobrados sobre sua própria roupa, a qual estava empapada de sangue. Algo lhe tinha esmigalhado o peito e lhe tinha arrancado as costelas com uma força desmesurada. A cavidade torácica estava ao descoberto, revelando a úmida e reluzente massa do esmagado coração sobre os escuros restos esponjosos dos pulmões e o branco amarelado das costelas estilhaçadas. Tinha o braço esquerdo completamente deslocado, pendurando de um magro filamento ensangüentado. A seguinte fotografia era um primeiro plano da cabeça. Uns olhos tristes que me resultaram muito familiares olhavam diretamente à câmara e, portanto, também a mim. OH, Deus. Li o pé de foto. Aquela massa destroçada de carne humana era quão único ficava do Greg. Notei um nó na garganta. Lutei contra ele durante uns quantos segundos agonizantes e consegui dominá-lo. Aquele não era Greg. Solo era seu corpo. A seguinte fotografia era um plano curto do outro corpo. Parecia intacto, salvo pela cabeça, ou melhor dizendo, pela falta dela. Um fragmento estilhaçado da coluna vertebral me sobressaía do pescoço seccionado, envolto por tiras estragadas de tecidos rasgados. Não havia nenhuma outro sinal que indicasse que alguma vez tinha tido uma cabeça ao final do pescoço. Nem rastro de sangue, embora a lógica indicava que devia haver uns quantos litros. O corpo estava de flanco e tinha a carótida e a jugular seccionadas. Onde estava o sangue? Encontrei quatro fotografias mais daquele corpo e as dispus uma ao lado da outra no chão. A pele do cadáver, tersa e pálida como o mármore, esticava-se sobre a musculatura, como se o corpo não tivesse nem um grama de graxa, só músculo e tendões. Nem um só cabelo danificava sua epiderme. O escroto parecia estragado e inusualmente pequeno. Necessitava uma fotografia da mão mas não encontrei nenhuma. Alguém se tinha esquecido daquele detalhe. Embora tampouco importava muito; o resto de indícios não deixavam lugar a dúvidas. Inclusive sem poder lhe jogar uma olhada às unhas, a conclusão era evidente. Tinha ante mim o cadáver de um vampiro. Por definição, os vampiros já estão mortos, mas a existência daquele tinha concluído. Nem sequer Ghastek, com todos seus poderes nigrománticos, podia recuperar a um vampiro sem cabeça. A pergunta dos sessenta e quatro mil dólares era a quem pertencia aquele. Quase todos os membros da Nação marcavam a seus vampiros. Se aquele também o estava, a marca não aparecia em nenhuma das imagens que o idiota do fotógrafo tinha tomado. O que poderia ter aniquilado a um vampiro e a um cavalheiro—místico? O vampiro, com uma velocidade e uma força capaz de eliminar a um Grupo Especial de Operações sem apoio, já era uma presa suficientemente temível
por si só. A combinação do vampiro e Greg era virtualmente impossível de superar.
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E, em que pese a tudo, ali estavam, ambos os mortos. Joguei-me para trás enquanto pensava. O assassino tinha que ser muito poderoso. Tinha que ser mais rápido que um vampiro, possuir a força necessária para arrancar de coalho uma cabeça e ser capaz de proteger-se da magia e da maça do Greg. A lista de possíveis assassinos era muito curta. Em primeiro lugar, a Nação poderia ter querido matar ao Greg e ter utilizado a um de seus vampiros como ceva. Um vampiro veterano em mãos de um Senhor dos Mortos experiente era uma arma temível. Se tinham utilizado a mais de um, poderiam ter eliminado ao Greg e a seu próprio chupasangre. Era caro e pouco provável, já que Greg era especialmente efetivo contra os vampiros, mas não impossível. Em segundo lugar, o estado em que se encontrava o corpo do Greg apontava aos cambiaformas. Para produzir aquele tipo de lesões, o assassino tinha que ter utilizada presas e garras, e certamente mais de um par de cada um. Talvez fosse obra de um Lupo, um cambiaformas transtornado. O corpo daqueles infectados com o Vírus lhes Leia, ou Lic—V, sente uma sede de sangue irrefreável enquanto a mente tenta conter o impulso. Se a mente consegue impor-se sobre o corpo, o cambiaforma se converte em um Homem Livre do Código e entra em formar parte da Manada, uma organização perfeitamente estruturada e disciplinada. Se o corpo conquistar a mente, o cambiaforma se converte em um Lupo, um assassino canibal enlouquecido pelos hormônios, um ser dedicado exclusivamente à caça e perseguido por todos. A teoria do Lupo era ainda menos provável que a da Nação. Para começar, salvo pela ferida no pescoço, o corpo do vampiro decapitado estava intacto, e os Lupos rasgam tudo o que está a seu alcance com um frenesi maníaco. Em segundo lugar, Greg teria conseguido levar-se por diante a mais de um, e na cena do crime não havia mais corpos. Em terceiro lugar, se o assassino era um Lupo, ou mais de um, teriam deixado multidão de pistas na cena: saliva, cabelo, seu próprio sangue... O escritório do forense dispunha de amostras genéticas de todos os tipos conhecidos de cambiaforma. Por isso tinha visto até agora, o relatório não fazia nenhuma referência a DNA de cambiaforma na cena do crime.
Esfreguei-me a cara com ambas as mãos mas não me serve para ver o caso desde outra perspectiva. O mais provável é que nenhum dos anteriores tivesse relação com os assassinatos, de modo que no momento teria que me conformar deixando as coisas como estavam. O relatório da autópsia confirmava minhas hipóteses sobre o cadáver decapitado: Homo sapiens immortuus. Um vampiro. Um apelativo irônico, já que o cérebro morria assim que o indivíduo em questão se via afetado pelo vampirismo.
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Os vampiros não demonstravam ter clemência nem instinto de sobrevivência, não podiam disciplinar-se e careciam de ego. Na escala evolutiva, ocupavam um lugar próximo ao dos insetos; embora possuíam um sistema nervoso central, eram incapazes de pensar por si mesmos. Estavam dominados por uma insaciável sede de sangue e massacravam todo aquilo que se interpunha em seu impulso por satisfazê-la. Arqueei as sobrancelhas. No expediente não havia nenhum exploratório—M. Todas as cenas onde se produziu um assassinato ou um ataque violento se escaneavam de forma rotineira em busca de restos de magia. Tecnicamente, tanto a polícia como a UDPE podiam requerer o acesso a aquele expediente e uma ordem judicial o concederia. O fato de que não houvesse rastro do exploratório—m sugeria que havia algo que a Ordem não desejava revelar à opinião pública. A não ser que o mesmo cretino que tinha feito as fotografias o tivesse atirado ao lixo. A última folha do expediente era uma lista de vários nomes de mulher. Sandra Molot, Angelina Gómez, Jennifer Ying, Alisa Konova. Nenhum deles me resultava familiar, e não havia nenhuma explicação relativa à natureza da lista. Voltei a comprovar o estado de meu cabelo e comprovei que tinha deixado de fulgurar. Equilibrei-me sobre o escritório e marquei o número de telefone que aparecia no disforme policial.
Uma voz áspera respondeu a minha chamada. Apresentei-me e perguntei pelo detetive ao mando. — Estou investigando o assassinato do cavalheiro—místico. — Já falamos com vocês —disse o homem ao outro lado do telefone—. Leia o maldito relatório. — Não falaram comigo, senhor. Agradeceria-lhes sinceramente se pudessem me dedicar uns instantes. Não nos levará muito. O aparelho emitiu um estalo e, continuando, o sinal de desconexão. Não podia esperar-se muito mais da cooperação entre agências. Comprovei o relógio e vi que eram 12:58. Tempo suficiente para fazer uma visita ao depósito de cadáveres. Ainda ficavam muitos dias para que expirasse o prazo obrigatório de conservação dos vampiros falecidos e o selo em minha identificação me assegurava o acesso ao corpo do chupasangre. Fechei o expediente, deixei-o no arquivo mais próximo e me larguei dali.
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O NECROTÉRIO ESTAVA no centro da cidade. Justo frente a esta, além da ampla extensão do Lugar Sem Nome, elevava-se a dourada mole do Capitólio. O velho necrotério tinha sido destruída duas vezes, a primeira por um Senhor dos Mortos rebelde e a segunda por um golem, o mesmo que criou o Lugar
Sem Nomeie ao reduzir a escombros cinco edifícios em um intento frustrado por superar as defesas do Capitólio. Embora já tinham acontecido seis anos, a prefeitura se negava a rebatizar o solar que rodeava o Capitólio, argüindo que enquanto não tivesse nome, ninguém poderia levar a cabo invocações naquele lugar. O novo necrotério tinha sido construída com o convencimento de que “à terceira vai a vencida”. Suas modernas instalações pareciam a origem bastarda da união entre uma prisão e uma fortaleza, com o pingo adequado de castelo medieval para lhe dar um toque à mescla. Os habitantes do bairro estavam acostumados a comentar jocosamente que a próxima vez que o Capitólio sofresse um ataque, os membros da Legislatura do Estado poderiam cruzar a praça e refugiar-se no depósito de cadáveres. Ao observar a de perto, a idéia não me pareceu muito descabelada. O necrotério era um edifício severo e ameaçador que destacava entre as elegantes fachadas das sedes de diversas corporações como o tivesse feito a presença da Morte com a foice em uma festa do chá. Seus vizinhos mercantis não deviam sentir-se muito cômodos com sua proximidade, mas tampouco podiam fazer nada a respeito. O necrotério era, com diferença, o lugar mais transitado da zona. Outro sinal inequívoco daqueles tempos. Subi por uma ampla escalinata circundada por colunas de granito e atravessei uma porta giratória que me cuspiu em um espaçoso vestíbulo. em que pese a que os amplos ventanales deixavam entrar uma grande quantidade de luz, não conseguiam desterrar completamente a penumbra lhe reinem, a qual se acumulava especialmente nos rincões e junto às paredes, esperando pacientemente aderir-se às pernas do primeiro visitante incauto. O estou acostumado a estava talher de polidos ladrilhos de granito cinza. Dois corredores se abriam ao outro extremo do vestíbulo, ambos os banhados com a luz azulada que emitiam os abajures feéricas. Os ladrilhos terminavam naquele ponto, onde tinham sido substituídas por um linóleo amarelado. O ar cheirava a morte. Embora não o típico fedor a carne putrefata, a não ser um pouco muito distinto, uma mescla de cloro, formol e medicamentos. Recordava vagamente ao aroma dos hospitais, embora ninguém os tivesse confundido. Nos hospitais, a vida desdobra seus sinais inequívocos. Naquele lugar só podia perceber-se sua ausência.
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Um mostrador de informação estava encravado entre ambos corredores. Aproximei-me até ele e me apresentei ante o empregado embainhado em uma bata verde, quem comprovou minha identificação e assentiu. — Está no sete C. Sabe onde é? — Sim. estive antes. — Bem, adiante. Enviarei a alguém para que te abra a porta. Agarrei o corredor da direita até um lance de escadas que descendiam ao porão. Cruzei a seção B e me detive o final da mesma, onde uma porta metálica se interpôs em meu caminho. Uns cinco minutos mais tarde ouvi uns passos apressados procedentes do corredor e uma mulher com um traje médico verde e um manchado avental apareceu de repente por uma esquina. Em uma mão levava uma grosa pasta de três argolas e na outra, uma lhe tilintem cadeia com várias chaves. uns quantos mechas de cabelo loiro e murcho tinham escapado da rede estéril que cobria sua cabeça. Tinha umas olheiras mais que visíveis e a pele do rosto lhe pendurava ligeiramente. — Sinto-o —pinjente. — Não se preocupe —disse a mulher enquanto brigava com as chaves—. Precisava dar um passeio. Abriu a porta e passou diante de mim. Segui-a até uma porta metálica reforçada. Abriu duas fechaduras, retrocedeu e gritou: — Sou eu, Julianne. Exijo que atenda minha petição. Abre a porta! A magia vibrou sutilmente à medida que o conjuro liberava a porta. Julianne a abriu. No interior, um corpo nu estava tendido sobre uma mesa metálica arrebitada ao chão. Em contraste com o aço inoxidável, a pele do cadáver tinha uma estranha tonalidade esbranquiçada, quase rosa pálido, como se o tivessem lavado com lejía. Um arnês de prata à altura do peito sujeitava o
corpo à mesa. Uma cadeia tão grosa como meu braço se estendia do arnês a um aro parecido ao chão. — Normalmente solo os sujeitamos com cintos, mas este... —Julianne fez um gesto com a mão. — Já. —Fiquei olhando o coto do pescoço. — Não é que vá levantar se nem nada parecido. Não sem cabeça. Mas se algo... —Assinalou com a cabeça o círculo azul que rodeava o botão de emergência na parede mais próxima—. Vai armada? Desenvainé a Assassina. Julianne retrocedeu bruscamente ante a reluzente folha. — Latido. De acordo, isso servirá. —Voltei a guardar a espada em sua vagem. — Trouxeram outro corpo com este. — Sim. É difícil de esquecer.
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— Alguma evidência? — Bom intento. —Julianne sorriu timidamente—. É informação classificada. — Já vejo —pinjente—. E o exploratório—m? — Isso também é classificado. Suspirei. Greg, com seus olhos escuros e seu rosto perfeito, destroçado e aberto em canal, encerrado sob chave em algum cubículo daquele lugar solitário e estéril. Lutei contra o impulso de me dobrar sobre o estômago e adormecer o vazio que sentia no peito. Julianne me tocou no ombro. — Que relação tinham? —perguntou.
— Era meu guardião —lhe disse. Aparentemente, meus esforços por manter a imparcialidade tinham sofrido um estrepitoso fracasso. — Estavam muito unidos? — Não. Ao menos não ultimamente —disse me encolhendo de ombros—. Cresci e ele não pareceu dar-se conta. — Tinha filhos? — Não. Nem mulher nem filhos. Solo me tinha . Julianne olhou o corpo do vampiro com evidente mal-estar. — Supus que a Ordem teria a delicadeza de atribuir a alguém que não estivesse comprometido emocionalmente no caso. — Apresentei-me voluntária. Julianne me dirigiu um estranho olhar. — Vá. Confio em que saiba o que faz. — Eu também. Existe nenhuma possibilidade de que me deixe jogar uma olhada ao exploratório? Julianne se mordeu os lábios com semblante pensativo. — ouviste isso? —Neguei com a cabeça. — Acredito que há alguém na porta. irei comprovar o. Sotaque aqui minha pasta, agora bem, dentro há relatórios confidenciais. Não quero que os as. Em especial não quero que as os do dia três deste mês. Nem que faça nenhuma cópia do conteúdo desta pasta. —deu-se a volta e saiu da sala. Examinei a pasta. Nos dia três havia oito autópsias. Não me custou encontrar a do Greg. As provas materiais se reduziam a quatro cabelos. Na coluna da origem alguém tinha escrito a lápis “Não vão. Psb or. Felino.” Não identificado, possível derivado felino. Não era um cambiaformas felino. Se o tivesse sido, o teriam catalogado como Homo sapiens com um gen felino específico. Continuando, a extensa folha dobrada do exploratório—M. Obedecendo a minha mão tremente, desdobrou-se até alcançar quase um metro de longitude,
apresentando um gráfico com linhas riscadas pelas delicadas agulhas do exploratório mágico.
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As débeis linhas de cores tinham deixado um rastro hesitante, o que demonstrava a colisão de diversas influências mágicas em um único ponto. Era pouco concludente, inclusive aplicando os critérios menos exigentes, e nenhum tribunal o aceitaria como prova. Uma pequena anotação em uma esquina da parte superior o identificava como uma cópia. Perfeito. Entrecerré os olhos, me esforçando por pôr algo de sentido a todo aquilo. O corpo do Greg tinha contínuo liberando magia incluso depois de sua morte e o exploratório o registrava com uma linha descendente de cor cinza, em alguns pontos de uns vinte milímetros de grossura e em outros virtualmente imperceptível. A linha púrpura, profunda e irregular, que a cruzava tinha que havê-la deixado a magia do vampiro. Observei a folha mais de perto. Havia uma terceira linha, ou melhor dizendo, uma série de linhas apenas visíveis que apareciam e desapareciam a intervalos regulares ao longo da leitura. A mais larga teria uns seis milímetros de longitude e era de uma cor indefinível. Levantei o gráfico para observá-lo através da luz do teto. A tinta ressaltou imediatamente. Amarela. Que demônios ficava registrado em cor amarela? Atirei da folha, separando a da franja perfurada que a unia às argolas da pasta, e a guardei em meu expediente. Julianne retornou pouco depois. —Não havia ninguém. Bom, deixo-te sozinha. Agarrou a pasta e voltou a partir, me deixando reveste com o corpo do vampiro. Embainhei-me um par de luvas esterilizadas e me aproximei do cadáver. A localização da marca dependia da personalidade do Senhor dos Mortos em questão. Phillian marcava aos seu com um grande Olho do Horus na frente. Gonstance com uma marca na axila esquerda. Dado que aquele não tinha frente, podia pertencer ao Phillian. Em teoria. Dispu-me a procurar a marca.
Nas axilas não encontrei nada. Tampouco no peito, as costas, as nádegas, a parte interior das coxas nem nos tornozelos. O último lugar que ficava por comprovar era o escroto, de modo que lhe abri as pernas ao corpo. Os testículo começavam a reduzir de tamanho imediatamente depois da morte do humano e continuavam diminuindo durante a vida do vampiro. Havia um estudo sobre a possibilidade de precisar a idade dos chupasangres em função do tamanho de seus órgãos reprodutivos. Embora não tinha muito interesse em saber a idade daquele, a julgar pelo que tinha frente a mim, rondaria os cinqüenta. E estava limpo. Nenhuma marca. Embora sim tinha uma cicatriz que cruzava a base do escroto pela parte esquerda. Parecia como se alguém o tivesse costurado. Uma rápida olhada a meu redor disse que não ia encontrar um bisturi naquela habitação. Quando agarrei a Assassina pelo punho, vi que estava fumegando.
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Algo lógico ante a presença de um não—morto. Filamentos de bafo esbranquiçado riscavam formas serpenteantes que nasciam na folha. — Não comece a gotejar —murmurei antes de aplicar o fio à ferida. A pele do cadáver emitiu um assobio quando a folha seccionó a carne. Deixei que penetrasse uns quantos milímetros e a apartei. Uma incisão limpa. Agarrando entre dois dedos um extremo de pele, atirei com cuidado e esta se separou limpamente da virilha, revelando a cicatriz de uma queimadura de uns vinte e cinco centímetros de largura e uns nove de comprimento. No centro da queimadura havia uma pulcra marca chamuscada, uma flecha rematada com um círculo em lugar de com uma ponta de flecha. A marca do Ghastek. por que não me surpreendia? — Sabe que é um delito mutilar cadáveres? —disse uma voz de homem. Dava-me a volta rapidamente, com a espada ainda na mão. Um homem alto estava apoiado no marco da porta. Tinha posto o uniforme forense, de modo que tinha mais direito que eu a estar ali.
— Tome cuidado com isso —me disse. — Sinto-o —pinjente baixando a espada—. Eu não gosto que me assustem. — Nem a mim. Salvo se o faz uma moça e atrativa. —Parecia ter uns trinta anos. O galão laranja de seu ombro brilhava com força. Autorização de terceiro nível. A etiqueta aderida a seu traje o confirmava: tinha-me topado com um maldito supervisor de unidade. Um supervisor de unidade podia te converter em pessoa non grata no necrotério sem te dar tempo a pestanejar. O homem esperou até que apartei o olhar da etiqueta e então alargou sua mão esquerda. — Meu nome é Crest. Tirei-me a luva da mão esquerda sem guardar a Assassina em sua vagem e lhe estreitei a mão. — Kate. Há algum nome que vá antes do Crest? — Sim, mas eu não gosto. Um tipo gracioso. Talvez conseguisse sair dali sem um olho arroxeado em que pese a ter estado brincando com um cadáver. — É um vampiro —lhe disse—. Estava procurando a marca. — Encontraste-a? — Sim. aproximou-se até a mesa para examinar minha obra de arte. Rodeei a mesa para me colocar frente a ele. O Dr. Crest formava parte do grupo dos interessantes. Cabelo castanho avermelhado, alto e, a julgar pelos antebraços, bastante musculoso. Um rosto agradável, franco e honesto, com facções amplas e bem formadas.
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Olhos castanho claros, bonitos e quentes. E, sem lugar a dúvidas, uma boca sensual. Um tipo atrativo, não bonito no sentido clássico da palavra, mas mesmo assim... Levantou a vista do corpo, sorriu-me e troquei de opinião. Era bonito no sentido clássico da palavra. Devolvi-lhe o sorriso, tentando irradiar integridade e um caráter decente. Exato, serei boa com você, senhor, não me impeça a entrada no necrotério. — Interessante —disse—. Nunca tinha visto uma marca oculta deste modo. — Nem eu tampouco. — Vê muitos vampiros em seu trabalho? — Por desgraça, sim. Pilhei-lhe me olhando e baixou o olhar ao corpo. — Dr. Crest? — Sim? —disse piscando. — Devo informar ao Julianne sobre a marca? —Era o menos que podia fazer. — Não. Farei-o eu se não ter tempo. Um alarme saltou no interior de minha cabeça. O bom doutor era muito complacente. Devia me assegurar que Julianne recebesse minha mensagem. Crest olhava o corpo com o cenho franzido. — Um lugar algo tortuoso para pôr uma marca. — Ghastek era um tipo tortuoso. — Não cabe dúvida. —Outra pausa. — Acompanharei-te à saída —disse Crest.
Que encantador. estava-se assegurando de que não me deixasse levar por um desenfreio mutilador. Olhei-lhe com meu sorriso mais cativante. — Claro. Não pareceu muito impressionado. Maldita seja, era a segunda vez aquele dia que me falhava. Saímos juntos da habitação e esperei a que ele fechasse a porta com chave. — me diga, Dr. Crest, o que faz exatamente aqui? —Fez uma careta antes de responder. — Suponho que poderíamos chamá-lo trabalhe caridosas. —Emiti o som apropriado. — Caridosas? — Sim. Dedico-me à cirurgia reconstructiva. —Olhou-me como se esperasse que fora a lhe pedir uma operação de nariz—. Para que os corpos estejam apresentáveis. Não todo mundo pode permitir-lhe de modo que duas vezes por semana o faço por amor à arte. Assenti.
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— Quase sempre são meninos —disse ele—. Corpos destroçados, irreconhecíveis. Não é muito agradável. Uma lástima. Chegamos à porta superior. Crest esperou a que o recepcionista fizesse as comprovações rotineiras. Quando terminei de apontar o número do Julianne, acompanhou-me até a porta. — Bom, espero que voltemos a nos ver logo —me disse.
— Se pode ser não na mesa de operações —lhe disse antes de sair do edifício. Enquanto me dirigia para o lugar onde tinha deixado estacionado ao Karmelion, senti os olhos do Crest cravados em minhas costas. Havia um homem apoiado em minha caminhonete. Vestia camisa cinza, jeans negros, botas ligeiras e um casaco negro que se assemelhava bastante a uma capa. Enquanto estava no necrotério, o sol tinha conseguido abrir-se passo entre as nuvens e agora banhava as ruas de luz. O homem parecia indiferente a seu influxo; era um retângulo de escuridão envolto em uma mortalha luminosa. A corrente humana que circulava pela rua o evitava. A gente não lhe olhava; de fato, concentravam-se de tal modo em ignorar sua presença que poderia ter atirado um bilhete de vinte dólares no chão e teria passado inadvertido. O homem me seguiu com o olhar. Detive-me uns quantos metros dele e lhe olhei. Colocou uma mão em um bolso interior de seu casaco e me lançou o que parecia um comprido laço amarelo. Agarrei-o ao vôo. O corpo suave e frio se enrolou em minha boneca e a serpente jogou a cabeça para trás para me morder na cara. Sujeitei-lhe o pescoço com dois dedos da mão esquerda e a detive escassos centímetros de minha bochecha. A serpente moveu sua língua entre seus lábios escamosos. Umas membranas de um vermelho intenso com um matiz púrpura brilhante apareceram a ambos os lados de sua cabeça, estendendo-se como as asas de uma enorme mariposa. A pequena serpente alada começou a sacudir-se em um intento por pôr-se a voar, mas a sujeitei com força. — Sinto muito, Jim. Jim levantou os braços e indicou algo de aproximadamente um metro de longitude. O casaco se abriu o suficiente para revelar um peito musculoso sob o tecido de sua camisa. — O ninho era deste tamanho, Kate. —Sua voz tinha o tom suave, quase melódico, de um homem menos perigoso e mais atrativo. Não encaixava de tudo bem com seu rosto de bulldog— Me devia uma e me deixaste atirado. Tive que fazer o trabalho sozinho. A serpente se retorceu em um débil intento por me cravar as presas no braço. Embora os largos dentes triangulares não continham veneno, a dentada resultava igualmente doloroso. — Greg está morto —lhe disse. Fez uma pausa antes de perguntar:
— Quando?
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— Faz dois dias. Assassinaram-no. — Está nisso? — Sim. Permanecemos uns instantes apanhados em um doloroso silêncio. Jim se separou da caminhonete com a líquida graça animal solo ao alcance de um cambiaforma experiente. — Se necessitar algo, já sabe onde me encontrar. —Assenti e lhe segui com o olhar enquanto subia as escadas do necrotério. — Jim? Me olhou de esguelha por cima do ombro. — Sim? — O que vieste a fazer ao necrotério? — Assuntos da Manada —disse antes de seguir adiante. Ultimamente todo mundo tinha assuntos no necrotério. Inclusive Jim. Ainda lhe devia uma de quando o inverno passado me tirou de um fosso enlameado cheio de neve fundida e de hidras. Era o mais parecido que tinha a um sócio. de vez em quando cooperávamos em trabajillos pagos para o Grêmio de Mercenários. Naquela ocasião lhe tinha deixado atirado. Teria que lhe compensar. Mas antes devia encontrar ao assassino do Greg. E para fazer isso teria que descobrir que fazia o vampiro do Ghastek na cena do crime. Afrouxei a pressão no pescoço da serpente e a lancei ao ar com cuidado. A serpente caiu em picado e, de repente, pôs-se a voar. Remontou o vôo, cada
vez mais alto, sobrevoou os telhados envolta na luz do sol e finalmente a perdi de vista.
QUANDO TIVER DÚVIDAS e necessite informação, encontra a um mexeriqueiro e espreme-o até que canto. Aquela era uma das poucas técnicas de investigação que conhecia. De fato, essa e “molesta aos implicados até que o culpado dita te matar” era toda minha bagagem naquela questão. Cuidado que vou, Sherlock. Definitivamente, tinha dúvidas e necessitava informação respeito ao vampiro do Ghastek, e conhecia a pessoa adequada que devia espremer. Tinha o cabelo de ponta, vestia de couro negro e se fazia chamar Bônus por um cantor que já ninguém recordava. Além disso, era o oficial do Ghastek. Se dispunha de certo talento para a nigromancia e a necronavegación, a manipulação e condução dos mortos, estava qualificado para te converter em aprendiz. Se além disso acrescentava algum que outro conhecimento à mescla, convertia-te em oficial. Para seguir subindo no escalão necessitava autêntico poder e espírito competitivo.
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A maior parte dos membros da Nação nunca se graduavam e continuavam sendo oficiais toda sua vida. Bônus estava em seu segundo ano. Seu conhecimento dos mortos era quase enciclopédico. A última vez que lhe vi, me deu de presente um artigo que tinha tirado de algum periódico para que o incluíra em meu Calendário. Algo relativo a uma criatura eslava que se alimentava de cadáveres chamada upir. Embora tinha a sensação de que toda a experiência de Bônus terminava na teoria. Tivesse apostado algo a que não se converteria em um Senhor dos Mortos em um futuro imediato. Era fácil dar com Bônus. Estava acostumado a freqüentar o Adriano's, um lugar bastante tranqüilo que pouco tinha que ver com os estabelecimentos recentemente reformados da Atlanta Subterrânea, onde os
bares estavam acostumados a ser ruidosos e os nomes da maioria dos clubes continham a palavra “dor”. O Adriano's estava situado em uma zona agradável da Avenida Euclides, no Little Five Points, e dava de comer a uma clientela quase de classe média. Seu formoso rosto, seu cabelo e sua jaqueta convertiam a Bônus em alguém fácil de localizar. As mulheres desfrutavam de sua companhia. Embora ele também desfrutava delas, interessava-lhe mais a quantidade que a qualidade. Nunca o tinha visto duas vezes com a mesma mulher. de vez em quando, alguém tentava lhe chutar o culo e manchava com seu sangue o chão e o mobiliário. Qualquer que tivesse passado seus anos de formação atendendo um estábulo de vampiros devia ser um duro oponente. Poderia ter ido diretamente à fonte e lhe perguntar ao Ghastek sobre seu vampiro. O problema era que para falar com o Ghastek teria que entrar fisicamente no Cassino, onde a Nação tinha seu quartel geral. Entrar no Cassino significava encontrar-se com a Nataraja, o grande poobah da Nação na cidade e o chefe e supervisor do Ghastek. Nataraja era uma das piores classes de verme, mas possuía uma estranha sensibilidade para a magia. Tinha a sensação de que Nataraja não sabia muito bem o que sentia quando estava ante minha presença mas tinha um grande interesse em descobri-lo. Cada vez que nos víamos, tentava que lhe fizesse uma demonstração de meu poder. Algo que não podia me permitir, especialmente agora, com as quatro palavras de poder novas ainda palpitando em minha cabeça. Teria que fazer uma visita ao Cassino em um momento ou outro, mas por agora teria que me conformar espremendo ao oficial do Ghastek. Eram quase as onze da noite quando saí para o Adriano'S. Bônus raramente aparecia por ali antes da meia-noite, e tinha aproveitado o tempo disponível para retornar a minha casa sobre a linha de energia e trazer para o Betsi, o velho e desmantelado Subaru, à cidade. Tinha a sensação de que passaria algum tempo ali. Como a magia acabaria por retirar-se, como sempre fazia, necessitaria um veículo que funcionasse durante as horas tec.
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Custou-me cinqüenta perus rebocar ao Betsy até o apartamento do Greg. Tinha-me equivocado de profissão.
Entrei no Adriano'S. A barra se estendia ao longo da sala, protegida por uma fileira de tamboretes. Um par de clientes olhavam fixamente suas bebidas ao outro extremo da barra. Uma loira com pinturas de guerra sorvia algo afrutado de uma taça de margaridas. Através de uma porta arqueada distingui a sala contigüa. Estava composta por reservados de poltronas vermelhas que Adriano devia ter resgatado de algum restaurante de estrada. O barman, um homem de membros alargados e cabelo escuro, fez-me um gesto com a cabeça. Magro e fleumático, com um rosto estreito e inteligente, parecia mais um intelectual universitário que um barman. chamava-se Sergio e sempre colocava a rodela justa de lima na Coroa, o que lhe convertia em um homem extremamente valioso. Passei-lhe dois bilhetes de vinte. Sergio me olhou com uma sobrancelha arqueada. — Para que é isto? — Pelas possíveis imperfeições. vou manter um pequeno bate-papo com Bônus. Está aqui? Sergio assinalou com a cabeça a sala de reservados e se encolheu de ombros enquanto se guardava os bilhetes no bolso. — te afaste das janelas —me disse—. São muito caras para ti. A sala contigüa estava fracamente iluminada com abajures feéricas. Bônus estava acostumado a sentar-se no reservado mais afastado da porta. Detive-me um instante para examinar a habitação e distingui seu bicudo cabelo negro. Dirigi-me para seu reservado com as bandeiras desdobradas e as armas a ponto. Bônus tinha companhia. A julgar pelo sorriso misterioso “olá—carinho—sou— estudante—de—magia” que iluminava seu rosto, a companhia era feminina. Dava-me igual. Deteve seu cortejo para jogar uma olhada a seu redor e reparou em minha presença. Deveu ver algo que não gostava porque o sorriso desapareceu de seu rosto. sentou-se mais erguido sobre a poltrona. Levei-me a mão à costas, por cima do ombro. Meus dedos rodearam o punho de Assassina e a desenvainaron com um único movimento fluido. A mão de Bônus se perdeu sob a mesa em busca de sua pistola. Sempre levava uma Colt 9mm no bolso de sua jaqueta. Detive-me bruscamente frente ao reservado. Uma magra ruiva com um vestido curto sem suspensórios estava sentada frente a Bônus. Deixei a espada sobre a mesa. Bônus — emprestava— a vampiro e a folha da espada fulgurou
fracamente, um raio prateado de lua contra a madeira escura. A ruiva abriu muito os olhos. O rosto de Bônus se relaxou ligeiramente mas seu olhar não se apartou nem um instante da minha.
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—Olá, Bônus —pinjente—. Me alegro de verte. Há-te follado algum cadáver ultimamente? A última esperança de passar uma velada tranqüila desapareceu de seu semblante. — Nenhum que te importe. A ruiva se levantou precipitadamente de seu assento e saiu do reservado tentando conservar alguma pingo de dignidade. Bônus a observou partir com olhos melancólicos e depois me dirigiu toda sua atenção. — Assustaste-a. Não esteve bem, Kate. —Arqueei uma sobrancelha e me acomodei no sítio que tinha deixado livre a ruiva. — Tem lido o artigo que te dava? —perguntou-me. — Não. — Deveria fazê-lo, Kate. Deveria te informar sobre os upiri. Percorri a folha de Assassina com um dedo. Senti uma ardência quando a descarga de magia entrou em contato com minha pele. — Quero que me fale da morte do cavalheiro—místico. Quero saber que fazia um dos vampiros do Ghastek na cena do crime. Quero saber quem o pilotava e o que viu. Quero saber o que lhe arrancou a cabeça de coalho. E qualquer outro detalhe que deseje acrescentar. Bônus me mostrou os dentes. — Está um pouco tensa hoje, verdade?
Rodeei o punho de Assassina com uma mão. — Não sabe até que ponto. —Bônus se inclinou para frente. — Adiante —disse—. Faz-o. Fritarei-te com espada e tudo. —Sorri abertamente. — Não pode me fazer nada, Bônus. Tenta-o se quiser. Telegrafa seus movimentos. baixaste o ombro esquerdo, e além sua pistola não serve de muito com a magia em pleno apogeu. Assim, adiante, me demonstre o que vale. Olhei seus olhos e soube que meu sorriso se transformou em uma careta ávida. — Preciso fazer machuco a alguém. Sentará-me bem. —Tinha vontades de rir mas fiz todo o possível por isso ter aquele impulso—. me Dê um motivo. Adiante, Bônus. Solo me dê um puto motivo. A magia se assentou a meu redor. As emanações de meu sangue a atraíram da atmosfera circundante. Se a magia tivesse tido cor, poderia dizer-se que estava sentada em um torvelinho vermelho. Assassina fulgurava com um intenso tom prateado, alimentando-se de minha ira. Desejava seccionar carne fresca e eu estava a ponto de permitir-lhe Bônus piscou, percebeu o influxo mágico e se encheu os pulmões com uma brusca baforada de ar. — Está louca.
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— Muito. Seu rosto se relaxou paulatinamente e soube que nos tínhamos afastado do precipício. Hoje não haveria briga. Bônus se inclinou sobre a mesa. — O que pensaria se te dissesse que não temos nada que ver com a morte do místico? Embora tampouco estamos obrigados a falar contigo.
O proverbial “estamos”. O mastiguei uns instantes e lhe disse: — Nesse caso, levantarei-me e irei até a barra, onde farei duas chamadas. Primeiro chamarei o cavalheiro—protetor, para quem trabalho nestes momentos, e lhe direi que um vampiro do Ghastek está comprometido na morte do místico. Direi-lhe que se tomaram muitas moléstias em ocultar sua marca, o que é ilegal, e que o oficial do Ghastek se negou a falar do tema comigo e me ameaçou. Depois chamarei o Ghastek para lhe informar que conheço o motivo pelo qual todo seu mundo se vem abaixo. E a razão é você. Bônus me olhou fixamente. — Pensava que nos levávamos bem. Saudamo-nos com a cabeça quando nos vemos. Toleramo-nos mutuamente. Compartilhei contigo minha investigação. Encolhi-me de ombros. — Não pode me fazer isto —me disse com segurança—. Sabe perfeitamente o que me faria Ghastek. É uma boa pessoa. — Que parte de meu histórico te faz pensar que sou uma boa pessoa? Não tinha resposta para aquilo, de modo que se limitou a agitar a cabeça. — por que eu? — por que não? me dê o que quero e me largarei. Ou te farei mal de um modo ou de outro. Bônus estava encurralado. Não tinha forma de baixar do quadrilátero. — Chamam-lhes as sombras —disse com seu formoso rosto marcado pela resignação—. Vampiros com marcas ocultas. Ghastek não é o único que está utilizando-os, mas o seu é muito ativo, já sabe a que me refiro. — Que fazia este em particular? — Seguir ao místico. Desconheço o motivo. — Quem o pilotava? Bônus duvidou um instante antes de responder: — Merkowitz.
— O que viu? Bônus estendeu as mãos. — Não sei muito mais que você. Sabe o que lhe ocorre à navegante quando morre o vampiro que pilota? Tinha uma idéia aproximada, mas a informação extra nunca vem mau.
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— me ilumine. — A menos que esteja protegido, morre pela comoção. É como se lhe arrancassem a cabeça de coalho, o que deixa um pouco confundido a seu cérebro. Acrescenta a isso toda a mierda que lhe lançou o místico e a magia desprendida pelo atacante e terá uma idéia aproximada de como está Merkowitz. Nunca me caiu bem esse casulo. Devo admitir que lhe sinta muito bem sua nova vida vegetal. —O coração me deu um tombo. — Está inconsciente? — Tanto como poderia está-lo um tijolo. — Quanto tempo estará assim? — Estão trabalhando nele, mas ninguém sabe quando se recuperará. É complicado convencer a alguém que não está morto quando seu cérebro crie o contrário. — Tem a Nação alguma idéia de quem pode ser tão capitalista para converter em mingau a um místico e a um vampiro? Bônus cravou o olhar na parede a minhas costas.
— Necessito um nome —lhe disse. — Gorwin. Eu não lhe hei isso dito. —ficou em pé com um movimento fluido e partiu. Esperei uns minutos, aproximei-me da barra e me bebi uma Coroa fria com uma rodela de lima. Tinha conseguido assustar a Bônus. Uma parte de mim se sentia mal por isso. A outra me recordou que ganhava a vida pilotando vampiros e que atacava a seus oponentes quando estes baixavam o guarda. Recordei o rosto do Greg e dava um comprido trago à Coroa. Sentia-me derrotada e esgotada. Miúdo dia... Tinha esperado obter algo mais de informação de Bônus, mas ao menos tinha um nome. E também a base de dados do Greg, com a que poderia contrastá-lo. O dia tampouco tinha ido do todo mal.
A ESCURIDÃO ENVOLVIA a escada do edifício onde estava o apartamento do Greg. Nenhuma só luz iluminava os degraus de cimento. Ao chegar ao primeiro patamar, compreendi o motivo: as lâmpadas elétricas tinham explorado. Ocorria de vez em quando, durante uma intensa flutuação, em lugares onde a magia golpeava com mais força. Normalmente, os abajures feéricas substituíam a eletricidade com eficácia —funcionavam mediante a conversão da magia ambiental em uma luz débil e azulada—mas aquela noite tampouco funcionavam. A flutuação devia ter sido especialmente intensa e os conversores dos abajures deviam haver-se superaquecido e chamuscado. Sentia-me um pouco estranha retornando ao apartamento do Greg. Não exatamente incômoda, mas tampouco especialmente feliz.
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Por desgraça, não tinha outra opção. ia passar algum tempo naquela horrível cidade e necessitava uma base de operações. O apartamento do Greg era o lugar perfeito: as defesas me reconheciam e Greg tinha uma coleção muito completa de ervas básicas, livros de referência e outros recursos úteis.
Seu arsenal era decente, embora tinha uma especial predileção pelas armas de impacto, enquanto que eu preferia as espadas. Os maços e os martelos exigiam muita força física. em que pese a ser uma mulher forte, não me fazia muitas ilusões. Em um enfrentamento de força bruta, um homem de meu tamanho e com idêntico treinamento não teria muitas dificuldades para me tombar. Por sorte, havia poucos homens tão preparados como eu. Subi as lôbregas escadas enquanto sonhava com um bom jantar e uma ducha quente. A barreira que protegia a porta do apartamento se fechou sobre minha mão e esta se abriu com uma pulsação azulada. Entrei no apartamento, desfizme dos sapatos e me dirigi à cozinha. Uma das vantagens de ter uma espada mágica era que suas secreções dissolviam a carne não—morta. O inconveniente era que tinha que alimentá-la ao menos uma vez ao mês se não queria que acabasse muito frágil e quebradiça Arrastei um aquário de 120 centímetros de profundidade da parte inferior de um armário e encontrei a bolsa de penso que tinha deixado no apartamento do Greg para as situações de emergência. O penso, de uma cor marrom cinzenta, parecia uma tosca farinha de trigo. De fato, estava composto fundamentalmente de farinha de trigo, além de aparas metálicas de cobre, ferro e prata, conchas trituradas, farinha de osso e giz. Enchi o aquário de água, acrescentei uma taça de penso e revolvi a mescla com uma larga colher de madeira até que a solução se turvou e não ficou nada de penso no fundo. Continuando, introduzi a espada no aquário e me lavei as mãos. A diminuta luz carmesim da secretária eletrônica titilava. Não teria que estar fazendo-o, já que a magia estava em pleno apogeu. Embora a magia não sempre se comportava como a gente esperava. Às vezes os telefones funcionavam e outras não. Sentei-me em uma cadeira e apertei o botão da secretária eletrônica. A ansiosa voz da Anna encheu a habitação. — Kate, sou eu. Endireitei-me sobre a cadeira. Anna nunca soava ansiosa. Possivelmente fora pela morte do Greg. Embora fazia dez anos que estavam divorciados, ainda devia sentir algo por ele. — Escuta atentamente enquanto vou recordando. —Sua voz se tingiu de cansaço e compreendi que devia estar recuperando-se de uma visão. O fato de que soubesse que estava no apartamento do Greg era tão corriqueiro para ela que nem sequer se incomodou em me perguntar por isso. Às vezes ser uma vidente tinha suas vantagens. — Um bosque —disse a voz da Anna—.
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Muito verde, muito frondoso, finais da primavera ou princípios do verão. O ar cheira a umidade. Sob algumas árvores há uma espécie de ídolos de madeira, muito altos. Os ídolos se movem e trocam de forma. Um deles parece um ancião, mas também um urso com chifres, e sujeita algo entre as mãos... talvez um pires com água. Outro ancião está de pé sobre um pescado; acredito que nas mãos leva uma roda. Um homem com três rostos e com os olhos tampados está sentado entre as sombras. Logo que posso lhe ver. O primeiro era Vele, o terceiro, Triglav. O panteão eslavo. Teria que procurar o segundo. — Um homem está frente a eles, rodeado por seus filhos. Não estão bem. Não encaixam; não são humano nem animais, nem vivos nem mortos. Atrás do homem estão seus serventes. Cheiram a mortos viventes. —Anna agarrou ar— . O homem se está masturbando. A sua direita cintila algo que luta por consolidar sua existência, possivelmente um menino. A sua esquerda está você, sentada no chão com as pernas cruzadas enquanto devora um corpo. Maravilhoso. — Sei que Greg morreu —me disse—. E sei que está procurando o assassino. Tem que deixá-lo, Kate. Sei que não me fará conta, mas tinha que te advertir. Isto não pinta bem, Kate. Não pinta nada bem.
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Capitulo 3
Despertei oito horas depois, cansada e com uma forte enxaqueca. Tinha a intenção de chamar a Anna, mas não sei bem como, assim que me tombei na cama, meu corpo desconectou meu cérebro durante o resto da noite. O telefone não funcionava. Sentei-me sobre a cama e o olhei fixamente. Até o momento tinha alguns dados de um cabelo mas não à espécime em questão; umas linhas que podiam ser ou não o resultado de um mau funcionamento do exploratório, e o nome de um personagem noturno que me tinha dado sob coação um oficial da Nação com muitas vontades de desfazer-se de mim. além de todo isso, tinha o que provavelmente era um cabelo de felino no cadáver de um vampiro, o que colocava à Manada e à Nação em uma trajetória de colisão.
Imaginei a dois colossos correndo o um para o outro em meio da cidade, como os monstros dos antigos filmes de terror, e eu, um mosquito, no meio. Seria um banho de sangue ao que poucos na cidade sobreviveriam. portanto, o truque não era sobreviver, a não ser evitar que acontecesse. No sonho, o mosquito golpeava a um colosso na virilha e rasgava ao outro com um corte no jugular. Voltei a provar o telefone. Continuava sem funcionar. Amaldiçoei e fui vestir me. Uma hora mais tarde entrava no escritório do Greg. Ninguém me perguntou que fazia ali. Ninguém me olhou nem me perguntou por que demônios não estava resolvido o caso ou por que chegava tão tarde. A falta de dramatismo era muito decepcionante. Revisei os dados que tinha recolhido Greg. Nos arquivos não encontrei nenhuma referência ao Corwin, mas no último achei uma pilha de pastas com um signo de interrogação na tampa, de modo que me pus com elas com a vã esperança de dar com algo. Algo. Desde não ser assim, veria-me obrigada a agarrar a gente pela rua e lhes gritar: « Conhece o Corwin? Onde está?» As pastas continham as notas do Greg, escritas em seu código pessoal. Franzi o cenho enquanto repassava uma entrada indecifrável atrás de outra. «Glop. Ag. Bls—7». «Bis» tinha que significar balas. «Ag» podia ser Argentium, prata. Mas que demônios significava «Glop»? Minhas esperanças minguaram à medida que passava uma página atrás de outra, de modo que quando apareceu ante meus olhos, meu cérebro esteve a ponto de não registrá-lo. Em uma folha solta estava rabiscado «Corwin», e junto no nome, dois desenhos. A gente era a tosca representação de uma luva com afiadas cuchillas se sobressaindo dos nódulos. O outro, uma espécie de estranho desenho envolto em um semicírculo escuro. Observei de perto o desenho. Não me disse nada.
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O telefone começou a soar. Fiquei olhando-o. Voltou a soar. Perguntei-me se devia responder. Saltou o interfone e a voz do Maxine disse:
—Deveria agarrá-lo, carinho, é para ti. Como sabia? Desprendi o auricular. — Sim? —Olá, céu —disse a voz do Jim. —Estou ocupada. Coloquei a pasta de lado e examinei o desenho. Nada. —Não jodas —disse ele. —Muito gracioso. Não posso aceitar nenhum caso. —Não te chamava por isso. Franzi-lhe o cenho ao telefone e lhe dava a volta à pasta. —Sou todo ouvido. —Alguém quer lhe conhecer —me disse. —lhe diga que fique à cauda —murmurei. O desenho quase recordava a algo. —Não estou de brincadeira. —Você nunca brinca porque está muito ocupado sendo um casulo. Venha, uma capa de pele negra? Em plena primavera? Em Atlanta? Além disso, não tenho tempo para conhecer ninguém. Jim baixou muito a voz e pronunciou cada palavra com muito cuidado. —pense-lhe isso bem. De verdade quer que lhe diga que não ao homem? Algo no modo em que disse aquilo do homem» me deteve. Fiquei imóvel e refleti seriamente sobre o tipo de «homem» que faria falar com o Jim daquele modo. — O que tenho feito para atrair a atenção do Senhor das Bestas? —perguntei secamente. —Está no escritório do místico, não é assim? Touché. O Senhor das Bestas era o Rei da Manada, o senhor dos cambiaformas, e governava a seus irmãos com punho de ferro. Poucos lhe conheciam em
pessoa e a mera menção de seu título era suficiente para que o mais ruidoso cambiaformas fechasse o pico. Em outras palavras, era precisamente o tipo de pessoa que tanto Greg como meu pai me tinham recomendado evitar. Apertei os dentes enquanto pensava no modo de me liberar da entrevista. cedo ou tarde teria que ir ver a Nação para lhes interrogar sobre o vampiro. Mas no momento nada me empurrava a me internar na guarida da Manada.
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—Sua segurança está garantida —disse Jim—. Eu também estarei. —Não é por isso —murmurei. Devia haver algum modo de rechaçar o convite. Olhei fixamente o teimoso desenho... —Olhe —disse Jim, fazendo um evidente esforço por parecer razoável—, tenha em conta que... —lhe diga que me encontrarei com ele esta noite em algum lugar privado —lhe disse—. Responderei a suas perguntas se ele responder às minhas. —De acordo. Às onze, na esquina de Unicórnio e a Treze. E pendurou. Tamborilei com os dedos sobre o escritório. Por fim lhe tinha encontrado sentido ao desenho. A cabeça de um lobo lhe uivem silueteada sobre o semicírculo da lua. O símbolo da Manada. Corwin pertencia à Manada. Ficava uma pequena questão relativa ao Maxine da que devia me ocupar. Concentrei-me e sussurrei em voz tão baixa que nem eu podia me ouvir. Os autênticos comunicadores podem concentrar-se para emitir seus pensamentos sem vocalizá-los, mas eu devia mover os lábios como uma idiota. — Maxine? — Sim, querida? — disse a voz do Maxine em minha cabeça. — Há alguma outra chamada para mim?
—Não. —Obrigado. —De nada. Guardei a pasta em seu sítio e saí do escritório. Maxine era telépata. E uma muito poderosa. A partir de agora devia evitar pensar naquele escritório. Parti-me rapidamente e, ao chegar às escadas, quase pus-se a correr. Demoraria um tempo em me acostumar à idéia de que alguém escavasse em minha cabeça. Retornei ao apartamento. Sentei-me no chão, com as costas apoiada na porta, e respirei fundo. Toda minha vida me haviam dito que me mantivera afastada de tudo o que cheirasse a poder. Não chame a atenção. Não alardeie. Protege seu sangue, porque acabará te traindo. Se sangrar, poda o sangue imediatamente e queima a toalha. Queima as ataduras. Se alguém consegue fazer-se com um pouco de seu sangue, lhe mate e destrói a amostra. Ao princípio era uma questão de sobrevivência. Mais tarde se converteu em simples vingança. me encontrar com o Senhor das Bestas significava me inundar de cabeça na política sobrenatural de Atlanta. Ele era um dos pesos pesados. Embora podia evitar me reunir com ele; quão único devia fazer era me largar dali. Seria muito fácil. Tive uma fugaz visão de mim mesma em cuclillas junto a um cadáver humano, me introduzindo na boca partes de carne murcha.
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O apartamento estava silencioso e senti a presença do Greg. Todo o apartamento estava impregnado de sua força vital, de tudo o que lhe tinha convertido no que era. parecia-se muito a meu pai: direto, inflexível, tomando seu próprio caminho sem preocupar-se do que o mundo pensasse dele. Não podia partir. Encontraria ao responsável por sua morte e me vingaria, se não pelo Greg, ao menos por mim. De outro modo, não poderia seguir me
olhando ao espelho. Quando a vida te encurrala em uma esquina e não te oferece saída alguma, quando seus amigos, seu amante e sua família lhe abandonam, quando está ao bordo do precipício, assustada, só e a ponto de perder a cabeça, sabe o que fará algo por solucionar seus problemas. Então, desesperada-se e ansiosa, irá ao Unicórnio em busca de salvação em sua magia e seus segredos. Fará algo, pagará qualquer preço. O distrito do Unicórnio te aceitará, envolverá-te em seu poder, resolverá seus problemas e se cobrará seu preço. E então aprenderá o autêntico significado de «algo». Toda cidade que se aprecie tem um desses bairros —perigoso, sinistro—, tão traiçoeiro que inclusive quão criminais extorquem a outros criminosos os evitam. O distrito do Unicórnio era um desses lugares. Trinta maçãs de comprimento e oito de largura, cortava como uma adaga o que tempo atrás tinha sido o centro da cidade. Era uma zona de arranha-céu médio derrubados, testemunhas silenciosas de uma tecnologia do passado, os cascas de ovo do GLG Grand, o Promenade II e o One Atlantic Center, corroído até os alicerces pela magia. As ruas estavam repletas de entulhos e as águas residuais se derramavam de encanamentos trinchados, formando pestilentos arroios sobre o meio-fio. A magia estava estancada naquele lugar, persistindo inclusive durante as quebras de onda mais potentes, e ali encontravam proteção espantosas criaturas que evitavam a luz entre as escuras carcasas de edifícios estripados. Bruxos lunáticos, desumanos e pervertidos que temiam morrer à mãos da pouco pormenorizada Manada, satânicos e nigromantes solitários, todos terminavam no distrito do Unicórnio, já que se podiam chegar ali e sobreviver, nenhum representante da lei podia lhes obrigar a abandonar o lugar. O distrito do Unicórnio tinha suas próprias leis. Um lugar infernal para uma entrevista. Avancei pela rua Quatorze, estacionei ao Karmelion em um beco solitário e percorri a pé as duas maçãs seguintes. Frente a mim apareceu um muro de pedra que se desmoronou; um lamentável intento por parte de algum idiota da prefeitura para conter o distrito do Unicórnio. Subi e deixei atrás os restos do muro. Um grande fragmento de cimento me impedia o passo. Tinha um aspecto escorregadio, quase viscoso. Saltei por cima dele.
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Naquele lugar, inclusive a luz da lua estalava e grunhia como um cão raivoso, e a magia mordia sem prévio aviso. Cinco minutos depois de entrar no distrito, um letreiro na fachada de uma casa abandonada me informou que tinha chegado a meu destino, a esquina da Treze com Unicórnio. diante de mim, um velho edifício de apartamentos observava a rua através de suas janelas rotas. A minha direita, um intrincado conglomerado de cimento e estruturas metálicas bloqueava a rua, sepultando o pavimento sob uma montanha de resíduos. A rua estava aberta a minha esquerda, mas sumida na escuridão. Permaneci imóvel, esperando, escutando. A luz da lua se derramou sobre as ruínas. Uma espessa escuridão que se parecia mais à tinta se acumulou nos ocos e vazios e se estendeu, fundindo-se com a luz, engendrando tênues sombras e confundindo a fronteira entre o real e o ilusório. A horripilante paisagem parecia falso, como se os edifícios ruídos se desvaneceram, deixando detrás de si traiçoeiras sombras de suas formas originais. Em algum ponto das profundidades da rua do Unicórnio algo começou a uivar, dando voz a uma alma torturada. O coração deixou de me pulsar durante um segundo. Algo ou alguém me observava das sombras. Senti seu olhar sobre meu corpo como se se tratasse de algo físico. Deixei passar uns instantes que se transformaram em minutos. Pouco depois, olhei meu relógio. deteve-se. Em algum lugar da escuridão rondava o Senhor das Bestas. Não sabia que aspecto tinha nem a espécie de sua besta. Pouca gente fora da Manada afirmava lhe haver conhecido e ninguém parecia muito disposto a comentar a experiência. Quão único sabia dele era que dispunha de um grande poder. Segundo as últimas estimativas, comandava uma força de trezentos e trinta e sete cambiaformas só na cidade de Atlanta. Não estava ao mando porque fora o mais preparado ou o mais popular; encabeçava a Manada porque, de entre esses trezentos e trinta e sete indivíduos, era, inquestionavelmente, o mais forte. Estava ao mando pelo direito que lhe outorgava seu poder; em resumo, ainda não tinha aparecido ninguém capaz de lhe chutar o traseiro. Entre os cambiaformas, os lobos são os mais numerosos, depois vêm as raposas, os chacais, os ratos e, por último, as hienas e os felinos mais pequenos: linces, gatos monteses e guepardos. Sem esquecer as formas exóticas, os homens—búfalo e os homens—serpente, mas os búfalos tinham seu próprio Rebanho no Meio Oeste e as serpentes eram entes solitários. Todas as formas de besta eram maiores que seus equivalentes naturais; um cambiaforma padrão em sua forma de lobo se aproximava dos cem
quilogramas de peso, enquanto que o lobo cinza pesava menos de cinqüenta quilogramas. De um ponto de vista biológico, a transformação de um humano de setenta e sete quilogramas a um animal de cem não tinha sentido, mas no relativo à mudança de forma, a menor das anomalias era a massa flutuante.
