140664121 goldman como funciona a democracia uma teoria etnografica da politica

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Marcia Goldman

Como Funciona a Democracia

Uma Teoria Etnogrdfica da Politica

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1 SuMARIO

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Agradecimentos

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Prologo I as tambotes dos mottos e os tambotes dos vivos

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Introdufiio I Anttopologia da Politica e Teoria Etnografica da Democtacia

23

Capitulo 1 - 2002: MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHEUS

53

Capitulo 2 - 1996: PESQUISA

93

Capitulo 3 - 1992: CENTRO AFRO-CULTURAL.

137

Capitulo 4 - 2000: ELEI<;:6ES

191

Capitulo 5 - 1998/1999: CARNAVAL

243

Capitulo 6 - 2004: CANDIDATURA

287

Bibliografia

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Apendices

313 333

Ap~ndice I

- Glossatio

333

Ap~ndice

II - Enttevista

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Ap~ndice

11I - Colunas de Matinho Rodtigues no Diatio de llheus

343

Ap~ndice

IV - A familia Rodtigues

351

Ap~ndice

V - as blocos afro de llheus

352

Ap~ndice

VI -

Ap~ndice

VII - Mapas

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Ap~ndice

VIII - Foros

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E1ei~6es

em llheus

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353


Se houve para mim uma avenrura e momenros de vacila<;ao em que esrive suhmersa no medo ou no que Freud denomina 0 senrimenro de inquieranre esrranheza, isso certamente nao ocorreu no encontro com 0 irracional. Pois me parece evidenre que, se e com esre que a1guem deseja se confronrar, nao ha necessidade de percorrer trezentos quilometros: 0 engajamenro politico e as rela<;6es amorosas ordinarias fornecem ocasi6es mais que suficientes para isso. JEANNE FAVRET-SAADA

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Se houve para mim uma avenrura e momentos de vacila<;ao em que estive submersa no medo ou no que Freud denomina 0 sentimenro de inquietanre estranheza, isso certamente nao ocorreu no encontro com 0 irracional. Pois me parece evidenre que, se e com este que alguem deseja se confronrar, nao ha necessidade de percorrer trezentos quilometros: 0 engajamenro politico e as rela<;6es amorosas ordinarias fornecem ocasi6es mais que suficienres para isso. JEANNE

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FAVRET-SMDA

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AGRADECIMENTOS

Vers6es preliminares de rrechos desre livro foram apresenradas em diversos enconrros e em alguns artigos. 0 Pr610go e a Inrrodu~ao desenvolvem temas em parre apresenrados no seminario A Anrropologia e seus Metodos: Arquivo, 0 Campo, os Problemas, organizado por Emerson Giumbelli e por mim duranre 0 XXV Enconrro Anual da Associa~ao Nacional de P6sGradua~ao em Pesquisa e Ciencias Sociais (ANPOCS), em ourubro de 2001, bem como no simp6sio Antropologia e Polftica. Represenra~6es Sociais e Processos Polfticos: Problematizando os Limites da Polftica, coordenado por Ana Rosato duranre a IV Reuniao de Antropologia do Mercosul (RAM), em novembro de 200 I. Uma primeira versao escrita foi publicada sob 0 titulo "Os tambores dos morros e os tambores dos vivos. Ernografia, anrropologia e polftica em Ilheus, Bahia", na Revista de Antropologia (Goldman 2003). o terceiro capitulo e um desenvolvimenro de parre do que foi publicado em Mana. Estudos de Antropologia Social sob 0 titulo "Segmenraridades e movimenros negros nas elei~6es de Ilheus" (Goldman 200 I b). Desenvolve, tambem, 0 que foi apresenrado no f6rum de pesquisa Teorias Ernograficas da Segmentaridade, coordenado por Tania Stolze Lima e Maccio Ferreira da Silva na XXII Reuniao da Associa~ao Brasileira de Antropologia (ABA), em julho de 2000. Diversas passagens do livro foram antecipadas nos arrigos "Uma teoria ernografica da democracia. A polftica do ponro de vista do movimenro negro de Ilheus, Bahia, Brasil", publicado em Etnogrdfica (Goldman 2000) e "An ethnographic theory ofdemocracy. Politics from the viewpoinr ofIlheus's black movemenr (Bahia, Brazil)", publicado em Ethnos (Goldman 200Ia). Esses arrigos derivavam, por sua vez, respectivamenre, de apresenra~6esrealizadas, em 1999, no simp6sioAntropoiogias Brasileiras na Viragem do Mil/:nio (a convite de Miguel Vale de Almeida e ]oao Leal), e no Friday Morning Seminar, do Departamenro de Antropologia da London School ofEconomics (a convite de Peter Gow e Chris Fuller). Alem disso, temas presenres neste livro foram adianrados por ocasiao de palestras e seminarios: em diversas atividades do Nticleo de Antropologia da Polftica (NuAP), coordenado por Moacir Palmeira, em 1994, 1996, 1997, 1998, 1999,200 I e 2003; na Universidade Estadual de Campinas (Unicarnp), em 1995 e 2001, aconvite de Marcio Ferreira daSilva, Sueli Koffes eThomas

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Patrick Dwyer; na Universidade de Sao Paulo (USP), em 1995, a convite de Aracy Lopes da Silva; no Centro Brasileiro de Analise e Planejamento (Cebrap), em 1995, a convite de Omar Ribeiro Thomaz; no 1nstituto de Filosofia e Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCSUFRJ), em 1995, a convite de Ingrid Sarti, e em 2002, a convite de Olivia Gomes da Cunha; na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1997 e 1998, a convite de Wagner Neves Rocha; no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, em 1999, a convite de Susana Viegas; no Instituto de Desarrollo Economieo Social (IDES) e no Instituto de Altos Estudios Sociales (IAES), em Buenos Aires, em 2002, a convite de Pablo Seman e Rosana Guber; e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1997 e 2004, a convite de Eduardo Viana Vargas. Agradec,;o, portanto, a todos os que possibilitaram a minha participac,;ao nesses eventos. Alem disso, e como sempre, este livro deve bastante amuitas outras pessoas e a algumas instituic,;6es. Entre as ultimas, eu gostaria de sublinhar 0 papel do Programa de Pos-Graduac,;ao em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro), cujo ambiente e condic,;6es de trabalho favorecem muito a pesquisa. A partir de 1997,0 NuAP, coordenado por Moacir Palmeira (a quem devo a oportunidade de fazer parte do nucleo), passou a funcionar nos quadros do PPGAS, 0 que favoreceu ainda mais a pesquisa. 0 apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) ao PPGAS foi a origem de parte dos recursos utilizados nas pesquisas que forneceram a base para este livro. Para isso, recebi igualmente uma parte do financiamento destinado ao NuAP pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientffico eTecnologico (CNPq) - orgao do qual tambem sou pesquisador (bolsista de produtividade cientffica) - e pela propria Finep. A Fundac,;ao de Amparo it Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) concedeu-me uma Bolsa de Auxilio it Pesquisa, entre maio e dezembro de 2000, e uma Boisa Cientista do Nosso Estado, no bienio 200312004, 0 que permitiu 0 acesso a recursos suplementares fundamentais. A Coordenac,;ao de Aperfeic,;oamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes) financiou minha partieipac,;ao em muitos dos eventos acima listados. Ao longo do tempo, colegas (de trabalho, do NuAP e da academia em geral), funcionarios, bibliotec:irios, alunos, amigos e moradores de Ilheus foram contribuindo, advertida ou inadvertidamente, e de maneiras muito distintas, para a elaborac,;ao deste livro. E muito diffcil, hoje, recordar a contribuic,;ao especffica de cada um e, muito mais, estabelecer algum tipo de hierarquia. Assim, e seguindo tambem a sugestao de Roland Barthes de nao "su-

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bestimar a fon;:a do acaso para engendrar monstros", gosraria de agradecer a rodos em ordem alfabetica, pedindo desculpas sinceras aqueles que, porventura, eu renha esquecido de mencionar e, evidentemente, eximindo a todos de qualquer responsabilidade pelos ettos que sem dtivida comeri: Adail Viveiros, Afonso Santoro, Agenor Gasparetto, Alberro Rocha, Alzimario Belmonte Vieira (Gurita), Ana Claudia Marques, Ana Paula Moraes da Silva, Ana Rosato, Antonadia Borges, Antonio Carlos de Souza Lima, Antonio Carlos Rafael Barbosa, Antuvio Costa Ribeiro (Toinho Brorher), Beatriz Heredia, Carla Regina Paz de Freitas, Carla Teixeira, Catherine Gallois, Cecilia Campello do Amaral Mello, Cecilia McCallum, Celso Souza Santos, Cesar Barreira, Christina Toren, Christine Chaves, David Rodgers, Deborah James, Dino Rocha, Don Kulick, Eduardo Lemgruber, Eduardo Viana Vargas, Eduardo Viveiros de Castro, Ellen Crisrine Monteiro Vogas, Eliana Vieira, Elvia Magalhaes, Emerson Giumbelli, Emilia Wien, Fabiola Rohden, Federico Neiburg, Fernanda Peixoto, Irlys Barreira, Ivonilce Gomes (Nice), Joanna Overing, Joao Vasconcelos, John Comerford, Jorge Luiz Matrar Villela, Jose Carlos Ribeiro, Jose Carlos Souza Rodrigues, Jose Guilherme Magnani, Jose Nazal, Jose Sergio Leite Lopes, Julia Miranda, Karina Kuschnir, Levindo da Costa Pereira Jr., Lilia Valle, Uscia Fernandes, Lisonere Martins de Souza (Nete), Lourdes Cristina Araujo Coimbra, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, Luisa Elvira Belaunde, Luiz Claudio Falcao de Albuquerque, Marcela Coelho de Souza, Marcelo Silva Maciel, Marcia Rinaldi de Mattos, Marcio Ferreira da Silva, Marcos Oravio Bezetta, Maria Auxiliadora Lemenhe, Maria Concei~ao Ribeiro (Vida), Maria Consuelo Oliveira, Maria da Consolas'ao Lucinda, Maria Eduarda Costa, Maria Gabriela Scotto, Maria Izabel Wernersbach Moreira, Mario Gusmao, Mariza Peirano, Mary Ann Mahony, Michael Baran, Michael Kent, Miguel Vale de Almeida, Miriam Hartung, Moacir Palmeira, Moacir Pinho, Nelson Simoes, Odaci Luiz Coradini, Oiara Bonilla, Olivia Gomes da Cunha, Oravio Velho, Paula de Siqueira Lopes, Paulo Cesar de Menezes (Cesar), Paulo Rodrigues dos Santos, Raimunda Alencar, Renato Sztutman, Rita de Souza Santos Saraiva, Ronaldo dos Santos Sant'Anna, Sergio Pereira, Silvia Nogueira, Silvio Cesar Brandao (Silvinho), Simone Rodrigues, Stela Abreu, Susana Viegas, Tania Lucia Ferreira da Silva, Thereza Menezes, Tomas Marrin Ossowicki, Valdir Silva, Vania Lacerda, Vincenzo Cambria, Vinicius, Wagner Neves Rocha. Devo abrir, contudo, umas poucas exce~oes aos principios acima enunciados e agradecer, em separado, a algumas pessoas. Em primeiro lugar, a familia Rodrigues: Dona Ilza, Gildasio, Nidinha, Nete, Delson, Gilmar, Tonho,

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r Gilvan, Vane, Marinho, Gilson, Vado, Ney, Neide, Bel, Alex, Carlinhos, Ceinha, Gal, Gleide, Litinha, Ninho, Noelia, Sonilda, Tourinho, e a todas as crian<,:as, numerosas demais para que eu possa lista-las. Sem e1es este livro nao existiria, pois foi seu calor que sustemou minha paixao por Ilheus ao longo de tanto tempo. A Ana Claudia Cruz da Silva, que teve 0 azar de dividir 0 campo com seu orientador, devo muitas informa<,:6es e inumeras idt'ias; alem disso, e como se nao bastasse, e1a foi, ao lado de Silvia Nogueira, uma das minhas "enfermeiras" quando sofri urn acidente no campo. Peter Gow, Ovldio de Abreu e, principalmente, Tania Stolze Lima, foram nos ultimos anos as pessoas com quem mais, literalmente, troquei ideias a respeito deste livro - e a respeito de tudo. Mesmo sem pensar nisso, e1es certamente me ajudaram a escreve-lo. Finalmente, a Marinho Rodrigues e Jaco Santana e quase imposslve! agradecer. Alem de tudo 0 que eu poderia dizer, e1es, de verdade, me fizeram olhar para 0 mundo de outra maneira.

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PR6LOGO

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Os TAMBORES

DOS MORTOS E OS

T AMBORES DOS VIVOS

Sabado ,,-noite, 31 de ourubro de 1998, em Ilheus, sui da Bahia, eu acompanhava urn ensaio do Dilazenze, 0 bloco afro em que concenttata minha pesquisa sobte as rela~6es enrre 0 movimenro negro local e a vida polirica na cidade. Dona Ilza Rodrigues, a mae-de-sanro' do Ewa Tombency Neto, 0 terreiro de candomble ligado ao bloco, chamou-me de lado e, explicando que rinha que realizar 0 despacho dos assenramenros de uma filha-de-sanro que morrera recenremenre enquanto ela estava em Sao Paulo, perguntou-me se eu poderia ajudar, transporrando em meu carro os objetos rituais da falecida para serem jogados em urn rio, ou seja, 0 despacho. Respondi que, evidenremente, ajudaria, e ela acrescenrou que era preciso resolver tudo rapidamenre uma vez que Finados estava proximo e nao era convenienre que 0 ritual Fosse realizado apos 0 dia dos morros. Combinamos que, no momenro adequado, ela mandaria me chamar, e lembramos, junros, que em 1983, quando realizara uma pesquisa no terreiro, eu rambem ajudara a ttansporrar urn despacho. Marinho Rodrigues, urn dos filhos carnais da mae-de-sanro, oga do terreiro, 2 urn de meus grandes amigos e meu melhor informanre em Ilheus, conrou-me, enrao, que a filha-de-sanro recem-falecida era de Xango e havia dec1arado expliciramenre que, quando de sua morre, nao desejava que 0 ritual complero Fosse realizado; e era por isso, disse ele, que so haveria 0 despacho dos assenramenros. Ante minha surpresa, explicou-me que alguns fieis do candomble fazem esse pedido, que tern que ser respeirado, uma vez que nao se deve invocar urn espfrito que nao 0 deseja ser. Conversavamos ainda sobre os rituais funerarios do candomble quando, por volta das sete e meia, fui chamado para estacionar 0 carro dianre do porrao do rerreiro. Eu 0 fiz, abri 0 porra-malas do carro e, logo, Gilmar e Ney (ogas, tambem filhos carnais da mae-de-santo e meus amigos) trouxeram uma grande e pesada caixa que deposiraram no compartimenro. Enrramos no carro com duas filhas-desanro que nao reconheci naquele momenro. Parrimos e os ogas informaram a dire~ao a seguir; falamos pouco e as duas filhas-de-sanro, nada. Chegamos ao local desejado, uma ponre em uma estrada meio abandonada no anrigo caminho para Itabuna. Paramos, descemos, abrimos 0 porra-malas, os ogas pegaram a caixa e dirigiram-se, com as

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filhas-de-santo, para a ponte. Fiquei no carro esperando e olhando discretamente. Sobre a ponte, jogaram a caixa no rio; quando esta bateu na agua, fazendo muito barulho, as duas filhas-de-santo lan<;aram os gritos de seus orixas e apenas nesse momento me dei conta de que estavam em transe 0 tempo todo. Um dos gritos era de Jansa, 0 outro de Ogum, dois orixas que mantem rela<;6es privilegiadas com os mortos. Gilmar, que e 0 oga da casa encarregado dos sacrificios e oferendas, entrou no mato e acendeu as velas que havia levado; em seguida, ele e Ney assoprararn dentro do ouvido das filhas-de-santo, que sa/ram imediatamente do transe. Nesse exato momento escutei, ao longe, a batida de alguns instrumentos de percussao; imaginei, primeiro, serem atabaques de candombIe;depois, algum ensaio de bloco afro ou algo semelhante. Entrarnos no carro e partimos, evitando retornar pelo caminho por onde vieramos a fim de nao passarmos pelo ponto em que 0 despacho fora lan<;ado. Voltamos para 0 terreiro onde, no portao de entrada, alguem nos esperava para um rapido ritual de purifica<;ao, que se estendeu, alias, ao interior do automovel. Assunto aparentemente encerrado, retomei a conversa com Marinho, na qual logo retornarnos aos rituais funerarios do candomble. Ele contoume que em 1994, na obriga<;ao dos 21 anos relativos a morte de sua avo (antiga e famosa mae-de-santo do terreiro), ele levara um despacho exatamente ao mesmo lugar de onde eu acabava de voltar. De repente, disse, come<;ou "a ouvir os atabaques dobrarem", perguntando entao aos demais se havia algum terreiro de candomble por la, ao que todos responderam que nao. De volta ao terreiro, narrou 0 ocorrido a sua mae e a outras pessoas mais velhas, que ficaram muito contentes, ja que 0 fato de os atabaques tocarem e um bom sinal, pois significa que os mortos estao aceitando receber em paz 0 esp/rito ou a oferenda em jogo. Senti um leve arrepio e disse a Marinho que eu tambem ouvira atabaques dobrarem; ele nao fez nenhum comenrario e mudou de assunto. Percebi, entao, que as tambores que eu ouvira simplesmente nao eram deste mundo. Esse episodio, ligeiramente editado a partir de um trecho de meu caderno de campo, teve seus desdobramentos. Nos dias que se seguiram ao evento, descobri que Marinho comentara a historia com diversas pessoas, inclusive com seus irmaos que haviam realizado a ritual. Tanto Ney quanto Gilmar sustentaram tambem ter ouvido 0 toque, 0 ultimo acrescentando que "isso sempre acontecia". De minha parte, tambem relatei 0 episodio a dois etnologos. Tania Stolze Lima observou: "voce esra mesmo fazendo trabalho de

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campo", acrescentando que era muiro curioso que eu nao lembrasse que, tres anos antes, orientara uma disserta~ao de Mestrado sobre urn ritual funedrio no candomble, na qual aquilo que eu the contara como novidade (nao 0 fato de ter ouvido tambores, mas simplesmente a informa~ao etnografica de que os mortos os rocam) era amplamente descrito e analisado (Cruz 1995). Surpreso com minha amnesia, concordei plenamente com ela quando concluiu dizendo que tanro eu quanto as pessoas do terreiro escutaramos os tambores pelas mesmas raz6es (Lima 1998). Alem disso, a romada de consciencia dessa estranha amnesia me obrigou a reconsiderar algo que experimentara cerca de tres semanas antes dos tambores, ao reencontrar Dona llza apos mais de dois anos sem ve-Ia. Eu fora busca-Ia na esta~ao rodoviaria onde chegava de uma viagem a Sao Paulo; ao entrar de carro na rua em que se situam tanto 0 terreiro quanto sua residencia, senti vertigens que desapareceram assim que sai do local, apos deixa-Ia em casa. Rerornei ao local mais duas vezes na mesma noite, e, a cada vez que entrava na rua, as vertigens voltavam; ao sair, desapareciam. E claro que imaginei causas misticas, mas nao levei 0 episodio muiro a serio. Peter Gow - a quem eu escrevera relatando a historia e dizendo que ela me surpreendera principalmente porque eu jamais havia experimentado nenhuma inclina~ao mistica - respondeu que nao acreditava ser este 0 ponro pertinente, e relatou uma experiencia semelhante que rivera no campo - entre os piro, da Amazonia peruana -, oferecendo ao mesmo tempo uma explica~ao fenomenologica e quase gestaltista para 0 que ocorrera conosco: "Qual e a explica~iio? Por urn lado, creio que Tania esteja certa. Isso erealmente fazer trabalho de campo: essas experiencias emanam de outras pessoas. Mas

ha mais. Acho que e significativo que teuha sido musica 0 dois casos.

que ouvimos nos

E possive! que, em estados de alta sensibiliza~iio, padroes comple-

mas regulares. de sons do mundo, como riDs correodo au uma noire tropical, possam evocar fafmas musicais que nao temos consciencia de termos considerado esteticamente problematicas. Na medida em que estamos aprendendo esses estilos musicais sem 0 saber, 065, sob determinaclas circunstancias, os projetam~s de volta no mundo. Assim, voce allviu tambores de canclomhIe, eu, musica de ÂŁlauta. Penso que urn processo semelhante ocoree com as pessoas que estuclamos. Porque des obviamente tambem ouvem essas coisas. Mas des simplesmente aceitam que esse urn aspecto do mundo, e nao se preocupam com isso. Todavia. continua sendo impressionante e 0 misterio nao e XDS,

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resolvido por essa explica~iio. 0 que imagino eque devemos repensar radicaI-

mente todo

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problema da crenc;a, ou ao menos deixar de dizer preguic;osa-

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mente que 'os fulanos creem que os mottos tocam tambores' ou que 'os beltranos

acrediram que os espfriros do rio rocam flauras'. Eles nao 'acrediram': everdade! E urn saber sobre 0 mundo" (Gow 1998). De toda forma, mais, ou menos, do que uma explica<;:ao, fiquei imaginando durante muito tempo 0 que fazet com essa historia, como nao reduzila a uma dessas recorrentes anedotas acerca de experiencias misticas vividas por antropologos no campo, cuj 0 caso paradigmatico, como se sabe, e 0 de Evans-Pritchard (1937: 34) vendo a bruxaria entre os Azande - 0 que, alias, nao 0 impediu de escrever que "bruxas, como os Azande as concebem, nao podem existir" (Evans-Pritchard 1937: 56). Este livro, alias, ja se encontrava praticamente pronto quando Eduardo Viveiros de Castro, a quem agrade<;:o, revelou-me a existencia de uma coletanea de textos a respeito desse tipo de experiencia (Young e Goulet 1994). Ainda que nao se trate aqui de entrar nas discuss6es propostas pelos organizadores da coletanea, duas observa<;:6es talvez sejam interessantes. Primeiro, e curioso que totlas as experiencias descritas no livro sejam visuais ou oniricas, enquanto a minha e a de Peter Gow tenham sido auditivas. Segundo, enq\lanto 0 livro se concentra em "transforma<;:6es" provocadas, sobretudo, nas cren<;:as espirituais dos etnografos pelas "experiencias exrraordinarias" por eles vividas no campo, preferi acentuar os efeitos que urn devir-nativo pode gerar nas experiencias mais ordinarias do antropologo, como a politica, por exemplo. De toda forma, no meu caso, tratava-se de tentar conferir ao episodio dos tambores urn grau de dignidade que 0 colocasse em rela<;:ao com meu rrabalho. Ora, isso exigia, em primeiro lugar, afastar de antemao as duas explica<;:6es mais Eiceis, que, ambas realistas a seu modo, logo interromperiam qualquer trabalho de reflexao mais serio: a mistica, que afirmaria que os tambores eram mesmo de mortos; e a materialista, que diria que, se escurei algo, foram tambores de vivos. Na verdade, saber se os tambores que ouvi eram tocados pelos mortos (ou por alguma banda afro, ogas de urn terreiro, ou se eram ainda efeito do vento ou outra coisa qualquer), ou mesmo 0 fato de acreditar ou nao que 0 eram, nao tern muita importancia. 0 que importa e que, querendo ou nao, levei a historia a serio e, bern mais do que isso, fui por ela afetado - no sentido que Jeanne Favret-Saada (1990: 7) confere it expressao. Nao importando as raz6es que me levaram a ouvir os tambores (talvez ate mesmo em fun<;:ao das tradicionais historias de experiencias misticas de antropologos no campo), 0 fato e que 0 evento me atingiu em cheio, e se nao da mesrna maneira como atingiu meus amigos, ao menos com a mesma intensida~

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de. Ainda nos termos de Favret-Saada (idem: 9), a fot~a do acontecimento petmitiu, sem duvida, que se estabelecesse entre nos cerra forma de comunicac;ao, nao-verbal, "involuntaria e nao intencionaf', condic;ao, ralvez, para que outeos canais de comunicac;ao mais discursivos e conscientes tarnbem se abrissem. Alem disso, confetir dignidade a histotia dos tambotes dos mortos significava tambem ser capaz de perceber sua rela~ao com aquilo que eu supostamente estava fazendo em Ilheus - uma pesquisa sobre politica -, 0 que durante muito tempo nao fui capaz de fazet. 0 curioso e que essa petcep~ao so veio a minha mente ttes anos apos 0 episodio, e ainda assim sob a esttanha forma de urn sonho em que tevivi muiro realisticamente algo que efetivarnente acontecera comigo em Ilheus apenas tees dias antes dos tambores, em uma noite em tudo semelhante aquela em que transcotrera esse evento. A confitma~ao de que 0 sonho teproduzia literalmente 0 que ocotreta emIlheus veio daleiturade meu caderno de campo, a qual ptocedi assim que acordei. Mas esta me revelou tambem que, menos de urn mes antes do OCOtrido, eu conversata longamente com Marinho sobre 0 sirrum, 0 ritual funerario do candomble angola.' Ele explicara-me, entao, que, em parte, tratavase de uma luta entre os vivos e os espiriros dos mortos convidados pelo recem-falecido para 0 ritual: os vivos nao podem permitir que os mortos roquem e cantem mais alto do que eles, sob pena de os mortos invadirem 0 mundo dos vivos, possuirem 0 corpo dos presentes e ate mesmo mara-los. Marinho explicara, tambem, que nao deve haver manifesta~ao de tristeza, principalmente sob forma de choro, pois isso seria muiro perigoso. Todas essas informa~6es estao na disserta~ao de Robson Cruz que eu otientara em 1995, e era tudo isso, como observara Tania Srolze Lima, que eu havia simplesmente 'esquecido'" Marinho concluiu sua historia, entao, dizendo que felizmente nunca vira os mortos, mesmo no dia em que sua mae avisara que os espiritos de sua avo e avo maternos estavam presentes, acenando para ele, durante urn ritual realizado ha tempos em outro terreiro. No episodio fielmente revivido em meu sonho, eu conversava com 0 principal politico da sessao local do Partido dos Trabalhadores (PT) quando fiz algum comenrario sobre uma distante batucada que escutavamos. 0 politico respondeu algo como "eles estao fazendo batucada para nao fazer nada" , o que significava, segundo uma velha formula que eu cao bern conhecia, que a barucada estava ligada a falta de consciencia politica e funcionava como urn desvio da a~ao politica conseqiienre: uma especie de opio do povo, como as vezes se diz. Ademais, 0 fato de alguem, afinal de conras, tao proximo a mim

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em termos de concep~ao de polftica e de op~oes ideol6gicas quanta a politico petista sugerir que, em cerro sentido, as tambores que ouviamos eram de seres apenas semivivos (ja que alienados), esrabeleceu inadvertidamente uma ponte entre os tambores dos monos e os tambores dos vivos, ponte que passava justamente pela politica. Alias, ao ler uma primeira versao do relaro desse epis6dio (Goldman 200 1a), Peter Gow observou que eu era excessivamente cruel com 0 politico petista e que isso provavelmente se devia ao faro de ele ser, para mim, uma especie de "sombra" no sentido junguiano do termo, ou seja, manifestar com clareza uma serie de atriburos pessoais meus dos quais eu nao gostaria muiro e que tentaria reprimir. Creio que Gow tern razao e acrescento que no quadro politico ilheense esse politico ocupava, do meu ponto de vista, uma posi~ao respeitavel. Na verdade, quando ouvi os tambores dos monos, eu ja havia passado quase dois meses no campo, alem de outros dois em 1996 e de tres no ja longinquo ano de 1983, quando pesquisava 0 candomble - 0 que ja me havia ensinado a admirar muito os tambores dos vivos. Pois as principais atividades de urn b10co afro sao evidentemente as musicais, e a convivencia quase cotidiana com elas me fizera descobrir e admirar a musica afro-baiana. Nao a axe-music, varia~ao musicalmente empobrecida, politicamenre esterilizada e existencialmente sacrificada as exigencias da midia,' mas aquela feita pelo He Aiye, pelo 010dum, pelo Muzenza e por outros blocos afro de Salvador, assim como pelo Dilazenze, pelo Miny Kongo, pelo Rastafiry e pelos outros blocos de Ilheus. Essa convivencia me ensinara tambem que fazer musica afro nao era simplesmente uma forma de nao fazer nada; ao contrario, essa atividade e uma das dimensoes essenciais dos processos de cria~ao de territ6rios existenciais que permitem a pessoas discriminadas produzir sua pr6pria dignidade e vontade de viver. Deve-se observar, igualmente, que 0 faro de a afec~ao provocada pelos tambores parecer 'positivi (no sentido de que e sempre charmoso urn antrop610go capaz de experimentar coisas mfsticas) nao significa, de forma algurna, uma identifica~aogloriosa com os nativos, 0 que iria de encontro aroda minha argumenta~ao.A rea~ao de meus amigos de Hheus, vaiando e gritando coisas extremamente desagradaveis para dois travestis que passavam na rua em que moram, nao teve nada de charmosa. Da mesma forma, minha rea~ao de medo perante dois desconhecidos que, na verdade, eram conhecidos dos meus amigos, tampouco. No entanto, a fato de essas situa~oes terem sido alvo de comentarios e, principalmente, terem provocado certos estados emocio-

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nais tanto nos meus amigos - divididos entte a indigna~ao e a pilhetia contra os travestis, entre 0 divertimento e 0 estranhamento para comigo - quanto em mim - totalmente imobilizado entte a indigna~ao e os la~os de amizade que me unem a meus amigos, e entre 0 medo de ser assaltado e a vergonha de parecer preconceituoso - pode ter sido rao importante para 0 estabelecimento de uma comunica~ao duradoura, profunda e involuntaria quanto a hist6ria dos tambores. as tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesma experiencia global, e foi certamente 0 fato de eu ter sido afetado pelos primeiros que abriu a possibilidade de ouvir os segundos. Em outro sentido, contudo, foi talvez necessario ter escutado os tambores dos mortos para que os dos vivos passassem a soar de outra forma, ja que, nesse momento, vivi uma experiencia que, sem ser necessariamente identica a de meus amigos em Ilheus, tinha com ela ao menos urn ponto de contato fundamental: 0 fato de ser total e de nao separar os diferentes territ6rios existenciais que habitamos. Como me escreveu Peter Gow, era mesmo a no~ao de cren~a que deveria ser posta em questao, na medida em que e uma das grandes responsaveis pelas falsas distin~6es que buscam separar a 'realidade' daquilo que em geral se denomina 'imaginario' e que, na verdade, deveria simplesmente ser chamado de 'real', na medida em que a realidade e sempre 0 efeito de urn ato de cria~ao. E nao deixa de ser curioso observar, de passagem, que Levy-Bruhl, autor com quem trabalhei entre minha pesquisa sobre 0 candomble e aquela acerca da polltica, e urn Crltico radical da no~ao de cren~a, propondo sua substitui~ao pelo conceito de experiencia. Na verdade, e a pr6pria distin~ao que nao possui a1cance universal, uma vez que depende de uma "defini~ao da experiencia inconteste entre n6s ap6s urn longo trabalho secular de crfrica que desqualificou e excluiu da experiencia valida as experiencias mfsticas" (Levy-Bruhl 1949: 161-162).6 AJem disso, se as principais atividades de urn bloco afro sao musicais, isso nao significa, e claro, que sejam as unicas. as blocos costumam se envolver com a polftica, seja fazendo apresenta~6es em campanhas de polfticos, apoiando explicitamente algumas candidaturas ou recebendo bens ou promessas em troca de votos e apoio eleitoral. Eo claro que, como adverte Cambria (2002: 108), nao se trata de imaginar que os blocos simplesmente usem a musica para fazer polftica, ou seja, para obter algumas vantagens materiais. Embora isso evidentemente ocorra, tambern e verdadeiro que "esses grupos [...] usam a 'polftica' para fazer musica", ou seja, que as pequenas vantagens materiais as vezes obtidas dizem respeito precisamente as pr6prias

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atividades musicais (e outras) dos blocos. Mais do que isso, enttetanto, tratase, acima de rudo, de evitar 0 que Paul Veyne (1996: 241) denunciou como o absurdo pressuposro do "monolitismo monoideista" dos homens, sua inverossimil "monomania":7 como se cada grupo social, ou cada epoca hist6rica, pudesse se encontrar obcecado por uma questao 'central' - bruxaria, gado, vingan~a, parentesco, rela~6es pessoais, honta, igualdade, dinheiro, religiao, ou sejaJao que for. Porque, porurn lado, como tambemescreveu Veyne (1995: 15), "0 homem e urn ser que tern a estranha capacidade de se apaixonar por coisas que nao dizem respeiro em nada a seus interesses" (propriedade antropol6gica cuja descoberta ele atribui a Simmel, que a denominaria "rela~ao objetal"). Por outro lado, porque "a religiao, a polftica ou a poesia podem bem ser as coisas mais importantes deste mundo ou do outro sem que por isso deixem de ocupar, na'pr:itica, urn lugar esueito" (Veyne 1983: 97). Nao obstante, e evidente que existe uma articula~ao empirica entre tambores e polftica; s6 que parece mais facillevar a serio discursos outros sobre a religiao ou a musica do que sobre a polftica, assim como parece mais facil ser relativista entre os Azande do que entre n6s. Afinal, como observou Michael Herzfeld (2001: 118), ''evolutionist visions ofpolitics die hard", e, de faro, nao deixa de ser impressionante 0 poder de resistencia do evolucionismo no campo da polftica - justamente onde 0 estudo emografico das "intimidades da vida cotidiana" parece mais se impor, ja que os polfticos "tern muiro a esconder" (idem: 125). Apresentemos, entao, a questao crucial: no mesmo sentido em que buscamos levar a serio as musicas e religi6es que esrudamos, seremos efetivamente capazes de levar a serio 0 que os membros dos blocos, terreiros ou outras formas de associa~ao tern a dizer sobre os polfticos e sobre a politica? Essa e, no fundo, a ambi~ao deste livro, e espero ter conseguido, ao menos em parte, realiza-la, apresentando aqui urn relaro que respeite a sensibilidade da filosofia politica dos militantes afro-culturais de Ilheus. Gostaria de observar, ainda, que me parece significativo que a conversa com 0 politico petista - que me permitiu encontrar urn sentido para a hist6ria dos tambores e, principalmente, utiliza-la na dire~ao do que poderia ser uma abordagem verdadeiramente antropol6gica da polftica - tenha voltado a minha mente em urn sonho, quando este livro ja estava sendo concebido. Isso, por urn lado, poderia servir para colocar em seu devido lugar a hip6tese, hoje na moda, de uma distancia quase infranqueavel entre a experiencia do trabalho de campo e a escrita etnogr:ifica. Essa hip6tese, derivada de uma con-

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cep~ao timida e positivista da esctita, oculta 0 que qualquet esctitot sabe: que

o ato de escrever modifica aquele que escreve. Na anttopologia, a leitura das notas e dos cadernos de campo, a imersao no material coletado e, principalmente, a pr6pria escrita etnografica revivem 0 trabalho de campo, fazem com que sejamos afetados de novo. Por outro lado, 0 efeito do sonho no meu trabalho revela tambem que, ao ser revivida no momento da escrita etnografica, a desterritorializa~ao sofrida no campo pode encontrar um novo solo onde se reterritorializar. Este solo e representado em primeiro lugar, claro, pela pr6pria etnografia, mas tambem pode fazer parte da vida do etn6grafo, pois se 0 fato de eu ter ouvido os tambores nao parece ter alterado muito minhas rela~6es com 0 sobrenatural, 0 mesmo nao pode ser dito daquelas que me ligam 11 politica: por mais que seja dificil admitir plenamente, estou certo de que, depois de Ilheus, esta ultima nunca mais foi a mesma para mim.

NOTAS 1 Mae-de-santo

ou pai-de-santo sao as termos mais utilizados, no Brasil, para designar a prin-

cipal sacerclotisa ou sacerdote de urn rerreira de candomble. Trara-se de uma tradus:ao literal

dos teemos ioruba ialorixa e babalorixa. No Tombency, Dona Ilza

e cambem chamada de

Nengua de Inkice ou Mameto Inkiceana, (ermos de origem aparentemente banto com 0 mesma significado dos anteriores. Congruentemente, uma iniciada ou iniciado no candomble sao denominados, respectivamente, filha-de-santo ou filho-de-santo (ver, para rodos as (eemos do candomble, entre outros, Cacciatore 1977). 2 Oga pode designar tanto 0 ocupante de algumas posis:6es rituais masculinas (tocador de atabaque, sacrificador etc.) como urn titulo mais ou menos honorifico concedido aqueles que auxiliam 0 terreiro. E uma posic:;:ao masculina e aquele que a ocupa nao pode ser possuido pelos espiritos. A posic:;:ao feminina aproximadamente equivalente e a de equede. que, entretanto, nao parece ser utilizada como titulo honorifico.

Os fieis do candombIe no Brasil costumam classificar os terreiros em rres grandes "nac:;:6es" (alem de urn grande numeros de nac:;:6es menores) oriundas, em tese, das diferentes origens africanas de seus fundadores. Assim, a nac:;:ao ketu seria originaria dos ioruba da Nigeria e do Benin; a gege, dos fan do Benin, e a angola dos banta de Angola e do Congo. Ha diferenc:;:as entre os terreiros que se classificam em nac:;:6es distintas (e tambem entre os que se classificam na mesma nac:;:ao), mas em Ilheus, quase todos se consideram angola. 3

4 Ao

longo deste livro. as aspas duplas serao utilizadas como forma de marcar tanto citac:;:6es em geral. quanta categorias, nativas ou outras. Aspas simples serao empregadas para assinalar tanto minhas pr6prias categorias como a relativizac:;:ao de algum termo au expressao. a iralico, par sua ve:z, sera empregado para termos em lingua estrangeira e como marcador de enfase.

.J.

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5 Em 1995, Marinho Rodrigues compos uma musica chamada Mamae Africa. Parte da tetra dizia:

r

"Olha eu aqui aqui de novo reivindicando nossos direitos vai Dilazenze vai ell falei que vai, que vai vai Fazer protestos contra 0 apartheid Nelson Mandela negro irmao e nao apartheid nao Nao apartheid nao ie mamae Africa". No final do ano, urn cantor amigo ofereceu-se para ajudar a gravar a musica em CD demo em urn estudio de Salvador. No momento da gravalfao, com 0 argumento de que 0 original seria pouco comercial, de mostrou uma nova versao, com outrO titulo (Vai Dilazenze) e outra letra: "Olha ell aqui aqui de novo pra te abraqar, te beijar te amar do mell gOSto e vai Dilazenze vai ell falei que vai, que vai vai Fazer amor e born mas nao a toa eu tive a sotte de poder te encontrar numa boa E nao me deixe na mao corac;ao, corac;ao nao se engana nao". "Dizemos que des 'creem' que 0 mundo mitico foi real, e que 0 e sempre [... J. De fato, em (Odos os casas desse genera, eles nao tern consciencia de 'crer', mas de semir. de experimentar a realidade do objeto, nao menas da que quando se trata dos seres e acontecimentos do mundo que os rodeia" (Levy-Bruhl 1938:127-128). Ou, como escreveu, em linguagem bern mais

6

comemporanea, Paul Veyne (1983:103-104): "0 que quer dizer imaginario? 0 imaginario e a realidade dos outros, da mesma forma que, conforme uma expressao de Raymond Aeon, as ideologias sao as ideias dos outros [... J, urn julgamento dogmarico sabre cettas crenc;as de outrem". "Os homens nao sao monomaniacos, tern varios interesses, varias ideias ao mesmo tempo, raramente sao capturados por urn unico grande sentimento; assim, a vida emuita cotidiana. Os hamens conciliam sellS centros de interesse fazendo com que se sllcedam uns aos outros"

7

(Veyne 1976:96).

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1.


INTRODUc;:Ao ANTROPOLOGlA DA POLfTICA E TEORlA ETNOGRAI'ICA DA DEMOCRAClA

,

•

J.r

Este livro demorou demais para ser escriro e resulta de uma investiga~ao que, da mesma forma, talvez tenha durado mais tempo do que deveria. As raz6es para esse atraso, ao menos em parte, estao relacionadas a caracteristicas compartilhadas com muitas pesquisas antropol6gicas desenvolvidas no Brasil: ritmo descontfnuo do trabalho de campo e visitas relativamente curtas distribufdas ao longo de um amplo periodo de tempo. Estive em Ilheus, pela primeira vez, em 1982; rerornei, por tres meses, no verao de 1983, quando realizei a pesquisa de campo no terreiro Ewa Tombeney Neto, que forneceu parte do material usado em minha disserta~ao de Mestrado sobre a possessao no candomble (Goldman 1984). Nunca perdi 0 contaro com as pessoas do terreiro ou com a cidade, mas foi apenas em 1996 que voltei ao campo propriamente diro, passando quase dois meses em Ilheus por ocasiao das elei~6es municipais daquele ano. Depois disso, estive la cerca de cinco meses entre 1998 e 1999, antes e depois das elei~6es nacionais; tres meses, entre setembro e dezembro de 2000, por ocasiao de novas elei~6es municipais; um mes, em dezembro de 2001; um mes, entre fevereiro e mar~o de 2002; duas semanas em 2003; e duas semanas em 2004. Se somassemos tudo, mesmo abstraindo 0 periodo mais antigo de 1983, obteriamos praticamente um ano de trabalho de campo - dividido, porem, em nada menos que cinco periodos distintos. Somado a essa intermitencia, um pequeno acidente sofrido no campo em outubro de 2000 - que me deixou quase imobilizado por cerca de um mes - fez com que eu propusesse a Marinho Rodrigues rornar-se meu auxiliar de pesquisas, oferta que ele aceitou com alegria e desempenhou com invejavel competencia. Por diversas raz6es, essa situa~ao perdura ate hoje, 0 que significa que recebo quase ininterruptamente informa~6es de Ilheus - por meio de telefonemas ou, principalmente, de longas grava~6es em fitas cassete -, informa~6esestas que, dadas as admiraveis habilidades de Marinho como observador, sao da mais alta qualidade. Disponho, portanto, de dados a respeito do envolvimenro poHtico do movimenro afro-cultural de Ilheus ao longo de um periodo de vinte anos,

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ainda que para alguns periodos essas informa~oes sejam relativamente superficiais. Nesse sentido, trata-se mesmo, de uma "etnografia em movimento", e

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de urn "envolvimento cumulativo e de lange prazo" com 0 grupo estudado, no sentido que Ramos (1990: 459) confere a essas expressoes.' Mas e claro, tambern, que concordo plenamente com Eduardo Viveiros de Castro (1999: 183-186) quando afirma que esse estilo de trabalho de campo nao se opoe ao "tipo tradicional de etnografia a Malinowski" nem 0 dispensa, e que a ideia do campo prolongado nao tern nada de mistica ou de meramente ideal. Em urn registro menos academico, sempre imaginei que as tecnicas de trabalho de campo que, sem muito ou mesmo nenhum planejamento, acabei por utilizar em Ilheus assemelhavam-se muito ao que se denomina, no candomble, 'catar folha': a1guem que deseja aprender os meandros do culto deve logo perder as esperan~as de receber ensinamentos prontos e acabados de a1gum mestre; ao conmirio, deve ir reunindo Ccatando') pacientemente, ao lange dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali (as 'folhas') com a esperan~a de que, em algum momento, urn esbo~o plausivel de sintese sed. produzido. Assim, foi apenas em 2000 que realizei minha primeira entrevista gravada, a qual nao se seguiram muitas outras. Da mesma forma, jamais tomei notas na frente dos meus 'informantes'. Por urn lado, porque ninguem era apenas informante, termo infame que a antropologia compartilha com a policia: tratava-se, muitas vezes, de amigos (com os quais eu nao me sentia a vontade de agir como 'pesquisador') e, sempre, de interlocutores, no sentido mais abrangente, ou seja, pessoas com as quais eu dialogava, concordava e discordava, expunha e escutava pontos de vista. Pot outro lado, creio que 0 trabalho de campo antropol6gico nao tern mesmo muita rela~ao com as entrevistas, ainda que estas possam servir como complemento das informa~oes obtidas por outras vias - mas sempre no final da pesquisa, quando 0 etn6grafo ja possui urn certo controle sobre os dados e as rela~oes com os informantes. 2 Essas outras vias sempre foram uma convivencia intensa e quase cotidiana com membros do movimento negro de Ilheus. Entretanto, dado 0 carater segmentar deste movimento, foi preciso e inevitavel que essa convivencia Fosse diferenciada. Adianto desde logo, pois, que os pontos de vista sobre politica que este livro tenta recuperar, e com os quais pretende dialogar, nao dizem respeiro a nenhum nativo generico, nem negro, nem de classe popular, nem ilheense, nem baiano, nem brasileiro, nem uma mistura de tudo isso. Tratase de pessoas muito concretas, cada uma dotada de suas particularidades e, sobretudo, agencia e criatividade. 3

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Advirto, igualmenre, que isso nao rem nada a ver com nenhum ripo de ha rempos Jose Guilherme Magnani (1986: 129-130), desde 1916, Malinowski nao apenas criricava 0 insusrenravel pressuposro de existencia de uma "opiniao nativa",4 como revelava que e justamente a diversidade de opinioes que permite ao etnografo reconstituir 0 que denominava "fatos invisiveis" (Malinowski 1935, vol. 1: 317). A no~ao de representa~ao e de fato problematica (Magnani 1986: 127-128) eo trabaIho de campo e sobrerudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os fatos etnograficos "nao existem" e e preciso um "metodo para a descoberta de fatos invisiveis por meio da inferencia construtiva" (Malinowski 1935, vol. 1: 317). Nesse senrido, se a historia se escreve, como quer Paul Veyne (1978: cap. 8'), por "retrodic~ao"- ou seja, por meio do preenchimenro aposteriori das lacunas de informa~ao possibilitado por novas descobertas e por compara~ao-, a etnografia malinowskiana seria, anres, da ordem de uma especie de 'enrredic~ao': 0 etnografo deve articular os diferenres discursos e praticas parciais (no duplo senrido da palavra, parcelares e inreressadas) que observa, sem jamais atingir nenhum tipo de totaliza~ao ou sinrese completa. Tudo se passa um pouco como na historia relatada em alguma parte por Malinowski. Em Trobriand, diferentes formulas magicas familiares rrobriandesas sao propriedade de distintas familias, e cada uma possui um numero limitado destas fOrmulas. Aconrece que, por dever do ofkio, 0 antropologo deve coletar 0 maior numero possivel destas, 0 que, nesse caso, fez de Malinowski 0 maior proprierario individual de formulas magicas das ilhas. rsso nao significava grande coisa, claro, uma vez que 0 importanre e ter uma formula que outros nao tenham, 0 que, evidenremenre, nao podia aconrecer com 0 anrropologo. De toda forma, e sempre assim que as coisas se dao no campo: nosso saber e diferente daquele dos nativos, nao por ser mais objetivo, totalizanre ou verdadeiro, mas simplesmenre porque decidimos a priori conferir a todas as historias que escutamos 0 mesmo valor. Essa 'enrredic~ao', conrudo, nao significa que, no campo, possamos, ou mesmo que devamos tentar, estabelecer 0 mesmo tipo de rela~ao com todos. Se, como veremos, 0 movimenro negro de Ilheus e marcado pela segmentaridade, 0 mesmo parece ocorrer com as rela~oes que fui capaz de construir com seus militanres. No drculo mais restrito estariam Marinho Rodrigues e Jaco Sanrana. 6 Em seguida, distribuidos por drculos concenrricos: Dona Ilza Rodrigues e seus filhos (e respectivas familias nucleares); alguns membros da se~ao local do PT; outros membros do Dilazenze, do Tombency e moradores revela~ao pos-moderna: como lembrou

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da Conquista; militantes negtos do movimento afto-cultural; militantes negtoS da fac~ao "politica" e alguns polfticos ptofissionais, negros ou nao; outtos polfticos e habitantes de Ilheus. Com algumas dessas pessoas, minhas tela~6es fotam - algumas ainda sao - muito intensas; com outtas, menos; e, em alguns casos, reduzitam-se a pouquissimos enconttos, alguns supetficiais. De toda fotma, 0 estaturo a que a pesquisa que deu otigem a este livto sempte aspitou foi 0 de uma investiga~ao antropolOgica da politica em Ilheus, o que significa, creio, que sua pretensao principal e de fato a busca de urn 'ponto de vista nativo'. Esta questao, como se sabe, vern sendo, nos ultimos anos, objero de uma conttoversia tao grande que exige que nela nos detenhamos urn pouco. Eo ptovavel que tenha sido Clifford Geertz 0 principal responsavel por essa conttoversia, assim como pela ideia, muito difundida hoje, de que existiria uma especie de mainstream anttopol6gico em romo do trabalho de campo e da ernografia. Mainstream que sustentaria, muiro resumidamente, que 0 ttabalho de campo dependeria de uma identifica~ao do anttop610go com seus nativos, 0 que permitiria, por urn lado, captar 0 ponto de vista desses ultimos e, por outto - como viriam a acrescentar alguns dos alunos de Geertz -, representar com "auroridade ernografica" a sociedade esmdada. Contra essa ideia de que a ernografia seria condicionada por uma especie de sensibilidade especial que permitiria ao ern6grafo pensar, sentir e perceber como os nativos, Geertz escreveu, em 1974, seu famoso ensaio sobre "0 ponto de vista do nativo". Ai, como se sabe, sustenta que a ernografia dependeria mais da capacidade de se simar a uma distiincia media entre conceitos muito concretos, "pr6ximos da experiencia" cultural, e conceitos abstra-

tos, "distantes da experiencii', do que de uma habilidade de identifica~ao qualquer: "uma interpreta~ao anttopol6gica da bruxaria nao deve ser escrita nem por um bruxo, nem por urn geometri' (Geertz 1983: 57). Nesse sentido, e 0 faro inelutavel de que 0 ern6grafo e um observador estrangeito, capaz de apreender, como objeros, realidades para as quais os nativos sao relativamente, mas nao necessariamente, cegos, que garantiria a possibilidade da ernografia. Esta deveria consistir, pois, na investiga~ao das media~6es que se interp6em entre os nativos e sua experiencia social, possibilitando assim a analise das diferentes formas simb6licas pelas quais os nativos se expressam. 7 Confesso que essas concep~6es sobre 0 trabalho de campo e a etnografia me parecem ser mais 0 ptoduto de sua critica do que uma realidade previamente existente. Ao lado de coisas como 0 relativismo absoluto ou a autori-

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dade do antrop610go sobre 0 grupo que esruda, a ideia de uma identifica~ao roral do ern6grafo com seus narivos parece ser uma dessas figuras muiro evocadas e jamais visras na hisr6ria da disciplina. E se 0 tema e de faro freqlientemente mencionado - seja para assinalar urn risco morral para uma disciplina com prerensoes ciendficas, seja para celebrar os meritos de urn empreendimento humanista -, ele nunca e acompanhado por exemplos concreros. Nao obstante, 0 problema central aqui nao e tanto que 'virar nativo' seja imposslvel ou ridfculo, mas que, em todo caso, e uma ideia filtil e plena de inurilidade. fu reflexoes de Geerrz, como tambern se sabe, dirigem-se a Malinowski e sua "observa~ao parricipante". Penso, contudo, que seria preciso reconhecer que essa no~ao nao e assim tao clara quanto costuma parecer. A celebre "lntrodu~ao" aos Argonautas, de faro, sugere ao ern6grafo que, de vez em quando, deixe de lado maquina forogr:ifica, lapis e caderno, e parricipe pessoalmente do que esra acontecendo (Malinowski 1922: 3 I). E diffcil, entretanto, acreditar que Malinowski estivesse dizendo apenas que a observa~ao participanre consisriria em "romar parte nos jogos dos nativos" ou dan~ar com eles. Ao contrario, ao converrer a antiga "antropologia de varanda" (Stocking Jr. 1983) em rrabalho de campo eferivo, Malinowski parece rer operado na antropologia urn movimento em rudo semelhante ao de Freud na psiquiarria: em lugar de interrogar hisrericas ou nativos, deixa-Ios falar avontade. A observa~ao parricipante significa, porranto, muiro mais a possibilidade de captar as a~oes e os discursos em ato do que uma improvavel metamorfose em narivo. E como este ultimo, em geral, e ao conrr:irio da hisrerica, nao procura nem e levado ao gabinete do antrop610go, 0 trabalho de campo torna-se uma necessidade. Eprovavel, tambem, que as paginas de Coralgardens and their magic em que Malinowski discure "0 metodo do rrabalho de campo e os fatos invislveis do direito e da economia nativos" (Malinowski 1935, vol. 1: 317-340) e expoe suas "confissoes de ignorancia e fracasso" (idem, vol. 1: 452-482), assim como aquelas em que elabora sua "teoria ernografica da linguagem" (idem, vol. 2: 3-74) e sua "teoria ernografica da palavra magica" (idem, vol. 2: 211), sejam bern mais imporrantes para uma justa compreensao da "magica do ern6grafo" do que aquelas, bern mais conhecidas ou pelo menos bern mais ciradas, da "lntrodu~ao" aos Argonautas. Pois e em Coral gardens, e em tomo da no~ao, aprimeira visra muito estranha, de "teoria ernogr:ifica", que Malinowski parece responder antecipadamente a algumas das crfricas a ele formuladas a parrir da decada de 1970.