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A magia não pode ser medida nem explicada em términos científicos, dado que a magia se estende mediante a destruição dos princípios naturais em que se apóia a ciência. Outro uivo rasgou a escuridão, ainda muito longe para representar uma ameaça. O Senhor das Bestas, o alfa macho, devia impor sua posição mediante a vontade e a força física. Devia responder a todo aquele que ameaçasse seu reinado, portanto, era pouco provável que fora um lobo. Um lobo não tinha muitas opções frente a um felino. Os lobos caçavam em manada, sangrando a sua vítima e perseguindo-a até que esta se esgotava, enquanto que os felinos eram máquinas de matar solitárias, desenhadas para assassinar com rapidez e precisão. Não, o Senhor das Bestas tinha que ser um felino, talvez um jaguar ou um leopardo. Possivelmente um tigre, embora os únicos casos conhecidos de homem—tigre se deram na Ásia e podiam contar-se com os dedos de uma mão. Tinha ouvido rumores sobre o Kodiak de Atlanta. Segundo a lenda, tratava-se de um enorme urso com numerosas cicatrizes que percorria as ruas em busca de criminosos da Manada. A Manada, como qualquer organização social, tinha a seus infratores da lei. O Kodiak era seu Executor. Talvez sua Majestade se transformasse em um urso. Maldita seja. Teria que ter trazido um pouco de mel. Me começou a dormir a perna esquerda. Troquei o peso do corpo de um pé ao outro... Um uivo grave e ameaçador me obrigou a ficar imóvel em metade do movimento. Procedia da brecha sumida em sombras no edifício ao outro lado
da rua e se estendeu pelas ruínas, despertando lembranças imemoriais de um tempo em que os humanos eram criaturas patéticas que se encolhiam frente à fraca chama do primeiro fogo e sondavam a escuridão com olhos assustados, pois nesta se ocultavam assassinos monstruosos e famintos. O subconsciente me enviou um sinal de alarme. Mantive-a a raia e fiz ranger o pescoço, lentamente, primeiro um lado e depois o outro. Com a extremidade do olho captei o movimento fulgurante de uma sombra estilizada. A minha esquerda, e por cima de mim, um grácil jaguar se desperezó sobre o protuberante bloco de cimento, uma elegante estatua emoldurada pela metálica luz da lua. Homo Pantera. O assassino que apanha a sua presa com um único salto. Olá, Jim. O jaguar me olhou com seus olhos ambarinos. Os lábios felinos se alargaram riscando um sorriso extrañamente humana.
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Que riera se queria. Não sabia o que estava em jogo. Jim inclinou a cabeça e começou a limpá-la pezuña. Agarrando com firmeza a espada, cruzei a rua e me introduzi pelo oco da parede. A escuridão me engoliu completamente. Percebi o penetrante aroma almiscarado dos felinos. Assim que nada de ursos, não? Onde estava? Esquadrinhei o edifício, tentando distinguir algo na escuridão. A luz da lua se filtrava pelos buracos nos muros, criando uma miragem de penumbras e sombras. Sabia que me estava observando. Desfrutando de do momento. A diplomacia nunca foi um de meus fortes e me estava acabando a paciência. Pu-me em cuclillas e gritei: —Aqui, gatinho, gatinho, gatinho.
Dois olhos dourados se acenderam na parede de em frente. Uma silhueta se agitou na escuridão e ficou em pé, elevando os olhos cada vez mais até ficar muito por cima de mim. Uma enorme pezuña avançou para a zona iluminada pela luz da lua, levantando o pó que cobria o chão. Umas perigosas garras apareceram e se retraíram rapidamente. Continuando, um formidável ombro com a pelagem cinza manchada por umas débeis raia defumadas. O enorme corpo seguiu avançando diretamente para mim; perdi o equilíbrio e caí de culo ao chão. Pelo amor de Deus, aquilo não era um simples leão. Aquela coisa devia medir um metro e médio a quatro patas. E por que tinha raias? O colossal felino começou a riscar círculos a mim ao redor, entrando e saindo das sombras, enquanto sua juba se agitava com cada movimento. Pu-me em pé como pude e estive a ponto de se chocar com seu focinho cinza. Olhamonos fixamente, o leão e eu, com os olhos ao mesmo nível. Então me dava a volta e me dediquei a me sacudir os jeans de um modo muito pouco digno. O leão desapareceu em um rincão sumido na escuridão. Um sopro de poder percorreu a zona, perturbando meus sentidos. Não fazia falta ser uma especialista para saber que acabava de transformar-se. — Gatinho, gatinho? —disse uma neutra voz masculina. Dava um coice. Nenhum cambiaformas passava de besta a humano sem um período de repouso. Na forma intermédia sim, mas o passo de besta a humano não era singelo. —Sim — yeah… me pilhaste despreparada. A próxima vez trarei leite e algum juguetito para gatos. —Se houver uma próxima vez. Quando me dava a volta, vi-lhe ali de pé, com uma camiseta folgada e calças de moletom. Um cambiaforma sem ares de grandeza, que reconfortante! Se não fora pelo brilho úmido que cobria sua pele, ninguém saberia que acabava de transformar-se.
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Observou-me lentamente, com cautela, como se estivesse me avaliando. Podia me ruborizar recatadamente ou podia fazer o mesmo com ele. Optei por não me ruborizar. Meio centímetro mais alto que eu, o Senhor das Bestas transmitia uma sensação de poder contido. Depravado, postura equilibrada. Cabelo loiro muito curto. A primeira vista, parecia estar na vintena, mas seu físico lhe traía. A camiseta se esticava à altura dos ombros. Suas costas era larga e musculosa, revelando o poder e a força física que um homem está acostumado a desenvolver a partir dos trinta e tantos. — Que classe de mulher se apresenta ante o Senhor das Bestas com um «aqui, gatinho, gatinho»? —me perguntou. —Uma com classe —murmurei a resposta mais óbvia. Em algum momento teria que lhe olhar aos olhos. Melhor logo que tarde. O Senhor das Bestas tinha uma mandíbula forte e quadrada. Seu nariz era estreito, com a ponte torcida, como se a tivesse quebrado mais de uma vez e nunca se curou bem de tudo. Tendo em conta os poderes regenerativos dos cambiaformas, deviam lhe haver golpeado na cara com um maço. Nossos olhares se cruzaram. Diminutas faíscas douradas dançaram em seus olhos cinzas. Seu olhar me fez desejar inclinar a cabeça e olhar para outro lado. Observava-me como se fora um novo e interessante manjar. —Sou o Senhor das Bestas —disse. —Sim, suspeitava-o. —Esperava talvez que lhe fizesse uma reverência. inclinou-se ligeiramente para diante, me examinando como se fora um inseto desconhecido. —por que o cavalheiro—protetor contrataria a uma mere sem reputação para investigar a morte de seu místico? Olhei-lhe com meu melhor sorriso críptica. Ele fez uma careta. —O que tem descoberto? —perguntou-me. —Não estou em disposição de te responder a isso. —Não com um suspeito na Manada. inclinou-se ainda mais, permitindo que a luz da lua lhe iluminasse o rosto. Seu olhar era direto, e não era fácil seguir olhando aqueles olhos. Consegui-o,
embora não pude evitar fazer chiar os dentes. Cinco segundos de conversação e já tentava me controlar com o olhar do alfa. Se começava a estalar os dentes, seria hora de sair por patas. Ou de lhe apresentar a minha espada. —Agora me dirá o que sabe —disse ele. —ou? Não disse nada, de modo que me expliquei. —Verá, normalmente esse tipo de ameaças levam um «ou» implícito. Ou um «e». «me Diga isso e te permitirei seguir com vida» ou algo assim.
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Seus olhos flamejaram com uma tonalidade dourada. Seu olhar se fez insuportável. —Posso fazer que me suplique para que te deixe me contar tudo o que sabe — disse com uma voz que parecia mais um grunhido baixo. Senti como se uns dedos de gelo me percorressem as costas. Apertei o punho de Assassina até que me doeu a mão. Seus olhos dourados ardiam dentro de mim. —Não sei —ouvi como dizia minha própria voz—, não parece estar em muito boa forma. Quando foi a última vez que te encarregou em pessoa dos assuntos sujos? Sua mão esquerda se esticou. Os músculos se crisparam sob a pele tirante e os braços começaram a recubrirse de pelagem. As garras se deslizaram sob uns dedos entupidos. A mão se moveu com uma rapidez desumana. Apartei a cabeça e esta passou a escassos centímetros de meu rosto. Uma mecha de cabelo, amputado de minha própria rabo-de-cavalo, posou-se em minha bochecha esquerda. As garras se retraíram. —Acredito que ainda recordo como se faz —disse ele. Uma faísca de magia percorreu meus dedos até o punho de Assassina e se estendeu pela folha, recubriendo o liso metal com um brilho esbranquiçado.
Não é que o brilho fizesse nada especialmente útil, mas o aspecto era impressionante. —Quando quiser me convidar a dançar, não o duvide —pinjente. Sorriu, lenta, perezosamente. —Já não te ri, pequena? Tenho que reconhecer que era imponente. Fiz várias estocadas com a folha para esquentar um pouco a boneca. A espada riscou uma tensa e incandescente elipse no ar, despedindo sobre o chão sujo diminutas gotas de luminescência. Uma delas caiu perto do pé do Senhor das Bestas e este se apartou. —Talvez a transformação te deixou um pouco lânguido. —Aproxima seu porrete e o descobriremos. Demos várias voltas um frente ao outro. Nossos pés levantavam ligeiras nuvens de pó do chão. Desejava lutar contra ele, embora solo fora para averiguar até onde era capaz de chegar. Abriu os lábios e deixou escapar um grunhido. Eu fiz oscilar a espada para calcular a distância entre ambos. Se lutávamos, e sobrevivia, nunca descobriria quem matou ao Greg. A Manada me despedaçaria. Aquilo não me levava a nenhuma parte. Não tinha mais remedeio que perder um pouco de prestígio. Detive-me e baixei a espada. Embora as palavras se negavam a abandonar minha boca, obriguei-as. —Sinto muito. eu adoraria jogar contigo mas agora mesmo não sou eu mesma.
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Ele sorriu e eu fiz tudo o que pude para ignorar a condescendência que vi em seu rosto. —Meu nome é Kate Daniels. Greg Feldman era meu guardião legal e o mais parecido que tive em anos a uma família. Quero encontrar à escória que lhe matou. Não posso me permitir o luxo de lutar contigo e presumir de minha magia. Solo quero saber se a Manada tem algo que ver com a morte do Greg. Assim que dê com o assassino, estarei encantada de lhe dar o gosto. Ofereci-lhe a mão. Ele ficou imóvel, me sopesando, e então a pelagem começou a retroceder, absorvido pelos folículos que o tinham feito aparecer. O Senhor das Bestas agarrou meu mão em seu palma humana e a agitou brevemente. —De acordo. Eu tampouco sou o de sempre agora mesmo —disse.
Supus que ao ser o Senhor de as Bestas, não o seria nunca. A tonalidade dourada de sua íris se reduziu até que não foi mais que simples reflexos. Seu controle era assombroso. Os cambiaformas mais peritos podiam escolher entre três formas: a humana, a animal e a besta—homem. Transformar uma parte do corpo em uma dessas formas enquanto se mantém o resto em outra, como ele tinha feito, era algo incrível. Até aquela noite, haveria dito que era impossível. O Senhor das Bestas se sentou no chão. Não
ficou mais remedeio que lhe imitar, e me senti como uma idiota por me haver sacudido os jeans uns minutos antes. —Se te demonstrar que a Manada não tinha nenhum motivo para eliminar ao místico, compartilhará a informação? —Sim. Introduziu a mão na sudadera, extraiu uma pasta de pele negra com uma cremalheira e me ofereceu isso. Alarguei a mão mas ele a retirou antes de que pudesse tocar a flexível superfície de pele. Perguntei-me se seria mais rápido que eu. Seria interessante averiguá-lo. —Entre você e eu —disse ele. —Entendido. Agarrei a pasta e abri a cremalheira. Continha fotografias. Fotos instantâneas de corpos, alguns humanos, outros, solo em parte animais, destroçados e ensangüentados. em que pese a que o brilhante e terrível cor carmesim o dominava tudo e resultava difícil as analisar, repassei-as todas. Corpo detrás corpo detrás corpo: rasgados, desmembrados, banhados em seu próprio sangue. Me revolveu o estômago. —Sete —murmurei sustentando as fotografias pela margem, como se o sangue pudesse me manchar os dedos—. São teus? —Sim, todos. —Alargou o braço para assinalar uma deste fotos instantâneas é Zachary Stone. O alfa—rato. Um tipo duro, desumano.
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Tentei ver além do sangue, me concentrando nas feridas. —Algo lhe mordeu.
—Algo mordeu a cinco deles. E tivesse feito o mesmo com os outros dois se não tivesse fugido, assustado. Me ocorreu algo. —Greg trabalhava nisto. —Sim. E o mantinha em segredo. A Nação quer mais poder. Cobiçam-no do mesmo modo em que seus vampiros cobiçam o sangue. Vêem-nos como rivais e atacarão qualquer ponto débil que tenhamos. Admitir que não podemos cuidar de nós mesmos é uma debilidade. Nataraja se mancharia os jeans se se inteirasse. —Crie que foram eles? —Não sei —disse ele com gesto sério—. Mas o descobrirei. Tinha sentido. A Ordem não sentia muita avaliação pela Manada, muito organizada e perigosa para seu gosto, mas se devia escolher entre a Nação e os cambiaformas, a Ordem apoiaria à Manada. Greg poderia ter estado seguindo a um vampiro quando algo matou, evitando desse modo que revelasse o que tinha visto ou o que estava a ponto de ver. O vampiro poderia haver-se encontrado em metade de uma briga sem querer o. Ou o vampiro poderia ter estado seguindo ao Greg quando algo matou porque se aproximou muito. O... —Eu gostaria de falar com o Corwin —disse. Seu rosto não mostrou reação alguma. —É um dos suspeitos? Não havia razão para lhe mentir. —Sim. —Feito —disse ele—. Terá seu bate-papo. Em nossas instalações. —Parece-me bem. —Eu cumpri com minha parte —disse. Tirei o exploratório que me tinha levado do necrotério e o estendi sobre a sujeira que cobria o chão. —O que tenho que procurar? —perguntou-me. —Isto. —Assinalei as linhas amarelas. —Parece uma falha do exploratório.
—Não acredito. Franziu o cenho. —O que registra o amarelo? —Não sei. Mas conheço um perito que me pode dizer isso —¿Tienes algo más que esto? —Tem algo mais que isto? Estava o cabelo, embora considerei a idéia de não comentar-lhe Acautelar é curar. E tampouco me tinha dado nada que não tivesse podido conseguir do cavalheiro— protetor. Teoricamente. Mesmo assim, o Senhor das Bestas me tinha economizado um montão de trabalho, e além disso duvidava muito que a textura do cabelo do Corwin pudesse alterar-se de tal modo que a análise de DNA não o identificasse com a amostra.
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O Senhor das Bestas observou as fotografias, passando de uma a outra com manifesta lentidão. Parecia quase humano. Compreendi que estava sendo parcial. Parcial respeito a Nataraja e sua academia de admiradores da morte, com sua clínica indiferença à tragédia e o assassinato. Para eles, um vampiro eliminado e um oficial comatoso era um menoscabo a seu investimento, custoso e inoportuno, mas sem conseqüências emocionais. O homem frente a mim, por outro lado, tinha perdido a seus amigos. Era gente a que conhecia muito bem e que se puseram em suas mãos. A responsabilidade primitiva do líder da Manada era proteger a seus membros, e lhes tinha falhado. Enquanto contemplava as fotos de seus corpos, seu rosto transmitia determinação e ira, uma ira fria e cristalizada, nascida da culpa e da dor. Existia uma velha palavra para definir aquele tipo de sentimento. Cólera. Entendia-o. Era o mesmo que sentia eu cada vez que pensava no Greg. A partir de então deveria ter muito cuidado, porque já não era neutro. Se o Senhor das Bestas tinha matado ao Greg, teria que me esforçar mais para me convencer de sua culpabilidade.
E pensar que tinha encontrado a um espírito compassivo no Senhor das Bestas. Que comovedor. A morte do Greg me estava fazendo perder a cabeça. Talvez pudesse lhe fatiar o pescoço ao assassino enquanto o Senhor das Bestas lhe sujeitava. —Na cena do crime havia vários cabelos —disse—. O escritório do forense não sabe o que fazer com eles. Contêm fragmentos de seqüências genéticas tão humanas como felinas. Não é nenhum tipo de cambiaforma que figure em seus registros. É estranho do demônio e não, não tenho o listrado exato dos pares de bases. —Sabe Nataraja? —Acredito que sim —disse—. Um de seus oficiais me deu o nome do Corwin. Não me disse que acreditassem que fora o assassino, mas é óbvio que acreditam. Um pequeno músculo se esticou em sua bochecha, como se seu rosto desejasse torcer-se com um grunhido selvagem —Suponho que sim. —Está satisfeito?—perguntei-lhe. Assentiu. —por agora. Farei-te chamar. —Não voltarei para este lugar —lhe disse—. O Unicórnio me põe os cabelos de ponta. Seus olhos voltaram a reluzir. —Sério? Eu o encontro relaxante. Um lugar pitoresco. A luz da lua. —Nunca me gostaram de muito os lugares pitorescos. A próxima vez prefiro um convite oficial. Voltou a guardar as fotografias.
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—Posso ficar as perguntei-lhe. Negou com a cabeça. —Não. É suficiente com que existam. Dava-me a volta para partir e me detive antes de chegar ao oco da parede. —Uma última coisa, Sua Majestade. Iria bem ter um nome para o relatório, um pouco mais curto que «O Líder da Facção dos Cambiaformas do Sul». Como posso te chamar? —Senhor. Pus os olhos em branco. Ele se encolheu de ombros. —É curto. Aquela se estava convertendo em uma noite bastante complicada, e não mostrava signos de trocar de rumo. Saltei sobre a montanha de entulhos e reparei em que Jim tinha desaparecido. Algo me tocou no ombro. Dava-me a volta rapidamente e vi o Senhor das Bestas me olhando do orifício que havia ao outro extremo, a uns três metros de distância. —Curran —disse, como se me estivesse fazendo um favor—. Pode me chamar Curran. fundiu-se com as sombras. Esperei um momento para me assegurar de que se partiu. Ninguém saltou sobre mim da escuridão. Mais à frente do Unicórnio, distingui o resplendor azulado dos abajures feéricas da cidade. Tinha chegado o momento de lhe levar o exploratório a meu perito. Não estava acostumado a lhe incomodar as visitas a altas horas da noite. CHAMPION HEIGHTS não era um lugar difícil de encontrar. Era o único edifício alto que ainda seguia em pé. No passado era conhecido como Lenox Pointe, mas tinha passado por tantas renovações e tinha trocado tanto de mãos que já ninguém recordava seu antigo nome. Encravado entre coníferas podadas, e astutamente dispostas, o edifício de dezessete pisos, de tijolo vermelho e cimento, elevava-se ameaçador sobre as lojas e bares do Buckhead como uma torre mística. Uma bruma esbranquiçada estava aderida a suas paredes exteriores e balcões, apagando as cortantes arestas, pois uma rede de conjuros trabalhava incansavelmente para convencer a muito mesmo magia que os alimentava que o edifico não era mais que uma enorme rocha. Uma distorção, o efeito colateral do influxo dos feitiços, estendia-se por toda a
estrutura, e algumas seções do edifício pareciam segmentos de um abrupto escarpado de granito.
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O filtro deveu custar uma pequena fortuna, e em que pese a que até o momento tinha mantido em pé ao edifício, não existia garantia alguma de que continuasse fazendo-o no futuro. Embora eu estava convencida de que o faria. Toda aquela rede tinha a estranha lógica típica da magia complexa. Para compreendê-la era necessária uma mente preclara; como ocorria com a física quântica. Independentemente do que o futuro proporcionasse ao Champion Feights, seus proprietários já tinham recuperado seu investimento várias vezes. Muitos casais estavam encantados de pagar o aluguel de um ano que exigiam por retirar-se naquele lugar. Estacionei ao Karmelion entre o Cadillacs, distinguidos Lincolns e estranhos mecanismos desenhados para transportar a seus proprietários durante as quebras de onda mágicas. Não há um modo adequado de transportar a impressão de um exploratório, de modo que a preguei e a guardei entre as páginas do Calendário. Começou a sopro o ar noturno, trazendo consigo aromas de outros lugares: um leve eflúvio a madeira queimada, o aroma da carne assada. Cruzei o estacionamento e subi as escadas de cimento flanqueadas por pitorescos arbustos até a porta giratória de cristal. em que pese a que o cristal enfeitiçado perde parte de sua transparência, não me custou distinguir a pesada grade metálica que bloqueava o vestíbulo e o pequeno barraco com o guarda que me apontava com uma mola de suspensão. Dirigi-me para a esquerda e pressionei o botão do interfone. Emitiu um assobio. —Planta quinze, cento e cinqüenta e oito, por favor. A voz do guarda me chegou distorcida pela estática: —Contra-senha, por favor.
—«Na hora de seu destino, Scyld, forte ainda, procurou o amparo de seu Senhor». —Sem a contra-senha, me teria feito esperar ao outro lado da grade enquanto comprovava minha identidade com o cento e cinqüenta e oito, e inclusive assim, não tivesse podido entrar no edifício sem ser revistada e detrás entregar a Assassina. me separar de minha espada não era uma opção. A grade metálica se deslizou para um lado. —Adiante. A porta giratória me cuspiu no vestíbulo, banhado pela luz dos abajures feéricas. Minhas pegadas ressonaram no gentil chão' de ladrilhos de granito vermelho e enviaram pequenos ecos que se perderam nos rincões. Aproximeime do elevador. A magia ainda não se retirou, mas já tinha visitado antes Champion Heights em metade de uma flutuação mágica. O elevador funcionava em qualquer circunstância. A planta quinze estava estofa com um luxuoso tapete verde, muito mais espessa que a maioria dos colchões que tinha visto. me afundando nela, avancei até a porta metálica com o número 158, apertei o timbre e golpeei com os nódulos se por acaso a magia havia o Corto—circuitado. Ninguém em casa.
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Uma caixa metálica de uns quinze por sete centímetros com uma ranhura para ler cartões bloqueava a porta. Como tudo no Champion Heights, o ferrolho não era o que parecia: magia disfarçada de tecnologia. Assassina vaiou quando a tirei de sua vagem. Deslizei a folha pela ranhura do leitor, concentrei-me na espada e apoiei a mão na folha. Uma sacudida mágica pulsou desde meus dedos. te abra! O ferrolho estalou e a pesada porta cedeu à pressão da palma de minha mão. Depois de embainhar novamente a Assassina, cruzei a soleira e fechei a porta a minhas costas. Encontrei a provas o abajur feérica, girei a manivela circular e uma ampla língua de luz azulada cobrou vida, iluminando o apartamento. Nunca ganharia a vida como decoradora de interiores. Meu apartamento era um caos confortável; meus móveis não harmonizavam entre si mas eram muito funcionais. As propriedades estéticas de uma peça em concreto eram
secundárias, o importante era sua função prática, e para mim o luxo significava dispor de uma mesita junto ao sofá para colocar sobre ela um abajur e uma taça de café. Justamente o contrário ao que ocorria naquele lugar. Assim que entrei no apartamento, soube que seu proprietário tinha disposto o ambiente com um objetivo deliberado em mente. Ante mim tinha anos de aquisições seletivas por parte de uma pessoa para quem a palavra «oferta» carecia de significado. O mobiliário, o tapete, recarregada-a decoração... tudo se fundia para oferecer um amálgama pessoal, e contemplá-la produzia a mesma sensação que as reconstruções da savana em um zoológico. Era um hábitat, a um tempo harmonioso e estranho, de cristal, metal e felpa branca, todo elipses e curvas. A habitação tinha três portas: alguém dava ao dormitório, outra ao quarto de banho, com uma pileta dobro e uma ducha com biombo, e a última ao laboratório. A neblina própria do conjuro não impedia a vista do interior, e os grandes ventanales ofereciam um panorama da Atlanta noturna sob um céu negro inabarcable. A tênue luz do abajur feérica acariciava o cristal, tornando-o invisível, e permeaba a escuridão do exterior dando a sensação de que o apartamento era uma parte mais do céu noturno, delimitado por cristal e pedra mas não separado do mundo exterior. Se te aproximava o suficiente ao ventanal, tinha a sensação de estar flutuando sobre a cidade... Enquanto contemplava a vista. Milhares de lucecitas cobraram vida, como jóias sobre um tecido de veludo negro, e as luzes elétricas alagaram a avenida a meus pés em um amanhecer tecnológico. O abajur feérica titilou e se apagou, e no interior do apartamento se acenderam brilhantes luz elétricas, anulando a ilusão e me separando da infinita opacidade.
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O cristal se fez impenetrável e fiquei confinada ao outro lado, como se estivesse enclausurada no centro de uma caixa trasparente. Súbitamente, senti-me vulnerável, de modo que apaguei todas as luzes salvo um abajur de mesa de metal e cristal opaco.
Lavei-me a cara e os braços até o cotovelo, sequei-me com uma amaciada toalha branca que encontrei pendurada de um gancho junto ao lavamanos, e me acomodei no ultramoderno sofá. Pergunta-a de Curran seguia me acossando: por que o cavalheiro—protetor contrataria a uma mere sem reputação para investigar a morte de seu místico? Aparentemente, não tinha sentido. Finalmente consegui ver além de meu ego. Um dos membros da Ordem tinha sido assassinado, um homem reconhecido com um poder considerável. Não podiam encarregar-se eles. Teriam que recorrer a um cruzado. Para a Ordem, os cruzados eram o equivalente de um bisturi. Tem um desagradável furúnculo a ponto de arrebentar... envia a um cruzado. Solitários, experimentados e mortais, os cruzados eram os melhores em seu trabalho e, depois de cumprir com sua tarefa, retornavam por onde tinham vindo. Ted esperava que «investigasse o crime», quer dizer, esperava que fizesse muito ruído e que atraíra toda a atenção enquanto o cruzado trabalhava sigilosamente detrás de minha cortina de fumaça. Durante um par de segundos me senti indignada, mas compreendi que ao final as duas partes conseguiam o que queriam: Ted seu pára-raios e eu a investigação da morte do Greg. Todo mundo saía ganhando. Abri o Calendário e extraí de entre as páginas do livro o exploratório—m e o recorte do artigo que me tinha dado Bônus. Estudei o exploratório uma vez mais antes de deixá-lo sobre a mesa de cristal, desdobrei o artigo e comecei a lê-lo. O proprietário do apartamento não demoraria para chegar. Quase nunca o fazia mais tarde que as duas da madrugada, pois estava convencido de que as três era uma hora funesta. Eram caso as dois quando um táxi avançou pela avenida frente ao edifício. Levei-me os binoculares aos olhos. A porta do táxi se abriu e uma loira desceu dele. Era alta e muito magra. O vestido negro curto se aferrava a seus estreitos quadris e a seu comprido esculpa, estalando elegantemente para acolher uns peitos que resultavam muito grandes para seu corpo. Seu cabelo, tão pálido que emitia reflexos esbranquiçados, caía-lhe até os ombros sem nenhum rastro de encrespamiento. Tinha um rosto perfeito, com bochechas altas e proeminentes, nariz aquilino, enormes olhos e uma boca generosa. À medida que se aproximava do edifício, seu rosto adotou uma expressão que em uma mulher menos atrativa poderia haver-se qualificado como desdenhosa. De beleza elegante, grácil e arrogante, era como um potro árabe, altiva e cruel; uma provocação irresistível para qualquer macho.
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Um pedestre solitário se deteve, pasmado ante semelhante visão. Embora não pude ouvi-lo, supus que lhe assobiou ao passar por seu lado. A loira lhe ignorou sem esforço aparente; para ela, aquele tipo simplesmente não existia. Apartei os binoculares e retornei a meu Calendário. Cinco minutos depois, o ferrolho da porta estalou e a loira entrou no apartamento. À lombriga, ficou imóvel. A arrogante expressão desapareceu de seu rosto. —OH, Deus. Tenho algo para ti. Outra vez não. Entrou na cozinha, agarrou várias latas de proteínas de um armário e as deixou sobre a barra. Uma bolsa de damascos secos se uniu às latas, junto a um pacote de açúcar, um tablete de chocolate e uma batedeira descomunal. Agarrou uma caixa de ovos da geladeira e os verteu, depois de quebrá-los, no copo do liquidificador. Seguiram-lhe dois punhados de damascos, várias colheradas de açúcar, o chocolate e o conteúdo de, nos alinhe, seis latas de proteínas. —Água —murmurou a loira, assinalando com a cabeça o copo sobre a mesa— . Poderia te haver servido algo do bar. —Queria água— disse. A loira sorriu, uma expressão estranha em seu rosto, e conectou a batedeira. As folhas começaram a girar, convertendo o conteúdo do copo em uma espessa massa uniforme. Desligou a batedeira, retirou a tampa com um perito giro de boneca e bebeu diretamente do copo misturador. —Quanto há aí? Dois litros? —perguntei-lhe. Deixou de beber durante uns instantes. —Quase três, de fato. O terminou e, sem mais cerimônias, tirou-se o vestido por cima da cabeça. Voltei a me concentrar no livro.
—Incomoda-te? —disse a loira, sorridente, enquanto se desfazia das médias. —Não, solo te dava um pouco de privacidade. —E evitar o glorioso momento em que meu estômago se retorce e envia seu abrasador conteúdo até minha garganta. —Não passa nada, pode admitir que fico doente. —Isso também. —O que te parece? —perguntou a loira. Levantei a vista e a vi nua em metade do salão. —Não está mal para uma rainha das neves. Os peitos são muito grandes A loira fez uma careta. —Sim, sei.
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—por que uma mulher? —interessei-me. —Porque me dedico à informação, Kate, e os homens tendem a revelar melhor seus segredos ante mulheres formosas. —Sorriu—. Como bem sabe. —Normalmente tenho que ameaçá-los lhes causando dor corporal antes de que me contem seus segredos. —Então o sinto por esses homens. É evidente que têm muito mal gosto. Sabe quem fabrica os conversores dos abajures feéricas? —Não tenho nem idéia.
—Há quatro empresas, de fato. lhes afine de semana a prefeitura deve decidir qual delas recebe um contrato municipal para os próximos três anos. Agora mesmo há três pessoas nesta cidade que já decidiram seu voto. —me deixe adivinhar, você é um deles? A loira não respondeu, mas seu sorriso se alargou ligeiramente, revelando uma pequena fração de sua resplandecente dentadura. Inclusive uma inútil das finanças como eu sabia que o preço desse tipo de informação devia ser astronômico. Seus músculos se agitaram, alargando-se, retorcendo-se, como se um matagal de vermes tivesse aparecido de repente sob sua pele. Me revolveu o estômago. Apertei os dentes e tentei manter a comida em seu sítio. A pélvis da loira se deslocou, os ombros se alargaram, as pernas se fizeram mais densas, enquanto que os peitos se dissolviam, formando um capitalista peitoral masculino. Meadas de músculos se enrolaram, dando forma a umas fortes pernas e uns braços enormes. Os ossos da cara aumentaram de tamanho, o nariz se inchou, a mandíbula se fez mais forte e quadrada. A cor de seus olhos se obscureceu até adquirir um penetrante azul intenso. O cabelo se dissolveu e voltou a crescer, esta vez de uma cor castanha escura. Pisquei ante o homem que tinha frente a mim. Musculoso, com a estilizada precisão própria dos culturistas profissionais, resultava impressionante e muito bem dotado. Uns olhos azuis me observavam do rosto terminante próprio de um lutador experiente; Sem ângulos cortantes nem ossos protuberantes que pudessem romper-se com um murro. Com umas quantas peças de armadura poderia haver ganho facilmente a lealdade de uma horda de bárbaros. —O que opina? —perguntou-me com uma voz profunda e autoritária. Olhei-lhe de cima abaixo. —Impressionante, mas excessivo. inclinou-se sobre mim. Seus olhos azuis flamejaram com uma promessa que, evidentemente, era muito capaz de cumprir. Tentei não pensar no dormitório. —Excessivo?
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—Sim. Eu gosto do ameaçador. É muito masculino, mas este tio tem pinta de atirar-se tudo o que safada e de me chamar «donzela». O rei bárbaro se esfregou a ponte do nariz. "O que te faz exatamente chegar a essa conclusão? —Não estou segura. Algo em seus olhos, acredito. —Então não é um não? —Sim, é um não. —Ainda tenho que trabalhá-lo um pouco. O bárbaro se desinflou. Sua incrível musculatura se comprimiu para dar passo a uma constituição muito mais esquálida. O cabelo desapareceu, deixando a cabeça calva, e o rosto se alargou, emoldurando uns inteligentes olhos escuros e um nariz proeminente. O homem ao que conhecia como Saiman avançou até a cozinha e encheu um copo com água do grifo. —Negócios? —disse-me observando o exploratório—M.
—Sim. Assentiu, bebeu-se o copo de um gole e voltou aliená-lo. —Não percebo nenhum rastro de magia —disse—. E, mesmo assim, não parece ter problemas para te metamorfosear. Como é possível? Olhou-me com uma sobrancelha arqueada. Um gesto tão similar ao meu que devia havê-lo copiado de mim. Era provável. Saiman freqüentemente reproduzia os gestos de seus clientes. O fazia a propósito, consciente de que lhes tirava de gonzo. —A palavra chave é «parece». Nestes momentos, a metamorfose requer concentração, enquanto que durante a quebra de onda mágica flui de um modo natural. Mas para responder à essência de sua pergunta, acredito que meu corpo armazena magia. Como uma bateria. Possivelmente inclusive a produza.
Esvaziou o segundo copo e se aproximou do sofá. —Quanto tempo leva esperando? —Não muito. Por um instante pensei que faria um comentário sobre a vista, e então não poderia me conter e teria que lhe pedir que se cobrisse sua «vista» com um pouco de roupa. Por sorte se retirou ao dormitório. Ao Saiman obcecava a idéia de criar seu próprio Uberman, um supermacho irresistível para as mulheres. Os aspectos sexuais de dito projeto lhe interessavam muito menos que a motivação científica depois do desejo de dar forma à imagem de um ser humano perfeito. Desconhecia as intenções atrás daquela busca da forma definitiva, e não tinha a menor ideia do que pensava fazer com seu Uberman se o obtinha.
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Enfocava aquele desafio com a mesma lógica metódica que aplicava a todo o resto, e pretendia recolher dados de uma ampla variedade de sujeitos, a maioria dos quais não tinham a menor ideia de qual era seu autêntico aspecto. Tempo atrás tentei lhe convencer de que simplesmente seu Uberman não podia existir. Inclusive se conseguia criar a imagem do macho ideal, este defraudaria suas expectativas. Existiam muitas coisas que dependiam da interação entre dois seres humanos, e em última instância era essa interação o que conduzia às relações íntimas. Ele defendeu com ardor seu ponto de vista e eu aprendi a não discutir com ele no futuro. Tínhamo-nos conhecido um ano antes, durante um trabalho mere no que tive que lhe fazer de guarda-costas. Todos os meros o faziam cedo ou tarde, e tive sorte de que tocasse ao Saiman. Naquele tempo estava prostrado na cama, recuperando-se de umas complicações pós-operatórias de uma intervenção de estômago. Seu corpo não deixava de transformar-se enquanto combatia a infecção e demonstrou ser alguém difícil de proteger. Consegui matar a dois dos assassinos enviados
para eliminá-lo. Ele matou ao terceiro lhe cravando um lápis no olho. Pensei que a tinha cagado, mas após pareceu eternamente agradecido. Não me queixava. Seus serviços não eram precisamente baratos. Saiman retornou com um objeto de roupa solta de um azul escuro com a forma de uma simples sudadera mas que parecia muito cara para ser denominada desse modo. Dirigiu o olhar ao Calendário aberto sobre meu regaço e ao artigo que me tinha dado Bônus fazia umas semanas. —Extraído do Volshebstva e Kolduni. O que titulo mais pretensioso. Como se escrever «Feitiços e Bruxos» em russo lhes outorgasse de algum modo maior credibilidade. Não sabia que lesse esse lixo. —Não o faço. Um conhecido me deu o artigo. —O problema com esses jornalecos é que a gente que os publica não sabe que a magia é algo fluido. Publicam informação equívoca. Era um velho argumento mas válido. A gente afeta à magia do mesmo modo em que esta afeta às pessoas. Se as suficientes pessoas acreditarem que algo é certo, às vezes a magia capitula e faz que seja certo. Saiman revisou o artigo. —É incompleto e está cheio de lixo, corno sempre. Catalogam ao upir como uma criatura não—morta que se alimenta de cadáveres. Olhe, afirmam corretamente que o upir tem um apetite sexual desmesurado, mas não são conscientes da contradição: um morto vivente não sente a necessidade de copular, portanto, o upir não pode ser um não—morto.
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Também mencionam que tentará copular com qualquer mamífero que lhes assegure alcançar o clímax mas se esquecem de apontar que o produto de uma união desse tipo normalmente sobrevive para servir ao upir —Deixou o artigo, indignado—. Se alguma vez precisa saber algo mais sobre esta criatura, pergunte-me isso . —Farei-o. —me diga, o que te traz por minha humilde morada? —Necessito que avalie um exploratório. Voltou a arquear uma sobrancelha. Poderia me acostumar a lhe odiar. —Muito bem. Cobrarei-te por horas. Menos o desconto habitual... — Comprovou seu relógio—. Adiante. Quer uma análise completa? —perguntou. —Não, solo o básico. Não posso me permitir o outro. —Um cliente sem recursos? —Por este trabalho não cobro nada. Saiman fez uma careta. —Kate, esse é um hábito terrível. —Sei. Agarrou o gráfico e o sustentou com delicadeza entre os dedos. —O que te interessa? —Uma série de pequenas linhas amarelas para o final. —Ah. —O que registra o amarelo? E quanto me custará a resposta? —Uma grande pergunta. Deixa que lhe faça uma prova para descartar que seja um engano mecânico. Segui-lhe ao laboratório. Um bosque de aparelhos que tivesse feito saltar de alegria ao pessoal de qualquer laboratório universitário descansava sobre as negras superfícies de mesas e tabuleiros ignífugos. Saiman ficou um avental verde impermeável e umas escorregadias luvas opacas, e fez aparecer uma
bandeja de cerâmica de debaixo da mesa. Com um só movimento perito, levou a bandeja até um cubo de cristal que havia em um rincão. —O que está fazendo? —perguntei. —vou fazer lhe um exploratório ao exploratório para captar os resíduos de magia. É hermético. Quero evitar uma possível contaminação. —Não poderei pagá-lo. —Convida a casa. Contagiaste-me seu altruísmo. Embora, é obvio, terá que me pagar por meu tempo. Tocou uma alavanca e uma cadeia metálica elevou o cubo. Saiman introduziu a bandeja na plataforma cerâmica e fez descender o cubo até que o cristal cobriu a bandeja. Seus dedos dançaram sobre o teclado e uma explosão verde alagou o cubículo.
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apagou-se, voltou a produzir uma chama, apagou-se e uma impressora começou a tocar castanholas em outra mesa, arrotando uma folha de papel. Saiman a arrancou e me entregou isso. Estava em branco. Uma prova para assegurar-se de que nenhum rastro de magia poluía a bandeja. Saiman deixou o exploratório—m sobre a bandeja, introduziu esta no cubo e repetiu sua elaborada dança tecnológica. Naquela ocasião a impressora produziu uma cópia exata do exploratório—M. Saiman a examinou um instante e se apoiou na mesa, com o exploratório—m na mão. —O problema é que o exploratório é imperfeito. O coração me deu um tombo. —Então é uma falha mecânica.
—Em certo modo, sim. Os exploratórios ao uso são instrumentos imperfeitos. Registram aos humanos em várias tonalidades que vão do azul céu ao prateado, mas com freqüência não conseguem documentar os matizes mais sutis de sua magia. Lhes escapa quase tudo salvo as variações mais radicais, como o púrpura para os vampiros ou o verde para os cambiaformas. Um vidente e um místico, aproximadamente com o mesmo poder, ficariam registrados com idêntica cor, apesar de que suas inclinações mágicas diferem. E —Saiman se permitiu um sutil sorriso—, registram do mesmo modo toda a magia/era. —Fera como em fera? Refere-te à magia animal? —Toda espécie animal destila sua própria magia. Os exploratórios mais comuns a registram em branco, de modo que nem sequer lavemos. Recentemente, algumas mentes brilhantes no Kyoto examinaram uma ampla variedade de animais utilizando um exploratório hipersensível. E demonstraram que todas as espécies animais produzem uma cor distintivo. Débil, pálido, mas distintivo, e em todos os casos é um derivado do amarelo. —Então as linhas amarelas indicam a presença de um animal? —Com o exploratório adequado, sim. Mas com este lixo o mais provável é que os animais fiquem registrados em branco. O único modo em que poderiam manifestar-se é mesclados com outra influencia mágica. —Perdi-me. —Olhe as linhas. Têm um matiz alaranjado. É muito fraco mas esse tom alaranjado é o motivo pelo que podemos as distinguir. Significa que está vendo algo que é quase animal mas que foi poluído com outra coisa. Dava-me voltas a cabeça. —De acordo. me deixe repassá-lo. Toda a magia animal se registra em branco mas em realidade é um amarelo pálido.
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Um amarelo tão tênue que com facilidade fica dominado pelo resto de cores. Não há modo de distinguir o amarelo pálido, salvo quando está misturado com outra cor. O amarelo do lobo misturado com o azul de um humano cria o verde escuro do licántropo. Por esta regra de três, o lobo—homem, um animal que se transforma em humano, ficaria registrado em verde pálido. Vou bem até agora? Assentiu. —O fato de que possa ver as linhas amarelas significa que o exploratório mostra a presença de algo com uma poderosa magia animal e um toque de algo mais. Dado que as linhas são alaranjadas, o suspeito mais provável seria... laranja. Tropecei-me na última palavra. O laranja derivava do vermelho e o vermelho era a cor da magia nigromántica. Saiman confirmou minha dedução. —trata-se de um animal com algum tipo de conexão com a magia nigromántica. Não sei de que tipo. Certamente não é um zombi animal. Isso ficaria registrado em vermelho escuro. te divirta. Grunhi-lhe. —O tempo é ouro —disse ele—, portanto, sugiro-te que deixe para mais tarde seus elucubraciones. Tem algo mais para mim? —Não. Comprovou seu relógio. —Trinta e sete minutos. Estendi-lhe um cheque por novecentos e sessenta e dois dólares, o que deixava exatamente quatrocentos dólares e nove centavos em minha conta corrente. Tinha quinhentos mais em uma conta de economia para situações de emergência. Se não encontrava logo o modo de ganhar um pouco de dinheiro, teria que começar a pensar em uma mudança de residência. Entreguei-lhe o cheque e ele nem se incomodou em comprovar a quantidade.
—Manten informado —disse com seu habitual sorriso. —Será o primeiro em inteirar-se. —Ah, Kate! E se trocar de ideia sobre meu último protótipo, a oferta segue em pé. Tive uma fugaz visão de uns penetrantes olhos azuis e uns enormes músculos. O território dos dragões. —Obrigado, mas não é provável. Enquanto saía do apartamento decidi que eu não gostava de nada o sorriso que revoava nos lábios do Saiman.
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Capitulo 4 Despertei no apartamento do Greg pouco antes das sete e alarguei o braço para agarrar o telefone. Marcar o número do Jim se traduziu em três tons, um estalo e um assobio da secretária eletrônica sem nenhuma mensagem de apresentação. Deixei um lacônico «me chame» e pendurei. Não lhe ia gostar. As manhãs depois de uma noite de caça estava acostumada as dedicar à serena contemplação, um momento tão sagrado para os cambiaformas como a meditação para os monges Shaolin. Apanhados entre o Homem e a Besta, os cambiaformas ansiavam o controle absoluto sobre ambos e, portanto, enfrentavam-se ao amanhecer com uma profunda introspecção. Terminado seu momento de autorreflexión, sucumbiam a um sonho reparador. Não tinha nenhuma dúvida de que a noite anterior Jim se dedicou a caçar no Unicórnio. Era provável que ainda seguisse dormindo, e a secretária eletrônica não
deixaria de lhe anunciar com um assobio que tinha uma mensagem até tirar o de suas casinhas. Sorri ante aquele pensamento. Me desperecé e trabalhei os ombros e as costas para me desfazer do intumescimento. Golpeei as sombras da parede com toda a força de que era capaz mas sem chegar a tocar a meu oponente imaginário. Fiz um ciclo completo de golpes básicos, diretos, cruzados, ganchos, terminando com formas mais elaboradas. Depois de dez minutos comecei a suar e continuei durante outros vinte minutos, trabalhando sobre tudo a fortaleza de braços, ombros e peito. Greg não tinha pesos, de modo que utilizei em seu lugar uma maça cheia de chumbo. Não estava muito equilibrada mas era melhor que nada. Fazia uns quantos dias que não levantava pesos e me senti mais fraco do habitual. Mesmo assim, o esforço controlado e decidido me sentou bem e meu estado de ânimo melhorou paulatinamente, de modo que, quando a ducha começou a me chamar a gritos, estava quase derrotada. O telefone soou assim que apoiei a mão na porta do quarto de banho. Girei 180 graus, confiando em que fora Jim. —Jim? —Olá —disse uma voz masculina. Era uma voz agradável, bem modulada e serena. Tinha-a escutado antes, mas demorei uns segundos em se localizá-la. —Doutor... Amadureça? —Grest. Isso, o trabalhador social com nome de pasta de dente. Como demônios tinha conseguido o número de telefone? 65
—No que posso te ajudar? —Perguntava-me se quereria comer comigo. Um tipo persistente.
—Como conseguiste meu número? —chamei à Ordem e lhes menti. Hei-lhes dito que tinha informação sobre o vampiro morto e lhes dei meus créditos. Eles me deram seu número. —Já vejo. —Então, comerá comigo? —Estou muito ocupada. —Mas terá que comer um momento ou outro. eu adoraria voltar a verte, em algum lugar menos formal. me dê uma oportunidade, e se a comida não funciona, desaparecerei de seu horizonte. Refleti uns instantes e me dava conta de que queria lhe dizer que sim. Embora era algo completamente ridículo. Estava sentada sobre uma bomba relógio e tanto a Manada como a Nação estavam dispostos a prender a mecha, e ali estava eu, decidindo se devia aceitar uma entrevista. Quando foi a última vez que tinha tido uma autêntica entrevista? Fazia dois anos? —De acordo —pinjente—. Nos encontraremos entre as doze e as doze e meia em Las Colimas. Sabe onde está? Sabia. —Ah, e outra coisa, Doutor Crest. —Solo Crest, por favor. —Crest, por favor, não volte a chamar à Ordem. Esperava que se mostrasse desconcertado, mas, em lugar disso, disse alegremente: —Sim, senhora! —e pendurou. Meti-me na ducha e tentei descobrir por que tinha aceito comer com ele. Tinha que haver uma razão, algo mais além de me sentir reveste e cansada, e de desejar um pouco de contato humano normal, contato humano masculino, o tipo de homem que não se transfigura em um monstro nem transmuta seus músculos com a mesma facilidade com a que se troca de roupa. Talvez podia aproveitar a oportunidade para lhe tirar informação sobre as indagações forenses do cadáver do vampiro. Sim, isso era. A metade da ducha voltou a soar o telefone. Apaguei o grifo e fui responder, deixando charquitos saponáceos sobre o linóleo.
—Sim? —Sou Maxine, querida. —Olá, Maxine. —A protetora deseja verte hoje em seu escritório. Às oito e meia. —Obrigado. —De nada, querida.
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Pendurei e retornei à ducha. A água quente me golpeou com um jorro lhe gratifiquem que me relaxou os músculos. O telefone começou a soar. Grunhi e voltei para salão como um torvelinho, sem me incomodar em apagar o grifo. —O que? —Terá que ser ousada para me chamar pela manhã —grunhiu Jim. —Peço-te desculpas por ter interrompido seus doces sonhos! —respondi-lhe com outro bufido. —por que demônios me chamaste? —Quero que abra bem os olhos e faça uma lista dos assassinatos da Manada: localização, data e todo isso. —Sabe que é informação classificada. Quem coño crie que é?
—A única pessoa a que lhe importa. Olhe pela janela. Vê muita gente fazendo fila para salvar seus peludos traseiros? Pendurei o auricular de repente e voltei para a ducha. Embora a ausência de vapor teria que me haver alertado, coloquei-me diretamente sob o jorro de água geada. Enquanto falava por telefone, terminou-se a água quente. Estrangulando o tubos não conseguiria que voltasse a sair quente, por muito satisfatório que resultasse, de modo que apaguei a ducha e me envolvi em uma toalha seca. ia ser um dia muito duro.
SENTEI-ME EM uma das cadeiras para as visitas nas profundas vísceras do escritório do cavalheiro protetor. Esta vez Ted não estava falando por telefone. Em seu lugar, observou-me desde detrás de seu escritório como um cavalheiro medieval contemplaria do alto das muralhas a quão sarracenos assediam seu castelo. Os segundos se converteram em minutos. Finalmente, disse: —estudei seu relatório da Academia. OH, mierda. —Tem um índice e.E significava electrum. Nada do outro mundo, em realidade. —Sabe quantos escudeiros com índice e chegaram à Academia nos últimos trinta e oito anos? —perguntou-me. Sabia. Greg me tinha repetido isso tantas vezes que o número me tinha deixada brechas nas membranas cerebrais. Entretanto, provocar ao protetor não me faria nenhum bem, de modo que mantive a paz. —Oito —disse ele, deixando que a palavra flutuasse um instante. Incluída você. Tentei pôr cara de solenidade. Ted moveu a caneta um centímetro à esquerda, observou-o atentamente e voltou a me olhar. —por que te partiu?
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—Tenho problemas com a autoridade. —O típico caso de ego da estudante brilhante? —Não exatamente. Dava-me conta de que a Ordem não era o lugar adequado para mim e o deixei antes de fazer algo realmente estúpido. Em minha mente, a voz do Greg me disse com uma nota de recriminação: E te converteu em mercenária, uma espada para o melhor postor, sem propósito nem causa alguma. —Agora trabalha para a Ordem. —Sim. —Como se sente? —Pois verá, doutor, um pouco dolorida e com um formigamento em todo o corpo. Desprezou minha ocorrência com um gesto da mão. —Não jogue comigo. Como se sente? —É agradável ter uma base na cidade. O selo da Ordem abre algumas leva. Sinto uma maior responsabilidade. —Você molesta? —Sim. Quando trabalho por minha conta, cago-a e o cheque se vai pelo deságüe, assim que me alimento do que cultivo até que aparece o seguinte caso. Agora a cago e um montão de gente acaba morta. Ted assentiu. —Sente que a autoridade te asfixia? —Não. Seu não me ataste em curto. Mas sei que está aí. —Sempre e quando te detiver a pensá-lo. —Não é algo que se esqueça facilmente. —Nataraja me tem feito chegar uma queixa —disse. Relaxei-me. O vento começava a soprar em outra direção.
—OH. —Diz que evita discutir o tema com eles. Tem muitas coisas que te contar. —Algo habitual nele. —Encolhi-me de ombros. —Sabe por que está tão inquieto? —Sim. Tanto a Nação como a Manada são suspeitos. Quer demonstrar que está disposto a cooperar. Ted assentiu, sancionando minha conclusão. —Não tinha nenhum motivo para ir ao Cassino —lhe disse. —Agora tem um. —Sim. —Bem. Então, assim que acabemos, vê ali e lhe feche o pico. Assenti. —me conte o que averiguaste até o momento.
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Descarreguei-me. Falei-lhe do vampiro morto e da marca oculta; do encontro com o Senhor das Bestas, quem desejava que lhe chamasse Curran, das linhas amarelas no exploratório—m e do sonho da Anna. Ele permaneceu sentado todo o momento, assentindo sem expressão alguma em seu pétreo rosto. Quando terminei, disse: —Bem. Compreendi que a audiência tinha concluído e saí de seu escritório. Nesta ocasião os sarracenos tinham escapado sem azeite fervendo sobre suas costas.
Encaminhei ao escritório do Greg. Algo me preocupava da noite anterior, algo que não deixava de dar voltas em minha cabeça, e aquela manhã minha percepção se havia agudizado como conseqüência da ducha geada. Finalmente descobri o que era: os nomes de mulher no relatório do Greg. Tinha esquecido completamente aqueles quatro nomes, abandonando-os em um rincão de minha mente, algo tanto irresponsável como estúpido. Teria que me haver esforçado mais. Demorei cinco segundos em encontrar o arquivo e a página com os quatro nomes. Sandra Molot, Angelina Gómez, Jennifer Ying, Alisa Konova. Procurei os nomes no arquivo do Greg mas não encontrei nenhuma pasta dedicada a alguma daquelas mulheres. Além disso, como procediam de grupos étnicos muito distintos, não pareciam-lhe ner nada em comum. Pincei no escritório em busca de uma listas telefônica, encontrei-o na última gaveta e comecei a passar páginas. Gómez e Ying eram sobrenomes muito comuns e Molot não era muito estranho, de modo que comecei pela Konova. Havia dois homens com o sobrenome Konova, Anatoli e Denis. Em russo se denota o gênero feminino acrescentando uma vocal final ao sobrenome, assim que a forma feminina do Konov seria Konova. Com isso em mente, pensei que valia a pena tentá-lo com aqueles nomes. Marquei o primeiro número e uma voz feminina indiferente me informou que o número já não existia. Tentei-o com o segundo. O telefone soou e uma mulher maior com um ligeiro acento disse: —Sim? —Olá, poderia falar com Alisa, por favor? Uma larga pausa. —Senhora? —Alisa desapareceu —disse a mulher com tranqüilidade—. Não sabemos onde está. Pendurou antes de que pudesse lhe perguntar algo mais. Molot era mim segunda melhor opção, de modo que o busquei no agendinha de telefones e encontrei seis pessoas com esse nome. Dava no alvo ao quarto intento; um homem jovem me informou que Sandra era sua irmã e me disse sem muitas vontades que também tinha desaparecido desde dia quatorze do mês anterior, mas se negou a me dizer nada mais, acrescentando que «a polícia segue procurando-a».
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Dava-lhe as obrigado e pendurei. Chamei dezenove pessoas que se apelidavam Ying e a vinte e sete Gómez. Não pude encontrar ao Jennifer Ying, mas havia dois Angelinas entre os Gómez. A primeira tinha dois anos. A segunda, vinte e tinha desaparecido. Não era muito desatinado pensar que Jennifer Ying tinha seguido o mesmo destino que as outras três mulheres. Considerei a possibilidade de me aproximar da delegacia de polícia, mas a parte racional de meu cérebro me disse que não só me jogariam dali sem me dar nenhum tipo de informação, mas sim, além disso, atrairia muito a atenção e quão único conseguiria seria complicar ainda mais meu trabalho. Os polis respeitavam aos cavalheiros de alta fila, mas não cooperavam com eles a menos que não houvesse outra opção. E eu nem sequer era um cavalheiro. O mais provável é que às quatro mulheres lhes saíssem pezuñas e cabelo e chamassem «Senhor» a Curran, em cujo caso era lógico supor que tinham desaparecido porque estavam entre os sete cambiaformas assassinados. Chamei o Jim para verificá-lo, mas ou não estava em casa ou tinha decidido não responder a minhas chamadas. Não deixei nenhuma mensagem. Com todo o trabalho feito, guardei o relatório no arquivo. Era quase a hora de comer e tinha uma entrevista com um cirurgião plástico.
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O cenário das colimas devia ser um grande admirador tanto do estilo arquitetônico Asteca primitivo como do mais moderno Taco Bell. O restaurante era um gritão amálgama de poltronas brilhantes, estridentes piñatas e novelo artificiais. Uma paliçada para caveiras de resina, modelada segundo as paliçadas autênticas que os antigos astecas enchiam de incontáveis caveiras de vítimas humanas, coroava a modo de teto a mesa do bufei. Nos suportes das janelas havia pequenas réplicas em terracota de ocultas relíquias junto a chifres de vime que transbordavam frutas de plástico.
O ambiente era o de menos. Assim que pus um pé no comilão, o delicioso aroma me envolveu e deixei atrás rapidamente a atrocidade de terracota de metro e médio que pretendia representar ao famoso Xochopilli, o Príncipe das Flores, e que separava a entrada da caixa registradora. Uma garçonete ruiva se interpôs em meu caminho. —Perdoe —me disse com um sorriso que deixou ao descoberto toda sua dentadura—. É você Kate?
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—Sim. —Estão-lhe esperando. me siga, por favor. Enquanto me conduzia ao outro lado da mesa do bufei, ouvi uma voz masculina que perguntou: «Servem vocês isto com molho de carne?» Só no Sul. A garçonete me deixou em um reservado situado em uma das esquinas da sala, onde Crest me esperava imerso na carta. —Encontrei-a, doutor! —anunciou a garçonete. Os clientes na mesa do lado me olharam. Se o restaurante não tivesse estado tão cheio, a teria estrangulado ali mesmo. Grest levantou a vista do menu e deu de presente um sorriso à garçonete. —Recordaste-o —disse com voz surpreendida—. Obrigado, Grace. Ela soltou uma risita. —me chame se necessitar algo!