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Uma teoria etnogr:ifica, de seu ponto de vista, nao se confundiria nem com uma teoria nativa (sempre cheia de vida, mas por demais presa as vicissitudes cotidianas, as necessidades de justificar e racionalizar 0 mundo tal qual ele parece ser, sempre dificil de transplantar para outro contexto), nem com o que Malinowski viria a denominar mais tarde "uma teoria cientifica da cultura" (cuja imponencia e alcance so encontram paralelo em seu carater anemico e, em geral, pouco informativo). Evitando os riscos do subjetivismo e da parcialidade, por urn lado, e do objetivismo e da arrogancia, por outro, Malinowski parece tet descoberto "0 soberbo ponto mediano, 0 centro. Nao o centro, ponto pusiJanime que detesta os extremos, mas 0 centro solido que sustenta os dois exrremos num noravel equilibtio" (Kundeta 1991: 78). E importanre nao se equivocar aqui. A diferen~a entre teorias nativas, etnograficas e cientificas nao tepousa sobre uma reparti~ao judiciosa de erros e verdades nem sobre uma suposta maior abrangencia das ultimas, mas sobte diferen~as de recortes e escalas, de programas de verdade, como diria Paul Veyne - que diz tambem que tudo se resume a uma escolha entre "explicar muito, porem mal, ou explicar pouca coisa, porem muito bern" (Veyne 1978: 118), ou seja, entre a explica~ao historica ou humana ("sublunar", nas palavras de Veyne), que e na verdade uma explicitariio, e a cientifica ou praxiologica. 8 Uma teoria etnogr:ifica, conseqiientemente, pretende explicar (no sentido de explicitar) muita coisa, e 0 maximo a que se pode aspirar e que isso seja feiro razoavelmente bern. Uma teoria etnografica tern, portanto, como objetivo centtal elaborar urn modelo de compreensao de urn objero social qualquer (linguagem, magia, politica etc.), 0 qual, mesmo produzido em e para urn contexto particular, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contexros. Nesse sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular e do geral, assim como, talvez, os das praticas contra as normas ou das realidades em oposi~ao aos ideais. Isso porque se trata sempre de evitar as quest6es abstratas a respeiro de estruturas, fun~6es ou mesmo processos, e dirigi-las para os funcionamentos e as pr:iticas? Assim, se 0 objetivo ultimo deste livro e esbo~ar uma teoria etnografica da politica ou da democracia, nao e porque se limita a uma cidade em particular, suas elei~6es e seus movimentos negros, deixando de lado os nfveis mais gerais ou abstraros. Uma teoria etnografica procede urn pouco a moda do pensamento selvagem: emprega os elementos muito concretos coletados no trabalho de campo - e por outros meios - a fim de articula-los em proposi-

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~6es urn pouco mais abstratas, capazes de conferir inteligibilidade aos acon-

tecimentos e ao mundo. 1O Trata-se aqui, assim, de uma tentativa de elabora~ao de uma grade de inteligibilidade que permita uma melhor compreensao de nosso proprio sistema politico. Para isso, recorre-se certamente a acontecimentos muito concretos, mas tambem a teorias nativas muito perspicazes e a formula~6es mais abstratas quando estas se mostram uteis. Se Malinowski foi capaz de por em destaque as dimens6es pragmaticas da linguagem humana em geral, isso se deve, sem duvida, ao fato de ter elaborado uma teoria ernografica da linguagem a partir do material trobriandes, em que a estreita vincula~ao entre palavra e magia permite ao pesquisador perceber, com mais clareza do que em ontros contexros, 0 carater performatico da linguagem humana. 0 mesmo poderia ser dito da rela~ao entre a teoria da reciprocidade e 0 kula ou 0 potlatch, ou entre a teoria da segmentaridade e as linhagens dos Nuer, Tallensi e Dinka. Do mesmo modo, uma teoria ernografica da politica ou da democracia, elaborada em urn contexto em que sao muiro menos marcados os valores, cren~as e ideologias que permitem suportar, obscurecer ou neurralizar as evidentes contradi~6es e disfun~6es de nosso sistema politico, tern a virtude de poder revelar com mais clareza os efetivos modos de funcionamento desse sistema. AMm disso, mas nao menos importante, pode ajudar tambem a suspender os julgamentos de valor, quase inevidveis quando urn tema tao central em nossas vidas e submetido aanalise. Ecos dessas posruras malinowskianas sempre estiveram presentes nas discuss6es antropologicas relativas ao lugar da pesquisa de campo e da ernografia em sua pratica. Contudo, e curiosamente, tais ecos foram mais bern elaborados fora da imaginaria mainstream criticada por Geertz e, mais tarde, pelos pos-modernos, e fora de suas proprias criticas. Pois se 0 rrabalho de campo intensivo e uma exigencia da antropologia, e mesmo sem querer parecer nominalisra demais, creio ser preciso admitir que este possui diferentes acep~6es na historia da disciplina. Podemos imagina-Io, por exemplo, como uma simples tecnica, ou seja, como a obten~ao de informa~6es que, de direito, embora talvez nao de faro, poderiam ser obtidas de ontra forma (e e isso 0 que parece ocorrer na mencionada "antropologia de varandi'); ou podemos definir 0 trabalho de campo como metoda, 0 que implica que as informa~6es so poderiam ser obtidas dessa forma. No entanto, poderiamos tambem seguir Levi-Strauss e dizer que sao as proprias caracteristicas epistemologicas da disciplina que exigem a experiencia de campo.

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"Enquanto a sociologia se esfor~a em fazer a ciencia social do observador", escreveu Levi-Srrauss (1954: 397), "a antropologia procura, por sua vez, elaborar a ciencia social do observado". "A sociologia", prossegue, "e estreitamente solidaria com 0 observador", e, mesmo quando toma por objeto uma sociedade diferente, adota 0 ponto de vista daquela do observador; ainda quando pretende falar da "sociedade em geral", e "do ponto de vista do observador" que amplia sua propria perspectiva. A antropologia, ao contrario, elaboraria a ciencia social do observado, adotando 0 ponto de vista do nativo ou ode um "sistema de referencia fundado na experiencia etnografica [... J, independente, ao mesmo tempo, do observador e de seu objeto" (ibidem). Enesse sentido que Levi-Strauss pode tambem escrever que a distin~ao entre historia e antropologia se deve menos aausencia de escrita nas sociedades estudadas pelos antropologos do que ao fato de que "0 etnologo se interessa sobretudo pelo que nao e escrito, nao tanto porque os povos que estuda sao incapazes de escrever, como porque aquilo por que se interessa e diferente de tudo 0 que os homens se preocupam habitualmente em fixar na pedra ou no pape!" .1\ A antropologia teria desenvolvido, desse modo, "metodos e tecnicas apropriados ao estudo de atividades que permanecem [...] imperfeitamente conscientes em todos os nfveis em que se exprimem" (Levi-Strauss 1949: 3233). E por isso que 0 trabalho de campo nao poderia ser considerado apenas "um objetivo de sua profissao, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem tecnica. Representa um momento crucial de sua educa~ao" (LeviStrauss 1954: 409). Representaria para 0 antropologo, enfim, 0 que a "analise didatica" costumava representar para 0 psicanalista: a unica forma de operar a sfntese de conhecimentos obtidos de forma fragmentada e a condi~ao para a justa compreensao ate mesmo de ourras experiencias de campo. Tal concep~ao do trabalho de campo como uma especie de processo (ou trabalho, no sentido psicanalftico do termo) aponta para duas quest6es em geral deixadas de lado tanto pelos etnografos, quando refletem sobre sua experiencia, quanto por aqueles que os criticam sem nunca ter passado por esta. A primeira e que 0 etnografo tambem e, ou deveria ser, modificado por ela. Limitar-se, enta~, a comentar a posteriori os efeitos de sua presen~a sobre os nativos, tecendo comentarios abstratos sobre seu trabalho de campo, parece revelar uma certa sensa~ao de superioridade: invulner:ivel, 0 antropologo atravessa a experiencia etnografica sem se modificar seriamente, acreditando-se ainda capaz de avaliar de fora tudo 0 que teria ocorrido. Melhor seria ouvir a advertencia levistraussiana: "nao e jamais ele mesmo nem 0 outro que ele [0 etnografo] encontra ao final de sua pesquisa" (Levi-Strauss 1960: 17). 30


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Essa perspectiva a respeito do trabalho de campo e da emografia parece articular-se muito estreitamente com a ideia estruturalista de que cada sociedade atualiza virrualidades humanas universais e, porranto, potencialmente presentes em outras sociedades. 0 nativo, nesse sentido, nao e mais pensado simplesmente como aquele que eu fui (como ocorre no evolucionismo), ou como aquele que eu nao sou (como ocorre no funcionalismo), ou mesmo como aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo): ele e 0 que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, e claro). Ora, se adotarmos urn ponto de vista urn pouco diferente, podemos talvez ser mais diretos e dizer que 0 trabalho de campo e a emografia deveriam deixar de ser pensados como simples processos de observa~ao (de comporramentos ou de esquemas conceituais), ou como formas de conversao (assumir 0 ponto de vista do outro), ou como uma especie de transforma~ao substancial (tomar-se nativo). Fazer emografia poderia ser entendido, antes, sob 0 signa do conceito de devir - desde que, e claro, sejamos capazes de entender bern em que poderia consistir esse 'devir-nativo' Y Tentando definir de forma breve 0 conceito de devir, que cunhou com Deleuze, Guattari escreveu que este e urn "[...] termo relativo 11 economia do desejo. Os f1uxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de poderem ser ou nao rebatidos sabre pessoas, imagens, identifica<;6es. Assim, urn indivfduo antropologicamente etiquetado masculino pode ser atravessado por devires multiplos e, em aparencia, contradit6rios: clevir feminino coexistindo com urn clevir crianl?' urn

devir animal, urn devir invisivel, etc" (Guattari 198Gb: 288). Isso significa que 0 devir nao e da ordem da semelhan~a, da imita~ao ou da identifica~ao; nao tern nada a ver com rela~6es formais ou com transforma~6es substanciais: "nao e nem uma analogia, nem uma imagina~ao, mas uma composi~aodevelocidades e de afetos" (Deleuze e Guattari 1980: 315). devir, na verdade, e 0 movimento pelo qual urn sujeito sai de sua pr6pria condi~ao por meio de uma rela~ao de afetos que consegue estabelecer com uma condi~ao outra. Estes afetos nao tern absolutamente 0 sentido de emo~6es ou sentimentos, mas simplesmente daquilo que afeta, que atinge, modifica: urn devir-cavalo, por exemplo, nao significa que eu me tome urn cavalo ou que eu me identifique psicologicamente com 0 animal: significa que "0 que acontece ao cavalo pode acontecer a mim" (idem: 193), e que essas afec~6es comp6em, decomp6em ou modificam urn indivfduo, aumentando ou dimi-

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nuindo sua potencia (&: 310-311). Eo nesse sentido que existe uma "tealidade do devit-animal, sem que, na tealidade, nos rornemos animal" (idem: 335). Mas e preciso compreender, tambem, 0 estatuto das duas condi~5es, aquela da qual se sai e aquela por meio da qual se sai. 56 e possivel sair, ou fugir, de uma maioria; esse termo nao designa, contudo, "uma quantidade relativa maior", mas "urn estado ou urn padriio em rela~ao ao qual tanto as quantidades maiores quanro as menores serao ditas minorirarias" (idem: 356). Em outros termos, Deleuze e Guattari buscam distinguir a no~ao meramente quantitativa de maioria daquela, normativa e valorativa, do "maior" au "majoritario". 13 De forma cotrelata, a minoria nao se confunde com 0 minoritario, e, enquanto a primeira e apenas uma quantidade menor, 0 segundo e aquilo que escapa, que foge do padrao, que devem: "e preciso nao confundir 'minorirario' enquanto devir ou processo, e 'minoria' como conjunto ou estado" (ibidem). Eo nesse sentido que devir-nativo, por exemplo, nao significa tornar-se nativo, 0 que, se fosse possivel,14 redundaria simplesmente em sair de urn estado (de maiotia) para cair em outro (de minoria). Mas e tambem nesse sentido que percebemos que s6 se escapa dos estados maiores por meio das minorias, uma vez que, por desviar do maior, toda minoria comporta urn devir-minoritario, ainda que as minorias propriamente ditas sejam, principalmente, apenas "germes, cristais de devir, que s6 valem enquanto deronadores de movimentos incontrolaveis e de desterrirorializa~5es da media ou da maiotia" (idem: 134). Urn devir-nativo, potranto, implica urn duplo movimento: uma linha de fuga em rela~ao a urn estado-padrao (maioria) por meio de urn estado naopadriio (minoria), sem que isso signifique "retetrirorializar-se sobre uma minoria como estado" (idem: 357), mas, bern ao contrario, ser capaz de construir novos territ6rios existenciais onde se retetrirorializar. 15 0 devir, assim, e o que nos atranca nao apenas de n6s mesmos, mas de roda identidade substancial possive!. E e por isso que Deleuze e Guattari (idem: 317) insistem no faro de que 0 devir tambem afeta 0 meio: aquilo que se devem - ou, para ser mais preciso, aquilo por meio de que urn devir se constitui - devem tambem outra coisa, 0 que significa que 0 devir-nativo esra relacionado a urn deviroutro do nativo. 16 No campo, tudo se passa como na intensa experiencia de campo vivida por Jeanne Favret-5aada (1977 17) ao estudar a feiti~aria no Bocage frances. Nao se rrata simplesmente, como observou a aurora, de apelar para a observa~ao participante: tendo sempre adotado uma concep~ao psicol6gica e

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racionalista da parricipa~ao (como idenrifica~ao ou compreensao, termos que implicam distancia e separa~ao), a antropologia teria sido conduzida a reter apenas a observa~ao, gerando assim uma "desqualifica~aoda palavra indigena" e uma "promo~ao da do etnografo". Ao conrrario, parricipar - prossegue Favret-Saada - significa a necessidade de 0 etnografo aceitar set afttado pela experiencia indigena, 0 que "nao implica que ele se identifique com 0 ponro de vista indigena, nem que aproveite a experiencia de campo para excitar seu narcisismo" (Favret-Saada 1990: 7). Significa, sobrerudo, deixar-se afetar pelas mesmas for~as que afetam 0 nativo, nao se colocar em seu lugar ou desenvolver em rela~ao a ele algum tipo de empatia. Nao se trara, porranro, da apreensao emocional au cognitiva dos afetos dos ourros, mas de ser afetado par alga que os afeta e assim poder estabelecer com eles uma cerra modalidade de rela~ao, concedendo "urn estaruto epistemologico a essas sirua~6es de comunica~ao involunraria e nao inrencional" (idem: 9). E e justamenre par nao conceder "estatuto epistemologico" a essas sirua~6es que a "observa~ao participanre" e mais urn obstaculo que uma solu~ao.18

*** Este livro segue as conringencias e as escolhas inrelecruais e existenciais que marcaram a pesquisa de que e fruto. Mas segue tambem aquelas (explicitadas no segundo capitulo) que marcaram a rrajetoria inrelecrual de seu autor, bern como a historia politica brasileira recenre, em rela~ao a qual este trabalho correu de forma estranhamenre paralela. Em urn enconrro academico realizado no inicio da pesquisa, sustenrei, algo pretensiosamenre, que 0 objetivo de urn estudo anrropol6gico sobre politica deveria consistir, em ultima instancia, na elabora~ao de uma perspectiva sabre nosso pr6prio sistema politico equivalenre aquela elaborada, por exemplo, par Evans-Pritchard para os Nuer, que analise, assim, a democracia como parte dos' Western Political Systems'. Pergunraram-me, imediatamente, se essa posi~ao nao seria arriscada demais, uma vez que parecia supor ou pregar algum tipo de relativiza~ao da democracia, a qual, segundo minha interlocutora, represenraria urn enorme perigo etico e politico. 19 Essa postura, reconhe~amos de inicio, parece inreiramenre compreensivel no conrexto brasileiro. Afinal, a historia recenre do pais e, em geral, contada como uma dificillura por sua (re)democratiza~ao. Apos uma instavel experiencia democr:itica no pos-guerra, 0 pais mergulhou, par mais de duas

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decadas, em uma ditadura militar, da qual s6 saiu, lema e gradualmeme, com a abertura politica empreendida pelo proprio regime militar, que culminou com a elei~ao, ainda indireta, de urn presideme civil, e, em 1989, com a primeira elei~ao direta ap6s quase trima anos. Quis 0 destino que 0 presideme assim eleito sofresse um ptocesso de impedimemo legal, 0 que, na pdtica, fez com que as elei~6es de 1994, com a escolha de um intelecrual de tendencias social-democratas e antigo opositor ao regime militar, viessem a ser encaradas como 0 verdadeiro marco da instaura~ao plena da democracia. o problema, como se sabe, e que Fernando Hemique Cardoso nao apenas se aliou justamente a algumas das for~as que haviam apoiado 0 regime militar, como manobrou para conseguir uma emenda constirucional que permitiu sua reelei~ao em 1998. Desse modo, argumemam alguns, a verdadeira redemocratiza~ao aconteceria apenas em 2002, com a elei~ao de Luiz Inacio Lula da Silva - sindicalista, lider de um partido inequivocamente de esquerda, sempre na oposi~ao. No entanto, assim como seu antecessor, para se eleger, e principalmeme para govemar, 0 Partido dos Trabalhadores acabou se aliando com partidos e politicos dos quais sempre tinha buscado se diferenciar e, mais do que isso, implememou politicas e empregou metodos que apenas a inacrediravel retorica dos politicos profissionais e capaz de conciliar com as posi~6es historicas do partido. Compreende-se, assim, perfeitameme que, sobre 0 fundo de uma narrativa tecida em tomo da 'redemocratiza~ao',mesmo aqueles que acreditam que 0 Brasil ainda nao vive em urn regime democratico perfeito desconfiem com for~a de qualquer tentativa, real ou suposta, de 'relativizar' a democracia. Por outro lado, e claro que, a esse tipo de narrativa, op6em-se outras, que insistem na postura amidemocratica assumida pelas elites e pela mfdia, nas imperfei~6es de urn sistema eleitoral ultrapassado, na inconsti'lncia dos partidos politicos e na falta de educa~ao politica de um povo pobre. De uma forma ou de outra, a questao e que todas essas narrativas tern em comum 0 fato de serem negativas, no sentido de que as raz6es dos problemas detectados sao sempre remeridas aftlta de algum elemento tido como essencial: "racionalidade, informa~ao, tradi~ao e organiza~ao partidarias, eficiencia govemamemal, etc." (cf. Goldman e Sant'Anna 1995: 22). Assim, parece ter sido necessario que urn membro de seu grupo chegasse ao poder para que os intelecruais come~assem a perceber que podiam comportar-se politicamente do mesmo modo que imaginavam que apenas os eleitores comuns fariam (justificando seu voto pelas qualidades pessoais de seu candida-

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to; racionalizando a posteriori profundas mudan~as de posicionamemos politicos; defendendo, em nome de imeresses superiores, alguns casuismos e continuismos etc.). E parece ter sido igualmeme necessario que urn presidente de esquerda Fosse eleito para que percebessemos que suas op~6es podem ser bern diferemes das que imaginavamos ou gostariamos que fossem. E no semido da supera~ao desses obstaculos - em parte derivados do lugar cemral que a democracia ocupa nos setores de nossa sociedade de que, em geral, fazem parte os imelectuais - que uma abordagem antropologica da politica deve caminhar. Comudo, nao se trata simplesmente de relativizar, nem de crer ou nao crer na democraeia. Como bern observou Velho (1995: 172),0 "Iugar de critica" do relativismo parece bastante limitado e talvez seja mesmo necessario "relativizar" essa pretensao. Na verdade, trata-se de nao ser ingenuo ou apologista demais, nem amropologo de menos, e reconhecer que, sendo urn sistema politico como outro qualquer, 0 nosso tambern e passivel de uma analise critica. 20 Porque, por urn lado, 0 melhor elogio que pode ser feito ademocraeia e mesmo 0 velho adagio segundo 0 qual ela e 0 pior sistema politico existeme, com exce~ao de todos os demais (conhecidos). Por outro, isso nao modifica nada se pretendemos analisa-Ia como amropologos, cabendo, emao, simplesmeme, a busca do melhor meio para faze-Io, pois e evidente que essa analise amropologica da democraeia pode ser efetuada de diferentes modos. Assim, se no come~o de meu trabalho de campo 0 objeto a ser investigado, de urn pomo de vista amropologico, era 'a politica em Ilheus', isso logo se transformou em 'a politica em Ilheus a partir das rela~6es mamidas pelo movimemo negro com os politicos', ou '0 modo como a politica partidaria ineide sobre 0 movimento negro da eidade', recortes que pareciam mais adequados a urn trabalho de antropologo. No emamo, foi necessario urn passo suplememar para perceber que havia algo a mais em jogo e que uma pesquisa realmeme amropologica sobre politica desenvolvida junto ao movimemo negro em Ilheus nao deveria consistir tamo no esrudo desse movimemo em si ou da politica na cidade, nem mesmo no esrudo das rela~6es emre ambos, mas em uma analise da politica ofieial na cidade oriemada pela perspectiva cetica que 0 movimemo negro tern a seu respeito. 0 que pode parecer simples nuan~a e, na verdade, uma questao fundamemal, uma vez que se apoia em op~6es metodologicas e epistemologicas cruciais - ainda que inicialmente algo involuntarias -, as quais abriram outras perspectivas para a compreensao da propria politica como urn todo e em seu semido mais ofieial.

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Pois, se a antropologia se desenvolveu buscando estudar outras sociedades de urn ponto de visra a e!as imanente, uma das dificuldades da disciplina, quando se volta para 0 estudo da sociedade do observador, parece ser sua incapacidade de manter simultaneamente 0 descentramento de perspectiva que sempre a caracteriwu e a capacidade de dar conta das variaveis sociais efetivamente estruturantes. Assim, para ser fie! ao primeiro imperativo, busca-se, por vezes, na sociedade do analista, fenomenos que apresentem alguma distancia ou alteridade em face das for<;:as dominantes. au, ao contdrio, tentando obedecer ao segundo principio, concentra-se a investiga<;:ao nos centros de poder e esfor<;:a-se por reconduzir os fatos estudados a formas que a antropologia tradicionalmente privilegiou. No primeiro caso, 0 risco sempre it espreita e 0 de conferir privilegio quase exclusivo a fenomenos ou dimensoes 'marginais', ou seja, incapazes de tomar inte!igiveis processos de estrutura<;:ao mais amplos. No segundo, pode-se acabar adotando uma perspectiva por demais afinada com as dominantes (provocando a perda da originalidade da abordagem antropol6gica) ou passar a tratar como ex6tico ou inessencial aquilo que e estruturante. No caso dos estudos sobre politica, os riscos envolvidos sao 0 privilegio de detalhes pitorescos, mas secundarios, do envolvimento politico dos grupos estudados; a mimese da ciencia politica ou mesmo do ponto de vista dos politicos; e a redu<;:ao do complexo jogo politico a rituais, cosmologias ou formas de reciprocidade - termos que, por mais que os antrop610gos se esforcem por negar, tendem sempre a enfraquecer a centralidade e a efidcia de alguns fatos quando estudados entre n6s. Foi, provave!mente, Bruno Latour quem, mais recentemente, colocou o dedo nessa ferida da chamada antropologia das sociedades complexas. Ao sugerir que os antrop610gos sao "audaciosos com re!a<;:ao aos Outros e timidos quanto a si mesmos" (Latour 1994: 100), Latour denuncia 0 erro da antropologia de nossa sociedade em imaginar s6 poder estudar "0 primitivo em nos": 0 "grande repatriamento", diz ele, "nao pode parar aiÂť e seria preciso passar a estudar as dimensoes centrais de nossa sociedade (idem; 99). a problema e que, em face dessa constata<;:ao, urn antrop610go tende inevitave!mente a levantar a questao que Latour nao levanta: dimensoes centrais para quem?2l Pois os militantes negros de Ilheus podem perfeitamente reconhecer a importancia da politica no sentido em que e!a afeta suas vidas, mas jamais concordariam em considera-Ia 'central': a musica, a re!igiao ou 0 trabaIho 0 seriam certamente muito mais. Para permanecer fie! ao 'ponto de vista nativo', sed preciso, entao, renunciar it capacidade de conferir uma inte!igi-

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bilidade mais global? Ou, para atingir uma tal inteligibilidade, sera necessario tratar a perspectiva nativa como simples parte do objeto e explic<i-Ia a partir do nosso ponto de vista tido como superior? Observemos, tambem, que esse dilema aparentemente insoluvel aparece com for~a ainda maior quando abordamos dimens6es que nos (quer dizer, intelectuais em geral) consideramos centrais. Isso significa que talvez Fosse preciso reconhecer que se a pratica mais tradicional do antropologo costuma confronra-Io com situa~6es em que, por convic~ao ou simples profissionalismo, ele deve comportar-se como urn cetico que se defronta com pessoas, grupos ou mesmo sociedades inteiras concebidas por ele, em maior ou menor grau, como crentes, ha situa~6es (e 0 caso da politica e aqui exemplar) em que tudo parece oconer de forma bern diferente. Quais seriam, entao, os efeitos de uma inversao dessa natureza - quando nossos informantes se mostram ceticos e os antropologos mais ou menos credulos, nao importando, por ora, que credulidade e ceticismo sejam dados objetivos, pressupostos metodologicos ou mesmo proje~6es ernocentricas - para 0 estudo de institui~6es, valores ou processos que 0 antropologo considera centrais em sua propria sociedade? Parece-me, assim, que uma outra possibilidade para a chamada antropologia das sociedades complexas seria a manuten~ao do foco tradicional da disciplina nas institui~6es tidas como centrais e a busca, por meio de uma especie de 'desvio ernografico', de urn ponto de vista descentrado. Ou seja, se, como pretende Herzfeld (2001: 3-5), a caracteristica da antropologia e a investiga~ao daquilo que e 'marginal' em rela~ao aos centros de poder, e preciso admitir que uma tal marginalidade poderia localizar-se nao apenas nos proprios fenomenos, mas tambem, e talvez principalmente, na perspectiva sobre eles. Como nao e dificil de imaginar, a opiniao da maior parte dos membros do movimento afro-cultural de Ilheus em rela~ao aos politicos e inteiramente negativa. Mas aquilo que confundia ou mesmo indignava no principio da investiga~ao - as afirmativas sempre repetidas de que todos os politicos e todos os partidos sao iguais; a certeza de que nenhum resultado eleitoral sera capaz de alterar 0 destino das pessoas mais humildes; 0 fato de que, em troca de pequenas retribui~6es materiais, pessoas muito pobres sao capazes de votar e apoiar aqueles mesmos que as exploram - pode ser utilizado de modo produtivo. Para isso, e estritamente necessario passar a encarar as praticas nativas (discursivas e nao discursivas) sobre os processos politicos dominantes

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como verdadeiras teorias poHticas produzidas por observadores suficientemente deslocados em rela~ao ao objero para produzir vis6es realmente alrernativas, e usar essas praticas e teorias como guias para a analise antropologica. Como sugeriram Barreira e Palmeira (1998: 8), a prolifera~ao de teorias que encontramos no dominio dos estudos eleirorais se da, em geral, com 0 sacrificio das represenra~6es nativas. Mais do que isso, entreranto, talvez seja necessario expandir 0 movimento reorico que, ja ha alguns anos, vern mostrando a necessidade de trarar nossas teorias como representa~6es sociais, acrescentando a ele urn outro movimento, capaz de reconhecer a dimensao reflexiva e - por que nao? - teorica das proprias representa~6es sociais. No seculo XIX, 0 faro de essas teorias nativas nao apresentarem, em geral, 0 carater de sistemas fechados e coerentes talvez pudesse ser utilizado para negar sua natureza verdadeiramente reorica. Hoje, contudo - depois de are mesmo as ciencias exatas e natutais terem abandonado essa no~ao de reoria, substituindo-a pela de sistemas abertos e flexiveis -, a obje~ao perdeu sua for~a e s6 poderia ser mantida como preconceiro injusrificavel."' AJem disso, no caso espedfico da poHtica, uma razao suplementar poderia ser invocada a favor da valoriza~ao das reorias nativas. Como observou Michel Foucault, uma das grandes novidades que apareceram a partir da decada de 1960 foi 0 que ele denominou "insurrei~ao dos saberes dominados" (Foucault 1976a: 163), seja no sentido da memoria de certas modalidades de resisrencia que as formaliza~6es teoricas tendem a mascarar em beneficio do que consideram as {micas luras verdadeiras (em geral aquelas travadas nos grandes cenarios de disputa eleiroral ou, no maximo, no movimento operario), seja naquele da existencia de saberes locais que rendem a ser desacreditados pelo saber oficial. 0 "acoplamento entre 0 saber sem vida da erudi~ao e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciencias" permitiria, assim, a "reativa~ao dos saberes locais - menores, diria talvez Deleuze - contra a hierarquiza~ao cientffica do conhecimento e seus efeiros intrfnsecos de poder" (idem: 164-165).

*** Em lugar de abordat a poHtica em si mesma e por si mesma, trata-se, pois, nos termos de Foucault (1980: 101-102), de tentar decodifica-Ia por meio de filtros oriundos de outros campos sociais. De certa forma, esse trabalho de decodifica~ao poderia ser a propria defini~ao de uma antropologia poHtica em sentido estriro, embora a expressao venha conotando ha muito

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tempo coisas bern difetentes. A pt6ptia incotpota~ao da politica como objeto au atea da anttopologia tende a set pensada, sabe-se, como tendo oconido, supostamente, apenas na decada de 1940. Penso, contudo, que a questao do podet sempte esteve no centto da antcopologia, desde a pt6ptia constitui~ao da disciplina. E isso nao apenas potque fotam, em pane, quest6es de otdem politica que motivatam as ttabalhos que viriam a set considerados fundadores (Kuper 1988), como, ptincipalmente, porque a antcopologia se constiruiu a pattir de uma 'grande divisao' sepatando sociedades 'politicas' e 'nao politicas' (ver Clasttes 1974, patticularmente a capitulo 1).23 As primeiras, em especial as ocidentais, dotadas de Estado, estariam tenitorialmente organizadas e estariam fundadas em urn contrato entre individuos livres que cederiam sua soberania aqueles que as representariam. As segundas, 'sem Estado', 'primitivas' etc., seriam organizadas na base de rela~6es de sangue e de grupos de status apoiados sabre a parentesco, descendencia, a alian~a. Tudo isso e bern sabido. Contudo, na medida em que a anttopologia nascente se atribuiu como objeto justamente as sociedades 'nao politicas', devese sublinhar que foi a pattir desse 'isolamento' do politico (no duplo sentido de que este e delimitado e obliterado) que a anttopologia consttuiu seus objews pteferenciais: a parentesco, conttaface do politico nas sociedades sem Estado: a religiao, derivada do parentesco par meio da exogamia e do totemismo; e, pouco mais tatde, a economia primitiva, deduzida da exogamia par meio da ttoca e da recipcocidade. Mais tarde, a antcopologia podera, desse modo, reencontrar a politico, mas definindo-o primeitamente apenas par suas fun~6es e, depois, par sua dispersao. No primeico caso - que passa pot ser a funda~ao de uma anttopologia politica -, temos uma defini~ao 'substantivista', no sentido de que a politica e urn dominio, au urn 'subsistema', social espedfico. Quando, na decada de 1940, as estrutural-funcionalistas btitinicos sustentaram a existencia do politico em sociedades desptovidas de Estado, sentiram-se ainda obrigados a enconttat uma institui~ao - as linhagens - que desempenhatia as fun~6es politicas que, em outras sociedades, seriam pteenchidas pelo aparelho de Estado. Pais e bern mais faci! denunciar as "fil6sofos politicos" como normativos, evolucionistas e etnocenrricos, cantando as vinudes do "estudo cientifico de institui~6es politicas [... J, indutivo e compatativo" (EvansPtitchard e Fortes 1940: 29-31), do que efetivamente escapar das nossas 'filosofias espontaneas', que consideram a Estado au institui~6es similares como a pt6pria essencia da politica.

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A critica a esse modelo sistemico e ainda macrosc6pico nao tatdou muito e, ja na segunda metade da decada de 1950, seu anuncio podia set ouvido: de Max Gluckman aos processualistas, passando POt Leach e POt patte da antropologia marxista, a ideia da politica como area especifica das rela~6es sociais e substiruida pelo principio fotmalista (no semido que 0 termo possui na amropologia economical de que a politica e urn aspecto de qualquer rela~ao social. 24 Essa critica, sem duvida, possibilitou novas abordagens da politica, efetuadas de urn pomo de vista amropol6gico e sem 0 pressuposto de que existiria algum tipo de patticularidade na politica pensada como subsistema social especifico. Por outro lado, 0 carater em geral microscopico dessa concep~ao de podet nao deixou de ptoduzit estranhos efeitos. Em primeiro lugar, urn certo tisco de, ao ser aplicada sobre qualquer rela~ao social, perder de vista 0 carater estrururame da politica. Ou, a fim de evitar essa armadilha, urn afastamemo da perspectiva antropologica e a busca de refugio nos modelos macrosc6picos da sociologia e da ciencia politica - de quem a amropologia seria assim uma especie de auxiliar menor. Mais serio do que isso, emretamo, sao os riscos gerados pelo carater potencialmeme temacular de uma concep~ao formalista de politica: como observou Georges Balandier (1969: 25-26), ela tende quase que inevitavelmente a se tomar "maximalista", 0 que significa confundir 0 politico e 0 social (ou seja, rudo 0 que os seres humanos fazem). 0 efeito dessa confusao e paradoxal: enquanto as concep~oes substamivistas da politica sempre buscaram relacionar 0 que concebiam como urn dominio da sociedade com suas outras dimens6es (economia, paremesco, religiao etc.), 0 formalismo politico tern a rna tendencia de reduzir todas essas dimensoes as rela~oes de poder e, desse modo, a nao investigar a experiencia total da qual a politica e apenas urn aspecto. Sob 0 argumemo de 'des-substancializar' a politica, assistimos assim, ha algumas decadas, a uma reifica~ao sem par do politico. 25 Devemos observar, igualmeme, que os estudos sobre fenomenos politicos tern ocupado uma posi~ao cemral no desenvolvimemo da amropologia nos ultimos anos. No caso da amropologia feita no Brasil, esses esrudos apresemaram noraveis avan~os, especialmeme no campo que convencionamos denominar, a pattir de meados da decada de 1990, 'antropologia da politiGa'. termo, cunhado por Moacir Palmeira,26 visava precisameme evitar conceber a politica como dominio ou processo especificos, definiveis objetivameme de fora. Tratava-se, ao comrario, de investigar fenomenos relacionados aquilo

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que, 'do ponto de vista nativo', e considetado como politica. Nesse sentido, este livro e certamente tributario desse desenvolvimento, e eu apenas acrescentaria algumas observa~6es. Nao podemos esquecer, inicialmente, que abordar a poHtica a partir 'do ponto de vista nativo' nao significa ficar aprisionado nas elabora~6es locais, mas produzir teorias etnograficas que possuam, ao menos, tres objetivos. 0 primeiro e livrar-se das quest6es extrinsecas colocadas seja par reformadores soeiais, seja par revolueionarios au eientistas poHticos - ja que se conhece bem a rela~ao de interdependencia que parece existir entre a ciencia politica e a nosSO sistema poHtico, em especial a democracia representativa, com suas elei~6es e vota~6es. Como a economia, a ciencia poHtica nunca conseguiu resolver a dilema de ser um conhecimento te6rico e crftico au uma simples tecnica de interven~ao e engenharia social. AJem disso, 'do ponto de vista nativo', aquila que pode ser definido como politica esta sempre em rela~ao com a restante das experiencias vividas pelos agentes, a que evita a tenta~ao da substancializa~ao e literaliza~ao do politico. Finalmente, pode-se ao menos tentar evitar a usa normativo au impositivo de categorias, projetando sabre as contextos estudados quest6es que nao sao a eles pertinentes. Nosso problema e de tradu~ao, nao de imposi~ao, e isso, paradoxalmente, campIica-se quando pesquisamos na Hngua que falamos e na soeiedade em que vivemos. Politica, par exemplo, parece ser, simultaneamente, um 'objeto' (au uma 'categoria nativa') e urn 'conceito). Na verdade, nao se trata, ao menos

em estado puro, de nenhuma das duas coisas, mas de um dispositivo hist6rico que permite recortar, articular e refletir, de maneiras diferentes, praticas e experieneias vividas. Nossa tarefa consiste, assim, nao apenas em abordar abstratamente as conceptualiza~6es nativas, mas em apreende-las em ato, au seja, no contexto em que aparecem e segundo as modalidades concretas de sua atualiza~o e utiliza~o, levando 0 esfor~o de restitui~ao das dimens6es emicas das no~6es ate as ultimas conseqiieneias. Em segundo lugar, uma antropologia da poHtica deve evitar cuidadosamente as abordagens efetuadas em termos negativos - aquelas que privilegiam as faltas, ausencias, ideologias e manipula~6es. Muitas vezes, imaginamos que a politica e ou deva ser algo, enos surpreendemos porque essa defini~ao ou concep~ao nao e partilhada com as agentes, atribuindo-nos, assim, a tarefa de analisar uma realidade tida como estranha simplesmente porque foi mal recortada.2' Tudo se passa como na rea~ao de Marx aos neo-hegelianos que nao conseguiam compreender como 0 mundo real podia nao obedecer aos

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modelos de Hegel: criticas teoticas ou ideologicas contta 0 estado empitico das coisas, ou contta supostos pteconceitos e esteteotipos, nao podem levat ao abandono do teal. Como obsetvou Chatelet (1975: 33-34), ao enfatizat 0 catitet etnografico de 0 capital, a {mica solu~ao pata aqueles que nao acteditam que "a histotia pode nao tet tazao" e a observa~ao diteta das atividades conCtetas dos setes humanos e a elabora~ao de etnografias. Trata-se, em suma, de reencontrar a dimensao (micro)sociologica da politica e a dimensao (micro)polirica da sociologia, escapando tanto de uma ciencia politica que da as costas para as rela~6es sociais concretas, quanto de uma sociologia que evira encarar de frente as rela~6es de poder. 28 Finalmente, uma verdadeira antropologia da politica recusa, como vimos, a falsa distin~ao entre 0 central e 0 periferico. Para isso, submete essa dicotomia a perspectiva nativa, procedendo por meio da amplia~ao do campo de anilise e fazendo ai entrar 0 que normalmente se exclui da politica: os faccionalismos, as segmentaridades, as redes sociais, certamente; mas tambem o parentesco, a religiao, a arte, a etnicidade etc. Nao para desvendar supostas rela~6es entre subsistemas relativamente aut6nomos; tampouco para revelar que atras de tudo isso estariam ocultas rela~6es de poder que ao mesmo tempo motivariam os seres humanos e seriam a explica~o de tudo 0 que eles fazem. A tarefa e mais modesta: evitar, como adverte Jose Carlos Rodrigues (1992: 52, grifo do autor), que "as teorias sobre 0 poder se transformem em teorias de poder"; elaborar teorias etnograficas capazes de devolver a politica a quotidianidade, "essa especie de tedio universal existente em toda cultura" (Veyne 1996: 248-250); reinseri-la na vida e evitar cuidadosamente as sobreinterpreta~6es e literaliza~6es que, em ultima instancia, sao as armas dos poderes constituidos; finalmente, ao menos tentar vislumbrar aquilo que, por vezes de modo silencioso, escapa sempre a essa mesma quotidianidade. 29

***

o plano de composi~ao deste livro reflete as contingencias e as escolhas, teoricas ou nao, acima evocadas. Procurei evitar uma ordem cronologica linear, tratando de 'montar' 0 texto, no sentido cinematogtifico do termo. Esse procedimento conduziu a ado~ao de diferentes estilos de apresenta~ao, dependendo dos materiais empregados em cada capitulo, e produziu um pouco de redundancia em algumas informa~6es apresentadas em diferentes capitulos. Assim, 0 primeiro capitulo situa-se em 2002 (ano de elei~6es nacionais, lembremos), no que deveria ter sido 0 final da pesquisa, e esbo~a, a partir da no-

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meayao de Marinho Rodrigues para administrador do Memorial da Cultura Negra de Ilheus, uma especie de fenomenologia das relay6es entre 0 movimentO negro e 0 poder publico municipal. Para isso, utiliza basicamente eventos publicos - que, em geral, celebram bem-sucedidos processos de captuta, pondo em contato 0 movimento negro com a polftica, bem como, e principalmente, os discursos e comendrios que povoam rais eventos. Em urn movimento de flash-back, 0 segundo capitulo recua ate 1996, quando a pesquisa da qual este livro se origina teve inicio. Partindo do papel relativamente importante que a pr6pria pesquisa desempenhou nas relay6es que, naquele ano, 0 movimento negro manteve com 0 processo eleitoral, esse capitulo - empregando, sobretudo, material oriundo de reuni6es e encontros meio publicos, meio privados - exp[ora as articulay6es e manobras que fazem 0 dia-a-dia da polftica, e nas quais os movimentos de captura sao ensaiados, acionados e negociados. Inspirado em urn procedimento utilizado por Alfred Hitchcock em um de seus filmes, 0 etn6grafo e, nesse capitulo, como que dividido em dois: da equivoca tarefa de observayao participante, Paulo Rodrigues (meu auxiliar de pesquisa na epoca) ficou com a segunda parte, e eu com a primeira. 30

o recuo cronol6gico prossegue no capitulo seguinte: baseado em uma especie de trabalho de campo realizado, por assim dizer, aposteriori, busca-se reconstruir e analisar as eleiy6es municipais de Ilheus em 1992. Elei y6es que, como veremos, sao tidas ate hoje pelo militantes negros da cidade como fundamentais, uma vez que, nelas, teriam desempenhado urn papel central, contribuindo decisivamente para a vit6ria de um dos candidatos a prefeito em troca da promessa da construyao do Centro Mro-Cultural de Ilheus - caso quase paradigmatico dos processos de captura, os quais, como sed observado, constituem uma especie de fio condutor deste livro. 0 material utilizado nesse capitulo, conseqiientemente, provem de alguma documentayao e, principalmente, da mem6ria dos agentes - tanto aquela despertada por interrogay6es diretas, quanto, em especial, aquela acionada no cotidiano como forma de interpretar ou justificar os acontecimentos presentes. o quarto capitulo avanya ate 2000, concentrando-se nas elei y6es municipais daquele ano. Do ponto de vista da pesquisa, estas, simultaneamente, fechavam um cicio aberto pelo pleito de 1996 e abriam um novo cicio, ja voltado para as elei y6es de 2004. 0 procedimento de desdobramento do etn6grafo acabou sendo utilizado mais uma vez, ja que, como observei acima, um acidente deixou-me quase imobilizado por cerca de um mes e fez com