E partiu com um rebolado extra de seus quadris. Não imaginava que uma mulher com um traseiro tão ossudo fosse capaz de sacudir o daquele modo, mas Grace me demonstrou que estava equivocada. Sentei-me. —aproxima-se uma tormenta —disse ele. —Leva aqui cinco minutos e a garçonete já te agita as pestanas —lhe disse—. Tem talento. Crest desenrolou o guardanapo, extraiu desta uma faca de serra e fez ver que o cravava no coração. —Em realidade não é nenhum talento —se explicou enquanto dava voltas à faca. A folha parecia afiada—. Quase todo mundo trata às garçonetes como se fossem cães. Trazem-lhe a comida e lhe servem, portanto, são consideram uma classe inferior de ser humano a quem não os molesta ser perseguidas. Tirei-lhe a faca das mãos antes de que se fizesse mal e o deixei sobre a mesa. Grace a ruiva retornou, encantou-nos com outro sorriso e nos perguntou se estávamos preparados para pedir. Eu o fiz sem olhar a carta. Crest pediu churrasco com chimichurri em um espanhol sem rastro de acento. Grace lhe olhou com a boca aberta. —Acredito que se refere ao flletmignon com molho de alho e salsinha — disse—. O especial do Chef. Seu rosto recuperou a cor. —E de beber? Ambos pedimos água com gelo e Grace voltou a partir, rebolando indecentemente. Crest fez uma careta. —Uma repentina mudança de atitude? —perguntei.
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—Detesto a incompetência. Trabalha em um restaurante que serve comida latina. Ao menos deveria saber como se pronunciam os nomes. Embora certamente faz o que pode. Olhou em redor—. Devo te dizer que este não é precisamente o lugar onde manter uma conversação tranqüila. —Tem algum problema com meus gostos? —Sim, certamente —disse ele. Encolhi-me de ombros. —É o bastante... hostil. —Embora não o disse em um tom que desse pé a uma disputa. Ao contrário, sua voz transmitia certo regozijo. —Teria que ter eleito um lugar tranqüilo, elegantemente decorado e muito privado que estimulasse as conversações íntimas? —Bom, pensei que o faria. —por que? Como me chantageou para que comesse contigo, pensei que ao menos poderia desfrutar da comida. Crest tentou atacar por outro frente. —Jamais tinha conhecido a alguém como você. —É bom sabê-lo. Às pessoas como eu não gosta que a tentem pisotear. Pode que acabem te partindo as pernas. —De verdade poderia fazê-lo? —disse com uma meia sorriso. Estava flertando comigo? —Fazer o que? —me partir as pernas. —Sim, nas circunstâncias adequadas. —Sou cinturão marrom de caratê —disse e compreendi que Crest encontrava divertido o fato de que fora uma mulher forte—. Saberia me defender. Cada vez era mais divertido. Olhei-lhe com toda a intensidade de meu pior sorriso psicótica e lhe disse: —Marrom? Impressionante. Mas recorda que eu ganho a vida partindo pernas, enquanto que você... —Arrumo ossos? —ofereceu.
—Não, ia dizer que costura cadáveres, mas tem razão, «arruma ossos» tivesse sido melhor réplica. Olhamo-nos o um ao outro com um sorriso nos lábios. Grace chegou bem a tempo, com um prato em cada mão. Deixou-os frente a nós e a chamaram de outra mesa antes de que pudesse cegar ao Crest com outro sorriso deslumbrante. —A comida é maravilhosa —disse Crest depois da segunda dentada. E troca. Olhei-lhe com uma sobrancelha arqueada: disse-lhe isso.
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—Deixarei de tentar te impressionar se me prometer que não me partirá as pernas — me sugeriu. —De acordo, onde aprendeu a falar espanhol? —De meu pai —disse—. Falava seis línguas com fluidezy entendia Deus sabe quantas. Era um antropólogo da velha escola. Vivemos dois anos em Templo Maior, no México. Arqueei uma sobrancelha, agarrei a garrafa de molho picante com a forma de uma estilizada figurita e a deixei frente a ele. —Tlaloc —disse ele—. O Deus da Chuva. Sorri-lhe. —me conte algo do templo. —Era caloroso e poeirento. —Falou-me de seu pai, quem tentava compreender a povos longamente desaparecidos, de como subia os incontáveis degraus até a parte superior do templo, onde dois santuários idênticos contemplavam o mundo, das noites em que dormia sob o céu insondável junto às paredes esculpidas do templo e sonhava com sacerdotes de pesadelo. De algum modo,
sua voz se impôs sobre o ruído do restaurante, sufocando as conversações do resto dos clientes até as converter em um murmúrio apenas audível. Foi tão extraordinário que teria jurado que se devia ao influxo da magia, mas não percebi poder algum que emergisse dele. Talvez era magia, mas dessa classe tão especial própria dos humanos; a magia nascida do encanto humano e da conversação, essa que tão freqüentemente descartava. Enquanto ele falava e eu escutava sua agradável voz, não deixava de lhe olhar. Havia algo realmente reconfortante nele, embora não sabia se era sua atitude relaxada ou sua completa imunidade a meu cenho franzido. Era divertido sem tentar ser gracioso, inteligente sem tentar parecer um erudito, e transmitia claramente que não esperava nada de mim. A comida avançou e, de repente, vi que era quase a uma e meia, hora de ir. —Passei-me isso muito bem —disse ele—. Mas solo falei eu, assim suponho que é mais que óbvio. Teria que me haver talhado. —desfrutei te escutando. Olhou-me com a sobrancelha arqueada, incrédulo, e me advertiu: —A próxima vez escutarei eu. —A próxima vez? —Você gostaria de jantar comigo? —Sim —disse sem pensar. —Esta noite? —perguntou com olhos esperançados. —Tentarei-o —lhe prometi, e, de fato, estava decidida a fazê-lo—. me Chame por volta das seis. —Dava-lhe minha direção se por acaso a magia inutilizava o telefone.
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Insisti em pagar a conta e declinei a oferta de me acompanhar até o carro. O dia que necessitasse uma escolta, entregaria minha espada a alguém que soubesse o que fazer com ela. —O senhor Nataraja estaria encantado de falar com você —me informou uma refinada voz masculina através do telefone—. Não obstante, sua agenda está extremamente apertada durante no próximo mês. Suspirei enquanto repicava com as unhas sobre a mesa da cozinha do Greg. —Sinto-o mas não entendi seu nome... —Charles Penetrei. —Faremos uma coisa, Charles. me passe com a Rowena e não contarei a Nataraja que tentaste te desfazer da investigadora designada pela Ordem. produziu-se um silêncio e, pouco depois, Charles me disse com voz ligeiramente afogada: —Um momento, por favor. Esperei ao telefone, satisfeita comigo mesma. produziu-se um estalo e a perfeita voz da Rowena me disse: —Kate, minhas mais sinceras desculpas. Um desafortunado mal-entendido. Um a zero para mim. —Não tem importância —lhe disse. Podia me permitir o luxo de me mostrar misericordiosa—. Me comunicaram que Nataraja deseja falar comigo. —Exato. Por desgraça, agora mesmo está no campo. Se tivesse conhecido sua intenção de lhe visitar, estou segura de que o haveria posposto. Chegará esta tarde. Estaria eternamente agradecida se pudesse te reunir conosco um pouco mais tarde, digamos aos duas da madrugada? Um a um para a Rowena. —Não há problema. —Obrigado, Kate —disse. Despedimo-nos e pendurei o telefone. Rowena tinha a habilidade de converter em pessoal toda conversação, como se o tema em questão fora vital para ela e
qualquer negativa a suas petições pudesse ofendê-la. Também funcionava à inversa: quando aceitava algo, atuava como se acabasse de lhe fazer um grande favor pessoal. Era uma arte que me teria gostado de dominar. Por desgraça, não tinha nem o tempo nem a paciência necessários. Indecisa sobre o que devia fazer a seguir, continuei repicando a mesa com a ponta dos dedos. Até que me entrevistasse com o Corwin não podia eliminá-lo como possível suspeito, e no momento não tinha a mais suspeitos. Talvez se incomodava o suficiente a Nataraja, proporcionasse-me novas pistas, mas isso não aconteceria até aquela noite, o que me deixava livre quase doze horas. Joguei uma olhada geral ao apartamento.
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Tinha perdido sua atmosfera imaculada. Os suportes das janelas estavam cobertas de pó e havia vários pratos sujos na pia. Levantei-me da cadeira e me fiz com a vassoura, uns quantos trapos e a lejía. Agora que o pensava, tampouco me sentaria mal dormir um pouco. Esperava-me uma larga noite por diante. Guando despertei no apartamento, de novo limpo, a luz exterior tinha adquirido o tom violáceo da última hora da tarde. Crest não tinha chamado. Uma pena. Me ocorreu algo interessante enquanto permanecia tombada uns preciosos segundos mais na cama, com a vista fixa no crepúsculo ao outro lado da janela com barrotes. Continuei lhe dando voltas enquanto me dirigia à cozinha e telefonava à Ordem, confiando em que Maxine não se partiu ainda. O telefone se estava convertendo em minha arma preferida. Maxine respondeu. —Boa tarde, Kate. —Sempre trabalha até tarde? —Às vezes. —Se te pedisse que comprovasse algo por mim, faria-o?
—Para isso estou aqui, querida. Contei-lhe o das mulheres desaparecidas. —A poli está trabalhando nisso, assim deve haver um relatório sobre ao menos uma das mulheres, Sandra Molot. Preciso saber se realizaram um feitiço de rastreamento geral com um de seus efeitos pessoais. E também para as outras três. —Espera um momento, querida. Buscarei-o. Conectou a chamada em espera. Aguardei enquanto ouvia os débeis sons da linha Telefónica. Tinha cansado a noite, deixando ao apartamento, salvo a cozinha, na penumbra. O silêncio era aterrador. Tap. Tap. Algo arranhou a janela da cozinha. Era um som quase imperceptível, como o que produz uma ramita seca ao golpear um cristal. Estava no terceiro andar. Nenhuma árvore era o suficientemente alto para alcançar a janela. Tap. Sigilosamente, retrocedi até o saguão e empunhei a Assassina, sustentando o auricular entre a bochecha e o ombro. A linha ressuscitou e estive a ponto de dar um salto. —Jennifer Ying não tem nenhum relatório —disse Maxine. —Estraga. —Acendi a luz, inundando a cozinha em sombras. Tap. Tap.
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Aproximei-me da janela. —Mas sim das outras três mulheres. Alarguei o braço para agarrar a cortina e a abri com um movimento brusco. Dois olhos ambarinos me observaram do exterior, saturados de desejo e avidez. Um rosto mescla de lobo e humano se apoiou contra o cristal. As mandíbulas, horrivelmente disformes, não acabavam de encaixar bem e uns largos fios de saliva penduravam de uns dentes amarelados e torcidos. A pele ao redor do nariz lobuna se enrugou. A criatura de pesadelo olisqueó o cristal, expulsando ar pelos negros orifícios do nariz e formando um pequeno círculo opaco de condensação. Levantou uma mão disforme e golpeou a janela com uma unha de dois centímetros. Tap. Tap. Tap. —Nos três casos se realizaram feitiços de localização padrões e de alta densidade. Foram bloqueados e não produziram resultado algum. Kate? —Muito obrigado, Maxine —disse, incapaz de apartar a vista do monstro ao outro lado do cristal—. Tenho que pendurar. —A você disposição, querida. passe-lhe isso bem com o lobo. Pendurei o aparelho muito lentamente. Com Assassina na mão, murmurei o conjuro que dissolvia a barreira ao redor do cristal e que desbloqueava a janela. As garras aferraram o bordo da mesma e a levantaram sem esforço aparente. O lobo—homem se deslizou ao interior do apartamento com deliberada lentidão, uma peluda e robusta perna detrás da outra, e desdobrou seus dois metros e dez centímetros de altura em metade da cozinha. Tinha a cabeça, ombros, costas e membros talheres de uma densa pelagem cinza, deixando o arrepiante rosto e o musculoso peito corno as únicas zonas limpas. Distingui umas escuras manchas circulares na pele de seus peitorais. —Muito bem, bonito. O que tem para mim? aproximou-se de mim com um grande pacote entre as garras. Um selo de cera vermelha com algum tipo de marca assegurava o sobre. —lhe abra ordenei. O lobo—homem rompeu torpemente o selo, extraiu uma folha de papel com suas garras, que deixaram diminutos orifícios no papel, e me ofereceu isso.
Quatro linhas escritas em uma formosa caligrafia: Sua Majestade Curran Eleito Senhor das Bestas Solicita sua presença na reunião da Manada Das 22:00 horas de esta noite
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A nota estava assinada com um gancho de ferro. —Culpa minha —lhe disse ao lobo—homem—, Fui eu quem lhe exigi um convite formal. O lobo me olhou fixamente. Sua saliva formou viscosos charquitos no chão de linóleo. Pensei na idéia de é tar só com duzentos monstros como aquele, todos mais rápidos e fortes que eu, preparados para me despedaçar ante o mínimo desejo de sua líder, e uma sensação de desgosto se instalou em meu estômago. Não queria ir. —Deve me escoltar? O pesadelo abriu a boca e emitiu um grunhido baixo e gutural, o frustrado gemido de uma mente dotada com a capacidade da fala encerrada em um corpo incapaz de produzir os sons adequados. Solo os cambiaformas mais experimentados podiam falar na forma intermédia. —Assente se for um sim —disse. O lobo assentiu lentamente. —Bem. Tenho que me trocar. Fique aqui. Não te mova. Este é um lugar perigoso para um lobo. Assente se me entendeste. Voltou a assentir.
Saí ao corredor e apoiei a mão na parede para ativar a barreira. Uma partição vermelha translúcida se materializou na soleira da porta, isolando a cozinha e ao monstro do resto do apartamento. fui vestir me. ME decidì por umas calças folgadas de cor cinza escura e acampanados para ocultar meus pés ao soltar patadas. A perspectiva de várias garras em minhas costas me fez valorar a possibilidade de levar algum tipo de armadura ligeira, mas o traje estava em minha autêntica casa, junto ao resto de meu equipamento, longamente esquecidos no armário. Embora tampouco me serviria de muito em meio da Manada ao completo. Meti-me no armário, onde guardava um par de mudas. Quando Greg estava vivo, solo ia a aquele apartamento como última opção, o que freqüentemente significava que estava sangrando e que minha roupa estava destroçada. Medi no armário e minhas mãos roçaram um pouco de pele. Uma jaqueta negra de pele. Recordei vagamente havê-la levado tempo atrás. Deveu ser durante meus dias «Em, note, sou dura!» Embainhei-me nela e comprovei o efeito no espelho do dormitório. Muito ameaçador. E, além disso, sentava-me bem. De acordo. Melhor aquilo que nada. Tirei-me a jaqueta, troquei-me a camiseta que levava posta por uma cinza escuro sem mangas, deslizei a correia da vagem negra e voltei a me pôr a jaqueta. Toda uma valentona. Genial. Acrescenta uma rabo-de-cavalo súper tensa e montões de rímel e lista para interpretar o papel de casal maligno do súper vilão. Temos formas de que entregue a amostra de DNA.
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Decidi-me por minha trança habitual. Depois de terminar a trança, detive-me, meditei sobre o arsenal a minha disposição, atei-me uma muñequera com agulhas de prata e não agarrei nada mais além da Assassina. Para me abrir passo entre duzentos cambiaformas enfurecidos necessitaria uma caixa de granadas e apoio aéreo. Não havia razão alguma para ir carregada com o peso de mais arma. Embora
possivelmente deveria agarrar uma faca. Só um, como simples apoio. De acordo, dois. Mas isso era tudo. Armada e vestida para matar ou, mas bem, para morrer rapidamente mas com estilo, fui ao encontro do lobo—homem e juntos baixamos as lúgubres escadas até a rua. Abri-lhe a porta traseira do Betsi a meu guia e este se deslizou no assento traseiro. Quando saíamos do estacionamento, deu-me um golpecito com sua garra no ombro e assinalou para a esquerda. Captei a mensagem e girei o volante nessa direção. Não havia virtualmente tráfico. As ruas desertas, banhadas com o resplendor amarelo da eletricidade, abriam-se ante nós. Pouca gente dispunha de veículos que funcionassem durante as quebras de onda tec. Dado que a magia estava ganhando claramente a partida, não tinha muito sentido investir o dinheiro em um. Um velho Funda azul se deteve em um semáforo no sulco da esquerda. Um homem e uma mulher conversavam sobre o assento dianteiro. Do homem só podia distinguir seu perfil sumido na escuridão, mas o rosto da mulher estava dominado por um olhar ensoñadora e ditosa, como se estivesse recordando algum momento de felicidade. No assento traseiro havia um menino pequeno de cabelo escuro. dentro de pouco veria o monstro em meu carro. Preparei-me para o grito. O menino entrecerró os olhos e sorriu. Olhei pelo retrovisor interior e vi que o lobo— homem fingia ofegar, seus negros lábios estendidos em um radiante sorriso canino. A escuridão do interior do veículo ocultava a maior parte de seu rosto. Solo era visível o focinho, iluminado pela luz exterior, e os resplandecentes olhos. O menino disse algo, e embora não pude ouvi-lo, deveu parecer-se muito a «Bom cão». O semáforo ficou em verde e o Funda reemprendió a marcha, desvanecendo-se na noite e levando-se com ele ao menino, a seus pais e suas lembranças intactos. Reatamos a marcha, serpenteando em direção nordeste através do Suwanee. Demoramos quase uma hora em chegar ao recinto dos cambiaformas, e para isso tivemos que sair da cidade. Completamente invisível da auto-estrada, a fortaleza se levantava em metade de um claro e estava rodeada por um denso muro de arbustos e carvalhos que pareciam muito mais velhos que todo o resto. A única indicação de sua presença era um estreito caminho de terra que girava tão abruptamente da auto-estrada que me saltei isso em que pese a levar um guia e tubo que dar meia volta. O atalho terminava em um estacionamento.
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Deixei o veículo junto a uma velha caminhonete Chevy e lhe abri a porta traseira ao lobo— homem. Este desceu do carro e se deteve um instante a modo de saudação silenciosa frente ao edifício. O recinto se elevava ameaçador frente a nós, um inexpugnável edifício quadrado de pedra calcária de quase vinte metros de altura. A escuridão se acumulava nas estreitas janelas abovedadas, protegidas por barrotes metálicos. O lugar se assemelhava mais ao torreão de um castelo que a uma fortaleza moderna. O lobo—homem levantou seu estreito focinho e deixou escapar um uivo comprido e lhe ululem. Os frios dedos do terror me percorreram as costas e se aferraram firmemente a minha garganta. O uivo persistiu, ricocheteando nos muros do edifício e enchendo a noite com a promessa de uma larga e sangrenta caça. Outra voz se uniu a de meu guia da parte superior da torre, uma terceira chegou de um lado, e uma quarta... A nosso redor, os sentinelas uivaram e permaneceram imóveis em metade do torvelinho de seus gritos de guerra. Embora muito dramático para meu gosto, teve o efeito desejado: converter a uma pessoa agressiva como eu em um simples macaco aterrorizado que tremia na escuridão. Satisfeito, meu guia se encaminhou ao torreão, e eu lhe segui enquanto escutava os últimos ecos do hino de sangue perder-se na noite. O lobo— homem se deteve frente à enorme porta metálica e a esmurrou. A porta se abriu e entramos em uma pequena habitação iluminada com abajures elétricos. Uma mulher miúda com o cabelo loiro muito encaracolado nos estava esperando. Algum tipo de comunicação não verbal deveu circular entre esta e meu guia e, continuando, a mulher olhou em minha direção. —me siga, por favor. Segui-a através de outra porta que dava a uma habitação circular. No centro da mesma, uma escada de caracol que levava tanto ao piso de acima como ao porão. — por aqui, por favor —repetiu a mulher antes de começar a baixar as escadas. Descendemos riscando vários cachos de cabelo até que minha escolta chegou a um corredor lateral sumido em sombras. O corredor
terminava em outra pesada porta de madeira, e, depois de abri-la, a mulher me indicou que entrasse. Obedeci-a. Uma enorme habitação oval se estendia frente a mim, banhada pelo confortável resplendor de luzes elétricas matizadas por cristal opaco. A sala se abria elegantemente, como o auditório de uma universidade, para culminar em um estrado baixo. Na parte esquerda do mesmo, junto a uma porta, o fogo brilhava com força no interior de um braseiro metálico de uns trinta centímetros de largura. A fumaça era sugada por um tubo vertical. Um corredor com uma ligeira inclinação percorria a sala da porta ao estrado.
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O resto do estou acostumado a inclinado formava uma série de terraços, separadas entre si por «degraus» de uns quinze metros de largura, e nestes, sobre mantas azuis idênticas, descansavam os cambiaformas. A maioria estavam em forma humana; alguns sozinhos, outros junto a seus familiares, uma família por manta, como se se tivessem reunido para uma espécie de picnic clandestino. Consternada, dava-me conta de que havia mais de trezentos. Muitos mais. E não vi Curran por nenhum lado. A porta se fechou a minhas costas com um estalo. Como se fossem um, os cambiaformas se deram a volta e me olharam. Perguntei-me como reagiriam se lhes pedia um pouco de açúcar. detrás de mim, a porta voltou a abrir-se e entraram dois machos de grande tamanho que começaram a respirar sobre meu cangote. Captei a mensagem e comecei a percorrer o corredor central em direção ao estrado. diante de mim, vários machos ficaram em pé e me impediram o passo. O comitê de bem-vinda. Que agradável. Detive-me frente aos homens. —Estão em meu caminho —disse.
—De verdade? —O menino não devia ter mais de dezoito anos. Tinha um rosto amplo e um cabelo escuro bastante largo. Quando seus olhos marrons me olharam com ironia, compreendi que me tinham tendido uma armadilha. E sabia quem o tinha orquestrado tudo. Eles nunca tomariam a iniciativa sem as preceptivas ordens de Curran. —De verdade —disse, consciente do que se morava. —Desde meu ponto de vista, é você a que está em nosso caminho —disse um macho maior e mais fornido. Curvou a comissura dos lábios em um intento por ocultar um sorriso. Estava desfrutando. —Ouça, Mik —disse desde sua manta um homem alto, com um arbusto ruivo— , não sabe lhe ceder o passo a uma dama? —Não vejo nenhuma dama por aqui. —O homem fornido me olhou lascivamente. Uma quebra de onda de vaias e uivos percorreu a sala, tão repentina que parecia coreografiada. Mik seguiu me repassando de cima abaixo. Até sua lascívia parecia ensaiada. Não percebi nenhum tipo de ameaça; aquilo não era mais que uma simples prova para descobrir como atuava. Devia decidi-lo rápido e sem recorrer à violência porque, se não, a Manada se negaria a cooperar. O absurdo da situação me deixou confusa. Os machos cada vez pareciam mais audazes e o menino sorria abertamente. —O que diz, neném? Vamos a um rincão e te ensinarei o que é passar um bom momento. O grupo estalou em gargalhadas; aquilo deveu ser uma improvisação. O menino, orgulhoso consigo mesmo, alargou um braço e seus dedos roçaram minha bochecha.
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Assim que sua pele tocou a minha, sussurrei uma só palavra em voz tão baixa que nem sequer eu pude ouvi-la. —Amehe. —Obedece.
A palavra de poder palpitou em minha pele e viajou até a sua. A poderosa corrente mágica que percorreu todo meu corpo esteve a ponto de me fazer cair de joelhos. O menino se esticou. O resto dos machos não se precaveu, absortos como estavam em seus próprios gritos. —Essa foi boa, Derek —disse Mik—. Acredito que poderia fazer-lhe com todos, se não te importa compartilhar. Olhei ao menino e pinjente: —me proteja. Seu corpo ficou em movimento súbitamente e a neblina dos fluidos corporais empapou o chão. Uma lustrosa forma lobuna golpeou ao macho maior e lhe fez perder o equilíbrio. Mik caiu de costas e o enorme lobo cinza saltou sobre ele, aproximando umas presas visíveis através de uma selvagem careta animal a escassos centímetros de seu pescoço. —Manten assim —disse. O lobo emitiu um grunhido rouco e seus lábios negros se agitaram. A sala ficou repentinamente tão silenciosa como uma tumba. Confiava que não fosse a minha. —Derek —disse Mik com voz rouca. O peso do lobo sobre seu peito lhe impedia de falar com normalidade—. Derek, sou eu. O lobo grunhiu. —Não te mova —lhe recomendei enquanto me levava a mão por cima do ombro e desvainaba a Assassina, a qual produziu um suave sussurro metálico ao abandonar a vagem, e os olhares dos cambiaformas se cravaram em sua folha enfeitiçada. A minha esquerda, uma mulher ficou em pé. Seus lábios tremeram em um revelador gesto prévio ao grunhido. —Que demônios lhe tem feito? Joguei uma folheada a toda a sala. A atmosfera se transformou. O jogo tinha concluído, e todos os olhos ardiam como labaredas. Lhes arrepiou o cabelo sobre suas cabeças e o aroma da caça começou a alagar a habitação. —Esta é Assassina —pinjente sustentando-a em alto para que todos pudessem vê-la. A folha fervia, e dela penduravam fios luminescentes de fumaça—. teve muitos nomes. Entre eles, Destripalobos. Avancem um passo mais e lhes mostrarei como ganhou o nome.
—Não pode com todos —grunhiu um macho a minha direita.
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—Não é necessário. —Baixei a folha e apoiei a ponta no pescoço do lobo—. te Mova e lhe matou. ficaram completamente imóveis. Embora a lealdade da Manada começava a impor-se sobre a ira, estava disposta a estirar um pouco mais da corda. —Já é suficiente —disse a voz de Curran. Os cambiaformas se esfumaram de meu caminho e vi Curran junto ao fogo. —Vêem comigo —lhe disse ao lobo. Com movimentos vacilantes, a besta apartou suas garras do peito do Mik. Passei por cima do fornido homem e caminhei ao encontro de Curran, o lobo trotando a meu lado a modo de descomunal cão guardião. Subi ao estrado. As íris de Curran desprendiam reflexos dourados; estava cheio o saco. lhe ignorando, aproximei-me do braseiro, arregacei-me a manga direita do pulôver e passei o antebraço por cima das chamas. A dor me lambeu o braço e o fedor a pele queimada e a cabelo chamuscado alagou o ar. Um murmúrio se estendeu pela sala. Tinha demonstrado minha humanidade e meu controle ante a Manada, tal e como tivesse feito um cambiaforma. Os membros da Manada que abandonavam sua disciplina e permitiam que a Besta tomasse o controle não podiam tocar o fogo. Era um ritual de vital importância e extremamente privado, um que nenhum deles esperava que eu conhecesse. O rosto de Curran não mostrou expressão alguma. —Vêem —disse, e o lobo e eu lhe seguimos. Descemos do estrado, atravessamos uma porta e entramos em outra habitação, muito mais pequena,
onde oito pessoas estavam sentadas em cadeiras acolchoadas. ficaram em pé ao ver Curran e permaneceram daquele modo. Havia três mulheres e cinco homens, e Jim era um deles. De modo que meu velho companheiro era membro do Conselho da Manada. Quem o houvesse dito. Os oito olharam ao lobo, a mim e depois a Curran. Jim abriu a boca para dizer algo e voltou a fechá-la. —Derek—lhe chamou Curran. O lobo lhe olhou. O resplendor dos olhos de Curran deixou ao lobo hipnotizado. Curran emitiu um som gutural, entre uma palavra e um grunhido, mas não me coube dúvida de que era uma ordem. O lobo se estremeceu. Curran repetiu a ordem. O lobo tremeu ainda mais, todo seu corpo se convulsionou e começou a choramingar lastimeramente. O senhor dos cambiaformas se deu a volta para me olhar. —Solta-o. —É uma ordem ou uma petição? O rosto de Curran se crispou como se seu leão interior desejasse me cravar suas garras. —Uma petição —disse.
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Ajoelhei-me junto ao lobo e introduzi uma mão em sua espessa pelagem até tocar sua pele com a gema dos dedos. A besta começou a tremer. —Há algum conjuro que proteja a habitação? Curran assentiu. Olhei ao lobo e sussurrei: —Dair. —Solta-o.
A intensidade da palavra de poder me sacudiu. Uns círculos vermelhos dançaram frente a mim e agitei a cabeça para esclarecer visão. O lobo se desabou no chão como se suas poderosas pernas tivessem perdido toda sua força. Curran grunhiu e o animal se desvaneceu em uma densa neblina, deixando ao menino nu e empapado em suor no chão. —Não podia—gemeu. —Sei —disse Curran—. Tranqüilo. O menino suspirou e perdeu o conhecimento. Uma mulher moréia de uns trinta anos, magra e com umas pernas larguísimas, cobriu-lhe com uma manta. Curran se deu a volta e me olhou fixamente. —Volta a agarrar a um de meu e lhe Mato —disse como se estivéssemos mantendo uma agradável conversação, tranqüilamente, mas em seus olhos reconheci uma certeza que não deixava lugar a dúvidas. Se tinha que fazê-lo, mataria-me. Não lhe faria perder o sonho, nem o pensaria duas vezes. Faria-o e seguiria adiante, imperturbável ante o fim de minha existência. Aquilo me pôs os cabelos de ponta, de modo que me ri em sua cara. —Crie que a próxima vez poderá fazê-lo você mesmo, grandalhão? Embora, pensando-o bem, será melhor que traga para seus valentões para voltar a me encurralar... Está-te voltando muito brando. A suas costas, alguém emitiu um som estrangulado. Já está, estou morta. Uma chama em minha mente. Curran moveu a cabeça bruscamente. A sede de sangue lhe possuiu completamente e, com uma força de vontade sobrehumana, voltou a recuperar o controle. O esforço foi quase físico. Vi como os músculos da cara se relaxavam um a um à medida que sua ira retrocedia. A fúria em seus olhos se desvaneceu paulatinamente até que seu olhar adquiriu uma simples tonalidade ambarina e seu corpo se relaxou. Jamais tinha presenciado algo tão assombroso e aterrador. —por agora te preciso —disse e, dirigindo-se a seu Conselho, acrescentou—: Está preparado Corwin? —Sim, meu senhor —trovejou um homem mais maior. Com um peito forte e corpulento, uns formidáveis ombros e uns braços que tivessem sido a inveja de qualquer ferreiro, tinha aspecto de ter uns cinqüenta e tantos. Sua barba, espessa e frisada, e sua grosa arbusto de cabelo negro cintilavam com dispersos fios de cabelo grisalho.
—Bem. Acompanha-a até a habitação. Unirei a vós assim que possa.
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O homem barbudo se aproximou da porta da esquerda e a manteve aberta para mim. —Por favor. Saí da habitação. Percorremos um ao lado do outro um sinuoso corredor, o homem com a barba negra e eu, —Meu nome é Mahon —disse o homem. Sua voz profunda tinha um sutil deixe escocês. —Prazer em conhecê-lo —murmurei mecanicamente. —Tivesse sido mais agradável em outras circunstâncias —disse com uma risita afogada. —Se tivesse sabido de antemão o recebimento que me esperava, teria optado pelo Unicórnio. —Tem que entender que Curran não pode permitir que ninguém se aproprie de algo dele. Se o fizesse, questionariam sua autoridade e alguns se perguntariam se for capaz de fazer com ele o mesmo que fez ao Derek. —Estou à corrente da mecânica da Manada —disse. —E, além disso, não pertence à Manada, e esta se mostra bastante receosa com os forasteiros. —Sou uma forasteira humana. A Manada me tratou como se fora uma solitária. Com a permissão de Curran. —Em poucas ocasiões um cambiaforma elegia seguir o Código por sua própria conta, rechaçando o amparo da Manada.
Esses indivíduos eram conhecidos com o nome de solitários. Eram os forasteiros definitivos, e a Manada os tratava com desconfiança e aversão. Mahon inclinou a cabeça para confirmar minha avaliação da situação. —Curran nunca faz nada sem um motivo —disse—. Me hão dito que tiveram uma entrevista prévia. Pode que lhe desafiasse inconscientemente. Inconscientemente? Tinha-lhe desafiado a propósito. —Seu conhecimento de nossos costumes é extraordinário —continuou—. Para uma forasteira humana. Como conseguiu essa informação? —Sua voz não era receosa. —Por meu pai —disse. —Um homem do Código? —Em certo modo. Mas não do seu. —Aprendeu bem. —Não —lhe disse—. Ele me ensinou bem. Eu era uma aluna difícil. —Os meninos revistam sê-lo —disse ele. Detivemo-nos frente a uma porta. —Quer um pouco de pomada para seu braço? Observei o inchaço avermelhado que me cobria a pele. —Não. A menos que lhe a spots em seguida, a pomada não serve de muito. Mas te agradeço a oferta. —Sacudi a cabeça—. me Diga uma coisa, sempre te dedica a acalmar aos convidados irados da Manada?
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Mahon abriu a porta.
—Às vezes. Suponho que transmito uma influência relaxante sobre os meninos revoltosos. Por favor. Cruzei a soleira da porta e Mahon a fechou a minhas costas. A habitação era pequena. Um único abajur projetava um nítido cone de luz sobre uma mesa situada no centro. junto à mesa havia duas cadeiras, e a mais afastada da entrada a ocupava um homem. colocou-se de tal maneira que a luz não incidia em seu rosto. O conjunto recordou a um daqueles filmes de espiões que estava acostumado a ver de menina. —conseguiu te apaziguar, não é certo? —disse o homem. Sua voz era ligeiramente áspera—. Arrumado a que dez minutos mais com ele e estaria disposta a te desculpar. —Acredito que não. —Aproximei a outra cadeira à mesa. O homem se inclinou para diante, embora permaneceu entre as sombras. —Não te castigue por isso. Faz-o com todo mundo. Por isso não falo com ele. —É Corwin? —Não, Blancanieves. —balançou-se na cadeira, balançando-a sobre as patas traseiras. —E quem é o homem que me acompanhou até aqui? —Mahon —disse ele—. O Kodiak de Atlanta. —O executor da Manada? —O mesmo. Digeri as notícias. —Criou a Curran, sabe? —disse o homem. —OH. E lhe chama senhor, como o resto? O homem se encolheu de ombros. —Isso é o que é. —Tem alguns problemas com o conceito —disse a voz de Curran a minhas costas. Estava melhorando. Aquela vez não peguei um bote. —Pode que seja seu senhor, mas te asseguro que não é o meu. Curran estava apoiado na parede.
—Onde estão os outros? —perguntei. Tinha que haver mais gente observando, provavelmente os oito que me tinham recebido na habitação onde estive a ponto de morrer. O alfa macho da manada de lobos, o cabeça dos ratos, a pessoa que falava em nome dos «exploradores», os cambiaformas de menor tamanho e alguém em representação das bestas maiores. —Estão-nos observando —disse Curran ao tempo que assinalava com a cabeça em direção à parede. Reparei pela primeira vez na presença de um espelho com o anverso opaco. Olhei ao Corwin. —por que não me deixa verte a cara?
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—Está segura? —Sim. inclinou-se para frente, permitindo que a luz incidisse em suas facções. Tinha um rosto horrível. Uns olhos alargados e duros estavam cravados profundamente em seu crânio, dominados por umas povoadas sobrancelhas. Seu nariz era enorme, sua mandíbula muito pesada e proeminente para ser humano; dava a impressão de poder atravessar um cabo metálico sem dificuldade. O cabelo, ruivo, grosso e com uma textura similar a da pelagem, recolhido em uma rabo-de-cavalo. Umas largas costeletas percorriam suas bochechas e lhe chegavam virtualmente até o pescoço, emoldurando umas orelhas bicudas e altas com pequenas mechas de cabelo na ponta. O mesmo tipo de cabelo, embora um pouco mais curto e espesso, cobria-lhe o pescoço e a garganta, deixando seu queixo limpo de um modo tão preciso que dava a sensação de que acabava de barbear-se.
Suas mãos, apoiadas sobre a mesa, eram disformes e desproporcionadas em relação com o resto do corpo. em que pese a ter uns dedos curtos e grossos, cada mão podia envolver minha cabeça. Entre os nódulos lhe crescia cabelo avermelhado. Corwin sorriu. Tinha uns dentes enormes e afiados. Umas garras em forma de foice se deslizaram da ponta de seus rechonchos dedos. Estendeu estes com um movimento felino e arranhou a superfície de madeira da mesa. —Vá, menino —pinjente—. Como sacode o travesseiro de noite? Corwin se lambeu os caninos enquanto me estudava e, ato seguido, olhou a Curran. —Eu gosto. —Comecemos —pinjente. —Ainda não me perguntaste o que sou. —Corwin repicou a mesa com as unhas. —Já o averiguarei. —As familiares palavras das largas sessões na Academia reapareceram—. Me chamo Kate Daniels. Sou uma representante legítima e autorizada da Ordem. Estou investigando um assassinato e você é um dos suspeitos. Segue-me até aqui? —Sim —disse Corwin. —vim para te fazer umas quantas perguntas e, desse modo, estabelecer ou eliminar sua natureza de suspeito. Se tiver cometido este assassinato, poderia te incriminar a ti mesmo ao responder a minhas perguntas. Não posso te obrigar às responder. —Ele pode —disse Corwin com sua voz rouca e assinalando com a cabeça a Curran. —Isso fica entre você e ele. Eu sozinho quero que entenda que não posso te obrigar a cooperar. —Entendo-o, carinho.
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Fulminei-lhe com um sorriso. —A informação que revele hoje será confidencial mas não privilegiada. —O que significa isso? —Significa —disse Curran— que a guardará para ela mas que se verá obrigada a revelá-la se a citam ante um tribunal. —Tem razão. —Olhei ao Gorwin—. Também devo te advertir que se assassinou ao Greg Feldman, farei todo o possível por te matar. Corwin se recostou na cadeira e um estranho gorjeio começou a emanar de sua garganta. Demorei um instante em compreender que estava renda-se. —Entendo-te —disse, sua íris de um verde reluzente. —Comecemos, então. participaste de algum jeito, direta ou indiretamente, no assassinato do Greg Feldman? —Não. Repassei todos os pontos importantes. Corwin sabia o que havia nos papéis e pouco mais. Não conhecia o Greg nem ao vampiro em questão. Não tinha nem idéia de por que alguém quereria matá-los. Não sabia quem era Ghastek. —Importaria-te me dar um pouco de tecido para um exploratório—m? — perguntei-lhe para terminar. —Tecido? —Sangue, saliva, cabelo. Algo que possa escanear. moveu-se para frente com um murmúrio desço na garganta. —Poderia te dar outra coisa. Algo mais que sangue ou saliva. Eu também me inclinei para frente até que nossos olhares se encontraram. —Obrigado —lhe disse—. Mas não estou disponível.
—Emparelhada? —Não, ocupada. —Não o estará eternamente. Movida por um impulso, alarguei o braço e lhe arranhei sob o queixo. Gorwin fechou os olhos e emitiu um ronrono. —De modo que existem os homens—gato —disse. —Sííííí. —Girou a cabeça para oferecer a meus dedos um melhor acesso a seu queixo. —E também os gatos—homem. Seus olhos se abriram ligeiramente, irradiando um brilho esverdeado. —Nasceu sendo animal... —pinjente. —E agora sou um homem —continuou ele, girando de novo a cabeça para que lhe arranhasse também a mandíbula—. Um homem—lince. Eu gosto de ler. E as mulheres humanas revistam estar sempre em zelo.
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—Ainda caça entre as árvores quando sai a lua, lince? —perguntei-lhe brandamente. —Vêem o bosque de noite —disse ele—, e o averiguará por ti mesma. Recostei-me na cadeira. —Têm um exploratório—m? —Um portátil —disse Curran.
—Servirá. Esperei a que trouxessem o portátil, o qual, em que pese a tudo, pesava mais de trinta e cinco quilogramas. Conduzia-o uma mulher, que o deixou em um rincão. Era uma artefato de metal e madeira com o aspecto de uma máquina de costurar modificada por um guerreiro celta. A mulher o examinou atentamente, levantou-o com uma mão e o separou uns centímetros da parede. Aos cambiaformas não faltava precisamente força. —Sabe como funciona? —perguntou-me a mulher. Assenti, agarrei a bandeja de vidro do compartimento interior do exploratório e sorri ao Corwin. —O que tem que essa amostra de cabelo? Corwin manteve tensa uma de suas costeletas e desdobrou as garras. Um arbusto avermelhado de cabelo caiu sobre a bandeja e, continuando, coloquei esta em seu lugar. produziu-se uma chama esverdeada e a impressora começou a estralar. Finalmente, deteve-se e o papel se deslizou pela ranhura. Recolhi-o. As linhas estavam ali, uma série de estrias de cores curtas e tênues. Mas no lugar equivocado. Dava voltas ao papel tentando conseguir o ângulo adequado de luz. Um amarelo esverdeado muito tênue. Não havia coincidência. Adeus a meu único suspeito. —Está satisfeita? —disse Curran. —Sim. Está limpo. Obedecendo ao gesto de Curran, Corwin se levantou e saiu da habitação. —Tínhamos um acordo —disse Curran. —Recordo-o. O que posso fazer por ti? Curran olhou em direção à porta aberta e apareceu Derek, ainda coxeando. apoiou-se no marco da porta, o rosto desencaixado. Parecia necessitar umas quantas ho¬ras de sonho e uma boa comida. Senti uma pontada de culpabilidade. Solo era um menino cansado, apanhado em um combate estúpido entre seu chefe e eu. —Pode levar lhe disse Curran isso.
—Para que? —pinjente piscando.
—Como guarda-costas. Como conexão com a Manada. Escolhe você mesma. —Não.
Curran se limitou a me olhar fixamente. —Acordamos intercambiar informação —disse—. Em nenhum momento disse que aceitaria um mascote. Além disso, para que demônios quero a um lobo que te informará a cada segundo de meus movimentos?
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—Atarei-o com um juramento de sangue. Não fará nada que possa te fazer danifico, fisicamente ou de outro modo. Não te espiará. Derek ficou tenso junto à parede e eu tentei ser razoável. —Inclusive assumindo que cria em sua palavra, não me posso levar isso comigo. lhe olhe. É um pirralho. Se me meter em uma briga, não saberei que pescoço salvar primeiro, o seu ou o meu. —Posso me defender solo —disse o menino com voz rouca.
—Não pode me obrigar a fazê-lo —disse—. Não quero me manchar as mãos com seu sangue. —Se não permitir que te acompanhe, manchará-lhe isso. —Curran cruzou os braços diante do peito—. Você provocaste isto. Tomou posse de meu lobo frente a toda a Manada. —Não me deixou outra opção. O que queria que fizesse? Pedir ajuda a gritos? Venho aqui com boa vontade e descubro que me tenderam uma emboscada. Você é o responsável. Curran me ignorou e continuou à sua. —semeaste dúvidas sobre minha autoridade. Não posso passá-lo por alto. Agora mesmo tenho três opções. Posso te submeter a uma lição pública de humildade, com o que, por certo, desfrutaria enormemente. —A expressão de seu rosto não deixou nenhuma dúvida disso—. Entretanto, devo me conter porque é o enlace da Ordem. Posso lhe castigar a ele, mas não quero fazê-lo. Ou lhe posso entregar isso a ti para que a gente saiba que já te pertencia antes do último encontro. Parecia nervosa e o juramento de sangue fez que ele perdesse o controle. Isso lhe salvaria o pescoço. Agitei a cabeça. —Não me levarei isso. —Então lhe matarei —disse Curran. O menino ficou completamente pálido. separou-se da parede e ficou imóvel. —Desobedeceu-me —disse Curran—. Te tocou, assim estou em meu direito. —O braço de Curran começou a cobrir-se de cabelo. De suas enormes garras surgiram umas unhas afiadas que colocou sob o queixo do Derek. O menino se estremeceu. —Cai-me bem. —A voz de Curran era pouco mais que um ronrono—. Não me resultará fácil. —Faz-o e te atravessarei como a um porco —disse com os dentes apertados. —Não, tentará-o. Agitará a espada e dirá muitas tolices e te jogará atrás no último instante. E então eu te fatiarei o pescoço, e o seu. Suas afiadas unhas dançaram perigosamente perto do débil pulso no pescoço do Derek. Tinha chegado a hora de aprender a estender cheques que pudesse cobrir.
—Você ganha, Sua Majestade. Por favor, lhe ate agora.
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Tenho uma entrevista dentro de três horas.
TRÊS GOTAS VERMELHAS caíram sobre as brasas que ardiam no braseiro metálico e vaiaram ao evaporar-se. O aroma de sangue humano encheu a habitação, alimentando os emaranhados fios da magia. Fiz uma careta. estava-se levando a cabo um vínculo, um ritual para adicionar o juramento do Derek à magia de seu sangue. O problema era que os juramentos de sangue não garantiam muito. Sob sua influência, Derek sentiria uma intensa aversão a incumplir certas promessas, mas aí terminava tudo. Ante o dilema de incumplir um juramento de sangue e uma obrigação superior, como a lealdade à Manada, o mais provável é que quebrantasse a promessa. O alto e esbelto alfa entoou as palavras do compromisso. Derek as repetiu e as correntes de poder percorreram a habitação ovalada, riscando espirais pelas paredes impossivelmente altas até o teto oculto na penumbra. O Conselho, que tinha formado um círculo ao redor do braseiro, pronunciou uma só palavra ao uníssono. Derek colocou uma mão sobre as chamas. O lobo alfa lhe fez um corte no antebraço e o sangue se derramou sobre o fogo do braseiro para selar o pacto. Seguiram multidão de promessas. O sangue do cambiaforma se coagulou rapidamente e o alfa teve que voltar a abrir a ferida aproximadamente cada trinta segundos. O juramento durou uns quinze minutos. A metade do mesmo, Derek começou a apertar os dentes assim que a faca tocava sua pele. Devia ter o braço completamente dolorido. Escutei os votos. Derek jurou me proteger com sua vida se era necessário. Jurou permanecer a meu lado no perigo e a calma durante o tempo que a Manada considerasse necessário. Jurou defender a honra da Manada em geral e o de seu Clã do Lobo em particular. Não me estavam proporcionando um
guarda-costas, a não ser uma segunda sombra, e se alguém me olhava mau, Derek estava obrigado por seu juramento a despedaçá-lo. Derek permaneceu imóvel, fazendo uma careta de dor atrás de outra, com um olhar perdido e lastimera, imensamente mais jovem que eu. Dava-me a volta e me afastei em silêncio. Saí da habitação ao corredor sumido em sombras. O ar era frio e tudo estava impregnado de um aroma a limão. Apoiei-me na parede e me tampei a cara com as mãos, me isolando um instante do mundo. O juramento de sangue demorava certo tempo em assentar-se e Derek teria que estar a meu lado durante o processo, de outro modo o compromisso seria inútil. Teria que dormir em meu apartamento, jantar comigo e me acompanhar ao Cassino... Cassino. Auj.
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—Te tem revolto o estômago —disse Curran a meu lado. Não peguei um bote. Foi mas bem um pequeno salto. —Faz-o a propósito, verdade? —O que? —Não importa. Esfreguei-me a cara, mas a fadiga resistia a me abandonar. Tão solo era um dos efeitos da adrenalina. Me passaria em uns minutos e voltaria a ser a de sempre. —Não está em seu ambiente —disse Curran. Não jodas. —Não levei muito bem as coisas, verdade? —Não —disse ele. Sua voz não transmitiu nenhum tipo de compaixão. Tivesse-me gostado de dispor de uma segunda oportunidade para me comportar de um modo um pouco mais comedido. Menos comunicativa. Por desgraça, na vida real logo que havia segundas oportunidades.
—Assim que saia daqui, irei ao Cassino. Tenho que saber se posso levar ao Derek comigo. A Nataraja gosta de me fazer sofrer. Se aparecer por ali com um lobo, as coisas podem piorar. —Por dizê-lo brandamente. —Sabe algo do Código? —«O Código é o Caminho» —citei do Código do Pensamento—. «É a Ordem em metade do Caos; é a sensatez na inconsciência». —Curran me olhou atentamente. Surpreso, Sua Majestade? Sim, tenho-o lido. Muitas vezes—. Sem o Código, os cambiaformas perdem o equilíbrio. A Besta lhes domina, lhes obrigando a matar a suas vítimas e a alimentar-se delas. O consumo de carne humana desencadeia uma terrível resposta hormonal. As tendências violentas, a paranóia e o impulso sexual tomam o mando rapidamente e o cambiaforma se converte em um lupo; um psicopata que se deixa levar por qualquer perversão imaginável relacionada com o sangue e o sexo. E isso que a mente humana pode imaginar muitas coisas. Definitivamente, estava esgotada. Deslizei-me lentamente pela parede e me sentei no chão. Que lhe dessem. Se queria estar por cima de mim, que assim fora. —No Moisés Creek, o Grêmio fez uma jogada a rede no circo dos horrores do Sam Buchanan —disse. Como uma faxineira muito complacente, minha mente projetou a lembrança frente a meus olhos. O jardim dianteiro do refúgio do Buchanan, mais de lá das trincheiras e o muro de tijolo cru de onde sua transtornada manada nos tinha disparado com armas de fogo. A grama recortada, semeado com os corpos dos lupos mortos, uma pequena piscina inflable —azul, com patos de borracha amarelos— cheia de sangue e das pálidas réstias das vísceras, e uma mulher, nua e empapada de sangue, com duas brechas negras onde teriam que ter estado os olhos.
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Estende as mãos ante ela, tropeça com os corpos, medindo às cegas, agarrando-se ao tronco de um pinheiro para manter o equilíbrio, e grita, sua voz apenas mais audível que um suspiro: «Megan! Megan!» E nós, duas dúzias de mercenários equipados para a batalha, incapazes de lhe alertar da
presença do pequeno corpo de cabelo escuro que pendura de um dos ramos da árvore em que a mulher se apóia. Apertei os dentes. —Uma lembrança desagradável? —perguntou Curran. —Não sabe até que ponto —pinjente com voz rouca antes de recordar com quem estava falando—. Embora seja provável que saiba. Agitei a cabeça, me desfazendo das lembranças como um cão se desfaz da água. Aquele foi meu terceiro trabalho no Grêmio. Tinha dezenove anos e os pesadelos ainda me perseguiam. E Buchanan tinha conseguido escapar, internando-se no bosque enquanto convertíamos a seus lupos enlouquecidos em uma massa úmida. Jamais lhe apanhamos. Saber aquilo era a pior dos pesadelos. Curran me estava observando. Abri a boca para lhe perguntar por que não tinha feito nada com aquele upo raivoso e então recordei que o condado do Jackson tinha impedido que a Manada interviesse. Tinham passado seis anos. Hoje em dia não se atreveriam a fazê-lo. Como já tinha a boca aberta, pinjente: —O que tem que ver todo isso com o Derek? —Os pais do Derek eram Baptistas do Sul separatistas. Ao ser o filho maior, permitiram-lhe assistir à escola. Ao menos por um tempo, até que seu pai aprofundou ainda mais na religião. Derek recorda a queima de livros no jardim de sua casa, ao doutor Seuss e ao Sendak. Assenti. A transição para a «religião profunda» era algo habitual. A metade dos povos de montanha tinham experiente a «profundización» antes de que o movimento «Vive—a—Vida—com—Deus» lhes oferecesse um novo dogma. Curran se esfregou a nuca e seus bíceps palpitaram sob a manga de sua camiseta. —Quando o menino fez quatorze anos, a família assistiu a uma reunião de renascimento do tipo o—fim—do—mundo e seu pai retornou a casa com o Lic—V. Se sentou a meu lado. —Não tinha a menor ideia do que era aquilo nem para que servia. Nem sequer sabia o suficiente para pedir ajuda. converteu-se em um upo em questão de dias. Os íupos são altamente contagiosos. A mãe do Derek se suicidó detrás ser infectada e deixou a seu
raivoso marido sozinho com sete filhos. Cinco deles eram meninas. Traguei para me desfazer do nó que se havia situado em minha garganta. —Quanto tempo?
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—Dois anos. —Curran tinha um semblante sério—. Mataram a um licántropo que passou por ali a metade do primeiro ano e Derek encontrou o Código em seu corpo. Isso e a inanição lhe mantiveram cordato. —Como acabou tudo? —como sempre. O menino começou a competir pelas fêmeas e o pai tentou matá-lo. Derek dispõe de uma boa forma de besta e pode mantê-la com firmeza.
A forma de besta é a forma do guerreiro, superior em todos os sentidos a animais e humanos. A maioria dos cambiaformas de primeira geração têm problemas com a forma de sua besta ao ser incapazes de mantê-la mais de uns quantos segundos. Melhoram com a prática, mas detrás anos de esforço e enganos. —Derek matou a seu pai? —E prendeu fogo à casa. —O que ocorreu com os outros meninos? —Morreram. Duas de fome, três pelas cuidados de papai e o último corno conseqüência do incêndio. Rebuscamos entre os escombros e enterramos os ossos. —E agora me entrega isso ?por que, Curran? Não posso me responsabilizar dele, nem sequer posso fazê-lo comigo mesma. Seu olhar continha o suficiente desprezo para me asfixiar nele. —Derek pode defender-se sozinho. Não tolerarei a mais mínima perda de controle. foi posto a prova e não perderá a cabeça quando cheirar o sangue. Em seu lugar, preocuparia-me mais por seu próprio traseiro. —Bom, não está em meu lugar. —Pu-me em pé. Hora de ir-se. Retornamos à habitação, onde Curran disse algo ao Mahony voltou a partir. Mahon se aproximou de mim. —Acompanharei-te à entrada. Derek se unirá a nós na porta. —Por favor, te assegure de que se dá uma boa ducha.—disse-lhe—. E que fique toneladas de colônia. Não quero que ninguém da Nação cheire a sangue ou a lobo nele. Manon me conduziu por outro caminho, através de um labirinto de passagens má iluminadas e túneis que não deixavam de ramificar-se, até chegar a uma porta de madeira. Manon apoiou uma mão nela e a abriu. —Curran queria que visse isto antes de ir —disse. Na habitação, sobre uma mesa metálica e sob um sino de vidro resguardada com feitiços protetores, jazia a cabeça do Sam Buchanan.
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Capitulo 5 Betsi não arrancava. Um homem—rato mecânico jogou uma olhada sob o capô, murmurou algo sobre o alternador e assinalou em direção aos estábulos. antes de partir, abri o porta-malas do Betsi, desenredei as cordas que sujeitavam o comprido cilindro de couro reluzente e o desdobrei: espadas e adagas asseguradas com presilhas de pele. As folhas cintilaram sob a luz da lua. — Latido —disse Derek. Homens e espadas. Meu pai estava acostumado a dizer que se colocava a um homem fisicamente capaz, por muito pacífico que este fora, em uma habitação com uma espada e um boneco de práticas e lhe deixava sozinho, cedo ou tarde agarraria a espada e tentaria golpear ao boneco. Era a natureza humana. Aquele jovem lobo não era muito distinto a outros. — Escolhe uma arma. — A que queira? — A que queira. Derek examinou a seleção ante ele com semblante pensativo. Pensei que se decidiria pela folha de grande tamanho, mas a ignorou e seus dedos se moveram para o Bor. Era uma boa espada, especialmente para os principiantes. Tinha uma folha de oitenta centímetros e um punho de madeira de fresno de uns vinte centímetros de comprimento. Possuía amparos metálicos, com os afiados extremos da guarnição apontando para baixo, e um pomo também metálico tremendamente útil. Como todas minhas armas, seu equilíbrio era extraordinário. Derek a sustentou em alto.
— É ligeira! –disse—. Uma vez fui a uma feira de espadas e todas as que provei eram muito pesadas. — Existe uma grande diferencia entre uma espada e um objeto com a aparência de uma — lhe disse—. O que viu na feira eram imitações mais ou menos decentes. São bonitas e pesadas, e lhe fazem mais lento que uma lesma de férias. Esta solo pesa novecentos gramas. Derek a fez oscilar dando uns talhos a modo de prova. — É uma espada ideal para trabalhar —pinjente—. Não se partirá nem te carregará o braço com molestas vibrações quando alcançar seu objetivo. — Eu gosto de —disse ele—. É tua. — Obrigado. Agarrei minha bolsa de trabalho e estivemos preparados para ir. Derek emitiu uns sons nasais em direção à bolsa.
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— Cheira a gasolina. — Correto —me limitei a lhe dizer. lhe explicar que levava uma grande lata de gasolina se por acaso sangrava copiosamente e tinha que eliminar o sangue rapidamente tivesse sido muito complicado. A Manada me emprestou uma égua chamada frau. O encarregado dos estábulos me assegurou que, em que pese a não ser o animal mais dócil que tinham, era uma arreios obediente, forte e robusta como o peñón de Gibraltar. Até aquele momento, não tinha motivos para duvidar de sua palavra. O cavalo capão do Derek aceitou sem maiores problemas que Frau encabeçasse a marcha. O menino cavalgava com a rigidez dos cavaleiros com uma experiência moderada que nunca se sentaram de tudo cômodos em companhia dos cavalos. Alguns troca—formas cavalgavam como centauros,
mas Derek não era um deles. Não tínhamos intercambiado palavra desde que deixamos atrás o complexo dos troca—formas, e disso já fazia uns cinqüenta minutos. Se tinha que trabalhar com ele, ao menos devíamos ser capazes de manter uma conversação. Reduzi o ritmo de minhas arreios e coloquei a sua altura. O repico dos cascos produzia um eco na rua deserta. — por que o braço? —perguntou Derek. Estava-me olhando a queimadura. O costume estipulava que devia colocar uma mão sobre as chamas. — Porque não me curo tão rápido como vós. Necessito a mão para sujeitar a espada. — Ah. foi uma pergunta estúpida. —Dirigiu o olhar para a cidade. Atlanta se estendia ante nós, aliviada por haver-se desfeito da magia mas também apreensiva, consciente de que o indulto tão solo duraria umas quantas horas. A lua brilhava sobre a malha do céu noturno, um rosto prateado depois de um véu de sombras. Seu delicado resplendor, um matagal de luz e escuridão, a ponto de desvanecer-se, sustentado unicamente pela brilhante luz do sistema de iluminação público. As luzes elétricas, como a luz do sol, não comprometem nada. Seu brilho não se mescla com as sombras, não há dualidade, nem a promessa de profundidades ocultas nem mistérios, simplesmente é luz. — Fixaste-te em como algumas costure funcionam durante a magia e outras não? —disse Derek. — Por exemplo? — Os telefones. Às vezes funcionam durante a quebra de onda mágica e outras não. Queria falar. Certamente tentava encontrar um território comum. Tivesse sido uma descortesia não lhe corresponder. — Existem um par de teorias a respeito. Segundo uma delas, a intensidade da magia determina o nível de colapso da tecnologia.
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— E a outra? Fiz uma careta.
— A magia é fluída. Não é um sistema estrito gravado em pedra. Cada um de nós a filtra através de seu organismo, e nossas percepções e pensamentos a transformam e a modificam. Sabe que a Batata é muito poderosa, verdade? — Sim. — Seu poder emana unicamente da fé de sua congregação. Milhares e milhares de pessoas acreditam em sua capacidade para curar aos doentes e isso lhe permite fazê-lo. Os carros, por exemplo. Como funcionam? Derek arqueou uma sobrancelha. — Não estou seguro. Têm um motor que queima gasolina e a converte em gás. O gás se expande e empurra algo, uma válvula, acredito, que faz girar as rodas. Algo assim. – Assenti. — De acordo, e como funciona o telefone? Olhou-me fixamente. — Mmmm, a voz faz vibrar um cabo? — Sim, mas como se passa do fato de marcar um número a te pôr em contato com a pessoa adequada? E se um pássaro se posa no cabo? Segue vibrando? —Derek se encolheu de ombros. — Não tenho nem idéia. — Eu tampouco. Quase ninguém sabe. A gente não se detém pensar em como funciona um telefone. Simplesmente funciona. Os carros são distintos. Requerem manutenção e se danificam mais freqüentemente que um telefone, e as reparações são muito mais caras, de modo que todo condutor se esforça por conhecer o funcionamento interno de seu carro, ao menos até certo ponto. — Para evitar que lhes temem —disse Derek. — Exato. Segundo esta teoria, há tanta gente que desconhece a mecânica interna dos telefones que, para eles, poderia considerar-se algo mágico. Acreditam cegamente que funcionará e funciona. Por outro lado, os carros são vistos como uma soma de partes mecânicas propensas a danificar-se, portanto, quando chega a magia, danificam-se. — É uma boa teoria —disse Derek. — Por desgraça, complica bastante meu trabalho.
A flutuação mágica se estendeu a nosso redor. As luzes elétricas se extinguiram e a cidade se sumiu em uma completa escuridão. Justo quando meus olhos começavam a adaptar-se à falta de luz, giramos uma esquina e fomos recebidos por uma fileira de abajures feéricas. Depois da seguinte esquina estava o Cassino. — Sabe aonde vamos? —perguntei-lhe. — À toca da Nação. Agitei a cabeça enquanto me despedia da última esperança de manter a neutralidade com o Derek a meu lado.
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— Quero te deixar um pouco muito claro. Independentemente do que ocorra, quero que não transforme a menos que não haja outra opção. Como te tomaste banho, não podem te cheirar. A menos que comece a tirar cabelo, não têm forma de saber que pertence à Manada e eu gostaria que as coisas seguissem assim. — por que? — Para começar, eu gostaria de manter em segredo o fato de estar colaborando com a Manada. Resultaria altamente inapropriado. — A Nação não se mostraria muito amigável se descobrisse que te acompanha um lobo. — Exato. —Ao Ted tampouco faria muita graça—. E em segundo lugar, assim que comece a briga, sentirá a necessidade de te alimentar e necessitará um lugar seguro para jogar uma cabeçada. Não sempre tenho à mão um lugar seguro. — Entendido. — Bem.
A cidade, apanhada na rede de luzes e sombras tecida pela gloriosa lua, estava silenciosa e deserta. Talvez o assombro do menino o mantivera em sua pele humano. Realmente esperava que assim fora. A Magia tinha um apetite seletivo. No referente aos edifícios, primeiro roía os arranha-céu, de cima abaixo, e depois se lançava sobre algo grande, complexa e moderna. O Banco da América Plaza foi o primeiro em cair, seguido pelo arranha-céu SunTrust. Também se desmoronaram o One Atlantic Genter, o Peachtree Plaza, inclusive o novo edifício da Coca Cola. O Georgia Dome caiu antes de que se dispersasse a poeirada proverbial, e o resto dos monumentos eretos em nome do domínio humano sobre a engenharia não demoraram para cometer seppuku ante a avalanche mágica. De modo que quando, um bom dia, o Georgia World Congress Center retumbou sobre seus alicerces, sacudido como um dente de leite a ponto de cair, e se desmoronou envolto em uma monumental nuvem de pó, os habitantes da cidade nem sequer piscaram. Poucos esperavam que a Nação adquirisse o solar. Ninguém esperava que retirassem os escombros e edificassem seu próprio Taj Mahal sobre as ruínas do antigo edifício em tão só cinco anos. E quando as portas ornamentadas do palácio mágico se abriram e o público contemplou as reluzentes fileiras de máquinas tragaperras, bom, a cidade que o tinha visto todo ficou muda de assombro. A comoção só durou até que alguém recordou que levava uns quantos dólares no bolso. Agora, o Cassino era uma das sete maravilhas de Atlanta que atraía a multidões dispostas a pagar o estúpido imposto. Por sorte para o Derek e para mim, era tarde incluso para os jogadores mais degenerados e não tivemos que brigar para abrir acontecer com través da corrente humana ao nos aproximar do modesto ninho da Nataraja.
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Embora tinha estado muitas vezes no Cassino, voltou a me agarrar despreparada. Como um etéreo castelo nascido de uma miragem nas instáveis areias de um deserto, o quartel geral da Nação se elevava por cima da cidade. De um branco semelhante ao alabastro durante o dia, de noite suas paredes brilhavam com tons dourados e índigos, iluminado com potentes abajures
elétricos ou feéricas. A Nação tinha feito algumas modificações. Oito esbeltos minaretes, em lugar dos quatro do original, flanqueavam a parte central, abovedada, do edifício. Uns muros muito altos rodeavam o complexo. Sobre estes, levantavam-se com regularidade uns sólidos torreões de vigilância equipados com lança-foguetes e armamento mágico. Sérios guardas e algum que outro vampiro patrulhavam os ásperos parapeitos. Todo o lugar fulgurava com magia nigromántica. Abrimo-nos passo entre as estátuas de latão de estranhos deuses assentadas sobre as águas de fontes alargadas e retangulares. Embora reconheci uns quantos, a mitologia hindu nunca foi um de meus fortes. A estátua de maior tamanho estava situada em uma fonte circular justo à entrada. Uma figura estranha, imortalizada no torvelinho de uma dança selvagem, balançava-se com um pé sobre um feio demônio. Dois pares de braços lhe sobressaíam dos ombros. Uma mão sustentava uma tocha, outra esmurrava um tambor, com a terceira se destacava o pé em alto e a quarta oferecia uma bênção. Um bailarino cósmico pisoteando a ignorância do mundo, seu corpo em chamas, seu rosto sereno. Shiva no papel da Nataraja, o Senhor da Dança. Quando me detive frente a ela, Derek estudou a estátua e franziu o cenho em direção ao castelo. — ficou o nome de um deus? — Sim. Naquela época fazia falta ter guelra para apropriar do nome de uma deidade. O proprietário do Cassino não ia curto precisamente de guelra, mas se realmente aspirava a converter-se na Shiva, ficava um bom trecho por percorrer. Nataraja era o senhor local da Nação, quem se considerava uma classe nova de humano ou uma realmente antiga, dependendo de com quem falava. Como a Ordem, dispunham de propriedades em todo o país, mas, ao contrário que esta, pareciam mais interessados na acumulação do capital necessário para aprofundar nos «mistérios da vida e a morte», citando a expressão que aparecia em seus folhetos. Dominavam uma grande variedade de campos, tão tecnológicos como mágicos; a maioria demonstravam uma predileção pela nigromancia e a necronavegación: a alteração, o estudo e a proteção da morte. A Nação era uma organização muito poderosa. E altamente perigosa.
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Tinham convertido a nigromancia em toda uma arte, demonstrando um alto nível de profissionalismo em tudo o que faziam, algo que admirava profundamente. Embora aquilo não impedia que lhes aborrecesse. O Cassino estava aberto ao público general. Atamos nossos cavalos no corrimão exterior e entramos no edifício. A porta estava custodiada por dois sentinelas idênticos com casacos escuros sobre uma cota de malhas e uma cimitarra na mão. As cimitarras tinham um aspecto desgastado, que se consegue detrás as polir repetidamente detrás ter golpeado com elas um pouco muito duro. Entramos na sala principal. Odiava os cassinos. O chamariz do dinheiro fácil tira reluzir o pior de cada um. O ar cheirava a cobiça, decepção e desespero. Derek e eu passamos junto às máquinas tragaperras, as quais tinham sido adaptadas para que funcionassem manualmente. Afastados do mundo em sua concentração por alimentar às máquinas com mais moedas, os jogadores pareciam mortos viventes que executavam seus movimentos com a monotonia dos autômatos. Uma mulher ganhou e começou a saltar freneticamente frente à catarata de moedas que ameaçava transbordando o receptáculo da máquina. Seu rosto, iluminado pelo prazer, assemelhava-se ao de um guerreiro selvagem, quase louco. Passamos junto às mesas de cartas, giramos ao chegar a uma pequena porta de serviço, cruzamo-la e chegamos a uma salita da que partia uma escada. Dois guardas esbeltos, vestidos com o mesmo traje que os da entrada, flanqueavam a escada. Quase imediatamente, como se tivesse recebido uma indicação, uma mulher apareceu ante nós. Media algo mais de metro sessenta, uns quinze centímetros mais baixa que eu. Seu vestido cor esmeralda não deixava muito espaço à imaginação. Não era nem magra nem esbelta. Quando os escritores de romances tontos falam de «gloriosas curvas diminuindo gradualmente até um peito moderado» ou de «pele sedosa que reclamava ser explorada», estavam pensando nela. Seu corpo e o meus estavam a anos luz de distância. Não a invejava. Meu corpo
era o adequado para meu trabalho: forte, resistente e dotado de bons reflexos, o que me permitia matar coisas antes de que elas me matassem . Em troca, sim sentia inveja de seu cabelo. De uma cor avermelhada intensa, precipitava-se em cachos e saca-rolhas que produziam reflexos dourados até a altura de seus quadris. O semblante do Derek se transformou, adotando uma expressão lasciva de primeira categoria. Rowena lhe sorriu como se acabasse de lhe ler um poema. — Kate! Me alegro de verte. —Seu sorriso poderia ter posto em órbita uma lançadeira espacial. Unida a sua voz de contralto e a seu sutil acento polonês, aquele sorriso fazia que os homens perdessem os últimos retalhos de amor próprio.
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Olhei ao Derek. O assombro do menino não se dissolveu deixando um montoncito de fluido corporal, mas seu olhar não se separava do peito da Rowena. Evitando o contato visual. Boa estratégia. — Sinto o atraso. — Não passa nada. Por favor, me sigam. Seguimo-la escada acima até um comprido corredor. — estiveste aqui antes, verdade? —perguntou-me Derek, com a vista cravada no traseiro da Rowena, o qual se movia sob a brilhante seda verde a uns passos por diante de nós. — Wiggles —lhe disse. Em inglês, wiggle significa rebolar, serpentear. (N. do T.) Derek piscou várias vezes antes de compreender que não me referia ao traseiro da Rowena. — Wiggles?
— Quatro metros de comprimento, cabeça triangular, escamas cinzas e azuis... Compreendi que não entendia a que me referia. — É o mascote da Nataraja, uma serpente —lhe expliquei—. Faz umas semanas escapou e a encontrei a pedido do Grêmio. —Mencionar que tinha passado quatro dias inteiros acampada junto a um pântano, coberta de barro e esterco, sem poder me trocar de roupa tivesse arruinado completamente minha reputação. Um calafrio me percorreu todo o corpo e me arrepiou o pêlo da nuca. Ao dobrar uma esquina, vi o vampiro. Avançava pelo teto em direção oposta. Seus filamentosos músculos se esticavam sob uma pele tirante, certamente negra quando ainda vivia, mas agora de um tom violáceo. Rowena lhe olhou de soslaio e fez um gesto com a mão similar ao que a gente em épocas mais tecnológicas devia dedicar às câmaras de segurança. Senti o fluxo mágico pessoal que acompanhava a seu gesto. Me revolveu o estômago e tubo que tragar saliva enquanto me esforçava por conter o vômito. O morto vivente ficou imóvel de um modo muito pouco natural. O impulso de acabar com ele era intolerável. A mão começou a me arder ante a necessidade de rodear o punho de Assassina, a qual descansava em sua vagem a minhas costas. Olhei aqueles olhos mortos e me perguntei o que se sentiria ao afundar a espada em um deles, ao sacudir o cérebro que o dominava. Tivesse preferido matar ao homem que o pilotava. O vampiro trocou de posição e ficou em movimento repentinamente. — por aqui, por favor —disse Rowena nos dando de presente outro sorriso cativante. E não tivemos mais remedeio que segui-la enquanto o vampiro desaparecia por uma das esquinas do corredor.
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O corredor terminava em uma colossal porta abovedada. abriu-se assim que nos aproximamos dela, dividindo-se pela metade. Ao outro lado se estendia a
sala pentagonal do trono da Nataraja como um sonho de haxixe sustraído da mente de um antigo rapsoda das mil e uma noites. Elegantes estatua banhadas com a luz de abajures mágicas e com o tênue resplendor que produziam os reflexos do trono dourado da Nataraja. O chão de azulejos italianos estava talher com almofadas de veludo, e muito valiosos peças de arte se esforçavam por acrescentar um pouco de refinamento a um conjunto escandalosamente opulento. Nataraja se reclinou sobre seu trono, como um sultão de lenda. O muito casulo vestia completamente de branco, como sempre, e calculei que toda sua vestimenta devia custar mais do que eu ganhava em seis meses. Privilégios de sultão. O trono parecia de ouro. Provavelmente o era, mas minha mente se negava a aceitar que uma concentração tal de riqueza se esbanjasse em sustentar o traseiro de alguém. Com a forma de um ovo apoiado no extremo mais largo e talhado pela metade, o trono media mais de metro oitenta de alto. Estilizados animais exóticos, considerados míticos tempo atrás e hoje em dia simplesmente perigoso, cobriam toda a superfície do ovo, tanto no interior como no exterior, e as gemas preciosas que faziam as vezes de olhos reluziam à luz dos numerosos abajures. Nataraja ocupava seu trono, médio sentado, médio inclinado com um cotovelo apoiado em uma fofo almofada branca. Não era fácil determinar sua idade. Julgando unicamente suas facções, devia ter pouco mais de quarenta anos, embora naquele tempo as impressões visuais já não tinham a menor importância. Parecia velho, muito mais que eu. Duzentos anos, talvez trezentos, ou possivelmente mais. Uns anos atrás houvesse dito que aquela longevidade era impossível, já que fazia cem anos a tecnologia fluía sem interrupção, mas meus anos como mere me tinham ensinado a ser muito precavida com as palavras «nunca» e «impossível». Nataraja me olhou, ligeiramente divertido por minha presença em seus domínios. Magro e de pele cítrica, irradiava poder como alguns homens irradiam força. Seu cabelo, negro azeviche e penteado para trás, emoldurava um rosto anguloso de frente limpa e larga, maçãs do rosto proeminentes e queixo magro, oculta sob uma barba cuidadosamente recortada. Seus olhos, muito escuros e penetrantes, possuíam um grande magnetismo. Quando te observava fixamente, tinha a sensação de que podia ver em seu interior, descobrir seus pensamentos ocultos e as idéias mais secretas e apropriar-se delas. Aquele olhar fazia quase impossível que pudesse lhe mentir. Eu ainda o conseguia. Wiggles vaiou quando avancei pela sala em direção ao trono.
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Cravou-me seus olhos vazios e receosos e olisqueó o ar, sua larga língua vibrando através da brecha de sua boca sem lábios. Eu também me alegro de voltar a verte, carinho. Recorda minha vara de descargas? Rowena se aproximou de grandes pernadas à serpente e apoiou brandamente uma mão sobre sua cabeça triangular. Wiggles pesava quase noventa quilogramas, de modo que a gente não podia levantá-la do chão, e supunha que os homens não eram mais que quentes árvores andantes. Wiggles, não obstante, era uma criatura nascida da magia e da manipulação genetica. Embora, segundo os padrões dos mamíferos, seguia sendo bastante estúpida, sabia que uma mão em sua cabeça significava dor se se movia, de modo que se recolheu formando largas e lânguidas espirais aos pés da Rowena. A voz da Nataraja soou como o sussurro de escamas sobre a áspera pedra. — Kate. — Nate. Fez uma careta. — Não estou de humor para que me faltem o respeito. — Não sente saudades. É um pouco tarde para alguém de sua idade. Não pensaste ainda na aposentadoria? —Eu sei que o fará e você sabe que o fará. Acabemos com isto. me ponha a prova, filho de puta, para que possa lutar outra vez contigo e depois falaremos. Seu poder me golpeou, pressionando, me empurrando contra o chão. Seus olhos se converteram em duas fossas profundas que tentavam me dominar, todo-poderosos, me arrastar a seus recônditos e insondáveis domínios, me prometendo escravidão e dor. Apertei os dentes e o contive, tentando proteger também ao Derek. Nataraja empurrou com mais força, seu poder transbordando-se como uma avalanche que distorcesse o mundo, esmagando-o tudo salvo sua vontade e a minha,
uma bloqueando à outra. Uma dolorosa sacudida me percorreu todo o corpo. Seu rosto se crispou e se mordeu os lábios. — Tranqüilo, tranqüilo —pinjente com os dentes apertados. — As mudanças de temperamento não são um sintoma de senilidade? —ouvi como dizia Derek muito longe de ali. A terrível pressão decaiu momentaneamente e aproveitei a oportunidade para aglutinar toda minha magia, convocando todas minhas reservas. Golpeia ao menino, Nate. lhe golpeie para que possa te matar. A pressão cedeu abruptamente e retrocedi através de um larguísimo túnel negro até o mundo real. Nataraja se tinha retirado ao captar o perigo. Maldita seja. Olhei ao Derek. Estava muito pálido e tinha as mãos crispadas formando um punho. Nataraja retornou a seu papel de hóspede encantador.
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— Vejo que trouxeste para um mascote –disse—. Fala como você. —Um dia, prometia a expressão de seu rosto, um dia solucionaremos isto. — Os maus costumes são contagiosos—. Quando quiser. Um sussurro anunciou a chegada de alguém mais. Ghastek apareceu pelas portas abovedadas levando uma mala e vestido com umas calças cáqui e um pulôver negro de pescoço alto. Resultava tão absurdo comparado com a vulgaridade geral da sala do trono da Nataraja que estive a ponto de soltar uma gargalhada. Ghastek me saudou com uma inclinação de cabeça e se situou junto ao trono de seu senhor. Ambos eram de compleição pequena, embora Nate era esbelto enquanto que Ghastek era mas bem esquálido. Com uma dieta de filetes e muitas horas no ginásio conseguiria certa esbeltez e vigorosidad, mas duvidava
muito que alguma vez tivesse visto um peso, não digamos já levantá-la. estava ficando calvo, e a linha de cabelo em retirada lhe estava limpando a frente. Tinha um rosto vulgar; o único remarcável nele eram seus olhos escuros, os quais revelavam sua inteligência e essa sutil distancia típica das pessoas que passam muito tempo imersas em seus próprios pensamentos. — Ahh, Ghastek —disse Nataraja, como se saudasse seu mascote preferido—. Estávamos falando da nova pulverização do Kate. Deve ser seu... — Aprendiz —concedi. — Aprendiz. —Nataraja saboreou a palavra, saboreando-a—. Que modesta. Tendo em conta sua idade, resulta do mais apropriado, embora lhe falta um pouco de estilo. — Sinto te decepcionar, mas nossa relação é estritamente profissional. A risada da Nataraja poluiu o ar. — É obvio —disse, como se lhe seguisse a corrente a um menino—. Que pouco considerado por minha parte. —Sorri. — Pois sim. Uma vez ficou estabelecido seu péssimo gosto, quer aproveitar a oportunidade de conversar comigo em tanto representante da Ordem ou prefere que vá por onde vim? — De repente solo pensa em negócios. De acordo. —Nataraja se inclinou no trono—. Estou descontente com o curso que está tomando sua investigação. Ensinei-lhe os dentes. — Surpreende-me, já que não devo responder ante ti. Não disse nada, de modo que continuei falando: — Trabalho para a Ordem e, a última vez que o comprovei, a Ordem não informou ao Roland. Era surpreendente comprovar o efeito que produzia aquele nome. Os dois homens ficaram tensos, como se tivessem recebido uma descarga de alta tensão.
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— Como podem ver, cavalheiros, tenho acesso à base de dados da Ordem. — O que era uma mentira flagrante, embora eles não tinham modo se soubesse. O nome do Roland havia cortocircuitado sua lógica. Se chegassem a descobrir como averigüei o nome de sua líder, ambos sofreriam uma apoplexia repentina. — Isto é o que sei e, por favor, me corrijam se me equivocar. Um vampiro do Ghastek estava seguindo ao Greg Feldman. Foi assassinado repentinamente e não pudestes extrair uma imagem do assassino da mente do oficial que o pilotava. Não têm feito nenhum esforço por revelar esta informação à Ordem, o que é compreensível dado que teria tido que explicar por que seu vampiro estava seguindo ao cavalheiro—místico. O que não entendo é por que lhes tomastes tantas moléstias por um simples vampiro. produziu-se um comprido silencio, depois do qual, Nataraja fez um movimento brusco com a boneca para lhe indicar ao Ghastek que podia falar. Continuando, apartou a cabeça para um lado, como se tivesse perdido todo o interesse na conversação. Rowena seguia em calma, com a mão sobre a cabeça da serpente. Perguntei-me o que aconteceria sua cabeça. — Não é o único vampiro que perdemos —disse Ghastek. — Têm provas? Ghastek abriu uma mala e extraiu um montão de fotografias. Deixa— vu. Avançou para me entregar isso Derek se interpôs entre nós, agarrou as fotografias sem dizer uma palavra de sua mão e me passou isso. Observei a imagem em branco e negro do corpo de um vampiro. O chupasangre parecia um novelo, seu enxuto corpo horrivelmente destroçado. Um sangue espesso e escuro manchava sua pálida pele. O vampiro estava completamente banhado nela, como se alguém se molhou as mãos com seu sangue e lhe tivesse esfregado toda a superfície de seu tirante pele, como se recubre de azeite um frango antes de colocá-lo no forno. Tinham-lhe partido limpamente o crânio imberbe e, onde antes devia estar o cérebro, agora solo ficava uma úmida concavidade. A segunda fotografia. O mesmo vampiro, nesta ocasião de costas, o que permitia ver com mais claridade o comprido talho que lhe separava o torso, dos
genitálias até o peito. As amareladas costelas ressaltavam contra a negrume das malhas corporais. Alguém tinha utilizado uma faca muita afiada para seccionar a cartilagem de várias costelas do lado esquerdo, as separando do esterno. O corte indicava que não tinham sido serradas a não ser fatiadas com um único movimento de uma força sobre-humana. Devia ter girado ao vampiro sobre um de seus flancos para permitir que a massa fibrosa de seus atrofiados intestinos aflorasse ao exterior. Não havia nem rastro de graxa, de modo que o assassino não teve que incomodar-se em cortá-la.
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O mesmo ocorria com a bexiga e o cólon; os dois órgãos se atrofiaram durante as primeiras semanas posteriores a sua transformação, assim tampouco tinha tido que preocupar-se daquilo. O corte no diafragma era limpo. Tinha-o feito para extrair os restos do intestino e acessar ao esôfago. Devia ter arrancado o diafragma e introduzir uma mão por ele até a cavidade torácica para poder agarrar o esôfago e cortá-lo. Então simplesmente atirou do esôfago e o extraiu pelo orifício, arrastando com ele os inúteis pulmões empapados de sangue e o protuberante coração. Não era a primeira vez que via algo assim. Era o modo em que está acostumado a estripasse aos cervos. — levou-se o cérebro, o coração, os pulmões, o que ficava do fígado e os rins, mas descartou os intestinos —disse Ghastek. Arqueei uma sobrancelha ao não ver os intestinos por nenhum lado e Ghastek murmurou: — A seguinte fotografia. Ao examiná-la, vi a úmida e desagradável massa de vísceras em um atoleiro de sangue. Ao não utilizá-los, encolheram-se até adquirir o aspecto do cânhamo seco.
— Uma habilidade extraordinária —disse Ghastek com frieza—. Os cortes estão feitos quase com precisão cirúrgica. O assassino tem um conhecimento excelente da fisiologia vampírica. — Alguma possibilidade de que tenha sido alguém de dentro? Ghastek me olhou como se lhe tivesse acusado de devorar a meninos pequenos. — Não somos estúpidos —disse, embora o que em realidade queria dizer era Não sou estúpido—. Todos nossos membros com esse tipo de destrezas estão controlados. — Além deste e o que apareceu junto ao Greg, quantos mais perdestes? — perguntei-lhe — Quatro. — Quatro? Quatro vampiros? Ghastek se moveu incômodo, como se acabasse de provar algo amargo e viscoso. — Não estamos muito satisfeitos com a situação. — E as outras fotografias? — Não temos nenhuma. Os corpos desapareceram e ainda não pudemos recuperá-los. — O que quer dizer com que desapareceram? — Algo lhes matou instantaneamente, cortando o enlace entre suas mentes e quão navegadores os pilotavam. levaram-se os corpos da cena antes de que nossa equipe de campo pudesse recuperá-los. —Fez aparecer uma folha de papel com um texto datilografado—. Esta é a lista dos lugares, datas e horas. Derek agarrou a lista de sua mão e me entregou isso. Joguei-lhe uma olhada e a guardei em um bolso.
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Seis vampiros e sete troca—formas. Alguém estava tentando iniciar uma guerra entre a Manada e a Nação e no momento, estava fazendo um trabalho excelente. Quem se beneficiaria daquilo? — perdestes a seis vampiros e só dispõem de dois corpos. Estão seguros que os outros quatro não estão ativos? —A idéia de quatro vampiros sem piloto perambulando pela cidade me pôs os cabelos de ponta. — Hão falecido, Kate! —Nataraja saiu de seu ensimismamiento com um alarido—. por que não lhe pergunta a Curran e a seu mascote lympago o que têm feito com nossa propriedade? Lympago era um término inadequado para referir-se ao Corwin, mas Nate parecia tão satisfeito de ter dado com ela que lhe permiti recrear-se em sua própria ignorância. — falei com a Manada –disse—. E tive a oportunidade de eliminar ao Corwin da lista de suspeitos. — Não é suficiente para mim —disse Nataraja. — Pois terá que sê-lo. —Toda aquela esgrima verbal começava a me aborrecer—. Seu exploratório—m não coincidia. — Examinei o exploratório—m da cena do crime —disse Ghastek voltando para a vida como um tubarão que cheira o sangue na água—. Não havia rastro de magia salvo a de nosso vampiro e a do místico. Mierda. Eu e meu bocaza. Teria que me pendurar um letreiro enorme com a frase: «Informação Confidencial Grátis!» Ao menos a gente saberia de antemão com quem estava tratando. — Não deveu examinar o exploratório—m correto. que vi eu tinha o nítido e poderoso registro do assassino. Quase pude ver o formidável cérebro do Ghastek em funcionamento atrás de seus olhos.
— m?
Importaria-te
nos facilitar
uma
cópia
desse
outro
exploratório—
— Importaria-te me dizer por que demônios seu vampiro seguia ao Feldman? — Talvez queria simplesmente ter controlado ao místico —disse Nataraja. Fingi que refletia sobre aquilo. — Não. Não me trago isso. Manter a um vampiro ativo é muito caro para um seguimento rotineiro. — A conversação concluiu —disse Nataraja. — foi um prazer —disse. — Ghastek, acompanha a representante da Ordem fora de nosso território. — Nataraja fez uma careta—. Não quereríamos que sofresse um percalço. Não me poderia perdoar isso nunca. Ghastek me olhou de um modo estranho e saiu da sala conosco, deixando atrás a Rowena e a Nataraja.
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Assim que estive segura de que Nate não podia nos ouvir, detive-me. — Não é necessário que me acompanhe. — Mas o farei de todos os modos. — Nesse caso, tenho uma pergunta. Ghastek me olhou atentamente. — Se queria poluir a um animal vivo com magia nigromántica, o que teria que fazer? — Por poluir te refere A...?
Não havia modo de responder a aquela pergunta sem mostrar minhas cartas. Era muito estúpida para aquele trabalho. — Uma quantidade suficiente de magia nigromántica para produzir um registro de poder combinado. — De que cor? Fiz um esforço para não fazer chiar os dentes. — Laranja pálido. Ghastek refletiu um instante. — Bom, a resposta óbvia seria alimentar ao animal em questão com carne imbuída de nigromancia. Se um rato se abarrotou da carne de um vampiro, a magia nigromántica se alojaria em seu estômago. Parte dela passaria a seu sistema sangüíneo. Mas, embora óbvia, a resposta é errônea. escaneei a animais que se alimentaram com carne não—morta e o registro de poder só mostrava um arco nigromántico. — A magia da carne não—morta anulou a magia do animal? Ghastek assentiu. — Sim. Para conseguir um registro de poder combinado, a influência da magia nigromántica teria que ser muito sutil. Em teoria, e só em teoria, seria necessária a reprodução. — Não o entendo. — Se me pedir isso educadamente, pode que lhe explique —disse isso Ghastek. — Poderia ser tão amável de me explicar isso por favor? É muito importante e lhe agradeceria isso enormemente. Ghastek se permitiu um sorriso. Tocou seus lábios e desapareceu em um suspiro, como se não fora mais que um espasmo muscular. Sorri lhe mostrando os dentes. — É muito mais agradável quando te comporta como um ser humano —disse Ghastek. Meu sorriso não tinha conseguido lhe pôr nervoso—. Sua fanfarronice é divertida, mas um pouco cansada. Suspirei.
— Sou uma mere. Caminho como uma mere, falo como uma mere, atuo como uma mere. — Então admite ser um estereótipo andante?
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— É mais seguro —pinjente honestamente. Por um instante pensei que compreendia o significado profundo de minhas palavras. Então disse: — Estávamos falando de ratos? — Sim. E lhe pedi isso amavelmente. — Em teoria, se agarrássemos a um rato fêmea e a alimentássemos com carne não— morta, enquanto lhe permitimos aparearse e ter crias, e depois repetíssemos o processo com estas, em algum ponto do processo os descendentes do rato original poderiam apresentar rasgos permanentes de magia nigromántica, o que produziria os registros de poder combinados. Um pouco parecido à laranja pálido no exploratório—M. — Obrigado. — Não, graças a tí. —Ghastek sorriu. A água da fonte de shiva era refrescante. Molhei-me a cara com ela e resisti a tentação de me tombar no encantador chão de cimento. A pequena prova da Nataraja havia tornado a minar minhas reservas, mas novamente tinha conseguido evitar fazer uma demonstração de meu poder, como ele sempre tentava provocar. Sentei-me no bordo da fonte. — Estou cansada. Sinto-me suja e necessito uma ducha. Que tal está você? Derek se agarrou ao bordo e inundou a cabeça na água. Quando voltou a endireitar-se, sacudiu a cabeça, lançando gotitas de seu cabelo úmido, e se lavou as janelas do nariz como faziam os troca formas quando queriam desfazer-se de um aroma intenso.
— Esse lugar empresta a morte —disse. — Sim. Sabe que não é muito inteligente provocar a Nataraja? — Olhe quem fala. — Ele espera que o faça. Mesmo assim, foi muito divertido. O que te parece Rowena? — Não quer sabê-lo —disse ele. — Tem razão. Provavelmente não. me resulta inquietante. — Porque é mais bonita que você? Fiz uma careta. — Derek, jamais diga a uma mulher que alguém é mais bonita que ela. Será sua inimizade para toda a eternidade. — Você é mais divertida que ela. E mais forte. — OH, obrigado. Por favor, continua reforçando o fato de que ela é mais atrativa. Se te ocorre dizer que tenho mais personalidade, descobrirá até que ponto sou mais forte que ela. Derek sorriu abertamente. Dirigimo-nos até onde estavam nossos cavalos.
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—Tome cuidado enquanto nos afastamos —lhe disse. Olhou-me com semblante desconcertado.
— Sou o que deve te proteger. Tome cuidado você. Agitei a cabeça. Por fim dispunha de meu cavalheiro da brilhante armadura. Uma lástima que fora um homem—lobo adolescente. — Crie que a Nação tentará algo? — A Nação não. —Ralenticé o passado—. A Manada e a Nação perderam mais ou menos ao mesmo número de seus membros e os assassinatos tiveram lugar na fronteira entre ambos territórios. A sucessão de acontecimentos parece cuidadosamente organizada. — Pela Nataraja? — Por alguém que se beneficiaria de uma guerra entre a Manada e a Nação. — Como Nataraja? — Pode te esquecer um segundo da Nataraja? —disse-lhe com o cenho franzido—. Nate é, por cima de tudo, um homem de negócios. Sim, adoraria reduzir o poder da Manada. Em um conflito direto, o mais provável é que a Nação saísse vitoriosa, mas a deixaria tão debilitada que o arroto de um bebê provocaria seu desmoronamento. Agora mesmo a guerra não lhes sairia grátis, por isso nos convidaram ao Cassino. em que pese a toda sua fanfarronice, estão preocupados. Não só perderam a seis vampiros, que são custosos de substituir; também intuem a presença de algo ameaçador. por que crie que Ghastek acompanha a casa? — Que ameaça? —Derek se encolheu de ombros. Tinha esquecido quão agradável era comentar uma teoria com alguém. — Conhece a expressão «fazer um Gilbert»? Sabe qual é sua origem? — Não. — Faz uns nove anos, um Senhor dos Mortos solitário chamado Gilbert Caillard tentou fazer-se com o controle da Nação apanhando a Nataraja em um anel de escravidão sexual. O que é duplamente irônico, porque duvido que essa serpente tenha praticado sexo alguma vez, e muito menos promovê-lo. Em resumo, o raciocínio do Gilbert era que se a Nação se sentia desonrada e prendiam a Nataraja, ele poderia apresentar-se como a solução e assumir o controle. Era extremamente poderoso e esteve a ponto de consegui-lo. — Crie que retornou?
— Não, Gilbert está morto. Nataraja lhe matou e fez queimar sua cabeça. Ainda leva suas cinzas em um saquito pendurado ao pescoço. Mas o que está ocorrendo se parece bastante a um Gilbert. Não cabe dúvida de que o plano é brilhante: Iniciar uma guerra entre a Manada e a Nação e aparecer de repente para tomar o controle de mãos de um Nate debilitado e moribundo.
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— Eu gosto disso de moribundo — disse Derek. — Um, membros da Manada despedaçados por animais com registros de nigromancia, provavelmente alimentados com carne não—morta. Dois, vampiros desaparecidos à mãos de alguém com conhecimentos avançados da anatomia vampírica. E três, Nate está assustado. Joga uma olhada às almenas. dobrou as patrulhas. Verá, a Nação cobiça o poder por cima de tudo. Não revistam fomentar este tipo de insurreições sangrentas, mas se o vencedor jura obediência ao Roland e faz as proclamações adequadas, o mais provável é que se saia com a sua. Acredito que temos entre mãos a um Senhor dos Mortos proscrito. —Não podia ser outra coisa. Era o único que tinha sentido. — Quem é Roland? —perguntou Derek súbitamente, penetrando em meus pensamentos. — Roland? É o líder legendário da Nação. Segundo certos rumores, está vivo desde a primeira vez que a magia desapareceu do mundo, faz uns quatro mil anos. diz-se que possui um poder extraordinário, quase divino. Alguns asseguram que é Merlin, outros que é Gilgamesh. Parece ser que tem seus próprios objetivos e utiliza à Nação para consegui-los, embora a grande maioria deles não o viram nunca. Não existe prova alguma que demonstre sua existência, e a gente profana como você ou eu nem sequer deveria conhecer seu nome. — Existe realmente? — OH, é obvio. É real.
— Como soube dele? — É parte de meu trabalho. E confia em mim, menino maravilha, sei muito mais do que é recomendável. Conheço seus costumes. O que gosta de comer, o tipo de mulheres que gosta de levar-se a cama, os livros que lê. Sei tudo o que meu pai sabia sobre o Roland. Inclusive conheço seu autêntico nome. O fluxo de gente que se dirigia para o arco branco das portas tinha diminuído. Era cedo ou tarde, dependendo do ponto de vista de cada qual. As garras ossudas e frite do medo se cravaram em minhas costas. O pêlo da nuca e dos braços me arrepiou. Um vampiro. Muito perto. O cavalo do Derek relinchou, mas Frau permaneceu estóica. eu adorava aquela égua. Dava-me a volta lentamente e vi como o chupasangre descendia por um dos muros esbranquiçados do Cassino. Engatinhava de cabeça para abaixo, como uma lagartixa lhe imitem, suas garras amareladas cravando-se na argamassa. Seu pálido corpo, rígido por culpa dos músculos secos e fibrosos, transbordava nigromancia. O vampiro continuou baixando até que sua cabeça ficou ao mesmo nível que a minha e ergueu a cabeça. Em vida tinha sido uma mulher. A não—morte tinha endurecido suas facções, assemelhando-a a uma vítima de campo de concentração.
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A chupasangre me observou com olhos angustiados. Levantou uma mão e vi que nela levava um pequeno objeto. Abriu lentamente a boca e seu rosto se crispou ao tentar mudar completamente suas facções. — Acredito que isto é teu —disse a voz do Ghastek através da garganta do vampiro. Os dedos desta se abriram e o objeto caiu. Apanhei-o antes de que chegasse ao chão: minha adaga. Muito considerado. Inclusive se tinha tomado a moléstia de eliminar o sangue do chupasangre de sua folha.— me diga uma coisa, Kate —disse Ghastek—. por que pintas as adagas de negro?
— Para que não brilhem quando as lanço. — Ahh. Muito óbvio, agora que o penso. —A garganta do vampiro emprestava a morte. — Podemos ir ? — Por favor. — Aonde nos dirigimos? Sabia perfeitamente onde estava o apartamento do Greg. Certamente o vigiavam as vinte e quatro horas do dia. — me leve até o limite de seu território. A esquina do White e Maple será suficiente. —Recordei muito tarde que Greg tinha morrido nessa intercessão—. Isto não é necessário, sabe, verdade? — É-o. Se morrera detrás visitar o Cassino, teríamos que responder a muitas perguntas incômodas. Acariciei o pescoço do Frau, desatei as rédeas e montei nela. — Um cavalo —disse Ghastek com asco—. Deveria havê-lo imaginado. — Tem algo contra os cavalos? — Sou alérgico. Embora tampouco importa muito, dadas as circunstâncias. dedicava-se a pilotar vampiros mas um bom cavalo o fazia espirrar. — Vê por diante —lhe disse. O vampiro ficou em movimento, correndo em posição vertical mas com passos torpes e lentos. Os chupasangres não estão acostumados a correr pelo chão. Requer coordenação e respirar corretamente, e para alguém que não precisa respirar, a mecânica se converte em um pouco pouco natural. Apertei brandamente o flanco do Frau e a égua começou a avançar até estabilizar-se em um trote ligeiro. Derek, montado em seu cavalo castrado, seguia-me de perto. Tinha a sensação de que se o chupasangre se colocava à distância adequada, Frau tentaria averiguar o que se sente ao pisotear a um.
Ghastek fez avançar ao vampiro até a seguinte rua e então decidiu subi-lo a terreno elevado. Engatinhou pela fachada do edifício e saltou sobre o seguinte, desafiando a lei da gravidade.
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Seu corpo gasto se escorreu pela terceira fila de janelas, sujeitando-se com as garras o tempo suficiente para agarrar impulso; silencioso, indetectable, um novo tipo de horror. Derek e eu nos mantivemos nas ruas menos transitadas, evitando as artérias principais. Um cavaleiro passou a nosso lado montado em um cavalo branco como a neve, elegante e de olhar inteligente, uma arreios entre um milhão. O cavaleiro vestia uma cara jaqueta de pele com o pescoço de cabelo de lobo. Olhou-nos atentamente e seguiu adiante enquanto se recolocaba a mola de suspensão que levava às costas. Girei a cabeça para observar as costas do homem esperando ver nela um pôster que proclamasse Sou rico, por favor, me roubem. Não vi nenhum. Supus que o homem pensaria que com o cavalo havia mais que suficiente. Frente a nós, um grupo de meninos estavam reunidos ao redor do fogo que queimava no interior de uma lata metálica. As chamas alaranjadas lambiam os borde da lata, iluminando de amarelo seus imundos e resolvidos rostos. Um moço esquelético embainhado em uma suja sudadera e com várias plumas pendurando do desajeitado cabelo recitava algo com grande dramatismo e lançou ao fogo o que me pareceu um rato morto. Hoje em dia todo mundo era bruxo. Os meninos me observaram quando passei por seu lado. Um deles me amaldiçoou com entusiasmo, tentando obter uma reação por minha parte. Rime brandamente e continuei adiante. Se realmente tínhamos entre mãos a um Senhor de quão mortos atuava por sua conta, não tinha a menor ideia de como dar com ele. Talvez se tivesse uma grande jaula sobre um poste e atasse a um dos vampiros do Ghastek a este...
Chegamos ao Rufus e nos dirigimos ao norte, para a rua White. O nome tinha sua origem na nevada do 14, quando o feio asfalto das ruas ficou talher por dez centímetros de neve. Dez centímetros de neve não era algo muito incomum em Atlanta, embora aquilo teve lugar em maio e a neve não se derreteu os meses seguintes em que pese a que a temperatura alcançou os trinta e sete graus. Finalmente, descongelou-se três anos e meio depois, durante um veranico de São Martín. Quando cheguei à esquina, detive-me. Retorcida-a figura do vampiro do Ghastek estava pendurada de uma luz, enrolado a ela como uma serpente no ramo de uma árvore. Olhou-me com uns olhos vermelhos que cintilavam sutilmente, revelando o influxo da magia. Ghastek estava concentrando-se para mantê-la ativa. — Problemas? —perguntei em voz baixa. — Uma interferência. —A voz do Ghastek soou como se o ar tivesse passado Á través de uns dentes apertados. Alguém tentava obstaculizar o controle sobre seu vampiro.
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Desenvainé a Assassina e a apoiei no pescoço do Frau. O metal fumegava e uma magra capa de umidade fazia brilhar a folha. Podia estar reagindo ante o vampiro do Ghastek ou ante outra coisa. detrás de mim o cavalo do Derek relinchou fracamente. — Não desça do cavalo —lhe disse. Enquanto Derek permanecesse sobre a cadeira, continuaria atuando como um humano. Desmontei e atei a égua a uma cerca metálica. O vampiro do Ghastek
se desenroscou da luz e se deslizou silenciosamente até o chão. Avançou com passos inseguros até a intercessão. — Ghastek, aonde vai? Um carro atirado por dois cavalos apareceu pela rua a trote ligeiro. Os cavalos intuíram a presença do vampiro e se encabritaram, inclinando o carro para um lado mas não o suficiente para fazê-lo derrubar. A roda esquerda golpeou ao vampiro com um som de ossos quebrados e o lançou a uns quantos metros de distância. O condutor cuspiu um conjuro e fez estalar as rédeas, forçando aos cavalos a um galope frenético, e desapareceu pelo outro extremo da rua em um abrir e fechar de olhos. O vampiro ficou tendido no chão em uma postura lamentável e pouco natural. Perfeito. Empunhando a Assassina, dirigi-me para a rua. — Ghastek? —chamei-lhe em voz baixa. Dava voltas a seu redor com a espada em mão. Uma careta desagradável lhe crispou o rosto. O pé esquerdo se moveu com um espasmo. — Ghastek? Um fraco vaiou chamou minha atenção. Dava-me a volta. Nada. Uma gota diminuta de luminescência líquido escorregou pela folha de minha espada e caiu sobre o asfalto. Uma rajada geada de terror me golpeou com a força de um maço. Girei rapidamente sobre mim mesma, me deixando levar pelo instinto, e notei como a espada mordia carne justo quando uma figura grotesca se precipitava sobre mim das alturas. A criatura se retorceu no ar para afastar-se da folha e aterrissou no chão brandamente, de flanco. O cavalo do Derek relinchou e se internou na noite, levando-lhe com ele. Retrocedi para o corpo inerte do vampiro do Ghastek. Aquela coisa me seguiu sobre as quatro patas. Era um vampiro, mas um tão velho que não conservava nenhum dos rasgos que tempo atrás lhe tinham permitido caminhar erguido. Os ossos da coluna vertebral e do quadril se alteraram de forma permanente para lhe permitir andar como um quadrúpede.
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A criatura avançou, esbelto e robusto como um galgo. Uma crista ossuda de uns sete centímetros coroava seu lombo, formada pelo crescimento excessivo das vértebras através de uma pele grosa como o couro. deteve-se, baixou a cabeça até o chão um instante e voltou a erguê-la, seus olhos vermelhos como rubis cravados em mim. Seu rosto tinha perdido completamente sua aparência humana. O crânio me sobressaía formando uma curva ossuda que se assemelhava a um corno para equilibrar umas enormes e desproporcionadas mandíbulas. A criatura não tinha nariz, nem sequer o rastro da ponte. Guando abriu a boca, tive a sensação de que a cabeça ia desconjuntar se pela metade. Várias filas de dentes reluziram na escuridão. Não só me cravaria isso e me rasgaria com eles, mas sim me trituraria. Os olhos da criatura se centraram em meus. As pupilas, semelhantes às de um mocho, fulguraram com um vermelho intenso. equilibrou-se sobre mim com rapidez sobre-humana. Apontei a seu pescoço e falhei. A espada se cravou até o punho em seu ombro. A coisa me levantou do chão e voltei a cair com um ruído surdo. A cabeça me ricocheteou no asfalto e perdi o mundo de vista momentaneamente. Senti como aumentava a pressão em meu peito e os pulmões começaram a reclamar sua dose de oxigênio. Pume em tensão e enviei uma sacudida de poder através da folha de Assassina. O punho se separou de minha mão e a pressão desapareceu. Aspirei uma baforada de ar e me pus em pé de um salto, com a faca arrojadizo na mão. A criatura se sacudiu a uns quatro metros de mim, aturdida e desconcertada. A magra folha de minha espada sobressaía por suas costas. Cinco centímetros mais abaixo e à direita e a tivesse parecido no coração. O ombro da criatura se sacudiu e se retorceu com um poderoso espasmo à medida que Assassina penetrava cada vez mais no músculo em busca do coração. A carne ao redor da folha adquiriu a textura da cera derretida.
A criatura girou a cabeça bruscamente para me olhar. Cinqüenta centímetros mais. Assassina demoraria uns três minutos em seccionar a carne. Devia sobreviver três minutos. Nenhum problema. Lancei a adaga. A ponta ricocheteou no osso justo por cima da órbita esquerda. Espetacular. A criatura saltou, percorrendo sem esforço aparente os quatro metros que nos separavam, e uma forma peluda colidiu contra ela em metade do salto. Rodaram pelo chão, o vampiro e o homem—lobo, a gente rugindo e o outro vaiando. Fui atrás deles. Por um instante Derek conseguiu imobilizar ao chupasangre lhe cravando as garras no estômago, mas o vampiro se desfez dele com um movimento brusco.
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Equilibrei-me sobre ele. Não esperava meu ataque, de modo que consegui lhe dar uma patada limpa no ombro. Foi como golpear uma coluna de mármore. Ouvi o rangido do osso e lhe lancei dois rápidos golpes na nuca. A criatura se arrastou para mim, me rasgando a roupa em um torvelinho de dentes e garras. Esquivei-o o melhor que pude. O monstro não emitia som algum. Uma de suas garras me alcançou e uma abrasadora chicotada de dor se estendeu por minhas costelas e estômago. Suas presas se fecharam a poucos centímetros de meu rosto. Endireitei-me, esperando que seus horríveis fauces me engoliram, mas o vampiro me deixou ir e retrocedeu. Um novo conjunto de braços começou a lhe crescer nas costas. Rodearam-lhe o corpo e vi o vampiro do Ghastek pendurado de seu pescoço. O chupasangre fez retroceder ao monstro com as unhas cravadas em seu formidável pescoço. A criatura arranhou os braços que lhe imobilizavam e se encabritou. Derek se agarrou a suas pernas traseiras. O vampiro esperneou, mas Derek se aferrou com força. Corri para ele e o propiné uma patada em seu destroçado peito. Os ossos cederam. A carne do vampiro se rasgou como uma
bolsa de água transbordante, vertendo sobre o asfalto uma corrente de líquidos nauseabundos. A criatura chiou pela primeira vez, um som lhe chiem e enfurecido. As veias sob sua pálida pele se incharam e seus olhos arderam com um vermelho intenso, iluminando seu rosto. Tinha sofrido muitos danos e estava a ponto de sucumbir à sede de sangue e romper o vínculo que unia a seu senhor. desfezse do vampiro do Ghastek como um terrier se desfaria de um rato. Derek continuou agarrado a suas pernas, ignorante do perigo. — Solta-o! —disse-lhe ao homem—lobo propinándole uma patada. Rugiu-me com fúria e voltei a chutá-lo. soltou-se e se aproximou de mim rugindo. Separei-o de em meio de um empurrão. A criatura continuou chiando enquanto seu corpo se contraía e se curvava e seus músculos formavam nós e se estiravam repentinamente. Umas puas ossudas lhe atravessaram os ombros, curvando-se desde seu esqueleto como chifres. Voltou a encabritar-se e começou a golpear o chão com as garras, deixando marcas no asfalto. Vi assassina através da brecha em seu peito. O vampiro se equilibrou sobre mim com uma velocidade assombrosa, impossível de deter. Ao colidir, agarrei o punho de Assassina e empurrei com toda a força que ainda ficava. Caímos sobre o asfalto e nos deslizamos até se chocar contra uma parede. Foi uma sorte que se interpor em nosso caminho. De outro modo, o mais provável é que tivéssemos seguido nos deslizando até o infinito. Fiquei imóvel. O sangue da criatura emanava de seu destroçado coração, me banhando com sua viscosidade. Uns círculos de luz bloqueavam minha visão.
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Paulatinamente, distingui dois olhos que brilhavam com um amarelo sutil sobre o ombro do vampiro. Pisquei e meus olhos enfocaram o peludo pesadelo em forma de rosto.
— Está bem? —disse Derek com voz rouca. Com um breve grunhido, Derek apartou o corpo da criatura e me ajudou a me pôr em pé. — Obrigado —pinjente. Derek estava sangrando. Tinha um comprido corte na perna direita e marcas dentadas de garras no ombro. deu-se conta de que estava examinando suas feridas e se deu a volta com um grunhido antes de que pudesse comprovar o estado de seu quadril. Também estava sangrando. Uma sensação abrasadora me percorreu a cintura e, ao me dobrar sobre o estômago, a dor aumentou. Apoiei um pé no corpo do vampiro e extraí a Assassina. Não opôs a menor resistência; a carne que rodeava a folha se liquidificou ao entrar em contato com sua magia. Coloquei-me em posição, fiz oscilar a espada e seccioné o pescoço da criatura. Deformada-a cabeça rodou sobre o asfalto. Ao recolhê-la, descobri que o fogo de seus olhos se havia a extinto. Pareciam vazios. Mortos. Empapada de sangue nauseabundo e dolorido, olhei para o lugar onde tinha deixado ao Frau. A égua seguia impertérrita. Não me podia acreditar isso. Aproximei-me dela, coxeando ligeiramente. Por alguma razão desconhecida, o mero feito de andar me resultava problemático. A meio caminho, troquei de direção e me encaminhei para onde jazia o vampiro do Ghastek. Estava tendido sobre seu estômago, com o rosto em minha direção. Inclinei a cabeça até me pôr a sua altura e lhe golpeei na frente com um dedo. — Suponho que isto equilibra as coisas. Que idade tem, Ghastek? Trezentos anos? Mais? O vampiro tentou dizer algo. Agitei a cabeça. — Não importa. Já o descobrirei. Obrigado pela ajuda. Pode lhe dizer a Nataraja que se meta sua segurança por onde lhe caiba. O vampiro moveu uma mão e me agarrou o tornozelo. Brandamente, separei-a de meu ensangüentado pé, passei por cima dele e me dirigi para o cavalo. Derek olhou ao chupasangre com malícia. — Deixa-o estar. Temos que nos largar daqui antes de que chegue a patrulha de limpeza da Nação. Acariciei ao Frau e coloquei a cabeça na alforja. A égua soprou, ofendida pelo horrível fedor.
— Sinto muito, carinho. Extraí uma grande bolsa impermeável do exército. — Gasolina —disse ao Derek como se não fosse capaz de captar o aroma.
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Orvalhei com gasolina ao feto, atirei a bolsa ao chão e tirei a caixa de fósforos com dedos trementes. Tentei acender um fósforo, dois; ao quarto intento a gasolina prendeu. O vampiro do Ghastek soltou um alarido enquanto seus indícios e meu sangue se convertiam em fumaça. Internei-me na noite montada sobre o Frau e meu leal lobo nos seguiu, coxeando. Ao chegar junto aos meninos que jogavam com ratos mortos, Derek se desabou. Caiu para diante, golpeando o asfalto com o focinho. Os meninos o olharam surpreendidos mas não se assustaram. O homem—lobo se convulsionou levemente e despediu uma neblina, deixando o corpo humano nu e feito um novelo no chão. Os meninos continuaram observando-o. O talho na coxa era mais profunda de que o tinha acreditado em um princípio. As garras da criatura haviam seccionado o grosso revestimento muscular do cuádriceps, penetrando profundamente na pantorrilha. Joguei uma olhada à ferida e vi que tinha a artéria femoral destroçada. A carne ao redor da ferida palpitava. Copos sangüíneos rasgados avançavam rapidamente entre os músculos que começavam a fundir-se. O Lic—V tinha obstruído sua consciência para dedicar toda a energia às reparações. A dor em meu abdômen se intensificou e começou a subir pelo peito. Apertando os dentes, pus ao Derek de barriga para baixo, passei um braço sob seu quadril e deslizei o outro por seu peito. Era mais pesado do que parecia, sessenta e cinco quilogramas, talvez setenta. Dava igual. — Senhora! —disse o menino com plumas no cabelo.
mantinham-se muito juntos. Devíamos ser todo um espetáculo: Derek, nu e repentinamente sem rastro de cabelo, e eu, empapada de sangue e com a espada ainda fumegando em sua vagem. — Necessita ajuda? —disse o menino. — Sim —disse com voz rouca. aproximou-se, agarrou ao Derek pelos pés e girou a cabeça — Mike. Mike cuspiu para um lado e tentou pôr Cara de valentão O menino das plumas lhe olhou fixamente. . — Mike! Mike voltou a cuspir para manter as aparências não ficava muita saliva, aproximou-se e agarrou ao Derek pelos ombros sem muita perícia. — Sujeita o pelas axilas — lhe disse. Olhou-me com medo refletido em seus olhos, apertou a mandíbula e me obedeceu. — A de três –murmurei—. Três.