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que Marinho Rodrigues, urn dos agentes mais arivos no processo de participa~ao do movimento negro na campanha e1eiroral, aruasse tambem como pesquisador de campo. 0 marerial empregado nesse capirulo provem, em sua maior parte, do excelente rrabalho realizado por Marinho. quinto capitulo procede novamente a urn recuo, retornando a 1998 e 1999, e prosseguindo, e claro, com 0 mapeamento das rela~6es do movimento negro com a politica. Dessa feira, conrudo, a descri~ao concenrra-se na prepara~ao, realiza~ao e resulrados do carnaval de 1999 - que, do ponto de visra dos milirantes negros, marcou urn momento fundamental na retomada das arividades dos blocos e grupos negros de Ilheus. 0 material empregado nesse capirulo provem, quase que exclusivamente, do intenso rrabalho de campo que realizei, principalmente junto ao Dilazenze, entre serembro de 1998 e mar~o de 1999 (0 que inclui, portanto, as e1ei~6es nacionais de 1998). Ele revela, de forma muito nitida, como os processos de caprura se tornam imanentes as atividades de resistencia, ou seja, aquelas para as quais as pessoas direcionam suas energias e desejos. o sexto e ultimo capirulo (uma conclusao esra fora de quesrao), por sua vez, cobre os anos de 2003 e 2004 (esre, em parte, a priori), tomando a possivel candidarura de Marinho Rodrigues a vereador como no central da trarna descrira e analisada. Tendo passado muiro pouco rempo em Ilheus ao longo desse periodo, a ernografia aqui empregada foi, quase toda, realizada 'a disrancia', mais uma vez por Marinho Rodrigues, consistindo basicamente nas fitas gravadas que me enviava e em longos telefonemas durante os quais eu conversava com e1e e com ourras pessoas em Ilheus. Finalmente, uma serie de oito apendices visa facilitar urn pouco a leirura do livro. 0 primeiro, uma especie de glossario de nomes proprios, pretende evitar que 0 leitor se perea em uma narrativa povoada de nomes de pessoas, lugares e instirui~6es. 0 segundo reproduz uma "entrevista" que enviei por escrito, em meados de agosto de 2000, ao Jornal da Cidadania, da ONG Instiruto Brasileiro de Analises Sociais e Economicas (lEASE), que me havia encaminhado algumas quest6es relativas a "parricipa~ao politica dos jovens". Esse apendice explicita assim, em parte, algumas de minhas posi~6es poliricas que talvez nao tenham ficado claras ao longo do livro propriamente dito. o Apendice III apresenta as cinco colunas escritas por Marinho Rodrigues para 0 Diario de Ilheus, entre ourubro e novembro de 2003. 0 Apendice IV e uma quase genealogia da familia Rodrigues, tal qual apresentada por seus proprios membros. 0 quinto apendice busca mostrar, graficamente, a esrru-

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tura 'segmentat' dos blocos afro de Ilheus. 0 sexto tenta fazet 0 mesmo com as elei~6es no munidpio entte 1976 e 2004. Os Apendices VII e VIII, pot lim, aptesentam, tespectivamente, alguns mapas e fotogtalias que talvez ajudem na visualiza~ao de algumas das pessoas e lugates que apatecem na nattativa. leitot observaca, tambem, que as datas que balizam os capirulos sao anos eleitotais, ou anos de "politica", como se diz em Ilheus e em tantas pattes. Como lembta Michael Hetzfeld (1985: 94, 1992a: 99), a politica, em getal, e as elei~6es locais, em particulat, ofetecem uma atena ptivilegiada pata a obsetva~ao e analise das inteta~6es sociais, uma vez que, nelas, as a~6es, escolhas e negocia~6es sao efetuadas de acotdo com padt6es evalotes que, muito clatamente, sao sempte 'de alguem' e 'pata alguem'. Esses momentos, desse modo, nao apenas constituem ocasi6es adequadas pata 0 acesso a inumetas dimens6es da politica e da vida social em geral, como abrem multiplas possibilidades narrativas, que podem destacar as causas e conseqtiencias das elei~6es propriamente ditas; a expressao das opini6es, interesses e valores de individuos e grupos; os dados oriundos da observa~ao direta; e, principalmente, a opera~ao dos mecanismos de poder em funcionamento. Varias dessas possibilidades serao aqui exploradas. Mas 0 leitot devera, igualmente, levar em conta as conhecidas, ainda que relativas, diferen~as entre elei~6es municipais, estaduais e nacionais. Pois e sem duvida verdadeiro que, ao menos em munidpios do porte de Ilheus, as primeiras parecem possuir urn poder de mobiliza~ao superior, dada a proximidade e 0 assedio por parte de candidatos e cabos eleitorais, 0 maior destaque concedido as lideran~as locais, a exigencia de posicionamentos claros da parte dos eleitores, 0 fato de em geral terem inicio bern antes das campanhas propriamente ditas, e de produzirem reordenamentos sociais por meio de alian~as e de oposi~6es que se articulam com os diferentes rerritorios existenciais dos grupos locais. Tudo isso nao deve fazer esquecer, e claro, que as elei~6es estaduais e mesmo as nacionais estao sempre estreitamente entrela~adas com as municipais, seja porque os politicos locais funcionam como cabos eleitorais de outros politicos, seja porque usam essas elei~6es para aumentar seu poder no plano municipal ou para refot~ar suas bases, seja porque urn politico de proje~ao estadual ou nacional tende sempre a possuir urn enraizamento municipal. Vma ultima observa~ao antes de concluir este prologo ja extenso demais. Ao contcario de ourras ocasi6es (por exemplo. Goldman e Silva 1998: 29), neste livro serao urilizados os nomes proprios e os apelidos verdadeiros de nativos, informantes e colegas. Em parte porque, como observou um/a parece-

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rista anonimo/a da Revista de Antropologia - a quem agrade~o imensamente - "0 emprego mecanico de names fictlcios" raramente serve de fato "para preservar a identidade das pessoas citadas", servindo antes, parece-me, para a prote~ao do antropologo. Assim, em sua disserta~ao de Mesrrado, par mim orientada, Ana Claudia Cruz da Silva modificou todos as names dos personagens de sua etnografia - "como e de praxe e, principalmente, em fun~ao de uma etica da etnografia que exige a anonimato dos informantes" (Silva 1998: 15).31 No polo oposto, mas tambem em Ilheus, Miguel Vale de Almeida (J 999: 132, nota 3) advene que utiliza names verdadeiros: "0 trabalho de campo foi conduzido sem 'agendas escondidas', sabre assuntos publicos e tendo as meus interlocutores sido informados da natureza do meu trabalho". Nao creio, contudo, que nenhuma das duas 'solu~6es' seja realmente satisfatoria. No primeiro caso, as personagens da narrativa de Silva nao apenas ficaram alga decepcionados com a ausencia de seus names no "livro", como, em poucos minutos de leitura, identificaram todos as envolvidos. No segundo - e ainda que a autor acrescente que a op~ao pelos names verdadeiros "campana riscos, uma vez que as fronteiras entre a privado e a publico naG sao consensuais" e que, "por esta razao censurei algumas afirmas:6es passiveis de ferir suscetibilidades" (ibidem) -, e-se vitima de alguma confusao. 1sso porque, par urn lado, e verdade que, alem de nao preservar necessariamente qualquer anonimato, a procedimento dos names falsos, no limite, amea~a eliminar qualquer contribui~ao etnografica de um texto. 32 No caso deste livro, par exemplo, a terreiro e a bloco que servem de palco para parte da narrativa desapareceriam enquanto tal, as politicos teriam outros names, a propria cidade de Ilheus nao deveria existir (par que nao tambem a Bahia au a Brasil?), e assim par diante. 1sso acabaria par acarretar a perda absoluta do contexto da analise, introduzindo urn anificialismo que comprometeria nao apenas a leitura, mas qualquer trabalho posterior a ser realizado nesse mesma contexto. Par outro lado, e tambem verdildeiro que, em cenas ocasi6es e para alguns informantes, a anonimato deva ser mantido - ainda que, par vezes, eles proprios exijam, clara au discretamente, que seus names sejam mencionados. Nao creio que haja uma solu~ao unica para a problema, mas qualquer op~ao repousa, certamente, sabre compromissos eticos que a antropologo deve assumir e respeitar, respondendo par sua viola~ao, seja perante seus informantes, seja perante seus colegas, e tambem dividindo parcialmente a responsabilidade com seus leitores. Nao creio, ponanto, que a que esteja em jogo se-

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jam as "fronteiras entre 0 privado e 0 publico", tampouco que se trate de autocensura. A questao verdadeiramente central foi levada ao limite na tendencia atual de exigir 0 "consentimento informado" dos nativos. Importada das ciencias biologicas (nas quais possivelmente tenha urn sentido e mesmo urn valor), essa exigencia pressup6e alguns pontos que so podem deixar urn antropologo no minimo cetico: que, no momento mesmo da investiga~ao, 0 pesquisador ja saiba onde devera chegar; que exista esse ser que a antropologia se dedica a exorcizar ha muiro tempo, a saber, urn individuo racional, claramente informado das inten~6es, tambem claras, de seu interlocutor igualmente racional, e que, com roda a liberdade, decide concordar com a proposta que the e apresentada; finalmente, que 0 consentimento possa liberar 0 investigador de seus compromissos eticos Oa que, no limite, qualquer coisa pode ser dita uma vez de posse de urn consentimento assinado). Decidi, assim, utilizar os nomes verdadeiros e eliminar ou disfar~ar em minha narrativa os eventos e juizos que, a partir da minha experiencia etnografica, acreditei que pudessem vir a ser considerados delicados, embara~o足 sos ou mesmo ofensivos por e para meus amigos de Ilheus. AIem disso, procurei mostrar 0 texto a alguns dos envolvidos para que me apontassem 0 que consideravam inadequado. Ciente de que nada disso e perfeito, pe~o desculpas antecipadamente por qualquer incomodo que eu nao tenha conseguido evitar. Pe~o

desculpas igualmente, desta feita ao leitor. por algumas discrepancias que ele certamente encontrara na grafia de nomes, datas e mesmo em alguns dados tal qual apresemados por este livro e em artigos anteriores (Goldman 2000; 2001a; 2001b). Minha unica defesa e dizer que essas pequenas confus6es nao sao apenas minhas e parecem fazer parte constitutiva da memoria dos individuos e grupos envolvidos na narrativa. Como boa parte do material aqui utilizado provem tambem dessa memoria, e inevitavel que ele se modifique ao longo do tempo.

NOTAS I Foi Ramos (1990: 458-459) que sublinhou 0 carater em geraI descontinuo e diacronico das pesquisas de campo realizadas por antrop6logos brasileiros (ver, igualmente, Peirano 1995). 2

Essa e a for<;a e a fraqueza do primeiro [rabalha escrito poc Miguel Vale de Almeida (1999)

sabre

0

movimento afro-cultural de Ilheus. A riqueza e a diversidade dos discursos sao

registradas, mas aparecem ofuscadas peIo faro de as l'iltimos serem inequivocamente declara-

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er6es formais de prindpio, prestadas a urn observador muito distante. Em seu segundo texto sobre Ilheus, Almeida (2000) parece ter percebido 0 problema e tentado restituir urn pouco da carne e do sangue da vida local. 0 problema e que a simples justaposierao dos discursos registrados, notlcias de jomal, correspondencia pessoal do antrop6logo, outras ernografiastudo intercalado por trechos (que aparecem em outra fome tipogdfica) nos quais Almeida fomece sua interpretaerao do material, bern como tece consideraer6es te6ricas mais gerais produz urn resultado urn pouco decepcionante. Em primeiro lugar, e mesmo que seja feito 0 reconhecimento das fomes, na maior parte do texto e dificil saber precisamente em que ponto 0 antrop610go toma a palavra de seus informantes ou colegas. Alem disso, 0 uso excessivo de material nao elaborado compromete muito a inreligibilidade que 0 texto pretende conferir, eleva 0 autor a nao checar algumas das informaer6es recebidas e a aceitar sem problematizaerao lapsos normais dos informantes, gerando imprecis6es etnogdficas. Sobre 0 livre de Almeida (2000), ver, tambom, a excelente resenha de Vasconcelos (2003).

30 que significa. tambem, que as vers6es, opini6es e inrerpretaer6es nativas sobre as atividades dos poHticos sao aqui simplesmente reproduzidas. sem implicar, evidenremente, nenhum julgamenro de fato ou de valor de minha parte a respeito dos eventos e personagens aos quais se referem. "Nunca se da 0 caso de que os 'nativos' - assim, no plural- tenham alguma crenera ou ideia: cada urn deles tern suas proprias ideias" (Malinowski, apud Magnani 1986: 130).

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5

Ver, tambom, Veyne (1978: 22-23; 85-86).

6 Jaco Santana Uamilton Galdino Santana) e urn artista pIastico que se dedica aelaboracrao de lindissimos m6veis nisticos e ecol6gicos. Nascido em Caravelas, participou do movimento cultural desta cidade (ver Mello 2003), bern como da se"o local do PT ato 1996, quando se mudou para Ilheus. Suas conceps:6es e posier6es poHticas sao, no fundo, muito parecidas com as minhas, donde 0 fato de aparecerem pouco neste livro - ao menos de forma explkita. Porque, na verdade, Jaco ÂŁoi fundamental para sua redaerao, nao apenas em funcrao de nossa amizade, mas tambem em virtude das imimeras informaer6es que me forneceu e das longas e divertidas conversas em que analisavamos a poHtica ilheense e 0 movimento negro da cidade.

E basta estender ao estudo dessas mediaer6es a objeerao levantada contra a possibilidade de identificas:ao com os nativos para que a ernografia se veja reduzida a urn exerdcio p6s-modemo narcisista e niilista no qual 0 antrop610go se limita a falar de si mesmo e da impossibilidade de ter acesso ao 'outro'.

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A explicaerao hist6rica tern urn sentido banal de compreensao, ou seja, pretende apenas "mostrar 0 desenvolvimento da intriga, fazer compreende-Io", enunciar 0 "resumo da intriga" (Veyne 1978: 67-68).

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Ou, nas palavras de Jacques Donzelot (1976: 172), trata-se de deixar de perguntar "0 que

e a sociedade, pois isto e abstrato e nao leva alem de urn conceito geral. Pergunra-se antes: como e que nos vivemos em sociedade? Esta e uma questao concreta: onde vivemos? Como ocupamos a terra? Como vivemos

0

Estado?"

10 Como escreveu Levi-Strauss (1954: 398-399), em antropologia trata-se sempre de atingir "urn nlvel em que os fen6menos conservem uma significaerao humana e permaneeram compreenslveis - intelecmal e sentimentalmente - para uma consciencia individual que nao en-

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contra jamais em sua existencia hist6rica objetos como 0 valor, a rentabilidade, a produtividade marginal au a popula~o maxima". A esses conceitos certamente poderiamos acrescentar a eleiror independente, a escolha radonal au a democracia ideal. J1 E por isso que 0 brilhante trabalho de Richard Graham (1997) sabre a clientelismo no Segundo Reinado brasileiro e tao parecido e, ao mesmo tempo, tao diferente do que fazem as antrop610gos. Interessado nas perspectivas nativas sobre a poder enos significados dados as a(joes politicas par aqueles mesmos que as executavam - bern como em "entender como a poHtica apareda aqueles que a exerciam" (Graham 1997: 16) -, 0 autor s6 tern acesso aos documenros (no casa, carras e correspondencias em geral) deixados pelas elites, a que, evidentemente, s6 permite a recupera~o dos pontos de vista dominantes. Como observa FavretSaada (1981: 336), essa talvezseja a sina do hisroriador, uma vez que, "nos arquivos, a 'povo' e falado mais do que fala, aparecendo como 0 objero do discurso administrativo, nao como o sujeiro de urn discurso autonomo". E talvez seja preciso, como pregava Michelet, perscrutar - mas como? - "'as silencios da hist6ria', pois muta(joes essenciais se produzem e nao sao registradas nos arquivos" (idem: 354). Para uma outra posi(jao a respeiro das rela(joes entre pesquisa de campo e pesquisa em arquivos, ver Giumbelli (2002). 12 Para as rela(joes entre Goldman (1999: 80).

0

modelo estruturalista e as posi(joes de Deleuze e Guattari, ver

13 Em geral, complementam as autores, assume-se 0 ponto de vista da maioria, a que "pode ser visro em todas as opera(joes, eleirorais au outras, em que se concede a poder de escolha, com a condi(jao de que a escolha permane(ja confocme aos limites da constante" (Deleuze e Guattari 1980: 133). Sabre essa questiio, ver Abteu (2003), em especial a capitulo 7. 14 "Fracassaremos sempre em passar par negro ou indio, mesmo par chines, e nao e uma viagem aos mares do suI, poc mais duras que sejam as condi(joes, que nos fad transpor 0 mum, sair do buraco au perder a rosro" (Deleuze e Guattari 1980: 231).

"Ver Deleuze e Guattari (1980: 128-129; 131-136; 356-361; 586-588). 16 Este processo - que os autores denominam "dupla captura" (Deleuze e Pamet 1977: 8), "duplo-devir" (Deleuze e Guattari 1980: 357; 470; 644) au "bloco de devir" (idem: 360)talvez sirva para lan(jar mais luz sabre as complexas rela(joes entre ern6grafo e nativos do que as lugares-comuns repetidos, tanto acerca da objetividade cientifica quanta da auroridade etnografica. 17

Ver, tambem, Favret-Saada e Contreras (1981).

18 Favret-Saada (1977) enumera, ainda, outros obscaculos ao trabalho do antrop610go: a similaridade cultural excessiva do etn6grafo com 0 grupo estudado; a concentra(jao da invesriga(jao nas elites; a ado(jao da nO(jao de cren<;a; a hip6tese de que tudo se esclarece uma vez remetido ao 'social'; os ideais de 'objetividade' e 'cientificidade'. Nao e de admirar, ponanto, que seu trabalho tenha suscitado rea(joes tanto na mfdia - chegando a ser batizada de "a feiticeira do CNRS" (Centre National de la Recherche Scientifique) (Favret-Saada 1989: 112) - quanro na academia, onde urn colega chegou a sugerir que a CNRS deveria cancelar sua balsa (Favret-Saada 1977: 287).

19 Na mesma epoca. urn colega, etn61ogo, contou que ouvira dizer que eu abandonara a antropologia para me tamar urn cientista poHtico.

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I: !

No sentido preciso em que Foucault (l984a: 59) sustenta que seu trabalho sobre 0 aprisionamento visava tornar a prisao "inteligfvel e, entao, criticavel". Fora isso, este livro pretende adotar, sobre a polftica, uma perspectiva antropol6gica absolutamente nao normativa, amoral mesmo, 0 que nao significa, evidentemente, anti-etica.

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21 Tania Stolze Lima chamou a minha atenc;ao para este ponto crucial e, mais uma VeL, a ela agradec;o. Por outro lado, uma interpretac;ao mais simpatica a Latour poderia insistir, talvez, no fata de que 0 termo "central" deveria ser entendido no sentido em que uma estac;ao ferroviar~a, por exemplo, e dita 'central', ou seja, simplesmente por possuir urn maior numero de conex6es em uma rede.

Ji em 1985, Joanna Overing observava a necessidade de moclificas:6es em nosso vocabuIario para nos referirmos aos saberes indigenas, deixanclo de falar apenas em cosmologias e represemac;6es ou concepc;6es para tef a coragem de dizer filosofias e epistemologias (Overing

2Z

1985: 23). Ver, tambem, Viveitos de Castto (2003). 2} Observemos, de passagem, que as grandes divis6es naG se limitam ao plano ontologica, no qual aflrmam a existencia de 'tipos' distintos de sociedade. Elas podem, tambem, operar nos pIanos epistemo16gico (supondo que formac;6es sociais diferentes devam seT tratadas por saheres distintos) ou meSilla metodo16gico (em que imaginariam a existencia de metodos Slipostamente mais adequacios para cliversas formas de sociedacle). Ver, tambem, Lima e Gold-

man (1998). 24

Voltaremos a esse ponto no segundo capitulo.

25

Ver, em especial, Swattz et alii (1966) e Swattz (1968).

"Vet, entte outtoS, Palmeira (1991; 1992), Palmeira e Heredia (1993; 1995), Palmeira e Goldman (1996), Batteita e Palmeira (1998). Ja em 1990, Joan Vincent intitulou a primeira parte de seu enorme handbook sobre antropologia poHtica "The Anthropology of Politics". E curioso, contudo, que ela tenha utilizado essa expressao para designar as contribuic;6es mais antigas (ate 1940) e reservado 0 dtulo "Political Anthropology" para a antropologia posterior. Na reuniao comemorativa do qiiinquagesimo aniversario do Departamento de AntropOlogia da Universidade de Manchester, em 1999, urn dos paineis foi denominado The

Anthropology of Politics and the Politics of Anthtopology. "Como advettem Hetmet (1978: 17) e Rouquie (1978: 170), e preciso livtar-se de todo "etnocentrismo eleitoral", em especial daquele "liberal-pluralista", e esforc;ar-se por captar as representac;6es dos agentes. As anaIises de nosso sistema politico, de fato, costumam compartilhar com algumas representac;6es nativas uma tendencia a apreciar sistemas realmente existentes, confrontando-os, explicita ou implicitamente, com 'casos' ou 'modelos'. Na primeira alternativa, costuma-se supor que, em algum lugar (nos Estados Unidos, na Escandinavia, em urn passado glorioso ou em urn futuro desejado) a democracia funcionaria talcomo dizem que funciona; na segunda, sup6e-se urn padrao ideal, a qual, mesmo que nao se realize jamais, serve de parametro para aferir 0 grau de democracia dos regimes efetivamente em funcionamento. Como lembra Palmeira (1992: 30), comparac;6es sao uteis, mas devem ser efetuadas de modo preciso entre contextos estudados com a mesma profundidade etnogdflca. 28 Aqui parece encontrar-se a limite de alguns interessantes trabalhos escritos sobre as relac;6es entre cultura e politica. Escrevendo sabre novas formas de movimentos sociais que bus-

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cam articular cultura e polftica, Dagnino (2000: 87), por exemplo, ap6s observar que "existe hoje no Brasil uma proliferac;:ao de microexperiencias que nao podem ser ignoradas, pois revelam possibilidades importantes de mudanc;:a", reduz imediatamente tais experiencias "ao processo de construc;:ao de cidadania" (ibidem) e a uma "disputa entre concepc;:6es alternativas de democracia e da arena politica" (idem: 79), quando se trata. evidentemente, de algo mais profundo, de disputas em torno de concepc;:oes de vida alternativas. Da mesma forma, a tentativa de Alvarez et alii (2000: 29-30) de alargar 0 sentido da politica, a fim de retira-Io da esfera exclusiva do Esrado e estende-Io aos movimentos sociais, esbarra na absoluta falta de atenc;:ao as formulac;:oes nativas e e sempre conduzida do ponto de vista do observador. Algumas ernografias recentes testemunham essa posic;:ao. Ver, por exemplo, Magalhaes (1998) e Chaves (2003). Ver ainda, em especial, Borges (2004), que apresenta, de forma exemplar, a imbricac;:ao da politica e da vida mais cotidiana das pessoas - reduzindo assim, ernograficamente, 0 alcance da bela f6rmula de Norbert Elias por e1a mesma citada: "a palavra politica, meramente, desvitaliza a experiencia" (Borges 2004: 13). 29

30 Trata-se do filme Intriga Internacional (North by Northwest). Como explicou 0 diretor em entrevista a Franc;:ois Truffaut, foi necessario desdobrar 0 vitio do filme em tres personagens distintos, de tal forma que urn pudesse ser sedutor enquanto os outros dois dividiam 0 carater "sinistro" e "brutal" que os viloes devem necessariamente apresentar (Hitchcock e Truffaut 1986: 66). E claro que, em Ilheus. a divisao nao poderia ser nem tao completa, nem tao maniqueista: a possibilidade de incluir ate mesmo meu auxiliar de pesquisa na observac;:ao s6 foi possive1 em func;:ao de urn certo tipo de participac;:ao; da mesma forma, Paulo recolheu precioso material ao operar, muitas vezes, como observador, e, bern mais tarde, escreveu uma dissertac;:ao de Mestrado sobre 0 porto de Ilheus no contexte cia crise regional (Santos 200 1).

Se adissertac;:ao de Mestrado de Ana Claudia Cruz da Silva (1998) e aqui citada com muito mais freqi.i1~ncia que sua tese de Doutorado (Silva 2004, onde aurora, alias, uriliza nomes pr6prios verdadeiros), isso se deve ao fato de que a ultima foi escrita quase simultaneamente a este livre. Assim, e mais uma vez, eu gostaria de reconhecer a importancia da tese de Ana Claudia para meu proprio trabalho.

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32 Como Silva mesmo admite, a regra do anonimato que adota: "[...] vale apenas para as pessoas e, ainda assim, para as nao muito publicas. Dadas as peculiaridades de Ilheus, ocultar seu nome seria desmontar toda a argumentac;:ao. 0 meSillO acontece em relac;:ao as entidades estudadas na cidade: trocar seus nomes provocaria a perda do sentido de uma serie de formulac;:oes e informac;:oes importantes que se encontram no texto. Assim, torna-se muito facil, para quem conhece urn pouco 0 campo onde trabalhei, descobrir a quem estou me referindo" (Silva 1998: 15 - grifo da autora).

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CAPfTULO

2002:

I

1

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHEUS

No dia 6 de dezembro de 2002, Jabes Ribeiro nomeou Gilmario Rodrigues Santos para 0 cargo de administrador do Memorial da Cultura Negra de I1heus, no litoral sui da Bahia. Jabes, como e conhecido na cidade, era, naquele momenro, e pela terceira vez, prefeito de I1heus: eleito, primeiramenre, em 1982 para urn mandato de seis anos; em 1996 venceu novamenre as elei~6es; e foi reeleito no ano 2000 - 0 que significa que, ao longo de 22 anos, governou a cidade por quatorze. Se acrescenrarmos que, enrre 1989 e 1992 - enquanro Jabes ocupava a Secretaria Estadual do Trabalho no governo Waldir Pires e, depois, uma cadeirade deputado federal-, I1heus foi governada por urn correligionario, Joao Lirio, podemos conduir que Jabes comandou a politica ilheense por dewito dos ultimos 22 anos. Gilmario Rodrigues Sanros - Marinho, como e conhecido por todos era, nesse momenro, 0 presidenre do Grupo Cultural Dilazenze e ex-presidenre do Conselho das Enridades Afro-Culturais de llheus (CEAC ou CEACI). 0 Dilazenze faz parte de urn conjunro de grupos autodenominados "blocos afro". Organizados nos moldes dos de Salvador (dos quais 0 lie Aiye e 0 Olodum sao provavelmenre os mais conhecidos), esses blocos, alem de desfilarem no carnaval, possuem outras fun~6es, que vao desde p610 de aglutina~ao de jovens negros em busca de diversao ate 0 que denominam "trabalho social" com comunidades carenres. Marinho, alem de ter sido urn dos fundadores do Dilazenze em 1986, era presidenre do grupo desde 1988 e participava - como vice-presidenre, presidenre e diretor - dos conselhos de entidades afro desde que 0 primeiro fora criado em 1989,0 que significa que esta no cenrro do movimenro negro de llheus ha quase 20 anos. I A cerim6nia, simultaneamenre de nomea~ao e posse, ocorreu na Associa~ao Desportiva 19 de Mar~o, situada na rua de mesmo nome, transversal 11 Avenida ltabuna, 0 mais importanre acesso rodoviario a I1heus. A Rua 19 de Mar~o fica em local relativamenre pr6ximo ao cenrro da cidade e e, ao mesmo tempo, urn dos inumeros caminhos que conduzem ao bairro da Conquista, uma das principais areas de concenrra~ao da popula~ao negra de

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Ilheus e sede da maior parte dos grupos que comp6em 0 movimento negro da cidade, inclusive 0 Dilazenze. Fundada na decada de 1960, a Associa<;:ao 19 de Mar<;:o e adminisrrada por membros da familia negra que a criou e que are hoje e sua proprieraria. Trara-se, aparentemente, do unico remanescente dos varios clubes de domino exisrenres no passado em Ilheus. 0 domino e urn jogo extremamente popular em todo 0 sui da Bahia, e a 19 de Mar<;:o ainda organiza torneios, contando hoje, dizem, com aproximadamente novecentos associados (que ja teriam sido quase 1.800). Alem dos campeonatos, costuma ser servida, aos sabados, uma famosa feijoada, regada a cerveja e, e claro, jogo de domino. 0 clube promove tambem bailes e serestas, mas a verdade e que nenhuma dessas atividades e realizada com a freqiiencia que supostamente tinham no passado. Nem a familia que fundou e dirige a associa<;:ao, nem seus associados - rodos, em sua esmagadora maioria, membros da enorme popula<;:ao negra e pobre de I1heus -, possuem recursos para uma boa manuren<;:ao do proprio predio, que se achava bastame abandonado quando, em maio de 2000, a Prefeitura decidiu arrendar e reformar 0 andar terreo do sobrado - 0 mais danificado e onde nada mais acontecia - para ai instalar 0 recem-criado Memorial da Cultura Negra de Ilheus. 2 A cria<;:ao desse Memorial, bern como a nomea<;:ao de urn dos principais Iideres do movimemo negro de I1heus para administra-Io, constituem uma especie de pomo culminante de urn longo processo iniciado quase dez anos antes, quando, por ocasiao da campanha para as e!ei<;:6es municipais de 1992, prometeu-se e desejou-se 0 que era entao conhecido como Centro Afro-Cultural de Ilheus. Esse processo, de alguma forma, condensa as re!a<;:6es entre parte do movimento negro da cidade e os politicos que a governam e, nesse sentido, serve como uma especie de laboratorio em que e possive! observar, de forma mais geral, como se dao concretamente as re!a<;:6es entre politicos de todas as esferas e e!eirores de rodos os tipos. Em outros termos, a historia do Memorial oferece a oportunidade de observar e analisar parte do funcionamento empirico do nosso sistema politico, a democracia representativa. E e disso, em ultima instancia, que trata este Iivro. A cerimonia de nomea<;:ao e posse do administrador do Memorial foi acompanhada por diversas auroridades municipais, por politicos governistas e por membros do movimento negro de I1heus. Os discursos proferidos na ocasiao, bern como as tramas que antecederam e sucederam

0

evento, reve-

lam bern que 0 que estava em jogo nao se limitava - nem temporal, nem politicameme - ao aro que estava sendo formalmente realizado. Desde 0 co-

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me~o,

prefeito ]abes Ribeiro assumiu pessoalmente 0 comando da cerimonia: de microfone em punho, convidou para a mesa as pessoas que deveriam compo-la, e deu imediatamente inicio a seu discurso, no qual, logo ap6s as sauda~6es de praxe, declarou que "a unica coisa que nao posso fazer e desarticular 0 movimento afro de Ilheus". Vale a pena, pois, reproduzir, ligeiramente edirado, 0 discurso do prefeiro: 0

"0 carnaval do pr6ximo ano ja esta definido e organizado. 0 espa,o do movi-

e

menta afro, 0 espac;o dos movimentos organizados, fundamental. E a volta do carnaval de fua, das nossas talzes, e isso esta ligado a toda a nossa hist6ria.

A partir dar, surgiu a ideia de transformarmos esre espa,o em urn espa,o dedicado a urn encontro de todos aqueles que tern uma rela<;ao pr6xima com esta cultura tao imporrante no nOSSD pals, no nosso estado e no nOSSD municipio. Estamos come,ando, e cabe ao Conselho das Enridades Mro-Culrurais a competencia de ir buscar la fora os recursos, de articular, de dar as condi,oes para que isso funcione. Eu quem enta~ dizer a voces que estoll muira satisfeito e que nos vamos assinar hoje aqui dais aros: urn prorocalo de inten~6es que ohjetiva dar uma demonstra<;ao clara de que queremos continuar na parceria e trabalhar com 0 CEAC. Esse proroca1o vai autorizar a assinatura de urn con-

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venio que sera assinado em janeiro, ja que, em fun,ao da lei de responsabilidade fiscal. nao podemos assinar urn convenio no roes de dezembro, final do exerdcio ors:amentario. Esse convenio sera de doze meses, naturalmente prorrogaveis, mas tudo vai depender muito da gestao e da unidade de voces, da capacidade de somar. Porque quando a gente soma, a gente ganha; quando a genre divide, a genre perde.

Enesse sentido que vou pedir ao secreta.rio que

leia 0 protocolo de inten,oes para assinarem 0 prefeiro de llheus e 0 presidente do CEAC: 'Protocolo de inten,oes: 0 Munidpio de Ilheus e 0 Conselho das Entidades Mro-Culturais, representados, respectivamente, pelo prefeito Jabes Ribeiro e pelo presidente Jacks Rodrigues dos Santos, resolvem firmar 0 presente protocolo de intenc;6es para assinatura de convenio com vigeneia a partir de janeiro de 2003, objetivando estimular 0 resgate da cultura afro nos seus mais diversos aspectos, afirmando a contribui,ao africana na forma,ao de nossa brasilidade e procurando eferivamente constfuir uma soeiedade democratica, justa e soli-

daria, onde haja emprego e renda para rodos, respeiro a dignidade humana, sem qualquer tipo de preconceito de cor, de religiao e de nacionalidade. llheus, 6 de dezembro de 2002'. Tambem vamos assinar urn decreta que 56 esta seudo assinado agora em func;ao cia autorizac;ao cia Camara dos Vereadores - e quero aqui, mais uma vez, ressaltar 0 papd, a importancia, cia nossa bancada, pais eu 56 posso assinar isso

aqui depois que a bancacla aprovou a reforma administrativa que cia condic;6es

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I acriac;ao de cargos, porque cargo 56 pode ser cciado por lei. Esse decreta atende a uma decisao do eEAC, ramada em uma reuniao que tivemos aqui, que

indicou para ser adminisrrador do Memorial da Cultura Negra nosso companheiro Gilmario Rodrigues Santos, conhecido como Marinho. No convenio que vamos fazer, tambem colocaremos adisposic;ao 0 nome do professor Luiz Carilo para ajudar nas promo<;6es da coorclenac;ao do projeto, nas oficinas, enfim, naquele trabalho que a gente quer que acontec;a aqui. Porque nao adianta rer

0

Memorial e nao ter nada. Nesse momento, eu vou assinar

0

decretD em

que 0 governo de Ilheus indica Marinho Rodrigues Santos para 0 cargo de administrador do Memorial. Esse e urn cargo comissionado, porranto e urn cargo de confian~a do prefeito. Eu tor~o e espeto que este espa~o aconte~a, que ele de cerro. Enquanto eu for prefeito, vou ajudar, esteja prefeito, esteja aqui. esteja em Dutro lugar, eu vou ter isso aqui como uma coisa que comec;ou conoseo, com 0 apoio de genre importante. gente que gosta que as coisas ocorram em Ilheus. E born lembrar

que nesse Memorial tivemos a presen~a do senador Antonio Carlos, do governador eleito Paulo Souto, de Cesar Borges. 0 que eu espero e que 0 CEAC e 0 CEAC sao todas as entidades, certo? - tenha a competencia que ja tern demonstrado naquilo que tern feito para, em nome da unidade, ter capacidade de elaborar projetos, propostas de defesa dos interesses da nossa comunidade". Com essa conclama<;ao a unidade e ao trabalho, Jabes Ribeiro passou a palavra ao presidente do Conselho das Entidades Mro-Culturais, Jacks Rodrigues, que, em poucas palavras, agradeceu ao prefeito, parabenizou 0 adminisrrador Marinho Rodrigues (com quem nao tern qualquer rela~ao de parentesco) e declarou sua enorme felicidade em ver se "realizar urn sonho" depois de apenas urn ano de sua gestao afrente do Conselho: "porque isro aqui e urn sonho, um sonho para todas as entidades, que estavam desagregadas". Jacks aproveirou, tambem, para agradecer ao chefe da Divisao de Esporres, "professor Gurita, que e negro e e um advogado do CEAC, e que em muitas reunioes ouve 0 pessoal dizer que ele e 'advogado dos negoes'. E e mesmo!" Gurita, que tambem parricipa do movimento negro, agradeceu silenciosamente eJacks encerrOU seu discurso sustentando que "a parceria com a Prefeitura esta dando cerrO e jamais vai se acabar!" Nesse momento, houve cerra movimenta<;ao para desfazer a mesa, encerrando a cerimonia e dando inlcio a apresenta~ao do bale do Dilazenze e ao coquete!' Adriana Ribeiro, esposa do prefeito, lembrou, entretanto, que 0 novo administrador nao apenas desejava, como devia dizer algumas palavras. Marinho Rodrigues, ap6s agradecer ao prefeito por sua nomea<;ao e posse, lembrou que 0 "cargo e de grande imporrilncia e de uma responsabilidade

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muito grande" e adorou 0 mesmo tom de busca da unidade do final do discurso de Jabes e da inrervens:ao de Jacks: "Essa responsabilidade nao e so minha, mas minha, do presidente do CEAC, dos presidentes das entidades filiadas ao CEAC, de todos nos. Porque a luta foi nossa e a indicac;ao foi feita pDf voces. Porque voces viram em mim uma pessoa cia confian<;a de voces. ÂŁSpero que eu realmente possa atender aos anseios de todos voces, com toda a humildade, com toda a experiencia que adquiri em quase 20 anos de movimento negro de Ilheus, movimento que ja esta completando 25 anos em nossa cidade, desde a funda,ao do bloco Le-Gue DePa, do bloco Miny Kongo, desde as pessoas baluartes da cultura afro na nossa cidade. Pessoas como Mario Gusmao e Veludo, fundador do Miny Kongo, que nao estao mais junto a nos; pessoas que ainda estao do nosso lade, como 0 professor CarHo, que, de fepente, depois de tantos anes, volta a trabalhar com 0

movimento cultural da nossa cidade. Pessoa a quem eu agrade,o por ter me ajudado a ser 0 que eu sou hoje. Porque foi no inicio do Le-Gue DePa, acompanhando minha mae, que esta presente aqui, que eu aprendi muito. Luiz Carilo, pessoa que admiro desde essa epoca, pela sua seriedade, sua sinceridade, pelo profissionalismo em tudo 0 que faz. Entao, tenho certeza que, com toda a humildade, vamos conseguir transformar esse Memorial da Cultura Negra em urn espac;o vivo, ativo, trazendo atividades que realmeute passam dar, nao 56 ao turista, mas principalmente pessoas cia nossa cidade. urn espac;o de lazer, entretenimento e comercializac.;:ao - porque as lojinhas estao af,

as

vao funcionar de segunda a sabado. 0 restaurante tambem, com comidas tipicas, show folclorico. Enfim, nos pretendemos transformar isto aqui em urn espac;o vivo, urn espac;o atuante. Prova disso eque vamos ter agora uma peque-

na apresenta,ao do espetaculo Ifii, do Bale Mro do Dilazenze, para abrilhantar

esta noite, que

e uma noite muito importante e vai ficar marcada na historia

do movimento afro-cultural de Ilheus. Muito obrigado". Antes da apresentas:ao do bale do Dilazenze, 0 prefeito ainda teve tempo para lembrar que "em verdade" fora Adriana Ribeiro, sua esposa, a "gtande defensora do projeto" do Memotial, pedindo a todos uma salva de palmas para ela, e anunciando 0 bale, cuja apresenta,ao devetia ser acompanhada, concluiu, "tomando uma cervejinha e comendo um satapatelzinho".

*** Sublinhemos, entao, os pontos enfatizados por todos os participantes mais ativos na cetimonia. Sao estes pontos que permitirao acompanhar a tede temporal e politica da qual a nomeas:ao de Matinho faz parte, assim como

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justificar as longas transcri~6es. Observemos tambem, preliminarmente, que a nomea~ao faz parte de temporalidades e politicas relativamente heterogeneas, as quais deverao, adiante, ser exploradas em sua heterogeneidade. o prefeito, como vimos, fez questao absolura de ressaltar a importancia da unidade do movimento afro de Ilheus, evocando 0 CEAC; enfatiwu, igualmente, a importancia do "Carnaval Cultural"3 da cidade; ao nomear Marinho, frisou que seu nome havia sido indicado pelo proprio movimento negro; evocou a historia recente do Memorial, mencionando 0 nome de importantes politicos que por hi haviam passado; e ofereceu 0 nome de Luiz Carilo para "ajudar" na administra~ao. Os pontos mencionados pelo novo administrador (e, em parte, pelo presidente do CEAC) foram quase os mesmos, ainda que, e claro, com enfases diferentes: historia do movimento negro de Ilheus, importancia do CEAC, historico do Memorial e elogios a Luiz Carilo. Como toda cerim6nia, a nomea~ao do administrador do Memorial da Cultura Negra de Ilheus apresenta pelo menos dois aspectos complementares: foi urn ato performativo, no qual Marinho Rodrigues efetivamente passou a ocupar urn cargo de confian~a; e urn ato simb61ico (no sentido fraco do termo), no qual uma serie de rela~6es, conflitos, manobras, desejos e poderes foram, ao mesmo tempo, representados e disfar~ados sob a linguagem fotmal dessas celebra~6es. Trata-se entao, inicialmente, de reconstituir 0 conjunto das tramas que conduziram e foram encenadas na cerim6nia - reconstitui~ao que, espero, come~ad a tomar mais inteligfvel para 0 leitor 0 cenario completo que esra aqui sendo apresentado e, em parte, analisado. A primeira coisa a lembrar e que, se a Associa~ao Desportiva 19 de Mar~o existe desde meados da decada de 1960, e se 0 movimento negro apareceu em Ilheus no infcio da decada de 1980,4 foi apenas em maio de 2000 que a perspectiva de esse "espa~o" ser utilizado para as atividades dos grupos negros da cidade come~ou a ser aventada. Mais precisamente, essa possibilidade foi levantada pela primeira vez, salvo melhor jufzo, no dia 2 de maio de 2000, por ocasiao de uma reuniao entre 0 secredrio municipal de administra~ao e os dirigentes dos blocos afro. Marinho Rodrigues foi entao convidado pata uma nova reuniao a fim de discutir 0 assunto. Esta nunca chegou a realizarse, mas trIOs dias mais tarde, em urn encontro sobre outro tema, urn alto funcionario do setor de turismo da Prefeitura (que, em Ilheus, e administrado por uma empresa, a Ilheustur, que tambem trata da area dita "cultural") falou de uma "casa de cultura afro" a ser implementada na 19 de Mar~o. Mesmo 0

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esrranho nome "Memorial" foi sugerido pelo secrerario (em acordo com Gurira), e, quando os dirigenres negros argumenraram que algo como "Casa da Culrura Negra de Ilheus" seria melhor, ouviram que 0 nome ja havia sido divulgado e que, ponanro, era melhor que permanecesse inalrerado. No dia 19 de maio, a Prefeirura organizou uma cerimonia de assinatura de um conrraro de aluguel do andar rerreo da Associa~ao, monrando, para isso, um palanque dianre do predio. Algumas faixas foram colocadas em frenre ao local: "Obrigado Jabes pelo Cenrro de Culrura Negra" (assinada pelos "moradores da Avenida Irabuna"); "Memorial da Culrura Negra: Resgare e Promo~ao do Mundo Afro"; "Jabes e AxÂŁ' (assinada pelas "enridades afro"); e assim por dianre. Na presen~a de dirigenres das enridades negras, de varios sacerdores do candomble, de secrerarios municipais e de diversos vereadores, o prefeiro Jabes Ribeiro anunciou solenemenre a assinatura do conrraro. "Tudo isso come~ou em 1997, quando nos resgatamos 0 Carnaval Cultural de Ilheus", lembrou Jabes, que prosseguiu afirmando que esse resgate "[...] afirmou Ilheus pela sua historia, pela sua cultura, pela for~a da sua gente. llheus gosta dos trios elerricos, Ilheus gosta dos grandes cantotes que aqui vern, do llheus Folia, mas Ilheus gosta mesmo e do Carnaval Cultural, quando 0 pova, como verclacleiro artista, desfila pelas ruas, mostranclo a nossa talTa, a nossa fOf/ra, a nossa energia, a inte1igencia dos ilheenses construicla ao longo de roda

uma historia. Carnaval Cultural de 97, Carnaval Cultural de 98, Carnaval Cultural de 99, Carnaval Cultural de 2000, os blocos afro, os afoxes, enfim, a beleza da cultura construida ao longo de tantos anos. A cultura que veio da Africa. des nossos ancestrais, dos nossos antepassados, a cultura da ra<;a negra,

que representa aquilo que ha de mais forte, poderoso, na cultura deste pais. Mas nos nao podiamos ficar apenas no Carnaval Cultural, era preciso mais, era precise avans:ar mais. Eu solicitei ao secretario de administra~o, que pilo-

tou de forma competente 0 Carnaval Cultural, que nos pudessemos reunir todos os que participam desse carnaval, que representam aquela beleza que a genre ve nos bloeDs. nas manifesra<;6es mais espontaneas, mais bonitas, que entusiasmam toda a popula<;ao. Era preciso reunir este pessoal nao apenas no carnaval,

mas

0

ano inteiro. Tivemos a sensibilidade desse grande ilheense, desse !ider

comunitario, desse homem simples, mas rico do ponto de vista de seus ideais, da sua vontade de ver Ilheus crescer, que e nosso amigo Esmeraldo. a quem

pe<;o uma salva de palmas, para que aqui, na Associa<;ao Desportiva 19 de MarlTo, que sempre esteve adisposilTao das boas causas, pudessemos satisfazer

a necessidade de termos urn espa<;o para que a cultura de llheus, expressa por todos os movimentos afro. pudesse ter seu espalTo. ter seu local. Porque tenho

certeza de que, se 0 Carnaval Cultural de 2000 foi urn sucesso, 0 de 2001 sera

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muito mais brilhante a partir dessa iniciativa. E aqui, na 19 de Mar<;o, eu que-

ro dizer a voces todos que 0 que eu puder fazer para ajudar a fortalecer voces eu farei. Para que voces, quando cheguem na avenida, possam entusiasrnar, muito mais ainda do que ja tern feito ate agora, os ilheenses e os turistas. Defender

a culrura e urn dever de qualquer governo, defender a culrura e urn compromisso com a vida, com a historia, com 0 passado, com 0 presente e com 0 futuro. Eu espero que os blocos que aqui estao, os pais-de-santo, maes-de-santo,

essas mulheres que fazem a hisroria de Ilheus e consrroem a cultura de Ilheus com a sua arte, com sua re1igiao. com sua fe, com sua for<;a [...]. Nesse sangue corre 0 sangue das origens de tantos e tantos que aqui constru(ram esse nosso pais. Portanto, nos vamos dizer aos turistas que venham a este espa<;o assistir, participar, prestigiar essa riqueza que Ilheus tern e que precisa mostrar cada vez mais. Eu quero, ao assinar esse termo de convenio entre 0 Municipio de

Ilheus e aAssocia~iio Desporriva 19 de Mar~o, quero ler apenas a clausula primeira, que diz que '0 objerivo do presente convenio e a utiliza~iio da sede da Associa~o 19 de Mar~o por entidades que representam a cultura negra de Ilheus e constituirao 0 memorial desta, ao mesmo tempo que se incumbirao de pesquisar e resgatar a cultura em suas diversas manifesta<;6es, e a hist6ria, sem-

pre objetivando a promo~iio social e po[(tica de nossos descendentes afro'. Esta e a clausula fundamental deste convenio que assino. Patabens, Ilheus! Viva a cultura negra! Viva 0 movimento afro! Voces tern promisso permanente".