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Atiramos dele. O mundo se cambaleou sob meus pés em um torvelinho de dor, mas conseguimos colocar ao Derek escarranchado sobre o Frau. Não lhe aconteceria nada. O Lic—V se encarregaria de lhe curar e amanhã pela manhã estaria como novo. Eu, por outro lado...
Uma úmida mancha de sangue se estava estendendo a uma velocidade alarmante sob minha jaqueta. Se o sangue começava a gotejar, meus problemas se multiplicariam. Ao menos seguia notando a dor. — Obrigado —disse aos meninos em um sussurro. — Meu nome é Rede —disse o menino das plumas. Coloquei uma mão no bolso da calça. Meus dedos localizaram o cartão. A dava ao menino depois de limpar o sangue que a cobria com a manga da jaqueta. Não era meu sangue, a não ser a do Derek. — Se por acaso alguma vez necessita ajuda —lhe disse. Aceitou-a com solenidade e assentiu. A escada estava completamente sumida na escuridão. Subi por ela, me assegurando de que a pressão constante do corpo do Derek estivesse bem distribuída sobre minhas costas. Se me inclinava ligeiramente à direita, a dor era suportável, de modo que subi ao Derek e a bolsa um degrau atrás de outro, tentando manter o ângulo adequado e tendo muito cuidado onde punha o pé. Não estava muito segura de se um homem—lobo sobreviveria a um pescoço quebrado, mas sabia que eu não. Detive-me no patamar para agarrar ar e joguei uma olhada à porta de meu apartamento. Havia um homem sentado em um degrau, com a cabeça apoiada na parede. Deixei com cuidado ao Derek no chão e joguei mão da espada. O peito do homem baixava e subia com um ritmo sutil e regular. Subi o lance de escada silenciosamente e com os dentes apertados até que pude lhe ver a cara. Crest. Não despertou. Dava-lhe uns golpecitos na cabeça com a folha da espada. Quando eu me acordado, faço-o súbita e silenciosamente, e minha mão sempre procura a espada incluso antes de abrir os olhos. Crest despertou como um homem que não está acostumado a viver perigosamente, com invejável lentidão. Piscou e reprimiu um bocejo enquanto tentava me enfocar. Dava-lhe um instante para que me reconhecesse. — Kate? — O que está fazendo aqui?
— vim a te recolher para ir jantar. —Tínhamos uma entrevista. Mierda. Tinha-o esquecido completamente. — estive encalacrado até as dez –continuou—. Te chamei mas não respondeu ao telefone. Embora já era um pouco tarde, pensei em me passar por aqui com a pipa da paz. —
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Sustentou em alto uma bolsa de papel cheia de caixas brancas decoradas com estilizados símbolos chineses em tinta vermelha—. Não estava em casa, assim decidi esperar um par de minutos, sentei-me na escada... —Seu cérebro finalmente registrou minha roupa manchada de sangue, a espada e os emplastros de betume de sangue seca que decoravam meu rosto. Abriu muito os olhos. — Está bem? — Viverei. Abri com a chave a porta de meu apartamento e retirei o conjuro protetor. — Há um homem nu no patamar —disse com a esperança de evitar perguntas a respeito. vou subir o e a colocá-lo no apartamento. Sem dizer uma palavra, Crest deixou a bolsa com a comida a China no corredor do apartamento e baixou as escadas para recolher ao Derek. Subirlhe juntos e o deixamos sobre o tapete do corredor. Fechei a porta ao mundo exterior e deixei escapar o ar. Tirei-me as sapatilhas e acendi o abajur. Havia-me as tornado a manchar de sangue. Bom, nada que um montão de lejía não pudesse solucionar. As diminutas chamas dos abajures feéricas banharam o apartamento com uma luz suave e confortável. Crest se ajoelhou para examinar a perna do Derek.
— Necessita atenção médica —disse. Sua voz estava pontuada pelo tom distante, breve e profissional que os bons médicos revistam utilizar sob pressão. — Não, não a necessita. Crest me olhou fixamente. — Kate, o corte é profundo e está sujo. E provavelmente a artéria esteja seccionada. Morrerá sangrado. Notei um ligeiro enjôo e me cambaleei. Precisava me sentar, mas os sofás e as cadeiras eram mais difíceis de limpar com lejía que o calçado. — Não está sangrando. Crest abriu a boca e voltou a examinar a ferida. — Mierda. — O Vírus Lico em ação —lhe disse antes de me dirigir à cozinha. Não encontrei gelo, e arranhar as paredes do congelador não me pareceu a melhor ideia naquele momento, de modo que deixei a bolsa na lança e me tirei a destroçada jaqueta com uma chicotada de dor. O Top estava completamente empapado de sangue. me tentei tirar isso mas estava pego à pele. Procurei umas tesouras no armário dos trastes, encontrei umas e tentei cortar os suspensórios. As tesouras ficaram incrustadas ao tecido empapado. Lancei uma maldição e Crest apareceu a meu lado, sua mão sobre as tesouras.
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— Se lembrança bem, você não tem o Lê—V —disse e a camiseta caiu ao chão em uma massa pesada e úmida.
Crest se agachou para examinar as marcas irregulares que tinham deixado as garras em meu estômago. — São muito graves? —perguntei-lhe. — Superficiais. Duas lacerações profundas, aqui e aqui. —Embora seu dedo roçou minha pele com suavidade, não pude evitar fazer uma careta. — Dói. — Me imagino. Quer que acompanhe a urgências? — Não. Há um estojo de primeiro socorros—r sobre a mesa do salão —disse. Com aquele tipo de magia, um estojo de primeiro socorros de regeneração era tão útil como um médico de conjuros. Custava um olho da cara, mas valia a pena. E sua magia curava virtualmente sem deixar cicatrizes. Crest me olhou. — Está segura? Poderíamos costurá-lo em pouco tempo. — Estou segura. partiu em busca do estojo de primeiro socorros—R. O problema com os tratamentos regenerativos era que, às vezes, como ocorria com todo o relacionado com a magia, voltavam-se contra um e acabavam consumindo a ferida em lugar de curá-la. Desfiz-me das calças, a roupa interior e o prendedor de caminho ao banho e me meti na ducha. A água se levou o sangue. Doía-me o estômago. Quando o sangue deixou de acumular-se a meus pés, apaguei o grifo e gritei ao Crest que entrasse. Fez-o, com o cilindro de papel marrom na mão. — Sabe como se aplica? —perguntei-lhe. — Sou doutor em medicina.
— Alguns doutores em medicina não querem saber nada dos tratamentos regenerativos. — Não me deixa muitas mais opções –disse—. Levanta os braços. Levei-me as mãos à cabeça e recitei o conjuro. Crest desatou a corda que mantinha unido o papel e o desenrolou. Continha uma vendagem e uma tira larga e larga, melada com um ungüento marrom e coberta com um papel
encerado. Crest retirou o papel e agarrou a cinta pelos extremos. Segui recitando. O ungüento obedeceu e começou a liquidificar-se. Um aroma intenso a noz moscada se estendeu pela habitação. Crest aplicou a cinta, pressionando-a contra meu estômago. Esta se aderiu a ele e uma fresca sensação relaxante se estendeu por meus músculos, transformando-se lentamente em uma sensação cálida que se difundiu por meu estômago e sufocou a dor. — Melhor —murmurei. Crest me enfaixou a cintura. Depois de um dia exaustivo de trabalho, aquele homem aparentemente normal percorria meia cidade só para ver-me. por que?
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O que se sentiria ao retornar a casa depois de um dia duro de trabalho e, em lugar de me lamber as feridas sozinhas em uma casa escura e vazia, encontrava a ele? Talvez sentado no sofá. Lendo um livro. Possivelmente o deixaria sobre a mesa e me diria: «Me alegro de que o tenha conseguido. Quer um café?» Sua mão roçou a tatuagem de meu ombro. — por que um corvo? — Em lembrança de meu pai. Seus dedos seguiram deslizando-se brandamente por minha pele. — A inscrição que há debaixo, está escrita em cirílico? — Sim. — O que põe? — Dar Vorona. Presente do Corvo. Sou o presente de meu pai. — Para quem?
— Essa, querido doutor, é outra história. — O corvo leva nas patas uma espada sangrenta —disse Crest, pensativo. — Não hei dito que fora um presente agradável. —Terminou de me enfaixar e o examinou atentamente. — Sabe que estas coisas são pouco confiáveis, verdade? —Sua voz se viu acentuada por uma nota de recriminação. —Funciona onze de cada doze vezes. Diria que isso é mais confiável que conseguir um orgasmo em uma entrevista às cegas e as mulheres seguem tentando-o. Crest piscou e riu fracamente. — Nunca sei o que vais dizer a seguir. — Eu tampouco. ficou em pé e me rodeou com os braços. Que agradável. Resisti o impulso de me recostar sobre ele. — Tem fome? — Muchísima —murmurei. — A comida deve estar fria. — Não me importa. Beijou-me no pescoço. O roce de seus lábios provocou uma cálida quebra de onda que se extinguiu na ponta dos dedos dos pés. Girei a cabeça e voltou a me beijar, esta vez nos lábios. Estava tão cansada... Desejava me fundir contra seu corpo e permitir que me abraçasse. — Está tentando te aproveitar de uma mulher ferida e nua. — Sei —me sussurrou no ouvido, me atraindo para ele—. É terrível. Por favor, não te solte. O que estou fazendo? De verdade estou tão desesperada? Respirei fundo e me separei dele com delicadeza.
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— Tenho que acabar o trabalho. Não acredito que você goste de vê-lo. — Deixa-o para depois —sussurrou e me beijou de novo. Em lugar de me desfazer dele, me acurruqué entre seus braços. Não havia nada que desejasse mais que aquilo, estar junto a ele, cheirar o aroma de sua pele, sentir seus lábios em meus... Mas então a cabeça do vampiro perderia o último rastro de magia e Derek e eu teríamos sangrado por nada. Pobre Derek. — Não —disse com uma careta no rosto—. Seria muito tarde. — Primeiro o trabalho, não? — Esta noite. Não sempre. — Ficarei vendo-o —disse ele. — Você não gostará, confia em mim. — É parte do que faz. Quero vê-lo. por que? Encolhi-me de ombros e fui ao dormitório a procurar um pouco de roupa. Crest não me seguiu. Dispus uma bandeja de prata sobre a mesa da cozinha. Apoiada sobre quatro patas, a bandeja ficava a uns sete centímetros da superfície da mesa. Greg tinha uma excelente seleção de ervas em seu apartamento. Depois das combinar na proporção exata, distribuí a mescla aromática sobre a bandeja até cobrir completamente o metal. Crest estava sentado em uma cadeira, em um rincão da cozinha, me observando. Afrouxei a corda da bolsa, extraí a cabeça e coloquei a monstruosidade sobre a mescla, equilibrando-a sobre o instável pescoço. — Que demônios é isso? — Um vampiro —disse. — Vi fotografias e não se parecem em nada a isso.
— Este é muito velho. Calculo que tem um par de séculos. A não—morte provoca certas transformações anatômicas. Algumas são imediatas e outras demoram mais tempo em desenvolver-se. quanto mais velho é o não—morto, mais evidentes som as transformações. Um vampiro nunca termina de evoluir. É um pesadelo em progresso. —Embora era algo que não deixava de me inquietar, já que faz duzentos anos, quando a tecnologia estava em pleno auge, os vampiros não teriam que ter existido. Nem minha educação nem minha experiência me ofereciam uma explicação plausível à existência daquela monstruosidade, de modo que o deixei a um lado para futuras elucubraciones. Fiz-me com um recipiente profundo de vidro, como o que se utiliza para assar a lasaña, situei-o frente à bandeja e ligeiramente por debaixo desta e verti nele duas quartas partes de glicerina. O líquido transparente e viscoso encheu o recipiente e se estabilizou.
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Desencapei uma de minhas adagas. Crest sorriu ao ver a folha negra. — Curioso. — Sim. Aquilo não ia ser agradável e tampouco era o tipo de magia ao que estava acostumada. Algo dentro de mim se rebelou, um pouco nascido dos ensinos de meu pai e de minha própria visão do mundo e do lugar que ocupava nele. A cabeça descansava sobre o leito de ervas. dentro de uma hora não serviria para nada. Cravei-me um dedo com a ponta da adaga. Uma gota de sangue brilhante brotou através da pele. O poder a fazia palpitar e deixei que caísse sobre as ervas. O poder do sangue as alagou, atuando como catalisador, fundindo, dando forma, moldando a força natural das novelo seca. E então se elevou através do coto do pescoço, estendendo-se pelos capilares do rosto, envolvendo o cérebro, saturando a carne morta. Eu o guiei, ajudei-o, até que a cabeça ao completo ficou alagada de magia. Toquei com o dedo a grosa pele
da frente do vampiro, deixando uma mancha de sangue e enviando uma pulsação de poder através da carne não—morta. — Acordada! Os olhos extintos se abriram de repente. A horrível boca se abriu e se fechou sem emitir som algum, contorsionándose com uma elasticidade impossível. Crest caiu da cadeira. O vampiro cravou seus imperturbáveis olhos em meus. — Onde está seu senhor? mostre-me isso A cabeça despediu magia negra, saturando a habitação com ela. inchou-se, feroz e cruelmente, como um animal selvagem preparado para atacar. No rincão, Crest deixou escapar o fôlego entrecortadamente. Um tremor sacudiu a cabeça. Os globos oculares se saíram de suas órbitas. A língua negra, larga e plaina, pendurou de entre os lábios de réptil e os afiados dentes a atravessaram sem verter nenhuma gota de sangue. Empalada nos dentes, a língua se ergueu obscenamente. Empurrei com todas minhas forças, impondo o peso de meu poder sobre a resistente nigromancia. — me mostre a seu senhor! Os olhos do vampiro se cobriram rapidamente de uma substância vermelha. Duas espessas correntes de sangue escuro começaram a emanar do que em outro tempo foram os condutos lacrimais. O sangue se abriu passo por suas bochechas e caiu sobre as ervas, mesclando-se com a corrente de sangue que brotava do pescoço seccionado. O pestilento sangue empapou as ervas e se precipitou sobre a glicerina, formando uma mancha irregular e irada sobre sua superfície.
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O sangue se obscureceu até adquirir uma tonalidade virtualmente negra, e nela distingui a imagem distorcida mas inconfundível de um arranha-céu com o logotipo circular da Coca Cola médio enterrado entre os escombros. O distrito do Unicórnio. Os ossos do crânio rangeram como a quebrasse de uma noz ao partir-se. A carne começou a separar do rosto, caindo sobre as ervas em largas tiras. A exposta massa gelatinosa do cérebro brilhou através do crânio fraturado. A cozinha se encheu de um fedor putrefato. Cobri a cabeça com uma bolsa de lixo e dava a volta à bandeja, enviando a cabeça e as ervas ao interior da bolsa. Atei-a e a deixei em um rincão. O sangue na glicerina se coagulou, convertendo-se em uma asquerosa massa pútrida. Esvaziei-o tudo na lança. Crest se esfregou a cara. — Avisei-te. Assentiu. Lavei-me as mãos e os braços até o cotovelo com sabão perfumado e me dirigi ao salão detrás me deter comprovar como estava Derek. Dormia como um bebê. Sentei-me no sofá, recostei-me e fechei os olhos. Aquele era o ponto onde a maioria dos homens corriam para ficar a coberto. Permaneci tombada, descansando. O apetite sexual tinha desaparecido, e naquele momento o desejo que havia sentido me pareceu irreal, etéreo como um sonho médio esquecido. Ouvi como Crest entrava no salão e se sentava a meu lado. — Assim que dedica a isto disse. — Sim. Permanecemos em silêncio uns segundos. — Posso viver com isso —disse ele. Abri os olhos e lhe olhei. Ele se encolheu de ombros. — Não quero voltar a vê-lo, mas posso viver com isso. —inclinou-se para diante, apoiando os ombros nos joelhos—. Alguma vez conheceste a alguém e há sentido...? Não sei como descrevê-lo... Há sentido que te escapava algo? Não sei...
Esquece-o. Sabia a que se referia. Estava descrevendo o momento em que te dá conta de que está sozinho. Durante um tempo pode estar sozinho e as coisas vão bem e nunca te detém pensar que poderia viver de outro modo e então conhece alguém e de repente se sente sozinha. É algo que te golpeia, quase como uma dor física, e se sente vazia e triste ao mesmo tempo; vazia porque desejas estar com essa pessoa e triste porque não pode suportar sua ausência.
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É um sentimento estranho, muito parecido ao desespero, um sentimento que te faz esperar junto ao telefone até que sabe que ainda falta uma hora para que te chame. Não estava disposta a perder meu equilíbrio. Ainda não. Aproximei-me dele e apoiei a cabeça em seu ombro. Ambos sabíamos que o sexo ficava descartado. — Importa-te se fico de todos os modos? —perguntou-me. — Não. Dormi recostada nele.
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Capitulo 6 Despertei porque alguém me estava observando. —Sabe que é de má educação olhar a alguém desse modo, menino maravilha? Derek olhou ao Crest com desdenho. O menino maravilha levava postos umas calças que não reconheci. Não tinham saído do armário do Greg, portanto, devia ter saído do apartamento. Exatamente aonde tinha ido? Durante a noite, tínhamos adotado uma posição aproximadamente reclinada e estava tendida sobre o peito do Crest. Incorporei-me. —Não te parece bem? Derek negou com a cabeça. —Não é meu assunto. —em que pese a tudo, não te cai bem, verdade? —Ele e você... —Fez um gesto com as mãos, os dedos estendidos mas sem chegar a tocar os da outra mão—. Não acabam de encaixar. —por que não? —Você é mais dura que ele. —E o que tem isso de mau? —supõe-se que o homem deve ser o mais forte dos dois. Para proteger. —Crie que necessito que alguém me proteja? —O tom ameaçador apareceu sem pretendê-lo. —Nunca te dirá que não —disse Derek. Olhei-lhe fixamente até que baixou o olhar. —Muito pouca gente me diz que não —lhe disse. —Sei. —Como está sua perna?
—Bem. —saíste enquanto dormia? —Se. A dar uma volta. —Possivelmente deveria dar outra. partiu sem dizer uma palavra e despertei ao Crest. —Hora de ir. esfregou-se a cara com a palma das mãos. —Fiquei-me dormido? —São seis e meia.
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—O tempo justo para chegar a casa e me trocar de roupa. Quando voltarei a verte? Pensei no logotipo da Coca Cola médio enterrado entre os escombros e no vampiro de duzentos anos. Talvez nunca. ~Que tal na sexta-feira? nos dê um par de dias para nos recuperar. —Então, até na sexta-feira. partiu. Não voltou a me beijar.
BISBILHOTEI NA vasilha de papel que continha o frango General Tso e toquei uma parte com a ponta do dedo. Estava a temperatura ambiente. Passou-me pela cabeça a idéia de vertê-lo em uma frigideira e levá-lo a uma temperatura
que o fizesse comestível, mas esquentá-lo ao fogo abrandaria as verduras e odiava profundamente a comida reaquecida. Meu pai, um crente convencido das propriedades nutricionais das verduras fervidas e do caldo de carne, estava acostumado a preparar extraordinárias sopas quentes. Frente a meus olhos passou a lembrança fugaz de seu rosto me olhando com angústia enquanto me entravam arcadas ao comer couve abrandada e cebola médio disolvida. Sorri à vasilha e agarrei um garfo da gaveta da cozinha. De todos os modos a comida quente estava sobrevalorada. Cravei uma parte de frango com a ponta do garfo, evitando cuidadosamente o grumo de pimiento verde. De repente, estava faminta. Alguém bateu na porta. Detive-me com o garfo a metade de caminho da boca e fiquei olhando a porta. Os golpes se repetiram. Não era Derek. Ele tivesse chamado mais brandamente, quase desculpando-se. Aquele bastardo chamava como se estivesse me fazendo um favor. Olhei o frango, levantei a vista de novo à porta, introduzi-me na boca uma parte grande de frango e decidi averiguar quem se atrevia a profanar meu tempo livre. A porta se abriu de repente e Curran apareceu na soleira. Levava postos uns velhos nos cubra e uma sudadera verde, e com a mão sujeitava uma bolsa de papel marrom. Levantou a cabeça e aspirou ar pelo nariz, como revestem fazer os cambiaformas. —Tso, delícias de fruto do mar e arroz frito —disse—. vais compartilhar o? Apoiei-me na parede. Embora a porta estava aberta, a barreira ainda lhe impedia o passo, me oferecendo um instante de prazer. —Ah, é você. —Introduzi o garfo no recipiente—. Pensei que era alguém importante Curran deu um passo adiante, roçando o conjuro. Uma chama carmesim fez vibrar a barreira mágica e o senhor dos cambiaformas se separou dela.
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—Um conjuro—disse ele. —E um muito bom. Apoiou a mão na barreira e empurrou. Uma luz vermelha brotou de seus dedos, estendendo-se pela barreira como as ondas que produz um calhau ao ser arrojado a um lago em calma. —Posso rompê-lo —disse Curran. Arqueei uma sobrancelha. —Adiante. Os cambiaformas dispõem de uma resistência natural às barreiras mágicas, de modo que sua promessa tinha certa credibilidade. Mesmo assim, tinha-me encarregado pessoalmente de reforçar todos os conjuros do Greg. Se Curran conseguia rompê-la, a ressonância do colapso me provocaria uma enxaqueca considerável, embora duvidava que o conseguisse. Era um bom conjuro. Batalhem o pensou um instante. Pude-o ver em seus olhos e, por um momento, pensei que o faria. Mas, finalmente, encolheu-se de ombros. —Posso rompê-lo ou podemos nos comportar civilizadamente e me deixar entrar. Cansado de demonstrações de poder, Sua Majestade? Retirei o conjuro. Uma quebra de onda chapeada se deslizou da parte superior da porta até dissipar-se no chão. —Entra. Avançou a grandes pernadas para a cozinha e se deteve metade de caminho com um gesto de repulsão no rosto. —Que demônios tem na despensa? Um vampiro morto? —Não. Solo a cabeça. —Tinha assegurado a bolsa com dois nós e, mesmo assim, ele podia cheiraria. Sentei-me no bordo da mesa e assinalei com a cabeça as vasilhas de cartão. —te sirva você mesmo. Há arroz frito por algum lado. Deixou a bolsa de papel no chão, agarrou um recipiente idêntico a outros, aceitou a colher que lhe ofereci e o abriu.
—Ervilhas —disse com cara de asco—. por que demônios têm que pôr sempre ervilhas? —me diga, o que te traz por aqui a estas horas? Utilizou a colher para extrair as ervilhas com esmero e atirá-los ao lixo. —ouvi que tem algo. —Menino maravilha se dedurou? —Sim. —Quando? Esta manhã? Curran assentiu. —É parte do juramento de sangue. Por exemplo, se acabasse com a perna feita mingau, sua obrigação seria nos alertar de que já não pode te proteger com todas suas habilidades. Alguém tinha que vir e avaliar a situação.
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—Desde quando esse «alguém» é você? Não tem a um montão de galos de briga dispostos a fazer o trabalho por ti? —Queria comprovar como estava o menino. —Ontem de noite tinha a perna como se a tivesse metido em um triturador. Não me deixou examinar-lhe mas acredito que o osso está intacto. —O corpo de um cambiaforma cura as feridas na carne em um par de dias. Os ossos demoravam um pouco mais. Curran tragou uma colherada de arroz. —Suponho que sim. É jovem. É importante te mostrar estóico quando é jovem. Não lhe jogou a bronca, verdade? —Não. Voltará coxeando dentro de pouco.
—vais mostrar me o que lhe destroçou a perna? —Quando acabar de comer. —Problemas de estômago? —Não. É um coñazo voltar a fechar a bolsa. Alguém golpeou a porta brandamente, com moderação, e nos interrompeu. fui abrir a porta e deixei entrar no Derek. Assim que viu Curran, deteve-se. Não ficou exatamente em posição de firmes, mas pouco lhe faltou. Curran lhe indicou com um gesto que se aproximasse e Derek apartou uma cadeira pelo caminho. Olhei a Curran. —Fica arroz? —pinjente. Escolheu outro recipiente e me passou isso. Abri-o e o empurre em direção ao Derek. —Come. Derek esperou. Devia estar faminto. A quantidade de calorias que consumia seu organismo para reparar-se a si mesmo assegurava que começasse a salivar com o simples feito de ver comida. —Derek, come —pinjente. Sorriu e continuou impertérrito. Algo não encaixava. Olhei a Curran e some dois mais dois. —Esta é minha casa. Ambos me olharam com a expressão paciente que os tradicionalistas japoneses adotam quando um estúpido gajin lhes pergunta por que se tomam tantas moléstias para tomar uma simples taça de chá. —Não comerá até que lhe diga que o faça ou até que eu tenha terminado — disse Curran—. Não importa na casa de quem estejamos.
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Deixei o frango sobre a mesa e me cruzei de braços. Poderia discutir com ele até acabar com o rosto arroxeado mas não teria servido de nada. Os lobos de fila inferior não se alimentavam ante a presença do Rei da Manada. Era parte do Código. Viviam segundo suas regras ou perdiam sua humanidade. Curran se levou outra colherada à boca e a mastigou com parcimônia. Derek não moveu nem um músculo. Senti um impulso quase insuportável de golpear a Curran. O Senhor das Bestas arranhou o fundo do recipiente, lambeu a colher, alargou um braço e agarrou o arroz do Derek, substituindo-o pela bolsa de papel marrom que havia trazido com ele. Derek olhou no interior da bolsa e extraiu um pacote envolto em papel encerado e pacote com uma corda. Desatou a corda e abriu o pacote: um chuletón de dois quilogramas. Curran ergueu a cabeça repentinamente em direção ao corredor. —Não faça um espetáculo. Derek ficou em pé, agarrou a carne e desapareceu nas profundidades do apartamento. Olhei a Curran. —Eu gosto do arroz frito —disse encolhendo-se de ombros. Deslizou a colher sob as presilhas de papel do outro recipiente de cartão, abriu-o e procedeu a retirar as ervilhas. Desde algum lugar do apartamento, chegou-nos o som gutural de um depredador alimentando-se. —Não faça tanto ruído —disse Curran sem levantar a voz. Os grunhidos cessaram. —O que tem? O resumi, terminando com a cabeça do vampiro. A carne não—morta se liquidificou durante a noite, convertendo-se em uma massa putrefata e negra. O fedor a decomposição era tão intenso que quando abri a segunda bolsa de lixo
tanto eu como o Senhor das Bestas tiveram que conter as náuseas de um modo muito pouco digno. Curran jogou uma olhada ao distorcido crânio e voltou a fechar a bolsa. —Teríamos que havê-lo feito antes de comer —comentou quando terminamos de assegurar a cabeça. —Sim. —Abri a janela e uma fresca rajada de vento entrou em a cozinha. —Pensa te ocupar de isto sozinha? Sem ninguém que lhe cubra as costas? —Sim.
—Informará à polícia?
Fiz uma careta. Tinha-lhe estado dando voltas a aquilo desde que despertei. Ir à polícia significava envolver à Divisão de Atividade Paranormal, e assim que a Divisão enviasse a preceptiva notificação a UDPE, os militares tentariam participar e comer-se eles sozinhos o bolo. A Divisão reclamaria sua jurisdição e todo o assunto se alargaria durante dias.
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Por então, meu amigável némesis poderia ter desaparecido ou, ainda pior, poderia haver-se feito com o controle da Nação. O fato de dispor de um montão
de hipóteses e de uma estranha cabeça não faria abandonar às autoridades a rivalidade entre departamentos e ir em minha ajuda. O Grêmio não me respaldaria. Não havia dinheiro de por meio, e se ia à Ordem com a história de um casulo que estava tentando iniciar uma guerra entre a Manada e a Nação pilotando a um vampiro de duzentos anos, Ted me separaria do caso antes de poder sequer pestanejar. Por outro lado, tentar enfrentar-se a um Senhor dos Mortos sem ajuda era um suicídio. Eu gostava do risco, mas nem tanto. Dava-me conta de que Curran me estava observando. —Não sei—lhe disse. —Posso resolver o problema por ti —disse ele. Estava-me oferecendo os recursos da Manada. Tivesse sido uma loucura rechaçar sua oferta. Arqueei uma sobrancelha. —por que? —Porque tenho a sessenta e três ratos que faz três dias enterraram a seu alfa. Após não deixaram que exigir sua vingança de sangue, e eu não pude fazer muito mais que estar sentado e me arranhar os ovos. —É um grande risco só para manter as aparências. Curran se encolheu de ombros. —O poder é pouco mais que aparência. Além disso, quem sabe? Uma vez nevou em maio, assim poderia ter razão. Deixei que a ceva se inundasse. —E se não? —Então, ao menos o terei tentado. Embora de um modo algo estranho, tinha sentido. —Quem virá? —uns quantos. —Jim? —Não. —Por o que?
—Porque alguém do Conselho deve ficar para manter unida à Manada se morrer. O lobo alfa está ferido, e Mahon ficou a última vez. O novo alfa dos ratos não tem suficiente experiência. —O que lhe ocorreu ao lobo alfa? —LEIGOS. —Leigos? —Soava a grego mas não recordava nenhuma criatura mitológica com aquele nome. Não era uma ilha?
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—Levava um montão de roupa ao porão e escorregou ao pisar em uma peça de LEIGO que seus filhos deixaram nas escadas. rompeu-se duas costelas e uma perna. Estará fora de jogo durante duas semanas. —Curran meneou a cabeça—. escolheu o pior momento. Se não lhe necessitasse, mataria-lhe.
CHEGUEI AO EDIFÍCIO da Coca Cola sem incidentes e me ocultei sob o nicho em sombras de uma cabine Telefónica abandonada, a meia cale do ruído arranha-céu. O logotipo estava parcialmente enterrado entre os restos do que devia ter sido um edifício magnífico para seu tempo; inclusive agora seu esqueleto ocupava toda a maçã. Solo tinham acontecido dez anos desde sua construção quando a quebra de onda, uma flutuação mágica especialmente poderosa, derrubou-o. Não via os cambiaformas por nenhum lado. Ao outro lado da rua, um edifício saqueado surgia do chão entre montanhas de cristais poeirentos que chegavam à altura da cintura. Um bom lugar para ocultar-se. Custou-me um minuto encontrar uma greta no muro esmiuçado. Passei através dele com dificuldade para encontrar um grupo de ferozes olhos me observando. Estavam preparados para a batalha. Línguas rosadas e negras lambiam fauces desencaixadas e dente protuberantes, e poderosas garras produziam sons
ásperos no chão de cimento. Oito pares de olhos rastreando em busca de uma presa, sedentos de sangue. O instinto primitivo por mim subconsciente uivou e gritou de terror. —Ah, é você —disse Curran em voz baixa—. Acreditava que era um elefante. —Não lhe faça caso —murmurou uma silhueta esbelta da esquerda—. Nasceu sendo grosseiro. —Uma fêmea lobo em forma intermédia. Aquilo raiava o descaramento. Ou era seu casal principal ou a alfa fêmea dos lobos. A minha esquerda, um lanzudo urso Kodiak se elevou sobre suas patas traseiras, uma montanha escura de cabelo e músculo, o focinho coberto de velhas cicatrizes. Mahon se tinha transformado completamente. A seu lado, também se levantou algo colossal de quase dois metros e meio de altura. Com um aspecto vagamente humanoide, apoiava-se em duas pernas peludas que mais pareciam duas colunas. Todo seu corpo estava esticado por uns músculos poderosos, e uma juba desgrenhada e cinzenta coroava sua cabeça e a nuca de seu poderoso pescoço. Umas largas estrias lhe cruzavam o peito, apagadas como as linhas cinzas na pelagem das panteras. Levantei o olhar para observar seu rosto e o poder acumulado em seus olhos dourados me cravou ao chão. O pêlo de minhas extremidades se arrepiou. Não podia me mover. Poderia me haver golpeado e eu não tivesse podido fazer nada por evitá-lo. Os titânicos músculos de seu pescoço sobressaíram quando moveu a cabeça para um lado e depois ao outro. As almofadinhas de seu lábio superior se separaram, revelando uns caninos de sete centímetros de comprimento.
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O monstro se lambeu os lábios, fazendo vibrar uns largos bigodes, e falou com um rugido gutural: —Sou formoso, verdade? Curran. Em forma intermédia. Apartei o olhar. —Adorável. O pesadelo assentiu de um modo quase imperceptível e um homem—rato se escabulló com agilidade sobre-humana, saltou e se agarrou ao muro nu. Continuou subindo até a greta situada a uns três metros do chão e se introduziu por ela. O explorador saía da toca. Curran se deu a volta e avançou para o muro, onde uma larga fissura percorria um dos flancos do ruído edifício. Uma garra peluda golpeou a desmoronada barreira e o muro estalou para o exterior, enchendo a rua de cimento e pó. O Rei das Bestas se agachou para passar pela abertura que ele mesmo tinha aberto e o resto lhe seguimos, a fila da um.
CURRAN SE DETEVE. A sua esquerda, o urso lhe imitou com um ruído surdo. A sua direita, Jennifer, a fêmea de lobo alfa, apoiou cuidadosamente uma garra nos entulhos e ficou imóvel. Permanecemos em silêncio, uma coleção de estrambóticas estátuas no pátio traseiro da Gorgona, esperando algo que eu não podia ver nem ouvir. O fedor a morte era insuportável. Estávamos em um vestíbulo, o chão de ladrilhos em outro tempo gentil agora um caos poeirento de sujeira e escombros. Enormes gretas enrugavam as sujas paredes, rematadas por escuras e irregulares brechas. A minha esquerda, uma ampla fissura se abria passo até o chão. Diante, o pó e o lixo sepultavam o que devia ter sido uma esplêndida escada. O novo edifício da Coca Cola apurava seus últimos suspiros.
Da esquerda me chegou o débil som de umas garras sobre a pedra. Uns olhos como brasas surgiram da escuridão de uma das gretas no muro de cimento e a silhueta peluda e lustrosa do homem—rato encheu o espaço e se deixou cair ao chão. Se os homens—lobo eram pesadelos andantes, os homens—rato eram diretamente repulsivos. Aquele, magro e desgrenhado, estava completamente talher de cabelo, salvo a cara, os antebraços e as musculosas pantorrilhas, onde a pele exposta tinha uma tonalidade rosa pálido e uma textura suave, cuasi humana. Tinha uns pés e umas mãos enormes, o resultado de uns dedos largos e nodosos rematados por umas afiadas unhas. O extremo do disforme focinho de roedor protegia uma boca repleta de irregulares dentes amarelados.
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movia-se a base de espasmos rápidos e entrecortados, e seus olhos humanos giravam sobre as órbitas para olhar em todas direções. O homem—rato percorreu a distância que lhe separava de Curran em rápidos saltitos, suas patas levantando pequenas nuvens de pó no chão do vestíbulo. —Abbajjo —disse, suas horríveis mandíbulas maltratando a palavra—. Grande sala. Entregou-lhe a Curran algo branco. O Senhor das Bestas tomou o objeto em seu enorme emano e o lançou em minha direção. Apanhei-o ao vôo. Um fêmur humano. Algo com dentes afiados e muita paciência tinha separado a cartilagem que selava seus extremos, deixando marcas profundas no haste. Dava-me a volta, tentando examiná-lo à escassa luz que se filtrava através das fissuras nas paredes e do instável arco da entrada. O osso estava recubierto em dois pontos por tecido conectivo suave e reluzente: a prova de que o Lê—V tinha tentado unir o osso depois de que este se quebrado. Tinha entre as mãos o osso de um cambiaforma. O homem—rato voltou a percorrer o vestíbulo em direção ao orifício no chão e o resto lhe seguimos. A brecha tinha uns três metros de comprimento por noventa centímetros de largura na zona mais ampla. Inclinei-me sobre o bordo
e joguei uma olhada ao interior. Havia uns dezoito metros até o piso inferior, sem nada que entorpecesse a queda. detrás de mim, o Urso emitiu um som gutural. Curran assentiu e o enorme Kodiak deu meia volta. Não cabia pelo orifício. um após o outro, todos os cambiaformas se internaram pela ranhura até que fiquei sozinha junto ao bordo. Sentei-me no chão sujo, balançando as pernas no buraco, baixei tudo o que pude para reduzir a distância e me deixei cair. A forte sacudida ao aterrissar sobre o chão de pedra ressonou em meus pés e se extinguiu. Não me esperava ninguém. Os cambiaformas se partiram. Muito amável por sua parte. Frente a mim, um comprido túnel, estreito e sumido na escuridão, oferecia um débil resplendor em seu extremo mais afastado. detrás de mim, os restos de um estacionamento subterrâneo se estendiam na distância. Dava-me a volta e me encaminhei com cautela e passo ligeiro para o túnel, sorteando os pedras brutas de cimento disseminados pelo chão. O túnel terminava em uma ampla habitação da que pouco pude distinguir porque diante de meu se interpunha uma parede de cabelo e costas musculosas. O quente resplendor procedia de uma série de tochas dispostas sobre cabos nas paredes. Ardiam com um fogo branco sem fumaça que devia ser de origem mágica. O teto era impossivelmente alto, e estava decorado com gesso moldado, formando desenhos ornamentais.
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Em algum tempo indeterminável, o estou acostumado a deveu ser de parqué. uma espécie de salão de banquetes. Uma mulher falou com uma voz gritã e ligeiramente metálica. —Bem-vindos ao final de sua viagem, mestiços. Aqui morrerão como o resto de sua espécie.
Mestiço? Uma expressão um tanto estranha para referir-se até cambiaforma. Coloquei-me junto à Jessica e pude ver o Senhor dos Mortos. Ou, melhor dizendo, à Senhora. Estava de pé em metade da habitação, reta e rígida como um mastro, embainhada em um vestido comprido e solto que começava sendo branco ao redor dos ombros, transmutando-se em azul à altura da cintura, obscurecendo-se até o violeta e terminando em vermelho sangue nos baixos. Levava o cabelo, comprido e de um negro reluzente, recolhido em uma elaborada trança e maço com um comprido corda fibrosa. Uma cascata de pequenos miçangas de plástico penduravam da corda. Fixei-me melhor. Provavelmente não eram de plástico. Não havia muita gente que fizesse miçangas de plástico em forma de dedos humanos. Não captei nenhum tipo de poder que emanasse dela. Nenhuma sombra, nenhum indício, nada. Salvo sua idade. Parecia mais velha que Nataraja. —Meu nome é Olathe —disse com a mesma gravidade que os deuses gregos deviam utilizar para apresentar-se ante esquecida e descartada, como uma roda usada. Nenhuma recompensa atrás de todos esses anos. Olathe retrocedeu. —tive seu corpo dentro do meu. provei sua carne e ele me entregou a bênção de seu poder. Tecnicamente, aquilo podia ser certo. Se tinham intercambiado os líquidos corporais, podia ter adquirido algum de seus poderes. —A bênção de seu poder —riu Curran, e o eco de seus grunhidos se dispersou pelas paredes—. Algum filho? Olathe permaneceu em silêncio. —Ah, espera —disse Curran—. O tinha esquecido. O Pai da Nação não se sente muito inclinado a engendrar filhos de seu mesmo sangue. Ou possivelmente pensava que não dispunha do poder necessário? Ela começou a rir. O som oco e grave ricocheteou nas paredes, dando a impressão de que chegava de todas partes ao mesmo tempo. —OH, não, mestiço. Precisamente disso não ando escassa. Suas defesas caíram. Percebi as sombras a suas costas, enfurecido-los e famintos vampiros, mais jovens que o exemplar que tinha decapitado mas igualmente formidáveis. A magia negra lhes envolvia como um manto putrefato, alimentando seu frenesi.
Olathe pronunciou uma só palavra discordante e os fantasmas detrás dela emergiram das sombras, emprestando a cadáver e famintos de sangue.
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Os cambiaformas se colocaram em formação de combate, me deixando no centro da habitação. O bate-papo de Curran nos tinha permitido avançar uns seis metros, e a carga dos vampiros se produziu a uma velocidade assombrosa. Atirei-me ao chão e o primeiro vampiro voou por cima de mim. Girei sobre mim mesma para me pôr de costas. Outro vampiro saltou sobre mim. Minha espada penetrou a carne de seu contraído estômago. Um sangue negro emanou a fervuras, molhando o chão a escassos centímetros de minha cabeça. O vampiro se equilibrou sobre Curran fazendo caso omisso da ferida. O Senhor das Bestas rugiu. Feliz caçada. Pu-me em pé de um salto e me lancei em direção ao Olathe, quem se deu a volta com uma afiado faca em uma mão. Com a folha curva se fez uma incisão no antebraço. O poder de seu sangue me golpeou e retrocedi, enjoada. Girou sobre si mesmo, seu cabelo ondeando, seus olhos selvagens e protuberantes. O sangue que emanava da ferida saiu projetada em todas direções, formando um amplo círculo no chão. As gotas carmesim prenderam e um muro de chamas vermelhas se elevou a seu redor, encerrando-a em um círculo mágico de amparo. Uma barreira de sangue. O único modo de atravessá-la era com o sangue de um familiar ou com uma magia entristecedora. Mierda. Um vampiro me golpeou pelo flanco. agarrou-se para mim e seus fauces tentaram fechar-se em minha carne enquanto nos deslizávamos pelo chão. Senti uma dor intensa no estômago. Outra vez não! A magia em meu interior começou a transbordar-se. Empunhei a Assassina com uma mão, fazendo caso omisso da queimadura, e a afundei ao vampiro em um de seus pálidos e mortos olhos. Assassina emitiu um vaiou, triunfante, e o vampiro se desabou no chão e começou a retorcer-se. Desfiz-me dele de uma patada. Outro monstro se equilibrou sobre mim. Dava um passo lateral, investi e lhe rasguei o pescoço com a ponta da espada. O vampiro se deu a volta e me cravou as unhas na pantorrilha. Golpeei-lhe com Assassina na garganta, seccionando as artérias e lhe fatiando os ossos do pescoço. A boca do vampiro se abriu completamente e dela emanou sangue. O propiné um chute na perna e o osso
se partiu com um rangido. O vampiro caiu sobre seu estômago, sacudindo-se. Liberei a espada e procurei o Olathe com o olhar. detrás de mim, o último suspiro da magia do vampiro se dissipou no ar.
Um terceiro chupasangre saltou sobre mim com sua horrível boca totalmente aberto. A folha de minha espada penetrou limpamente em seu peito, abrindo-se passo brandamente entre suas costelas até o protuberante saco do coração, e voltou a sair antes de que seu corpo tocasse o chão. Continuei avançando. A sala estava coberta de sangue. Os cambiaformas lutavam de dois em dois, com movimentos coordenados e precisão militar.
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Em uma esquina, dois corpos peludos estavam tendidos no chão, e Curran de pé, a seu lado, acossado por três chupasangres. Vi o Jennifer e a alguém com franjas similares às de um leopardo lutando costas contra costas, rodeados por quatro vampiros. Jennifer se agachou e golpeou ao primeiro, lhe rasgando com suas garras um flanco e tirando a superfície o fragmento sangrento de uma costela. Seu companheiro caiu sobre o chupasangre e lhe rasgou o pescoço. Mais vampiros se formaram redemoinhos a seu redor. Ninguém me dedicava a mais mínima atenção. Naquela batalha de monstros, era uma simples humana. Continuei me movendo. este parede começou a sacudir-se e uma nuvem de gesso se estendeu por meia sala, deixando o chão coberto de entulhos. Algo enorme arremeteu da brecha aberta na parede enquanto rugia como um tornado. Carregou com uma força terrível sobre o grupo de vampiros. O corpo de um vampiro voou pelos ares e foi a estelar se contra uma das paredes. O vampiro ficou em pé com um giro mais próprio de um réptil e voltou para a carga. Uma garra colossal o agarrou em metade do salto e lhe partiu a coluna vertebral como se fora um ramo seca. O Urso de Atlanta tinha chegado.
A barreira de sangue do Olathe trepidou a seu redor. A Senhora dos Mortos permanecia detrás do amparo, contemplando a matança que se desenvolvia ante seus olhos. O sangue que emanava de seu antebraço escorregava até seus dedos, e destes, jorrava sobre seu vestido. Olhou-me e sorriu. por que coño estava tão contente? Continuou rendo, seu rosto iluminado por um regozijo doentio. —Você gosta do sangue? —grunhi-lhe—. Te mostrarei o que pode fazer-se com ela. Fiz-me um corte com Assassina no braço e todos os chupasangres da sala se detiveram um instante. Reconheciam o sangue, sabiam o poder de quem fluía por minhas veias. ficaram imóveis, fascinados, rendendo tributo à magia, e então continuaram arremetendo contra suas vítimas. Introduzi meu braço ensangüentado no fogo carmesim. Abrasou-me e se solidificou, gretando-se como um pára-brisa destroçado. O sorriso desapareceu do rosto do Olathe. O fogo carmesim se fez pedaços e uma miríade de chamas diminutas caiu a meus pés. Saltei ao interior do círculo e arremeti contra ela. Olathe não fez nenhum movimento para evitar minha espada. Fatiou-lhe o estômago com um murmúrio úmido. Deslizei a folha para cima, lhe fatiando os intestinos, lhe rachando o fígado. Olathe se afundou mais profundamente na espada, e em seus olhos distingui a satisfação do reconhecimento. Ela também conhecia meu sangue. Liberei a folha e deixei que Olathe caísse para frente.
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desabou-se sobre o sujo chão e ficou de costas, dando baforadas curtas e roucas. Uma mancha escura cresceu em seu vestido por cima do umbigo e se estendeu por tudo o tecido. em que pese a possuir uma vitalidade antinatural, a magia que a sustentava não demoraria para desvanecer-se. Expulsava-a de seu corpo com cada uma de seus lastimeras baforadas.
Observei como crescia a mancha e minha ira foi desvanecendo-se. O cansaço se apoderou de mim. Doía-me a pantorrilha e sentia como se alguém me tivesse arrancado uma parte de estômago. O fogo de sangue havia tornado a ressurgir assim que penetrei no círculo. Arderia até que se secasse ou se decompor a última gota de sangue do Olathe. Ao outro lado da barreira translúcida de chamas cor rubi, o salão de banquetes reluzia com um vermelho intenso. Tudo estava a ponto de acabar. Joguei a cabeça para trás para liberar a tensão do pescoço e entendi o motivo do sorriso do Olathe. O teto transbordava de vampiros. Dezenas deles, nus, retorcidos, revolvendo-se obscenamente uns contra outros, apertados como sardinhas em uma lata. Cobriam de um extremo a outro todo o teto de gesso, como uma representação medieval do inferno que tivesse cobrado vida espontaneamente. E chegavam mais, arrastando-se de barriga para baixo de uma escura abertura em uma das esquinas. Quantos deviam ser? Quarenta? Cinqüenta? Cem? Quantos deles eram anteriores à Transformação, à Magia? Tentei chegar a eles com minha mente e uma quebra de onda de ódio cego me golpeou. Ao menos vinte. A manta de não—mortos se retorceu. Uma bonita surpresa que Olathe devia ter planejado jogar sobre quando nos acreditássemos perto da vitória. Embora agora não demoraria muito em morrer, liberando-os a todos de seu controle e abandonando-os a um frenesi de sangue. Uma horda de famintos chupasangres regidos unicamente pelo desejo depredador. Morreríamos todos. Curran, Mahon, Jennifer. Eu. E a morte se estenderia quando aquelas monstruosidades percorressem as ruas depois de ter acabado conosco. Ao outro extremo da habitação, Curran partiu pela metade a um vampiro e jogou no chão os fragmentos rasgados. Centenas de pessoas que agora dormiam tranqüilamente seriam aniquiladas, obrigadas a contemplar horrorizadas como estripavam a seus próprios filhos. Ajoelhei-me e afundei a Assassina no peito do Olathe. A carne e as cartilagens se separaram facilmente ante a folha e, continuando, separei-lhe a cavidade torácica como se se tratasse de uma armadilha para ursos. A Senhora dos Mortos emitiu um assobio.
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Introduzi um braço em seu peito e lhe aferrei o coração com uma mão, forjando um vínculo entre ambas. Através de seu sangue, percebi um torvelinho de mentes de vampiro, asfixiando-se em sua própria loucura. Este não é o modo correto, disse a voz de meu pai em minha cabeça. Não caia nisto. Não existe nenhum modo correto. Voltei a me rasgar o braço no mesmo sítio, fazendo mais profunda a ferida, e deixei que meu sangue se mesclasse com a do Olathe. Lentamente, comecei a me fazer com o controle. Olathe se sacudiu e arranhou o chão com as unhas. Se a deixava morrer, a horda de vampiros ficaria livre e se dispersaria antes de poder controlá-los com minha mente. Não dispunha do treinamento necessário para pilotar aos mortos viventes, de modo que minha única opção era combinar o poder de ambas através de um vínculo de sangue, controlando o momento de sua morte para que, quando esta chegasse e Olathe se separasse das mentes dos vampiros, estes me encontrassem detrás. Olathe compreendeu o que tentava fazer. Mostrou-me os dentes em um gesto felino, mas já não dispunha do poder necessário para opor resistência ao vínculo de sangue. A magia de meu sangue afligiu a sua. Meu poder se estendeu, alagando as mentes dos vampiros. Apertei os dentes e espremi seu coração, lhe esmagando o órgão e sua vida com ele. O poder estalou em minha mão e me obrigou a me pôr em pé. Olathe se ergueu. Seus olhos voltaram a assentar-se em suas órbitas e todo o peso da horda se assentou sobre mim. A habitação se sacudiu. Muitos. Havia muitos. Uma cinta abrasadora me rodeou o peito, envolveu-me a garganta, a cabeça, e aumentou a pressão, me espremendo. Tropecei. Falharam-me os joelhos. A boca me abriu com um espasmo. Não podia respirar. Faltava-me o ar. Pese ao vínculo de sangue, sabia que não podia controlá-los a todos. Através do martilleo de suas mentes, percebi a presença dos atrasados, aqueles que já estavam dominados pela sede de sangue. Enviei a horda contra eles. O teto se agitou com uma quebra de onda de corpos rasgando-se uns aos outros. Uma parte de gesso se rachou e caiu ao chão, pulverizando-se em uma nuvem de pó ao meio metro de mim. As chamas de sangue obstruíam todos os sons da
sala. Estendi os braços para manter o equilíbrio. Olhei através dos olhos dos vampiros e vi uma larga fissura no gesso. Obrigado, Deus. O teto se estremeceu com as dúzias de garras que o esmurravam. Distingui com dificuldade ao Jennifer ao outro lado da lhe titilem barreira de chamas. Meus lábios formaram uma palavra. —Vete. Olhou-me fixamente, incapaz de me ouvir através do muro de sangue.
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—Vete. Curran apareceu súbitamente a seu lado e disse algo ao Jennifer que não pude ouvir. —Vete. Agora. Vete. Curran colocou a mão no fogo e saltou para trás. A pelagem do braço se derreteu e a pele adquiriu a tonalidade rosada que anunciava futuras ampolas. Outro fragmento de teto se estrelou contra o chão fora do círculo. O som tampouco chegou até meus ouvidos, mas sim aos de Curran e Jennifer. Saltaram a um lado e levantaram o olhar. Jennifer se encolheu como um cão assustado. Curran me olhou fixamente. —Parte agora. Parte. Parte. Entendeu-me. Agarrou ao Jennifer pelo ombro com sua poderosa garra e atirou dela. A mulher—lobo duvidou um instante e começou a correr. Me nublou a vista. Os batimentos do coração do coração me retumbaram na cabeça como um enorme sino. Não me sentia o corpo, como se tivesse
deixado de existir. Cega e surda, permaneci no centro de um nada, me balançando, enquanto, por cima de mim, os não—mortos derrubavam o teto. abriram-se passo através do gesso e do cimento até o armação de aço das vigas que suportavam o peso dos cinco pisos superiores. Centenas de braços esqueléticos agarraram as vigas e atiraram delas com força sobrenatural. Deus, não fui muito boa. O metal protestou com um chiado estridente. Poderia havê-lo feito melhor. Poderia ter sido melhor pessoa. Apresento-me ante ti tal qual sou. Não posso me justificar. As vigas cederam e se curvaram. Por favor, tenha piedade de mim, Senhor. Com os olhos de minha mente, vi como as enormes vigas se partiam. Vi toneladas de gesso, cimento e metal derrubando-se sobre os vampiros, sobre mim, nos enterrando sob os escombros, selando uma tumba da que nem sequer um vampiro podia sair. Senti suas iradas e famintas mentes desvanecendo uma a uma. Finalmente, podia deixar ir. Soltei o terrível peso e a consciência me abandonou.
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Capitulo 7 Assassina jazia em sua capa sobre a mesita de noite, junto a esta, um homem lia um velho livro de bolso. Na capa, um homem com traje marrom chapéu sustentava a uma loira inconsciente embainhada um vestido branco. Tentei enfocar o título mas as letras brancas se voltaram imprecisas. O homem que lia o livro vestia a roupa azul típica de pessoal sanitário. Tinha talhado as calças à altura da pantorrilha e uns jeans desgastados apareciam sob o tecido azul. Torci o pescoço para poder jogar uma olhada a seus pés: pesadas botas de pele por cima dos jeans. Voltei a recostar a cabeça no travesseiro. Meu pai tinha razão: o céu existia e estava no sul. O homem baixou o livro e me olhou. De compleição e altura medeia, sua pele era escura, brilhante e com um brilho ébano, e seu cabelo negro, com um corte uso militar, começava a encanecer-se. Os olhos, que me observavam através de uns óculos de arreios magra, transmitiam a um tempo inteligência e senso de humor, como se o homem acabasse de ouvir uma piada picante e tentasse conter a risada. — Uma manhã maravilhosa, não crie? —disse com as inconfundíveis harmonias da costa da Georgia vibrando em sua voz. — Não deveria ser “verdade, tio”? —pinjente. Minha voz soou muito débil. — Só se for um idiota sem educação —disse o homem—. Ou se quer dar a impressão de ser um popular. E eu sou muito major para aparentar algo que não sou. aproximou-se até a cama e me rodeou a boneca com ambas as mãos. Seus lábios se moveram enquanto contava os batimentos do coração e depois seus dedos roçaram brandamente meu estômago. Senti uma pontada de dor. Estremeci-me e exalei um suspiro. — Em uma escala do um aos dez, que grau lhe daria à dor? — Sobre cinco. Pôs os olhos em branco.
— Deus, me ajude. Outro caso difícil. Marcou algo em um bloco de papel amarelo de aspecto oficial. Estávamos em uma pequena habitação de paredes cor nata e teto com painéis. Duas amplas janelas banhavam o chão com a luz do sol e um lençol de cor azul céu cobria minhas pernas. O homem guardou a caneta.
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— Bem, agora jovencita, quem quer que te dissesse que pode te aplicar uma vendagem—r e a seguir te lançar montanha abaixo para entrar em combate necessita um bom rapapolvo. Assim que algo mágico entra em contato com ele, volta-se louco e arremete contra um. — volta-se louco? —Esse pinjente é o término médico? — É obvio. Segue o dedo com os olhos, por favor. Não mova a cabeça. Moveu seu dedo indicador de um lado a outro e o segui com o olhar. — Muito bem —disse—. Agora conta para trás desde vinte e cinco. Fiz-o e ele assentiu, satisfeito. — Parece, e fixa lhe bem, solo parece, que te livraste pelos cabelos de uma comoção cerebral. — Quem é? — Pode me chamar Dr. Doolittle —disse—. viajei noite e dia, durante meses inteiros, até chegar ao lugar onde habitam as criaturas selvagens e agora sou seu médico
privado.
— Esse era Max. —A dor se enroscou em meu quadril e deixei escapar um grunhido—. Não o Dr. Doolittle. — Ah —disse ele—, é um prazer conhecer uma mente educada. Olhei-lhe um instante mas ele se limitou a sorrir com os olhos. — Onde estamos? — Nas instalações da Manada. — Como cheguei aqui? — Alguém te trouxe. Senti a necessidade de me esfregar a frente e descobri que uma via pendurava de meu braço. — Quem? — Ah, essa é fácil. Sua Majestade te tirou do edifício e Manon te carregou sobre suas costas e te trouxe até minha porta. — Como conseguiu Curran me tirar dali? — Por isso pude averiguar, atravessou uma espécie de fogo, agarrou-te em braços e voltou a sair. O que explica as queimaduras de terceiro grau. Curiosamente, você não tem nenhuma. Um quadril deslocado, diversas feridas graves no estômago, perda de sangue maciço, mas nenhuma queimadura. Como é possível? — Sou especial —pinjente. Curran tinha atravessado o fogo de sangue. Duas vezes. Para me tirar dali. Idiota. — Não me dirá isso. — Não —lhe disse.
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— Muito amável por sua parte. —Suspirou com falsa tristeza—. Assim que chegou aqui, passei-me quatro horas restaurando seu corpo, e a maior parte do tempo —me olhou fixamente— o dediquei a seu estômago. — Queimaduras de terceiro grau —disse. — Sim. Não ouviste uma palavra do que hei dito, verdade? — Ouvi-o tudo; quatro horas, estômago, quadril, perda de sangue. Não me terá feito uma transfusão, verdade? —Não era necessário recalcar como se comportaria a magia em meu sangue com plasma estranho. — Perdoa-a, Senhor. Crie que sou um amateur. —Rematou a palavra “amateur” com um
“tuá”.
— E as vendagens? —Negou com a cabeça. — Fiz um juramento de magia médica, senhorita, e ainda tem que chegar o dia que o incumpla. Encarreguei-me de incinerar pessoalmente suas malditas vendagens, a roupa e todo o resto. — Obrigado. — De nada. — Queimaduras de terceiro grau significa que se queimaram todas as capas da pele
—pinjente.
— Correto. —O Dr. Doolittle assentiu—. O aspecto é horrível mas a pior é a dor. — Em uma escala de um a dez? — Sobre onze. —Fechei os olhos.
— A nosso senhor saiu uma adorável crosta dourada por todo o corpo —disse o Dr. Doolittle em voz baixa.
Acredito que poderia conseguir facilmente um papel em um desses antigos filmes de terror. Embora suponho.
agora mesmo
está
bastante
confortável;
flutuando,
— Flutuando? — Prescrevi-lhe uma temporada no tanque. É uma espécie de aquário enorme, cheia de uma solução que desenvolvi pessoalmente quando era jovem. Se Sua Majestade fora uma pessoa normal, o único modo de restaurar sua epiderme teria sido mediante enxertos, mas como não é uma pessoa normal, passará uns quantos dias flutuando no tanque e sairá dele com uma pele nova. O ombro demorará mais. O que me recorda algo. —ficou em pé, aproximou-se da porta e tirou a cabeça por ela—. lhe Diga a Urso que nossa convidada está acordada. Voltou junto à cama e começou a pinçar entre os viales que havia sobre a mesa. — O ombro? —perguntei-lhe. — Suponho que um pequeno fragmento de teto teve a má fortuna de cair sobre ele. Esmagou-lhe a omoplata.— deu-se a volta com uma seringa de injeção na mão. — Não —disse com firmeza.
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— A tec chegou vinte minutos depois de que acabasse contigo –disse—. Tem dor e vou administrar te um calmante dos de toda a vida.
— Hei dito que não. — Só é Demerol. É muito suave. — Não. Eu não gosto do Demerol. Deixa-me atordoada. Não se contentava com que estivesse débil e no recinto da Manada, também queria brincar com minha cabeça. — Se te aproximar com essa agulha —disse, pondo em minha voz tanto mau leite como pude—, colocarei-lhe isso pelo culo. —ficou a rir. — Jennifer disse o mesmo quando tentei lhe costurar o traseiro. Por sorte, a ti não tenho que te fazer o mesmo. Mostrou-me a seringa de injeção; estava vazia. Pisquei e uma sensação relaxante me percorreu todo o corpo. Devia me haver injetado o maldito Demerol através da via. Casulo. Fechei os olhos. Estava enjoada e cansada. E ainda sentia a dor. Umas fortes pisadas ressonaram na habitação. Tinha uma visita e só havia um cambiaforma ao que não lhe importava mover-se como um assassino. Abri os olhos e vi o Manon assentir ao bom doutor e lhe dizer em sua voz profunda e suave: — Bom trabalho. Mahon se aproximou, agarrou uma cadeira e se sentou junto à cama, seus sólidos antebraços apoiados nas pernas. Suas imensas costas atirava do tecido negro de uma camiseta descomunal, mas embora ficava bastante estreita à altura dos ombros, sobrava-lhe um palmo na parte inferior. Os cambiaformas sentiam uma especial debilidade pelos moletons, e Mahon levava umas calças de moletom cinzas sem meias três-quartos. Seus pés peludos descansavam no estou acostumado a banhado pelo sol. Seus olhos marrons se cruzaram com meus. — A manada agradece seu sacrifício. — Não foi nenhum sacrifício. Estou viva. —E Curran está chamuscado como uma costela muito feita. Negou com a cabeça.
— A intenção é o que conta e lhe estamos agradecidos. Ganhaste-te a confiança e amizade da Manada. Pode nos visitar quando quiser. Pode pedir ajuda quando a necessitar, e faremos o que esteja em nossa mão para ajudar. Não é algo sem importância, Kate. Certamente, deveria haver dito algo formal e florido, mas o Demerol seguia emaranhando meus pensamentos. Dava-lhe uns tapinhas em seu enorme emano e murmurei: — Obrigado. Mahon me olhou com olhos afetuosos.
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— De nada.
NA SEXTA-FEIRA COMECEI a caminhar. Vestida com um conjunto de moletom e esportivas cinzas que ficava muito grande, ambos os objetos cortesia da Manada, alcancei o corredor a um ritmo lento mas seguro. Estava enjoada e tive que resistir a tentação de me inclinar para a direita, pois me teria golpeado a cabeça contra a parede. A bruxaria do Doolittle tinha adormecido a dor em meu estômago, convertendoo em uma moléstia surda que me roía por dentro cada vez que me inclinava na direção equivocada. Prometeu-me que não ficariam cicatrizes no abdômen e eu lhe tinha acreditado. A pantorrilha era outra história. O vampiro me tinha arrancado uma parte de carne, e face aos esforços do Doolittle, sua lembrança me acompanharia durante o resto de minha vida. O corredor se abria a uma ampla habitação do tamanho de um grande ginásio. Nela havia diversos artefatos colocados com esmero sobre um chão de pedra, alguns, produto da tecnologia, outros, da magia, e uns quantos mais, arrevesados híbridos de ambos.
Uma mulher enxuta, de estatura medeia e aproximadamente de minha mesma idade, estava sentada sobre um cama de armar quadrado e acolchoado junto à porta. O cama de armar parecia um enorme leito para cães. A mulher mascava uns biscoitinhos salgados. Provavelmente uma mulher—gato. passavam-se o dia comendo. A mulher me olhou através de uma cascata de diminutas e escuras tranças. Um miçanga de madeira assegurava cada uma elas. — Sim? —disse a mulher. Cordial. — Tenho uma entrevista —lhe disse. — E? —disse ela. Encolhi-me de ombros e passei por seu lado. Não me deteve. O tanque estava situado junto a uma das paredes, médio oculto por um bloco de pedra no que alguém tinha esboçado símbolos cabalísticos com giz. Os símbolos não pareciam ter nenhum sentido: uma veve disforme que deveria estar riscada em vermelho; dois símbolos egípcios, um que significava Nilo e outro Canopo, e algo que recordava vagamente ao símbolo japonês do dragão. Rodeei aquele espaço desperdiçado e me aproximei da tanque. Media uns dois metros e meio de alto e tinha forma cúbica. As paredes de vidro continham um líquido opaco e esverdeado, e, através deste, pude distinguir o tênue contorno de uma silhueta humana flutuando imóvel em seu interior.
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Dava uns golpecitos no vidro. O corpo se moveu e Curran saiu à superfície chapinhando. tirou-se a máscara de oxigênio da boca e se aferrou ao bordo com as mãos, o que fez que o resto de seu corpo ficasse pego ao cristal. Justo o que necessitava. Um viscoso Senhor das Bestas completamente nu e submerso em água estancada.
Sua nova pele era extremamente pálida. O agora denso cabelo de sua cabeça e pestanas logo que era mais comprido que uma barba de três dias. — Obrigado —pinjente, sem apartar a vista de seu rosto. — De nada. Sentia-me incômoda, e resisti a necessidade de trocar o peso de meu corpo de um pé ao outro. — Vou. — Quando? — Assim que acabe de falar contigo. — Doolittle te deu o alta? Recordei a imagem do amadurecido Doutor me observando com olhos irados. — Não lhe deixei muitas mais opções. — Se quer pode ficar. —Curran se secou a água que lhe escorregava do queixo. — Não, obrigado. Agradeço-lhe isso e todo isso, mas tenho que ir. — Sítios que visitar, gente que conhecer? — Algo assim. — Seguro que não quer te colocar no tanque comigo? A água está perfeita. Pisquei sem saber o que dizer. Curran riu; era evidente que estava desfrutando com a situação. — Ahh, não —consegui dizer. — Não sabe o que te perde. Estava flertando ou simplesmente pretendia me incomodar? Provavelmente, o último. Bom, o jogo era mais divertido se participavam dois. Baixei o olhar deliberadamente a sua cintura.
— Não, obrigado —pinjente—. Sei exatamente o que me estou perdendo. Curran fez uma careta. — vim para falar do Derek —disse. Curran conseguiu se encolher de ombros sem soltar do vidro. — Liberei-lhe que seu juramento de sangue. — Sei. Mas ele insiste em ficar a meu lado e eu não quero. Tentei lhe explicar que meu trabalho é perigoso e que está muito mal pago, e que permanecer a meu lado não será bom para sua saúde.
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— E o que disse ele? — “Sim, já, mas se liga muito?” Curran voltou a rir, inundou-se como um golfinho e voltou a emergir à superfície. — Falarei com ele. — Poderia fazê-lo agora? Insiste em me acompanhar a casa. — De acordo. lhe diga a Mil, a garota que está junto à porta, que me envie isso. — Obrigado. Dava-me a volta. — Como atravessou o fogo? —perguntou-me. OH, mierda. —Não era muito intenso —pinjente—. Tive sorte. Embora não pude voltar a fazê-lo para sair dele. Suponho que Olathe estava muito ocupada tentando derrubar o teto sobre minha cabeça.
— Já vejo —disse Curran. Não sabia se me tinha acreditado ou não. Girei-me e lhe fiz uma reverência zombadora que enviou uma pontada de dor ao estômago. — Algo mais, Sua Majestade? Indicou-me que podia ir com um movimento da boneca. — Pode te retirar. Curran era muito perigoso. Muito capitalista e imprevisível, e o pior de tudo, possuía uma habilidade inata para me tirar de gonzo e me fazer perder o julgamento. Com um pouco de sorte, nossos caminhos não voltariam a encontrar-se. Um jovem lobo cujo nome desconhecia me acompanhou até o apartamento do Greg. Dava-lhe as obrigado e, quando cheguei à porta, encontrei uma pequena nota cravada na madeira: “Kate, tentei te chamar mas não respondia. Espero que siga em pé o de esta noite. Fiz uma reserva no Fernando's para as seis. Crest”. Arranquei a nota, fiz uma bola com ela e a atirei ao chão. A barreira se fechou detrás de mim. A robusta porta me separou do resto do mundo e deixei escapar um suspiro de alívio. Depois de me tirar as sapatilhas que me tinha emprestado a Manada, meti-me na cama e fiquei dormida imediatamente.
QUANDO DESPERTEI, A última hora da tarde dava passo lentamente de noite. Sentia-me esgotada e inquieta, agitada, como se tivesse esquecido algo importante. Rebusquei em meu cérebro as causas de meu mal-estar mas quão único consegui foi me sentir ainda pior. Fiquei um momento na cama, olhando o teto e decidindo se devia chamar o Crest para lhe dizer que o esquecesse. Era o mais sensato que podia fazer. Por desgraça, a sensatez não era uma de minhas virtudes. Não ir à entrevista era, de algum modo, como render-se antes de tentá-lo.
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Fui até o quarto de banho arrastando os pés e me lavei a cara com água fria. Não serve de muito. Só tinha um vestido adequado para levar ao Fernando'S. O único vestido formal que tinha e o único que pendurava do armário do Greg. Tinha-o levado a uma recepção oficial a que Greg me tinha miserável em novembro passado, onde me passei duas horas escutando a gente a que adorava o som de sua própria voz. Tirei o vestido do armário e o deixei sobre a cama. Fui à cozinha e enchi um copo de água. Tinha perdido muchísima sangre. Obriguei-me a bebêlo inteiro, voltei a enchê-lo e repeti o processo, sorvendo a água. Os últimos raios de sol banhavam o vestido estendido sobre os lençóis. De corte simples, tinha uma cor pouco habitual, uma tonalidade indescritível situada em algum ponto entre o salmão, o caqui e o dourado. Anna o tinha eleito por mim. Recordei-a farejando entre os vestidos pendurados em cabides, descartandoos sem olhares um a um enquanto a dependienta a observava com angústia. “Não precisa parecer mais magra”, havia-me dito Anna, “nem te pôr cheios. O que precisa é certa esbeltez, e isso se consegue com o vestido adequado. Por sorte, sua pele harmoniza perfeitamente com a cor. Fará que pareça mais moréia, o que não está nada mal”. Olhei o vestido e recordei a inquietante sensação de não me reconhecer a mim mesma ao me pôr isso Tinha um corpo proporcionado, inclusive esbelto, mas não era magra. A maior parte das mulheres não revistam desenvolver musculatura, mas quando eu flexionava o braço, os músculos ficavam perfeitamente definidos. Por muito que tentasse perder peso ou massa corporal, quão único conseguia era aumentar a musculatura, de modo que aos quatorze anos deixei de tentar alcançar os padrões de beleza ao uso. A sobrevivência se impôs na moda. Evidentemente, não pesava cinqüenta quilogramas, mas minha estreita cintura me permitia me agachar sem dificuldade e podia lhe partir o pescoço a um homem de uma patada. Aquele vestido ocultava o músculo e insinuava uma pele sedosa onde não a havia. O problema era que não sabia se me queria pôr isso para o Crest. Passei a mão pelo suave tecido e desejei poder falar com a Anna. O telefone começou a soar. Desprendi-o e a voz da Anna disse: — Olá. — Como o faz? — O que? Chamar quando quer falar comigo? —Parecia surpreendida.
— Sim. — Quase todos os videntes são ligeiramente empáticos, Kate. A empatia com a pessoa faz de ponte para as coisas que fazemos.
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Faz muito tempo que te conheço; ainda recordo quando estava aprendendo a andar. Une-nos um vínculo permanente. Considera-o como uma rádio muito especial que está apagada a maior parte do tempo. Bebi mais água. Sabia que não me diria nada da visão a menos que o perguntasse, e não me sentia com ânimos de fazê-lo. — Como vai a investigação? — Encontrei ao assassino do Greg. — Estraga. E o que fez com ele? — Com ela. Estripei-a e depois lhe espremi o coração. — Encantador. E o que te fez ela a ti? — Deixou-me uma cicatriz na parte superior da pantorrilha e uma ferida no estômago. Mas ao menos esta vez me atendeu um médico de verdade. Anna suspirou. — Suponho que não está mal para uma de suas excursões. Está satisfeita? Abri a boca para lhe dizer que sim mas me detive. Compreendi a causa de minha inquietação. — Kate?
— Não, não estou satisfeita. —Contei- todo o relativo ao Olathe e seus vampiros anteriores à Transformação—. Muitos cabos soltos —disse—. Para começar, ainda não estou segura de quem matou ao Greg. Pensava que poderia ser um dos vampiros do Olathe, mas isso não explicaria os registros de poder de origem animal no exploratório—m, e, além disso, não vi nenhum animal durante a briga. — Não há nenhum modo de comprová-lo agora? — Não. O edifício está kaput. E em segundo lugar, onde estão as mulheres desaparecidas e por que as seqüestraram? — Para alimentar aos vampiros? —provou Anna. — Com quatro mulheres não tivesse podido manter a seu estábulo nem um só dia. por que não agarrou a mais? — Não sei. Bebi mais água. — Eu tampouco. E o inimigo de sua visão era um homem. Há algo mais, mas agora mesmo não posso recordá-lo. Tenho a estranha sensação de que me esquecimento de algo importante. Algo ridiculamente óbvio. Me
fiquei em silêncio. Anna esperou ao outro lado do telefone.
— Dá igual —pinjente finalmente—, terei que esperar a que me esclareça cabeça. — Ah —disse Anna—. Há algo mais urgente? — Um atrativo cirurgião plástico me espera no Fernando's às seis. — Estraga. Mencionaste-lhe que detesta esse restaurante?
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— Não —lhe disse—. Mas confio em que se dê conta. Não vão os jantares formais, Anna. — Não faz falta que o jure —murmurou Anna—. É divertido? — Quem? — O cirurgião plástico. É divertido? Faz-te rir? — Tenta-o —pinjente. — Não parece que tenha muito êxito. — Acredito que forcei um pouco as coisas —disse. — O que? A intimidade ou o sexo? — Suponho que ambas as coisas. —Para mim o sexo casual era um oxímoron. O sexo me colocava em uma posição de vulnerabilidade e não havia nada casual nisso. Nunca me tinha deitado com um homem em quem não confiasse e a quem não admirasse. Não conhecia o suficiente ao Crest para saber se lhe admirava ou podia confiar nele, e em que pese a tudo me tinha desejado levar isso à cama. Tinha-me passeado nua frente a ele, pelo amor de Deus—. Algo me preocupa. Acredito que tem que ver com a morte do Greg Silencio ao outro da linha. Finalmente, Anna murmurou: — Quem o ia dizer, um descascado em sua armadura! — Esta noite tentarei repará-lo. — É uma maximalista, Kate. Tudo ou nada. Talvez mereça uma oportunidade. — Não hei dito que vá romper. Tão solo pretendia reconsiderar a situação. Tentarei descobrir se é divertido. —Anna suspirou. — Porá-te o vestido que compramos naquela ocasião? — Sim. — Um conselho —disse—. te Deixe o cabelo solto.
ENTRE NO Fernando'S com o cabelo solto. Caía-me por debaixo da cintura, enquadrando o rosto e suavizando as formas. Com a maquiagem, o vestido e os sapatos de salto a jogo menos tinha a aparência do tipo de mulher que está acostumado a comer no Fernando'S. Os saltos enviavam pontadas de dor a meus quadris. Dava-lhe meu nome a um garçom impecavelmente vestido e este acompanhou às profundidades do restaurante. Enquanto passávamos junto às mesas redondas com toalhas brancas e recém engomadas, meus sapatos produziam débeis golpecitos no chão de mármore. Homens embainhados em caros trajes e mulheres muito bem penteadas e com vestidos de um valor aproximado de meu salário mensal conversavam e comiam despreocupadamente. Diversos emparrados com acres floresça brancas nasciam de urnas de cerâmica. Alguém tinha dedicado muito tempo em dispor os caules pelas paredes com ardilosa precisão. Odiava aquele lugar.
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Crest estava sentado em uma mesa apartada, estudando o menu. Parecia abatido. Levantou a cabeça, viu-me e ficou petrificado. Era algo superficial, mas seu atordoado semblante me fez sentir muito melhor. Nunca seria formosa, mas me conformava sendo chamativa. Movendo-se com a elegância de uma bailarina, o garçom retirou a cadeira e me convidou a me sentar. Dava-lhe as obrigado —o que provavelmente ia contra as normas— e me sentei. Crest continuava me olhando fixamente. — Conhecemo-nos? —perguntei-lhe. — Acredito que sim —disse ele—. Está distinta. Tinha chegado o momento de romper o feitiço. — Distinta? Espetacular, radiante, preciosa, todo isso tivesse servido, mas não sei o que significa distinta. Funcionou. Deixou de me olhar.
— Pensava que não foste vir. — Tinha trabalho —disse—. Além disso, como te torturei em Las Colimas, era o menos que podia fazer para te devolver o favor. — Você não gosta deste sítio? Não. A atmosfera é acartonada, a comida é má e quão único posso me permitir é uma terrina de sêmola de milho. Servirão aqui isso? Encolhi-me de ombros. — Não está mau. Vem freqüentemente? — Cada três semanas, mais ou menos. OH, Deus. O garçom voltou a aparecer e ele e Crest se inundaram em uma conversação que nem entendi nem escutei. Observei ao resto de comensais até que o garçom murmurou as palavras chave: — E a senhora? — Que saladas têm? Pedi uma salada de vinte e dois dólares e o garçom partiu. — Não quer nada de segundo? —perguntou Crest. — Hoje não. impôs-se o silêncio. Crest parecia contentar-se me olhando enquanto eu não tinha nem idéia do que fazer comigo mesma. — Está impressionante —disse finalmente—. Tão distinta. — Não é mais que uma ilusão —lhe disse—. Sigo sendo eu. — Sei. Sorriu. Pelo modo em que me olhava, soube que estava pensando como seria na cama. por que eu não estava pensando o mesmo dele? Sob o traje escuro, parecia ter um bom corpo. Umas quantas mulheres lhe olhavam abertamente.
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Reparei em que um homem me observava de uma mesa próxima. Supus que devia me mostrar adulada. — Então, como vai o trabalho? —pinjente finalmente para romper o silêncio. — Estou me expondo deixar a prática —disse ele. — OH. — Eu gostaria de dedicar mais tempo ao estudo do Lic—V —disse—. O encontro fascinante, especialmente o modo em que a estrutura dos ossos se transforma sob a influência da magia. Se conseguíssemos saber mais coisas dessa habilidade, produziriam-se incríveis avanços na cirurgia reconstructiva. Seria o fim dos procedimentos invasivos, dos implante, das recuperações; a eliminação das imperfeições mediante a vontade. Sorri-lhe. Talvez um dia apresentasse ao Saiman. O garçom chegou com o menu de vinhos. Crest escolheu um e continuou me expondo a fascinante natureza do Lic—V, entrando em mais detalhe técnicos dos que minha limitada compreensão podia processar. Observei-lhe atentamente enquanto me perguntava por que Olathe teria seqüestrado a aquelas mulheres. Algo em todo aquilo não terminava de encaixar. Crest ficou em silêncio e eu pisquei, desconectando o piloto automático. — Não me está escutando, verdade? Não. — Não, por favor, segue. — Aborreço-te? — um pouco.
— Sinto-o —disse ele. Encolhi-me de ombros. — Por favor, não te zangue. Você está sendo você mesmo e eu estou sendo eu mesma. Para ti, os cambiaformas são uma nova e interessante fronteira. Para mim, são parte de meu trabalho. Violentos, freqüentemente cruéis, paranóicos e extremamente territoriais. Quando vejo um, solo vejo um possível adversário. Você te emociona porque podem transformar sua estrutura óssea, enquanto que eu me encho o saco porque suas mandíbulas não encaixam de tudo bem em sua forma intermédia e enchem o chão de babas. E emprestam terrivelmente quando estão úmidos. Crest me olhou fixamente. — Além disso, careço do conhecimento médico para entender uma palavra do que há dito nos últimos dez minutos. Ódio me sentir como uma profana na matéria. Meu frágil ego não o pode suportar. Alargou o braço e me tocou a mão. Tinha a pele cálida e seca, e por alguma razão desconhecida seu gesto me reconfortou.
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— Calarei-me —prometeu solenemente. — Não é necessário —pinjente—. Falemos de outra coisa. De livros, de música, de algo não relacionado com o trabalho. — O teu ou o meu? — Ambos. O mundo se sacudiu ligeiramente com a chegada da magia. A conversação em todas as mesas se deteve um instante e voltou a reatar-se como se nada tivesse acontecido. Chegou nosso jantar. Minha salada consistia em folhas de alface, elegantemente distribuídas para emoldurar uns finos galhos de laranja, e uma exuberante variedade de verduras. Cravei a alface com o garfo. Por alguma razão, não tinha fome.
— Que tal está a salada? —perguntou Crest. Agarrei um galho de laranja com o garfo e me levei isso a boca. — Muito boa. Crest sorriu e seu semblante transmitiu um evidente prazer. Recordei o conselho que alguém me tinha dado tempo atrás. Se um homem te levar a um restaurante de sua eleição, não lhe faça nenhum completo. te emocione com a qualidade da comida e estará encantado, porque ele te levo ali. Eu não estava acostumado a me emocionar facilmente. Falamos durante uns minutos sobre nada em particular, mas a conversação se foi extinguindo. Fora o que fosse o que tínhamos conseguido em Las Colimas, tinha desaparecido e não podíamos recuperá-lo. Pincei na salada, levantei a cabeça e vi que Crest olhava algo por cima de meu ombro. — Algum problema? — Esse tipo não deixa de te olhar —disse Crest—. Se está passando da raia. Acredito que me aproximarei para lhe perguntar se tiver algum problema. Dava-me a volta e vi uma figura familiar duas mesas mais à frente. Recostado na cadeira, meio sacado para ter um melhor ângulo de nossa mesa: Curran. por que eu? Uma espetacular mulher asiática com um diminuto vestido negro estava sentada na outra cadeira. A mulher parecia nervosa, e não deixava de retorcer a ponta do guardanapo com seus estilizados dedos. Olhou-me surpreendida, como uma gazela em um abrevadero, e se deu a volta rapidamente. Curran se mostrou indiferente. Nossos olhares se encontraram e Curran sorriu abertamente. — Não acredito que seja uma boa idéia —disse. — Um velho noivo? —disse Crest. — Por Deus, não. Solo nos conhecemos profissionalmente. —Fiz-lhe um gesto ao garçom e este se aproximou. — Sim, senhora? Assinalei a Curran com a cabeça.
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— Vá a esse homem daí, o do cabelo curto? junto a essa mulher tão bonita? — Se, senhora. — Importaria-lhe lhe servir uma terrina de leite e lhe expressar meus melhores desejos? O garçom nem sequer pestanejou; uma demonstração do excelente serviço do Fernando'S. — Se, senhora. Crest me olhou e reconheci em seus olhos a coceira da curiosidade. O garçom serve o leite e lhe murmurou algo a Curran. Seu sorriso adquiriu um rasgo rapace. Agarrou a terrina e o levantou modo de saudação. Seus olhos cintilaram com um brilho dourado. O brilho apareceu e se desvaneceu tão rapidamente que se não lhe tivesse estado olhando aos olhos, me teria perdido isso. levou-se a terrina à boca e começou a beber. — Parece desconjurado com esses texanos —disse Crest. — Confia em mim, não lhe importa. E nenhum garçom do Fernando's está o uficientemente louco para tocar o tema. —De fato, Fernando's não parecia o tipo de restaurante ao que acudiria Curran. Considerava-lhe mais na linha de um local de filetes e camarões-rosa ou de um chinês. — Já vejo. —Crest tentava olhar a Curran de um modo ameaçador. Se continuava por aquele caminho, o mais provável é que Curran caísse da cadeira com um ataque de risada. De repente, estava muito zangada. O olhar do Crest se deteve momentaneamente na entrevista de Curran. Algo novo se refletiu em seus olhos: interesse, admiração? Atração? Curran me piscou os olhos um olho. Crest dobrou seu guardanapo e a deixou sobre a mesa. mais da metade de seu peito de frango continuava no prato. — Acredito que deveríamos ir —disse. Apartei a virtualmente intacta salada.
— Boa idéia. Um garçom se materializou junto a nossa mesa. Crest pagou em metálico e saímos do restaurante. Já na rua, Crest girou à esquerda. — Meu carro está por aí —disse assinalando à direita. Ele negou com a cabeça. — Tenho uma surpresa. Como acabamos logo de comer, chegaremos antes. Importa-te caminhar? — De fato, sim. —Sobre tudo com aqueles saltos e com a pontada no quadril— . Podemos ir em seu carro? — Será todo um prazer. Enquanto caminhávamos para seu carro, notei que alguém me observava. Detive-me para me ajustar a tira do sapato e lhe vi o outro da rua, apoiado na parede de um edifício.
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A jaqueta de pele e o cabelo de ponta não deixavam lugar a dúvidas. Bônus. Ghastek me tinha sob vigilância, mas esta vez, em lugar de um vampiro, tinha enviado a seu oficial. Boa eleição. Bônus ainda me guardava rancor por nosso pequeno bate-papo no Adriano'S. Teria descoberto Ghastek que espremi ao oficial que me tinha dado a pista sobre seus vampiros sem marcas? Ou talvez o entendia todo do reverso. Bônus se girou ligeiramente para não me perder de vista. por que me manter agora sob vigilância, quando Olathe já estava morta? A menos que Bônus trabalhasse para o Olathe. Tinha sentido. Se Olathe queria derrocar a Nataraja, teria tentado recrutar a oficiais jovens, e com seu aspecto e poder, não lhe haveria flanco muito atrai-los a sua causa. Pretendia Bônus vingar-se? Ou havia outro ator naquele drama e agora Bônus seguia suas ordens?
Não tinha acabado. Meus instintos me disseram que era muito fácil, muito conveniente, e agora tinha a confirmação de Bônus. O que sabia ele que eu não soubesse? Pensei na possibilidade de cruzar a rua e lhe golpear, convertêlo em uma massa sanguinolenta até que me contasse tudo o que sabia. Podia lhe abrir a cabeça contra a parede de tijolos e arrastá-lo até a escuridão do beco. Ou ainda melhor, imobilizá-lo contra a parede e colocá-lo no carro. Naquele bairro, ninguém emprestaria a menor atenção a uma mulher com um vestido e a seu atrativo acompanhante que tinha bebido muito e que precisava apoiar-se nela. Podia colocá-lo no carro e levá-lo a algum lugar solitário. — Kate? O agradável rosto do Crest apareceu frente a mim. Maldita seja. — Qual é seu carro? — Esse. Sorri-lhe, ou ao menos o tentei. Olhando por última vez a Bônus, deixei que Crest me abrisse a porta de seu veículo e me obriguei a entrar nele. Mais tarde, Bônus. Sempre posso dar contigo.
O CARRO DO Crest era caro, cinza metalizado e com forma de bala. Abriu-me a porta e me acomodei no assento de pele do passageiro. Ele deu a volta ao carro, sentou-se frente ao volante e nos partimos. O interior do veículo estava impoluto. Nenhuma bola de papel em copos de plástico. Nenhuma fatura ou recibo no chão. Nem o mais mínimo rastro de sujeira nos tabuleiros. Estava imaculado, quase esterilizado. — me diga uma coisa, tem uns jeans? —perguntei-lhe—. Desses tão velhos que a sujeira é permanente? — Não —disse ele—. Isso me converte em uma má pessoa? — Não —lhe disse—. Sabe que a maioria de meu jeans têm imundície permanente?
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— Sim —disse com um sorriso nos olhos—. Mas não estou interessado em seu jeans, solo no que há debaixo deles... — Esta noite não. — De acordo. É bom ter as coisas claras. A cidade passou frente a nós, suas ruas acolhendo de vez em quando a um veículo em chamas alimentando-se dos últimos estertores da tecnologia. Contei tantos veículos como cavalos. Quinze anos atrás, os carros dominavam as ruas. — Quem era esse homem? —disse Crest. — O Senhor das Bestas. —Crest me olhou de esguelha. — O Senhor das Bestas? — Sim. O cão principal. —Ou gato. — E a mulher era uma de seus amantes? — Provavelmente. Um Buick branco como a neve nos cortou o passo, invadindo o sulco, e se deteve no semáforo com um chiado de rodas. Crest pôs os olhos em branco. O semáforo piscou, cintilou com grande intensidade e voltou a brilhar fracamente. — Magia residual? —perguntou Crest. — Ou uma falha do cableado. —O bom doutor estava aprendendo o jargão mágica. Me perguntei onde teria ouvido falar dos efeitos da magia residual. — Tem sentido. —Crest estacionou junto a um edifício de grandes proporcione—. chegamos. Uma moço de hotel me abriu a porta e desci do carro. O veículo do Crest estava muito bem acompanhado. A nosso redor, Volvos, Cadillacs e Lincolns
cuspiam a gente elegante sobre a calçada: mulheres sorridentes, com uns lábios que ameaçavam estalando, e homens inflados com sua própria importância. Os casais se dirigiam para o alto edifício frente a nós. A moço se meteu no carro e desapareceu pela rua, nos deixando ali de pé, à vista de todos. A gente me olhou. Olharam a ambos. — Recorda o teatro Fox? —disse Crest, ao tempo que me oferecia seu cotovelo. Uma coisa era me abrir a porta. Outra muito distinta, caminhar agarrada de seu braço. Ignorei-lhe e avancei para a porta com as mãos nos flancos. — Sim. Foi demolido. — Utilizaram as pedras para construir este lugar. Genial, não crie? — De modo que em lugar de construir um edifício novo, flamejante e estéril decidiram transladar ao novo toda a agonia, a dor e o sofrimento que impregna às paredes do antigo edifício. Genial. Olhou-me com semblante incrédulo.
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Do que está falando? — Os artistas emanam uma grande quantidade de energia. preocupam-se com seu aspecto, por sua idade, pela competência. Um detalhe insignificante pode converter-se em uma questão transcendental. O edifício no que atuam se impregna como uma esponja com seus fracassos, seu ciúmes, suas decepções e acumula a aflição durante anos. Por esse motivo os empáticos só assistem a representações estudiantiles. A atmosfera lhes aflige. Foi uma estupidez transferir o peso de tantos anos de um lugar a outro. — Às vezes não te entendo —disse Crest—. Como pode ser tão pragmática? Perguntei-me se haveria meio doido um ponto sensível. O Senhor Meloso de repente se havia posto veemente.
— depois de tudo, também há outro tipo de emoções. —Seu tom era irado—. Êxito, exaltação ante uma atuação soberba, alegria. — É certo. Entramos no lobby, iluminado tenuemente com tochas face à presença de lâmpadas elétricas. A gente a nosso redor avançava sem deter-se em direção às portas dobre situadas ao fundo da sala. Seguimos ao fluxo de gente através das portas e até a enorme sala de concertos repleta de filas de assentos vermelhos. A gente nos olhou. Crest parecia agradado. Fomos o centro de atenção, o alto e elegante Crest e sua entrevista exótica embainhada em um vestido distinto e com uma cicatriz aparecendo por seu ombro. Crest não se precaveu do muito que chegava a me incomodar a atenção que nos emprestava a multidão, nem tampouco se fixou que tinha começado a coxear. Se o dizia, solo conseguiria piorar as coisas. Continuei caminhando e sonriendo, me concentrando em não dar um tropeção. Sentamo-nos justo no meio da sala e deixei escapar um suspiro de alívio. Estar sentada era muito mais fácil que estar de pé. — A quem esperamos? —perguntei. — Aivisha —disse Crest com gravidade. Não tinha nem idéia de quem era Aivisha. — É a última representação da temporada —continuou—. Está fazendo muito calor, por isso pensava que a estas alturas já teria deixado de atuar, mas a direção me assegurou que não terá nenhum problema. Pode utilizar a magia residual. Recostei-me no assento e esperei em silêncio. A nosso redor, a gente se acomodava em seus assentos. Uma mulher maior, embainhada em um impecável vestido branco e escoltada por um distinto cavalheiro, deteve-se nosso lado. Crest ficou em pé de um salto. OH, Deus, agora teria que me levantar. Fiz-o, sorri e esperei educadamente às apresentações.
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A mulher e Crest conversaram uns minutos enquanto o escolta e eu compartilhávamos em silêncio nossa aflição. Finalmente, a mulher reatou a marcha. — Madame Emerson —me disse Crest com um tapinha na mão—. Provavelmente, o último representante da boa sociedade do sul. Tem-no feito muito bem. Acredito que lhe tem cansado bem. Abri a boca e voltei a fechá-la rapidamente. Não tinha feito outra coisa que estar de pé e sorrir. Como um menino bem educado ou um cão submisso. Esperava Crest que lhe lambesse a perna? Soou um timbre para exigir o silêncio do público. Um murmúrio percorreu a sala mas se extinguiu assim que a cortina de veludo se abriu lentamente pela metade e sobre o cenário apareceu uma mulher baixa. Tinha a pele muito escura e um peso considerável, com o cabelo formando lustrosas espirais negras na parte superior de sua cabeça. O comprido vestido de tecido chapeado, que se precipitava em dobras e tranças a partir dos ombros, titilava, como se estivesse tecido com água banhada pelo sol. Aivisha percorreu a sala com o olhar com uns olhos escuros e insondáveis, deu um pequeno passo adiante, a cascata de prata movendo-se a seu redor. Abriu a boca e deixou que sua voz se derramasse. Tinha uma voz incrível. Assombrosa por sua claridade e beleza, começou a aumentar, ganhando força, entretecendo-se, e da própria Aivisha brotou o poder, permeando toda a sala de concertos e ao assombrado público. Esqueci-me do Crest, do Olathe, solo escutei, perdida na harmonia daquela sedutora voz. Aivisha levantou as mãos. Umas magras lascas de gelo cresceram de seus dedos, riscando espirais, retorcendo-se em perfeita sincronia com a música. Como um impossível e complexo laço de cristal, o gelo se estendeu pelo cenário e começou a subir pelas colunas laterais, florescendo em fardos de plumas magras como agulhas. abraçou-se às dobras do vestido da Aivisha como um mascote fiel agradado agradando, e não soube onde começava o prateado do tecido e onde terminava a pureza cristalina do gelo. Aivisha continuou cantando e o gelo dançou para ela, lhe concedendo todos seus caprichos. Ela nos dirigiu, e, fascinados, nós contivemos o fôlego até que sua voz alcançou um crescendo lhe esmaguem. Seu corpo palpitou com uma luz azul, saturando o gelo em um instante. O laço de cristal estalou e se evaporou no ar. A cortina se fechou, ocultando a Aivisha do público. Durante
um momento permanecemos aturdidos, e então a sala de concertos estalou em aplausos. Crest me apertou a mão e eu lhe devolvi o apertão. Quarenta e cinco minutos depois, detínhamo-nos no estacionamento frente a meu edifício de apartamentos.
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— Posso te acompanhar à porta? —perguntou Crest. — Esta noite não —murmurei—. O sinto. Não seria muito boa companhia. — Está segura? —perguntou Crest, a esperança desvanecendo-se de seus olhos. Sentia-me mau, mas não podia fazê-lo. Algo me dizia que devia deixá-lo aí. — Sim —disse—. Obrigado pelo jantar e a companhia. — Confiava em que a velada não terminasse tão logo —disse ele. Toquei sua mão com a ponta dos dedos. — Sinto muito. Talvez a próxima vez. — Ah, bom —disse ele—. Sempre fica amanhã de noite. Abri a porta e desci do carro. Crest esperou uns segundos antes de reatar a marcha. Compreendi muito tarde que tinha esperado um beijo de boa noite.
CADA VEZ ME doía mais o quadril, e quando cheguei ao outro extremo do estacionamento, a moléstia se converteu em uma dor em toda regra, enfeitado com espasmos musculares. — Genial. —Tirei-me os sapatos. Descalça e com os sapatos na mão, encaminhei-me para a porta.
Pisei em uma imperfeição no asfalto, escorreguei e a ponto estive de acabar com o traseiro no chão. A dor me mordeu a perna. Inclinei-me para diante, esperando que remetesse e murmurando maldições. — Quer que te leve em braços? —Sussurrou-me alguém ao ouvido—. Outra vez? Dava-me a volta e lhe lancei um gancho no estômago. O punho se estrelou contra um muro de carne sólida. — Bom golpe —disse Curran—. Para uma humana. Claro, claro. Ouvi-te exalar. Há-o sentido. — O que quer? — Onde está seu atrativo acompanhante? — Onde está a tua? Encaminhei-me para o edifício. O único modo de me desfazer dele era subir as escadas e fechar a barreira em seus narizes. — Em sua casa —disse ele—. me Esperando. — Bom, me faça um puto favor e não lhe faça esperar mais. Cheguei às escadas e me sentei em um degrau. A perna exigia um descanso. — Dói-te? — Não, eu gosto de me sentar em um sujo degrau quando levo um vestido caro. — Está um pouco suscetível esta noite —observou—. Está acostumado a ocorrer quando lhe deixam plantada. Olhei o céu noturno, os diminutos pontos das estrelas.
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— Estou cansada, dói-me a perna e necessito um montão de respostas que não posso encontrar. — Como o que? —Suspirei. — Para começar, não sei quem matou ao Greg nem por que o fez. Dois, não encontramos evidências dos animais poluídos com nigromancia que mataram a sua gente. Três, no relatório do Greg aparecia o nome de várias mulheres. por que Olathe as levou e o que fez com elas? inclinou-se para ficar a minha altura. — Tudo terminou —disse—. E tem um problema grave de nostalgia recorrente. — Um caso grave do que? — É uma mere do montão e, da noite a manhã, todo mundo quer falar contigo. Os poderes féericos da cidade sabem seu número de telefone. Faz que se sinta importante. E agora o baile concluiu. Compadeço-te. —Sua voz jorrava escárnio—. Mas tudo terminou. — Equivoca-te. —Curran se afastou. — Chamou-te mestiço —disse a suas costas—. por que? Ignorou-me. Pu-me em pé com dificuldade e comecei a subir as escadas. Uma vez no apartamento, troquei-me de roupa, reuni umas quantas coisas imprescindíveis, agarrei a Assassina e voltei a baixar as escadas. Pus em marcha ao Karmelion mordendo as palavras do feitiço como um cão raivoso e deixei atrás o estacionamento. Já tinha tido bastante daquela cidade. Partia a casa. A minha autêntica casa.
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Capitulo 8 A luz da manhã se filtrou através da janela e me fez cócegas na cara. Bocejei e me acurruqué sob os lençóis. Não queria me levantar. Ainda não. Em retrospectiva, me largar da cidade em metade da noite e com um quadril dolorida não tinha sido uma idéia brilhante, especialmente quando a tec se estendeu por volta das quatro da madrugada, deixando a caminhonete inutilizada a dois quilômetros de minha casa. Mesmo assim, tinha conseguido chegar antes de que saísse o sol e agora já não importava muito. Estava em casa.
Enterrei a cara no travesseiro, mas a luz do sol não desfaleceu. Me desperecé com um suspiro. Meus pés nus tocaram o estou acostumado a temperado pelo sol e me dirigi alegremente à cozinha para preparar café. No exterior, a última hora da manhã se desdobrava em todo seu apogeu. O céu espaçoso, de um azul profundo. Nenhuma suave brisa perturbava as folhas dos mirtos. A janela da cozinha exigia ser aberta. Liberei o fecho e atirei da parte inferior para que o ar saturado de umidade da costa entrasse na casa. Em minha casa. Por fim. Em metade do jardim, colocado de tal modo que pudesse ver-se tanto da cozinha como do alpendre, havia um poste parecido na terra. E sobre este, uma cabeça humana. O cabelo comprido se precipitava a ambos os lados da cabeça em emplastros de betume ensangüentados. Uns olhos pálidos sobressaíam das órbitas. Tinha a boca completamente aberta e umas moscas verdes revoavam ao redor de uns lábios destroçados. Estava tão desconjurado em meu ensolarado mundo que, por um instante, pensei que era produto de minha imaginação. Não podia ser real. O inconfundível fedor da putrefação chegou até a cozinha. Corri ao dormitório me sobrepondo à dor, agarrei a Assassina e me dirigi à porta principal. A barreira mágica estava ativa. Com cautela, retirei o amparo e saí ao alpendre. Nada. Nenhum som. Nem rastro de poder. Nada salvo uma cabeça em decomposição em meu jardim. Aproximei-me da cabeça e, lentamente, dava uma volta a seu redor. Pertencia a uma moça.
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Fazia pouco que tinha morrido; a expressão de terror ainda estava congelada em seu rosto.
Um enorme prego sujeitava uma folha de papel dobrado à parte posterior da cabeça. Levantei o papel com a ponta de Assassina e vi umas letras desiguais. Você gosta de meu presente? Tenho-o feito especialmente para ti. Quando vir a seu amigo mestiço, lhe diga que não desperdiçarei sua cabeça deste modo. Arrancarei-lhe até a última tira de carne dos ossos. Devorarei pessoalmente seu cadáver até que não possa mais e deixarei o resto a meus filhos enquanto descanso com mulheres mestiças. A carne mestiça tem sabor de mierda mas tem uma boa textura. Olathe nunca chegou a apreciá-la. Uma pena o de seu vestido. Tinha-me o coração roubado. Entrei em casa e marquei o número do Jim. A cabeça morta olhou ao Jim. Jim olhou a cabeça. —Conhece gente um pouco desequilibrada —disse Jim. —Provavelmente se chamasse Jennifer Ying —disse—. O cabelo tem textura mongolóide. É uma das mulheres desaparecidas que encontrei no relatório do Feldman. A cabeça não estava aqui quando cheguei às três da madrugada. Jim olisqueó a cabeça. —É recente. Um dia; no máximo um dia e meio —disse—. Deveria chamar a Curran. —Não me escutará. Acredita que estou paranóica. Jim se encolheu de ombros. Tínhamos trabalhado juntos o tempo suficiente para saber que nenhum dos dois estava interessado na fama. —Tiraste-lhe que suas casinhas. —Há algo mais. —Acompanhei-lhe até o alpendre. Um sinal de ossos humanos estava dispostos formando um tecido em toda a superfície do alpendre. —assaltaste um cemitério? —Perguntava-me como podia haver-se aproximado tanto à casa sem fazer saltar os amparos, de modo que indaguei um pouco e encontrei isto. Colocouos formando um círculo ao redor da propriedade, na linha de árvores. É uma espécie de barreira. Uma muito antiga.
—Quanto? —Do neolítico. Os caçadores primitivos distribuíam os ossos de suas presas ao redor dos assentamentos. A idéia era formar uma cadeia de Pedra, Osso e Madeira. A Pedra e a Madeira se utilizam para obter o Osso, vinculando-os entre si, de modo que se devolver o Osso à Pedra e à Madeira assim que terminaste, proporciona-te amparo. Criou um corredor seguro para mover-se por meu jardim quando quisesse.
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trata-se de um feitiço muito fácil de romper. Quão único deve fazer é retirar os ossos, por isso já ninguém o utiliza. Por desgraça, não pode detectá-lo a menos que tropece com ele. Recolhi um crânio e o mostrei. Jim o agarrou e retrocedeu com um vaio. Seus olhos adquiriram uma tonalidade verde. Segundo o folclore, ao morrer, o corpo dos cambiaformas recupera a forma que tinha ao nascer, já seja humano ou animal. Entretanto, o Lic—V produz uma série de mudanças permanentes na estrutura óssea que permanecem durante a vida e depois da morte. Umas largas franjas de osso criados pelo Lic—V percorriam o crânio em zonas reveladoras, por cima da mandíbula e ao longo dos maçãs do rosto. —Um homem—rato —disse Jim me devolvendo o crânio como se lhe queimasse entre as mãos. —Adivinha quantos encontrei? —Sete. —E ao menos três vampiros. Os esqueletos não estão completos. Faltam alguns ossos, mas há oito pélvis e nove crânios, três dos quais têm presas de chupeta sangre. Jim observou os ossos.
—Deve separar os de vampiros. —O que? —Tem que separar os ossos de vampiro —repetiu. Estava inquieto e falava com grunhidos guturais. —por que não move o culo e me ajuda? —Não posso tocá-los. Suspirei. —Jim, não sou forense. Sem uma lupa e um exploratório, não saberei que ossos são de vampiro. Você, em troca, pode sabê-lo pelo aroma. Olhou-me fixamente com olhos ligeiramente exagerados. —Começa a selecioná-los, e se necessitar ajuda, diga-me isso partiu ao jardim. Suspirei e comecei a remover ossos. Sentei-me no alpendre entre dois montões de ossos enquanto observava ao homem— jaguar em meu jardim riscando pequenos círculos ao redor do pau no que seguia cravada a cabeça da jovem. Tinha-lhe falhado. Tinha analisado as provas e tinha chegado às conclusões errôneas. Mas eu seguia ali, sentada em meu alpendre, enquanto ela tinha pago o preço de minha estupidez. E de minha arrogância.
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Jim continuou caminhando, colocando cuidadosamente um pé diante do outro, espreitando uma presa invisível ao redor de um círculo. Tinha os olhos amarelados e de vez em quando lhe tremia o lábio superior, revelando suas presas. A menos que o gato bocejasse frente a seus narizes, nunca via suas
presas até que estava preparado para lhe cravar isso Jim estava preparado para cravar-lhe a alguém. Teria que esperar pacientemente à cauda. —Deixa-o já. Está fazendo um sulco em meu jardim. Jim deixou de mover-se e me olhou. Uma caminhonete escura se deteve no caminho de entrada. Funcionava com magia e água, como Karmelion, e fazia tanto ruído como minha caminhonete de pesadelo. Quatro cambiaformas de rosto pétreo desceram dela e se aproximaram de mim com várias bolsas de lona. Pu-me em pé e me apartei, lhes permitindo o acesso aos ossos. Começaram a guardar os esqueletos fraturados de seus mortos nas bolsas, selecionando-os sobre a marcha, manipulando os ossos com a mesma delicadeza que um comerciante de porcelana dedica a suas melhores peças. Doolittle saiu da caminhonete vestido com umas calças de peitilho jeans e com um exploratório—m portátil na mão. deteve-se para murmurar algo ao Jim e continuou avançando em direção à cabeça. Jim se aproximou do alpendre. —Curran quer que retorne à cidade. Neguei com a cabeça. —Não posso. Assim que acabem, terei que chamar à polícia. Já tem seus ossos. A família Ying merece receber os de sua filha. —E que coño lhe digo a Curran? Doolittle arrancou a nota do prego e lhe deu a volta. —Parece ser que a escreveu no reverso de alguma revista. Agarrei a nota de entre seus dedos. A página era de Volshebstva e Kolduni, o jornaleco «Feitiços e Bruxos» cuja credibilidade Saiman tinha desprezado tão alegremente. —Kate? —disse Jim. Tinha vontades de me pôr a chorar. Como podia ter sido tão estúpida? fui procurar o Calendário e entreguei ao Doolittle o artigo sobre o upir que me tinha dado Bônus.
—Aqui diz que a criatura se alimenta de carne humana morta. E que copula com animais para produzir brotos mestiços que não são nem animais nem humanos. Onde conseguiu isto? —Deu-me isso um dos oficiais do Ghastek.
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—Ghastek sabia —rugiu Jim—. Sabia tudo desde o começo. Arrancarei-lhe o coração! —«Esporeado pelo desejo de reproduzir-se, o upir se apareará com mulheres de poder, pois solo uma mulher de poder pode engendrar a um autêntico upir... » —Doolittle me olhou—. Não pode ficar aqui, Kate. Deve vir conosco. Abri a boca mas ele me silenciou com um movimento de sua mão. —Somos sete contra um. Arrastaremo-lhe se for necessário. Os membros do conselho da manada estavam sentados em cadeiras acolchoadas ao redor de uma mesa. Em metade da mesma descansava a cabeça do Jennifer Ying. Doolittle havia a trazido até ali como prova, e a tinham colocado sob um sino de cristal envolta em conjuros protetores. Uma testemunha muda de tudo o que se dizia. junto a ela, um telefone com microfone divulgava a fria voz do Saiman. —Todos os upir são machos. A história de sua espécie é muito antiga: é provável que formassem parte dos cultos de fertilidade das sociedades agrárias primitivas, na Idade de Bronze. Durante os ritos, as mulheres jovens, personificações da Deusa, eram levadas frente ao upir para que este pudesse desempenhar o papel de filho— consorte copulando com elas. É obvio, freqüentemente a copulação terminava com a morte da mulher, em cujo caso, o upir consumava o rito completo e devorava seu corpo.
«Com a chegada da Idade de Ferro, a aparição dos deuses—heróis patriarcais assinalou o final do culto à Deusa e os upir emigraram gradualmente a regiões remotas, encontrando os extensos bosques russos especialmente apropriados. em que pese a sentir um intenso impulso por reproduzir-se, os upir só estão interessados na obtenção de um macho poderoso, outro upir. Todas as filhas nascem mortas. Assim que nasce um filho, o upir lhe alimenta com a mãe e depois lhe expulsa de seu território. Deve se ter muito presente que solo uma mulher com um poder mágico considerável pode produzir a suficiente magia para engendrar a um upir. —E o que ocorre com os filhos de animais? —perguntou Curran. —O upir copula com qualquer animal ao que possa penetrar. Habitualmente, a descendência resultante, embora viável, é estéril. Um único upir poderia dispor de um grupo considerável deste tipo de criaturas—serventes. Além disso, dado que o culto agrário à fertilidade está centrado na regeneração, é provável que disponha de consideráveis poderes regenerativos. Segundo minhas fontes, é imune ao metal, à madeira, às presas e às garras. É virtualmente impossível de matar. Curran assentiu enquanto olhava ao Mahon.
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—A manada te agradece a informação —disse o Urso. —Agradeço a gratidão da manada. Receberão a fatura nos próximos três dias. —E pendurou. —Tem que ser Crest —disse Curran. Surpreendida, perguntei-lhe: —Como sabe seu nome? —Sei muito mais sobre ti que você mesma. Crie realmente que trabalharia contigo sem antes te investigar?
—Disse ao Derek que me espiasse em que pese a me prometer que não o faria. —De fato, coloquei a um rastreador no apartamento de acima —disse Jim—. o do Greg não está tirado o som. Não disse nada, aturdida pela traição. Teria que havê-lo sabido; a Manada sempre ia primeiro. Eram paranóicos profissionais. —Como conheceu o Crest? —perguntou o lobo alfa. Não respondi Jim alargou o braço e me tocou a mão. —Kate, esta é uma dessas ocasiões em que o tempo não é ouro. Não podia fazer outra coisa. Não havia saída. Se Crest era um upir, não podia me enfrentar a ele sozinha. —Fui ao necrotério a examinar o cadáver de um vampiro encontrado na cena do crime do cavalheiro—místico. Estava procurando a marca e ele apareceu. Disse-me que era um cirurgião plástico que levava a cabo o que denominou «trabalhos caridosos» no necrotério. Levava o uniforme sanitário e os galões dos supervisores de unidade. Convidou-me a comer e rechacei a oferta. —Como reagiu? —disse uma mulher corpulenta, de média idade, rellenita. Levava o cabelo grisalho recolhido em um coque sobre a cabeça. Os outros a chamavam Tia B, embora desconhecia o motivo. Tinha o aspecto da avó favorita de qualquer menino. Também era a mulher alfa das doze hienas que havia na Manada. —Parecia surpreso. Um débil murmúrio percorreu a sala. —Tem acesso ao necrotério —disse Jennifer—. E a um montão de corpos. —E ao ser cirurgião plástico, deve conhecer muitas mulheres —acrescentou o rato alfa com a boca cheia de batatas fritas. A cabeça putrefata não tinha conseguido lhe tirar a fome. —por que não copulou com o Olathe? — perguntou-se Jennifer—. É óbvio que estavam trabalhando juntos. Ele a ajudaria a derrocar a Nataraja e, em troca, ele obtinha toda a carne de vampiro que desejasse. além de corpos frescos.
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—Olathe era estéril —disse Jim—. É provável que Roland a esterilizasse antes de follársela. —foste comer com ele? —quis saber a Tia B. —Sim. Foi uma comida normal. A seguinte vez que lhe vi foi depois de que Derek e eu nos topássemos com aquele vampiro. Crest estava dormido nas escadas quando levei ao Derek a casa. —Deitou-te com ele, querida? —perguntou a Tia B—. Temos que sabê-lo. Esforcei-me por não fazer chiar os dentes. —Não. —Então não lhe viu em um ambiente não controlado. —A Tia B meneou a cabeça—. Pode que tenha estado encoberto todo este tempo. —Pois sua cobertura deve ser excepcional —pinjente—. Não captei nenhum tipo de magia. Nada absolutamente. Curran, quem tinha estado apoiado na parede até então, cruzou os braços por diante do peito. —Resumindo, nunca se mostrou como o upir. Aparece repentinamente quando Kate faz algum progresso. Ela não conhece sua casa nem a nenhum de seus amigos, v —Está familiarizado com a tec. —Finalmente, encontrei algo interessante que dizer—. E tem carro. —Algo mais? —perguntou Mahon.
—Está fascinado com o Lic—V. —Cai-me bem por isso —disse Jim—. E o menino acredita que é um gilipollas. Obrigado, Derek. Curran se separou da parede. —Ou é o upir ou não o é. Como o averiguamos? Doolittle se revolveu na cadeira. —O único modo se soubesse com segurança, meu senhor, é fazer um exploratório com uma amostra de sangue. O sangue não pode ocultar a magia quando a separa do corpo. Nesta questão, o tempo é de vital importância. Quanto menos se degrade o sangue, melhor. Sugiro que levemos um exploratório portátil. —Se for o que acreditam que é —disse brandamente o lobo alfa—, teremos que ir preparados. —E não acredito que aceite voluntariamente nos entregar uma amostra de sangue —disse Mahon. —Não podemos lhe obrigar —disse o alfa lobo.