0

meu apoio,

0

meu com-

Apos alguns agradecimemos, proferidos pelos propriera.rios daAssocia~ao Desportiva 19 de Mar~o e por duas represemames de terreiros de candomble, a palavra foi passada a Marinho Rodrigues, que, na qualidade de representame dos blocos afro de Illteus (e, nesse momento, presideme do CEAC), lembrou que a cidade possu!a uma "tendencia para a questao afro, para a questao dos blocos afro", cltamou 0 local de "Casa de Cultura" e agradeceu ao prefeito, dizendo que esperava que "[...] juntos possamos explorar, no born sentido do termo, este espa~o, e que de realmente venha a nos dar muito proveito. Quero agradecer, entao, em nome

de todos os grupos afro de Ilheus. E tambem agradecer a uma ourra pessoa que, ao lado dos dirigentes dos blocos afro, tern sido urn dos grandes baluartes desse movimento, nosso amigo professor Gurita, urn dos grandes responsaveis por este convenio e urn dos grandes responsaveis tambem pela organiza<;ao do

Carnaval Cultural, que e uma grande vitoria do movimento afro-cultural de Ilheus. Muito obrigado, prefeito Jabes Ribeiro! Parabens!" Observemos, comudo, de passagem, que, em sua segunda e CUrra inter0 evemo, 0 prefeito reconlteceu 0 estado ainda

ven~ao, destinada a encerrar

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prec:irio do espa<;:o cedido, anunciando que a Prefeitura providenciaria a limpeza e as reformas necessarias. ÂŁSsas palavras prenunciavam, na verdade, a fato de que, alem das duas cerimonias ja mencionadas, outras "inaugura<;:6es" do Memorial da Cultura Negra de Ilheus estavam par vir. De toda forma, a primeira pagina do jornal Didrio de Ilheus (com continua<;:ao na pagina 4) anunciava, no dia 23 de maio de 2000: "Memorial da Cultura Negra de Ilheus vai se tornar realidade". Dais meses mais tarde, a Memorial ainda era chamado par quase todos de "19 de Mar<;:o", mesmo tendo passado par algumas poucas obras. Parte do espa<;:o interior havia sido consertada, a fachada pintada, com sua parte superior coberta par desenhos com tematica "afro": figuras estilizadas tentando lembrar as divindades do candomllle, instrumentos e adere<;:os dos orixas, contornos humanos negros em posi<;:ao de dan<;:a, e assim par diante. Ainda que, visto de fora, a predio parecesse pronto para ser utilizado, a parte interna ainda estava muito lange de apresentar qualquer condi<;:ao de ocupa<;:ao imediata. Foi nessas mesmas condi<;:6es, contudo, que, no dia 23 de julho de 2000, a Memorial, au "19 de Mar<;:o", foi palco do lan<;:amento da candidatura de Alzimario Belmonte Vieira ao cargo de vereador na Camara Municipal de Ilheus. Esse e, na verdade, a nome de batismo do professor Gurita, a quem, como vimos, tanto Jacks quanta Marinho agradeceram profundamente em seus discursos par ocasiao de cerimonias realizadas no Memorial. Gurita e um homem negro, de cerca de 35 anos, com curso superior, professor de educa<;:ao fisica em diversas escolas da regiao. Esobrinho do principal responsavel pela Associa<;:ao Desportiva 19 de Mar<;:o e, desde 1997, ocupava a cargo de chefe da Divisao de Esportes da Secretaria Municipal de Educa<;:ao de Ilheus. 5 Sua nomea<;:ao para esse cargo resultou diretamente de uma participa<;:ao polftica iniciada no come<;:o da decada de 1990. Gurita ingressara na politica no PT de Ilheus, mas, em 1995, deixara a PT para ingressar no PTdaB, partido nanico que fazia parte do grupo politico de Rubia Carvalho, que pretendia concorrer a Prefeitura da cidade no ana seguinte. Com a candidatura inviabilizada par motivos aos quais retornarei, Rubia passou a apoiar Jabes Ribeiro, caminho seguido tambem par Gurita, ainda que, oficialmente, seu partido estivesse do lado de outro candidato a prefeito, Roland Lavigne. Candidato a vereador, Gurita obteve 354 votos nas elei<;:6es de 1996, numero insuficiente para elege-Io (obteve a quarta suplencia da coliga<;:ao de que fazia parte oPTdaB), mas alto a bastante para credencia10 a um cargo de segundo au terceiro escalao na administra<;:ao municipal.

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Ja na campanha de 1996, Gurira havia buscado apresemar-se como represemame do movimemo negro de I1heus - ou ao menos do seror desse movimemo que se imitula "afro-cultural". A tarefa nao era das mais faceis, uma vez que sua participa~ao no movimemo afro-cultural era relarivameme receme, posterior a seu envolvimemo com a politica partidaria. Essa situa~ao dava margem a comemarios nao muiro elogiosos por parte dos militames afroculturais: que Gurita era "um negro que vivia metido com os brancos", que se relacionava mais com os "baroezinhos" do que com os membros dos blocos, que se aproveitava da participa~ao efetiva de urn irmao, ja falecido, para aproximar-se dos grupos afro, e assim por diante. Por outro lado, a evoca~ao do nome desse irmao, a aproxima~ao com um dos blocos que estavam prestes a encerrar suas atividades,6 a "ajuda" prestada a outros blocos em dificuldades e 0 esfor~o para colocar-se como mediador emre 0 movimemo negro e a candidatura de Jabes Ribeiro eram as esrrategias usadas por Gurita a fim de obter 0 reconhecimemo de sua suposta condi~ao de candidaro do movimento afro-cultural de I1heus. Esse reconhecimemo acabou nao ocorrendo, ja que, como veremos, 0 movimemo dividiu seu apoio emre varios candidatos. No emamo, 0 faro de alguns dos principais blocos afro da cidade terem optado por aderir it candidatura derrotada de Roland Lavigne (ao lado, cerrameme, do faro de Gurita pertencer a uma camada sociocultural muito acima da media dos militames negros)' fez com que, apos a vitoria eleitoral de Jabes Ribeiro, Gurita passasse a funcionar como importame imermediario nas rela~oes emre a Prefeitura e 0 movimemo negro de I1heus - e esse e 0 semido da expressao "advogado dos negoes", usada por Jacks Rodrigues para cumprimema-lo, e que tem origem, diz-se, em ironias lan~adas sobre ele por membros da adminisrra~ao municipal da cidade. As novas elei~oes municipais de 2000 constituiam, portamo, a ocasiao para que Gurita voltasse a temar 0 cargo de vereador - desta vez concorrendo pelo PSDB - e para que, mais uma vez, buscasse ser 0 candidaro do movimemo afro-cultural da cidade. Nesse semido, 0 faro de sua candidatura ter sido lan~ada do Memorial da Cultura Negra - espa~o que ele se orgulhava de ter ajudado a obter - era uma conseqiiencia quase necessaria de rodo 0 contexto politico em que estava envolvido, alem de marcar sua candidatura com o selo do movimemo negro. Nao foi casual, portamo, que, durame a cerimonia de lan~amemo da candidatura, 0 prefeito de I1heus, candidato it reelei~ao, tenha sustemado que 0 Memorial deveria vir a represemar, em seu segundo mandaro, 0 que 0 "resgate do Carnaval Cultural" da cidade teria 62

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r significado no primeiro: 0 reconhecimento da importancia do movimento afro-cultural de Ilheus e 0 principal aro de apoio por ele prestado a esse movimento e a toda a popula~ao negra da cidade (cerca de 85% do total). o lan~amento da candidatura de Gurita aCamara dos Vereadores contoU com a presen~a de alguns polfticos, de seu substituto a frente da Divisao de Esportes da Secretaria de Educa~ao (e urn dos coordenadores de sua campanha), de uma representante de urn dos coIegios onde Gurita e professor de educa~ao fisica e do pr6prio prefeito de Ilheus. A mesa foi composta por essas pessoas, alem de Marinho Rodrigues (como representante dos gtupos afro, dos quais seis se fizeram presentes na cerimonia) e do principal proprietario da 19 de Mar~o (tio do candidato). Em meio a mais de cern pessoas e de faixas que diziam coisas como "Neste 0 povo acredita. Para vereador Gurita", este ultimo fez questao de dizer que "como tio que nao poderia faltar na campanha: esta casa esta aberta para todos os polfticos, mas fiquem sabendo que nossa preferencia e Gurita". Marinho, por sua vez, em urn discurso algo inRamado, que arrancou muitos aplausos dos presentes, elogiou Gurita, que teria representado muito bern 0 movimento negro durante 0 tempo em que estivera na Prefeitura; acrescentou que a elei~ao de Gurita, ao lado da reelei~ao de ]abes Ribeiro, certamente ajudaria 0 desenvolvimento do Projeto Batukerl~, projeto social que 0 Dilazenze vinha desenvolvendo com crian~as da Conquista naquela ocasiao; prosseguiu dizendo esperar que Gurita fizesse jus aconfian~a que os grupos afro estavam nele depositando; e concluiu agradecendo ao prefeito pelo Memorial, que, em breve, estaria entrando 'em funcionamento: "foi 0 primeiro prefeito que cumpriu 0 que prometeu". ]abes Ribeiro, por sua vez, fez questao de sublinhar 0 depoimento de Marinho como demonstra~ao de que Gurita era mesmo 0 verdadeiro representante do movimento afro-cultural. Prometeu transformar Ilheus no segundo p610 afro-cultural da Bahia e mencionou 0 resgate do Carnaval Cultural como urn dos grandes feitos de seu mandato. Retirou-se, contudo, antes do discurso de encerramento feito pelo candidato, no 9ual sobraram agradecimentos as varias entidades que 0 estariam apoiando e relatos de suas conquistas nas areas do esporte e da cultura. Finalmente, Gurita comunicou que havia sido decidido, em seu comite de campanha, que Marinho Rodrigues deveria ser 0 encarregado de lidar com os representantes do movimento afro-cultural e dos terreiros de candomble. No dia 27 de agosto, urn mes ap6s 0 lan~amento de seu nome como candidato a vereador, Gurita promoveu urn cafe-da-manha de apoio a sua candidatura, tambern realizado no Memorial da Cultura Negra. Cafes da manha 63


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T como ocasi6es para a manifesta~ao de apoio eleitoral sao atos politicos muito comuns nas campanhas em Ilheus, ao menos desde 1996. No cafe promovido por Gurita, alem de seus colaboradores diretos, estavam presentes os principais dirigentes do movimento afro-cultural da cidade - entre eles, Marinho Rodrigues, que compareceu acompanhado por boa parte de sua grande familia e por diversos membros de seu bloco, 0 Grupo Cultural Dilazenze -, secrerarios municipais, alguns outros politicos e 0 pr6prio prefeito de Ilheus, acompanhado de sua esposa. Havia varias mesas espalhadas pelo salao do segundo andar do predio da 19 de Mar~o, ja que 0 terreo continuava inurilizavel, e nelas diferentes grupos se sentavam. Marinho foi convidado pelo prefeito para sentar-se a seu lado, e conversou com ele, em voz baixa, durante quase toda a cerimonia. Conversa que, e claro, girava em torno das pr6ximas elei~6es e da campanha, mas principalmente em torno daquelas para a Prefeitura e nao da de Gurita para vereador. Jabes Ribeiro disse a Marinho que estava sentido falta de seu apoio "na guerra", e que todos sabiam que sao aqueles que estao nessa guerra os que, ap6s a vit6ria, terao "a melhor fatia do bolo". Marinho respondeu que "para ir aguerra e preciso ser convocado" e que ate aquele momenta isso nao acontecera. Jabes avisou-o, entao, que, a partir daquele instante, devia dirigir-se diretamente a ele, sem a necessidade de nenhum intermediario, aviso que nao deixava de ser curioso, ao ser anunciado em urn ato de apoio a candidatura de alguem que justamente buscava se apresentar como representante do movimento negro e, portanto, como seu mediador junto aadminisrra~ao municipal. Os discursos que se seguiram exibiram 0 tom habitual, mas uma pequena surpresa nao deixou de ocorrer no discurso de abertura proferido pelo candidato a vereador: Gurita apresentou Marinho como coordenador de sua campanha, embora, apenas cerca de urn mes antes - quando Marinho esperava ser escolhido para essa fun~ao - houvesse anunciado 0 nome de ourra pessoa, urn funcionario da Divisao de Esportes, cuja chefia era ocupada exatamente por Gurita. Por ourro lado, no discurso de encerramento do cafeda-manha, 0 candidato voltou a falar de Marinho, mas dessa vez como" um dos coordenadores da minha campanha".

*** No inicio de setembro de 2000, 0 Memorial da Cultura Negra de llheus havia se tornado, de uma forma ou de ourra, urn ponto de referencia para os

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militantes do movimento negro e pata alguns outros setores da cidade embora muiros ainda 0 denominassem "19 de Maryo". Prova disso e que 0 tradicional Comicio das Mulheres - organizado, aparentemente, desde a primeira eleiyao de Jabes Ribeiro, em 1982 - foi realizado, justamente, na frente do predio do Memorial. A regra basica desse comfcio e que, com exceyao do proprio candidato, apenas mulheres podem subir ao palanque e ter direiro 11 palavra. Dessa feita, uma das oradoras foi exatamente a esposa de Gurita, o que confirmou a difundida opiniao de que este estaria com muiro prestigio junro a Jabes e 11 coordenayao de campanha do PSDB, a despeiro do fato de sua mulher trabalhar nas campanhas de Jabes desde 1996. No dia 7 de setembro, Roland Lavigne, principal candidato de oposiyao, realiwu um comicio na Conquista, mais precisamente na Praya Santa Rita, espayo tradicionalmente utilizado para isso naquele bairro. Esse comicio, entretanto, foi apenas 0 ponto culminante de uma serie de aros eleitorais que tiveram inicio com uma caminhada que comeyou precisamente na frente do predio do Memorial. Depois disso, 0 movimento afro-cultural decidiu realizar uma caminhada de apoio 11 candidatura de Jabes Ribeiro, marcandoa para 0 dia 21 de setembro. As caminhadas tambem sao aros eleirorais e politicos comuns em Ilheus, e esta deveria percorrer todo 0 centro comercial da cidade para terminar em frente ao Memorial, onde seria realizada uma apresentayao artistica de diversos blocos afro. No final das contas, apenas a caminhada foi efetivamente realizada, e ainda assim contando com um contingente de pessoas bem menor do que se imaginava. A apresentayao no Memorial foi cancelada, supostamente em virtude da impossibilidade de contar com um sistema de som eficiente, ja que as duas aparelhagens disponiveis para a campanha estariam sendo utilizadas em eventos rea/izados no mesmo momenta em outros locais. Passadas as eleiy6es de outubro de 2000, nas quais Jabes Ribeiro foi reeleiro para a Prefeitura de Ilheus com 33.775 voros (46,44% dos voros validos) e Gurita - apesar de ter obtido 625 votos (contra os 354 de 1996) mais uma vez nao conseguiu se eleger para a Camara, 0 Memorial foi, enfim, oficialmente inaugurado. As obras de recuperayao, na verdade, ainda estavam longe da conclusao (0 que aconteceria apenas bem mais tarde), mas, apesar disso, decidiu-se aproveitar 0 Dia Nacional da Consciencia Negra para a realizayao da cerimonia, tanto que, marcada inicialmente para 0 dia 17 de novembro, uma sexta-feira, a inaugurayao acabou sendo transferida e realizada no dia 20 de novembro de 2000. Essa cerimonia de criayao e inaugurayao formais do Memorial da Cultura Negra de Ilheus foi em tudo semelhante 65


aquelas ja abordadas. Marinho Rodrigues, que inicialmente fora convocado para organizar 0 evento, acabou sendo subsriruido por urn subsecrerario do municipio - com quem teve urn pequeno desentendimento ao saber da contrara~ao de dois grupos de pagode para se apresentarem na cerimonia (urn deles, alias, ligado ao pai de Gurita). o curioso e que, ap6s a inaugura~ao do Memorial, quase nada aconteceu por cerca de urn ano e meio. Parte das obras de recupera~ao foi concluida, e 0 andar rerreo do predio era precariamente urilizado por academias de capoeira e para algumas aulas de dan~a afro, 0 que, em tese, nao rinha qualquer rela~ao com 0 Memorial ou 0 CEAC. Ao longo de todo 0 ana de 2001, entreranto, falou-se muiro do Memorial, da reromada das obras, da libera~ao de verbas por parre da Prefeirura e, principalmente, de quem poderia vir a ser o adminisrrador da nova institui~ao. 0 nome mais citado, sem duvida, era 0 de Marinho Rodrigues, mas a administra~ao era urn cargo basrante cobi~a足 do. Nao apenas pelo presdgio que se esrimava ser por ele conferido, mas tambern porque se imaginava que 0 salario do cargo girasse em tomo de R$ 1.000,00, valor que nao parecia nada desprezivel em uma cidade onde 0 desemprego, especialmente entre a popula~ao masculina negra, e aldssimo e os poucos postos disponiveis costumam oferecer "urn salario" (ou seja, urn salario minimo) como remunera~ao. Prova disso e que mesmo urn dos irmaos de Marinho - que ja trabalhara na Prefeitura, fora candidaro a vereador alguns anos antes, estava desempregado ha muito rempo, e de quem logo voltarei a falar - tentou obter 0 cargo. Ja quase no final de 2001, no dia 18 de novembro, 0 espa~o do Memorial foi mais uma vez utilizado para urn evento relacionado ao Dia Nacional da Consciencia Negra. Desta feita, 0 ato consisriu em uma feijoada destinada a marcar 0 encerramento de urn campeonato de futebol organizado pelo CEAC, com recursos da Prefeitura, como parte das comemora<;6es da Semana de Zumbi.

*** Foi, entreranto, em 2002 - ano eleitoral novamente, observemos - que a ja algo longa hisr6ria do Memorial da Cultura Negra de llheus foi definida, ainda que provisoriamenre. Logo depois do camaval, a nova direroria do CEACI havia decidido promover uma cerimonia no Memorial, desrinada a entrega do Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra, que deveria homenagear pessoas que se teriam destacado nas atividades do movimento negro da cidade ou no apoio a este. 66

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o atual Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilheus corresponde, na verdade, a terceira au quarta variante das repetidas tentativas dos grupos que comp6em a movimento negro da cidade de estabelecerem uma instincia que retina e represente rodos eles. A tentativa inicial, que instituiu urn Conselho tambem usualmente chamado de CEACI, remonta a 1990 e, aparentemente, teve uma dura~ao curta e instavel. No bojo das elei~6es municipais de 1992, a segunda tentativa de estabelecer a Conselho foi empreendida. Esses eventos serao detidamente analisados no proximo capitulo e, par ora, basta assinalar que a presidencia desse segundo CEACI nao apenas aderiu a uma das candidaturas a prefeiro, como obteve 0 apoio de todos os grupas que compunham a Conselho, acenando com urn acordo que envolvia justamente a constru~ao do que era entao conhecido como Centro AfroCultural de Ilheus, primeira versao do Memorial da Cultura Negra. o Centro jamais foi construido, ainda que os candidatos apoiados pelo movimento negro tenham vencido essas elei~6es. Interpretando esse fracasso como uma "trai~ao" perpetrada pela presidencia do CEACI contra as entidades que a compunham - que teriam sido, pais, manipuladas polftica e eleiroralmente -, as dirigentes dos blocos dissolveram, na pratica, a Conselho e trataram de constituir uma nova entidade, que recebeu a mesmo nome da anterior, mas passou a ser conhecida pela sigla CEAC. Essa pequena varia~ao sempre serviu para marcar a diferen~a desse novo Conselho em rela~ao ao anterior, definitivamente comprometido com as acontecimentos das elei~6es municipais de 1992. Devemos observar, ainda, que, se a primeira direroria do novo Conselho foi eleita em 1997 (congregando quinze grupos contra as dez dos Conselhos anteriores), sua constitui~ao teve infcio no ano anterior, ana eleitoral mais uma vez - processo que foi descriro com detalhes par Ana Claudia Cruz da Silva (I998: 89-111) e que sera analisado no terceiro capitulo deste livro. Par ora, basta dizer que a mandaro da direroria, com dura~ao de dais anos, terminaria em 1999, mas foi prorrogado tacitamente par mais dais anos - ja que aparentemente nao houve qualquer ato mais formal objetivando a prorroga~ao -, encerrando-se no infcio de 2001. Poi apenas ai que a presidente em exercfcio, 8 Marinho Rodrigues, convocou novas elei~6es, empregando, contudo, uma estrategia muito utilizada, na polftica de rodos os tipos, quando se deseja, ao mesmo tempo, cumprir uma obriga~ao legal au moral e nao aver realizada: nao romou nenhuma das medidas concretas visando aefetiva~ao do pleiro. 0 processo ficou assim paralisado ate que Paulo Cesar de Menezes (Cesar), presidente do Bloco Afro Rastafiry, coordenador 67


r de organizayao e, na pratica, vice-presidente do Conselho, decidiu assumir a realizayao das eleiy6es, marcando data e local (0 pequeno bar que possuia na epoca) para as mesmas. Apenas uma chapa, encabeyada pelo proprio Cesar, apresentou-se e obteve a maioria dos voros. 0 presidente em exerdcio, entretanto, nao estava nada satisfeiro com 0 processo que, imaginava, visava retirar do grupo ao qual perrence,o Dilazenze, 0 comando do Conselho. Argumentando que as eleiy6es se teriam realizado de forma irregular - em local inapropriado e sem 0 calendario correro -, Marinho conseguiu a anulayao do processo e a realizayao de novo pleiro. Tempo suficiente para que articulasse outra chapa, em que aparecia como candidato a vice-presidente Ney Rodrigues, seu irmao, mestre de bateria e vice-presidente do Dilazenze. Para candidaro a presidente, Marinho lanyou 0 nome de Jacks Rodrigues, dirigente de urn bloco afro muito pequeno e quase em processo de extinyao, 0 D'Logun. Com urn presidente fraco e com urn vice de seu proprio grupo, Marinho cerramente imaginava manter 0 controle do CEAC, 0 que supostamente nao ocorreria com uma diretoria encabeyada pelos outros dois grandes blocos da cidade, 0 Rastafiry e 0 Miny Kongo (do qual se originava 0 candidaro a vice-presidente da chapa encabeyada por Cesar, do Rastafiry). Nesse processo, Marinho contou com 0 auxilio de Gurita: "Eu fiz rada a arriculac;ao de monragem da chapa: indiquei Jacks como presideute e conversei com os grupos que tinham confianlj:a em mim, pedindo que votassem nde; enquanto isso, Gurita conversou com as grupos que ele ajuda e

,pediu voros para Jacks, Mas hoje, ranro Gurira quanro eu admirimos que nao foi a melhor escolha e que nos somas responsaveis pela situac;ao em que a Consellio esta. Entao nos temos que tomar uma providencia".

o problema, como se pode adivinharpela fala de Marinho, e que, como ocorre freqiientemente em politica, em rodos os niveis, as coisas nao se passaram exatamente como Marinho planejara e esperara. A chapa por ele arriculada venceu as eleiy6es, mas, assim que empossado, Jacks Rodrigues tratou de buscar uma ligayao direta com a Prefeitura municipal- arriculada por intermedio de Gurita, que continuava ocupando a Divisao de Espartes da Secretaria Municipal de Educayao. Desse modo, Jacks buscou realizar uma serie de eventos, contando, para isso, com 0 apoio, inclusive financeiro, da Prefeitura. Em troca, e aproveitando 0 faro de 2002 ser novamente ano eleiroral, ofereceu aberramente a adesao do CEACI a chapa apoiada pelo prefeito de Ilheus: Paulo Souto, para governador; Antonio Carlos Magalhaes e Cesar 68


Borges, para 0 Senado; Fabio Souto, para deputado federal; e Joabes Ribeiro (irmao do prefeito e vereador mais votado nas elei~6es municipais de 2000), para deputado estadual. E 0 pior, do ponto de vista de Marinho, e que tudo isso foi efetuado com 0 apoio explicito de boa parte da diretoria do ConseIho, inclusive do vice-presidente Ney Rodrigues. Marinho discordava de todos esses encaminhamentos: formal mente, alegava que eram efetuados sem qualquer consulta aos membros do CEACI e as entidades que 0 compunham; politicamente (no sentido da 'grande politica'), sustentava que a diretoria do Conselho vinha sendo extremamente inabi!, oferecendo apoio sem qualquer garantia de retribui~ao para 0 6rgao e para os blocos, e sem qualquer garantia de vit6ria da chapa apoiada, uma vez que as elei~6es ainda estavam muito distantes. Do ponto de vista da politica interna do movimento afro, contudo, parecia haver mais coisas em jogo. A partir do final do carnaval de 2002, Marinho dera inicio a uma serie de denuncias contra alguns membros da diretoria do CEACI, acusando-os de desvio, em beneficio pr6prio, de parte das verbas cedidas pela Prefeitura para a realiza~ao de eventos pelo Conselho. Essas denuncias e acusa~6es passaram por urn processo crescente de divulga~ao e publicidade, culminando com sua apresenta~ao em jornais e radios de Ilheus - que em geral as divulgaram por meio de entrevistas realizadas com os dois lados envolvidos na questao - e seu encaminhamento a administra~ao publica da cidade (que preferia, e claro, nao se envolver no assunto).9 E curioso observar que, nesse processo, Marinho acabou se reaproximando de Cesar, do Rastafiry, que ele havia preterido, no momenta de sua pr6pria sucessao a frente do CEAC, em beneficio de Jacks Rodrigues, e que agora 0 apoiava incondicionalmente nas denuncias contra a nova diretoria. Finalmente, os dois, acompanhados par mais alguns blocos menores, propuseram a destitui~ao da diretoria do Conselho e, ao nao serem bem-sucedidos, fundaram uma nova associa~ao, a Abase (Associa~ao dos Blocos do SuI e Extremo-Sul Baianos). Alem disso, passaram sistematicamente a se referir ao Conselho das Entidades Mro-Culturais de Ilheus como "CEACI", estabelecendo retoricamente uma liga~ao com os "traidores" de 1992 e urn distanciamento perante 0 CEAC, presidido por Marinho entre 1997 e 2001. A Abase, na verdade, nunca chegou a funcionar realmente, nem a exisrir formalmente. Essa inexistencia relativa, assim como a impugna~ao do processo eleitoral do CEAC em 2001 e as acusa~6es feitas contra a diretoria do CEACI em 2002, chamam a aten~ao para urn tipo de rela~ao bastante especial mantida pelo movimento afro-cultural de Ilheus com 0 que poderiamos 69


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denominar, para as necessidades da causa, codifica~6es juddicas au legais. Se observarmos com cuidado, as irregularidades praticadas pela diretoria do CEACI, a esraruto do CEAC supostamenre violado e a pr6pria existencia da Abase, nao possuem qualquer esratuto formal. As regras e estaturos cosrumam ser esrabelecidos em reuni6es e enconrros, mas, mesmo quando regisrrados no pape!, rendem a possuir uma existencia de ordem puramenre ret6rica. E isso ranro no senrido de que permanecem apenas na mem6ria e no discutso de algumas pessoas, quanro no de que sua aplica~ao efetiva depende da for~a rer6rica daqueles que as acionam. Assim, a razao que fez com que as viola~6es dos estatutos do CEACe das regras do CEACI nunca tenham tido qualquer conseqiiencia pd.tica mais grave, e que a Abase nunca tenha chegado a funcionar e a mesma. Aqueles que acusavam a direroria do CEACI e que, par isso, fundaram a nova Associa~ao nunca tiveram for~a suficienre para amea~ar de faro as direrores do Conselho e, ao mesmo tempo, nao chegaram a implemenrar, na pratica, a enridade, que permaneceu existindo apenas no plano discursivo. Na verdade, e sempre a rela~o com a Esrado (em suas diversas insrancias) que acaba cristalizando au fornecendo cerro grau de consistencia as regras e associa~6es que a movimenro afro-cultural de Ilheus nao se cansa de criar. Voltarei a esse ponro; par enquanro, basta assinalar que e mais facil compreender agora par que, em seu discurso na cerim6nia de posse de Marinho Rodrigues como administrador do Memorial da Culrura Negra, a prefeito de Ilheus insistiu tanro na necessidade de unidade do movimento negro da cidade e no risco de sua desarricula~ao. Se, conjunruralmenre, Jabes Ribeiro buscava apenas evitar a eclosao de confliros latenres (0 que poderia evenrualmenre perrurbar a cerim6nia), de urn ponro de vista mais estrutural podedamos dizer, talvez, que a prefeito tenrava ratificar a existencia de urn 6rgao com a qual a Prefeitura, au seja, a Estado, poderia legitimamenre se relacionar. Enrretanro, e apesar desses esfor~os, as tens6es e confliros existentes no inrerior do movimenro afro-cultural de Ilheus voltaram a se manifestar par ocasiao da enrrega do Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra em 16 de abril de 2002. Planejada e organizada pela direroria do Conselho, em conraro direro com a chefe da Divisao de Esporres da Secretaria Municipal de Educa~ao e com a Secretaria Municipal de Administra~ao (que, formalmenre, e a responsivel pelo Memorial), a realiza~ao da cerim6nia s6 foi comunicada aos dirigenres das enridades negras as vesperas do evenro -, ainda que, como costuma ocorrer em uma cidade como Ilheus, rumores sabre a aconrecimenro viessem correndo alguns dias anres da data da cerim6nia. E foi apenas urn dia

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antes do evento que as entidades receberam seus convites: personalizados e intransferiveis, apenas seis deles foram entregues em maos, em envelopes lacrados, a cada dirigente de entidade. Se esses procedimentos nao sao nada usuais nas atividades do movimento negro de Ilheus, mais incomum ainda foi a fato de que, na porta do Memorial, seguranc;:as contratados pela Prefeitura realmente s6 permitiam a entrada daqueles que dispunham dos convites. Estes anuneiavam 0 "Primeiro Trofeu de Cultura Negra", enquanto as jornais locais haviam divulgado a entrega do "Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra"; em entrevista it televisao, por sua vez, Jacks Rodrigues havia comunicado a concessao do "Trafeu Destaques do Carnaval", uma homenagem aos melhores blocos do carnaval de 2002. Toda essa confusao, a1iada a urn atraso de quase tres horas - exagerado, mesmo para as padr6es ilheenses -, deixava a todos muito "desimpacientes", como se costuma dizer nos bairras mais populares da cidade quando se deseja enfatizar que a impaciencia passou de urn limite razoavel. A irritac;:ao s6 fez aumentar quando a chegada do prefeito e de sua comitiva - pravenientes de outra cerim6nia, em urn audit6rio no centro da cidade, na qual Jabes Ribeiro anunciara as candidatos que apoiaria nas eleic;:6es de outubra - confirmou as suspeitas de que 0 atraso se devia apenas ao fato de que era a chegada desses convidados que a diretoria do CEACI aguardava para dar inkio it entrega dos trofeus. Apresentada par urn locutor de uma das radios locais - filiado ao PFL, partido pelo qual Joabes Ribeiro se lanc;:ara candidato a deputado estadual-, a cerimonia teve inkio com a convocas;ao de uma "mesa". Se esse e urn procedimento comum em solenidades dessa natureza, a composic;:ao dessa mesa nao seguiu a padrao usualmente empregado em Ilheus: composta pelo prefeito, sua esposa, seu irmao, pelo candidato a deputado federal Fabio Souto, dais secretarios municipais e pelo prefeito de uma cidade vizinha, a mesa nao contava com nenhum representante do movimento negro da cidade. Ou, nos termos mais explkitos de Marinho Rodrigues, "nao tinha urn negro sentado it mesa, e nao tinha representante das entidades sentado it mesa". Pior do que isso, dos 25 trofeus distribuidos, apenas seis foram entregues a blocos afro que haviam desfilado no carnaval, e dais au (feS a pessoas de alguma forma ligadas ao movimento negro - como Gurita e Dona Ilza Rodrigues, mae de Marinho e importante mae-de-santo de candomble em Ilheus. Todos as outras trofeus foram entregues a politicos, ocupantes de cargos publicos au administrativos e empresarios: a prefeito, sua esposa, seu irmao, Fabio Souto, locutores de radio, 0 dono da entao maior empresa de onibus

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da cidade, a esta~ao local de televisao, e assim por diante. Alguns comentavam, com ironia, que 0 proprio presidente do CEACI devia ter em casa um trofeu para premiar a si mesmo mais tarde. E Marinho Rodrigues concluia assim sua avalia~ao da entrega do Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra: "Entao, as ditigentes de blocos, aqueles que tealmente fazem a cultura, que mantem essa cultUta viva, foram la so para bater palmas e, pior, para batet palmas para os hrancos, que estavam sentados na mesa com os negoes aplaudindo e des recebendo os trofeus que, na verdade, deviam ser entregues aos dirigentes

dos blocos. 0 evento tinha sido pensado par nos, mas Jacks roubou a ideia do grupo,

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que politicamente, para ele, foi born!"

Do Ourro lado da mesa, entretanto, ourras coisas pareciam estar em jogo. o prefeito, vimos, chegava de um ato publico em que anunciara os candidatoS que apoiaria nas elei~6es de outubro: a dobradinha formada por seu irmao Joabes Ribeiro, como candidato a depurado estadual, e por Fabio Souro (deputado estadual e filho do senador Paulo Souto) para depurado federal; Antonio Carlos Magalhaes e Cesar Borges para 0 Senado; e Paulo Souto para governador. Nenhum candidato it Presidencia da Republica fora mencionado, mas todos sabiam, ou viriam a saber, que Jabes apoiava Ciro Gomes. A "alian~o" com Fabio Souro parecia estrategica aos olhos do prefeito. Evocando sempre as "rela~6es historicas dos Souto com Ilheus" - a esposa de Paulo Souro era da "regiao"; ele mesmo morara na cidade durante alguns anos de sua juventude; finalmente, logo apos as elei~6es municipais de 2000, Fabio Souto transferira seu titulo eleitoral para Ilheus, ensejando a hipotese de que pretendia candidatar-se aPrefeitura da cidade -, Jabes procurava exibir a seu eleitorado a for~a que possuiria nos pianos estadual e nacional. Por ourro lado, buscava mostrar a seus aliados 0 poder eleitoral de que disporia em Ilheus e, para isso, 0 Memorial e os grupos negros da cidade pareciam perfeitamente adequados. 0 que significa que, mais do que indagar se 0 investimento no Memorial visava obter votos, ou resultava de fato nestes, deveriamos supor que se trata de uma especie de operador por meio do qual 0 prefeito se tornava visivel para seus aliados 'de cimo' e para seus eleitores 'de baixo'. Votos podem, certamente, provir dessa opera~ao, mas ela parece ser suficientemente importante em si mesma. 1O Assim, apos as sauda~6es de praxe e depois de, mais uma vez, Iembrar a importancia do Carnaval Cultural de Ilheus - bem como sua propria importancia na revitaliza~ao do mesmo -, 0 prefeito anunciou solenemente a retomada das obras do predio do Memorial e convidou 0 presidente do CEACI

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a assinar, com de, um "protocolo de inten~6es" entre tura, protocolo que tinha por

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Conselho e a Prefei-

"[...] objetivo formalizar uma parceria para 0 desenvolvimento dos projeros sociais, visando a integra~ao social e cultural do Movimento Negro de Ilheus atraves de oficinas, concursos de danl:a e musica do genero. Ao CEAC compete ceder 0 espact0' dar 0 apoio administrativo e terminar os projetos, enquanto 0

Municipio de Ilheus, atraves da Funda~ao Cultural de Ilheus, finca 0 compromisso de planejar, organizar, divulgar os projetos culturais e atividades ludicas, recreativas e esportivas do CEAC. E por estarem assim acordadas, as partes assinam 0 presente protocclo de inten<;ao em duas vias de igual teor na presencta das testemunhas".

Lido 0 protocolo, Jabes convidou Joabes Ribeiro e Fabio SoUto para assinarem como testemunhas, e para proferirem algumas palavras. Finalizando a cerimonia, Jacks Rodrigues lembrou que "[...] e uma homa muiro grande. Nos estamos querendo desenvolver a cultura negra de Ilheus enos nao vamos abaixar a cabe<;:a e naG vamos parae. Este prefeito esta sendo 0 primeiro a nos apoiar. Nos ternos que mostrar a nossa competencia, nos ternos que mastrar para 0 povo Ii fora que nos nao trabalhamos 56 no carnaval, nos trabalhamos no dia-a-dia, roda hora. Entao, nos ternos que ter uma cultura forte, nao 56 no carnavat mas desenvolvendo urn trabalho. A minha preocupa~iio e a preocupa~ao dos diretores das entidades afro e que esse Memorial da Cultura Negra va em frente. Essa obra vai ser rocada para a frente, mas vai ser tocada com uma parceria forte, com uma parceria entre 0 CEACI,

os grupos negros e a Prefeitura. Nos precisamos, sim, da ajuda do deputado estadual e futuro deputado federal Fabio Souto, precisamos porque aqui existe a segunda melhor cultura negra do Estado da Bahia, aqui existe a maior resisteneia afro-cultural da regiao. Entao, nos preeisamos, sim, de sua fon;:a hi na

Camara dos Deputados, e precisamos de uma fon;a maior do grande representante aqui de Ilheus, }oabes Ribeiro, porque esse povo que eSta aqui e que faz esse movimento cultural aqui da nossa Bahia. Entao, nos temos que lutar de parceria, de maos dadas, mostrando que isso aqui organizado por negros e

e

que 0 negro tambem e organizado, 0 negro tambem e civilizado e 0 negro tambern tern consciencia e tern cultura. Por isso, prefeito, vamos a essa parceria

para sermos fortes. Muito obrigado". No dia 7 de maio, Gurita e 0 prefeito concederam uma emrevista em um programa de radio intitulado "I1heus cada vez melhor", programa que, de acordo com praticamente todos em I1heus, e financiado pela Prefeitura.

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Ambos falaram do Memorial: Gurita sustentou rratar-se de urn "espa<,:o da cidadania", que serviria de palco para projeros visando "tirar meninos e meninas da ma", desenvolver atividades para a terceira idade e abrigar academias de capoeira que desenvolvem trabalhos com crian<,:as e adolescentes; alem disso, a espa<,:o deveria servir para reuni6es comunirarias dos moradores dos bairros pr6ximos. Mais ainda do que a chefe da Divisao de Esporres da Secretaria Municipal de Educa<,:ao, a prefeito ]abes Ribeiro buscou real<,:ar a importancia da preserva<,:ao da cultura negra em Ilheus. Mencionou, como sempre se costuma fazer nessas ocasi6es, a revolta dos escravos do Engenho de Santana II e a que ela significava em termos da "valoriza<,:ao da ra<,:a negra em Ilheus"; ressaltou que a Memorial- com suas lojinhas de artesanato, restaurante de comida t{pica, oficinas de dan<,:a, musica e artes plasticas - seria extremamente importante nao apenas para a preserva<,:ao e divulga<,:ao da cultura negra, como tambern para a vida cultural de Ilheus como urn todo e para as turistas que visitam a cidade. 0 apresentador do programa, por sua vez, fez questao de frisar a importancia hist6rica de]abes Ribeiro na luta pela preserva<,:ao da cultura negra em Ilheus e a fato de a prefeiro ter acabado de receber a Trofeu CEACI de Cultura Negra, prova do reconhecimento dessa imporrancia par parre do movimento negro da cidade. As obras no predio da 19 de Mar<,:o, de faro, foram reromadas, mas apenas no dia 28 de junho de 2002 a Memorial da Cultura Negra de Ilheus foi oficialmente inaugurado. Essa inaugura<,:ao que em tudo prolongava a clima e a estilo das inumeras cerimonias que, anteriormente, haviam sido realizadas no espa<,:o do Memorial, desde maio de 2000, e que convem, talvez, recapitular sinteticamente (acrescentando ja alguns eventos ainda nao abordados):

2/5/2000: Reuniao dos dirigentes negros com a secrerario municipal de adminisrra<,:ao: pela primeira vez, fala~se em usar a espa<,:o da Associa<,:ao Desportiva 19 de Mar<,:o para atividades do movimento negro de Ilheus; 05/05/2000: Reuniao dos dirigentes do Dilazenze com urn direror da Ilheustur, que fala sabre a Memorial, par ele chamado de "Casa de Cultura Mro"; 19/512000: Assinatura do contraro de aluguel com a Associa<,:ao Desportiva 19 de Mar<,:o; 23/712000: Lan<,:amento da candidatura de Gurita a vereador no predio da Associa<,:ao Desportiva 19 de Mar<,:o; 20/1112000: Primeira inaugura<,:ao do Memorial;

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18/1112001: Feijoada, realizada ap6s campeonaro de furebol que fazia parte das comemora~6es da Semana da Consciencia Negra; 16/412002: Enrrega do Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra; 28/612002: Reinaugura~ao do Memorial; 06/1212002: Nomea~ao de Marinho Rodrigues para 0 cargo de administrador do Memorial da Culmra Negra de Ilheus.

No dia 29 de junho de 2002, a jornal Correio d4 Bahia, de Salvador, publicava: "ACM comemora os 468 anos de funda~ao de Ilheus"; "Chapa majorid.ria do PFL prestigia homenagem do prefeiro Jabes Ribeiro ao governador Otro Alencar"; e "ACM, Cesar e Paulo Souro caminharam com a prefeito e 0 governador pelas mas de Ilheus": "as candidatos do PFL e dos partidos aliados ao Senado, Antonio Carlos Magalhaes e Cesar Borges, e ao governo do esrado, senador Paulo Souro, acompanharam ontem 0 governador Orto Alencar e 0 prefeiro Jabes Ribeiro (PFL) nas fesrividades dos 468 anos de funda"ao da cidade de Ilheus. As comemora,,6es foram marcadas pda entrega de uma serie de obras realizadas pdo governo do estaclo em parceria com a Prefeitura, e por uma homenagem ao governa-

dor, que foi agraciado com a Comenda da ardem do Merito de Sao Jorge dos Ilheus. Em seu discurso, ACM aproveitou

homenagem ao povo de Ilheus.

0

aniversario cia eidade para fazer uma

a candidato do PFL ao Senado destacou per-

sonagens ilustres que a cidacle deu ao Brasil e ao mundo, como 0 escritor Jorge

Amado, 0 comandante da Sexta Regiao Militar, general Luiz Henrique Moura Barreto, 0 empresario Vagner Keeper e 0 senaclor Paulo Souto, que, embora nao tenha nasciclo no municipio, viveu roda infancia e juventude na cidade. 'Esra

e uma terra linda e querida que rodos querem viver. Eu dizia onrem: se

algum dia me quiserem exilar para algum lugar, a minha preferencia e Ilheus', afirmou.

a povo ilheense fez uma grande Festa para receber as candidatos da coliga"ao A"ao, Competencia e Moralidade, comparecendo em peso ao aeroporto da cidacle e acompanhando, em carreata, a comitiva para os locais das inaugura-

,,6es. 'Com essa demonstra"ao de carinho, nota-se que Ilheus ja escolheu para governador urn homem que se fez filho desta terra, pdo seu trabalho, pdo seu amor e pda sua dedica"ao ao povo daqui, que e Paulo Souto. Ja escolheu tambern outros dais baianos que vao para a Senado rrabalhar por Ilheus, pda Bahia e pdo Brasil, Cesar Borges e eli, afirmou ACM. a candidato pefdista ao Senado destacou a importilncia do municipio para 0 desenvolvimento do estado e garantiu que, no que depender do governador

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Otto Alencar, Ilheus conrinuara a rer a posi~ao de destaque que sempre teve na Bahia. 'Por isso fiz quesrao de assistir a esta homenagem prestada ao governador Otto Alenear e, ao mesma tempo, mostrar 0 nosso programa de obras para essa terra. Ternos assistido bastante esse munidpio e vamos atender ainda mais, porque essa terra merece mais do que isso', disse".