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Obrigar a alguém a entregar uma amostra de sangue com a intenção de realizar um exploratório era ilegal. Uma violação da privacidade que os tribunais se encarregaram de perseguir. Se Crest resultava ser humano, podia colocar à Manada em uma posição realmente incômoda. —Por não mencionar que lhes reconhecerá —pinjente. , Refletiram sobre aquilo.
—Não importa —disse Curran—. Resolveremos isto agora. —Não é muito agradável, verdade? —Disse-me Jennifer ao descer da caminhonete negra que nos levou até o apartamento do Crest. —Não. —Tudo irá bem —disse, embora ambas sabíamos que mentia. A Manada de cambiaformas coroou em formação as escadas que levavam a vestíbulo. Um homem magro e ruivo estava de serviço e fez gesto de levantarse quando viu que nos aproximávamos. Curran lhe fez uma indicação com a cabeça como se lhe conhecesse de toda a vida e o homem voltou a afundar-se em seu assento. Seis subimos as escadas à carreira: Curran à frente, seguido do Jim, Jennifer, Doolittle e eu. O filho maior da Tia B ocupava a retaguarda. Levava um revólver na mão. Chegamos frente à porta do apartamento do Crest. detrás de mim, o filho da Tia B bloqueava as escadas. Perguntei-me se o revólver seria para mim, se por acaso trocava de idéia. Senti um peso no estômago. Todo aquilo não tinha sentido. Teria que ter vindo sozinha. Não deveria me haver deixado convencer para fazer aquilo. Não voltaria a deixar arrastar a uma situação como aquela nunca mais. Curran bateu na porta com os nódulos. —Olá? —disse a voz do Grest Curran me olhou. —Sou Kate —disse—. Não estou sozinha e tenho que falar contigo. produziu-se um silêncio enquanto Crest digeria a informação e a porta se abriu. Crest estava ligeiramente despenteado. Observou os rostos pétreos ao outro lado de sua porta e deu um passo atrás. —Adiante. Fizemo-lo. Os cambiaformas se desdobraram pela casa e Crest acabou no centro de um amplo círculo. Os cambiaformas mantiveram as distâncias, uns quantos metros entre eles e o humano no centro. O espaço suficiente para agarrar impulso antes de um salto sem tropeçar uns com outros.
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—Importaria-te me dizer do que vai tudo isto? —disse-me Crest olhando de esguelha a Curran. —Esta gente são cambiaformas —lhe disse—. Vários membros da manada morreram. Eu estou envolta na investigação e o assassino desenvolveu uma fascinação doentia por mim. Deixou uma cabeça em decomposição no jardim de minha casa com uma carta de amor. O rosto do Crest perdeu toda expressão. —Já vejo —disse—. E crie que eu sou esse tipo. Doolittle deu um passo adiante. —Se aceitasse nos entregar uma amostra de sangue, a questão ficaria resolvida em questão de minutos. Crest olhava ao menino com o revólver na mão. Engano. Além de mim, ele era o menos perigoso dos pressente. —E se me nego? —Deveria aceitar —disse Curran secamente. Crest me olhou. —Kate? De verdade crie que sou o assassino? —Não. Mas tenho que estar segura. Seu rosto se crispou com uma mescla de emoções. Pensava que lhe tinha traído. Eu também.
—Disse que queria formar parte do que fazia —disse em voz baixa—. Pois já o tem feito. Por favor, nos dê a amostra de sangue, Dr. Crest. —Não quero que lhe façam mal. Crest apertou os dentes. A meu redor, os cambiaformas se esticaram. Sem apartar o olhar de meu rosto, Crest se arregaçou a camisa e manteve o braço em alto. —Será melhor acabar com isto quanto antes. Doolittle atou uma cinta de borracha ao redor de seus bíceps. Uma larga agulha mordeu sua pele e o escuro sangue encheu o tubo transparente. —me diga uma coisa —disse Crest—. O que se supõe que sou exatamente? Dado que Kate está envolta, suponho que não sou um humano normal e corrente. Do que me acusa? —Acredita que se alimenta dos mortos —disse Jim. —Sério? —Sim. dedica-se a caçar. Pelas noites. Humanos, vampiros, cambiaformas, o que seja. Caça-os, mata-os e devora seus corpos. —Encantado — Crest nem sequer piscou. Doolittle levou a amostra ao exploratório.
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—Ah, pois agora vem o interessante, Doc. —Jim estava desbocado. Filho de puta—. Também seqüestra a mulheres. Se as folla e depois as come. Copula com animais e tem cachorrinhos com eles. Hordas de pequenos Crest disformes que perambulam pela cidade em busca de carne humana. —Precioso.
O exploratório começou a tocar castanholas, imprimindo o resultado. Jim deixou de tagarelar e se inclinou para frente, os olhos fixos em sua presa. Os cambiaformas se mantiveram no limite de sua humanidade, dispostos a rasgar carne palpitante. Respiravam pesadamente, seus músculos tensos em antecipação do seguinte movimento, seus olhos famintos e imperturbáveis. E a presa, o humano no centro da habitação, rodeado e sozinho, me olhando como um pirralho perdido. Desenvainé a Assassina e me coloquei em posição. —Humano —disse Doolittle—. Está limpo. —Está seguro? —disse Curran. —Sem rastro de dúvida. Um calafrio percorreu a todo o grupo, como se alguém tivesse conectado um interruptor invisível. Guardei a Assassina. Curran me olhou. Seu rosto estava em calma; a calma que precede à tormenta. —me faça um favor —me disse—. A próxima vez que tenha uma intuição, guarda-lhe isso para ti. deu-se a volta para olhar ao Crest. —Em nome da Manada te ofereço uma desculpa formal e nossa amizade. Receberá uma compensação adequada à ofensa recebida. Seria uma grande honra que a aceitasse. Crest fez um gesto desdenhoso com a mão. —Não te incomode. Curran passou por meu lado como uma exalação e os cambiaformas saíram da habitação um detrás de outro, nos deixando solos ao Crest e a mim. —De verdade acreditava que era um monstro. —Sua voz estava tinta de um assombro genuíno—. me Diga uma coisa, desde quando suspeitava de mim? Foi jantar comigo convencida de que violava e assassinava a mulheres para poder me alimentar de seus corpos? —Não. —Não? por que teria que te acreditar? —Se tivesse suspeitado de ti então, teria tentado te matar.
—Significa isso que não estava disposta a me matar agora? —Começou a caminhar pela habitação, como se permanecer imóvel se converteu em um esforço intolerável—. O vi em seus olhos.
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Se o exploratório houvesse dito qualquer outra coisa, teria-me atravessado com essa espada. E te teria ficado igual! —Não é certo. Haveria-me flanco muitíssimo. Deu meia volta. —Sabe uma coisa, de verdade acreditava que havia algo entre nós. Algo formoso. Mas estava equivocado. Nenhuma réplica tivesse sido o suficientemente boa para aquilo, de modo que mantive a boca fechada. A aflição lhe tinha empalidecido o rosto e tinha convertido seus lábios em uma fina linha. —O pior de tudo é que acredito que tivesse preferido o outro. Desejava que fora essa coisa. Neguei com a cabeça. —Não, é certo. Qual é o problema, Kate? Sempre tem que ter a razão ou é que não era o suficientemente bom para seu mundo? Tenho que ser um monstro para que queira follar comigo? Vindo dele, o impropério adquiriu uma força inusitada, como uma navalhada. —Sinto muito. Crest agitou as mãos diante da cara, como se tentasse agarrar o ar.
—Isso não me serve de muito agora mesmo! —Olhou-me com intensidade e exalou um suspiro—. Estou farto desta conversação e estou farto de ti. te largue. Fora. Parti-me. Crest fechou a porta a minhas costas. Teria preferido que a tivesse fechado de uma portada, mas o fez cuidadosamente. Ninguém me esperava nas escadas. Cheguei ao vestíbulo e me aproximei do porteiro. —Há alguma porta traseira? O homem assinalou para o final do corredor. Encaminhei-me por ele, saí do edifício e continuei caminhando. Os cambiaformas podiam me encontrar por meu aroma. Se realmente queriam me rastrear, não podia fazer nada para evitá-lo. Mas tinha a sensação de que Curran estava muito aborrecido comigo para fazê-lo. Detive uma calesa atirada por um cavalo e lhe paguei ao condutor cinqüenta perus para que me levasse até a linha de energia.
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Capitulo 9
Sentei-me no alpendre, alternando uma garrafa de limonada forte Boone's Farm e outra de sangria, enquanto contemplava o espetáculo da noite. Tudo estava em calma. A brisa noturna tinha deixado de sopro e nada perturbava as escuras folhas nos ramos dos álamos. Nenhuma fibra de erva se agitava no jardim a meus pés. Dava um bom gole de sangria e outro de limonada. Sem beber muito, mas me embebedando. Fazendo que meu corpo se sentisse tão mal como minha mente. Tivesse-me gostado de ter um pouco de cerveja para baixar o vinho. Haveria-me sentido mau mais rápido. Tinha conseguido muito. Era difícil estar ali sentada e não me sentir orgulhosa comigo mesma. Não tinha conseguido encontrar ao assassino do Greg. E voltaria a matar, a mulheres jovens, a cambiaformas, e nem sequer sabia onde devia começar a procurar. Tinha arruinado a pouca credibilidade que tinha frente à Manada. E frente à Ordem. Tinha tido algo com um tipo agradável. Embora não era perfeito, eu gostava. Ele se tinha esforçado muito. Um tipo normal, decente. E eu tinha jogado por terra nosso p flauta relação. Como não formava parte de meu mundo, tinha-o miserável a ele. A minha maneira. Levei-me uma das garrafas à boca e a esvaziei de um gole, sem saborear seu conteúdo, até quase me engasgar. Sustentei-a em alto e saudei a distante delineia de árvores. —Bem feito. As árvores não me responderam. Agitei a cabeça e agarrei a outra garrafa. E então vi o monstro em meu jardim. Estava sentado em cuclillas, olisqueando o ar. Era um bode enorme, do menos setenta e cinco quilogramas. A pelagem comprido e cinzento lhe crescia de forma irregular sobre seu magro corpo. Nas zonas livres de cabelo podia vislumbrar uma pele pálida e enrugada, especialmente no estômago, onde várias cicatrizes desiguais se entrecruzavam. Uma pequena corcunda lhe sobressaía das costas, e a pelagem que a cobria era mais largo e grosso, formando um arbusto espesso que brilhava justo detrás da enorme cabeça, a qual estava coroada por umas orelhas redondas de aspecto humano. As patas posteriores da besta eram fortes e musculosas, com uma forma similar a dos caninos, mas com uns dedos mais largos. As pezuñas dianteiras, mais pequenas e com uma forma perturbadoramente humana, sujeitavam algo escuro.
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Entrecerré os olhos e distingui um cabelo emaranhado e úmido. Um esquilo. A criatura olisqueó sua presa com um focinho proeminente e enrugado e fincou as presas no corpo do esquilo. O nauseabundo rangido de ossos quebrados truncou o silêncio noturno. Mastigou com entusiasmo, espremendo a massa sanguinolenta com a mão, e levantou o olhar para me olhar. Não cabia dúvida de que os miúdos olhos injetados em sangue da besta eram humano. Quando olhava a um cambiaforma aos olhos, via uma besta pugnando por sair. Quando olhei os olhos daquela coisa, acenderam-se com a luz da compreensão, uma luz débil mas cheia de inteligência e que comunicava uma tristeza e uma capacidade infinita de sofrimento. A coisa apontou ao céu com seu horrível focinho e emitiu um som horripilante e prolongado, como se uma dúzia de vozes murmurassem ao uníssono a mesma frase em doze línguas distintas. Continuando, voltou a inclinar a cabeça e lhe deu outra dentada ao esquilo. Distingui o som de umas unhas rasgando o chão. Olhei a meu redor. Formas grotescas se escondiam entre as sombras, algumas pequenas, outras maiores. Posadas sobre o corrimão, movendo-se sigilosamente sob as escadas do alpendre e revoando sob a caminhonete estacionada no caminho de entrada, movendo-se e agitando-se a meu redor. O pescoço da garrafa tocou meus lábios e bebi dela à medida que as bestas se aproximavam. —Pobre Crest —murmurou uma voz aveludada—. Levo vivo há trezentos anos e não recordo a última vez que me ri tão a gosto. Deixei a garrafa no chão com intencionada lentidão e olhei para o lugar de onde procedia a voz. —É você —disse—. Mierda. Não o houvesse dito nunca.
Bônus sorriu e me mostrou os dentes, brancos e inhumanamente afiados. Tinha muitos. Que estranho que não me tivesse fixado nisso antes. O cabelo negro, em ponta, saturado de gomina, tinha desaparecido, e em seu lugar largas fios lustrosos se derramavam sobre seus ombros. Era de cor cinza, um cinza escuro similar à cinta adesiva suja. Sua pele era pálida e tersa, e estava vendo muita mais do que desejava, pois Bônus tinha decidido acudir meio nu salvo por algo que parecia um kilt ou uma saia que lhe pendurava dos quadris e que não conseguia cobrir do tudo o que deveria cobrir. O mundo se tornou impreciso e me esfreguei a frente. O vinho começava a fazer efeito. Bônus se deslizou do corrimão a que tinha estado subido.
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Avançou pelo alpendre com movimentos líquidos e fluídos, ficou de quatro patas e se sentou sobre as pranchas de madeira, a meu lado. Havia algo tão insólito em seu modo de mover-se, em como se sentou, em seu aroma, no modo de me olhar com uns olhos transbordantes de ódio, um pouco tão desumano que meu cérebro se deteve, estrelando-se contra aquela desumanidade como se se tratasse de um muro de tijolos. Tinha vontades de gritar. Obriguei-me a permanecer sentada. O esforço queimou parte do álcool e me esclareceu ligeiramente a visão. No jardim, diversas criaturas menores esperavam impacientem a que a maior terminasse com o esquilo. —É duro, verdade? —disse o upir brandamente—. Me refiro a estar sentada a meu lado. Desejas gritar e sair correndo; correr tão rápido como pode pela erva, sem olhar atrás, sabendo que não pode escapar mas seguindo adiante porque é melhor morrer me dando as costas. Sabe por que te ocorre isso? Porque seu corpo sabe que é comida, algo que se usa, come-se e se atira.
Levei-me a garrafa aos lábios e dava um pequeno gole. —Quantas novelas bregas tiveste que ler para que te ocorra algo assim? O upir se inclinou, deslizando-se até ficar de flanco, sua cabeça apoiada em um braço dobrado pelo cotovelo. —Ri, Kate. É a última oportunidade que terá de fazê-lo. Encolhi-me de ombros. No jardim, o caçador de esquilos se tirou de cima uma coisa horrível e mais pequena que ele que tentou lhe arrebatar a bola de cabelo que tinha na mão. A criatura pequena grunhiu, preparou-se para outra passada e ficou petrificada, sua cauda curta e quase traslucida agitando-se, sujeita por uma mão invisível. Permaneceu rígido, com as magras patas separadas. O tremor se estendeu por suas costas até chegar ao pescoço. A mão fantasma apertou com força uma última vez e lhe soltou. A criatura se sacudiu e se desabou. Tremendo, ficou em pé com dificuldade e se afastou a tropicões, gemendo em voz baixa, com o rabo entre as pernas. —Às vezes os filhos se comportam mal —disse Bônus—, e devem ser castigados. Se lhe está perguntando isso, também posso fazê-lo com minhas mulheres. Olhou à criatura de grande tamanho e esta se aproximou de nós. —Façamos as apresentações quanto antes —disse o upir—. Nestes momentos, este é meu filho maior. Chamo-lhe Arag. Arag, esta é sua futura comida. Futura comida, este é Arag. Os humanos olhos do Arag, afundados em seu deformado crânio, abriram-se. —Que demônios lhe foll...?
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—Um babuíno. —O upir meneou a cabeça—. Forte, cruel, agressivo. Por desgraça, tem mais de mim que de sua mãe. Sabe falar. Diga algo ao Kate, Arag. O monstro se olhou as mãos. Trocou o peso de seu corpo de um pé ao outro, inseguro, e emitiu um comprido e distorcido chiado, como umas unhas rasgando uma piçarra. —Sangreeee —gritou. —Triste, verdade? —Bônus sorriu—. Uma criatura lastimera e horrível que percorre o mundo lançando palavras ao azar, desejando algo que nem ele mesmo conhece e odiando a todo mundo e a tudo. Tentei lhe arrancar as cordas vocais mas as malditas voltaram a crescer. —Sangreeee.—Arag suspirou. O upir lhe ordenou que se retirasse com um gesto da mão. Quando Arag retornou a sua posição no jardim, o upir também suspirou. —Provavelmente o mate quando acabarmos com isto. Crie que deveria fazêlo? Bebi um pouco mais de vinho. —Isso não te ajudará —disse Bônus. Encolhi-me de ombros e bebi um pouco mais. —por que aliar-se com o Olathe? —por que não? Era um bom plano. cedo ou tarde, os mestiços e os nigromantes se enfrentaram entre eles, e eu tivesse disposto da suficiente carne de vampiro para indigestarme. A carne de vampiro é a melhor, Kate. Amadurecida e saborosa, como um bom vinho. —Também come cambiaformas. —Sua magia me faz mais forte. —Bônus fez uma careta—. Mas têm sabor de mierda. Tocou-me o cabelo com seus dedos. Agarrou uma mecha e o levou ao nariz. —Suponho que o plano original era pôr um pãozinho no forno do Olathe. Bônus me mostrou seus dentes.
—A muito zorra era estéril. Pode acreditá-lo? —Retorceu meu cabelo ao redor de seus dedos e olhou a lua através dele. Apartei-me e ele soltou a mecha com uma risita—. Mas então topei contigo. E você não é estéril, Kate. —por que eu? aproximou-se ainda mais, seu quente fôlego em minha bochecha. —Sei o que é. subi a colina e hei olisqueado a tumba desse saco de ossos putrefatos ao que chamava Pai. Cheirei seu fedor e sei que seu sangue não corre por suas veias. Mas sei a quem pertence seu sangue. Todo esse poder reunido em um pequeno e doce pacote. Sabia o que faz milhares de anos seu autêntico pai se dedicava a caçar aos de minha espécie?
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Sua pequena e lastimera memore não pode entender todo o ódio que sinto por ele. Dará-me um filho, Kate. E toda a magia de seu sangue será minha. Riu brandamente e tive que tragar para conter um grito. —por que matou ao Greg? —estava-se aproximando muito. O pequeno subterfúgio do Olathe não conseguiu enganá-lo. Sabia que teria que matá-lo um momento ou outro. O truque era fazer o de tal modo que você deixasse sua preciosa e protegida casa para perseguir o assassino. —Queria que enfrentasse ao Olathe. Queria saber se meu sangue era mais forte que a sua. —Sim. Embora demorou mais da conta em averiguá-lo. Virtualmente te desenhei um mapa. Marquei-te o caminho com miguitas de pão. Quão único devia fazer era seguir o atalho, mas serpenteou, fez alguns passos em falso. Um macaco o teria feito melhor. Embora, pensando-o bem, solo te separa dele um pequeno elo. Lambeu-me a bochecha.
—Esta noite a magia é especialmente intensa, e cada vez estou mais faminto. Tenho um corpo fresco me esperando em minha casa. E dentro de pouco terei mais. Muitos nigromantes da Nação aceitarão me servir a mim em lugar da esse louco em seu trono dourado. Acabemos com isto, o que diz? Não disse nada. —Nenhuma réplica engenhosa? Tem medo, Kate? —Sua voz passou a ser um simples sussurro, mas suas palavras ressonaram podendo—. Estene aleera hesaad de virem aneda—, E, agora, será minha para sempre. OH, Deus. Para ele as palavras de poder eram uma linguagem. Senti a pressão que exercia sobre mim a força da magia antiga, esmagando minha mente com sua enormidade. Envolveu-me um torvelinho de luz, me arrastando a profundidades desconhecidas. Mordi-me a língua e saboreei meu próprio sangue. Algo furioso e desafiante cresceu em meu interior e emitiu um chiado. Deslumbrada pela luz, ouvi como minha voz pronunciava uma só palavra. Dair. «Soltar». A luz se atenuou e vi os olhos de Bônus cravados em meus. Palavras desconhecidas afloraram de um lugar longamente esquecido, embora seu significado era inconfundível. «Arner tervan estene». Eu te matarei primeiro. Rompi a garrafa contra um degrau. O vidro estalou em pedaços e se esparramou sobre o cimento. Cravei a Bônus o bordo afiado na garganta e seu sangue me salpicou. «Ud». Morre.
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O estou acostumado a tremeu com o poder liberado sobre o mundo. O upir se desabou enquanto se sangrava pela garganta. Corri para a porta e entrei na casa. A barreira de amparo descendeu detrás de mim. O upir emitiu um estranho gorjeio que lhe saiu de sua destroçada garganta, mesclando-se com as fervuras de sangue escuro. levou-se as mãos ao pescoço. Seus dedos se fecharam sobre o vidro empapado, escorregaram, agarraram o bordo com força e o vidro o seccionó a carne dos dedos. Estirou e se arrancou a parte de garrafa do pescoço, deixando-o cair ao chão despreocupadamente. O gorjeio se intensificou, vertendo sangue cada vez que tossia com dificuldade. Fragmentos de vidro caíram da ferida arrastados pelo fluxo carmesim. Uma criatura horrorosa reptó até o alpendre para olisquear a sangrenta garrafa. Bônus o agarrou com uma mão e lançou seus vinte quilogramas de peso sobre o corrimão como se se tratasse de um gatinho. Seus dedos se fecharam sobre o terrível corte e secaram o sangue. A ferida se estava fechando. À medida que se selava, o gorjeio se fez mais grave e compreendi que Bônus estava rendo. —Bom intento —disse me mostrando seu pescoço intacto—. Meu turno. Saltou sobre a porta aberta. Uma explosão carmesim percorreu a soleira e Bônus deu um alarido antes de apartar-se dele. Saltou para trás e deu uma volta sobre si mesmo, os olhos chamejantes. A prata que vertiam seus olhos molhou suas bochechas, lhe manchando a pele. Já não havia nada humano nele. Voltou a arremeter contra a porta e reparou nos afiados e angulosos ossos de vampiro que a protegiam do interior. —Zorra! —Pedra, madeira e osso, Bônus —pinjente fracamente—. Seu feitiço está reforçando ao meu. Gritou e todas as janelas da casa vibraram. Tampei-me as orelhas com as mãos. Bônus golpeou com os punhos o chão do alpendre e as pranchas de madeira estalaram. —Não funcionará —lhe disse—. Embora derrube a casa inteira, o feitiço seguirá em pé.
Olhou-me fixamente. Uns sulcos chapeados lhe marcavam o rosto, como se em lugar de lágrimas, chorasse prata. Sua prole se estremeceu e se tornaram ao chão. —Isto não terminou —grunhiu—. Matarei a todos aqueles que lhe ofereçam seu amparo. Matarei ao gato e devorarei sua carne. Sua magia será minha e então retornarei. E nenhum feitiço poderá me deter! Saltou do alpendre para internar-se na noite. Sua origem lhe seguiu. Apoiei a cabeça na parede. A bebida me nublava a cabeça. O upir não tinha morrido. Embora tampouco o esperava.
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Alguém capaz de tecer as palavras de poder para as converter em frases não podia morrer com uma simples palavra. O gato? Havia dito que mataria ao gato. referia-se ao Jim? Não, a Curran, tinha que ser Curran. Jim não era o suficientemente forte para ameaçar meu feitiço. Todos os camtaiaformas tinham uma resistência natural aos feitiços de amparo. Um pouco relacionado com a parte animal de sua natureza. Curran era o que dispunha de uma maior resistência. Podia chamar o Jim para lhe advertir. Embora quem me acreditaria? —«E os homens se burlaram do profeta!» —murmurei antes de me pôr em pé. Chamei o Jim de todos os modos. Não agarrou o telefone e tampouco saltou a secretária eletrônica.
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A SACUDIDA DE um feitiço dispersandome rasgou o crânio. Apareceu a dor de cabeça e o sonho se esfumou. Havia alguém em minha casa. Deslizei uma mão sob o travesseiro, encontrei o punho da adaga e a desenvainé. Fiquei tombada, respirando pausadamente. O silêncio e a escuridão reinavam em toda a casa. Não havia necessidade de sair de caça. Fora quem fosse, encontraria-me. Uma sombra do tamanho de um homem apareceu no corredor, uma escuridão mais insondável que as próprias sombras. Duvidou um instante e continuou avançando. Fechei os olhos e lhe observei através das pestanas. Cinco metros. Respirar, expirar. Quatro. Suficiente. Lancei a adaga. A folha escura fendeu o ar e se cravou no ombro da sombra. Mierda. Tinha falhado. A sombra se equilibrou sobre mim. Alarguei o braço em busca de Assassina mas o bode era muito rápido. Golpeei-lhe com ambos os pés, com força. A sombra os apartou e me agarrou pela boneca direita. Uns dedos de aço a apertaram e a mão ficou inutilizada. Golpeei-lhe na garganta com a mão esquerda. A sombra emitiu um grunhido e uns olhos amarelos me olharam de perto.
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—me solte a mão, casulo! Curran me soltou e me esfreguei a boneca. —Maldita seja, não sabe falar?
Olhou-me fixamente sem compreender. Alarguei o braço para acender a lamparita de noite, recordei que a magia ainda não se retirou e tirei uma vela da mesita. Acendi um fósforo. A fraca chama da vela prendeu. Curran estava frente a mim, com os olhos muito abertos, imperturbável. Diminutas marcas vermelhas cobriam seu rosto e suas mãos, mesclando-se em uma uniforme franja carmesim. Toquei-lhe a palma da mão com a ponta dos dedos e senti a coceira da magia. Sangue. Curran estava talher de sangue, gotas minúsculas brotando de todos os poros de seu corpo. Tinha atravessado minha barreira de amparo e esta se cobrou seu preço. —Curran? Não deu amostras de me ouvir. Devia estar aturdido detrás fazer pedacinhos o feitiço. A dor de cabeça me esmurrava o crânio como um martelo. Pu-me em pé, agarrei a Curran da mão, acompanhei-lhe ao quarto de banho e lhe coloquei sob a ducha. Abri a água fria e deixei que a geada cascata lhe caísse sobre o rosto. Baixei a tampa do privada e me sentei com a cabeça entre as mãos. A água continuou caindo sobre ele. Teria dado a vida por uma aspirina. Curran deixou escapar um fôlego irregular e agarrou ar. A consciência retornou a seus olhos. —Fria—disse. Tremendo, apagou a água e se sacudiu. As gotas apagaram a vela e a escuridão voltou a engolimos. Alarguei a mão às cegas e lhe lancei uma toalha. Encontrei a porta a provas e me dirigia à cozinha. Em metade do curto corredor, algo me caiu sobre a cabeça. Dava um salto para um lado e o agarrei ao vôo. Uma ramita. Que demônios...? Levantei a cabeça e vi o céu noturno. Uma brecha enorme e irregular decorava o teto de minha casa. Curran tinha eleito o ponto mais elevado, onde o feitiço devia ser mais débil, e se tinha aberto passo através da barreira levando-se parte do teto com ela. Apertei os dentes, entrei na cozinha e encontrei um abajur feérica. Depois de certa persuasão, o abajur acabou prendendo e sua discreta luz azul se estendeu pela habitação. Curran apareceu na soleira. —Carregaste-te o teto —lhe disse.
—Era mais fácil que a porta —disse—. Chamei mas não respondia. Massageei-me as têmporas. de agora em diante, não mais vinho. Ouvi um ruído metálico. Levantei a cabeça e vi como Curran deixava a adaga sobre a mesa. —Como tem o ombro?
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—Adormecido —disse ele. lhe dizer que tinha pontudo à garganta não melhoraria as coisas. —Tinha razão —disse—. Não terminou. —Sei —pinjente brandamente. —É um upír. —Sei. —Tem ao Derek. Olhei-lhe fixamente. —Enviei ao Derek e ao Corwin aos bosques —disse Curran—. Lhes atacou no ponto de encontro e se levou ao Derek. Quão último recorda Corwin é que o menino tinha uma perna rota mas que estava vivo. —E Corwin? —Está ferido —disse Curran. —Grave? —está morrendo.
—A TERCEIRA ÁRVORE pela esquerda —disse Curran. Estávamos no alpendre, ombro com ombro, a noite desdobrando-se a nosso redor. —Vejo-lhe. —Algo com aspecto de réptil estava acuclillado sobre o ramo de um álamo, sua larga cauda enrolada no tronco da árvore. O observador que tinha deixado Bônus para me ter controlada. —Não podemos lhe matar. Bônus acredita que ficarei em casa, oculta detrás de minhas barreiras. Se lhe matarmos, saberá. Tem uma espécie de vínculo telepático com eles. Curran avançou a grandes pernadas até a árvore. A coisa lhe observou com uns olhos enormes, protuberantes. Curran saltou, agarrou-se a um ramo baixo e subiu a ela. O monstro vaiou. Fui até o abrigo e traje de volta um cilindro de arame de espinheiro. Curran agarrou ao réptil pelo pescoço, este emitiu um chiado e se soltou do ramo. Curran o arrastou até o chão, sentou-se sobre ele e atou o arame ao redor de seu pescoço. Tinha a pele traslucida e de um tom oliváceo, e as escamas transparentes brilhavam na noite. Curran ficou em pé e atamos o outro extremo do arame a uma árvore. Encaminhamo-nos à linha de energia.
SENTAMO-NOS EM uma estreita plataforma de madeira, construída com precipitação a partir de vários fragmentos desprezados. Eram conhecidos com o nome de táxis de energia, trambolhos baratos de madeira que estavam empilhados junto aos pontos de energia. Nada vivo podia viajar sobre a linha sem algum tipo de suporte sob seus pés.
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Se foi o suficientemente estúpido para tentá-lo, a corrente mágica lhe seccionaría as pernas à altura dos joelhos. A linha de energia nos levou pelo norte de Atlanta a uns cento e cinqüenta quilômetros por hora. A magia mantinha ao táxi completamente imóvel, tanto que tinha a sensação de que a basta plataforma de madeira não se movia e que o planeta girava tranqüilamente a seu redor.
—me explique outra vez o da barreira de ossos —disse Curran em voz baixa. —O upir matou aos vampiros e se alimentou com eles. A carne que consumiu criou um vínculo entre os ossos e ele. Ao introduzir os ossos na casa e atá-los aos alicerces de pedra e aos muros, obriguei-lhe a lutar contra si mesmo. É virtualmente impossível romper um feitiço desse tipo. Também deixei em seu sítio os marcadores da barreira ao redor do jardim, para lhe permitir o acesso direto ao alpendre. Estava muito emocionado para reparar nesse detalhe. —Pô-lhe uma ceva? —Sim. —Então as barreiras de ossos podem reverter-se mas as de sangue só podem romper-se por uma pessoa com um sangue similar? —Maçãs e pêras —disse fracamente. Sentia-me cansada e inquieta ao mesmo tempo—. As barreiras de sangue obtêm seu poder diretamente do sangue, enquanto que as de Pedra—Madeira—Osso são barreiras ambientais. Extraem o poder da própria magia. A presença dos ossos só serve para as definir, algo similar ao que ocorre com as lentes que solo filtram uma cor determinada. Bônus não pode entrar em minha casa quando a magia está ativa. E como ele é magia pura, deve estar muito fraco para tentá-lo durante a tec. Observei rodar o planeta; os vales e colinas, sumidos na escuridão, davam voltas a nosso redor. Pobre Derek. Apertei os dentes. —Não —disse Curran. —Teria que ter chamado a alguém. —Não nos olhamos. Preferimos seguir contemplando o rosto da noite. —Não tivesse importado —disse Curran—. Os teria enviado ao bosque de todos os modos. Era o lugar mais seguro para eles. —Em retrospectiva, tudo encaixa. —Tinha a voz rouca—. Era o oficial do Ghastek, e formava parte da unidade de reconhecimento da Nação. Sabia quando saíam os vampiros e aonde se dirigiam. Conhecia as rotas que segue sua gente desde suas instalações até a cidade. E dedicava seu tempo livre a ligar com mulheres jovens no bar. —Tombei-me sobre a plataforma. Tinha disposto da vantagem que me oferecia a visão da Anna e nem sequer isso me tinha feito suspeitar nada—.
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Sou tão estúpida. Curran não disse nada. As estrelas brilhavam com força, mofando-se de nós das alturas, rendo-se de dois humanos montados em um montão de lixo. Fechei os olhos mas o sonho me negou o descanso. A mulher grunhiu enquanto batia as desemparelhadas mandíbulas e um cambiaforma em forma humana deu um passo adiante. —Dois grupos —disse o homem—. Uma pequena família do Waynesville e nove pessoas do Asheville. produziu-se um deslizamento de terra e tiveram que atravessar o lodo para chegar ao ponto. Curran assentiu e se dirigiu a grandes pernadas até a estrada de terra flanqueada por densos arbustos. Não muito longe de ali pude ouvir o horrível gemido de um veículo reacondicionado. —Um cavalo teria sido mais silencioso —pinjente —Eu não gosto dos cavalos —disse ele. A nosso redor, os arbustos estavam lotados de grácis forma. Observavam-nos com olhos reluzentes, seguindo cada um de nossos movimentos. A Manada se estava mobilizando, reunindo-se em suas instalações. Nenhum cambiaforma ficaria fora de seus muros, e até que o último deles cruzasse a soleira de sua fortaleza, as estradas de acesso permaneceriam fortemente controladas. —Ninguém pode estar sempre em estado de alerta —disse Curran como se me tivesse lido o pensamento—. Detrás matar ao Olathe, deixei-lhes partir. Mas não tinha terminado. O estrondo produzido pelo veículo propulsado por água nos impediu de seguir falando. Depois de uma curva na estrada, vi o Jipe reacondicionado protegido por três lobos. Subimos a ele e Curran o conduziu até o edifício.
—Cravei-lhe uma garrafa rota na garganta —lhe disse. —Vi o vidro manchado de sangue. —ficou a rir. Tinha a garrafa cravada no pescoço, estava sangrando e ria de mim. —Não rirá quando lhe encontrarmos. —Disse-o sem fanfarronice, sinceramente, como quando alguém promete que comprará uma barra de pão de caminho a casa. O Calendário afirmava que o upir era imune ao metal, à madeira, à pedra, às presas e às garras. Como demônios íamos matar o? Curran alargou o braço, apoiou um instante sua mão em meu antebraço e a apartou. Por alguma razão, aquilo me reconfortou. Não havia razão alguma para que o fizesse, mas o fez. Fechei os olhos, apoiei a cabeça nas pranchas que emprestavam a umidade e fiquei dormida.
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UM LIGEIRO TOQUE no ombro despertou. —Ponto de energia —disse Curran. Incorporei-me e vi a fissura na linha de energia a uns metros por diante, onde a visão do mundo normal se distorcia. Diversas figuras altas nos esperavam. —Amigos ou inimigos? —Amigos. A plataforma se curvou, tentando contrair-se sobre si mesmo. As velhas pranchas rangeram sob a pressão e se fizeram escorregadias à medida que a úmida madeira expulsava a água. A linha tremeu com uma sacudida espasmódica e lançou aos disformes braços de uma dúzia de cambiaformas. Umas mãos em forma de garras me ajudaram a descer da plataforma. Pu-me em pé por mim mesma.
—Quantos ficam? —perguntou Curran à fêmea principal.
PESADA-A RESPIRAÇÃO do Corwin ressonava na enfermaria da manada como o tangido de luto de um sino. Seu rosto desencaixado estava gasto, a pele cinzenta pega ao osso. Olhou-me fixamente com seus olhos febris. —A chamada do Bosque —sussurrou. Toquei-lhe a mão e umas unhas infames me rasgaram a pele—. Uma boa caça —disse o homem—lince. —Não sabe quem é —me disse Doolittle por cima do ombro. Lentamente, retirei minha mão e lhe acariciei a pelagem felpuda. —Não durará muito —disse Doolittle. —Dói —disse Corwin com voz rouca. Olhei ao Doolittle e este negou com a cabeça. —Não posso lhe dar nada para acalmar esse tipo de dor. —Quando lhe encontramos, estava empalado no poste de uma luz —disse Curran em voz baixa. Corwin se incorporou. Umas mãos enormes me agarraram pelos ombros e seus olhos verdes flamejaram, repentinamente lúcidos. —Estou-me morrendo —rugiu. —Sim —lhe disse ao mesmo tempo que Doolittle o negava. O gato se agarrou para mim com firmeza. —Nunca veio ao Bosque —disse. —Não. —Sustentei-lhe com cuidado. Seu peito se estremecia, sacudido pela dor. —Uma lástima... —sussurrou o gato.
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Fraquejou entre meus braços e lhe ajudei a reclinar-se sobre o travesseiro. Começou a tremer. Uma corrente de sangue empapou os lençóis, deixando a um lince entre o matagal de ataduras. Sua pelagem estava condensada e sangrento. —Mierda! —gritou Doolittle me apartando. Afastei-me da cama enquanto ele cogia rapidamente uma seringa. Curran me agarrou pelos ombros e me obrigou a olhar para a cama situada ao outro extremo da sala. —Necessito que identifique a alguém—disse. Olhei em direção à cama e vi um homem convexo de costas e coberto até o queixo com um lençol. Havia algo muito pouco natural em sua rígida pose. Curran retirou o lençol e vi que o homem estava pacote à cama. Fixei-me em seu sujo cabelo castanho e em seu duro rosto. Resultava-me familiar. Tinha-lhe visto antes. O homem abriu os olhos e dava um passo atrás, reconhecendo de repente a promessa em seus pálidos olhos. O vagabundo do escritório do Ted. As peças encaixaram. Que estúpida tinha sido. —Encontramo-lhe junto ao Corwin, inconsciente —disse Curran—. Parece ser que tentou ajudar ao Derek, embora não quer me dizer por que. —Solta-o —disse. Curran me olhou. —Tem problemas para controlar-se. —Solta-o —repeti—. Não deveria ter a um Cruzado da Ordem pacota em sua enfermaria, Curran. Um som agônico chegou a meus ouvidos procedente da cama do Corwin, o alarido rouco e nefasto de um animal agônico. Por um instante, Curran pareceu
estar a ponto de golpear a parede com o punho, mas o impulso se desvaneceu e a expressão de calma retornou a seu rosto. —Faz que se comporte—disse Curran—e lhe desatarei. Sentei-me no bordo da cama. O olhar do Cruzado tinha um toque de loucura. Todos os Cruzados estavam loucos. Formava parte de seu trabalho. Se naquele momento se liberasse de suas ataduras, tentaria matar a tudo o que se encontrasse na habitação. —Sei quem é o upir —lhe disse ao Cruzado—. E sei o que quer. —Olhou-me fixamente. Assim que um Cruzado te meu raba, quando cravava seus olhos em ti, começava a suar, seus músculos se esticavam e sabia que solo ficavam duas opções: lutar ou fugir. Entretanto, naquele momento não me olhava daquele modo. Simplesmente me escutava—. O upir não partirá —disse—. Logo virá e enfrentarei a ele. — Assinalei a Curran—. E ele também. Enquanto Curran e eu lutamos e sangramos, um homem seguirá pacote a esta cama porque é muito teimoso para comprometer-se. —Tiraram-me minhas armas —disse o Cruzado. Curran assentiu.
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—Pode as recuperar se prometer não atacar a minha gente. E ficar nestas instalações. Agora mesmo não posso permitir que perambule por aí jodiéndolo todo. Ou coopera ou fica pacote à cama. Olhei ao cruzado. A loucura brilhou em seus olhos um instante antes de desaparecer. —De acordo —disse. Extraí uma faca de meu cinturão e cortei a cinta que sujeitava seus braços. O cruzado se incorporou enquanto se esfregava as bonecas. Ofereci-lhe a faca e cortou as cordas dos tornozelos.
—Como te chama? —perguntei-lhe. —Nick —disse. Tinha posto o moletom característico da Manada e cheirava a limpo. Olhei a Curran. —Obrigou-lhe a tomar banho? —Demo-lhe um bom mergulho de cabeça —disse Curran—. Tinha piolhos. —Minhas armas —disse Nick. Curran nos indicou que lhe seguíssemos e o fizemos. Conduziu-nos até o corredor e, de ali, a uma pequena habitação. —Tenho que partir —me disse Curran com a mão no pomo da porta. deu-se a volta e os dois homens cruzaram um olhar, avaliando-se—. Não te mova daqui. —Não o fará —lhe disse. Os cruzados estavam loucos, mas seguiam sendo Cavalheiros da Ordem. Podia confiar-se em sua palavra. Curran nos abriu a porta e partiu. Entramos na habitação. Uma solitária cama pega à parede junto a um pequeno armário e um escritório abarrotado de metal. O lugar não parecia estar habitado: nenhum objeto decorativo pessoal, nenhum objeto de roupa desordenada. Um pesado saco de boxe pendurava do teto e me perguntei se aquilo seria o habitual em todas as habitações. Nick se aproximou do escritório e eu me sentei na cama. Quando os cambiaformas lhe apanharam, ia armado para a caça do urso. Uma dúzia de afiadas facas brilhavam sobre a mesa, junto a 9 mm Sig Sauer, .22, vários carregadores e caixas de munição. Uma larga cadeia estava enrolada ao redor da escopeta. De prata, a julgar pela cor do metal. Em um dos extremos da mesa, uma espada curta de uso gladiador, rodeada de vários facões e uma folha de serra em forma de meia lua desenhada para seccionar jugular. Em uma esquina, um matagal de cordas e vários objetos de madeira: um pau. Também havia um cinturão multiusos, dois muñequeras de pele, desenhadas para levar as facas, uma vagem negra, um estojo de primeiro socorros—r e vendagens.
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Nick se tirou a parte superior do moletom, deixando ao descoberto um torso com diversas cicatrizes. Levava uma atadura ao redor de seu ombro esquerdo. Retirou as vendagens, exibindo uma ferida irregular e recente, e aplicou sobre ela a vendagem. Depois de agarrar um cilindro novo de gaze que havia sobre a mesa, começou enfaixar-se de novo o ombro. Pu-me em pé, coloquei a seu lado e lhe aconteceu a vendagem pelas costas. Trabalhamos em silêncio até que a ferida ficou perfeitamente coberta. Voltou a ficar o moletom e se atou o cinturão multiusos ao redor da cintura. —Quanto tempo leva lhe rastreando? —perguntei-lhe. Não me olhou; seguia concentrado no arsenal frente a ele. —Quatro anos. —Deslizou os afiadas facas um a um nas Primeiro muñequeras no Quebec, depois no Seattle.Y enTulsa. Apoiei uma mão no escritório. —Nada de tudo isto lhe matará. Nick embainhou o gladius em sua capa. Era-lhe indiferente não dispor de nada. Tentaria-o de todos os modos. —Como soube que o upir atacaria ao menino? —Tinha um vínculo contigo. Era um objetivo óbvio. —Eu sou melhor objetivo. —Não. te quer viva. Para reproduzir-se. —Deu um passo minha direção e me tocou um braço. Um pálido luminescência vibrou na ponta de seus dedos e se apagou—. Poder — disse—. Se sente atraído por ele como uma traça à luz. Ele não necessitava demonstrações. Sabia com um simples contato. Tentei recordar se me havia meio doido no escritório do Ted. Tínhamo-nos roçado ao sair da habitação.
—Responsabilizou-te do menino —disse—. E deixou que o apanhassem. Tinha razão. —E o diz alguém que se deixou apanhar pela Manada e que acabou pacote a uma cama. Direi-te uma coisa, me traga a cabeça do upír e deixarei que me julgue. Olhou-me um instante com o semblante inexpressivo e, continuando, disse com sua voz irritante: —Parece-me justo. Movemo-nos ao mesmo tempo e acabei olhando o canhão de seu Sig Sauer enquanto mantinha a ponta de Assassina pega a seu jugular. Não estava segura de como tinha sabido que ia mover se. A porta se abriu lentamente. Alguém entrou na habitação e se deteve. Nenhum dos dois desejava apartar o olhar. Passaram uns segundos e o recém-chegado partiu por onde tinha vindo. A porta se fechou com um estalo. Um golpe seco na porta rompeu o silêncio.
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Fiz- uma careta ao Nick. —Se for fazer algo, faz-o já, assim poderei te fatiar o cangote e seguir com minha vida. O canhão da pistola apontou ao teto e desapareceu na capa com um clique tranqüilizador. —Agora não—disse. Guardei a Assassina em sua vagem. Outro golpe na porta. —Adiante —disse. A porta se abriu e na soleira apareceu uma mulher cambiaforma. —Curran deseja lhes ver —me disse.
A mulher nos acompanhou à sala do Conselho, na parte traseira do auditório, e nos sustentou a porta. Ao entrar, vi uma garota morta no chão. Estava de flanco, com as pernas abertas obscenamente, os braços estendidos para diante. Sua camiseta estava manchada de mofo. Um diminuto coração em uma larga cadeia de ouro, do tipo que uma garota jovem compraria para ela mesma, derramava-se entre o tecido rasgado e terminava no chão. Uns sulcos profundos percorriam o chão de madeira onde suas unhas tinham arranhado as pranchas. Devia haver-se transformado antes de morrer. Tinha a cabeça em um ângulo pouco natural, os olhos azuis cravados no teto. Parecia jovem, aterradoramente jovem; quatorze anos no máximo. Alguém lhe tinha partido o pescoço, poda, rapidamente, com um movimento brusco. Curran observava o corpo da penumbra. Manon estava sentado contra a parede, esfregando-a frente. Com a mão sujeitava uma folha de papel branca. —O upir enviou um número de telefone —disse Curran. Manon se levou uma mão à cara. A cena se repetiu frente a meus olhos: a garota equilibrando-se, seus olhos enlouquecidos com os pensamentos do upir, transformando-se em metade do salto em uma besta inverificada; Mahon interpondo-se em seu caminho, agarrando-a entre seus descomunais braços, partindo ossos por instinto, antes de que o cérebro reagisse; a garota transformando-se de novo e desabando-se no chão... Não perguntei em que parte do corpo tinham encontrado a nota. —Chamará-lhe? —perguntei. —Sim —disse Curran—. Alguma sugestão? —Perde os estribos quando as coisas escapam a seu controle —disse—. E pensa com a franga. —Não era muito. Curran agarrou o telefone com alto-falante e marcou o número. O comprido tom ressonou pela habitação, uma, duas vezes. Um estalo anunciou que tinham desprendido e a voz de Bônus disse: —Vejo que recebeste minha mensagem.
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—Sim —disse Curran. —mataste à garota, gato? Está tendida no chão? Está olhando-a agora mesmo, te perguntando como tivesse sido follártela? Posso te ajudar. Era doce, torpe e estúpida, mas doce. um pouco seca também, mas sangrou muito, de modo que isso o compensou. Curran parecia depravado, quase tranqüilo. —Está sua noiva contigo? —perguntou Bônus. Estava muito excitado, e balbuciava ao falar, como se se tivesse metido algo—. A alta, moréia, com olhos afiados. Estive-a procurando mas se partiu, assim agarrei à loira humana que tinha antes que ela. Comerei- isso amanhã. O truque da carne fresca é abrandá-la em um lugar quente. Embora você lhe come isso crua, de modo que é uma perda de tempo tentar te educar nas sutilezas da cozinha. Meus filhos estão preparando a sua garota para filetearla. Você gostaria de ouvi-la gritar? Chegou-nos o som de uma porta ao abrir-se e a voz de uma mulher na distância: —Por favor, não —rogava aterrorizada—. Por favor, por favor, por favor... Eu. Teria que ter sido eu. Quão único podia fazer era escutar. O rosto de Curran continuou impertérrito. Agarrou uma cadeira e dobrou as patas metálicas até as converter em uma massa irreconhecível. Súbitamente, a mulher se engasgou, alcançando uma nova intensidade de pânico, e começou a soluçar e a gritar de um modo assustador. A sala se encheu com seu desespero. Não havia esperança para ela. Era consciente de que estava morrendo e de que não havia escapatória. Gritou com toda sua alma, uma, duas vezes, e ficou em silêncio. —Idiota! —rugiu Bônus, e, continuando, a inconfundível e desumana choramingação do Arag. —perfurou uma artéria —retornou a voz de Bônus—. É muito simples. Cortar o estômago e extrair os intestinos, mas não, vai ele e secciona uma artéria com
suas garras. Agora terei que limpar as tripas. Não tenho mais remedeio que matá-lo. As choramingações se afastaram paulatinamente do telefone. —me diga uma coisa —disse Bônus—. Gritava do mesmo modo quando lhe a follabas? Comigo não quis gritar, solo soluçava. Muito decepcionante. Segue aí, mestiço? —Estou aqui. E eu também quero que escutar Aviso, Kate. —Olá—pinjente. produziu-se um silêncio ao outro lado da delineia. —Não é ela —disse Bônus—. Ainda segue em sua casa.
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—Que tal o pescoço? —perguntei—. Segue cuspindo vidro? —Está aqui—disse Curran—. Comigo. Esta noite, enquanto espera que o corpo se abrande, pensa em mim e nela. Pensa em como me suplica para que o faça. —Ao final será minha. —A voz de Bônus soava tensa. Curran emitiu um suspiro grave. —Espero que meu esperma te sirva de lubrificante. Bônus pendurou o telefone de repente. Dava-me a volta e saí da habitação. Percorri os corredores até encontrar a habitação onde o Cruzado e eu tínhamos tido nosso pequeno enfrentamento. Nick não estava. Confiei em que tivesse o suficiente sentido comum para permanecer nas instalações. Encher o saco a Curran agora mesmo era um suicídio.
Fechei a porta e me aproximei da janela. Estava chovendo. O céu cinza vertia água cinza sobre a erva sem brilho. As cinzas tonalidades do exterior se filtravam na habitação, impregnando os escassos móveis. A chuva cessaria em qualquer momento, deixando a erva e as árvores de um verde brilhante, reluzentes e frescos. Era estranho como um pouco tão anódino e cinza podia rejuvenescer o mundo. No pequeno armário junto à cama encontrei um par de moletons cinzas e pouco mais. Deixei a Assassina e sua vagem sobre um espartano cobertor azul, despi-me e me pus o moletom. Comecei lentamente, fazendo estiramentos, saltando uma corda invisível, até que o calor se estendeu por meus músculos. Fiz ranger o pescoço e ataquei o saco de boxe. Não estava segura de quanto tempo tinha passado. Tinha a parte superior do moletom e a camiseta interior empapadas de suor; o tecido se pegava a minhas costas. Meu cérebro descartou o som. Lancei outra patada, seguida de um forte murro, e de novo outra patada antes de que minha mente apertasse o freio. —Adiante. Curran entrou a habitação e fechou a porta. Sequei-me o suor da frente e me desentorpeci. sentou-se em uma cadeira com as mãos sobre os joelhos e baixou o olhar, esperando a que terminasse —tornou a chamar—disse quando terminei. —O que há dito? —Delirou durante um momento. Prometeu me matar mas não atacará as instalações da Manada. —Esperava que o fizesse? —Não. Desejava-o. Sentei-me sobre a cama. Bônus não jogaria suas cartas do modo em que desejávamos que as jogasse. Negaria-nos um enfrentamento precipitado no que os números estariam do lado da Manada. Naquela nova era, o combate entre indivíduos decidia o destino de muitos.
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Bônus desafiaria a Curran. Era inevitável. Curran ameaçava sua masculinidade; tinha-o convertido em algo pessoal, e quando o desafio se produzira, Curran teria que aceitá-lo. Era o Líder da Manada, o macho alfa, e não podia permitir o luxo de retroceder. Não se ocultaria na segurança da Manada enquanto o upir acampava a suas largas, matando a todos aqueles cuja morte acreditava que nos provocaria dor. Olhei a Curran. —Você... —Detive-me enquanto pensava na palavra correta. Noiva parecia inadequada; mulher, muito impessoal—. Sua Senhora —disse finalmente—, está a salvo? —Sim —disse ele—. Está aqui. Assenti enquanto escutava o eco dos gritos de outra mulher em minha cabeça. Curran levantou a vista, a angústia refletida em seus olhos. Parecia maior e cansado. —Não é que não me importe —disse. Ele também seguia escutando os gritos. —Sei. —Não posso permitir que me intimide. —Sei —repeti com calma. —Sinto-o —disse, embora não estava segura da que se referia exatamente. E saiu da habitação. Fiquei na cama, pensando. Todo mundo tinha uma debilidade. As leis da natureza indicavam que tudo ser tem um depredador, ou uma enfermidade, ou uma vulnerabilidade que forma parte de sua própria essência. O upir devia ter uma debilidade. Embora não a encontraria em nenhum livro. Se assim fora, o cruzado teria dado com ela. Pensei em tudo o que tinha ocorrido da morte do Greg, repassando os acontecimentos cuidadosamente, tentando recordar todos os detalhes. Pensei em Bônus, nos lugares que estava acostumado a visitar, na gente que podia ter conhecido, nas coisas que tinha feito. A chuva começou a cair com mais força. A roupa empapada de suor esfrio minhas costas.
A habitação não tinha telefone. Pu-me em pé e saí ao corredor. Provei em distintas habitações até encontrar uma que tivesse. Fechei a porta e marquei o número. —Olá —disse uma voz masculina com a suavidade de alguém para quem a cortesia formava parte de seu trabalho—. chamou ao escritório da Nação. No que posso lhe ajudar? —Tenho que falar com o Ghastek. —O senhor Ghastek está ocupado nestes momentos... —passe-me isso Agora. Não gostou de meu tom de voz. O telefone emitiu um estalo e quando ficou Ghastek distingui uns sons de fundo.
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—Olá? Umas vozes discutindo. Não estava sozinho. —Tinha que lhe sabê-lo disse—. Foi seu oficial durante dois anos. —Não entendo... —Não—rugi. Havia tanta ira em minha voz que Ghastek ficou em silêncio. —Fala, Ghastek. me conte o que sabe. —Não—disse. Fechei os olhos e tentei pensar com claridade. Poderia lhe fazer uma visita e destroçar tudo o que encontrasse a meu passo. Tinha frustração mais que suficiente que descarregar.
Para quando conseguissem me deter, o estábulo de vampiros da Nação estaria talher de sangue. Podia fazê-lo. E o desejava com todas minhas forças, mas aquilo tampouco resolveria o major de meus problemas. —Depois irá a por ti —lhe disse—. Te detesta. Nestes momentos está ocupado com outra coisa, mas quando tiver matado tudo o que odeia, encontrará-te e acabará criando a vampiros para ele e sua prole. Converterá-te em seu cozinheiro pessoal. —Crie que não pensei nisso? —murmurou Ghastek com ferocidade. —Então me conte o que sabe. Agora! Silêncio como resposta. Passou um instante, e depois outro. —Não tenho nada que dizer —disse Ghastek antes de couve gar. Lutei contra a necessidade de arrojar o telefone contra a parede. —Pedir informação à Nação é fútil e estúpido —disse Nick detrás de mim—. Não lhe venderiam nem um guarda-chuva usado em metade de uma tormenta. Dava-me a volta. Seu cabelo, recolhido em uma rabo-de-cavalo, parecia muito mais claro. A barba de vários dias havia desparecido, deixando um rosto duro mas agradável, mais espaçoso. Cruzou a habitação movendo-se como um perito em artes marciais, seguro de suas destrezas e sem ter que competir para demonstrá-lo, mas ainda muito jovem e musculoso para ter a tripa de um sensei. Soube que era rápido e que estava bem treinado, provido de uma memória muscular que lhe permitia rebater uma patada ou um murro sem deter-se refletir. deteve-se uma distância respeitosa e me dava conta de que cheirava a sabão Irish Spring. Por um instante, não estive segura de se estava olhando ao mesmo homem e então nossos olhares se encontraram. Senti o familiar desejo de dar um passo atrás. —Vá, se for adorável —pinjente, tentando controlar um ataque de risada histérica—. Solo te falta um desses pendentes na orelha. Dirigiu-me um de seus olhares assassinos.
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—Sinto curiosidade —lhe disse—. Quando faz isso com alguém, ficam a tremer e caem ao estou acostumado a aterrados? —Normalmente morrem sem dar-se conta de nada —disse. —Não te funcionou com o upir. carregou-se ao ombro uma volumosa mochila. —Vai a alguma parte? —perguntei-lhe enquanto me sentava na cama. Provavelmente, meu tempo de reação era similar ao dele, e havia a suficiente distancia entre ambos. Se tentava algo, tinha tempo de evitá-lo. —Sim. —E como pensa esquivar aos sentinelas da Manada? —Espero que me ajude a sair daqui —disse—. Me tiraram o acónito, mas sei que você tem. Esfreguei-me a cara com as mãos. É obvio que tinha acónito; teria sido uma estupidez me aventurar no território da Manada sem ele. E, provavelmente, me dava melhor que a ele utilizá-lo. —por que teria que te ajudar a escapar? Tem idéia do encho o saco que pilhará Curran? Seria melhor que me cortasse as veias agora. —Tendo em conta os planos que o upir tem reservados para ti, não seria uma má idéia. Nick se aproximou, alargou um braço lentamente e me roçou a mão com seus dedos. Um súbito comichão produzido pela magia se estendeu por minha pele e seus dedos despediram um resplendor esbranquiçado, como se tivesse submerso a mão em pintura fluorescente. Apartei-me.
—Importaria-te deixar de fazer isso? Seu olhar me sondou. —Quem é? De onde sai? —Estou bastante segura que de meu pai e de minha mãe —lhe disse—. Verá, quando um homem introduz seu pênis na vagina de uma mulher... —Sei como lhe matar —me interrompeu. Fiquei em silêncio e Nick se sentou a meu lado, na cama. —Em Washington, segui-lhe até o Santuário da Gorgona. Violou às sacerdotisas e aniquilou aos sacerdotes, mas antes de que matasse ao Supremo Sacerdote do santuário, este me disse como podia acabar com ele. Mas para isso necessito meus instrumentos. me ajude a sair daqui e retornarei com a arma para combatê-lo. —por que não o conta a Curran? Negou com a cabeça.
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—O Senhor das Bestas não me escutará. Solo tem um objetivo em mente: manter a salvo à Manada. Não deixará que me parta. —diga-me isso —lhe disse. —Ajudará-me? —Primeiro me diga isso e depois verei o que posso fazer. Nick se inclinou para frente. —Com o osso de uma presa —sussurrou—. Lhe pode matar com osso. —Ajudarei-te —pinjente—. Mas enquanto esteja fora, necessito que me faça um favor. me traga um presente, Nick.
CURRAN ME OLHOU fixamente. Não era um de seus olhares assassinos. Simplesmente me olhava, sem expressão alguma no rosto. —Onde está o Cruzado? —perguntou-me em um tom moderado. —Precisava estar um tempo só —lhe disse—. Pode que me equivoque, mas acredito que não vai muito isso de trabalhar em equipe. Na habitação havia sete pessoas: Curran, Jim em forma de jaguar, Mahon, dois sentinelas lobo, o responsável pelos estábulos e eu. Os sentinelas e o responsável pelos estábulos pareciam definitivamente incômodos. Seus olhos ainda lacrimejavam por culpa do acónito e ao sentinela da esquerda lhe tinha provocado uma reação alérgica a julgar pelo inchaço dos olhos, os sarpullidos e o nariz que não deixava de gotejar e que, provavelmente, desejava limpar-se desesperadamente. Se não tivesse sido por Curran, o mais provável é que tivesse recorrido ao lenço, mas a presença do Senhor das Bestas lhe mantinha parecido ao chão. De modo que permaneceu imóvel enquanto escorria pelos dois buracos do nariz. Curran assentiu com calma, fingindo compreensão. Era muito sereno para meu gosto. Em seu lugar, eu tivesse estalado. Flexionei a boneca ligeiramente, sentindo o bordo da muñequera de pele carregada de agulhas de prata contra minha pele. Mahon se tinha devotado amavelmente a sustentar a Assassina enquanto Curran e eu mantínhamos nosso pequeno bate-papo. Não tinha importância. Tampouco podia matá-lo naquele momento. Deveria. Tampouco deveria matá-lo naquele momento. Podia deixá-lo para mais adiante. O Senhor das Bestas se cruzou de braços. Seu rosto parecia plácido. A calma que precede à tormenta... O jaguar a meus pés se esticou e tentou fazer-se mais pequeno para passar desapercebido. Nick tinha necessitado uma distração enquanto cavalgava como um morcego fugindo do inferno sobre o cavalo que tinha tomado emprestado do estábulo da Manada. Eu lhe tinha proporcionado essa distração dirigindo ao Jim e a sua partida de cambiaformas cheios o saco na direção oposta.
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—Para deixar as coisas claras —disse Curran—. Entenderam bem que não queria que nem você nem o Cruzado saíssem destas instalações? —Sim. —Isso pensava —disse Curran. Agarrou-me pelo pescoço e me estampou contra a parede. Meus pés não tocavam o chão. Seus dedos se fecharam ainda mais ao redor de meu pescoço. Golpeei sua mão e lhe cravei uma larga agulha de prata no nervo da palma, entre o dedo indicador e o polegar. Os dedos de Curran começaram a tremer. Sua mão se abriu, me liberando. Escorreguei até o chão e lhe atirei uma patada nas pernas. Curran caiu. Rodei pelo chão e me pus em pé. No outro extremo da habitação, Curran ficou em cuclillas, os olhos chamejantes. Não durou muito mais de dois segundos. O surpreso público não teve tempo de reagir. Curran se levou a mão à agulha, extraiu-a e a atirou ao chão sem apartar em nenhum momento os olhos de mim. —Não passa nada —lhe disse—. Tenho mais. Curran arremeteu com um salto espetacular da posição em cuclillas. Corri para ele, agachei-me e lhe cravei outra agulha no estômago. Ambos chocamos com o corpo do Manon. —Não! —grunhiu o Urso. Ricocheteei contra estupidamente.
sua
perna
e
fiquei
sentada
no
chão,
piscando
Manon agarrou a Curran pelos ombros e lutou com ele para imobilizá-lo. Uns músculos enormes sobressaíram de seus ombros e braços, rasgando as costuras das mangas da camisa. —Agora não —rugiu Mahon. Seu tom razoável não sortiu nenhum efeito. Curran aferrou os braços do Mahon no que parecia o início de uma chave de judô, mas Curran o fez degenerar em uma brutal prova de força. O rosto do
Mahon adquiriu uma tonalidade violácea corno conseqüência do esforço. Seus pés escorregaram sobre o chão. Pu-me em pé. Ao Mahon tremiam os braços, e o rosto de Curran estava branco pela tensão. O Urso contra o Leão. A habitação transbordava tanta testosterona que poderia haver-se talhado com uma faca. Olhei aos sentinelas. —Será melhor que vós e Jim saiam daqui —os pinjente. O licántropo mais jovem se revolveu, incômodo. —Não aceitamos ordens de... O macho maior lhe interrompeu: —Vamos. Saíram da habitação levando-se com eles ao jaguar.
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Aproximei-me dos homens em campo de batalha e, muito lentamente, rodeei a boneca de Curran com uma mão. —Solta, Curran. Por favor, solta-o. Vamos. Está cheio o saco comigo, não com ele. Solta-o. Paulatinamente, a tensão desapareceu de seu rosto. O fulgor dourado de seus olhos se extinguiu. Seus dedos se relaxaram e os dois homens se separaram. Mahon resfolegava como um cavalo de tiro exausto. —Não lhe sinta muito bem a minha pressão sangüínea —disse. Encolhi-me de ombros e girei a cabeça em direção a Curran. —Pior lhe sinto à sua. —Partiu-te —disse Curran—. Sabiam o jodidamente importante que era e, em que pese a tudo, partiu-te.
—Nick conhece um modo de lhe matar. Necessita uma arma e você não lhe teria permitido sair daqui —disse. —E se o upir te tivesse pego —disse em voz baixa—, o que teria feito então? Tirei do bolso uma esfera que me tinha dado Nick e a mostrei. Tinha o tamanho de uma noz, era metálica e o suficientemente pequena para caber na palma de minha mão. Apertei os flancos da esfera e de seu interior brotaram três puas recubiertas de líquido. —Cianeto —lhe expliquei. —Não pode lhe matar com isso. —Curran fez uma careta. —Não é para ele. É para mim. Os dois cambiaformas me olharam surpreendidos. —A gente estava morrendo —disse—. Ele ria, e o único que podia fazer era estar sentada, a salvo. Curran grunhiu. —Crie que é fácil para mim? —Não, Mas você está acostumado. Tem experiência te responsabilizando da vida de outros. Eu não. Não quero que outros morram por mim. O sangue já me chega à altura dos joelhos. —Tive que enviar patrulhas —disse Curran—. Por sua culpa. Não morreu ninguém mas poderia ter acontecido. Tudo porque não podia suportar não ser o centro de atenção durante umas horas. —É um casulo. —Que lhe jodan. Olisqueé o ar. —Que demônios é esse aroma? OH, espera um segundo, é você. Empresta. Comeste-te uma mofeta ou é seu aroma habitual?
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—Já é suficiente —grunhiu Mahon, conseguindo que ambos guardássemos silêncio—. Estão lhes comportando como crios. Curran, hoje não tem feito meditação, e a necessita. Kate, há um saco de boxe em sua habitação. Descarga a tensão com ele. —por que tenho que golpear um saco enquanto ele medita? —murmurei ao sair da habitação. —Porque ele rompe os sacos quando o faz —disse Mahon. antes de entrar em minha habitação, compreendi que tinha obedecido ao Mahon sem lhe questionar, sem duvidá-lo. Tinha um aura paternal que sempre conseguia me desarmar. Embora não tinha feito uso dela ao enfrentar-se a Curran. Tentei averiguar o motivo enquanto me desafogava com o saco. Meus golpes eram patéticos. O cansaço me venceu e, vinte minutos mais tarde, rendi-me, dava-me uma ducha e me tombei na cama sem ter encontrado uma resposta.
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Capitulo 10 Alguém estava a meu lado, abri os olhos e enfoquei. O rosto de Curran. Estava apoiado na parede junto à cama, me observando. — O que ocorre? — chamou —disse. Incorporei-me sobre a cama. — decidiu já que quer brigar?
— Sim. A ceva é Derek. Tem-lhe quebrado as pernas e lhe pôs ferros para que os ossos não possam curar-se. Cada vez ficava melhor. — pôs alguma condição? — Eu, o cruzado e você. Esta noite. Perfeito. Uma festa para o Top três da lista preferida do upir. — Onde? — No ponto de energia sudeste. Diz que nos guiará de ali. — Levará apoio? — Não —disse Curran. Não era necessário que mencionasse os motivos: sua palavra, seu orgulho, seu dever, o fato de que o upir mataria ao Derek. Qualquer de todo isso servia. Esfreguei-me a cara para me desfazer do sonho. — Que horas são? — Meio-dia. A patrulha me tinha apanhado às sete da manhã e me tinha deitado por volta das oito, o que significava que tinha dormido um total de quatro horas. — A que hora temos que ir ? — Às sete e meia. Voltei a me recostar, tampei-me com a manta e bocejei. — Bem, desperta às sete. — Então, virá? — O que esperava? O que me ocultasse aqui? — referiu-se a ti como seu pequeno aperitivo. — É um encanto.
— E o único que tem em mente é follarte. —Levantei a cabeça o justo para lhe olhar à cara.
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— Curran, o que quer de mim? — por que quer aparearse contigo? — Porque me dá muito bem. Agora te largue, por favor. Curran não lhe fez muita graça minha ocorrência. — Quero saber por que lhe põe dura cada vez que pensa em lhe colocar isso Pode que aquela frase tivesse um dobro sentido, mas Curran não parecia de humor para dar-se conta. — Como vou ou seja o? –pinjente—. Talvez a idéia de torturar a meus filhos ponha brincalhão. Solo dormi quatro horas. Ao menos necessito quatro mais, Curran. te largue. — Descobrirei-o. —Aquilo soou como uma ameaça. — Dá-lhe muita importância. —Curran se separou da parede. — Como encontro ao Cruzado? — Chegará em um par de horas. Pensava que receberia um convite. Por favor, esta vez não lhe tire suas armas. Vem por vontade própria. Curran saiu da habitação. Respirei fundo e me obriguei a deixar a mente em branco. Nick chegou quando faltavam vinte minutos para as quatro. Estava acordada, me pondo as botas. Fechou a porta e se apoiou nela. havia lhe tornado a crescer um pouco a barba e seu cabelo parecia de novo gordurento. — O que te tem feito no cabelo? — Pó, gomina e um pouco de azeite.
— pensaste em patentear a mescla? — Não. Pu-me em pé e Nick fechou a porta com chave e extraiu um cilindro de pele do interior de sua gabardina. Deixou-o sobre a mesa, desatou a corda que o assegurava e o desenrolou com um ruído surdo. No interior havia duas folhas amareladas, uma de uns trinta centímetros de comprimento e a outra do tamanho de minha mão. Agarrei a mais larga. Estava feita com um fêmur humano partido pela metade, e um comprido sulco percorria o centro da folha onde antes tinha estado o tutano. — Muito pesada —murmurei. — E frágil —disse ele em voz baixa—. parti quatro. — por que não tinha uma quando enfrentou a Bônus para proteger Derek? — Seus olhos flamejaram. — Tinha uma –disse—. Se fez pedacinhos sob a jaqueta quando me golpeou. Percorri as folhas com o dedo. Tendo em conta o pouco tempo de que tinha disposto, estavam incrivelmente bem feitas.
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— Com esta não conseguirei me aproximar dele. —Deixei-a sobre a mesa e agarrei a mais pequena. Com aquela teria que me aproximar muito ao upir. — Tem uma oportunidade —disse Nick. Assenti e guardei a adaga de osso na capa de minha faca.
— Ainda tem a esfera? —perguntou-me. Assenti. — Ainda quer usá-la? Movi a mão para comprovar o reconfortante peso do metal no bolso. No fundo sabia que não poderia usá-la. Lutaria até o final, até lhe obrigar a que me cortasse em pedaços. Se era necessário, obrigaria-lhe a me matar. depois de tudo, solo era uma humana. Não lhe custaria muito. Olhei ao Nick e compreendi que sabia o que estava pensando. — Só como último recurso —lhe disse. Montei em um dos cavalos da manada, um animal sólido, forte, de cor indeterminável, entre lodo e fuligem. Golpeou o chão com seus cascos como se suspeitasse que a fina capa de terra ocultava um ninho de serpentes sibilantes e pudesse chegar a elas pisoteando com a suficiente força. — Vento —me havia dito o áspero homem—lobo ao me entregar as rédeas. Tendo em conta que vinte e quatro horas antes quase lhe tinha asfixiado com acónito, não devia figurar em sua lista de amigos—. Se chama Vento. Tinha estado a ponto de lhe perguntar em que demônios estava pensando o que lhe pôs um nome de estrela dos hipódromos ao cruzamento ilegitimo entre um semental de justas e uma descomunal égua de tiro, mas finalmente me mordi a língua. Agora, Vento avançava tranqüilamente pela cidade em brumas à velocidade de um cansado corredor de fundo. O ofegante jipe de Curran nem sequer podia seguir o ritmo e ao Nick tinha perdido de vista. Suas arreios acobreada havia desparecido ao primeiro grunhido do motor propulsado por magia e após havia mantendo a distância. Dava-lhe uns tapinhas no pescoço a meu rocín. — Ao menos você não te assusta facilmente. Para que me tivesse ouvido teria que lhe haver gritado com a força de um tornado. O maldito jipe afogava todos os sons em sua torturada batalha pela supremacia sônica. A magia era muito intensa, e cada minuto que passava o era mais, alagando a adormecida cidade com um poder contido. mesclava-se com a luz da lua,
formando redemoinhos-se nos becos, agitando-se sobre as devastadas carcasas dos devorados edifícios, alimentando-se de cimento e plástico.
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À medida que cruzávamos o distrito industrial em ruínas em direção ao Conyers e o ponto de energia, observei os restos esmiuçados do que em outro tempo deveram ser orgulhosas estruturas, agora desintegradas lentamente pelo triunfo da magia. Era impossível não lhe encontrar um significado a todo aquilo. Uma pessoa supersticiosa o interpretaria como um presságio, o lúgubre prognóstico do que estava por chegar. Franzi o cenho ante o cemitério das ambições humanas e continuei cavalgando. Aquela noite tivesse dado dez anos de minha vida para que a tec retornasse durante umas horas. Tal e como estavam as coisas, provavelmente não dis-pusesse de dez anos para trocá-los. O ponto de energia titilou a uns metros por diante, uma sutil e controlada sacudida de realidade perfurada por uma agulha mágica. Os três chegamos ao mesmo tempo, e os rugidos do jipe de Curran estiveram a ponto de encabritar ao cavalo do Nick. — Pode apagar essa coisa?! —gritei para que me ouvisse por cima do estrondo. — Não! Demora muito em esquentar-se! —bramou Curran. — por que não agarraste um cavalo?! — O que? — Um cavalo! Cavalo! O gesto de Curran não me deixou lugar a dúvidas sobre o que podia fazer com o cavalo em questão. Um animal apareceu de entre as sombras e se deteve frente a nós, preparado para atacar até que reparamos em sua presença. Parecia um gato montês, embora solo remotamente.
Era muito grande, uns trinta quilogramas de peso, e tanto as costas como as pernas eram muito largas e desproporcionadas, como as de um gato jovem. A parte superior do rosto era tipicamente felina, mas na parte inferior brotava uma mandíbula humana rematada com uma boca pequena e de lábios rosados. O efeito era muito perturbador. Pelo menos agora sabia de quem eram os cabelos que tinham aparecido na cena do crime do Greg. Depois de assegurar-se de que lhe tínhamos visto, o monstruoso lince se afastou trotando pela auto-estrada a uma velocidade desumana. Nick foi atrás dele, e também Curran, ao volante do jipe. Depois de lhe tocar várias vezes, Vento compreendeu que desejava avançar e aceitou o desafio. Seguimos ao gato pela auto-estrada, além da cidade, durante quase uma hora. Os cavalos começaram a fatigar-se, mas a besta não reduziu o ritmo em nenhum momento. Finalmente, tomou um caminho lateral que se abria passo entre um dossel de pinheiros.
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O asfalto estava esmiuçado, gretado pela pressão das raízes. Aquilo ralentizaría aos cavalos e impediria o passo ao veículo de Curran. Nick seguiu ao gato enquanto eu me detinha o tempo suficiente para ver Curran estacionar seu jipe no meio-fio da auto-estrada e apagar o motor. Saiu do veículo com a intenção de nos seguir a pé. Apertei os flancos de Vento com os joelhos —não parecia entender os gestos sutis— e minhas arreios reemprendió a marcha detrás do Nick. Uni-me ao Cruzado ao final da estrada, onde o bosque se abria formando um claro. Uma enorme e ameaçadora estrutura de tijolo vermelho e cimento se
levantava ante nós. Um muro de cimento de dois metros e médio rodeava o edifício, do qual solo eram visíveis os três primeiros pisos. Olhei a meu redor. O claro, cheio de maleza e muito descuidado, mostrava sinais de ter estado ajardinado no passado, e um caminho reto, pavimentado e meio coveiro pelas más ervas, conduzia direc-tamente à única entrada do muro, onde umas pesadas portas metálicas parcialmente abertas permitiam vislumbrar o jardim interior. A coisa parecida com um gato montês percorreu o caminho e desapareceu além da porta. O edifício tinha algo que me resultava familiar. Era simples, de construção quase rudimentar, um bloco de uns quatro pisos com janelas estreitas protegidas por grades metálicas, e, em que pese a tudo, produzia-me uma sensação de terror. Curran dobrou a última curva da estrada correndo a passo ligeiro. Não tinha nenhuma gota de suor no rosto. — Rede Point —disse lúgubremente ao deter-se meu lado—. Tinha que ser Rede Point. — Nick me olhou. — Uma prisão —lhe disse—. Os detentos da asa esquerda não deixavam de queixar-se de que uma espécie de fantasmas tentavam lhes matar. Ninguém lhes fez caso até que as p-redes cobraram vida durante uma flutuação mágica especialmente intensa e se tragaram aos prisioneiros. Encontraram seus corpos médio sepultados. — Detentos médio sepultados em paredes de tijolo —disse Curran sombríamente—. Muitos seguiam com vida e não deixavam de gritar. Movi-me sobre a cadeira. O que tinha considerado um montão de escombros à esquerda do edifício principal agora adquiriu a forma definida de uma decrépita torre de vigilância. Como demônios tinham crescido tão rápido as árvores? Pareciam ter mais de dez anos. — Acreditava que o UDPE arrasou este lugar faz anos —murmurei. — Não. —Curran meneou a cabeça—. Simplesmente o abandonaram quando as paredes começaram a sangrar. Não revistam destruir algo a menos que saibam que não vão utilizar o mais.
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Projetei-me para captar o poder e retrocedi. A prisão estava empapada de uma magia funesta e sólida. Permeaba as paredes, asfixiando o edifício, fluindo dele como um polvo invisível estendendo seus tentáculos em busca de uma presa. Voltei a examiná-lo e descobri um matagal de fios nigrománticos entre a espessura da magia. Algo se alimentava do poder que fluía daquela prisão, digiriéndolo para reabastecer-se a si mesmo. Algo nem vivo nem morto e enormemente poderoso. — Um zombi? —sussurrei. — Cheiro como um. —Curran fez uma careta e o lábio superior lhe tremeu o suficiente para revelar seus dentes. As portas metálicas estavam parcialmente abertas, nos convidando a entrar. Não queria fazê-lo. Uma idéia descabelada me passou fugazmente pela cabeça: fugir. Podia dar meia volta sobre meu cavalo e me afastar dali sem olhar atrás. Não tenho que entrar. Desmontei e atei a Vento a uma árvore. Não tivesse sido justo entrar com ele naquele lugar. Levei-me a mão por cima do ombro e desenvainé a Assassina. — Alguma vez te deslocaste o ombro fazendo isso? –perguntou-me Curran. — Não. Tenho muita prática. Nick também desmontou e atou seu cavalo a uma árvore próxima ao de Vento. Sem lhe esperar, encaminhei-me para a porta. — vais enfrentar te a ele sozinha? —perguntou-me Curran a meu lado. Parecia surpreso. — Se esperar um pouco mais, não entrarei —lhe disse. Tremiam-me os joelhos e os dentes me tocavam castanholas. Curran me agarrou pela cintura e me beijou. Senti uma quebra de onda de calor que me percorreu o corpo dos lábios até a ponta dos dedos do pé. Curran sorria com os olhos.
— Boa sorte —sussurrou, e seu fôlego deixou uma baforada cálida em minha orelha. Soltei-me e me limpei a boca com o reverso da mão. — Quando acabarmos com o upir –grunhi—, terá a briga que anda procurando. — Me alegro —disse Curran. — Se tiverem acabado, tortolitos —disse Nick—, lhes aparte de meu caminho. Curran se transformou em um estalo de roupa rasgada. Não sabia o que era mais aterrador, o que nos esperava ao outro lado daquelas portas ou a horrível mescla entre humano e leão pré-histórico que tinha ante mim, embora no momento não lhe dava mais voltas. Fui consciente do peso da esfera de cianeto em meu bolso.
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Dirigimo-nos juntos até a porta. Curran as golpeou uma só vez e se abriram completamente, revelando um jardim iluminado por três fogueiras. Dava um passo adiante e me detive, aturdida. O upir estava no meio do jardim, banhado pelo resplendor das fogueiras. Solo levava um kilt. Um cinturão formado por vários discos chapeados de grande tamanho lhe rodeava a cintura, e de cada um dos enlaces, penduravam amuletos de cabelo e osso de cordas de pele. protegia-se os ombros com brilhantes ombreiras de metal, unidas entre si por uma cadeia também formada por discos metálicos e que lhe cruzava o peito. Uns manoplas a jogo protegiam os braços da boneca até o cotovelo, deixando as mãos expostas. Levava as acne envoltas em tecido mas ia descalço, e estava em posição de alerta, preparado para saltar. Ia armado com uma lança rematada com uma folha curva de trinta centímetros de comprimento, similar a uma cimitarra. A folha
parecia fulgurar ao refletir o fogo das fogueiras, fazendo jogo com o brilho seus olhos. Parecia tão desconjurado, em metade do jardim, com o moderno e tétrico edifico de fundo, um ser antigo mas vivo, uma contradição personificada, como se o próprio tempo lhe tivesse arrancado e cuspido de suas profundidades com o kilt e a juba de cabelo grisalho. — Maldita seja —grunhiu Curran—. Não sabia que era uma festa de disfarces. Sua voz desfez o feitiço. Fiz estalar os dedos. — OH, mierda. Teria trazido meu disfarce de faxineira. —O upir começou a rir, mostrando seus dentes afiados. — Olhe as janelas, Kate. Olhe a suas irmãs. Levantei a cabeça e as vi, colocadas nas janelas como pálidas estátuas. Mulheres. Ao menos uma dúzia, rígidas e vestidas ainda com a roupa destroçada e manchada de sangue, de pé sobre os batentes. Algumas pareciam mortas, outras o estavam; diversos corpos penduravam de uma larga cadeia sujeita ao telhado. Todas tinham o mesmo semblante; a morte lhes desfigurava o rosto em uma careta de terror. Quando tinha registrado o lugar do outro lado do muro, ainda não estavam ali. Assassina começou a fumegar, alimentando-se de minha ira, e um líquido opaco e espesso escorregou pela folha do punho, evaporando-se antes de chegar ao chão. Algo se moveu no interior de um montão de escombros no muro mais afastado. A montanha de desperdícios e resíduos se agitou, palpitou e começou a elevarse muito por cima de nós. Alcançou-me um fedor nauseabundo e tive que conter o vômito.
203
O lixo caiu ao chão, revelando uns ossos amarelados e tiras de carne apodrecitrefacta que gotejavam sucos fétidos. As moscas pululavam formando uma
nuvem negra a seu redor. Um crânio enorme cravou seus profundos olhos em mim. Umas mandíbulas colossais se abriram e voltaram a fechar-se, produzindo um estrondo quando os dentes, que deviam ter o tamanho de meu braço, chocaram entre si. A horripilante criatura começou a mover-se. Elevou uma pata rematada com uma garra e golpeou com ela o chão; o jardim tremeu com diversas sacudidas. O dragão não—morto avançou. — Um dragão para um cavalheiro —exclamou o upir—. Você não gosta, Cruzado? Já tem uma desculpa para não te enfrentar a mim. Nick carregou, a cadeia de prata oscilando da manga de sua jaqueta. Arremeteu com ela ao upir e este a esquivou sem dificuldade. Um pé enorme e pútrido golpeou o chão frente a Nick, interpondo-se entre ele e o upir. O dragão tentou morder ao Cruzado. Uma horda composta pela prole do upir surgiu das portas do edifício e se equilibrou sobre mim. Lancei uma estocada e a ponto estive de partir pela metade a um corpo peludo justo antes de ver como Curran saltava sobre o ombro do dragão. Permaneceu ali durante um segundo e voltou a saltar por detrás da criatura, até o lugar onde estava o risonho Bônus. As bestas me rodearam pelos quatro custados enquanto Assassina seguia cortando e seccionando. Umas garras afiadas se cravaram em meu pé e retrocederam. Algo não encaixava. Rasguei um focinho cerduno e vi como se extinguia a luz nos olhos humanos da criatura. O corpo descabelado se desabou. Seus irmãos fecharam filas em cima dele. Levantei a mão para dar um novo talho. As bestas não me atacavam. Grunhiam, davam coices, mas não ameaçavam me cravando suas presas. Baixei a espada. Estavam ali para me conter. Carne de canhão para me manter ocupada e longe da luta. Avancei. As criaturas mantiveram a posição e grunhiram. Uma coisa com lunares e uma mandíbula poderosa tentou me morder e não me alcançou no braço por centímetros. De modo que não me deixariam me mover.
Podia matá-los a todos. Devia matá-los a todos. Algo dentro de mim se rebelou ante a idéia de massacrar a aquelas criaturas lastimeras que me olhavam com olhos humanos. Girei sobre mim mesma em busca do líder e encontrei ao Arag, meio acuclillado, balançando-se ligeiramente. Seu horrível rosto tinha uma expressão lassa, apagada.
204
— Arag —disse. O monstro não deu mostra alguma de me haver ouvido. Tinha a boca aberta, e através dela pude distinguir umas presas amareladas e uma língua grosa. — Arag! A criatura me olhou estupidamente. Movi-me para lhe rodear pela esquerda e me grunhiu, retornando à vida. Continuei avançando e carregou contra mim. Seu enorme cabe-za golpeou meu flanco com uma força assombrosa. Enquanto caía, vi suas presas abatendo-se sobre mim. A baba que pendurava de seus dentes me empapou o rosto. Ficou em cima de mim, os lábios negros agitando-se, as pernas rígidas. A expressão apagada retornou a seu rosto e recuperou sua posição no círculo de bestas peludas. Pu-me em pé. Bônus não confiava em sua prole, por isso os mantinha a raia telepáticamente. detrás da linha de costas peludas, o dragão deu uma dentada ao Nick. O Cruzado se agachou e introduziu algo na descomunal boca do zombi. Prepareime para a explosão, mas esta não se produziu. Amadurecida-las do Nick não funcionavam. A magia era muito intensa. Mais longe e à esquerda, Curran e o upir continuavam encetados.
Bônus se movia com rapidez, igualando ao troca forma tanto em velocidade como em agilidade. Com o selvagem cabelo ao vento, saltava e girava como um dervixe. Sua arma era um borrão entre suas mãos, formando um muro que a Curran lhe custava superar. Recebeu uma profunda laceração nas costas e começou a sangrar. A ferida não se curou sozinha, de modo que a ponta da lança devia conter prata. Bônus se enfrentava a Curran enquanto mantinha a sua prole sob controle. Um homem com muitos talentos. Tinha chegado o momento de colocar um pau em uma de suas rodas. Repassei a horda frente a mim e escolhi a uma besta grosa e calva. agüentava-se sobre umas pernas desproporcionalmente magras e me observava com olhos apagados. Sua volumosa barriga quase lhe chegava ao chão. Um giro de boneca e a pesada cabeça da criatura rodou pelo chão de terra com um estertor de sangue. O coração da besta continuou pulsando, ignorante da morte próxima, e o sangue saiu a fervuras pelo coto do pescoço, saturando o ar de um aroma metálico. A horda se estremeceu. O corpo se desabou inerte e o círculo de bestas que me rodeava seguiu sua queda com o olhar, fascinados. Abri-lhe o estômago de uma cuchi-llada e a massa enredada de intestinos se derramou sobre a terra.
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Cortei uma parte do úmido intestino, cravei-o com a ponta de Assassina e o inundei em um atoleiro de sangue. Os olhos da horda se cravaram na carne. Elevei-a e a coloquei ao Arag sob o nariz. — Sangue –lhe disse.
Os orifícios nasais de babuíno do Arag se dilataram e olisqueó a carne. Tirou sua grosa língua e lambeu avidamente o ar. A palpitante parte de intestino, que gotejava sangue sobre o chão, atraía-lhe. Retrocedi um passo e Arag se moveu comigo, seus olhos pegos ao viscoso bocado. Dava outro passo atrás. Arag me seguiu e se ergueu, mas se deteve em metade do movimento. A tenra e sangrenta peça de carne pendurava sob seu nariz, tão perto dele que solo devia inclinar a cabeça para tocá-la. E desejava fazê-lo. Desejava-o com todas suas forças. em que pese a tudo, Arag não se moveu nem um milímetro. O domínio ao que os tinha Bônus submetidos era muito capitalista. Não podia fazer nada para desbaratá-lo. Cada segundo que perdia, Curran e Nick o pagavam com seu sangue. A sinistra horda de monstros continuava me observando com seus olhos lastimeros. on um golpe de boneca me desfiz da parte de carne e este riscou um arco ascendente até perder-se na noite. Arag morreu antes de tocar o chão. Bônus ainda não me tinha visto matar. Aniquilei-os de um em um, lenta, metodicamente, trabalhando com precisão cirúrgica. Alguns opuseram resistência, outros se limitaram a me olhar estupidamente enquanto Assassina os rasgava, cortando músculos e tendões. Em três minutos todo tinha terminado. Corri em detrás de Curran e Bônus. O dragão não morto investiu para me interceptar. Deu-me uma chicotada com sua ossuda cauda e me deslizei para um lado enquanto seu enorme pezuña golpeava o chão e me cortava o passo. O zombi tentou me dar uma dentada, suas mandíbulas fechando-se a escassos centímetros de meu rosto. Pu-me em pé e lhe dava uma estocada à pata putrefata. Assassina rasgou as malhas em decomposição criando um fornecedor de líquidos pútridos. O dragão se desfez de mim com uma sacudida de sua cauda. A dor estalou em meu flanco como se acabasse de me atropelar um caminhão. Sulquei o ar e aterrissei no açougue que eu mesma tinha provocado. Pu-me em pé de um salto e escorreguei com o sangue dos filhos de Bônus, caindo de barriga para baixo sobre seus corpos. Onde demônios estava Nick? O dragão avançou para me rematar e tentou me apanhar entre seus enormes fauces. Separei-me de um dos corpos mas voltei a escorregar na massa sanguinolenta.
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As ossudas mandíbulas se fecharam no lugar onde tinha estado um segundo antes. Os olhos mortos giraram nas insondáveis órbitas, me enfocando em minha nova posição. O dragão voltou para a carga e rodei pelo chão para um lado. Quando os monstruosos dentes recortaram a erva a escassos centímetros de meu corpo, cravei a Assassina na bochecha da besta, enviando uma sacudida mágica até o ponto onde se unia a mandíbula. O dragão ergueu a cabeça, me içando com ele. Fiquei suspensa a uns seis metros do chão enquanto o zombi batia as mandíbulas para partir a espada. Um fedor nauseabundo me asfixiou. Através dos ocos entre os dentes, distingui uma língua magra e médio podre sacudindo-se contra as paredes interiores de seus fauces. Assassina se abriu passo através da carne não morta, liquidificando cartilagens e músculos. O dragão sacudiu a cabeça como um cão com um rato morto entre os dentes. Algo no interior de seu crânio emergiu à superfície com um rangido quase imperceptível. A enorme mandíbula se desprendeu de seu rosto e se estrelou com estrépito no chão, me arrastando com ela. Girei no ar, tentando aterrissar de pé e caí sobre os afiados dentes. Dava um alarido e me afastei como pude dos ossos. por cima de mim, uma pata rematada com uma garra cobriu o céu. Saltei para um lado e a garra do dragão esmiuçou sua própria mandíbula. Não podia fazer nada. Embora lhe fizesse despedaçados seguiriam me perseguindo.
migalhas,
os membros
Apertei os dentes para conter o fogo que me abrasava o flanco e vi o Nick subindo ao teto do edifício. dirigia-se a um de seus extremos, onde diversas silhuetas se ocultavam depois de um conduto de ventilação. Os navegantes.
O dragão continuava me acossando. Retrocedi e a ponto estive de cair de costas sobre uma fogueira. Nick correu pelo telhado em direção ao grupo de navegantes. Deviam fazer falta uns quantos para pilotar a um dragão. Se Nick conseguia eliminar a um deles, o mais provável era que o zombi se desabasse. Ou que ficará livre de todo vínculo. Agarrei um ramo da fogueira e a lancei ao dragão. Riscou um arco pelo ar e se estrelou em metade de seu peito. As malhas putrefatas não prenderam. O dragão seguiu avançando, impertérrito. Rodeei a fogueira e me coloquei entre esta e o dragão. A besta soltou uma dentada mas se manteve afastada do fogo. por cima de mim, Nick se equilibrou sobre os seres no telhado e um corpo peludo se precipitou ao chão enquanto gritava por sua vida.
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O dragão sorteou a fogueira, me obrigando a me mover. Enquanto corria, deslizei os dedos sob minha camiseta. Toquei osso, uma quebra de onda de dor me percorreu todo o corpo e a ponta dos dedos se empapou com algo úmido. Mau sinal. O dragão duvidou e se deu a volta. Ergueu a enorme cabeça sobre um pescoço impossivelmente largo e tentou alcançar o telhado. Uma distração. Senhor, por favor, que o piloto do dragão seja um covarde. Solo necessito um par de minutos. Comecei a recitar, em voz muito baixa. A magia me rodeou, fundindo-se a mim, seguindo meus passos como um gato oportunista que cheirou o atum. Cravei a
Assassina na terra e me levei a outra emano às costelas. O sangue empapou a palma e coloquei ambas as mãos sobre o fogo. As chamas me lamberam a pele e o sangue produziu um vaio e se evaporou. Continuei recitando. No telhado, Nick lutava com algo alto e com garras enquanto o dragão tentava alcançá-los a ambos com suas presas. A magia se estendeu, fluindo em meu interior e através do sangue e a carne vinculadas ao fogo. Minhas mãos se encheram de ampolas, o preço que se cobrava o fogo por seus serviços. — Hesaad —sussurrei às chamas. Meu. Sufocado por meu sangue, o fogo se estremeceu como se fora um ser vivo. Tinha deixado de ser uma simples reação à oxidação, convertendo-se em uma força viva que se alimentava do poder da magia—. Amehe. –Obedece—. Amehe, amehe, ame—hei... As chamas se separaram dos resíduos que lhe serviam de combustível. Uma enorme bola de fogo se formou diante de mim e, com um gesto da mão, libereia. Percorreu todo o pátio enquanto rugia com fúria e se estrelou nas irregulares costas do dragão. O impacto o partiu pela metade. A parte posterior caiu para trás em chamas, e a frontal, carente de apoio, desabou-se sobre si mesmo, a enorme cabeça erguida em vão, ainda pugnando por alcançar aos combatentes sobre o telhado. As chamas consumiram a carne não—morta. Senti a tentação de me sentar no chão e observar como se consumia, mas se o fazia, não poderia voltar a me levantar. Rodeei com a mão o punho de Assassina e a pele da palma me gretou. Deixei escapar um alarido e soltei a espada. A dor era insuportável. Meus carbonizados dedos encontraram um vial de anestesia no cinturão. Adormecer. Devia me adormecer as mãos. O cinturão se negava a soltar o vial e meus dedos doloridos eram muito torpes. As lágrimas começaram a me empanar as bochechas. Finalmente, consegui extrair o vial e arranque a cortiça com os dentes. Cuspi-o ao chão e agitei o frasco. Uma nuvem de pó se estendeu frente a mim e a atravessei com as mãos estendidas. O mundo se balançou, distorcendo-se ligeiramente e senti o adormecimento.
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Vi-me mesma alargando a mão para agarrar a espada, rodeando o punho sem sentir seu tato e arrancando a da terra. Dava-me a volta e cruzei o jardim até o lugar onde Curran seguia encetado com o upir. Um alarido dilacerador se impôs ao rugido do fogo, um grito de uma fúria desmesurada e tão potente que solo podia ser humano. Dois corpos se precipitaram do telhado. Um deles levava gabardina. — Adeus, Nick —murmurei quando os corpos se desabaram sobre um montão de escombros. O grito do Cruzado morreu com ele. O dragão se estremeceu e começou a derreter-se, decompondo-se frente a meus olhos em uma pilha de osso e fluidos. O piloto da abominação tinha morrido. Segui cruzando o pátio. A mancha de sangue em minha camiseta cada vez estava mais estendida. Não ficava muito tempo. Vi Curran, exausto e sangrando por uma dúzia de sítios distintos. O corpo de Bônus parecia disforme, como se estivesse perdendo partes de si mesmo, ou como se lhe tivessem arrancado seções inteiras de músculo e a pele se fechou para as cobrir. O upir volteou a lança ao redor de seu pescoço, colheu-a com facilidade e lhe cravou a ponta na coxa de Curran. Este rugiu e lhe deu um zarpazo no peito, lhe arrancando uma boa parte de carne. O upir gritou e retrocedeu com agilidade. A pele se fechou sobre a ferida. Falharam-me as pernas e me desabei. A esfera com o veneno rodou pelo chão, fora de meu alcance. Muito bem, Kate. Perfeito. Girei o pescoço e contemplei a batalha de barriga para cima, incapaz de me apartar quando o sangue de ambos me salpicava. Estavam cansados. Ambos. acabaram-se os insultos, Simplesmente lutavam, com fúria, sangrenta, dolorosamente.
os
rugidos.
Bônus voltou a saltar, ligeiro de pés. Curran emitiu um grunhido baixo e me viu. Seu olhar se cravou em meu durante um instante e soube que tinha chegado o momento. Bônus se equilibrou sobre ele. Curran apartou a lança com uma garra e estendeu a outra para tentar alcançar a perna do upir, mas falhou, deliberadamente lento. A lança retornou às mãos do upir em um arco reluzente e arremeteu com ela. Afiada-a folha se cravou no estômago de Curran e lhe
saiu pelas costas, incrustando-o ao chão. Mas Bônus se inclinou muito, apoiando todo seu peso na lança. As enormes zarpa de Curran o agarraram pelos ombros e seus músculos se esticaram. Emitiu um rugido ensurdecedor e ouvi o som dos ossos ao partir-se, o estalo dos músculos, e do peito de Bônus surgiu uma luz quando Curran lhe partiu o torso em dois. Por um instante, as duas metades do peito permaneceram verticais, a cabeça e o pescoço na metade esquerda inclinando-se em um ângulo muito estranho, e então o upir perdeu o equilíbrio e se desmoronou sobre o chão.
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Curran se estremeceu trespassado na lança. O sangue começou a emanar de sua boca e seu rosto se foi apagando. — Não —me ouvi mesma sussurrar—. Por favor, não. O corpo do upir se agitou. Seu destroçado peito palpitou e, lentamente, ficou de joelhos. Permaneceu um momento erguido, voltou a desabar-se e se arrastou pelo chão cheio de fuligem para mim. Observei-lhe arrastar-se enquanto seu corpo se esforçava por fechar as feridas. Colocou sua cabeça ao mesmo nível que a minha. Distingui seu coração palpitante através do orifício em seu peito, médio oculto por uns pulmões esponjosos e destroçados. — Bonita briga —me disse através de uns lábios empapados de sangue. O olho direito não deixava de lhe piscar—. Algo que recordar em sua lua de mel. Cravei-lhe a adaga de osso no coração. Bônus gritou. Seu alarido sobrenatural fez tremer os alicerces da prisão e as janelas estalaram. Sacudiu as mãos, tentando alcançar a adaga, mas não conseguiram encontrar o pequeno punho. Rodeou-me o pescoço com suas mãos mas não senti nada. Não importava. Aquela última punhalada me tinha deixado sem forças.
Não havia nada que pudesse fazer além de permanecer ali tendida. Veria-lhe morrer antes de que o fizesse eu. Com aquilo tinha suficiente... Bônus estava tendido de costas—. Não quero morrer... Seu corpo começou a fumegar. Ao princípio não foi mais que uma fina capa de cor índiga por toda a pele, e então começou a estender-se, riscando largas espirais que se elevaram para o céu noturno. — Meu poder... abandona-me —disse Bônus com voz rouca. A fumaça se fez mais espesso e o upir começou a murmurar na língua de poder. Suas palavras não tinham nenhum sentido. Recitou febrilmente, tentando aferrar-se à vida ou simplesmente rezando, não estava segura. Seu despedaçado corpo se estremeceu com uma forte sacudida. Começou a balbuciar. Seus talões se cravaram na terra e a fumaça azul se desvaneceu como a chama de uma vela consumida pelo vento. Os olhos sem vida do upir contemplaram a noite. acabou-se. Desejei poder me mover e me aproximar de Curran. Talvez se íamos juntos teria a alguém com quem lutar na outra vida. Foi um beijo incrível... A escuridão me reclamou
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Epilogo O inferno se parecia muito a minha casa. Estava tampada com o que parecia uma de minhas mantas em uma cama que se parecia muito à minha. Uma dor surda e cáustica me mordeu as costelas. A gente também sente dor na outra vida?
Havia um copo de água na mesita de noite, junto à cama, e de repente, davame conta de que tinha muita sede. Alarguei o braço e descobri que tinha as duas mãos enfaixadas. Olhei estupidamente as vendagens e depois o copo. Uma mão embainhada em uma luva pelo que apareciam os dedos agarrou o copo e me ofereceu isso. — Por um segundo acreditava que estava viva —disse olhando o rosto sem barbear do Nick—. Mas agora sei, estou no inferno e você é minha babá. — Não é tão graciosa como pensa — disse ele—. Bebe. Fiz-o. A água baixou dolorosamente. Nick agarrou o copo de minha mão e ficou em pé, a gabardina roçando o bordo de minha manta. — Cuidado com os gérmenes —disse. —Meus gérmenes são o menor de seus problemas —disse ele. Alargou uma mão, percorreu-me o braço com os dedos e estudou o resplendor—. Normalmente não é tão brilhante. Nem dura tanto. —deu-se a volta lentamente, inspecionando a habitação: o velho e desmantelado sofá, descascada-a mesita, o velho tapete, o cesto cheio de roupa poda, quase todo jeans gastos e camisetas descoloridas, e fez um gesto com seus dedos resplandecentes—. O vê? Ainda dura. Levantei meu mão enfaixada e apoiei-a entre seus dedos, sufocando o brilho. Tinha morrido tanta gente por minha culpa. Cada vez que pensado nisso, sentia uma dor no peito e desejava abraçar a alguém e lhe obrigar a que me dissesse que tudo iria bem, como quis que acontecesse no funeral de meu pai. Mas não ficava ninguém. E se alguém me reconfortava, saberia que estava mentindo. Tinha-me passado a vida tentando solucionar os problemas de outros. Pessoas desconhecidas me contratavam para que emendasse suas vidas. Durante anos
me tinha esforçado para que esses problemas não chamassem a minha porta e me destroçassem a vida. Mas não tinha funcionado. Tanto tempo perdido. E o que tinha conseguido em troca além de uma montanha de cadáveres? — A responsabilidade é uma putada —disse Nick. — Sim.
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Apartou minha mão da sua. Sua pele ainda conservava um débil resplendor. Nick agitou a cabeça, pensativo. — Se estivesse sozinho, acumulando poder, e por algum motivo não quisesse que me encontrassem, tentaria passar desapercebido durante um tempo. Mas saberia que cedo ou tarde teria que sair a jogar, porque quem me estivesse procurando, acabaria me encontrando. Tentaria estabelecer certos vínculos. Sabe qual é o problema dos lobos solitários? Que assim que os encurrala, não têm a ninguém a quem recorrer. Deixou um pequeno retângulo de papel sobre a manta antes de partir. Dava-lhe a volta ao cartão, um número de telefone sem nome nem direção, e a guardei sob o travesseiro. — Curran? —gritei da cama. — Sobreviveu —respondeu Nick. Mais tarde veio a me visitar Doolittle. Trocou-me as vendagens, ajudou-me a ir ao quarto de banho e me contou que Mahón tinha enviado uma partida de reconhecimento face aos ordens de Curran e que esta tinha passado de comprimento pelo feitiço que protegia a Rede Point. Teríamos morrido se Nick não tivesse conseguido atravessar as portas. Tinham encontrado dezesseis mulheres em Rede Point, todas feridas e machucadas, ao bordo da morte. Para sete mais tínhamos chegado muito tarde. Seus corpos escaparam ao
horror de Rede Point em bolsas de plástico. Também encontraram ao Derek, encerrado em uma pequena habitação. Finalmente, alguém avisou a poli e a Divisão de Atividade Paranormal aterrissou na velha prisão como uma manada de cães depois de um gatinho extraviado. Exumaram uma fossa de ossos humanos no porão e encontraram suficientes esqueletos para manter ao necrotério ocupado durante um ano. Doolittle me ordenou que não me tocasse as vendagens nas próximas vinte e quatro horas e partiu detrás prometer que enviaria a uma enfermeira. Depois de sua marcha, a magia retornou e me passei duas horas recitando conjuros para reparar minhas mãos e as barreiras que protegiam a casa. Quando chegou a enfermeira, as defesas voltavam a estar ativas e não pôde entrar. Ouvi-a gritar durante vinte minutos antes de partir. Não queria ter a ninguém a meu lado. No momento, preferia a companhia da solidão. Fiquei na cama, fazendo uma excursão de vez em quando ao quarto de banho, e pensei muito. Não podia fazer muito mais. Recebi a visita da Divisão de Atividade Paranormal, a quem, por desgraça, não deteve a barreira. Dois detetives vestidos de patrício tentaram que fizesse uma declaração, mediante a intimidação e diversos conjuros, sem a presença de um representante do Grêmio.
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Quarenta e cinco minutos depois, perdi a paciência e fingi ficar dormida. Não ficou mais remedeio que partir. À manhã seguinte comecei a caminhar, de um modo bastante precário, mas algo é algo. Considerando minha rápida recuperação, tirei-me as vendagens das mãos. Não tinha unhas, mas além disso, as mãos tinham um aspecto bastante normal. Pálidas, mas normais. Se não tivesse sido pela magia, teriam demorado meses em curar-se. Embora se não fora pela magia, não teria acabado metida naquele berenjenal.
Anna telefonou. Conversamos durante um bom momento e, vinte minutos depois, a conversação se tornou algo tensa até que ela disse: — trocaste. — A que te refere? — Parece como se tivesse envelhecido cinco anos. — aconteceram muitas coisas —me limitei a dizer. — Contará-me isso? — Agora não. Talvez em outro momento. — De acordo. Necessita ajuda? Necessitava-a, mas não queria que viesse e não sabia porquê. — Não, estou bem. Anna não insistiu. O agradeci. A seguinte tarde recebi outra visita do Doolittle, quem armou um escândalo até que lhe permiti entrar. Retirou a vendagem que me cobria as costelas. Uma larga e irregular cicatriz percorria toda a caixa torácica. Disse-me que com o tempo desapareceria, mas não lhe acreditei. Embora desaparecesse, tinha sofrido outro tipo de feridas que a magia não podia eliminar. Passou uma semana sem novidades importantes. Assim que pude sujeitar um lápis entre os dedos, redigi um comprido e detalhado relatório sobre a investigação, atei-o com um formoso laço azul, escrevi a direção da Ordem, lhes escolhendo que enviassem uma cópia ao Grêmio, e a deixei para o carteiro. As unhas começaram a crescer, coisa que agradeci. Os dedos tinham um aspecto muito estranho sem elas. O montão de cartas sem abrir tampouco deixou de crescer, ameaçando transbordando a cesta junto à porta. Continuei lhes ignorando. O mais provável era que houvesse diversas cartas do banco nas que me ameaçavam me fazendo coisas horríveis se não tampava o descoberto. Ainda não gostava de me enfrentar a aquilo.
Tive muito tempo para pensar, sentada ao sol durante o dia enquanto bebia chá gelado e pelas tardes café, e para ler.
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Anna voltou a chamar, mas se deu conta de que não gostava de muito falar e pendurou depois de uma conversação embaraçosamente curta. Durante um desses dias banhados pelo sol, fiz uma incursão ao armário onde guardava o vinho e o atirei tudo pelo deságüe, deixando sozinho uma garrafa de sangria Boone's Farm. Para uma ocasião especial. na sábado seguinte despertei cedo, alarmada por um estrondo ensurdecedor que ressonava por toda a casa e que fazia tremer as paredes. Permaneci tombada uns instantes, me assegurando de que não era um produto de minha imaginação. Então saí da cama a contra gosto e fui investigar. Depois de um rápido reconhecimento, descobri que o ruído se originava no telhado, de modo que saí ao jardim para jogar uma olhada. O sol já tinha saído e começava a esquentar o chão. Olhei para a parte superior da casa e vi o Senhor das Bestas embainhado em uma camiseta usada e uns jeans manchados de pintura. Com uma mão sujeitava de um modo muito profissional um martelo que aplicava regularmente sobre meu telhado. Derek estava sentado a seu lado, lhe passando pregos obedientemente. O mundo se tornou louco. — Posso te fazer uma pergunta? —gritei-lhe. Curran deixou de martillear e me olhou. — Claro.
— O que está fazendo em meu telhado? — lhe ensinando ao menino um ofício muito valioso —disse Curran. Derek tossiu. Refleti sobre aquilo durante um instante e abri a boca para lhe replicar, mas antes de poder dizer nada, o telefone começou a soar. — Baixa de meu telhado —lhe disse antes de partir. — Srta. Daniels? —disse uma voz masculina que não reconheci. — Kate. A brecha sobre o corredor estava virtualmente arrumado. Curran não deu amostras de deter-se. — Kate, sou o detetive Gray, da DAP. — Com qual dos dois buido...agentes da ordem que vieram a minha casa tenho o prazer de falar? — Com nenhum dos dois. O martilleo adquiriu maior intensidade, como se Curran tentasse esmurrar a casa até derrubá-la. Parecia como se queria afundar todos os pregos de um só golpe. — Estou com o Cavalheiro—protetor Monahan. Acaba de me informar sobre sua participação no assassinato do Perseguidor de Rede Point.
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Perseguidor de Rede Point. Latido. Aquilo parecia saído de um deplorável telefilm de mistério.
O martilleo alcançou um nível ensurdecedor. — Estamos impressionados. Importaria-lhe me dizer o que é esse ruído? — Espere um minuto. —Deixei o auricular sobre a mesa e gritei—: Curran! — O que? — Poderia parar um minuto? Estou ao telefone com a DAP. —Curran grunhiu algo e o estrondo cessou. — Sinto muito. Estava dizendo...? —disse-lhe ao telefone. —Estava-lhe dizendo que estamos muito impressionados com seu trabalho. Pusemo-nos em contato com a manada e o Senhor das Bestas nos falou muito bem de você. — De verdade? — Sim. — Um minuto. —Tampei o auricular com a mão—. Curran? — O que? — Recebeu uma chamada da DAP sobre mim? — Pode. — O que lhes disse? — Não o recordo. Acredito que mencionei sua disciplina e sua capacidade para aceitar ordens. Acredito que também disse algo sobre sua facilidade para trabalhar em equipe. Derek tossiu e esteve a ponto de engasgar-se. — por que? —exigi. — Naquele momento me pareceu uma boa idéia. —Curran continuou esmurrando o telhado.
— Sinto-o —lhe disse ao agente da DAP me cobrindo a outra brinca para poder ouvir algo—. Sua majestade está acostumada exagerar as coisas. Eu não gosto de trabalhar em equipe. Sou indisciplinada e tenho problemas com a autoridade. Além disso, o Senhor das Bestas não sabe utilizar um martelo. No telhado, Derek começou a rir convulsivamente. — Não estou interessado em alguém que trabalhe em equipe –disse Gray. — OH. — O que sabe do Marduk? — É uma antiga deidade. Gosta dos sacrifícios humanos e conhece perfeitamente o modo de prepará-los. por que? — Estou procurando um representante da Ordem para que colabore com minha equipe em um de nossos casos. Seu nome está na lista.
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— Sinto-me adulada mas careço da autoridade para representar à Ordem. — O cavalheiro —protetor assegura o contrário. — OH. —OH era uma palavra muito bonita. Curta e neutra. — falei com o grêmio e estão de acordo. Reconhecem a necessidade de uma maior implicação com a Ordem e parece que todo mundo vê com bons olhos a idéia de que aceite o trabalho. Maior implicação entre o Grêmio e a Ordem. Um salário. Um salário de verdade o mais provável é que ridiculamente baixo mas, mesmo assim, um salário. Por desgraça, em minha atual situação financeira, «baixo» significava um grave inconveniente.
— Sinto-o —lhe disse—. eu adoraria ajudar mas não posso. Estou arruinada. De fato, atualmente sou mais que pobre, de modo que terei que aceitar um trabajillo do Grêmio antes de me comprometer com qualquer outra coisa. Chegou-me o som apagado de uma conversação distante e, continuando, Gray disse: — O cavalheiro —protetor lhe pergunta se tiver comprovado o correio ultimamente. Dava-lhe um golpecito com a ponta do pé ao montão de cartas e estas se esparramaram pelo chão. — Devo procurar algo em particular? — Um sobre azul. Pesquei o sobre azul do montão e o abri enquanto sujeitava o auricular entre o ombro e a orelha. Um formoso extrato bancário me comunicava do recente ingresso em minha conta de seis mil dólares. O conceito: «Por serviços emprestados segundo o acordo e em função do Artigo MEU». MEU era o código dos cruzados. Ao contrário que a maior parte dos cavalheiros, os cruzados não recebiam um salário, mas sim cobravam por trabalho realizado. — Por favor, dele as obrigado por mim. —Jamais me converteria em um cruzado, tanto Ted como eu sabíamos. em que pese a tudo, agradecia o resgate. — Farei-o —disse Gray—. Então aceita o trabalho? Obrigado, Ted. — Sim –disse—. O aceito. — Genial. Quando pode começar? Olhei ao exterior, onde um formoso dia se desdobrava ante mim, e pensei nos dois troca—formas sobre meu telhado. — Amanhã —lhe disse—. Posso começar amanhã…
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Resenha Bibliográfica
Ilona Andrews é o nome usado pela mesma Ilona Andrews e seu marido Gordon para a publicação de suas novelas de fantasia urbana.
Autores de duas grandes séries, a do Kate Daniels e a do The Edge, suas novelas se situam em um entorno contemporâneo com grandes dose de fantasia e fenômenos paranormais.
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