Na verdade, 28 de junho e 0 dia em que se comemora 0 aniversario da eleva~ao de Ilheus a categoria de cidade, ocorrida em 1881. Feriado municipal, a data foi utilizada no ana eleitoral de 2002 como ocasiao para a realiza~ao de uma serie de inaugura~6es e eventos que contaram com a parricipa~ao nao apenas de politicos locais, como tambem de alguns que ocupavam cargos nos pianos estadual e federal. Assim, uma grande comitiva proveniente de Salvador chegou a cidade logo pela manha, comandada pelos politicos a que faz alusao 0 Correio tid Bahia, e incluindo uma coorre de deputados federais e estaduais, de candidatos a esses mesmos cargos, imprensa de todos os tipos, policiais, seguran~as etc. Entre eles, e imporrante destacar a presen~a de Fabio Souto, bern como 0 fato de que Antonio Carlos Magalhaes se candidatava a mesma cadeira a que acabara de renunciar, visando evitar uma cassa~ao resultante de urn processo envolvendo 0 que ficou conhecido como "escandalo do painel elerronico". o objetivo principal da visita consistia, pois, na inaugura~ao de uma serie de obras (a Pra~a J. J. Seabra, onde fica a Prefeitura, e que fora reformada; a Biblioteca Municipal, que, finalmente, ganhara sede pr6pria no antigo Colegio General Os6rio; parte do "quarreirao Jorge Amado", conjunto de predios e cuas no centro da cidade que, mais uma vez, passara por reformas arquitetonicas, urbanisticas e de restaura~ao), bern como na concessao da Comenda Sao Jorge dos Ilheus. Por volta do meio-dia, a comitiva acabou se dirigindo para 0 Memorial da Cultura Negra de Ilheus a fim de participar de sua reinaugura~ao, ou de "mais uma inaugura~ao", como diziam os membros do movimento negro 12 - fato a que 0 jornal de Salvador nao fez qualquer men~ao e que 0 prefeito de Ilheus explicaria, mais tarde, dizendo que fora "0 pr6prio senador Antonio Carlos Magalhaes" que decidira a ida ao Memorial, tendo inclusive, para isso, adiado diversos compromissos imporrantes em Salvador. A cerimonia de reinaugura~ao, entretanto, parecia ter sido preparada com anterioridade e, sem duvida, levando em conta a presen~a dos politicos de Salvador e de Brasilia. Quatro reuni6es preparat6rias foram organizadas pelo secretario de administra~ao, e delas participaram, alem do titular da secretaria, Adriana Ribeiro (esposa do prefeito, representando a Funda~ao Cultural

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I

j


de Ilheus), Gurita (como teptesentante da Secretaria de Esporres e Cidadania), dirigentes de algumas das entidades afro-culturais, 0 tesoureiro e 0 presidente do CEACI. A primeira reuniiio, em especial, transcorreu em clima muito tenso, ja que foi realizada durante os conflitos no Consdho e as tentativas de afastamento de seu presidente. 0 secrerario de administra~ao, contudo, logo explicitou que 0 encontro deveria tratar unicamente da reinaugura~ao do Memorial, e que a Prefeitura nao pretendia, de maneira alguma, interferir nos assuntos internos do CEACI. De toda forma, os conflitos impediram a indica~ao dos dois nomes do Consdho que, ao lado de dois representantes da Prefeitura e de urn da Associa~ao 19 de Mar~o, deveriam compor a comissao executiva do evento. Planejou-se, assim, urn pequeno "correjo" composto por membros de todos os blocos e demais entidades afro de Ilheus, 0 qual, parrindo das imedia~6es do Memorial deveria chegar ate 0 predio a fim de parricipar da "lavagem" de suas escadas. 13 Alem da musica executada pdos percussionistas no cortejo, haveria um grupo de pagode tocando na entrada do Memorial, ideia recusada pdos dirigentes dos blocos, que nao costumam considerar os grupos de pagode parte do movimento afro-cultural nem representantes da musica afro, mas que, como em outros eventos realizados no Memorial, acabou sendo imposta pdo secretario de administra~ao, que costuma encerrar essas discuss6es dizendo que "pagode tambem e coisa de negao!" .14 Jacks Rodrigues sugeriu - dizendo ser este urn pedido direto do prefeito - que fossem concedidos cinco trofeus, no estilo do Trofeu CEACI de Cultura Negra, as principais personalidades presentes. Marinho foi peremptoriamente contrario a ideia e aproveitou para dizer tudo 0 que pensava do Trofeu CEACI. A 'solu~ao' foi considerar os trofeus uma homenagem prestada pdo Memorial e incumbir a comissao executiva do evento de entrega-los. Por outro lado, Marinho conseguiu que os pequenos comparrimentos destinados aos blocos afro no interior do Memorial para que comercializassem "arresanato", "material promocional" e outros produtos a des rdacionados (chamados de "boxes") fossem liberados ja para a reinaugura~ao, podendo tambem exibir pequenas exposi¢es fotograficas contando a hist6ria dos grupos. Dos sete boxes, quatro haviam sido destinados as entidades tidas como "majores" ou "mais importantes" (que, na verdade, sao tres - Dilazenze, Miny Kongo e Rastafiry; mas 0 Zambi Axe, que mantem rda~6es estreitas com Gurita, tambem acabou sendo contemplado), um para 0 Zimbabue, Raizes

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r Negras e Danados do Reggae, urn para 0 Le6es do Reggae, Guerreiros de Zulu e Males, e 0 lilrimo, sob pressao do secrerario de adminisrra~ao, para a Associa~ao dos Terreiros de Candomble - que nem mesmo exisria na epoca, mas que, de acordo com 0 secrerario, esraria em processo de constitui~ao e deveria ocupar urn espa~o no Memorial. Assim, no dia 28 de junho, por volra do meio-dia, e apos as inaugura~6es e comendas, a "comitiva de ACM", como rodos a designavam, chegou ao Memorial. Pouco antes, tal qual planejado, urn pequeno correjo formado por quase uma centena de percussionistas dos blocos afro, baianas de terreiros de candomble e grupos de capoeira marchou das proximidades do predio ate as escadas que dao acesso ao Memorial. Ao conwlrio do combinado, enrretanto, a lavagem das escadas nao pode ser realizada, pois, de acordo com os organizadores do evento, 0 cerimonial do governador proibira 0 uso de agua visando evirar que as autoridades presentes se molhassem e pudessem passar por situa~6es consrrangedoras. Saudada por uma grande queima de fogos de arrificio, a comitiva desembarcou em frente ao Memorial. Nas imedia~6es, uma pequena mulridao comprimia-se a fim, todos diziam, de ver 0 "senador" Antonio Carlos MagalMes. Uma placa de acrilico com a seguinte inscri~ao foi descerrada pelo entao ex-senador e pelo'prefeito da cidade: "Hoje, aniversario da cidade, a Prefeitura e 0 Conselho das Entidades AfroCulturais, ua presen~a dos ilustres homens publicos Antonio Carlos Magalhiies, Paulo Souto e Cesar Borges, e do Governador Otto Alenear, daD inicio as atividades culturais do Memorial da Cultura Negra. Ilheus, 28 de junho de 2002". Sob 0 texto, 0 s{mbolo do governo Jabes Ribeiro, bern como seu slogan: "Prefeitura de Ilheus - a cidade cada vez melhor". prefeito, entao, conduziu a todos em visita ao Memorial, mostrando especialmente os boxes das entidades negras e as instala~6es do que deveria ser 0 futuro "restaurante t{pico". Subiram, em seguida, para 0 segundo andar do predio (local em que continuava funcionando a Associa~ao 19 de Mar~o), onde, para surpresa dos dirigentes dos blocos afro - que esperavam que tudo acontecesse no terreo -, foi realizada a cerimonia de entrega dos rrofeus e de reinaugura~ao do espa~o. Outras pequenas surpresas ainda aconteceriam. Jabes Ribeiro conduziu a cerimonia, agindo como se estivesse em urn verdadeiro ato de campanha eleiroral:

a

''Todo mundo sabe, que a gente pode votar em dois senadores. Urn quem '" ACM! 0 outro quem e Cesar Borges! lss01 Uma vez s6: ACM e Cesar Borges! 78

I

1


Muito bern! Agora quem ver quem sabe. Quem

e que vai ser 0

governaclor da

Bahia? Paulo Souto! Muito bern, Paulo Souto! E aqui estao os nossos deputados: nosso deputado federal Fabio Souto e nosso deputado estadual Joabes Ribeiro",

Em seguida, 0 apresentador of/cia! convocou 0 presidente do CEACI para a entrega do "Trofeu Homenagem do Memorial da Cultura Negra ao futuro senador Antonio Carlos Magalhaes"; "0 professor Gurita para fazer a entrega do trofeu ao nosso futuro governador Paulo Souto"; "a primeira-dama do municipio, Adriana Ribeiro, para fazer a entrega do trofeu ao futuro senador Cesar Borges"; "0 presidente do Bloco Afro Dilazenze, Marinho, para entregar 0 trofeu ao governador Otto Alencar". Apcs a entrega dos trofeus - e embora ainda restasse urn para ser entregue -, 0 apresentador, lembrando a rodos que "manda quem pode, obedece quem tern juizo", anunciou que 0 "senador Antonio Carlos Magalhaes" havia determinado que Paulo Souto deveria falar em nome de toda a comitiva. Em poucas palavras, 0 entao senador - que, como vimos, possui liga~6es pessoais com "a regiao" - agradeceu a homenagem e falou em "inaugura~ao desse monumento tao imponante", "marco da presen~a, em Ilheus, do negro, que e uma presen~a em Ilheus, que e uma presen~a na Bahia, que nos orgulha a todos porque e urn fator de nossa cultura, de nosso desenvolvimento". Finalmente, ja no encerramento da cerimonia, 0 apresentador convocou Jacks Rodrigues mais uma vez, agora para fazer a entrega do ultimo trofeu: "a ele, 0 grande incentivador, ao nosso prefeito Jabes Ribeiro! E agora vamos comemorar, porque e festa, hoje e aniversario de Ilheus!" Foi servido, entaO, urn coquetel, que contava com a presen~a de sete "baianas", oferecendo abaras e acarajes feitos na hora. Foi tambem anunciado que haveria distribui~ao de cerveja para os grupos afro, distribui~ao que, curiosamente, nao seria efetuada no Memorial, mas na Secretaria de Assistencia Social, localizada a poucos metros da 19 de Mar~o. Rapidamente, espalhou-se 0 boato de que a Secretaria - que, eventualmente, promove distribui~6es de cestas basicas - estaria distribuindo cerveja gratuitamente desde que os interessados comparecessem ao local com as garrafas vazias que deveriam ser trocadas pelas cheias. a boato e a grande movimenta~ao de pessoas interessadas em conseguir a cerveja provocaram uma enorme confusao, que incluiu brigas, pancadaria e funos. Do ponto de vista de Marinho Rodrigues, tudo isso apenas confirmava a incapacidade do presidente do CEACI para lidar com essas situa~6es e para planejar corretamente as atividades do movimento negro. militantes ne-

as

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a

gros de Ilheus, na verdade, sao extremamente sensiveis possibilidade de que seu comportamento, ou a falta de organiza~ao de seus eventos, sejam utilizados como argumento para refor~ar os estereotipos e preconceitos dos quais sao vitimas. Jacks Rodrigues estaria assim, de acordo com Marinho, sendo extremamente irresponsavel e colaborando para uma imagem negativa do movimento na cidade. Ele, na verdade, estaria apenas "usando" 0 movimento para finalidades pessoais, para obter vantagens materiais da Prefeitura, e para "se aparecer", como se diz em Ilheus quando se deseja enfatizar 0 exibicionismo de alguem - a conversao do verbo em reflexivo servindo para refor~ar a acusa~ao. Ele estaria, assim, buscando se apropriar nao apenas do que havia sido objeto de luta do movimento negro da cidade ao longo dos ultimos dez anos, mas tambem das ideias dos verdadeiros lideres do movimento, as quais apresentava aos ocupantes do poder publico como sendo suas. Os politicos, por sua vez, certarnente tinharn outros interesses em jogo. Como dizia Marinho, "[...J 0 movimento negro de Ilheus nunca viu urn evento como esse. E para pensar e repensar 0 que 0 prefeito Jabes Ribeiro, 0 que esses politicos, estao querendo com isso, 0 que estao querendo do movimento negro de Ilheus, ao mastrar 0 que eles estariam fazendo pela cultura negra, ao mastrar que des estao

dando espa~o para 0 movimenro negro. 0 que sera que des esrao rramando, 0 que esrao querendo alem de voto? Porque foi urn evento tao grande, uma coisa rao inesperada, com 0 governador, ACM e rudo, que faz pensar que esrao usando a genre meSillO, usando e abusando da genre para ahter prestfgio perante 0

governo do Esrado. Talvez 0 prefeiro renha a pretensao de ser secretario de Estado, e de sabe que a cultura negra na Bahia, principalmente em Salvador, e o grande ttunfo do turismo e que 0 proprio governo de ACM esta voltado para essas coisas. Entaa Jabes quer dizer para des que tambem es[a afinado com essa quesrao do movimenro negro, da cultura negra, que de apoia. E pena que os secretarios do governo de Jabes naa acompanhem esse raciodnio, porque ele fala uma coisa e os secretarios fazem outra. Entao, fica dificil alcan<;ar esses

objetivos, alcan~ar 0 que acontece em Salvador. Porque 0 governo do esrado tem uma politica voltada para os grupos afro, para os cantores de musica afro. Tem politicas de incentivo para esses grupos, roda uma politica cultural. Coisa que em Ilheus nao tern porque tern bastante discurso mas nao tern uma

politica para esse segmento da cultura. Mas Jabes, sabendo que 0 governo da Bahia eLi uma imporci..ncia muito grande para esse segmenro, come<;a a fazer esse tipo de trabalho para ganhar prestigio. Mas nos temos consciencia, e eu ate brincava OUtro dia que eu gostaria de ser usado como 0 governo do estado

usa 0 Il~, Olodum, Timbalada, Chiclete com Banana, Ivete Sangalo. Porque des ganham politicamente e os artistas ganham tambem, todo mundo ganha.

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Par issa, naa di para ser apasi~a aa gaverna de ACM em Salvadar, parque existe rada uma politica e, se voce

e de oposi~ao, voce praticamente fica fora

desse circuita cultural artlstica da cidade. Aqui em Ilheus, a gente e usada de cerra forma, mas de uma forma meio safada, porque s6 quem se da bern sao des. Os grupos continuam pabres, continuam sem financiamento, continuam sem nada".

i I'

A langa analise de Marinha resume exemplarmeme algo da filosafia poIitica da maior pane dos militames do movimento afro-cultural de IIheus. De acordo com essa filosofia, e preciso saber encomrar os pomos de convergencia dos interesses dos poderosos e dos grupos negros; e necessario explorar esses pomos por meio de um jogo de trocas e apoios redprocos; e importame que 0 resultado final seja positivo para os dois lados. Essa filosofia, evidemememe, nao e explicitameme expressa por todos os militames; eles tampouco acreditam que ela funcione segundo seu modelo ideal; mas e ela, sem duvida, que serve, ao mesmo tempo, de oriemayao e justificativa para a maior pane de seu envolvimemo com os politicos e a politica. E, se 0 imeresse pode ser considerado sua forya motriz, nao se deve esquecer que cenas formas de orgulho e vaidade sao componemes indispensaveis para seu funcionamemo: os grupos afro se pensam como anistas, desejam ter "visibilidade", "aparecer" ou, para ser mais preciso, desejam ser reconhecidos.1 5 No emamo, e apesar de rudo, Marinho queria acreditar que 0 tiro de Jacks salra pela culatra. Pois, afinal de comas, ele, Marinho, estivera ao !ado da comitiva 0 tempo todo e conversara quase ininterruptamente com os politicos; a1em disso, 0 boxe do Dilazenze fora 0 que causara melhor impressao aos visitames e, finalmeme, ele fora chamado para emregar urn dos trofeus ao governador do Estado - ato que um golpe de sone fizera ser a unica cena de todo 0 evemo levada ao ar pela rede local de televisao. "Emao", dizia Marinho, "parecia que eu era 0 presideme do CEACI, parecia que eu era 0 adminisrrador do Memorial" (que ele s6 viria a ser, lembremos, quase seis meses mais tarde). Pessoas que ele nao conhecia passaram a aborda-Io nas ruas, elogiando seu trabalho e, por vezes, sugerindo que ele deveria candidatar-se ao cargo de vereador nas eleiyoes municipais de 2004. Nesse comexto, a indicayao de Marinho para a adminisrrayao do Memorial- cuja probabilidade, como vimos, era, desde 2000, rida como muito alta - voltou a ser mencionada com enfase. Entretamo, outro nome comeyou a ser avemado e a ameayar sua nomeayao: 0 de Luiz Carilo. Mesmo sendo considerado branco pelos membros dos grupos afro, 16 Carilo e tido por eles como

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um dos pioneiros do movimento em Ilheus: professor de bale classico e de rearro, foi um dos fundadores, em 1981, do primeiro bloco afro de Ilheus, 0 Le-Gue DePa, do qual participava boa parte da familia do proprio Marinho, que, na epoca, rinha apenas 14 anos de idade. 0 Le-Gue DePa, entreranto, deixou de exisrir em 1988, e Carilo afasrou-se compleramente do movimento negro, rornando-se assessor do Servi~o Brasileiro de Apoio as Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e passando a residir fora de Ilheus por alguns anos. Dai a surpresa de Marinho ao encontra-Io na porra do predio da 19 de Mar~o na vespera da reinaugura~aoe, principalmente, ao ouvi-lo apresentarse como coordenador de arividades e possivel futuro adminisrrador do Memorial. E, rambem, ao ouvi-lo sugerir rer sido indicado para 0 cargo pela propria esposa do prefeiro, Marinho deduziu, imediaramenre, que tudo consisria em uma manobra, certamente encabe~ada por Jacks Rodrigues, auxiliado por Gurira, visando afast:i-Io da dispura pelo cargo de adminisrrador, em fun~ao da oposi~ao e das denlincias que fazia contra 0 presidente do CEACI. A longa milirancia de Marinho Rodrigues no movimento afro-cultural de Ilheus, aliada ao faro de ele ser 0 presidente do principal bloco afro da cidade e de rer exercido a fun~ao de coordenador execurivo, ou presidente, do CEAC durante quarro anos, faziam, e claro, com que a hiporese de sua escolha para o cargo de adminisrrador Fosse muiro forte - e isso desde que se come~ara a falar no Memorial. Apesar disso, foi apenas em abril de 2002 (jusramente no momento em que Marinho dera inicio as denlincias contra 0 presidente do CEACI) que a possibilidade de sua nomea~ao come~ou a ser explicirada como uma alrernariva concrera. Logo apos 0 encerramento da cerimonia de entrega do Primeiro Trofeu CEACI de Cultura Negra, ao sair do Memorial, Jabes Ribeiro chamou Marinho para uma r:ipida conversa. Nela, 0 prefeiro, mais uma vez, expressou seu desejo de que Marinho se aproximasse mais da campanha de Joabes para depurado esradual e avisou-o de que mandaria chama10 para uma conversa mais longa. Assim que 0 prefeiro se rerirou, Gurira, que provavelmente ouvira (ou adivinhara) 0 contelido da conversa ao observa-los de longe, aproximou-se de Marinho, dizendo que hi pouco rempo rivera uma reuniao com Jabes e Adriana, os quais, apos elogia-Io muiro, reriam afirmado que, assim que 0 Memorial come~asse a funcionar, ele certamenre viria a ser nomeado adminisrrador da insritui~ao. Disfar~ando 0 orgulho, Marinho respondeu que esperava pot essa indica~ao ha dois anos, que continuava morando onde sempre morara e que seguia aguardando 0 convire. Tres meses apos sua conversa com Marinho, no dia 12 de julho, Jabes Ribeiro enviou 0 carro oficial da Prefeirura de Ilheus ao bairro da Conquisra

1

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r

A


I

a fim de transportar Marinho para uma reuniao em seu gabinere. Desta, parricipou, aMm do prefeito e do lider negro, apenas um dos secretarios municipais, que e, ao mesmo tempo, 0 principal articulador politico de Jabes praticamente desde que este ingressou na vida politica. 0 prefeito iniciou 0 encontro convidando diretamente Marinho a participar da campanha de Joabes como um de seus coordenadores. Marinho respondeu que aceitava 0 convite em fi.m~ao do que Jabes sempre fizera, e continuava a fazer, pelo movimento afro-cultural de Ilheus, pois, como 0 prefeito provavelmente sabia, 0 nome de seu irmao nao possuia grande penetra~ao, ou aceita~ao, nao apenas junto ao movimento negro, como tambem nas camadas mais pobres da popula~ao, que tendiam a considera-Io uma pessoa muito pouco simpatica. Jabes respondeu que sabia disso e que era essa exatamente a razao que 0 fazia desejar que Joabes se sentasse com representantes do movimento negro a fim de discutir projetos e propostas, ja que, desse modo, uma vez eleito, teria um compromisso com esse movimento e teria que representa-Io em Salvador. Nesse momento, e antes de qualquer resposta, 0 prefeito acrescenrou que poderia ter convidado Jacks Rodrigues (presidente do CEACI) para aquela reuniao, mas que preferira convidar Marinho porque ele, sem duvida, era a maior lideran~a do movimento afro-cultural de Ilheus, uniea pessoa capaz de reunir 0 movimenro em torno da candidatura Joabes e de efetuar a liga~ao entre sua campanha e os militantes - coisa de que, acreditava ele, Jacks nao seria capaz. Marinho agradeceu, acrescenrando que de fato havia a questao do CEACI, uma vez que, para realizar 0 que 0 prefeito pedia, ele necessitaria do apoio de todas as enridades. Jabes concordou, lembrou suas rela~6es hist6ricas com 0 movimenro negro (0 resgate do Carnaval Cultural, a ajuda para recuperar 0 CEAC em 1997,0 Memorial etc.) e concluiu que, mesmo nao sendo ACM, gostaria de desenvolver com os grupos negros de Ilheus a meslOa politica implementada em Salvador. Essa era a razao, arrematou, de ter levado Antonio Carlos Magalhaes, Paulo Souto, Cesar Borges e Otto Alencar areinaugura~ao do Memorial: compromete-Ios, tambem, com 0 apoio acultura negra de Ilheus." Marinho argumenrou acreditar que 0 movimento afro-cultural de Ilheus havia adquirido uma consciencia politica muito superior a que possuia no passado, sabendo, portamo, da necessidade de apoiar candidatos comprometidos com a cultura negra, 0 que envolveria, inclusive, 0 possivellan~amento de uma candidatura pr6pria a Camara dos Vereadores nas elei~6es municipais de 2004. Jabes 0 interrompeu imediatamente: "esse candidato a vereador, Marinho, tem que ser voce! Porque voce reune todas as qualidades e voce

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agrega os grupos!" 0 secredrio municipal presente it reuniao lembrou que ji dissera a mesma coisa em publico, e que a fizera na presen<;a do proprio Gurita, que, desde as elei~6es de 1996, lembremos, vinha tentando apresentar-se, sem sucesso, como representante dos grupos afro. Jabes acrescentou que ele tambern ji estava pensando nas elei~6es de 2004; Marinho perguntou quando as obras da 19 de Mar~o seriam retomadas e, finalmente, concluidas; a secredrio respondeu que isso estava prestes a ocorrer, e Marinho aproveitou para introduzir a questao do nome do administrador do Memorial, dizendo que ouvira dizer que seria Luis Carita. 0 prefeito admitiu que, de fato, Adriana, sua esposa, apresentara Carita e urn born projeto de utitiza~ao do espa~o, mas que, apesar disso, ele ainda nao tomara qualquer decisao sabre a assunto e que gostaria, inclusive, de aproveitar a ocasiao para saber a opiniao de Marinho a respeito. A resposta foi cautelosa: elogios a Carita e lembran~a de que se tratava de urn dos fundadores do movimento afro-cultural de Ilheus, que ensinara muito ao proprio Marinho; ao mesmo tempo, enfase no fato de que Carilo estava afastado hi muito tempo e de que nao possuia mais liga~6es com nenhum grupo da cidade, a que poderia provocar alguma insatisfa~ao par parte das entidades que se vinham articulando em tomo do projeto do Memorial, a que indicava a necessidade de haver ao menos urn nome do proprio movimenta trabalhando com ele. Confirmando que Marinho "nao tinha nada contra a nome de Carita", Jabes sugeriu que a solu~ao poderia mesmo ser a indica~ao de duas pessoas, Carita e alguem escolhido pelo CEACI; de seu ponto de vista, prosseguiu, a ultimo nome deveria certamente ser a do proprio Marinho, e concluiu que, apesar dessa certeza, as conflitos no interior do Conselho estavam dificultando sua decisao. Marinho prometeu que esses conflitos seriam logo resolvidos, e ouviu que a ideal seria a CEACI indicar, alem do administrador - au co-administrador, nao se sabia mais -, outros dais names que, ao lado de duas indica~6es efetuadas pela Prefeitura, comporiam a Conselho Executivo do Memorial da Cultura Negra de Ilheus. Marinho providenciou, rapidamente, uma reuniao do CEACI e, no dia 13 de julho, foi direto ao ponto: sugeriu a indica~ao, par unanimidade, do seu proprio nome para a cargo de administrador do Memorial e dos names de Cesar, do Rastafiry, e de Jacks para 0 Conselho Executivo. Esse ultimo deveria, assim, afastar-se par tres meses da presidencia do CEACI para que fossem aputadas as denuncias de irregularidades e a lim de que, em outubro, o vice-presidente conduzisse novas elei~6es para a diretoria do Conselho. Jacks

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aeeitou; ou simulou aeeitar, uma vez que, poueo tempo ap6s a reunHio, anun-

ciou que mudara de ideia e que nao se afasraria em hip6rese alguma. Mais do que isso, auxiliado por Gurira, deu aparenremenre inicio a uma serie de manobras visando aindica~o do nome de Carilo para a administra~o do Memorial. Nesse contexto, seu nome e 0 de Cesar foram substiruidos pelos de Ney e de urn represenranre do Miny Kongo para serem membros do Conselho Consultivo do Memorial- Marinho Rodrigues permanecendo como 0 indicado para 0 cargo de administrador. Finalmenre, 0 prefeito convocou uma reuniao com 0 CEACI e demais grupos negros, reuniao da qual participaram tambem Adriana e Gurita. Lembrando a importancia do Memorial, Jabes pergunrou se os nomes dos represenranres do Conselho ja haviam sido escolhidos. Nomes confirmados,Jacks indagou do prefeito se havia algo de concreto a respeito de Luis Carilo; a resposta foi dubia: Carilo estaria sendo conrratado pela Funda~ao Cultural de Ilheus (comandada, na pta.tica, pela esposa do prefeito) a fim de trabalhar junto ao administrador do Memorial, que seria nomeado pela Prefeirura de acordo com a indica~ao do CEACI. Mas Jabes afirmou igualmenre que, ao lado de Gurita, Carilo seria JIm dos membros do Conselho Executivo indicado pela Prefeitura e que, alem disso, aAssocia~ao 19 de Mar~o deveria tambem indicar urn nome. Ney aproveitou 0 momenro para perguntar se haveria alguma possibilidade de remunera~ao para os membros do Conselho Executivo, hip6tese que 0 prefeito descartou total e definitivamente. Jacks ainda tentou introduzir 0 tema das e1ei~6es, mas Jabes imediatamente 0 interrompeu, lembrando que em hip6tese alguma estava Ia para trocar 0 Memorial por urn possivel apoio acandidatura de seu irmao: agradeceria muito qualquer apoio, mas isso nao poderia ter nenhuma rela~ao com 0 Memorial. Tudo podia parecer enrao completamenre acertado, mas 0 fato e que, ate as e1ei~6es do inicio de outubro, nada de concreto aconteceu no que diz respeito ao Memorial. Marinho ficou sabendo que 0 salario do administrador seria de R$ 1.070,00, deixando claro a todos que isso, sem duvida, aumentava ainda mais seu inreresse pelo cargo. Desempregado ha anos, dependendo em grande parte do emprego da esposa (que, mesmo possuindo 0 ensino medio completo, ganhava pouco mais de urn salario minimo para trabalhar no refeit6rio de uma distribuidora de bebidas) para sustentar a casa e a filha, via tambern no cargo a chance de obter certa tranqtiilidade para prosseguir fazendo aquilo de que realmente gostava: a organiza~o do movimento afro-cultural de I1heus em geral e a de seu bloco, 0 Dilazenze, em particular.

i, ..

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Por outro lado, 0 valor do salario fazia com que duvidasse da nomea~ao, pois parecia alto demais rendo em visra os "preconceiros" contra os dirigentes negros. AMm disso, essa nomea~ao dependia da cria~ao formal do cargo, a qual, ao lado da cria~ao do cargo de adminisrrador do Centro Cultural de Oliven~a (estancia hidtomineral situada a cerca de 20 km da sede do municipio), deveria ser aptovada pela Camara dos Vereadores - na qual, alem de os "preconceitos" poderem ser ainda mais fortes, havia os poHticos da oposi~ao, que prerendiam, como sempre, atrapalhar os pianos do governo. Aliados as manobras que Marinho acreditava estarem sendo postas em andamento par Jacks e Gurita, esses faro res contribuiam para as duvidas acerca de sua propria nomea~ao. Outto fatar que agravava 0 quadro era 0 faro de Marinho ter decidido se afastar da campanha de Joabes por nao concordar com a condu~ao do modo de participa~ao dos grupos negros no processo. Mais do que isso, organizara urn abaixo-assinado, encaminhando a Prefeitura urn projeto de reforma do Memorial, documento que deveria ser entregue ao proprio prefeiro por ocasiao de urn comicio eleiroral de Joabes realizado na Pra~a Santa Rita, na Conquista, no dia 7 de setembro. Com quase duzentas assinaturas, 0 abaixo-assinado foi efetivamente entregue a Jabes, que, imediatamente, disse a Marinho que ele deveria ter se dirigido direramente a ele; ao mesmo tempo, convidou-o a subir no palanque a fim de falar no comicio de Joabes em nome do movimento negro de Ilheus: "voce e meu convidado!" 0 discurso de quase 20 minutos, feito de improviso, reafirmava 0 apoio do movimento negro a Joabes em fun~ao da "parceria" com 0 prefeiro, e, aparentemente, agradou em cheio aos politicos presentes. Muiros cumprimentavam Marinho, dizendo: "voce tern que sair candidaro a vereador". Urn dos unicos que nao 0 cumprimentaram foi justamente Gurita, que parecia algo surpreso com 0 convite do prefeito para que Marinho discursasse em urn comicio realizado exatamente em seu principal reduro eleiroral. 18 Os membros dos grupos negros e os moradores da Conquisra em geral tambem cumprimentaram Marinho efusivamente quando ele desceu do palanque. Muiros diziam que sua candidatura a vereador em 2004 tinha mesmo que ser lan~ada e que, nessa posi~ao, poderia ajudar a resolver 0 problema do desemprego, pelo menos 0 dos milirantes negros. Os empregos a que aludiam eram explicitamente aqueles que poderiam ser pagos com as verbas de assessoria dos vereadores e os que poderiam ser obtidos mediante acordos com secretarias e funda~6es municipais. 19 Esrimando que pelo menos dez

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pessoas poderiam vir a ser empregadas dessa forma, Marinho argumentava que, "se voce da emprego para os componenres, para os militantes, para as lideran~as do movimento negro, vOCe esrabiliza a vida dessas pessoas, que adquirem mais respeito, uma condi~ao de vida melhor para poderem atuar bern no movimento afro-cultural" .20 Sua performance no comfcio da Conquista parece, de fato, rer sido tao boa que, pouco depois, Marinho foi convidado pelo principal coordenador da campanha de Joabes (seu irmao, John Ribeiro) para novamente subir no palanque do candidato no comicio que deveria ocorrer alguns dias mais rarde em urn bairro proximo a Conquista. Impedido de comparecer ao comfcio, Marinho esteve na caminhada que 0 antecedeu, sendo muito cumprimenrado, por urn lado, e, por outro, tomando-se alvo da observa~o de Gurira, Jacks e Carilo, que, juntos 0 rempo todo, pareciam nao 0 perder de visra. Isso s6 fez refor~ar suas suspeitas de que os tres tramavam contra sua nomea~ao para a adminisrra~ao do Memorial. Ao mesmo tempo, as informa~6es sobre a cria~ao dos dois cargos de adminisrrador (0 do Memorial e 0 do Centro Cultural de Oliven~a) eram muito contradit6rias. Alguns diziam que ja haviam sido criados, outros diziam que nao, e que isso poderia demorar bastante. Marinho parecia acreditar mais na segunda hip6tese, ja que imaginava que 0 prefeito esperaria 0 final das elei~6es para efetivar as nomea~6es, evitando, desse modo, que os interessados prereridos ficassem insatisfeitos, e mantendo a todos como cabos eleirorais enquanto 0 processo nao se definisse. Em fun~ao desse diagnostico, Marinho decidira que, caso nao Fosse ele 0 indicado para administrador do Memorial, nao aceitaria trabalhar como subordinado de Carilo em hip6rese nenhuma. Cogitava mesmo afastar seu bloco, 0 Dilazenze, de todas as arividades relacionadas ao Memorial: "E urn emprego que todo mundo esta querendo, todo mundo es," lutando por de, mas eu jamais me prestaria ao papd de subordinado de Carilo. Nao equestao

do emprego, do salaria. Quer dizer, isso eimportante, mas acima de rudo tern a questao da postura. cia lideran<;a, de nao pacier abaixar a cabe<;a e aceirar esse tipo de coisa".

Nas elei~6es de 6 de outubro de 2002, foram eleitos quase todos os candidatos apoiados por Jabes Ribeiro. Paulo Souto, do PFL, obteve 2.871.025 votos (53,69% dos votos validos) e tomou-se govemador do Estado da Bahia (em Ilheus, Souto obteve 36.427 votos, ou seja, 51,6% dos votos vali-

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dos). Antonio Carlos Magalhaes, tambem do PFL, volrou ao Senado Federal com 2.995.559 voros (30,59% dos voros validos; em Ilheus, 31,6%, relativos a 40.623 voros). Cesar Borges foi 0 outro senador eleiro, com 2.731.596 voros (27,9% dos voros validos; em Ilheus, 28,1% ou 36.103 voros). Fabio Souro foi 0 rerceiro deputado federal mais vorado na Bahia, com 236.067 voros (3,96% do roral), sendo que em Ilheus chegou a obter 15,5% dos voros validos (ou 11.740 voros). As exce<;:6es foram 0 candidaro it Presidencia, Ciro Gomes, e, curiosamente, 0 irmao do prefeito, Joabes Ribeiro, que concorrera pelo PPB e obtivera 13.503 voros em Ilheus (ou 18% do rotal de voros validos), nao passando, conrudo, no estado, dos 29.654 voros (apenas 0,5% do roral), quantidade insuficiente para elege-lo depurado esradual. Apesar disso, Jabes ainda tinha urn morivo para comemorar. Ap6s dois mandaros consecutivos na Camara dos Deputados (estando sempre entre os candidaros mais bern votados do estado), seu arquiinimigo polirico Roland Lavigne (de quem falarei mais tarde) nao conseguiu reeleger-se. Para seu fracasso, comenrava-se aberramente em Ilheus, teria contribufdo a impressionante vora<;:ao de urn candidaro chamado Pipa, que, concorrendo pelo PSB, obtivera 17,5% dos voros em Ilheus (13.212 voros), ou seja, quase a mesma quantidade que a obrida por Lavigne (13.467 voros ou 17,8% do roral). Mesmo rendo obtido apenas cerca de 900 voros fora de Ilheus, acredirava-se que, na cidade, Pipa havia rerirado de Lavigne urn numero suficiente de voros para impedir sua reelei<;:ao. Finalmente, e preciso acrescentar que, na reta final da campanha, Marinho Rodrigues, sua familia e seu bloco, 0 Dilazenze, decidiram que nao votariam no candidaro a deputado federal apoiado pelo prefeito, Fabio Souto. E ainda que isso nao renha significado urn deslocamento em bloco dos voros do grupo (ja que aparentemente esres se dividiram entre varios candidaros), convem observar que "oficialmente" se decidiu votar em Luiz Alberro, candidaro do PT ligado ao Movimento Negro Unificado. LuizAiberro reelegeuse deputado federal com 62.322 voros (1,05% do total), ainda que em Ilheus renha obtido apenas 784 voros (ou 1% do rotal). Alem disso, parre da familia acabou trabalhando nas campanhas de dois candidaros apoiados por uma tia que, como cabo eleiroral, conseguiu alguns recursos para pagar esse rrabalho. E, ainda que essas mudan<;:as de ultima hora nao pare<;:am rer afetado as rela<;:6es do grupo com a Prefeitura (ja que, como gostavam de reperir, 0 apoio ao irmao do prefeiro foi mantido), a verdade e que se especulava, por vezes, se nao haveria algum tipo de retalia<;:ao. 21

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,

Todo a cenario exposto acima explica a dima de rensao e inseguransoa vivido, nao apenas par Marinho como par sua familia e pelos componenres do Dilazenze em geral, no dia da nomeasoao do adminisrrador do Memorial. A Prefeirura ainda conrribulra para a agravamenro do quadro, uma vez que ninguem confirmava oficialmenre qual seria a nome a ser indicado. Urn funcionario relefonara para Marinho na rarde do dia 6 de dezembro a fim de obrer dados como nome completo, numeros de documenros ere. Mas, logo depais, ele viria a saber que Carilo rambern recebera urn telefonema com a mesrna objetivo. Alem disso, tendo passado todo a dia no Memorial, Marinho observara a movimenrasoao em torno de Carilo, que, coincidenremenre, mora defronre do predio da 19 de Marsoo. Observara, assim, que ele conversara muito com Gurita e com Jacks e que, par diversas vezes ao longo do dia, salra e voltara para casa. Compreende-se, portanro, a alegria e a allvio generalizados no momento em que a prefeito anunciou que estava nomeando "nosso companheiro Gilmario Rodrigues Sanros, conhecido como Marinho" para "administrador do Memorial da Cultura Negra". Se lembrarmos, ainda, que a anuncio so foi eferuado apos a assinatura do protocolo de inrenso6es enrre a Prefeirura e a CEACI, podemos avaliar melhor as palavras de Marinho ao resumir a evenro: "0 prefeito fez todD urn discurso para criar ainda mais expectativa. Primeiro fez a assinatura do protocolo de inteos:oes e deixou por ultimo a nomeas:ao,

fazendo todo urn suspense. Ai as pessoas se manifestaram. Olhei para Carilo e de praticamente desabou; Gurita abaixou a cabes:a: Adriana deu uma risadinha disfars:ada. Ourras pessoas ficaram animadas, principalmenre a pessoal do Dilazenze, todo mundo batendo palmas. No final da cerim6nia, todos me patabenizaram e s6 al e que percebi que Catilo - que me abras:ou dizendo que a parceria ia dar cerro, que ia me ajudar etc. - naG rinha sido nomeado para

absolutamenre nada". Apos assumir sua nova funs:ao, Marinho descobriu que, ao criar as cargos de administrador do Memorial e do Cenrro Culrural de Olivensoa, a Camara dos Vereadores modificara a valor dos salarios, reduzindo-os a metade. au, mais precisamente, aprovara apenas a criaSOao de urn dos cargos propostos pela Prefeirura, dividindo-o em dais, e nao aprovando a criasoao do outro. Essa esrranha manabra fez com que, ao receber seu primeiro pagamenro formal em muitos anos, Marinho descobrisse, ja no final de janeiro de 2003, que, em lugar dos R$ 1.070,00 que esperava, receberia apenas R$ 535,00,

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quantia que certamente ainda considerava urn salario muito born para os padroes de Ilheus, mas que, e claro, fkava bern abaixo do que imaginara.

NOTAS 1 Em Ilheus, esse movimento e composto por peIo menos dois subconjuntos. De urn lado, alguns grupos definidos por seu cadter mais "politico", induindo urn nucleo do Movimento Negro Unificado (MNU), grupo criado em Sao Paulo, em 1978, a fim de servir de polo unificadof dos vacios grupos negros existentes no Brasil- 0 que. como se sabe, jamais veio a ocorrer. Em Ilheus, as tenrativas de estabe1ecimento desse nucleo remontam ao final cia de~ cada de 1980. mas nunca chegaram a sec bem-sucedidas. De autro lado, existe, na cidade, urn conjumo de grupos autodesignados "movimento afro-cultural", composto por afoXt~s, grupos de capoeira. mas principalmente por blocos afro. Neste liveo. respeitando 0 uso nativo, as terrnos "movimento negro" - que, ocasionalmente, servira como referencia a todos os grupos, no sentido de Valente (1986: 22), "movimento afro", "movimento afro-cultural", "blocos afro", "grupos negros", "entidades negras" e, eventualmente, outros, serao utilizados quase como sinonimos (a nio serquando 0 contrario for explicitado), enquanto 0 movimen~ to negro "politico" recebera sempre uma especificarrao.

, Ver Apendice VIII. 3 Em 1995 e 1996,0 carnaval de Ilheus foi "antecipado", realizado algumas semanas antes da data oficial, visando, diziam as organizadores, evitar a concorrencia de cenrros mais podero~ sos como Salvador ou Pono Seguro na contratarrao de grandes atrarr6es musicais. Entre 1997 e 1999, houve dois carnavais: 0 "antecipado", ou Ilheus Folia, voltado para visitantes de fora, com a presens:a de trios eletricos e sem a participarrio dos grupos negros; e a "cultural", rea~ lizado na data normal, com a participarrio desses grupos e fundamenralmente volrado para denrro da propria cidade (ver Menezes 1998: 77-92). Enrre 2000 e 2003, foi realizado apenas urn carnaval, na data normal; em 2004, 0 carnaval unico voltou a ser antecipado em 15 dias. 4 Donde a dificuldade em compreender a estranha enfuse com que Miguel Vale de Almeida fala em "emergencia" do movimenro afro-cultural de Ilheus em 1997 e 1998 (Almeida 2000: 27, passim).

5 No terceira mandato de Jabes Ribeiro (a partir de 2001), a Divisao de Espones [oi absorvida por uma nova secretaria municipal denominada Secreraria de Esporres e Cidadania, mas Gurita conrinuou afrente da Divisao. 6

a

For,a Negra, fundado em 1988.

7 Observe-se que, entre 1996 e 1998, quando 0 Partido dos Trabalhadores fez parte do go~ verno municipal de Ilheus, Moacir Pinho, milirante negro do MNU e membro do Pl~ nao s6 ocupou urn cargo na Fundarrio Cultural de Ilheus como foi, ao lado de Gurira, 0 principal interlocutor negro do governo. Alem de uma historia pessoal de milirancia politica, Moacir era aluno do curso de Filosofia na Universidade Esradual de Santa Cruz,localizada entre Ilheus e Itabuna.

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Na verdade, de acordo com 0 estatuto de 1997, a diretoriado CEAC deveriaser estruturada em "coordenas:6es"; na pdtica, 0 coordenador executivo sempre foi chamado de "presidente"; 0 coordenador de organizas:ao. de "vice-presidente"; 0 coordenador de finans:as, de "tesoureiro"; e assim par diante (cf. Silva 1998: 102-103). 8

j

1,

9 Silvia Nogueira (2004) apresentou e analisou esse epis6dio do ponto de vista da relas:ao entre os grupos negros e a midia. Vert tambem, Nogueira (2005). 10 Como revelou Graham (1997) em outro contexte hist6rico, politicos locais devem constantemente apresentar sua fors:a para os politicos estaduais e nacionais, exibindo a estes suas bases ou clientelas, assim como revelar seu prestigio a seus eIeitores. exibindo a eIes politicos importantes que seriam seus correligionarios.

11 As revoltas de escravos ocorridas no engenho de as:ucar Santana, em 1789 e 1821, sao celebradas peIo movimento negro local como marcos da resistenda negra aescravidao. Por outro lado, muitos politicos, evocando 0 fato de que a rebeIiao se teria encerrado com urn tratado, gostam de evod-la como exemplo da possibilidade de negocias:ao e convivencia. Aparentemente, 0 que de fato ocorreu e que. ap6s aceitar 0 acordo, os donos do engenho e as autoridades reprimiram violentamente os escravos (ver Mahony 2001a: 128-134; Mards 2000; Reis 1979; Reis e Silva 1989: 19-21; Schwartz 1988). 12 Borges (2004: 138-139) tambem observou, na periferia de Brasilia. esse caniter infinito das inauguras:6es, e sugeriu que se trata de uma forma de prolongar indefinidamente a relar;:ao entre politicos e eleitores potenciais (voltarei a esse ponto).

13 As "lavagens" sao comuns na Bahia. sendo que a mais famosa, sem duvida, e a que acontece nas escadarias da Igreja de Nosso Senhor do BonEim em Salvador. Tornaram-se, assim, urn dos "simbolos" da tradis:ao afro-baiana em todo 0 estado. Em Ilheus, uma lavagem desse tipo e realizada nas escadas da Catedral no dia 20 de janeiro, dia de Sao Sebastiao, padroeiro dos estivadores. Filhas-de-santo vestidas como "baianas" despejam potes de agua de cheiro sobre as escadas e as esfregam com vassouras - isso ocorre desde que a Igreja Cat6lica proibiu a lavagem do interior da igreja, como se fazia outrara.

Os dirigentes negros dizem, entre si, que a insistencia se deve ao fato de 0 secretario ser amigo de alguns pagodeiras. 0 secretario. alias, orgulhava-se muito de seu conhecimento da cultura negra: "talvez eu conher;:a mais do que voces". disse eIe a Gurita, Moacir e Marinho; "tenho dezenas de discos de samba, de chorinho e de jazz, e ja tentei organizar urn bloco de cordas". 14

Como demonstrou Paul Veyne - e volta rei a esse ponto -, a subjetividade e parte integrante da vida politica, e os human os, ao obedecerem ou ao se recusarem a obedecer, pensam algo de si mesmos, de seus senhores e das relar;:6es entre ambos: 0 "individuo e atingido no corar;:ao peIa potencia publica quando e atingido em sua imagem de si, na relar;:ao que tern consigo mesmo quando obedece ao Estado ou asociedade" (Veyne 1987: 7). Ese existem diferenr;:as de classe nos modos de subjetivar;:ao politica (idem: 10-11), eu arriscaria dizer que, ao menos em Ilheus, 0 desejo de reconhecimemo eparte constitutiva desses processos, que nao sao nem ideologias, nem simples simbolismos, nem mesmo puros principios de legitimar;:ao. constituindo, ao contdrio, urn enjeu particular e uma dimensao de luta especifica, ao lado da economia au do poder (idem: 14-15). IS

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16 Como se pode imaginar, a questao de saber se alguem e branco ou nao em Ilheus pode ser complicada. Apergunta "Carilo e branco au negro?", Ana Claudia Cruz da Silva (que ebranca) respondeu que "ele nao e branco, mas eu nao diria que e negro (nem ele diria isso, creio). E moreno, quer dizer, tern cabelos pretos e enrolados, mas nao crespos, e pele morena clara". A mesma pergunta, Marinho respondeu sem titubear: "Carito e branco!" Mas logo acresccn~ tou: "quer dizer, sempre achei ele branco". 17 Lembremos que a visita de Antonio Carlos Magalhaes se deu no momento em que, apos renunciar a seu mandato em meio a denuncias de irregularidades, tentava sua reeleilfao para o Senado. Para isso, retornara a Bahia e refonrara 0 discurso "regionalista", em oposi<;-ao as criticas de que era alvo por todo 0 pais. Assim, sua presen/fa na reinaugura<;ao do Memorial servia, sem duvida, para reforlfdr a "baianidade"; Jabes Ribeiro, por sua vez, 0 exibia na cidade, e a ele exibia 0 movimento negro de Ilheus a fim de demonstrar sua for/fa para os dois lados; a movimento negro, finalmente, tinha, na ocasiao, uma oportunidade para encenar suas disputas internas. Ve-se muito bern, dessa forma, como a "grande" e a "pequena" polftica estao sempre associadas, e como a local, a regional e 0 nacional estao sempre imbricados. 18 Como demonstraram Palmeira e Heredia (1993: 77; 1995: 35-36), entre outras fun/foes, os comfcios sao urn momenta privilegiado para a ostenta/fao publica dos compromissos e apoios. Alem disso, parecem funcionar como palcos para a objetiva/fao das hierarquias 50eiais eonstitufdas (Palrneira e Heredia 1993: 84; 1995: 35-36, 85, 89, 91 - volrarei a esse ponto), 0 que significa que subir no palanque, discursar e ter muito tempo para falar sao signos de importancia progressiva. Veremos, adiante, que esses mecanismos operam nos processos eleirorais como urn rodo; par ora, basta assinalar que a convite feiro a Marinho pelo prefeito, bern como sua performance orat6ria, foram sentidos tanto por ele quanta por Gurita como urn sintoma do seu prestfgio, a que envaidecia 0 primeiro e, evidentemente, enciumava e irritava 0 segundo.

19 Embora seja muito diffcil obter dados com precisao, comenta-se em Ilheus que, tendo 0 direiro de contratar dois au tres assessores, alguns vereadores preferem elevar esse numero ate dez (au vinte, dizia-se) e dividir entre eles 0 salario, 0 que faz com que a maior parte desses assessores acabe recebendo mais au menos urn salario minima. 20 Exisre sempre uma confusao - au, para ser mais preciso, uma imprecisao consriruriva entre programas au propostas estruturais para a gera/fao de empregos em geral e as promcssas de trabalho para pessoas espedficas. Sobre as diferentes efeitos do desemprego nas e1ei<;6es, ver Garrigou e Lacroix (1987).

Apenas para completar a quadro, 80.720 votos foram apurados em Ilheus nas elei<;-6es de 2002 (em urn roral de 109.397 e1eirores). A raxa de absrenc;iio fieou em 26,2% (28.677 eleitares). Os voros brancos totalizaram 3.467 para depurado esradual, 3.026 para deputado federal, 10.742 para senador, 3.990 para governador e 2.229 para presidente, Os voros nu~ los forarn: 2.281 para deputado estadual, 2.123 para deputado federal, 22.133 para senador, 6.094 para governador e 7.276 para presidente. Luiz Inacio Lula da Silva conseguiu 40,678 dos votos (57,1%) no primeiro turno em Ilheus (contra 15.746, au 22,1%, de Anthony Gatotinho; 8.493, ou 11,9%, de Cito Gomes); e 5.980, ou 8,4%, de Jose Serra. 21

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CAPITULO

1996:

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2

PESQUISA

No dia 19 de setembro de 1996, teenconttei Matinho Rodrigues, ap6s cerca de oiro meses sem ve-Io, embora tivessemos conversado algumas vezes por telefone. Em janeiro do mesmo ano, eu estivera em Ilheus e decidira para Ii deslocar e concentrar minha pesquisa sobre elei~6es e voro - e esse havia sido 0 principal tema das conversas telefonicas. Marinho aparentava estar contente com nosso reencontro, acrescentando que "agora tenho certeza que a pesquisa e pra valer". A frase nao deixou de surpreender-me, ainda que, pouco depois, eu viesse a lembrar que, em nossa ultima conversa a distincia - para combinar a viagem -, ele me contara haver anunciado essa mesma conclusao para Cesar, do bloco afro Rastafiry. o ceticismo, que a simpatia do tom de voz de Marinho mal ocultava, pode talvez ser explicado, em parte, nao apenas pelo faro de que e, sem duvida, estranho admitir ser 'objero de pesquisa' de alguem, como tambem em razao de algumas caractedsticas nao tao usuais dessa pesquisa, cuja existencia Marinho confirmava. Pois ela resulta, de algum modo, do encontro de tres linhas de interesses e de acontecimentos relativamente distintas e independentes. A linha cronologicamente mais pr6xima apontava justamente para 0 inicio de 1996, quando, em viagem de ferias, eu decidira que a pesquisa sobre elei~6es que desenvolvia desde 1994 deveria ter seu foco empirico em Ilheus. Nessa viagem, reencontrei, depois de muiros anos sem ve-Io, urn antigo colega de universidade, que havia abandonado a vida academica para ingressar no culto do Santo Daime, tendo vivido na sede do grupo na Amazonia durante cerca de dez anos. Depois de se casar com uma mo~a da regiao, Paulo Rodrigues (que nao tern qualquer parentesco com a familia de Marinho, nem com Jacks Rodrigues) decidiu viver em Ilheus, cidade onde nascera, mas que havia deixado muiro novo para morar no Rio de Janeiro. No come~o de 1995, Paulo e a esposa estabeleceram-se em Ilheus e ele, com 0 auxilio da parte de sua familia que ainda morava na cidade, conseguiu urn emprego na biblioteca e no centro de documenta~6es do Instituro Nossa Senhora da Piedade. A Piedade, como e conhecida, e uma tradicionalfssima institui~ao de ensino

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ilheense, fundada em 1916 por freiras ursulinas, que, na epoca do apogeu do cacau, abrigava quase que exclusivamente as filhas dos grandes proprierarios e comercianres locais. Mesmo depois de passar a aceirar esrudantes do sexo masculino, na decada de 1970, e apos 0 agravamento da crise do cacau na decada de 1980,0 colegio nao deixou de ser urn reduta da elite ilheense. o emprego de Paulo, nao obstanre, oferecia a ele uma remunera~aobastanre modesta, quase insuficienre para seu sustenro. 0 convite para que e!e passasse a ser meu auxiliar de pesquisas na investiga~ao sobre elei~iies em Ilheus foi, certamenre, .conseqiiencia da minha decisao de para la deslocar 0 rrabaIho, mas a possibilidade de conrar com ele foi, tambem, urn dos fatores que me levaram a tamar essa decisao. Afinal de conras, eu poderia conrar com a ajuda de alguem treinado nas melhores universidades do Rio de Janeiro e isso me pareceu crucial naque!e momenro. Paulo aceitau imediatamenre 0 convite, pensando certamenre nao apenas na bolsa que passaria a receber, mas tambern no fata de que esse trabalho significava seu retarno a uma atividade academica depois de quase quinze anos de afastamenro. De toda forma, se a primeira linha que conduziu apesquisa de cuja existencia Marinho chegara a duvidar passa por dois aconrecimenros conringenres (viagem de ferias e reenconrro com urn anrigo colega), e!a so pode desempenhar esse pape! porque cruzava com uma segunda linha, marcada pelo fata de que, naque!e momenta, eu ja desenvolvia, ha quase dois anos, uma investiga~ao anrropologica sobre votas e elei~iies no Brasil. Meu trabalho inicial como anrropologo, realizado enrre 1978 e 1984, concenrrou-se nos chamados cultos afro-brasileiros; parte da pesquisa de campo para minha disserta~ao de Mesrrado sobre a possessao no candomble (Goldman 1984 1) foi eferuada no Ewa Tombency Neta, 0 terreiro de candomble em que Dona Ilza e a mae-de-sanro e ao qual 0 Dilazenze esta ligado. Enrre 1986 e 1991, dediquei-me a urn rrabalho sobre a historia do pensamenro anrropologico, mais especificamenre sobre a obra de Lucien LevyBruhl (Goldman 19942 ). Esse rrabalho se enconrrava em pleno andamenro quando a vitoria de Fernando Collor de Mello nas e!ei~iies presidenciais brasileiras de 1989 me fez pensar que, se a anrropologia nao Fosse capaz de dizer algo importanre e inreressanre sobre aconrecimenros dessa natureza, deveria definitivamenre abrir mao de qualquer tenrativa de investigar nossa propria sociedade. Enrretanta, foi apenas em 1994, no decorrer de novas elei~iies presidenciais, que a inrui~ao de 1989 pode come~ar a tamar a forma de urn projeto, inicialmenre posto em andamenta como uma investiga~ao'transver-

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sal' das representa~6es construidas sobre 0 processo eleitoral por diferentes camadas sociais em varios contextos. 3 Entre 1996 e 1997, esse projeto passou a fazer parte de um programa interinstitucional mais amplo, denominado Uma Antropologia da Politica, reunindo uma serie de pesquisadores que trabalhayam sobre temas tidos usualmente como pertencentes aordem poHtica, procurando, sobretudo, enfod-Ios, como vimos, 'do ponto de vista nativo'. Nesse sentido, em 1996, minha investiga¢io deslocou-se e concentrou-se em llheus.' o retorno a essa linda cidade do litoral sui da Bahia esta ligado, por sua vez, a uma terceira linha, mais antiga, que remonta ao ano de 1981, quando eu procurava um local para a realiza~ao de uma pesquisa de campo sobre a possessao no candomble, tema, como vimos, da minha disserta~ao de Mestrado. Eu trabalhara durante toda a gradua~ao como auxiliar de pesquisa de Wagner Neves Rocha em um terreiro, tambem da na~ao angola, situado na periferia de Niteroi, no Grande Rio, mas eu desejava meu proprio campo. 5 Rela~6es de familia faziam com que a cidade de Ilheus parecesse uma possibilidade natural para esse campo. Em 1981 e 1982, realizei duas dpidas viagens a regiao, mas foi apenas na terceira, ja no final de 1982, que um desses golpes de sorte capazes de transformar a vida de alguem aconteceu comigo, conduzindo-me ao Tombeney, afamilia Rodrigues e, mais tarde, ao Dilazenze. Uma conhecida, sabendo do meu interesse pelo candomble, apresentou-me ao grande ator negro, bailarino e animador cultural Mario Gusmao, 6 que, nessa epoca, vivia em Ilheus, desenvolvendo alguns trabalhos na cidade e em Itabuna, cidade localizada a cerca de 30 km de disd.ncia. Em uma tarde de sabado ou domingo, Mario levou-me, pela primeira vez, ao encontro de Dona Ilza Rodrigues, a mae-de-santo do Tombency. E, ainda que eu nao tenha certeza se as memorias que guardo desse encontro correspondem realmente ao que ocorreu, ou se estao misturadas com inumeros encontros dos membros do Tombency com outras pessoas que testemunhei ao longo do tempo, 0 fato e que minhas lembran~as ainda parecem estranha e suficientemente nitidas para que sejam evocadas, ja que esse encontro tem sua importancia para a narrativa aqui elaborada. As apresenta~6es iniciais deram-se em um clima que lembro ter confundido com cerra distancia e frieza. Mais tarde, eu aprenderia que a familia Rodrigues exibe, em um grau apenas um pouco mais elevado que seus vizinhos, aquilo que Paul Veyne (1987: 9) denomina, de forma tao bela, "elegancia popular", adotando um etos de discri~ao e sobriedade que muitas vezes dificulta a percep~ao de seu real estado afetivo. A verdade e que, logo de

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saida, Dona Ilza observou que pessoas apresentadas par Mario Gusmao ja podiam considerar-se amigas da casa. Sentamos, entao, no pario localizado a frenre da casa dos Rodrigues, que fica contigua ao barraca07 do Tombency; constru~6es situadas na Avenida Brasil, no trecho do bairra da Conquista conhecido como Carilos (antigo nome da rua e da familia que era praprietiria da regiao).' Nessa epoca, a rua ainda nao havia sido asfaltada e era ocupada par poucas casas, muitos terrenos, arvores, plantas e ervas, lugares e coisas amplamente utilizados, de diferentes maneiras, nos rituais e festas de candomble. Aparentando muito menos que as quase 50 anos que entao possuia, Dona Ilza - acompanhada de seu pai e principal oga do terreiro, Valentim Manso Pereira - rapidamente passou a nos contar a historia de seu terreira, a qual, em boa parte, e a historia de sua familia e confunde-se com sua propria historia de vida. o Terreira Ewa Tombency Neto, ela nos disse, e originario do terreira angola mais antigo da Bahia, a de MariaJenoveva do Bonfim (conhecida como Maria Nenem), filha-de-santo de Roberto Barros Reis, africano que teria recebido esse sobrenome par ter sido escravo de certo Barros Reis. Nascida em 1865 e falecida em 1945, Maria Jenoveva do Bonfim, em data desconhecida, abriu, em Salvador, a terreiro Tombency.9 Paralelamente, em 1885, Tiodolina Felix Rodrigues abria, em Ilheus, a terreiro Aldeia de Angora, permanecendo ate sua marte, em 1914, em seu comando. Mais au menos nessa epoca, Euzebio Felix Rodrigues, filho carnal de Tiodolina, conheceu, em Salvador, urn africano chamado Hipolito Reis, que viria a tornar-se seu pai-de-santo. Ambos visitavam Ilheus com freqUencia e, em 1915, Euzebio assumiu a terreiro da mae, que passou a se chamar Terreiro de Roxo Mucumbo, ja que este (0 equivalente angola do Ogum ketu) era seu orixa - assim como Angora (Oxumare) era a de Tiodolina. Euzebio permaneceu a frente do terreiro ate sua marte, em 1941, quando sua irma, Izabel Rodrigues Pereira, assumiria a dire~ao. !zabel, ao lado de suas filhas Ilza e Irani, ambas em torno dos 6 au 7 anos de idade, tambern passara pelos rituais de inicia~ao preliminares com Hipolito Reis, que, depois disso, voltou para a Africa, nao podendo, portanto, conduir suas inicia~6es - a que teria levado Izabel a decidir que, antes de assumir definitivamente a terreiro, deveria faze-Io. Para isso, chamou Marcelina Placida, conhecida como Dona Ma~u, filha-de-santo da fundadora do Tombency em Salvador, a famosa Maria Nenem. Realizadas todas as obriga~6es, a terreiro retomou suas atividades em 1946, ja na Conquista, com a nome de terreiro Senhora Sant'Ana Tombency Neto: "Tombeney Neto" , na

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medida em que Faria parte da "terceira gera~ao" do Tombency (Maria Nenem - Dona Ma~u - !zabel Rodrigues); "Senhora Sant'Ana", porque 0 orixa sincretizado com Nossa Senhora de Sant'Ana, Nana, era justamente 0 dono da cabe~a de !zabel, que ficou conhecida como Dona Roxa, muito provavelmente em fun~ao do faro de ser filha de Nana e do roxo ser a cor desse orixa. Dona Roxa faleceu em 25 de outubro de 1973 e foi sucedida por Ilza Rodrigues, uma de suas quatro filhas carnais (ela teve tambem tres filhos homens), alem de ser sua irma-de-santo, uma vez que ambas foram iniciadas por Dona Ma~u.lO

Como costuma ocorrer no candomble, a sucessao de Dona Roxa, em 1973, foi algo traumatica. Quase rodos esperavam que a sucessora Fosse uma das irmas de Dona Ilza, mas, ap6s 0 enterro e os riros funerarios, Dona Ma~u revelou que Dona Roxa deixara explfciro que a sucessora deveria ser a pr6pria Ilza, indica~ao que, como e estritamente necessario, foi confirmada pelo jogo de buzios. 11 A sucessora, no entanto, hesitava, incerta, como disse, de sua capacidade para suceder a grande mae-de-santo, que recebia uma quantidade enorme de pessoas para suas festas religiosas, alem de inumeros consulentes, incluindo politicos e membros da elite de Ilheus. Seu enterro, conta-se, foi acompanhado por uma enorme procissao de autom6veis que paralisou rotalmente 0 transiro no bairro da Conquista. AMm disso, a irma preterida nao ficara nada contente com a decisao da mae e com 0 resulrado dos buzios. Finalmente, 0 marido de Dona Ilza, mesmo sendo oga confirmado do terreiro, nao aceitava, em hip6tese alguma, que a esposa assumisse a dire~o da casa. Com quatorze filhos para criar, ele sustentava que ela nao teria nenhum tempo para ele e amea~ava abandona-la, caso aceitasse 0 cargo. Esse argumento, prosseguiu Dona Ilza, foi decisivo para que ela recusasse assumir 0 terreiro. Dona Ma~u, bern como outras pessoas mais velhas da casa, adverriram-na de que essa nao era uma decisao que ela pudesse tomar. Tudo ja estava decidido e, caso recusasse seu destino, tragedias abater-se-iam sobre rodo 0 terreiro e seus fieis: os mais velhos come~ariam a morrer, ourros ficariam gravemente enfermos e, finalmente, 0 pr6prio teto do barracao desabaria, dando fim a algo que come~ara quase cem anos antes. 12 Dona Ilza aceitou 0 cargo, seu marido a abandonou e, quando a conheci, era a mae-de-santo do Ewa Tombency Nero (sendo ela filha do orixa Ewa, o nome do terreiro foi mais uma vez ligeiramente modificado) ha quase dez anos. 0 terreiro deu origem a mais de cinqiienta casas (os "Tombency Bisneros"), espalhadas nao apenas pela Bahia, mas tambem em Sao Paulo e no Rio

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de Janeiro. Organizado sobre uma base familiar, composra pe1a mae-de-sanro, seus quarorze filhos carnais (rodos iniciados em diferentes graus) e suas respecrivas familias, 0 Tombency caracreriza-se rambem por possuir uma inrensa vida comuniraria, com liga~6es privilegiadas com a area dos Carilos e com 0 bairro da Conquisra em geral. Em 1986, alguns jovens da familia e do rerreiro (rendo no comando Vane e Marinho Rodrigues, ambos entao na faixa dos 20 anos de idade) fundaram 0 Grupo de Preserva~ao cia Culrura Negra Dilazenze, bloco afro cujo objetivo principal, segundo seus estaturos, e "a preserva~ao e divulga~ao da cultura afro-brasileira na regiao sui da Bahia". Ap6s esse primeiro encontro, permaneci mais dois meses em Ilheus, periodo durante 0 qual assisti, pe1a primeira vez, a uma das magnificas festas do Tombency, ajudei em sua prepara~ao, e dei inicio a uma rela~ao de amizade, confian~a e admira~ao que eu nao tinha ideia de que duraria tanto. Escrevi minha disserta~ao de Mestrado sem integrar 0 material empirico do terreiro, mas consciente de que a experiencia de campo desempenhara urn pape! fundamental em sua reda~ao. Pois, como registrei na pr6pria disserta~ao, se a pesquisa no Ile de Obaluaie, em Tribob6, foi influenciada por algumas caracteristicas pessoais de seu pai-de-santo ("homem dedicado a e1ucubra~6es misticas e a constru~ao de intrincados sistemas cosmoI6gicos"), Dona Ilza Rodrigues reve1ou-me "que 0 candomble e muito mais que urn sistema cosmol6gico ou mesmo uma re1igiao, mostrou-me que e1e e tambem uma pratica e urn modo de vida" (Goldman 1984: 3). Ao longo dos treze anos transcorridos entre a pesquisa sobre candomble e aquela sobre politica, nunca perdi inteiramente 0 contato com os Rodrigues e 0 Tombency, seja em curtas viagens a Ilheus, seja nas poucas vezes em que me visitaram no Rio de Janeiro. Desse modo, parece muito natural, retrospectivamente, que eu tenha chegado aconclusao de que meu interesse em estudar antropologicamente 0 voro e as e1ei~6es (a segunda linha de que falei acima) poderia e deveria levar minha pesquisa a ser deslocada para Ilheus, onde eu ja possuia uma 6tima rede de contatos com pessoas que, eu sabia, envolviam-se vez por outra com "a politica", e onde eu poderia contar com urn auxiliar de pesquisa que parecia extremamente adequado para a tarefa (a primeira linha de interesses).13 A pesquisa foi, assim, posta em andamento a partir de abril de 1996. Paulo Rodrigues ficou responsave! pelos levantamentos pre1iminares e pe1a realiza~ao de uma serie de entrevistas gravadas, a fim de que, em setembro, quando eu chegasse acidade para acompanhar as e1ei~6es municipais, 0 campo ja estivesse re1ativamente mapeado, e parte do material empirico pronta

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para ser urilizada. Paulo, no enranro, fez bern mais do que isso. Como ele proprio me diria bern mais rarde, "houve grande participa~ao do pesquisadOf, eu cliria que urn pOlleD excessiva" . Na verdade, 0 problema nao foi apenas 0 da 'quanridade' da participa~ao do pesquisador, mas tambem, e principalmenre, 0 da sua 'qualidade'. Nao no senrido de seu valor, ja que 0 trabalho de Paulo produziu urn excelenre material, mas no senrido de sua natureza, que acabou por colocar em choque pessoas com experiencias, expectativas e, conseqiientemente, representacy6es

da politica nao apenas muito heterogeneas, mas, em geral, conflitanres - e Paulo nao fez muito esfor~o para resolver essa situa~ao. Universirario que tivera alguma milid.ncia politica estudanril na decada de 1970, e, mais tarde, adepto do Sanro Daime, participando, ao mesmo tempo, de atividades e projetos ligados a ONGs ou ao chamado terceiro setor, a concep~ao de politica de Paulo nao podia deixar de estar marcada por uma razoavel dose de certeza a respeito da distin~ao enrre "esquerda" e "direita" e pela necessidade da conscienriza~ao e participa~ao politicas (do lado das 'esquerdas', evidenremenre). 0 problema e que aqueles que ele devia auxiliar-me a pesquisar em Ilheus - os militanres do movimenro afro-cultural da cidade - aparenremente adotam concep~6es de politica, de conscienriza~ao e de participa~ao radicalmenre distinras daquelas de Paulo e, e claro, em boa parte, das minhas tambern. Seguindo minhas instru~6es, Paulo procurou Dona Ilza Rodrigues e sua familia a fim de dar inlcio as enrrevistas sobre as elei~6es municipais de outubro de 1996. Dona Ilza, usando a mesma formula que eu testemunhara em 1983, disse a ele que alguem apresenrado por mim ja era amigo da casa, e pediu aos filhos que colaborassem em tudo com seu trabalho. Logo na primeira enrrevista com urn dos irmaos de Dona Ilza, duas coisas muito importanres foram reveladas: a propria existencia de urn movimenro afro-cultural em Ilheus, e sua participa~ao nas elei~6es municipais de 1992. A primeira revela~ao surpreendeu Paulo, que vivia na cidade ha quase urn ano e jamais ouvira falar de tal movimenro. Surpresa razoavelmenre compreensivel, contudo, se levarmos em conra que, como observou Silva (1998: 13-14), esse movimenro parece mesmo dotado de certa invisibilidade para a classe media local, que costuma supor que a existencia de movimenros negros se limita a Salvador. o tema da segunda revela~ao sera objeto de analise no proximo capitulo e, por isso, basta reiterar que, nas elei~6es municipais de 1992, uma das

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chapas que concorriam a Prefeitura teria conseguido obter a adesao de rodas as entidades do movimento afro-cultural com a promessa de constru~ao de urn Centro Mro-Cultural, que, na verdade, jamais saiu do pape!. Os grupos negros, que estimavam ter conseguido quase 8 mil voros para a chapa vencedora - 0 que teria sido decisivo para 0 resultado final-, sentiram-se logrados e passaram a considerar como "traidores" 0 vice-prefeiro e 0 candidato a vereador, ambos negros, que haviam sido os responsaveis pelas articula~6es. Prometiam, igualmente, trabalhar contra as candidaturas por eles apoiadas nas elei~6es de 1996. A desilusao com 0 resultado da parricipa~ao nas elei~6es de 1992 havia produzido duas conseqiiencias. Primeiro, os militantes das entidades afroculturais sentiam e sustentavam que 0 movimento se havia desestruturado e que era necessario urn trabalho de reconstru~ao, com a cria~ao de urn novo Conselho de Entidades e com 0 fortalecimento dos grupos. Segundo, que nao havia nenhuma condi~ao para uma nova participa~ao polltico-eleiroral do movimento enquanto tal, ou seja, que as entidades que compunham 0 movimento negro deveriam ficar livres para escolher e apoiar seus candidaros a vereador e a prefeiro. Assim, os encontros que os Hderes dos grupos pretendiam realizar visando a reestrutura~ao do movimento nao deveriam, em hip6tese alguma, tratar de seu POSSIVei envolvimento com a poHtica eleiroral. Paulo, por ontro lado, pensava que isso era totalmente inadequado, e que urn movimento que se orgulhava de ter sido capaz de conseguir 8 mil votos em uma elei~ao municipal nao podia abrir mao de participar politicamente das novas elei~6es.

*** No dia 15 de maio de 1995,0 jornallocalA Regiiio anunciava que estava "Iniciada a sucessao municipal em Ilheus", com 0 lan~amenro das principais pre-candidaturas. Do lado da situa~ao, tres possfveis candidaros disputavam o apoio do governo do Estado da Bahia e do senador Antonio Carlos Magalhaes: Gumercindo Tavares, pelo Partido Trabalhista Brasileiro; Rubia Carvalho, pelo Partido Social Cristao; Roland Lavigne, pelo Partido Liberal. 0 primeiro, que nunca concorrera a uma elei~ao, fazia parte de uma das mais tradicionais familias cacaueiras de Ilheus, sendo chamado por alguns de "0 ultimo coronel". Rubia, filha e esposa de ricos comerciantes de cacau, havia se candidatado aAssembleia Legislativa em 1994, tendo obtido cerca de 4.600

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votos em Ilheus, 0 que, mesmo sem conseguir elege-Ia, a rransformara em candidara porencial it Prefeirura. Roland Lavigne, por sua vez, apresentava uma rrajeroria basrante distinta, tendo construido sua carreira politica nos municipios menores, vizinhos a Ilheus, de Una e Camacan; elegeu-se deputado estadual em 1990 e montou um poderoso esquema politico no sui e exrremo-sul baianos. Em 1994, foi 0 quarto depurado federal mais votado do Estado da Bahia, obtendo mais de um quarto dos votos validos de Ilheus. Depois de eleito, passou a enfrentar denuncias de malversa~ao de recursos do Sistema Unico de Saude (SUS) e de esteriliza~ao indiscriminada de mulheres (voltarei a este ponto). Em 16 de outubro de 1995, A Regiiio anunciava que "Roland lidera as pesquisas", situa~ao que fez com que, ao longo do primeiro semesrre de 1996, o governador do estado e 0 senador Antonio Carlos Magalhaes fossem tomando a decisao de apoiar Roland Lavigne. No inkio de junho, antecipando-se ao que sentia que aconteceria, Rubia, como dizia a manchete de A Regiiio do dia no dia 3 de junho, "Retira candidatura e garante apoio a Jabes". Apos uma pre-campanha em que insistira no fato de ser mulher e "nao politica", de representar uma "novidade" na politica ilheense, alcan~ra quase 15% de preferencia nas pesquisas de opiniao e nao pretendia abandonar sua candidatura. Entretanto, ao saber de uma manobra do diretorio estadual de seu partido, que inviabilizaria 0 lan~amento de seu nome como candidata a prefeito, decidiu nao apenas faze-Io, mas tambem apoiar Jabes Ribeiro - decisao dificil de preyer, uma vez que 0 perfil conservador de sua candidatura e suas rela~6es historicas com 0 grupo de Antonio Carlos Magalhaes tornavam dificil acreditar que ela pudesse vir a apoia-Io. Comentava-se, em Ilheus, que a kombi que fazia sua campanha fora pintada durante a noite e, na manha do dia em que a ex-candidata anunciou sua desistencia, ja fazia campanha para Jabes, na qual ela se envolveu direta e intensamente. No dia 17 de junho, A Regiiio anunciava em manchete: "Decidido: Roland e 0 candidato de AO [Antonio Olimpio]" e "ACM [Antonio Carlos Magalhaes] e Paulo Souto indicam Roland"; e, na pagina 7, relatava que 0 apoio a Roland fora oficialmente divulgado por Antonio Carlos Magalhaes, no Teatro Municipal de Ilheus, por ocasiao de uma solenidade de lan~amen足 to de um pacote de obras para a cidade. Gumercindo Tavares que, ate entao, parecia ainda acreditar que seria indicado, estava presente it cerimonia e retirou-se quando 0 nome de Roland foi confirmado. A Regiiio acrescentava, tambem, que "ourras pessoas" teriam feito 0 mesmo e, na pagina 5, apresentava

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uma entrevista com Gumercindo Tavares, em que este dizia que manteria sua candidatura. No entanro, na edi~ao de lode julho, 0 mesmo jornal apresentava a manchete: "Cassada candidatura de Gumercindo", explicando que a Executiva Regional do PTB obrigara 0 candidaro a retirar seu nome da disputa. Roland deveria ficar afrente de uma coliga~ao que incluiria os partidos a que pertenciam Rubia e Gumercindo. Este, finalmente, resignou-se, partiu em uma longa viagem ao exterior e nunca mais participou da politica em Ilbeus. Do lado das oposi~6es, Jabes Ribeiro reromara seu mandaro de deputado federal ap6s sua derrota nas elei~6es municipais de 1992 em Ilheus, ao mesmo tempo que iniciara as articula~6es visando a sucessao em 1996. No inicio de 1994, anunciou publicamente a decisao de nao concorrer a reelei~ao para a Camara, proclamando seu "compromisso hist6rico" e sua "op~ao preferencial" pela cidade de Ilheus. Tendo definido a falta de apoio das esquerdas a sua candidatura em 1992 como uma das causas centrais de sua derrota, e buscando capitalizar sua atua~ao como deputado federal e seu apoio a Lula, tanto no segundo turno das elei~6es presidenciais de 1989 quanto no primeiro das de 1994, Jabes procurou articular uma ampla alian~a e ofereceu a vice-Prefeitura ao Partido dos Trabalhadores, que, em meados de junho de 1996, acabou aceitando a oferta. Alem disso, Jabes obteve 0 apoio, formal ou informal, de mais seis partidos (PMOB, PSB, PSO, PPS, PMN e PCdoB), assim como de varios candidaros a vereador (entre os quais, como vimos, Gurita), que, ligados a Rubia Carvalho, acabaram permanecendo apenas formalmente na coliga~ao que apoiava Roland Lavigne. 14 Oiante desse quadro eleiroral, e dadas suas convic~6es politicas e seu envolvimento na pesquisa com os grupos negros, Paulo sugeriu a alguns de seus colegas de trabalho no Instituto Nossa Senhora da Piedade, que trabaIhavam na campanha de Jabes, que talvez Fosse possivellevar 0 movimenro afro-cultural de Ilheus a apoiar este nome para prefeito, 0 que, evidentemente, despertou 0 interesse daqueles que estavam envolvidos no processo eleiroral justamente do lado dessa candidatura. Mais precisamente, esses colegas faziam parte do grupo politico de Rubia Carvalho e haviam se envolvido na campanha de Jabes quando esta passara a apoia-lo. Nesse sentido, a sugestao de Paulo parecia extremamente interessante por permitir acenar a lider do grupo com a possibilidade de um grande numero de voros e, mais do que isso, com a participa~ao de um grupo que, sabidamente, poderia se apresentar com musica e dan~a nas atividades de campanha, aumentando a "visibilidade" da mesma. Rubia, por sua vez, via nessa possibilidade de participa~ao

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uma chance de mostrar a Jabes - cuja candidarura e!a apoiava ha muito pouco rempo e de cujo campo politico e!a jamais fizera parre - uma for~a e!eiroral e uma capacidade de mobiliza~ao e propaganda politica que cerramente contariam a seu favor no momento da disrribui<;:ao de cargos apos uma possive! vitoria e!eitoral. E e claro que 0 proprio Jabes, finalmente, so poderia ver com bons olhps esse apoio e!eitoral suplementar. Paulo, por sua vez, ralvez renha vislumbrado uma oporrunidade para refor~ar suas re!a<;:6es com um grupo de pessoas porencialmente influentes. E evidente, contudo, que rambem acreditava que 0 apoio do movimento afrocultural a uma candidatura de esquerda era a coisa cerra a ser feita, principalmente porque tudo parecia indicar que Jabes Ribeiro seria 0 vencedor das e!ei~6es de outubro. A parrir da segunda quinzena de junho de 1996, Paulo procurou convencer 0 movimento afro-cultural de que 0 apoio a Jabes, estabe!ecido com a media~ao de Rubia, seria 0 me!hor caminho a seguir. 0 problema e que, mesmo contando, para essa manobra, com as re!a~6es que a pesquisa havia estabe!ecido entre e!e e Marinho Rodrigues (vice-presidente da antiga diretoria do CEACI e 0 mais ativo dos militantes no processo de reestrutura<;:ao do Conse!ho), Paulo era um outsider tanto para 0 movimento negro quanto para 0 grupo politico de Rubia Carvalho. No dia 16 de junho, Paulo encaminhou a Marinho 0 que definiu explicitamente como uma solicira~ao de alguns assessores de Rubia: uma conversa entre os dois grupos visando um possive! apoio e!eitoral a Jabes Ribeiro. Essa conversa estaria baseada na perspectiva imediata de realiza~ao de, pe!os menos, tres eventos de campanha, organizados em conjunto com 0 movimento afro-cultural, a serem realizados em bairros que abrigassem grupos negros; e na proposta de que 0 movimento negro viesse a ocupar um lugar no Conse!ho de Campanha do candidato - que contava com representantes dos diferentes parridos que compunham a Alian<;:a Popular, coliga~ao formada pe!o PSDB (parrido de Jabes), PT (parrido do candidato a vice, Jose Hentique Santos Abobreira) , PMDB, PSB e PSD.15 Paulo sugeriu, ainda, que essa conversa Fosse conduzida a partir da e!abora~ao de uma carra de principios e reivindica~6es, com propostas para a politica cultural do municipio, subscrita pe!o CEACI, como um todo, e por cada uma das entidades que 0 compunham em parricular. Esta carra deveria, tambem, servir de base para qualquer acordo, au meSilla conversa, com outros candidatos eventualmente interes-

sados no apoio e!eitoral do movimento negro.

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r Marinho pareceu extremamente animado com a proposta. Lembrou a participa~ao e a uniao dos grupos afro na campanha de 1992, chamou a aten~ao para 0 faro de que boa parte dos Hderes negros pretendia votar em Rubia caso ela tivesse sido bem-sucedida em lan~ar sua candidatura a prefeiro e, finalmente, aurorizou Pa~lo a prosseguir com as negocia~6es a fim de marcar uma reuniao entre os dois grupos. Por outro lado, Marinho advertiu que seria necessaria uma reuniao previa do movimento afro-cultural e propos a Paulo comparecer a esta, quando seria apresentado como pesquisador (ou, para ser mais preciso, como "assistente de Marcia") e como "assessor" de Marinho.

Essa reuniao foi marcada para 0 dia 20 e, mais tarde, aquela com 0 grupo de Rubia, para 0 dia 27. 16 A anima~ao de Marinho s6 fez aumentar quando, no dia 20, a reuniao dos grupos afro efetivamente foi realizada: "depois de meses de tentativas, 0 grupo conseguiu se reunir!" Mais tarde, ele atribuiria, em boa parte, essa mobiliza~ao aos esfor~os de Paulo, ainda que, de seu ponto de vista, esses esfor~os nao apresentassem apenas aspectos positivos. 0 inicio da reuniao, entretanto, nao transcorreu exatamente como Paulo esperava. Mesmo tendo sido apresentado por Marinho, conforme prometido, como seu assessor e pesquisador, sua presen~ na reuniao foi contestada explicitamente por Gurita - que ai se encontrava na condi~ao de representante do Bloco Afro For~a Negra, ainda que Fosse candidato a vereador e se viesse esfor~ando para conseguir a adesao eleitoral do movimento afro-cultural e para atrai-lo para a campanha de Jabes Ribeiro, a quem apoiava. 0 problema e que, alem de desconhecer a posi~ao de Paulo em rela~ao a Jabes, Gurita imaginava (equivocadameme, diga-se de passagem) que ele seria comrario ao apoio a seu nome para vereador. Argumemou, assim, que Paulo era urn desconhecido, que nao havia apresentado nenhuma credencial, que ninguem, afinal de comas, tinha certeza a respeito de suas verdadeiras inten~6es. Acrescentou, ainda, que ele nem mesmo era negro, e que, em uma reuniao do movimento negro destinada a discutir delicadas quest6es de alinhamento poHtico, sua presen~a s6 poderia ser considerada mais do que inconveniente. Paulo, contudo, soube reagir bastante bern aproposta de veto a sua presen~a na reuniao. Lembrou que era "auxiliar de pesquisa de Marcio", pessoa que mantinha rela~6es com 0 terreiro Tombency e, portanto, com 0 Dilazenze, hi mais de dez anos, 0 que significaria que "a confian~a depositada em Marcio, que sempre realizou urn trabalho ami-racista de valoriza~ao dos grupos negros de Ilheus" se transferia para ele (Paulo). Lembrou, tambem, ser natural

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de Ilheus, filho de urn esrivador, como muiros dos que ali esravam; e que sua condi<;ao de "mularo", como ourros rantos, impedia que ele se sentisse deslocado no seio do movimento negro; que, ao conm(rio, ele se sentia perfeiramente avonrade ao se aproximar de urn grupo que lurava contra 0 preconceiro e resisria a domina<;ao social e cultural. Mesmo naqueles que, evenrualmente, nao 0 renharn seguido ern rodos os deralhes, 0 pronunciamento de Paulo, eferuado ern rom emocionado e manifesrando muira sinceridade, parece rer sido basrante eficaz. Gurira concordou imediaramente corn a presen<;a de Paulo na reuniao; Dino Rocha (direror de eventos do Dilazenze) confessou que rambem rinha duvidas a respeiro de Paulo, mas que agora esravam rodas superadas; alguem comentou que, afinal de contas, "Paulo e da cor de Ney" (irmao de Marinho, vice-presidenre do Dilazenze) e, porranto, sem sombra de duvida possivel para os que ali esravam reunidos, negro. Paulo, por sua vez, compreendeu, de modo algo apressado, que esses discursos significavam a roral aceira<;ao de sua "adesao ao grupo", bern como de sua "assessoria politica', como se a concordancia com

sua parricipa<;ao na reuniao Fosse mais do que apenas isso e como se ali houvesse realmente urn grupo. Na verdade, 0 sucesso relarivo e remporario de Paulo deveu-se ao faro de rer sido capaz de manipular reroricamente alguns simbolos basicos de inclusao no universo do movimenro afro-cultural de Ilheus. Parre dessa manipula<;ao parece rer sido consciente ou, para ser mais exaro, meio conscienre, uma vez que a emo<;ao necessaria para 0 born funcionamento da esrraregia dificilmente poderia ser controlada inteiramente pela vontade de alguem. 17 Conrudo, parre do processo parece rer sido inreiramenre inconscienre ou involunraria, pois Paulo, inadverridamente, acionou uma serie de dimens6es da exisrencia que sao conoradas pelo rermo "negro" ern Ilheus: a naruralidade ilheense, ern uma cidade onde 85% da popula<;ao e negra; 0 faro de descender de urn esrivador, caregoria profissional ern que virrualmente rodos sao negros; sua condi<;ao de mularo, caregoria raramente empregada na cidade, mas que inequivocamenre remere para a negrirude; lura e resisrencia ao preconceiro e adomina<;ao, arividades sempre associadas ao movimenro negro. 18 Na reuniao de 20 de junho, 0 debare sobre a sucessao municipal rapidamente revelou que os grupos presentes esravarn divididos ern rela<;ao ao apoio aos dois candidaros a prefeiro que pareciarn possuir chances reais de viroria ern ourubro. 0 For<;a Negra, 0 Zimbabue (ambos representados por Gurira) eo Miny Kongo (urn dos rres "grandes" blocos afro de Ilheus) manifesraram

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apoio a candidatura de Jabes Ribeiro; a Rastafiry (ourro dos "grandes" blocos) preferia Roland Lavigne; a Raizes Negras eo Dilazenze (tambem urn dos "grandes" blocosl 9 ) pareciam indefinidos, ainda que Paulo tenha entendido que se inclinavam na dire~ao de Jabes. Lembrando, conmdo, que, antes da inviabiliza~ao de sua candidatura, a maior parte dos dirigentes pretendia apoiar Rubia Carvalho para a Prefeimra, Paulo e Marinho conseguiram que todos aceitassem a reuniao com seu grupo politico (mesmo que Cesar, do Rastafiry, tivesse logo avisado que nao poderia estar presente, uma vez que seu bloco havia sido contratado para tocar em urn comicio em uma cidade proxima). Uma reuniao preparatoria acabou agendada para 0 dia 25 e, uma vez que deveria tambern servir para a indica~ao de candidatos a nova diretoria do CEAC, decidiu-se que seria convocada por meio de urn edital a ser redigido par Cesar e Paulo. A questao do apoio a algum candidato a vereador ainda foi levantada par Gurita, sem duvida a mais interessado no assunto. Paulo concordou, imediatamente, que seria muito importante que, na reuniao com Rubia, as grupas afro-culmrais pudessem exibir a nome do candidato que estariam apoiando, que, e claro, deveria ser alguem ligado ao movimento. Cesar argumentou, por outro lado, que a processo eleitoral estava muito adiantad0 20 e que boa parte dos blocos ja havia assumido compromissos com candidaturas espedficas - a que era certamente verdadeiro em rela~ao ao Rastafiry e ao Miny Kongo (que ja haviam definido as names que apoiariam) e, em parte, ao Dilazenze (que, de acordo com Marinho, ainda "conversava" com urn candidato). A reuniao foi encerrada sem que nenhuma decisao fosse tomada em rela~ao as elei~6es proporcionais. Mais do que isso, na reuniao do dia 25, a tema nem mesmo foi abordado, e a proprio Gurita parecia evitar tocar explicitamente no assunto. No entanto, foi ele mesmo quem manobrou para que a nome de Marinho Rodrigues fosse indicado como candidato a presidencia do CEAC, propondo que Cesar - que ja havia manifestado sua inten~ao de ser 0 presidente - fosse a vice. Essa proposta foi aceita e, alem disso, a reuniao com Rubia foi finalmente confirmada para dais dias depois. Assim, no dia 27, seis integrantes do movimento afro-cultural e Paulo encontraram-se com Rubia, acompanhada de sete de seus assessores. 0 encontro ocorreu na sede do Dilazenze (au seja, no terreiro Tombency, casa dos Rodrigues), mas foi Gurita que tomou a palavra no inicio da reuniao, apresentando todos as presentes e, so depois, convidando a anfitriao a falar. Marinho enfatiwu a "decep~ao" do movimento afro-cultural com a que ocorre-

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III ra ap6s as eleiyoes de 1992 e 0 conseqiienre "desanimo" e "desmobilizayao" dos grupos negros. Atribuiu explicitamenre a Paulo a iniciativa de retomar a discussao poHtica que, "como todos sabem", e dificil e complicada. Paulo, por sua vez, evocou a "carta de reivindicayoes" que 0 movimenro havia elaborado, bern como 0 desejo do grupo de que Rubia viesse a ser a inrermediaria de urn compromisso poHtico do movimenro com Jabes Ribeiro, baseado nos pontos levanrados na carta. 2l Solicitou, ainda, que RUbia tenrasse agendar uma reuniao do movimenro afro-cultural com Jabes. A resposta de Rubia teve inicio com urn comenrario sobre "a importancia do negro na formayao do Brasil"; prosseguiu com 0 reconhecimenro da pertinencia das reivindicayoes apresenradas e com urn paralelo enrre a siruayao do movimenro afro-cultural- desiludido com a politica ap6s as eleiyoes de 1992 e as traiyoes subseqiienres - e a siruayao da pr6pria Rubia, tambem desiludida com a politica ap6s ter tido sua candidatura a Prefeirura de Ilheus "cassada" em virrude das manobras e traiyoes de Roland Lavigne, Antonio Carlos Magalhaes e seu grupo. E terminou com a conclusao de que a soluyao para as duas desilusoes era a mesma, ou seja, 0 apoio a Jabes Ribeiro. Passou, entao, a palavra a Gerson Marques, urn de seus assessores, que, lembrando a hist6ria de suas relayoes pessoais e profissionais com 0 movimento negro de Ilheus, reiterou que esse apoio seria, realmenre, a unica alternativa no momento. 22 Antes do fim da reuniao, Gurita ainda tomou rapidamenre a palavra a fim de lembrar a importancia de outros grupos negros nao represenrados no CEAC, como as academias de capoeira, as bandas de reggae, os grupos de danya etc. Observemos, de passagem, que, ao longo do tempo, Rubia foi abandonando uma linguagem urn pouco mais franca - na qual, ao menos em parte, explicitava que sua adesao a Jabes Ribeiro passava por sua exclusao de urn outro campo poHtico - e adotando urn discurso de aparencia mais programatica, no qual, simultaneamenre, Jabes era qUalificado de "meu lider" e expressoes similares. E claro que todos sabiam que ela passara a apoiar Jabes por nao ter sido escolhida candidata a prefeito pela facyao do senador Antonio Carlos Magalhaes; e claro, tambem, que ela sabia que os outros sabiam, e assim por dianre. Ao sustenrar que sua migrayao politica era da ordem da convicyao, Rubia acionava uma categoria convencional e legitima da vida politica, tornando, assim, seu discurso aceiravel. Como lembra Herzfeld (l992b: 79), essa parece ser uma das condiyoes de eficacia das retoricas de toda ordem, uma vez que a convencionalidade parece assegurar uma conversao de inreresses es-

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pedficos em valores gerais, que e a garantia de sua aceirabilidade. Dessa forma, fazer aceirar a rerorica rorna-se muiro mais imporrante do que fazer com que se creia nela (Herzfeld 1982: 645-646, 657), e essa parece ser uma opera~ao crucial no mundo da poHrica. De todo modo, uma reuniao entre Jabes Ribeiro e 0 movimento negro foi agendada pela assessoria de Rubia para 0 dia 5 de julho. Para surpresa de Marinho e de Paulo, entretanto, essa reuniao nao foi marcada para a sede do Dilazenze, como havia sido combinado, mas para a quadra do Tengao, bloco carnavalesco situado na Conquista, mas sem nenhuma conexao com 0 movimento afro-cultural. Paulo descobriu ainda que a ideia fora de Gurita, que planejara algo mais que uma reuniao com 0 prefeiro: urn grande evento para o qual havia convidado os grupos de capoeira, reggae e dan~a que havia mencionado no final da reuniao com Rubia. Percebendo que tratava-se de uma manobra de Gurita para converrer a reuniao em uma manifesta~aode sua for~a eleiroral junto aos grupos negros como urn todo, Marinho e Paulo fizeram com que ele concordasse em transferir a reuniao de volta para a sede do Dilazenze - 0 que de faro acabou acontecendo - e que ela se limitasse as entidades filiadas ao CEAC, 0 que nao ocorreu, uma vez que Gurita levou para a reuniao os grupos que convidara para 0 encontro no Tengao e que nao faziam parre do Conselho. AMm de Gurita, seus convidados e Paulo, estavam presentes ao encontro dirigentes dos blocos (acompanhados de alguns outros membros de suas entidades), diversos componentes do Dilazenze, da famllia Rodrigues e do Tombency (inclusive Dona Ilza, que abriria 0 barracao do terreiro para 0 encontrol, Rubia Carvalho e seu grupo de assessores, 0 candidato a prefeiro Jabes Ribeiro e seus assessores. Marinho abriu a reuniao, falando novamente da situa~ao dos grupos negros e do CEAC, das desilus6es de 1992 (quando, frisemos, apoiaram Antonio OHmpio contra Jabes Ribeiro) e da falta de motiva~ao para a "parricipa~ao na poHriea" - expressao que os participantes do movimento afro-cultural de Ilheus tendem a utilizar muiro mais freqUentemente do que "parricipa~ao poHtiea". Enquanto esta ultima adjetiva a politica como qualifica~ao de uma participa~ao substantiva, enfatizando, assim, que e possivel parricipar a qualquer momento e de diferentes maneiras, a primeira formula, em que poHtica e substantivo, parece denotar, sobretudo, 0 envolvimento em campanhas eleirorais. 0 que pode parecer uma sutileza sem conseqUencias revelou sua importancia quando Marinho passou a palavra a Paulo, que arriculou urn discurso com todas as marcas da militancia de esquerda

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e dos ativistas do terceiro setor: os grupos afro represemariam as comunidades pobres e seriam os principais responsiveis pela produ~ao da cultura popular na cidade, sem, emretamo, receber 0 reconhecimemo e 0 apoio dos orgaos publicos em geral e da Prefeitura em particular. Concluiu, argumentando que 0 movimento afro-cultural seria capaz de mobilizar emre 5 e 10 mil voros, e que rodos ali queriam saber do candidaro Jabes Ribeiro como ele enearava a possibilidade de urn compromisso com 0 movimemo. Observemos que Paulo brandia urn numero de voros que se aproximava daquele que, as vezes, membros do CEAC alegavam ter obtido nas elei~6es municipais de 1992, quamidade que poderia mesmo explicar a vitoria de Antonio Olimpio, ji que este vencera Jabes Ribeiro pela exata diferen~a de 8.455 votos. Alem disso, aos ouvidos experiemes do eandidaro a prefeito, essa afirmativa, seguida da ideia de urn "compromisso", soava inequivocameme como oferta de barganha eleiroral: 5 a 10 mil votos em troea de urn apoio algo indefinido, mas que, evidemememe, envolvia dinheiro (para as sedes dos grupos, seus trabalhos sociais etc.) - proposta que, e claro, nao deveria ser feita em publico, uma vez que, como lembram Villela e Marques (2002: 8182), as estrategias para a conquista de eleirores por parte dos politicos passam por aproxima~6es cuidadosas, nas quais politica e favores nao devem ser mencionados de chofre. Da mesma forma, Magalhaes (1998: 51) observa que, do pomo de vista dos eleirores, "0 born candidaro" e, certameme, "aquele que di alguma coisa, mas desimeressadameme, nao so em vespera de elei~ao". 0 mesmo parece verdadeiro na outra mao da rela~o, ou seja, quando os eleirores oferecern seus votos aos poHticos. 0 que nao significa, e claro, que tamo os primeiros quamo os segundos nao saibam que hi imeresses em jogo: a impressao de desimeresse, alem de fazer parte de urn estilo, permite, ao menos, uma duvida razoivel (e a favor do politico). Alem disso, certa dose de simula~ao parece constitutiva das rela~6es sociais e, ainda que essa dosagem varie, nilo deixamos de ficar irritados quando uma aeromo~a nos nata amipaticamente, mesmo sabendo que sua simpatia e paga e, em ultima instancia, falsa. 23 Ora, desde 0 inicio de 1996, as pesquisas de opiniilo realizadas em llheus indicavam que a probabilidade de Jabes veneer as elei~6es era muiro alta, ji que comaria com quase 50% das preferencias. Dispunha, tambem, do apoio, formal ou informal, de oiro partidos, emre eles 0 PT, partido que, de acordo com sua propria avalia~o, teria sido 0 principal responsivel por sua derrota em 1992, quando se recusara a apoii-Io e lan~ara, em coliga~ao com 0 PSB e i' 109


o PCdoB, urn candidaro que obtivera 5.295 voros, ou seja, mais de 60% da diferen~a entre ele e Antonio Olimpio. Alem disso, 0 apoio do PT em 1996 incorporara a campanha de Jabes urn outro setor do movimenro negro de Ilheus, setor que nem se considera nem e considerado parte do movimenro afro-cultural da cidade. Trata-se do conjunro de grupos, dos quais 0 mais significativo e a se~ao local do Movimenro Negro Unificado (MNU), que se define e e definido como urn movimenro de ordem sobretudo "politica". Moacir Pinho, 0 principallider do MNU na cidade, ocupava urn lugar na "comissao de cultura" da campanha de Jabes. Tendo esse cenario como pano de fundo, Jabes respondeu as demandas do movimenro afro-cultural expressas por Paulo com urn discurso em que enfatizava 0 carater "moderno" de sua candidatura; sublinhava que pretendia desenvolver urn "governo participativo", que conrasse com a colabora~ao da "sociedade organizada"; e frisava, sobretudo, que nao fazia campanha na base de "promessas", mas de "compromissos", que nao fazia politica "a moda antiga, na base da troca, prometendo coisas em troca de voros"; que estava ali com uma proposta de governo, a ser debatida, quem sabe modificada e, eventualmenre, aceita; que era curioso que 0 movimenro afro-cultural falasse em 5 ou 10 mil votos quando jamais conseguira eleger sequer urn vereador; que o comite de campanha era formado pelos partidos politicos que 0 apoiavam, pois a participa~ao nesse espa~o dependia de alinhamenro partidario. Concluiu, assim, que ali se enconrrava com 0 objetivo de apresenrar suas propostas, nao de se pronunciar sobre cada urn dos itens reivindicados: "esse sim, esse tambem sim [...] Alias, politico em campanha s6 diz sim". Finalmenre, convidou os membros do CEAC a se inregrarem a comissao de cultura da campanha, coordenada, acabamos de ver, por Moacir Pinho, a quem Jabes passou a palavra. Mais tarde, e equivocadamenre, ele diria a urn de seus assessores que Paulo parecia estar querendo levar os grupos negros a apoiarem Roland. Moacir, por sua vez, simplesmenre comunicou a data e 0 local da pr6xirna reuniao da comissao de cultura e anunciou a realiza~ao de uma grande Festa destinada a comemorar os dez anos da restaura~ao do Teatro Municipal de Ilheus, obra realizada na primeira gestao de Jabes a frenre da Prefeitura. Sugeriu que os blocos afro participassem de urn desfile comemorativo: cada bloco, com seus inregranres vestidos em trajes multicoloridos, sairia de urn ponro diferenre da cidade, e todos se enconrrariam na pra~a onde esta situado 0 teatro. Observamos aqui, mais uma vez, a imbrica~ao enrre "grande" e "pequena" politicas, assim como enrre 0 local, 0 regional e 0 nacional. A ne-

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cessidade de alian~a eleitoral com 0 PT, derivada de uma avalia~ao das causas da derrota de 1992, somada ao fato de que, nessa "poca, Jabes pretendia se opor, no plano estadual, ao grupo de Antonio Carlos Magalhaes, trouxe em fun~ao do fato de 0 MNU ter liga~6es nacionais com 0 Partido dos Trabalhadores - a questao negra e a participa~ao de Moacir Pinho na campanha de Jabes, 0 que dificultou muito a adesao do movimento afro-cultural, tendo em vista as rela~6es de oposi~ao existentes entre este e 0 movimento negro politico. 24 Apos curtas interven~6es de Gerson, Rubia, Gurita e Dona IIza, Marinho encetrou a teuniao proclamando que 0 CEAC "vai entrar de cabe~a na campanha de Jabes". Essa afirmativa - que, mais tarde, Rubia traduziria como "jura de amor eterno" - deixou Paulo muito confuso e desorientado, uma vez que considerava que, do ponto de vista do movimento afro-cultural, 0 encontro havia sido urn fracasso total. Pois, se a proposta de apoio a Jabes, que era 0 que pretendia, parecia ter saido vitoriosa, 0 modo como se dera essa vitoria nao correspondia de forma alguma ao que Paulo havia imaginado. desconcerro de Paulo so fez aumentar quando, no dia 8 de julho, na abertura da "reuniao de avalia~ao" organizada pelo CEAC, Marinho contou a todos que quase nao dormira na noite do encontro com Jabes, pois ficara mentalmente lembrando e listando as "alfinetadas" que 0 candidato lan~ara contra 0 movimento afro-cultural. No final das contas, dizia, a posi~ao de Jabes podia ser assim resumida: "venham comigo porque, se eu for eleito, farei urn born governo e darei espa~o para voces parriciparem!" Isso significaria, de seu ponto de vista, que 0 candidato nao desejava comprometer-se com os grupos negros e que, sendo assim, "fica dificil entrar de cabe~a na campanha". Dos presentes 11 reuniao, apenas Gurita discordou da posi~ao de Marinho:

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"[...] achei Jabes, concreto, real, objetivo. Tern politico como Roland que vai dizer que concorda vai prometer... Mas sera que vai cumprir? Acho que Jabes foi real. Eu naG gosto de promessas". J

Cesar, do Rastafiry, que ja pretendia, como vim os, apoiar Roland Lavigne, contestou Gurita ftontalmente: "[...] com qualquer urn que a gente feche tern que tirar urn pouco antes e urn pouco depois. Nao deu com Jabes? Vamos ver com Roland!" A isso, Cesar acrescentou que fora procurado por Cosme Araujo - vizinho dos Rodrigues, advogado, candidato 11 reelei~ao para vereador e aliado

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r de Roland Lavigne -, que pedira a ele que convidasse 0 CEAC para uma reuniao com 0 candidato a prefeito no dia 12 de julho. Pois, da mesma forma que Rubia e seus assessores pretendiam mostrar a Jabes sua for<;:a, levando 0 movimento negro a apoiar sua candidatura, Cesar desejava mostrar a Cosme que era capaz de obter urn apoio eleitoral consideravel, e Cosme, sobretudo, desejava mostrar sua pr6pria for<;:a a Roland. Nesse sentido, em 1996, 0 movimento afro-cultural de Ilheus foi definitivamente capturado em uma rede de disputas que, no fundo, era a ele totalmente estranha. De qualquer forma, todos, com exce<;:ao de Paulo, concordaram que a reuniao com Roland era uma excelente ideia. Marinho, inclusive, aproveitou a ocasiao para frisar que os acontecimentos haviam deixado muito clara a impossibilidade de 0 CEAC como urn todo apoiar esse ou aquele candidato, Fosse para prefeito, Fosse para vereador: cada entidade deveria, portanto, decidir seus pr6prios rumos no processo eleitoral. Nesse sentido, concluiu Marinho, Gurita nao deveria, em hip6tese alguma, continuar a se apresentar como candidato do CEAC ou do movimento afro-cultural de Ilheus. Paulo, por sua vez, concordou com 0 diagn6stico de fracasso da reuniao com Jabes, mas argumentou que urn segundo encontro deveria ser agendado, uma vez que 0 apoio a Roland nao poderia deixar de ser desastroso. Como ninguem respondeu, Paulo se sentiu autorizado a tentar marcar a nova reuniao com Jabes, por meio de Rubia e seus assessores, 0 que ele nao conseguiu, ja que ninguem parecia entender 0 objetivo de urn segundo encontro. Do lado dos grupos afro, havia a certeza de que a conversa fora urn fracasso e de que era imposslvel negociar 0 que quer que Fosse com Jabes; do lado do grupo de Rubia, afirmava-se que a reuniao fora urn sucesso, terminando em "juras de amor eterno", e que, conseqiientemente, nao havia nenhum sentido em urn novo encontro. A reuniao com Roland Lavigne tornara-se, assim, prioriraria na agenda do movimento afro-cultural, mesmo parecendo razoavelmente complicada. Ja a data para a qual fora marcada colocava urn problema: era no mesmo dia da festa dos dez anos da reinaugura<;:ao do Teatro Municipal de Ilheus, para a qual Moacir convocara explicitamente os blocos. Gurita advertiu que ja se comprometera a levar 0 For<;:a Negra e 0 Zambi Axe; os dirigentes do Miny Kongo (ligados a uma candidata a vereadora do partido de Jabes) avisaram que tambem iriam ao desfile. Cesar, entretanto, argumentou que 0 tempo era mais que suficiente para que, ap6s 0 desfile, os representantes dos grupos fossem se encontrar com Roland, e a reuniao foi mantida.

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E evidente, contudo, que a data eta mais urn ptetexto do que 0 vetdadeito ptoblema. No dia 12, Matinho e Cesat (cujos blocos nao parricipatam do desfile) fizetam questao de assistit acomemota~ao, constatando que a patticipa~ao dos blocos afto comandados POt Gurita e do Miny Kongo fora "pessima". "Foi born", disseram, "pois isso vai mostrar a Jabes a falta que os grupos afto fazem e atrapalhar Gurita, que esta ttabalhando para dividit 0 Conselho". Ap6s a constata~ao do fiasco do desfile, Marinho e Cesar seguiram para a Conquisra a fim de parriciparem da reuniao com Roland. Marcado inicialmente para 0 barracao do Tombency - ou seja, para a sede do Dilazenze, onde havia ocorrido a reuniao com Jabes -, 0 encontto acabara sendo ttansferido para a casa de Cosme Araujo, praticamente cont{gua ao terreito. Paulo demonsttou ptofunda irrita~ao ao saber da mudan~a de local, a qual foi explicada por Marinho pela insistencia de Cosme, e justificada: "e ate melhor; e uma forma de marcarmos uma distancia dele, que nao quer vir ao nosso espa~o". Agendada para as oito horas da noite, a reuniao s6 come~ou, de fato, por volta de nove e meia: de urn lado, porque Cosme esperava a chegada de Roland, que vinha de urn encontto com urn grupo evangelico em outto bairro da cidade; de outto, porque se esperavam mais dirigentes de grupos afto, uma vez que muito poucos haviam chegado na hota marcada. Finalmente, com a presen~a de cinco dirigentes de blocos, Paulo, Cosme Araujo e Roland Lavigne (acompanhado de alguns assessores e cabos eleitotais), Marinho abriu a reuniao, realizada na ampla garagem da casa de Cosme, com seu discurso habitual: desilusab com a politica e desmobiliza~o dos blocos afto, formula~6es que foram refor~adas por Paulo. Roland, como disseram alguns mais tarde, "foi supetobjetivo" e fez 0 que Jabes se recusara a fazer, lendo, ponto por ponto, a carra de reivindica~6es e dizendo "situ" a cada urn deles. AMm disso, acrescentou outtoS comptomissos, ou ptomessas: realizaria tres carnavais (0 oficial, urn antecipado - ja realizado ha algum tempo - e urn "pas-carnaval"), nos quais todos os blocos afto teriam seu espa~o; criaria urn "espa~o afto-cultural" no Centto de Conven~6es da cidade (entao em ptocesso de constru~ao - a beira-mar, na principal avenida de Ilheus - em convenio com 0 governo estadual); enfim, abriria espa~os para os grupos afto parriciparem de sua carnpanha. "Queto ajudar as entidades que me apoiarem", concluiu Roland, "pois e clato que nao you ajudar as que nao me apoiarem". Cosme Araujo encertou 0 encontto, entao, dizendo que sabia bern 0 que havia ocorrido entre os grupos afro e 0 prefeito Antonio Olimpio, tendo mesmo chegado a adverri-los, sem ser ouvido, na epoca em que 0 acordo fora 113


feito. E que, naquele momento, os adverria novamente: se apoiassem "0 outro candidato", softeriam, por mais quatto anos, 0 que vinham sofrendo desde 1993. Disse tambem que Roland, ao conmirio, dispunha dos recursos necessarios para apoiar as entidades negras, apoio que seria imediato e que continuaria durante todo 0 seu mandato como prefeito: "Sou eu, Cosme Araujo, quem garanto esse apoio, apoio alias que eu ja venho prestanda aa Rastafiry e aa Dilazenze. E alha, pessaal, a reuniaa acabau, mas nao

epra ninguem ir embora nao, porque reuniao aqui em minha casa acaba

sempre com uma cervejinha gelada". Cosme encerrava, assim, seu discurso, fazendo uma men~aa explicita ao fato de que, no camaval de 1996 - quando a Prefeitura nao fomecera nenhum apoio financeiro aos blocos afro -, 0 Rastafiry e 0 Dilazenze s6 haviam conseguido "sair no camaval" (ja que nao se tratara de urn desfile propriamente dito), em companhia do Miny Kongo, em fun~ao das camisetas que ele fomecera aos dois grupos, camisetas nas quais, alias, seu nome estava estampado. Como veremos, esse apoio teve desdobramentos fururos. Como todos, Paulo tambem se levantou ap6s 0 anuncio do fim da reuniao, mas, ao contrario dos demais, dirigiu-se para a safda da casa, ficando algo surpreso ao se dar conta de que era 0 unico a faze-lo. Respondeu "nao", quando Marinho e Cesar perguntaram se nao iria "tomar uma cerveja", acrescentando que ia embora, pois "com Roland nao da mesmo". Mais tarde, confessaria ter ficado inteiramente constrangido com a sirua~ao, indignado com os dirigentes dos blocos que aceitaram a cerveja e convencido de que rudo aquila significava uma "rendicyao", uma vez que rodos aceitaram ser "comprados por cervejas e similares". Apesar disso, Paulo e Marinho ainda convocaram uma reuniao de avalia~ao do encontro com Roland e Cosme para alguns dias mais tarde. Essa reuniao de avalia~ao, realizada no dia 18 de julho e prolongada por uma rapida conversa entre Marinho e Paulo, acabou encerrando definitivamente a parricipa~ao de Paulo junto ao CEAC e, em urn praza urn pouca mais longo, seu trabalho como meu auxiliar de pesquisa. Logo na aberrura da reuniao - que nao contou com a presen~a de Gurita, que ja nao estivera no encontro com Roland, nem com a de nenhum representante do Miny Kongo -, a opiniao unanime era de que "agora simi 0 homem foi superobjetivo". Marinho reiterou sua tese de que nao havia qualquer condi~ao para que o CEAC tomasse uma posi~ao unica e unificada e que, conseqiientemente, cada entidade deveria estar livre para decidir seu apoio a candidatos a verea114


dor e a prefeito. Todos concordaram tacitamente, mas Paulo ainda arriscou uma ultima proposta, sugerindo, inicialmente, uma nova reuniao com]abes. Todos argumentaram que isso seria toralmente inutil, e Marinho esbo~ou uma erftica ao trabalho de media~ao realizado tanto por Paulo quanto pelo grupo de Rubia, insinuando que nem as informa~6es corretas nem as verdadeiras demandas do movimento estariam chegando correramente ao conhecimento de ]abes, e concluindo que 0 fracasso do encontro com ele tivera provavelmente como origem essas "falhas de comunica~ao". Paulo modificou, entao, urn pouco sua proposta, aventando a hipotese de urn acordo interno ao CEAC para "marchar unido" nas elei~6es: 0 Conselho como urn todo apoiaria 0 candidato a prefeito escolhido pela maioria das entidades que 0 compunham, deixando os candidatos a vereador a cargo de cada grupo. A proposta estava claramente baseada em uma contabilidade equivocada: Paulo imaginava que Roland contava apenas com 0 apoio do Rastafiry, Rafzes Negras e D'Logun, e que ]abes teria 0 do Miny Kongo, Zimbabue e For~a Negra. Conseqiientemente, 0 Dilazenze seria 0 "fiel da balan~a", e, acreditava ele, Marinho acabaria por se inclinar na dire~ao de ]abes. "Isso quer dizer que, se a maioria ficar com Roland, 0 Conselho fica com ele?", indagou Marinho. "Claro", respondeu Paulo, sem aparentemente se dar conta do que estava implfcito nessa pergunta: "0 importante e que a uniao seja preservada". Nova reuniao foi, entao, agendada para uma semana mais tarde. No entanto, ao chegar na sede do Dilazenze no dia 25 de julho, Paulo surpreendeu-se ao ser avisado por Marinho do cancelamento do encontro supostamente promovido por Cesar - e de que ele seria informado quando outra data Fosse marcada. Urn pouco desconcertado, Paulo falou das dificuldades em encontrar novamente Rubia e ]abes e pediu a seu interlocutor que Fosse mais claro em rela~ao ao que, de fato, estava acontecendo. Marinho, finalmente, confirmou 0 que Paulo ja desconfiava: 0 Dilazenze negociaria com Roland, eo Conselho ficaria "fora da polftica", tanto no que dizia respeito as elei~6es para prefeito quanto aquelas para vereador. No entanto, mesmo ja suspeitando desse desfecho, Paulo nao conseguiu ocultar sua sutpresa, principalmente quando Marinho acrescentou acreditar na vitoria de ]abes e frisou que 0 acordo com Roland visava unicamente a obten~ao de recursos que permitiriam aos blocos superar a diffcil situa~ao em que se encontravam desde 1993, 0 que, no caso do Dilazenze, significava fundamentalmente a constru~ao de uma quadra propria, essencial para a realiza~ao dos ensaios que viabilizariam bons desfiles no carnaval. Paulo contra-argumentou - e esse seria o momento decisivo para 0 fim de suas rela~6es com 0 Dilazenze em particu-

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lar e com 0 movimento afro-cultural em geral- que a quadra nao era essencial e que carnaval era coisa passageira?5 E verdade que as posi~oes de Paulo a respeiro nao apenas do carnaval, mas do que deveria ser 0 verdadeiro objerivo dos blocos afro, nao eram novas; no entanro, essa era a primeira vez que as formulava de modo tao expliciro. Como relata Silva (1998: 127-128, 134-135), Paulo pretendia fundar uma ONG - composta por representantes de rodos os blocos afro ou, ao menos, daqueles cujas sedes ficavam na Conquista- destinada a desenvolver projeros sociais como creches ou cursos pn'-escolares, arividades que, acreditava ele, poderiam receber financiamentos de agencias nacionais ou internacionais. Contudo, essa proposta se chocava em pelo menos rres ponros com a pratica cotidiana dos blocos afro: primeiro, exigia uma a~ao unitaria de grupos que se caracterizam, antes, por urn modelo segmentar (0 que sera abordado detalhadamente no proximo capitulo);2G segundo, sugeria que 0 financiamenro dos projeros viesse de agencias estruturalmente muiro distintas daquelas com as quais os grupos costumam lidar - Prefeitura, Camara, politicos em geral- e das quais conseguem, eventualmente, alguns recursos, seguindo regras e procedimentos muiro diferentes daqueles adorados, por exemplo, pelas ONGs; finalmente, pretendia que a finalidade dos blocos passasse a ser a realiza~ao de "projeros sociais", e nao 0 que sempre fizeram, ou seja, "cultura negra", com destaque especial para 0 carnaval. Nesse senrido, e mais que compreensivel que Marinho tenha ficado profundamente irritado: "se 0 Dilazenze esquecer urn pouco 0 bloco, 0 carnaval, se a gente fizer isso, a gente vai acabar" (idem: 134-135). AI; posi~oes de Paulo, entretanto, ja haviam transparecido em ourras ocasioes. Nas conversas que antecederam a reuniao de avalia~o do encontro com Rubia Carvalho, ele deixara claro para varios dirigentes de blocos que considerava a ideia do Centro Mro-Culrural "equivocada", urn "desvio das questoes principais", que deveriam consistir na consolida~aodas entidades negras e, principalmente, nos "trabalhos sociais" que cada uma delas deveria desenvolver em suas comunidades. Nesse sentido, 0 Centro, que supostamente seria construido em area nobre da rona sui de Ilheus, seria algo muiro afastado, geografica e socialmente, dos moradores dos locais onde os blocos afro tinham suas sedes, servindo apenas para atender brancos e turisras. o problema, claro, e que era exatamente isso que os dirigentes negros desejavam: urn local em que pudessem apresentar seu trabalho para fora, obtendo, alem disso, dos brancos de classe media e dos turistas, alguma remu-

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nerac;ao par ele. Da mesma forma, "sair no carnaval" - e "sair bern" au "sair bonito" - e a pr6pria razao de ser de urn bloco afro, todas as demais arividades que possa desempenhar sendo concebidas como derivadas, paraieIas ou de apoio a essa voca~ao carnavalesca. Vma quadra pr6pria, porranto, onde se possa ensaiar, realizar fesras e desenvolver arividades (como, na verdade, apenas 0 Dilazenze disp6e hoje) e, sem sombra de duvida, urn dos maiores sonhos de todos os blocos afro de Ilheus. AMm disso, ninguem, exceto Paulo, considerava 0 CEAC algo mais do que urn simples espa~o, quase virrual, no qual os grupos podiam se aproximar, quando necessario, a fim de incrementar urn pouco seu baixissimo poder de barganha com a Prefeitura e, eventualmente, com os politicos e outras insti'incias estatais. Como observou Silva (I998: 93-94), a Prefeirura de Ilheus parece mesmo ser a maior interessada na existencia do ConseIho, uma vez que urn 6rgao supostamente unificado simplifica suas rela~6es com a multiplicidade constiruida peIos grupos negros da cidade em geral. E e a essa perspectiva 'de Estado' que Paulo aderia quando supunha que os blocos s6 deveriam agir em conjunto, desconhecendo, assim, completamente a rivalidade que marca as reIa~6es mutuas entre eIes e a consciencia e orgulho que cada urn possui de sua pr6pria singularidade. Se os blocos estavam, como pensava Paulo, "doentes peIo Estado" - isto e, a raiz de seus problemas seria uma dependencia total das politicas clienteIistas -, "por que nao se curar peIo Estado?", ou seja, por que nao aderir a uma candidatura de esquerda, "colocando-se bern na cena politica local e desfrutando de uma boa situa~ao na pr6xima gestao?" Em suma, por que nao se associar a Jabes e obter dele 0 necessario para a autonomia do movimento afro-cultural?

*** Os mal-entendidos entre Paulo e os dirigentes negros de Ilheus - e mesmo aqueles com os politicos locais - possuem, evidentemente, varias origens. Em primeiro lugar, sua no~ao de observa~ao parricipante era curiosa. Logo em seu primeiro encontro com Marinho, ao indagar se poderia comparecer, "como pesquisador", areuniao do CEAC que deveria discutir as eIei~6es, Paulo explicou simultaneamente: "Nos temos uma defini~iio do que chamamos de observa~iio participante que abre para uma participa~o ativa do pesquisador. Afinal, eu mora aqui na cidade, sinto-me concernido com a luta de voces, quero ajudar e, ao mesmo tempo, isso certamente permitira que eu fale com mais acerto e fa~ melhor 0 meu trabalho".

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AJem disso, desde

infcio, Paulo utilizou uma estrategia de investiganegro e a polftica local, levantando quest6es baseadas em informa~6es que havia obtido com outras pessoas do mesmo drculo. Mesmo sem explicitar os nomes de seus 'informantes', mas deixando clara a origem de suas informa~6es, Paulo acabou se envolvendo no que me foi descrito mais tarde como "fofocas". 27 Ora, se somarmos, a essa "observa~ao participante", em que a participa~ao parece nao ter Iimites, e a essa franqueza excessiva nas entrevistas e conversas, 0 fato de que, em tempo de polftica, tudo 0 que ocorte tende a adquirir conota~6es polfticas, e 0 pressuposto de que nao faz 0 menor sentido alguem se envolver tanto na polftica sem estar de um dos lados em confronto, compreendemos bem que as atirudes de Paulo s6 podiam ser interpretadas, do ponto de vista dos militantes negros, como uma forma de tentar influencialos politicamente. Como ele trabalhava, no Instituto Nossa Senhora da Piedade, ao lado de pessoas inequivocamente ligadas a campanha de Jabes Ribeiro, como nunca ocultou sua preferencia por essa candidatura, que considerava de esquerda, e como tanto se esfor~ou em marcar reuni6es com 0 grupo jabista, a maior parte dos envolvidos nao tinha duvida de que era nessa dire~ao que pretendia conduzir 0 movimento afro-cultural. 0 "jabismo" de Paulo foi, finalmente e de modo inequlvoco, confirmado quando, no encerramento da reuniao na casa de Cosme Araujo, ele retirou-se pronunciando a frase "com Roland nao da mesmo". Paradoxalmente, do ponto de vista daqueles que estavam efetivamente proximos a Jabes - Gurita, Rubia e seus assessores, que sabiam que Paulo nao fazia parte da campanha jabista -, a suspeita so poderia ser a de que ele pretendia levar 0 movimento negro a apoiar Roland Lavigne. No entanto, e de forma mais profunda, a dissonancia entre Paulo e os dirigentes dos blocos afro repousava sobre diferen~as essenciais no modo de conceber a polftica. Nas camadas mais pobres da popula~ao de Ilheus em geral, enos grupos negros em particular, pode-se entender por polftica coisas razoavelmente diferentes: as administra~6es publicas, municipal, estadual e federal fazem parte da polftica, e claro; 0 perlodo eleitoral, como em tantas outras regioes, e chamado "a polftica", e se diz que "a polftica" come~ou ou acabou (assinalando-se, assim, 0 infcio ou 0 fim das campanhas eleitorais), ou que "e ana de politica" (ou seja, e ano eleitoral). Todavia, polftica tambem, e talvez principalmente, e aquilo que os "polfticos" ftzem: acordos, arranjos, favores, pedidos, promessas, articula~6es, manipula~6es, acusa~oes, barganhas, e assim por diante. Essa concep~ao e algo circular, ja que a expressao 0

~ao que consistia basicamente em abordar pessoas ligadas ao movimento

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"politicos" designa, em geral, aqueles que fazem polltica. Essa circularidade, contudo, nao e inteiramente viciosa, uma vez que a c1assifica~ao de alguem como polirico e fundamentalmente contextual." A polltica nao e, pois, pensada como urn domlnio espedfico da vida social, visro que pode irromper em desfiles de blocos afro ou em eventos religiosos, por exemplo. Mas ela tampouco parece ser compreendida como urn aspecto ou dimensiio de toda rela~ao social, uma vez que, ao menos idealmenre, urn grande numero dessas rela~6es (0 parentesco, a religiao etc.) deveria estar livre da politica. Nesse sentido, a concep~o local de politica afasta-se tanto do substantivismo quanto do formalismo, entre os quais parecem se dividir as concep~6es antropologicas, e academicas em geral, acerca da polltica. Se a polemica entre formalistas e substantivistas constituia, ha algum tempo, urn capitulo quase obrigatorio da antropologia economica - dizendo respeiro a propria defini~ao do objero da subsdisciplina -, observou-se menos 0 faro de que essas duas maneiras de conceber 0 objeto reaparecem em quase rodos os campos da antropologia. Assim, se a economia podia ser definida como urn subsistema do sistema social, ou urn tipo espedfico de rela~ao social, tambem era possivel defender a hip6tese de que 0 economico constituiria, antes, urn aspecto de qualquer sistema ou rela~ao social. De forma aniloga, na chamada antropologia da religiao, 0 ritual pode ser definido tanto como uma forma espedfica de a~ao quanro como uma dimensao de qualquer a~ao humana. E, na antropologia politica, 0 politico pode ser concebido como uma esfera de rela~6es ou como urn aspecro de qualquer rela~ao social. 29 Os militantes negros de Ilheus, entre outros, tendem, ao contr:irio, a pensar a politica de acordo com uma especie de dinamismo, que a conceberia sobretudo como uma atividade, que tern certamente seu espa~o e seu tempo proprios, mas que, simultaneamente, parece ser dotada de urn carater invasivo, que faz com que, freqiientemente, ultrapasse os limites em que deveria ficar confinada (as elei~6es, 0 governo) e penetre rela~6es e dominios de que deveria estar excluida (0 parentesco, a arte, a religiao). Em outros termos, se a politica nao constitui nem urn dominio exclusivo, nem uma modalidade de rela~ao nitidamente distinta de outras, isso nao significa que nao haja dominios e rela~6es em que ela e tida como mais legitima, aceidvel ou, ao menos, roler:ivel (nos partidos, nas elei~6es, no governo etc.), e outras dimens6es em que, em graus variados, e quase inaceidvel (os blocos, os terreiros, as familias erc.). Por outro lado, se a polirica e uma atividade invasiva, mesmo aqueles que nao sao politicos podem, as vezes, pratica-la - e isso nao se aplica apenas no sentido de polltica partidaria ou oficial. Quando se suspeita de que alguem

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esd. tentando uma manobta no intetiot de um bloco afto ou de um terreito de candombJe visando ampliar sua esfera de influencia, conquistar uma posi~ao de maior prestigio ou obter algum tipo de vantagem material, pode-se acusd-lo de estar "fazendo politica". Do mesmo modo, "deixe de (fazer) polftica" (quer dizer, seja sincero, elato, direto) nao e uma expressao incomum em Ilheus. 30 Foi Moacir Palmeira quem chamou a aten~ao para 0 fato de que uma investiga~ao anttopologica da polftica em nossa propria sociedade deve, necessariamente, levar em conta a multiplicidade de concep~6es e significados de que se reveste 0 termo." Isso nao significa, e clato, que basta sustentar 0 carater polissemico de "politica" para que nossos ptoblemas se resolvam. Seria preciso compreender essa polissemia em um sentido mais sociologico ou sociopolitico e reconhecer que diferentes concep~6es de polftica estao sempre em coexistencia, interpenetrando-se e opondo-se em um espa~o social hierarquizado. Assim, os 'eleitores' em geral tendem a conceber a polftica como uma atividade transitoria (que come~a e termina a cada dois anos, por exemplo), transcendente (uma vez que e pensada como exterior e superior ao grupo de referencia) e poluente (ja que contamina as rela~6es sociais com manipula~6es e falta de sinceridade) - disruptiva, em suma. Por outto lado, quando nos aptoximamos do dominio instirucionalmente designado como politica, ou quando nos deparamos com agentes sociais que tendem a considerar sua a~ao como politica, deftontamo-nos com uma concep~ao mais substancialista e moralmente neutra, definindo a politica como uma esfera ou dominio idealmente permanente e continuo, imanente e positivamente valorado. Ora, 0 fato de a polftica, de acordo com a primeira concep~ao isolada, possuir idealmente uma temporalidade propria - uma vez que, na pratica, e clato que as rela~6es entre os polfticos e seus eleitores Sao permanentes, ainda que com graus de intensidade variados (ver, entre outros, Heredia 2002 e Gay 1990: 659) - remete ao que Palmeira e Heredia denominaram "tempo da polftica" .32 E preciso observar, contudo, que essa no~ao parece funcionar meIhor quando se limita a transcrever uma concep~ao nativa dos eleitores, a qual tende a enfatizar 0 carater temporario de seu envolvimento na atividade polftica - 0 que faz com que esta, de seu ponto de vista, praticamente se confunda com 0 ptocesso eleitoral. Nao se trata, pois, de uma realidade em si mesma - ja que, como se sabe, as transa~6es polfticas ocorrem 0 tempo todo -, nem de uma representa~ao nativa generica - uma vez que se desdobra, em fun~ao das diferentes concep~6es de polftica presentes em qualquer cenario

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concreto. Em outros termos, existem sempre muitos "tempos da poHtica" em

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conexao e/ou competi~ao: 0 dos "politicos" em getal; 0 dos candidatos, seus assessotes e cabos eleitotais; 0 dos eleitores comuns e 0 dos mais engajados (ver, por exemplo, Kuschnir 2000b: 59). Essas temporalidades parcialmente heterogeneas se interpenetram de forma fundamental mente assimetrica, pois uma coisa e aproveitar as elei~6es para obter, taticamente, digamos, pequenas vantagens ou empregos em geral transitorios; outra e desenvolver estrategias para 0 controle de posi~6es e cargos socialmente tidos como muito importantes. E nao ha duvida de que aquilo que e valido para 0 tempo nao 0 e menos para 0 espa~o (ver Barteira 1998: 13). Observemos, por fim, que a concep~ao de polftica com que Paulo tendia a operar e, sem duvida, a mesma empregada pelos grupos negros politicos de Ilheus, os quais, como vimos, acusam os blocos afro de serem despolitizados ou, mais diretamente, de so quererem "tocar tambor, dan~ar e conseguir dinheiro para 0 carnaval". E e tambem 0 sentido adotado pela maior parte dos politicos profissionais, tanto os que tentam "conscientizar" os cidadaos da importancia de uma participa~aopolitica constante e de urn voto engajado, quanto aqueles que so se aproximam dos votantes no periodo eleitoral, mas que passam todo seu tempo envolvidos com a atividade politica. De seu lado, os militantes do movimento afro-cultural tendem nao apenas a considerar esses politicos profissionais pessoas nas quais nao se pode depositar muita confians:a - uma vez que s6 estao interessados em "usafÂť as pessoas em beneficia

proprio -, como a devolver as acusa~6es dos grupos negros mais politizados dizendo que sao "politicos demais" (0 que significa, em grande parte, que estao comprometidos com partidos politicos) e nao possuem qualquer compromisso efetivo com a cultura negra, que fica, assim, reduzida a instrumento destinado a facilitar 0 "uso" da popula~ao negra para seus objetivos. 33

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A frase de Marinho, ao reencontrar-me em setembro de 1996, traia, pois, a incerteza e a ambigiiidade que haviam marcado suas rela~6es com Paulo. No fundo, ele sabia que "a pesquisa e pra valer" e fora ele que tentara dissipar as duvidas mais serias colocadas por outros dirigentes negros - principalmente Cesar, do Rastafiry; Gurita, do For~a Negra; e Dino Rocha, do proprio Dilazenze. Este ultimo, por exemplo, me diria explicitamente ter "uma pulga atras da orelha com Paulo", e so ter concordado em conceder uma entre-

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vista a ele em fun~ao de uma "ordem vinda de cima", ou seja, de Dona Ilza, que, por sua vez, dizia ajudat Paulo por minha causa. Marinho, certamente, desconfiava que Paulo podetia mesmo set um "jabista", que, dadas suas rela~6es com membras do grupo de Rubia Carvalho com quem trabalhava na Piedade, estava tentando atrair 0 movimento afro-cultural para a campanha de Jabes. E isso, e claro, porque obteria vantagens pessoais com esse apoio um emprego melhor, talvez -, vantagens que nao eram, em absolura, seguras no que diz respeito ao movimento negra. Com exce~ao de alguns grupos que nao assumitam posicionamento eleitotal explicito, 0 movimento dividiu-se: For~a Negra, Zimbabue, Zambi Axe, Danados do Reggae, Le6es do Reggae (todos de alguma fotma ligados a Gurita) e Miny Kongo (cujo presidente era muito proximo de uma candidata a veteadota do mesmo partido de Jabes) decidiram apoiar Jabes Ribeiro, que ja contava, lembremos, com 0 apoio do MNU e dos grupos negros mais politicos; Dilazenze, Rastafiry, D'Logun e Raizes Negras ficaram com Roland Lavigne. Observemos que esses quatro blocos tem suas sedes na Conquista, o que os tornava muito mais suscetfveis as abordagens de Cosme Araujo, que agia como representante de Roland. Ainda assim, esse "apoio eleitoral" e bem mais complicado do que parece. Na mesma conversa em que Marinho manifestou suas duvidas sobre a pesquisa, petguntei a ele e a seu itmao Ney quem eles acreditavam que ganharia as elei~6es. Sem titubear, respondetam: - "Jabes, sem duvida. - "Mas voces VaG votar em Roland, nao

e

- "Nos estamos fazendo urn trabalho profissional para ele. Voto eoutra coisa". Isso significava, descobri mais tarde, que parte da bateria do Dilazenze se vinha apresentando nos comfcios, caminhadas e outras atos eleitorais da campanha de Roland Lavigne, e que, por cada apresenta~ao, 0 bloco recebia R$ 300,00. Alem disso, receberia tambem uma quantia a parte destinada a constru~ao de sua quadra propria, conforme revelou Marinho: "Cada urn dos bloCDS que esta. com Roland apresentou urn projetinho;

0

mais

alto era 0 do Rastafiry, R$ 20.000,00, e 0 mais barato era 0 nosso, R$ 6.000,00. Roland decidiu, entao, pagar R$ 6.000,00 a cada entidade, independente do projeto" .

Mais tarde, alguem me contou que os R$ 6.000,00 deviam ser divididos entre 0 Dilazenze e 0 Rastafiry, 0 que deixaria cada bloco com R$ 3.000,00.

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Mais tarde ainda, descobri que os R$ 6.000,00 deviam ser divididos entre todas as entidades que apoiavam Roland (0 que significaria R$ 1.500,00 para cada uma). Finalmente, nunca consegui saber ao certo se 0 Dilazenze recebeu R$ 1.000,00 ou R$ 500,00 - dinheiro que, somado ao que se recebia por apresenta~ao,e, descontado 0 cache dos musicos, teria sido inteiramente usado na constru~ao da quadra. 34 Ja depois das e1ei~6es, tanto Marinho quanto Ney confirmaram que haviam votado em Roland. Ambos sustentaram que 0 haviam feito porque tinham "vergonha na cara" e nao poderiam votar em Jabes depois de passar toda a campanha trabalhando para 0 outro candidato. Tambem Cesar, do Rastafiry, que antes das e1ei~6es distinguia com cuidado entre "trabalhar", "fazer campanha", "pedir votos" e "votar", depois delas sustentava que todas essas atividades estavam ligadas e que ainda que se pudesse trabalhar para urn candidato e votar em outro, a participa~ao na campanha ja exigia 0 voto, desde que -nao se I:losse urn " sem-vergon ha" . Moacir Palmeira (1991: 119-121; 1992: 27; 1996: 45-46) estabeleceu uma importante distin~ao entre 0 voto enquanto "escolha" (de carater, em tese, individual, dependendo, portanto, da "e1abora~ao de criterios previos") eo voto enquanto "adesao" (coletivo e dependente de certas lealdades assumidas por meio de "compromissos"). Creio que a distin~ao tern, sobretudo, urn valor idealtipico. Por urn lado, como adverte Palmeira, porque 0 "votoadesao" nao sup6e, absolutamente, a fatalidade de algumas "Iealdades primordiais", ja que cada urn esta envolvido em multiplas redes de lealdades e obriga~6es, podendo invod-Ias alternativamente, 0 que faz com que as "ades6es" sempre impliquem "escolhas" e confere ao sistema uma grande flexibilidade 35 • Por outro, porque e claro que 0 "voto-escolha" nao sup6e a existencia de urn e1eitor inteiramente livre e independente (0 que contrariaria qualquer analise verdadeiramente sociologica ou antropologica), suas "escolhas" envolvendo sempre "ades6es" previas. Assim, essas duas modalidades correspondem mais a imagens do voto do que a tipos empiricamente existentes, e entre elas escalona-se toda a variedade de processos de decisao e1eitoral que a observa~ao emografica e capaz de atingir (e as quais retornaremos). Essas modalidades parecem relacionadas, ademais, a diferentes formas de avaliar a politica. Uma, de carater, digamos, 'dedutivo', tende a partir de grandes quest6es e valores transcendentes para chegar ate, por exemplo, urn voto para vereador; a outra, 'indutiva', parece tomar como ponto de partida as experiencias mais imediatas - experiencias que, como observou Herzfeld (1985: 260), tendem a gerar "pouca fe no processo democratico em geral"-,

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procedendo, entao, par alargamentos progressivos de seu campo de apreciasooes. E, como pode rapidamente ser comprovado par meio do contraste entre as grandes obras da ciencia politica e a leitura das sesooes de politica de qualquer jamal, a democracia pode ser abordada tanto pela via de seus registros macroscopicos (seus grandes ideais, a liberdade, a igualdade, a representasoao etc.), quanta em seu microfuncionamento (as negociasooes, as acordos, as barganhas). 3G Em agosto de 2000, logo que cheguei a Ilheus, Gilmar Rodrigues disseme que "infelizmente Jabes Ribeiro vai ganhar as eleisooes para prefeito, porque tem a maquina e a dinheiro da Prefeitura nas maos. E somas nos que pagamos". Descobri, pouco depois, que Gurita prometera a Gilmat, desempregado hi muito tempo, a direito de explorar um bar, situado em uma quadra poliesportiva da Prefeitura, na Conquista; mais tarde, disse a ele que a prefeito ordenara que a bar Fosse cedido a Cesar, do Rastafiry. Duas semanas mais tarde, dei-me conta de que a resistencia de Gilmar ao nome de Jabes e, em parte, ao de Gurita havia diminuido bastante. Soube, entao, que a proprio prefeito havia dito a Marinho que era preciso atender a pedido de seu irmao, acenando com a possibilidade de este explorar a restaurante do Memorial. Dma semana depois, respondendo a um levantamento que eu havia solicitado a Marinho (e ao qual retomarei), Gilmar dizia que ja havia escolhido seus candidatos ("Jabes Ribeiro para prefeito da nossa cidade e Gurita como vereador") e que as havia escolhido porque eram "as melhores opsooes". Alem disso, declarou ter certeza de que Jabes venceria as eleisooes, em virtude da "qualidade do trabalho que vem desenvolvendo em Ilheus, que sempre desenvolveu it frente da Prefeitura". Nao creio, contudo, que se possa opar a adesao au a voto motivados par interesses particulares a algum tipo de consciencia superior, atenta para as interesses publicos au coletivos. Gilmar, par exemplo, apenas urilizava uma experiencia individual como modelo para valorar e dar sentido a questoes supostamente mais gerais. Assim, alguem que se comportava (au que ele acreditava se comportar) com ele como Gurira e Jabes nao podia ser boas pessoa para ninguem, muito menos para a cidade como um todo au para a povo em geraP7 Nesse sentido, a oposisoao entre "voto" (concebido como escolha au como adesao) e "trabalho" (as seevisoos pagos em atos de campanha) nao era tao absolura quanta todos haviam tentado me fazer crer - e como todos, invariavelmente, sustentam quando a questao e levantada. 38 Na verdade, "voto-escolha", "voto-adesao" e "trabalho" sao argumentos que funcionam como im-

portantes dispositivos retoricos nas estrategias discursivas que permitem que

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cada urn explique ou justifique sua decisao de voto. Assim, a alguem que me pede 0 voto em nome de alguma "lealdade", posso dizer que devo votar em outrem porque para ele "trabalhei" durante as elei~6es, ou que, sendo 0 voto assunto de "escolha individual", prefiro nao falar no assunto - ou vice-versa, e claro. Ecurioso, tambem, que 0 trabalho seja urn valor moral que funciona como uma especie de operador destinado a articular voto e dinheiro: a remunera~ao obtida por urn trabalho que visa obter votos de outrem acaba par tambern capturar os pr6prios votos por meio da ideia de "ter vergonha na cara". Em 1998, Marinho me diria que nao apenas todos sabiam que Jabes ganharia as elei~6es, como estavam cientes de que uma vit6ria de Roland seria urn desastre para 0 movimento afro-cultural. Entretanto, como todos os grupos negros ap6s 1993,0 Dilazenze atravessava uma fase muita delicada, e a constru~ao da quadra era essencial para a solu~ao de parte dos problemas do bloco. 0 dinheiro de Roland e sua derrota eleitoral teriam sido, assim, 0 que de melhor podia ter acontecido para 0 Dilazenze nas elei~6es de 1996. Todos frisavam, tambem, que 0 dinheiro nao fora apropriado individualmente, mas servira para a constru~ao de urn bern coletivo do grupo. Isso, aparentemente, confere legitimidade e mesmo dignidade a uma barganha eleitoral, ja que a negocia~ao de votos visando beneficios individuais e constantemente criticada - 0 que nao significa, e claro, que nao seja praticada. 0 voto em Roland, finalmente, aparecia quase como urn sacrificio - op~ao de alguns (Marinho e Ney, especificamente) derivada de urn sentimento de obriga~ao suscitado pelo fato de terem trabalhado em sua campanha em beneficio do grupo de que fazem parte. Por outro lado, em 1998, varios militantes negros sustentavam que, no final das contas, sabiam perfeitamente que, uma vez eleito, Jabes nao poderia ignora-los, pois nao apenas prometera uma politica cultural mais agressiva, como toda a sua trajet6ria em Ilheus 0 ligava it cultura e, conseqiientemente, ao movimento negro da cidade. De qualquer forma, essa imprecisao nas fronteiras que, supostamente, separam cabos eleitorais, "boqueiros", militantes pagos, militantes voluntarios e eleitores nao e, evidentemente, espedfica dos grupos afro de Ilheus. 39 o numero dos que desempenham, simultinea ou alternadamente, uma dessas fun~6es, ou todas elas, e muito significativo nas elei~6es municipais da cidade - e em toda parte, suponho. Uma semana antes das elei~6es, Ilheus estava repleta de pessoas de todas as idades que, sob urn sol fortissimo, vestiam camisetas e agitavam bandeiras de urn sem numero de candidatos a vereador e dos dois principais candidatos a prefeito. Cada uma recebia, dizia-se, R$ 5,00 por oito horas de trabalho, remunera~ao acrescida de urn "lanche", ser125


vido na hora do almo~o, que consistia, na maior parte dos casos, em um pao com manteiga ("sandufche") e um refresco artificial ("suco"). Um numero bem menor de pessoas era contratado, por R$ 50,00 por mes (alem do lanche nos dias de atividade), a fim de desempenharem diferentes fun~6es ao longo da campanha. Os dias de elei~6es, em especial as municipais, possuem assim, em Ilheus, um ar algo festivo. Muita gente nas rnas, bandeiras e camisetas de cores diferentes. Contudo, muita gente, tambem, que nao conseguiu um "rrabalho" (de boqueiro ou agitador de bandeira), ou que considera os R$ 5,00 e 0 lanche oferecidos para essas fun~6es "um absurdo para passar 0 dia inteiro debaixo do sol forte", prefere aproveitar 0 rransporte gratuiro que diversos candidaros oferecem para "passear e visitar a familia e amigos" em distriros mais distantes da sede (ou vice-versa). Se acreditarmos que, como se comenta, um "coordenador de boca de urna" - trabalho que, em geral, estendia-se ate a fiscaliza~ao da apura~ao, e que foi praticamente extinto com a introdu~ao do voro elerronico a partir de 1998 - recebe R$ 50,00, temos uma ideia da tabela de pre~os dos servi~os eleirorais em Ilheus. A pratica usual e que 0 pagamento seja feito metade na vespera ou no dia de vota~ao e a outra metade ap6s as elei~6es. Todos esrao de acordo que s6 ha alguma seguran~a no recebimento dos 50% posteriores a vota~ao quando 0 candidaro para 0 qual se rrabalha e eleito - e mesmo assim isso nem sempre ocorre. Por outro lado, caso 0 candidato nao se eleja, rodos esrao cerros de que a segunda parcela do pagamento jamais sera efetuada - ainda que isso as vezes aconte~a. Nem dos servi~os eleirorais e de alguns poucos lazeres proporcionados pelos candidaros em luta pelo voro, 0 dia das elei~6es em Ilheus nao parece apresentar nada de muiro especial, e e necessario, talvez, admitir que a observa~ao direta da vota~ao pouco acrescentou em rela~ao a etnografia do processo eleitoral que a preparou. Tomam-se bebidas alc06licas abertamente nos bares da cidade - apesar da "lei seca" e sempre com a observa~ao de que "no Brasil as leis sao mesmo feitas para serem quebradas". Conversa-se muito e comentam-se suposros faros ligados a vota~ao, como que este ou aquele candidaro estaria, ou teria sido visro nos dias imediatamente anteriores, em tal ou qual local da cidade comprando voros abertamente, em geral par R$ 5,00 ou R$ 10,00, pagos mediante a apresenta~ao do titulo eleiroral, cujos dados sao minuciosamente anotados. Comentam-se, tambem, os aspecros tidos como mais pirorescos das campanhas e da vota~ao em particular.'o Ri-se das dificuldades que algumas pessoas - em geral mais velhas ou apenas semi-alfabetizadas, es-

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pecialmente ap6s a ado~ao do voto eletronico - teriam enfrentado no momento do voto. Alguns apostam nos resultados eleitorais, em quem serao os vencedores ou em quantos votos tal ou qual candidato tera. Enfim, vai-se a praia e aproveita-se 0 feriado. Entre os membros da familia Rodrigues, do Tombency e do Dilazenze, foram poucos os que, em 1996, aceitaram trabalhar na boca de uma, alegando que a remunera~ao era baixa demais e que, por isso, preferiam almo~ar em familia, beber cerveja e conversar. Foi apenas nesse momento que consegui descobrir a posi~ao eleitoral da maior parte das pessoas. Uma irma de Marinho, que uma semana antes me havia dito nao saber ainda em quem votaria, confirmou ser uma "jabista fanatica" e votar sempre em Jabes. Diante do meu desconcerto, Dona lIza explicou, rindo, que, como nao conheciam minhas pr6prias preferencias eleitorais, preferiam nao explicitar as suas, visando evitar qualquer tipo de discussao e confronto. 41 Ela mesma disse que tambem votara em Jabes, como sempre, alias, e que, ap6s a vit6ria que considerava certa, ela se juntaria as comemora~6es - de fato, alguns dias mais tarde, ela me contaria ter participado da "carreata da vit6ria": "agora eu fui!" Alem disso, esclareceu que, em toda a familia, apenas Marinho e Ney haviam realmente optado pelo voto em Roland Lavigne, chegando mesmo a pedir a ela para retirar urn poster de Jabes que ficava atras da porta da sala, sob 0 argumento de que isso poderia prejudicar os acordos politicos com seu candidato. 0 maximo que ela consentiu foi que acrescentassem urn poster de Roland ao lado do outro (0 que contribuiu para que eu nao adivinhasse em quem se concentrava a maior parte das inten~6es de voto). Dona lIza explicou, ainda, que, no caso dos candidatos a vereador, eles tiveram que "dividir 0 voto". Como havia muita gente conhecida disputando as elei~6es e os votos dos Rodrigues e do Tombency - gente que, acrescentou, os havia ajudado em diferentes ocasi6es -, os membros da familia e do terreiro haviam votado em candidatos muito diferentes. Nao se tratava, portanto, de uma divisao de votos organizada, comandada pela matriarca da famllia e mae-de-santo do terreiro, e a "divisao" parecia sugerir mais uma justificativa para 0 fato de a familia, 0 terreiro e 0 bloco nao terem votado unidos. Mas isso, e claro, nao modifica em nada 0 resultado do processo: a aparente impossibilidade de concentrar 0 voto em algum candidato que de fato 'representasse', se nao as tres instancias, ao menos uma delas. o Dilazenze, por exemplo, acabara decidindo apoiar Dino Rocha, diretor social do bloco, funcionario da Prefeitura, que apenas urn mes antes das

127


elei~6es

resolvera levar a serio sua candidarura - ja que a lan~ara, confessadamenre, apenas para usufruir da licen~a a que rem direiro os funcionarios publicos que se candidaram a cargos elerivos - e pedira 0 apoio de seu bloco. Duas semanas depois, 0 Dilazenze - que anres renrara um acordo com um candidaro forte e fora cortejado abertamenre por Gurita - decidiu apoia-Io. Dino, candidaro pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN), obteve 41 voros, ficando muiro longe de ser eleiro, de conseguir uma suplencia ou mesmo de poder usar seu conringenre de votos para obter algum tipo de vanragem. Nem dele e de Gurita (que, pelo PTdoB, obtivera 354 voros, numero suficienre para garanrir um cargo ap6s a posse do novo prefeiro), havia ao menos mais dois candidaros que manrinham alguma rela~ao com 0 movimento negro de Ilheus. Joao Cesar, pelo PDT, obteve 92 votos, e Adalberto Souza Galvao (Bebero), que tenrava a reelei~ao pelo PCdoB, conseguiu 397. Apenas para se ter uma ideia, e desprezando a questao do total de voros nas legendas, em 19960 candidato a vereador eleiro mais votado em Ilheus obteve 1.150 voros, e 0 eleiro menos votado, 452 voros. Isso significa que, se somassemos os voros dos quatro candidaros ligados de alguma forma ao movimenro negro em senrido amplo, chegadamos a quase novecenros voros, ou seja, a uma quanridade que apenas cinco dos 19 vereadores eleiros lograram obterY Eclaro, tambem, que esse tipo de conrabilidade e, no maximo, um exercicio discursivo. A parte 0 faro de serem rodos negros, muiro pouca coisa aproximava os candidatos: trajet6rias, projeros, ideologias, vinculos partidarios e politicos em geral, rudo era muiro diferenre. 0 faro de que rodos concorriam por partidos diferenres ja significava que, em lugar de se somarem, os voros a eles atribuidos efetivamenre se dilufam e serviam para engrossar a vota~ao de outros candidaros. E nem mesmo a liga~ao com 0 movimenro negro poderia ser considerada uma idenridade, uma vez que era absolutamenre heterogenea: Dino, de fato, fazia parte de uma das mais importantes enridades do movimenro afro-cuirural; Gurita havia se aproximado recentemenre desse mesmo movimenro; Joao Cesar tinha conraro com pessoas do movimenro afroculrural, mas estava mais proximo do MNU; Bebero era um militante do PCdoB, mais preocupado com assentamenros rurais e sindicatos urbanos do que com quest6es "raciais" au "culturais".

Enrre os eleirores comuns, os dias que se seguem as elei~6es tampouco parecem muito dignos de nota. Ja entre os politicos, e aqueles com eles diretamenre envolvidos, sao dias, emeses, de inrensa atividade. Os eleitos preparam sua posse; os nao eleitos analisam 0 que ocorreu e tentam preservar au obter algum espa~o politico fora dos cargos eletivos; aqueles cuja rela~ao com 128


a politica e mais 'profissionalizado' (assessores, tecnicos etc.) mobilizam-se por cargos, postos e fun~6es. Como dizia urn desses profissionais, para eles (e para os politicos, e claro), "a polfrica nao termina com as elei~6es", bern ao contrario, ela intensifica-se com seu final, 0 que revela com clareza, mais uma vez, que aquilo que tende a ser pensado pelos eleitores comuns como uma atividade temporaria e saronal parece absolutamente permanente e contfnuo para os profissionais. Alem disso, e claro que muitos festejam as vitorias de seus candidatos, vitorias que, em muitos casos, significam a possibilidade de obter ou manter empregos e vantagens. Em uma dessas comemora~6es, em uma casa muito proxima do Tombency e praticamente defronte acasa de Cosme Araujo, uma enorme briga envolvendo moradores dos Carilos, de um lado, e "0 pessoal de Cosme", de outro, teve lugar no dia 5 de ourubto. A proprietaria da casa, funcionaria publica municipal que, alem de "jabisto", via na vitoria de seu candidato uma oporrunidade de urn cargo melhor na Secretaria em que trabalhava, comemorava ruidosamente a elei~ao de Jabes, quando empregados de Cosme come~aram a celebrar, mais ruidosamente ainda, a reelei~ao do patrao como vereador. 0 que parecia ser apenas urn conflito encenado evoluiu para urn confronto ffsico do qual participaram algumas dezenas de pessoas, homens, mulheres e ate crian~as, e que so foi interrompido com a chegada da policia depois que alguem empunhou, sem disparar, uma arma de fogo. Parte dos combatentes foi levada para a delegacia, 0 que obrigou Cosme - que, na cidade, e, por vezes, acusado de ser "advogado de porta de cadeio" ou "defensor de vagabundos" - a dirigir-se para 0 local a fim de liberar alguns de seus empregados. Como seu prestfgio junto a policia nao e muito elevado "nos prendemos os vagabundos e ele solta", dizem alguns policiais -, 0 delegada acabou culpando os adeptos de Cosme por todo 0 conflito. Culpabiliza~ao de efeito estritamente moral, uma vez que foram todos liberados. Antes da libera~ao, contudo, alguem escutou Cosme dizer que houvera muita trai~ao nas elei~6es e que iria "dar urn jeito nos trafras". Na Conquista, contava-se que, desde que Cosme se mudara para os Carilos, cerca de urn ano antes, os conflitos com ele e seu pessoal haviam sido constantes. Ele tentara se aproximar do Dilazenze e, depois, da Associa~ao de Moradores; tendo fracassado, esfor~ara-se, tambem sem sucesso, por impedir os ensaios do bloco, alegando que eram barulhentos demais. No carnaval de 1996, como vimos, oferecera ao Dilazenze urn jogo de camisetas para vestir a bateria do grupo, permitindo assim que ele safsse no carnaval, ainda que de forma modesta e em nada compatfvel com 0 que se espera de um bloco

129


f

afro. A referencia 11 rrai<;ao, pensava Marinho, esraria relacionada justamente a esse episodio, uma vez que Cosme pretendia que 0 "patrodnio" no carnaval implicasse automaticamente apoio eleitoral. "Mas nao ha nada disso", coneluia Marinho, "porque nos desfilamos com as camisetas com 0 nome dele estampado e essa propaganda ja pagou 0 patrodnio". Esse episodio poderia tambem servir de alerta, creio, contra as tenta<;oes do 'voto emico'. Quaisquer que sejam os efeitos que 0 sentimento de pertencimento emico possa produzir tanto nos candidatos quanto nos eleitores, eles dificilmente podem ser captados de fora. 43 Marinho sustentava que Cosme e negro, elogiava-o por ter "sangue quente, uma pessoa que chega e briga, que consegue realmente as coisas, que promete e cumpre", mas frisava que ele nao possuia "muita identifica<;ao com 0 movimento negro de Ilheus", ainda que tivesse "assumido todos os compromissos que firmou". E, desde antes das elei<;oes, Marinho explicava que "[...J nos desenvolvemos urn trabalho de tres meses com Cosme Araujo para 0 carnaval; sentamos com ele, conversamos, e ficou bern claro que seria urn patrodnio, ele seria urn patroeinador como Dutro qualquer, daria 0 que a genre necessitasse para fazer 0 carnaval e em troca n6s divulgarÂŁamos 0 nome dele: acabou 0 carnaval, acabou 0 compromisso. 0 apoio do Dilazenze acampanha dele, os compromissos maiores e 0 envolvimento com essa campanha, tudo isso e Dutra quesrao. 0 Dilazenze naD se definiu ate agora por urn candidato porgue nos nao encontramos nenhum que tivesse uma identiclade com 0 movimento negro, que Fosse realmente brigar pelas nossas causas, pelos nossos

rrabalhos durante 0 ano, nosso trabalho social, cultural. Porque rem muiro politico que da urn dinheiro e que depois das elei<;6es nao assume 0 compromisso: voce procura a pessoa para desenvolver urn trabalho e e aquela dif1culdade tocla. Por isso

0

Dilazenze naa se definiu, tern muitos candidatos at. En-

rendeu?" ,44

NOTAS

I

Ver tambem Goldman (l985a; 1985b; 1987; 1990; 2003) e Contins e Goldman (1984).

, Ver tambern Goldman (1992; 1998). 3

Ver Goldman eSant'Anna (1995), Goldman e Palmeira (1996) e Goldman e Silva (1998).

4

Ver Goldman (2000; 2001a; 2001b).

5 Talvez essa seja mais uma ocasiao nao apenas para agradecer a Wagner pelo que aprendi com ele e por sua amizacle, mas tambem para homenagear a memoria de Nivaldo Pereira

L

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d


BastDs, Camuluaji, paj-dc-santo do I1e de Obaluaie. em Tribob6, precocemente falecido, que ofereceu meu primeiro acesso ao universo do candomble. cleva naa apenas agradecer a Mario Gusmao e Valdir Silva, seu sobrinho e magnifico bailarino afro, por terem me levaclo ao Tomhency, como prestar homenagem a memoria de Mario, a quem naa sou capaz de descrever melhor do que com as palavras de Jefferson Bace-

6 Aqui

Iar (2003): "urn principe negro". Ver, rambem, Bacdar (2001) e Silva (2004: 188-196). "Barracao" e0 nome que se cia ao salao dos terreiros de candom~le onde sao realizaclos as festas publicas e alguns outros rituais. No caso do Tombency, funciona, tam hem, como espa<,;:0 para algumas atividades do Dilazenze.

7

8

Ver Apendice VllI.

9

Parte dessas informas:6es pode sec encontrada nos volumes que condensam os dois Encon-

,ros de Na<;6es de Candomble, realizados em Salvador em 1981 (CEAG 1984) e em 1995 (CEAG 1997). 10

,

A

Ver Apendice IV.

II 0 jogo de buzios e uma tecnica ritual divinat6ria em que as combina<;6es de posi<;6es entre as 16 ou 32 conchas jogadas pela mae-de-samo permitem desvendar propriedades misticas do presente e vislumbrar 0 futuro.

12

0 barracao de urn terreiro de candomble e uma imagem do cosmos: 0 chao representa este mundo em que vivemos (chamado nos terreiros ketu de aiye) eo teto 0 Outro mundo, dos orixas e dos mortos (0 orum). 0 desabamento do teto significa, conseqlientemente, urn colapso c6smico, 0 apocalipse. Desde a primeira vez que ouvi essa hist6ria - que Dona Ilza repetiria inumeras vezes ao longo dos anos -, pensei que poderia ser 0 argumento de urn filme. Mas confesso que 0 imaginei como uma hist6ria tragica de amor, em que a recusa em receber 0 cargo para nao perder 0 amado engendraria a catastfofe com a qual 0 filme deveria terminar. nEe curioso que a lembran<;a de uma conversa sobre politica com pessoas do terreiro no carnaval de 1983, nas barracas que naqueIa epoca eram montadas na Avenida Soares Lopes, s6 tenha voltado ao meu espirito quando decidi deslocar a pesquisa para Ilheus: Gilmar dizia-me que 0 partido politico por ele preferido era certamente 0 PT (entao recem-criado), mas que, como nao tinha qualquer chance eleitoral, nas ultimas elei<;:6es havia votado e feito campanha para Jabes (que. nas elei<;:6es de 1982, obtivera seu primeiro mandato, que devia durar seis anos). Alem disso, 0 primeiro terreiro de candomble que procurei em Ilheus, 0 Terreiro de Ode, era comandado por urn pai-de-santo. Pedro Farias, que tinha sido chefe de gabinete de diversos prefeitos. 14

Ver Apendice VIII.

]abes, alem disso, era apoiado "informalmente" peIo PPS, PCdoB e PMN, que se haviam se reunido na Alian<;a Democratica Popular, lan<;:ando como candidato urn nome sem quaisquer chances eleitorais, Jose Cosme Santos. 15

16 Acostumados a receber muitas pessoas interessadas em suas atividades (de antrop6logos a estudantes do ensino fundamental) e a desenvolver suas pr6prias investiga<;:6es sobre rradi<;oes culturais que sirvam de base para sua musica e danc;a, os grupos afro-culrurais de Ilheus

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I

usarn a palavra "pesquisador" com muita freqiil~nciae desenvoltura. Da mesma forma, acos~ tumados ao envolvimenro com poHticos de todos as matizes, 0 terma "assessor" apresenta, entre des, uma gama de utilizac;:ao basrante abrangenre. 17 AMm do mais, nao parece haver nenhuma razao plausivel para OPO! 0 cilculo a sinceridade. & manipulac;:6es estrategicas podem depender de valores conflitantes, por vezes em contradic;:ao, mas isso nao se op6e aos comprometimentos marais nero exclui as mesmos. Mais do que isso, qualquer estrategia parece exigir invesrimentos afetivos dificilmente conciliaveis com a pura mentira manipularoria. Ver Herzfeld (1982: 655-656; 1991: XII; 1992b: 78: 1996: 146). 18 Outras dimens6es igualmente conotadas pelo marcador etnico "negro" sao a cultura, a habi'ndade para a musica e a dan~ e a disposil!ao para a Festa - 0 que, mais tarde, viria a ser fatal para as relal!oes de Paulo com 0 movimento negro. Voltarei a esse ponto no quarto capItulo; por ora, basta observar que Paulo comel!0u a reuniao como branco e chegou a seu final como negro.

19 A classifical!ao de urn bloco como "grande", evidentemente, pode ser objeto de disputa, No entanto, ha certo consenso em torno do fato de que Dilazenze, Miny Kongo e Rastafiry ocupam essa posil!ao, consenso e1aborado, creio, a partir do tempo de existencia desses blo~ cos, bern como do numero de pessoas que sao capazes de fazer desfilar no carnaval. Por isso, a ironia de Almeida (2000: 141), chamando-os, au a seus lideres, de "os Tres Magnificos", parece alga excessiva.

Esse argumento (em geral formulado como "estava muito em cima da hora") talvez seja 0 mais recorrente entre aqueles utilizados pelo movimento afro-cultural de Ilheus para justificar a dificuldade em tanpr uma candidatura pr6pria a vereador au mesmo apoiar, em conjunto, urn nome para a Camara ou para a Prefeitura.

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Paulo jamais entregou essa carta aos membros do movimento afro-cultural- nem a mim, Nunca a Ii, mas sei que, alem de reivindicar 0 apoio da Prefeitura para a construl!ao de sedes para cada urn dos blocDS afro e para 0 desenvolvimemo de trabalhos sociais, pedia a partici~ pal!ao do CEAC na definil!ao das poHticas culturais do municipio e urn lugar no conselho de campanha de Jabes Ribeiro. Havia outros pontos, mas ninguem lembra quais sao. 21

Gerson e urn tecnico que se especializou em turismo, tendo trabalhado tanto no 6rgao da Prefeitura que cuida do assunto quanto na iniciativa privada. Possui boas re1al!oes com 0 movimento afro-cultural, tendo promovido e organizado, em diversas ocasi6es, eventos dos quais participaram os blocos e demais grupos negros de Ilheus (inclusive 0 Carnaval Cultural).

22

2J Herzfeld (1996: 6-8) denomina esse tipo de processo "simulacros de socialidade" e sugere, em oposil!ao a Baudrillard, por exemplo, que nao se trata de uma simples substituil!ao de relal!oes sociais reais por falsas. Tratar-se-ia na verdade, do seu ponto de vista, de uma projel!ao de experiencias sociais familiares sobre outras, mais afastadas e desconhecidas, engendrando "idiomas culturais que se tornam simulacros de re1al!6es sociais" e que sao amplamente utilizados pelo Estado em suas relal!oes com os indivfduos.

24 Da mesma forma, a manobra de afastamenro das candidaturas a prefeito de Gumercinda Tavares e Rubia Carvalho - efetuada, em tese, em funl!aa de interesses regionais e nacionais - transfarmau radical mente nao apenas as eleil!oes de 1996 em Ilheus como urn toda, mas a papel nelas desempenhado pelos grupos negros e a relal!aO desses grupos entre si.

l_ _

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j


•

25 "Melhor esquecer esse neg6cio de carnaval, de bleeD, de banda, porque sao as projetos sociais que sao importances", disse Paulo a Marinho (Silva 1998: 135). Como adverti no Pr61ogo, e ao contrario cia opc;ao seguida por Silva, restaurei as names verdadeiros dos protagonistas.

Como disse Marinho a Paulo: "[... J sera que ilaG seria bern mais fkit trabalhar individualmente em cada entidade com seus projetos do que fazer esse grande projeto, calocar coisas que a entidade nunca pensou em fazer? [...] Eu ilaO sei ate code 0 pessoal do Dilazenze vai aceitar abrir mao de uma coisa que pode sec realizada peIa Dilazenze; abrir mao disso para uma coisa que vai abranger outras enridades, outras comunidades. 0 projeto cia genre vai abranger a nossa comunidade" (Silva 1998: 129). 26

Por exemplo, Paulo ouviu de urn candidato nao ligado ao movimento negro que, em 1992, alguns IIderes desse movimento tedam recebido dinheiro para apoiar Antonio Olimpio; contou a hist6ria a Marinho, que, sendo desafeto desses mesmos IIderes, repetiu-a para urn deles como provocac;:ao, confirmando que a escutara de Paulo, junto a quem 0 ofendido acabou tentando tirar satisfac;:6es.

27

Borges (2004: 35) tambem assinala essa multiplicidade dos sentidos da polftica: "essa forma de nomear como 'politica' aquilo que 0 outro faz e muito intrigante".

28

29 0 que corresponde, grosso modo, as ja evocadas posi<;6es que Balandier (1969: 25-26) denominava, respectivamente, "maximalistas" (que, no limite, assimilam 0 social e 0 politico) e "minimalistas" (que se contentam em delimitar uma esfera para a politica). Sobre este ponco, ver, rambom, Rodrigues (1992: 42-43). 30 Observe-se que, ap6s definir polftica como "arte de bern governar os povos" ou como "posic;:ao ideo16gica a respeito dos fins do Estado", 0 decimo, e Ultimo, sentido de poHtica fornecido pelo Aurelio Eletronico ejustamente 0 de "astucia, ardil, artiHcio, esperteza". Da mesrna forma, urn "indivfduo politico" ealguem "astuto, esperto", e "estar politico com" signifJ.ca "estar zangado, de relac;:6es cortadas com (alguem)".

31

Ver, enrre ourros rexros, Palmeira (1991: 1992: 1998).

"Ver Palmeira (1991: 118: 1992: 27-30: 1996: 42-47), Palmeira e Heredia (1993: 73-75, 85-86: 1995: 34-36) e Heredia (1996: 57,70: 2002: 17,36). Observe-se que Palmeira (1996: 54, nota 4) assinala que, desde 1974, Maria Auxiliadora Ferraz de Sa teria intuido esse carater singular da temporalidade poHtica. Da mesma forma, em urn texto sobre as eleic;:6es municipais de 1996 em Itabuna, 0 soci610go Agenor Gasparetto (1996), da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) - aparentemente sem conhecer 0 conceito de "tempo da poHtica" -, estabelecia uma distin¢o entre "tempo normal" e "tempo poHtico-eleitoral", muito seme1hante aquela proposta por Palmeira e Heredia. Isso indica apenas. crdo, que se trata de urn dado empirico que apenas a falta de atenc;:ao as representac;:6es nativas fez ficar oculto durante tanto tempo. 33 Para urn desenvolvimento mais aprofundado desse ponto ver Silva (2004, em especial a conclusao).

Como escreve Silva (1998: 87-88), ao lange do ano de 1997, "urn dos assuntos principais" no Dilazenze era "a reforma da quadra". 0 dinheiro recebido de Roland servira para parte do trabalho, mas ainda eram necessirias varias obras complementares. Para isso, sacos de cimento

34

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foram doados pela "principalloja mac;:onica de Ilheus", que assim retribuia "urn show que 0 Dilazenze havia realizado para uma Festa beneficente"; "aterro e pedras foram doados pda Prefeitura por meio de urn acordo com Adriana, esposa do prefeito", que aceitou pagar uma apresentac;:ao do grupo para a Prefeitura no inicio do ana na forma de "cinco passagens rodoviirias Ilheus-Salvador-Ilheus e uma ajuda na reforma da quadra". As telhas de amianto que deveriam cobrir 0 palco foram oferecidas, e jamais entregues, pelo vereador Gildo Pinto, por meio de urn dirigente de bloco que era seu "assessor" na Camara - que, alem disso, colocou a disposic;:ao do Dilazenze algumas outras "ajudas". Ao saber da aproximac;:ao, Gurita prontiflcou-se a oferecer as telhas e 0 resto do auxilio, cumprindo apenas a primeira parre cia promessa. 35 Herzfeld (1985: 105-106, 117) fornece uma serie de exemplos desse tipo de operac;iio em Creta; Villela e Marques (2002: 73-74, 83-84) observaram 0 mesmo fenomeno no serrao de Pernambuco, sublinhando a existencia de retoricas de "legitimac;:ao da instabilidade das lealdades".

Nesse ultimo caso, tudo parece passar-se como na descric;:ao das operac;:6es capitalistas feita por Deleuze e Guattari (1972: 314): "e com a coisa, 0 capitalismo, que 0 inconÂŁessavel comec;:a: nao ha uma operac;:ao economica ou financeira que, traduzida em termos de c6digo por hip6tese, nao Faria explodir seu carMer inconfessavel".

36

Como observa Magalhaes (1998: Ill), as experiencias e desconfianc;:as em relac;:ao a urn politico qualquer tendem a ser imediatamente generalizadas para todos os politicos.

37

Eclaro que essa oposic;:ao, entre "voro" e "trabalho", e extremamente facilitada em func;:ao do faro de que os servic;:os eleirorais parecem urn caso privilegiado do trabalho alienado: executa-se uma func;:ao espedfica (acenar bandeiras, por exemplo) sem a menor necessidade de conceber 0 processo global no qual se esra envolvido.

38

Borges (2004: 29) e Kuschnir (2000b: 78-79) observaram - a primeira, na periferia de Brasilia; a segunda, em urn suburbio do Rio de Janeiro - como pessoas que procuram os politicos a fim de pedirem alga podem transformar-se, progressivamente, em simpatizantes, militantes, voluntarios. funcionarios e. as vezes, tambem em politicos.

39

40 Eles, certamente, nao faltam em Ilheus. Candidaros chamados Alan Delon, Calc;:olinha ou Ze do Caixao, e slogans como "Com Jabes e Ze Dentista, Ilheus voltad a sorrir", "Urn voto bern estudado. professor Felipe", "Com todo 0 gas, Aracildo da Brasgas" ou "Urn homem de visao" (de urn candidato deficiente visual) constituem tema de conversae motivo para divertimento e risos.

Se, em alguns contextos, como revelou Palmeira (1991: 125; 1996: 51), a ostentac;:ao aberta da preferencia deitoral pode ser uma forma de evitar 0 conflito (na medida em que aqueles que ostentam preferencias opostas sabem que nao devem abordar 0 assunto entre des), em outros, como em Ilheus. e a nao-declara9io de voto que pode desempenhar essa func;ao. De toda forma, e essa sabedoria popular que parece. muitas vezes, ser confundida com falta de clareza ou de interesse na politica. 41

Em 1996, 0 Municipio de Ilheus possula uma populac;ao de cerca de 240 mil habitames (quase 85% da populac;ao tendo declarado ao Censo Demografico de 1991 ser "parda" ou "preta"), dos quais 72% viviam na regiao urbana. 0 mimero de deitores aptos a votar era de

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quase 99 mil pessoas, das quais pouco mais de 70 mil efetivamente votaram (configurando uma taxa de abstens;ao de 28,61 %). 0 quociente deitoral partidario para a eleis;ao foi de 3.549 votos. Jabes Ribeito (a frente da coliga,ao A1ian,a Popular, farmada par PSDB, PT, PMDB, PSB e PSD) foi eleito prefeito da cidade, com 41.065 votos (au 57,91 %); e Roland Lavigne (da coliga,ao Para Quem Ama llheus, farmada par PFL e PPB) obteve 19.529 votos (27,54%). Everaldo Valadares, do PDT, teve 2.262 votos (3,19%); Jedida Santos, da coliga,ao A Esperan,a Resiste (PRP e PTdoB), 519 votos (0,73%); Jose Cosme Santos, da coliga,ao A1ian,a Democratica Popular (PPS, PMN e PCdoB), 148 votos (0,21 %). Houve, ainda, 2.181 votos em branco (3,08%) e 5.204 votos nulos (7,34%). Ao indagar se "a ras;a seria urn dos fatores que explicariam 0 voto dos eleitores", Monica Castro (1993: 469) acaba par conduir que sim. Ela adverte, contudo, que suas conclus6es nao sao generalizaveis para todo a Brasil (Castro 1993: 487) e que a influencia da ras;a no comporramento deitoral nao significa necessariamente VOto nos de mesma ras;a (idem: 484); que, aMm disso, "pertencer a urn grupo racial pode, por exemplo, intensificar, em alguns casas, ou impedir, em outros, a manifestas;ao de tendencias dadas pela posis;ao social" (idem: 486), a que significa que "pertencer aos grupos de cor se relaciona com 0 radicalismo politico, mas implica tambem maior alienas;ao em relas;ao ao processo eleitoral" (idem: 485), conduzindo os votos ranto para a esquerda quanto para liderans;as carismaticas (idem: 484~485). Depois disso, s6 resta repetir, com Garrigou e Lacroix (1987: 328), que as quantidades agregadas obtidas em pesquisas quantitativas s6 podem ter alguma utilidade se forem bern elaboradas - antes e depois de sua obtens;ao (ver, tambem, Korn 1995). 43

44 Dez dias mais tarde, quando deixei I1heus, nada parecia lembrar as deis;6es, com exces;ao dos outdoors de polfticos sendo substituidos por propaganda com urn. Alem disso, e ja no caminho do aeroporto, apenas urn bebado comemorava ainda 0 resultado deitoral, gritando e repetindo incessantemente, sem deixar de bater palmas por urn instante sequer: "Jabes Ribeiro ganhou as eleis;6es, Jabes Ribeiro e 0 prefeito da nossa I1heus, viva Jabes Ribeiro, eu sou Jabes Ribeiro". Nunca entendi muito bern par que, mas esse deliria etilico-politico e a ultima lembrans;a que guardei das eleis;6es municipais de 1996 em Ilheus.

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CAPfTULO

1992:

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CENTRO AFRO-CULTURAL

A cria~ao do Memorial da Culrura Negra de IIheus e a nomea~ao de Marinho Rodrigues como seu primeiro adminisrrador, descriras no primeiro capitulo, esrao estreiramente ligadas a roda a hisr6ria do movimenro negro de IIheus, assim como, e principalmente, as sempre complexas rela~6es que se esrabelecem entre esse movimento e 0 poder publico local, como foi evocado no capitulo anterior. Essa hist6ria do movimento negro de IIheus poderia, talvez, ser resumida - ja que e apenas disso que se trata aqui, uma descri~ao e uma analise detalhadas podendo ser enconrradas em Silva (1998 e 2004) - em urn esquema muito semelhanre ao adotado por Michel Agier (1992: 76) para dar conra do que ocorre em Salvador. Segundo esse esquema, 0 "mundo negro" dessa cidade poderia ser representado de acordo com urn modelo geneal6gico, que funcionaria por segmenta~ao e que teria na pureza seu valor central (idem: 76-77): "cada bloco nasce de urn outto", e "0 IleAiye e [...] reconhecido como o ancestral de todos os blocos" (idem: 61). Isso porque, fundado em 1974, 0 lie, como e conhecido, e visto como tendo dado origem, por fiss6es sucessivas ou simuld.neas, aos principais blocos afro de Salvador: Olodum (1979), Male Debale (1979), Ara Ketu (1980) e Muzenza (1981) - para ficarmos apenas nos mais conhecidos.! Por outro lado, Agier (idem: 73-74) observa que, junro aos processos de segmenra~ao, atuaria, tambem, uma "tendencia federalizante", que funcionaria no senrido de agrupar os blocos em conselhos e associa~6es. Principio que tambem teria gerado no plano nacional, por exemplo, 0 Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978 para funcionar como p610 unificador dos varios grupos negros existenres no pais (Valenre 1986: 29-30) ambi~ao aparentemente nao realizada (idem: 40-41). Eimportanre observar novamenre, conrudo, que a "tendencia federalizante" parece operar sobretudo quando os grupos tern que se relacionar com instiincias a eles exteriores, principalmente com 0 Estado. Por outro lado, quando se trata das rela~6es intergrupais, 0 principio de segmenra~ao parece operar com toda for~a, ainda que este ponro seja raramente enfatizado pelos analistas.

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*** Ora, 0 que e verdadeiro para Salvador nao parece ser menos para Ilheus. A genealogia de seus blocos afro organiza-se em romo de uma origem dupla. De urn lado, 0 Le-Gue DePa, fundado em 1981, deu origem ao Gangas (1986), que originou 0 Males (1992) eo Zambi Axe (1994); esre, por sua vez, deu origem ao Guerreiros de Zulu (2000). De outro lado, fundado em 1980, por urn membro do IleAiye (0 atar e bailarino negro Mario Gusmao), temos 0 Miny Kongo, do qual se originaram 0 Rastafiry (1982), 0 Axe Odara (1984),0 Zimbabue (1985), 0 Far~a Negra (1988) eo Le6es do Reggae (1997).0 Rastafiry originou 0 Raizes Negras (1990), que gerou 0 D'Logun (1992); 0 Axe Odara originou 0 Dilazenze (1986); 0 Zimbabue, 0 Danados do Reggae (1990). Observe-se, igualmente, que, de acordo com alguns militantes negros, as duas linhas geneal6gicas dos blocos afro de Ilheus correspondem dois ritmos, ou batidas, distintos: 0 ijexa, ligado ao Le-Gue DePa, e mais caracteristico dos afoxes, e 0 samba-reggae, do Miny Kongo. 2 Alguns desses blocos (Le-Gue DePa, Axe Odara, Gangas) nao mais existern; 0 Males e 0 For~a Negra tern uma existencia intermitente; 0 Le6es do Reggae ainda nao conseguiu estabelecer-se plenamente; os demais (sete ou oiro, ja que 0 Raizes Negras e 0 D'Logun estao constantemente se fundindo e se separando) formam 0 nucleo do "mundo negro" de Ilheus, ao lado de urn afoxe, alguns grupos de capoeira e duas escolas de samba, hoje praticamente inexistentes, mas sempre mencionadas e colocadas na origem da linha dos blocos que se inicia com 0 Miny Kongo. 3 Cada bloco possui urn entaizamento territorial: quatro deles (Dilazenze, Rastafiry, Raizes Negras e D'Logun) ficam na Conquista, talvez 0 bairro mais populoso de Ilheus, situado em urn morro pr6ximo ao centro da cidade, de popula~o pobre e ampla maioria negra; 0 Zambi Axe fica no Malhado, 0 Guerreiros de Zulu no Alto Soledade, 0 Zimbabue no Vilela (todos bairros grandes e de popula~o majoritariamente negra); 0 Danados do Reggae fica na Nova Brasilia (enclave pobre no bairro de classe media do Pontal); e 0 Miny Kongo fica no Oiteiro de Sao Sebastiao (urn enclave pobre no centro da cidade). Alguns blocos possuem, tambem, urn entaizamento familiar. 0 caso mais evidente e 0 do Dilazenze, em que quase roda a direroria e boa parte dos membros e da familia Rodrigues. 0 For~a Negra, contudo, tambem era constituido, basicamente, por membros de uma mesma familia e praticamente deixou de existir quando quase rodos os irmaos se romaram evangelicos. Alem


disso, mesmo nos blocos que nao sao inteiramente baseados em famllias, podese observar a presen<;:a de grupos de parentes. Alguns blocos estao associados a rerreiros de candomble. Novamente, 0 caso mais forre e 0 do Dilazenze, que em cerro sentido e parre do rerreiro Ewa Tombency Neto. 0 Miny Kongo, entreranto, e, em menor escala, alguns ourros grupos, rambern possuem suas liga<;:6es com centros de culro afrobrasileiro. Em I1heus, porranto, assim como ocorreu em Salvador (Cunha 2000: 351-352), boa parre dos blocos afro surgiu a parrir de bases preexisrentes, faro em geral menosprezado, mas muito imporranre para uma compteensao mais ampla do sentido desse tipo de arividade. Pois, sendo, em parre, urn prolongamenro de arividades pensadas e encenadas sobre bases familiares, territoriais, de idade ou de c1asse, os blocos acrescentam, criativamente, a essas dimens6es uma orientas;ao (( etnica" ou "cultural" e, simultaneamente, rendem a fazer com que os codigos a parrir dos quais se operava sejam sobrecodificados ernica ou culturalmente. 4 E claro, como observou Rolnik, que a ausencia de guetos no Brasil nao significa a ausencia de rerrirorios negros, desde que esres sejam entendidos no sentido de urn "[...] espa<;:o vivido, obra coleriva consrruida pe<;:a a pe<;:a por urn cerro grupo social. Assim, ao falarmos de territ6rios negros, estamos contando nao apenas uma

hisr6ria de exclusiio mas ramb"m de consrru<;:iio de singularidade e elabora<;:iio de urn reperr6rio comum [... J, urn devir negro, afirma<;:iio da vonrade de solidariedade e autopreservac;:ao que fundamentava a existencia de uma comuni-

dade africana em rerras brasileiras" (Rolnik 1989: 30). Esses rerrirorios nao se confundem com puros espa<;:os geograficos, consrituindo, antes, no sentido dado ao rermo por Guarrari (1989: 29), territorios existenciais, au seja, a resultado de investimentos criativos que, certamente, podem esrar arriculados a bases espaciais, mas tambem a uma infinidade de ourras rela<;:6es (nao apenas "micas, como de filia<;:ao, de alian<;:a, geracionais ere.).' E por isso que esses rerrirorios nao sao jamais exclusivamente negros. E e por isso, rambem, que a 'africanidade' que se costuma invocar para defini-Ios nao diz respeito a uma Africa real, imaginaria ou simbolica, no sentido usual desses rermos, mas a uma experiencia exisrencial na qual "Africa" funciona como urn "ritornelo" - "urn refeaD que, incessanternente acionado, tra<;:a urn rerrirorio e [...] se desenvolve em motivos terriroriais, em paisagens

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terriroriais" (Deleuze e Guartari 1980: 397), criando territorios existenciais e erguendo barreiras contra as for<,:as do caos (idem: 382). Assinalando, de passagem, que e curioso observar que esse tema tambern parece ser evitado nos relatos sobre os blocos de Salvador, observemos que as rupturas que dao origem aos novos blocos sao atribuidas a brigas entre seus componentes, a maior parte delas ligada a problemas financeiros e/ou desentendimentos sobre a organiza<,:ao do bloco. Alem disso, cada grupo sempre esteve, esti - e provavelmente estara - ligado de alguma forma a urn ou mais politicos profissionais, que participaram de sua funda<,:ao (por exemplo, o ex-vereador Elicio, em rela<,:ao aos Gangas); ou que colaboraram com essa funda<,:ao mesmo que para fins imediatamente eleirorais (como parece ser 0 caso do ex-vereador Gildo Pinto com 0 D'Logun, em 1992, e de Gurita com o Leoes do Reggae, em 1997, e com 0 Guerreiros de Zulu, em 2000); ou que se aproximaram posteriormente de modo mais ou menos constante (0 mesmo Gurita, em diferentes momentos, com 0 Danados do Reggae, Zimbabue, For<,:a Negra, Zambi Axe e Guerreiros de Zulu); ou que 0 fazem proximo as elei<,:oes (como Gildo Pinto, em 1998, e Gurita, em 2000, ambos com 0 Dilazenze). E claro que, ao lado desses processos de divisao, existem exemplos da "tendencia federalizante". 0 principal deles, sem duvida, sao as tentativas, sempre recome<,:adas, de constituir e fazer funcionar 0 Conselho de Entidades Mro-Culturais de Ilheus. A primeira versao do CEACI, como ja foi diro, constituiu-se, aparentemente, entre 1989 e 1990; seu presidente, Bob Jal, do Miny Kongo, ficou apenas por cerca de seis meses no cargo, tendo sido deposro e, desse modo, substituido por seu vice, Gilmar Rodrigues, do Dilazenze. Em 1992, quando se dizia que 0 Conselho esrava absolutamente inativo, AJdircemiro Duarte Luz (Mirinho), do D'Logun, assumiu a presidencia, tendo Marinho Rodrigues, do Dilazenze, como vice. Em meio a acusa<,:oes de que reria usado 0 Conselho em beneficio politico proprio (como veremos) , Mirinho foi subsrituido por Marinho, em 1994, que rinha como vice Paulo Cesar de Menezes (Cesar), do Rastafiry; em 2001, como vimos, Marinho foi substituido por Jacks Rodrigues, do D'Logun, tendo como vice Gilsoney Rodrigues (Ney), do Dilazenze; finalmente, em 2004, Jacks Rodrigues foi reeleiro, tendo como vice Marrera, do Rastafiry. E, como tambem ja vimos, as polemicas e indefini<,:oes em romo do Conselho continuam ate hoje muiro vivas. Assim, se 0 principio de segmenta<,:ao parece quase soberano no que diz respeiro rela<,:oes entre os diferentes grupos, a "tendencia federalizante" tende

as

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a surgir sempre que se trata de estabe!ecer conexoes com instancias exteriores, em primeiro lugar com 0 Estado. Como observou Silva, em 1997 0 maior "incentivador" do Conse!ho era mesmo 0 governo municipal: "Em seu primeiro carnaval no governo (1997),

0

prefeito Jabes Ribeiro [...]

enfatizou que a Prefeitura nao mais negociaria verba para 0 carnaval com nenhum grupo em particular, pois todas as decis6es seriam tomadas e todo 0

carnaval seria organizado pda Funda,ao Cultural de llheus em acordo com 0 Consdho, definido pda Prefeitura como 0 unico canal de contato desta com os grupos afro carnavalescos de llheus" (Silva 1998: 93-94). Na verdade, essa percep,ao e bastante clara para os envolvidos com 0 movimento afro-cultural de Ilheus e com as tentativas de construir e reconstruir 0 Conse!ho de Entidades Mro-Culturais. Eles sao quase unanimes em sustentar que 0 pape! central do Conse!ho e servir de mediador entre os blocos e a Prefeitura, buscando assim, por urn lado, aumentar urn pouco 0 baixo poder de barganha dos primeiros e, por outro, evitar "excessos", como, por exemplo, que "blocos fantasmas" sejam formados (ou ressuscitados) as vesperas do carnaval com a unica inten<;iio de obter uma fatia da ja reduzida verba que a Prefeitura destina aos desfiles.

***

!'

Mesmo essa brevissima descri,ao permite perceber, porranto, que a origem geneal6gica dos blocos afro de Ilheus soma-se, de faro, a percep,ao de sua hist6ria em termos de segmenta,ao e de alian,as laterais, assim como a possibilidade sempre aberra de fusoes unificadoras. 0 problema e saber se estamos ou nao as voltas com processos de segmenta,ao, no sentido classico do termo, ou seja, aque!e introduzido por Evans-Pritchard e Fortes em 1940 a fim de dar conta de alguns "sistemas politicos africanos". Ou, para ser mais preciso, trata-se de saber se a aplica,ao da no,ao de segmen:taridade a fenomenos como os blocos afro (ou como a politica dita parridaria, como veremos adiante) permite urn ganho de inte!igibilidade em sua compreensao. A principal dificuldade aqui advem do faro de que, como se sabe, a no,ao de segmentaridade surgiu no pensamento antropol6gico nas decadas de 1930 e 1940 visando dar conta de "sociedades sem Estado". De modo muito sucinto, tratava-se da hip6tese de que, na ausencia do Estado, outras instirui,oes desempenhariarn as fun,oes pr6prias a e!e. Rebatia-se, assim, na sincronia,

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a celebre oposi~ao diacronica evolucionisra, que opunha as sociedades baseadas no status aquelas centradas no contrato: entre ambas estariam situadas justamenre as "sociedades segmenrares", em que as linhagens fariam uma espede de mediaerao entre 0 "sangue" eo "territ6rio". Ora, ao tentarem estabelecer a existencia de uma forma espedflca de organiza~ao que nao se confundisse nem com 0 parentesco nem com 0 Estado, Evans-Pritchard e Fortes (1940: 5-7) acabaram por legar a teoria da segmentaridade dois fanrasmas te6ricos gemeos, dos quais, de certo modo, a anrropologia jamais conseguiu se livrar: urn morfOlogismo - ja que se tratava de determinar uma forma espedflca de organiza~ao social (as linhagens segmenrares) - e urn tipologismo - ja que essa forma de organiza~ao poderia ser distinguida de outras. Creio que, se nao nos livrarmos desses fantasmas, bern como de alguns outros, chegaremos, inevitavelmenre, a conclusao inreiramente negativa de Adam Kuper (1982; 1988), que, acantonando 0 conceira de segmenraridade na "teoria da linhagem" e limitando-o a urn plano sociol6gico estrira - em que e mais facilmente critidvel -, acabou por recusar ate mesmo "uma defesa cautelosa do modelo. Ele e teoricamenre improdutivo, e este e 0 teste real" (idem: 92). Essa recusa significa, fundamental mente, nao aceitar a possibilidade de dissociar a no~ao de "oposi~ao segmentar" da "teoria da linhagem" (idem: 91-92), privando-se, assim, de urn importanre instrumento analitico. 6 A verdade e que nao foram poucas as tentativas de exorcizar esses fantasmas. 0 pr6prio Evans-Pritchard sempre oscilou entre enraizar a segmenraridade na organiza~ao social propriamente dita e fazer com que essa organiza~ao dependesse de urn "principio de segmenra~ao", que permearia os diversos niveis organizacionais da sociedade (Evans-Pritchard 1978: 264). E mesmo Fortes - a quem Dumont (1970: 108) censura 0 sociologismo estrito) - sugeriu que a segmentaridade poderia estar baseada no que denominou "tecnica de contraposic;ao", caracteristica de uma certa forma de "relativismo" e de urn "pensamento segmentar" (Fortes 1945: 27), ou ser a resultante da existencia de urn "principio segmentar" difuso por rada a sociedade (Fortes 1953: 29). Alem disso, muitissima tinta correu, de 1940 ate hoje, em ramo da questao da segmentaridade, e nao se trata aqui, nem de longe, de tentar resumir, muito menos resolver, esse debate? Trata-se, apenas, de assinalar os deslocamentos necessarios, visando uma generaliza~ao legitima do conceira ou, para ser mais preciso, as transforma~6es que facilitem a migra~ao desse con-

.! 142

J


'~ eeito. 8 Para isso, ereio,

epreciso primeiramente reeusar a fals a dieotomia en-

tre ideologia e pratica (ou ptincipio ideal e organiza~ao real, ou como se quiser denominar) e aceitar, com Lienhardt (1958: 106, 114), que a segmentaridade e, sobretudo, e no semido forte do termo, uma "teoria politica" nativa, que serve, simultaneameme, para explicar e oriemar a pratica politica. Nesse semido, ela informa e da semido aa~ao, sem que tenha que corresponder pomo por pomo ao que agemes e amropologos creem observar empiricamente (ver Goldman 1999).9 Em segundo lugar, e estritameme necessario liberrar 0 conceito de seu vies sociologizame ou culturalizame, e repetir que a segmemaridade nao se confunde com urn determinado tipo de sociedade (ou mesmo com as linhagens), 10 nem constitui uma particularidade cultural qualquer (Herzfeld 1992b: 66). Comudo, liberar a segmemaridade desse vies sociologizame significa igualmeme libera-la do 'tipologismo', da grande divisao que aprisiona 0 conceiro, a oposi~ao emre sistemas segmemares e sistemas estatais. Os segundos, na verdade, sao tao segmentares quanto os primeiros (Deleuze e Guattari 1980: cap. 9; Herzfeld 1992a e 1992b), ao menos a partir do momento em que passamos a nos interessar mais pelos processos do que pelas formas, movimenro que permite que nos afastemos do 'morfologismo', 0 outro grande fantasma que espreita a teoria da segmentaridade. Acomeceria, entao, a segmemaridade 0 mesmo que ao totemismo." Encarada como institui~ao, so pode conduzir a uma 'ilusao', comribuindo para exotizar e exorcizar formas de vida social consideradas incompletas por nao possuirem 0 Estado (Herzfeld 1987: 156) - servindo, assim, por contraste, para refor~ar cerra ideia de "idemidade europeia" (idem: 165) - e, mais do que isso, por operarem com principios dificilmeme assimilaveis aideia de idemidade dominame no Ocideme. Encarada como processo, ao comrario, a segmemaridade pode aparecer como fenomeno universal, 0 que basta para afastar toda tema~ao tipologica: a segmema~ao "ate recemememe era tratada como urn tipo exotico em vez de urn aspecto universal da vida politica" (idem: 158 - grifos do autor). Na verdade, a segmema~ao represema urn dos modelos de "relatividade social" acionados em qualquer sociedade: "a segmema~ao eo arranjo relativo das alian~as politicas de acordo com criterios genealogicos, ou outros, de disdncia social emre grupos em disputa" (idem: 156 - grifos meus). E apenas a presen~a de uma ideologia substancialista, tipica dos Estados nacionais, que faz com que, em algumas sociedades, 0 grau de reconhecimemo da segmemaridade seja menor do que em outras. E e a presen~a dessa

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I


ideologia no interior da reflexao antropol6gica que faz com que no~6es como estrutura social ou mesmo organiza~ao social acabem sendo compreendidas em uma acep~ao puramente morfol6gica, nao funcional ou processual. A segmentaridade e, ponamo e sobretudo, uma perspectiva - uma "visao segmentar do mundo", como diz Herzfeld (1985: 116) - a partir da qual tambem 0 antrop610go deve observar a realidade social, ao menos quando realmente deseja se ver livre de rodo atomismo e de todo substancialismo. Em suma, trata-se de reconhecer que - assim como 0 principio de reciprocidade significa, em ultima instancia, que dar e receber sao uma e a mesma coisa - 0 principio de segmemaridade significa apenas que oposi~ao e composi~ao formam sempre uma totalidade indecomponivel,u No caso dos blocos afro (e 0 dos terreiros de candomble seria semelhante 13), 0 problema central e saber se as segmenta~6es que os recortam sao realmente fenomenos de ordem processual ou puramente morfol6gica, para usar uma distin~ao capital introduzida por Middleton e Tait (1958: 7-8). Do segundo ponto de vista, a separa~ao dos grupos (que os autores prop6em denominar "fissao") significa apenas que uma unidade se converte em duas ou mais; do ponto de vista processual, emretanto, essa separa~ao (ou "segmenta~ao" propriamente dita) corresponde a um processo reversivel, e 0 que e apenas um grupo em determinado nivel segmentar se divide em dois em outro nivel, sem deixar de ser um no anterior. 14 E nesse sentido que a no~ao de segmemaridade, tal qual proposta por Evans-Pritchard e Fones - nao importando 0 que eles mesmos digam a respeito (Fones 1945: XII) -, nao deve ser confundida com a no~ao durkheimiana de sociedade segmentar, que Middleton e Tait (1958: 8, nota 1) prop6em denominar "segmental". Neste caso, trata-se de uma concep~ao puramente morfol6gica, a mera justaposi~ao de segmentos equivalentes, sem nenhuma referencia ao processo funcional de sua reuniao e separa~ao relativas e condnuas. Finalmente, e imponante observar que a distin~ao estabelecida entre fissao e segmenta~ao, no plano das separa~6es, nao e acompanhada por uma distin~ao equivalente, a ser efetuada no plano das reuni6es. Nao obstante, e claro que a associa~ao definitiva de dois ou mais grupos para constituir um unico (0 que poderiamos, talvez, denominar 'fusao') e tao distinta da agrega~ao segmentar, sempre relativa, contextual e reversivel, quanto a fissao 0 e da segmenta~ao. Ora, por si s6, 0 fato irrefutavel de que "cada bloco nasce de um outro" (ou de que cada terreiro nasce de um outro) prova apenas a existencia de uma morfologia "segmental", constituida por fiss6es sucessivas ao longo do tem-

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po. Por outro lado, 0 faro, tambem irrefutavel, de que dois terreiros de candomble, originatios de urn mesmo terreiro ancestral, tendam a se sentir mais pr6ximos entre si do que de outros terreiros, ou de que 0 conjunto dos terreiros de na~ao angola tenda a se opor ao conjunro dos terreiros ketu e ao conjunto dos terreiros gege (constituindo, nao obstante, e em outro plano, uma cerra unidade - 0 mundo do candomble, mais pr6ximo da umbanda do que do carolicismo, mais pr6ximo deste do que do protestantismo, e assim por diante), tevela a existencia de uma estrutura propriamente segmentat, no sentido processual do termo. ÂŁ. evidente, por outro lado, que esses sentimenros de proximidade e distancia estruturais nao funcionam aqui como entre os Dinka. No entanto, Lienhardt ja observara que, entre estes, tais sentimentos nao funcionam como entre os Nuet. Os Dinka, escreve e1e, "[,..] pensam em termos de associa,iio de linhagens, ligadas umas as outras de vdrias maneiras, enquanto para as Nuer urn unico principia agnatico

e sufi-

cienre para explicar qualquer idenrifica,ao polirica significativa da linhagem com a segmenta,ao territorial" (Lienhardr 1958: 128 - grifos meus). Tudo se passa, na verdade, como se fosse preciso, digamos, 'desnuerizar' a segmentaridade. Pois parece ser 0 modelo nuer que faz com que os antrop610gos s6 percebam a forma piramidal da estrurura segmentar - forma que, nos termos de Deleuze e Guattari, poderia ser denominada "arborescente", As linhagens dinka, ao contr:irio, apresentam urn aspecto muiro diferente, aproximando-se do que esses mesmos autores denominam "riwmatica' (ver Deleuze e Guattari 1980, em especial a "Introdu~o: Riwma").15 A segmenta~o nao pode, assim, ser oposta em bloco ao Estado, nao apenas porque 0 Estado esta por e1a permeado, como tambem porque existem modalidades distintas de segmenta~ao - e isso mesmo nas chamadas "sociedades segmentares" ,16 No caso dos blocos afro, a segmentaridade tampouco funciona exatamente como nos terreiros, e entre e1es (os blocos) as propriedades rizomaticas parecem ser ainda mais forres. Isso porque, por urn lado, nao existe nenhurna no~ao de uma substancia mlstica comum ligando os blocos de uma mesrna linhagem entre si. Assim, se alguns terreiros de candomble, oriundos de urn meSillO teneiro ancestral, sustentam provir de uma mesma "raiz" au do

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mesmo "axe", nada de semelhante parece ocorrer com os blocos. Alem disso, a rivalidade que os terreiros inegavelmente mantem entre si e, de alguma forma, dissimulada sob uma linguagem de fraternidade e uniao, enquanto os

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blocos existem pata competit uns contra os outros, 0 que faz com que os principios de divisao pare~am muiro mais ativos do que os de reuniao. Estes existern, contudo, e, como entre as Dinka, manifestam-se "de varias maneiras" .

Talvez seja preciso aqui, conseqiientemente, seguir ainda Deleuze e Guattari (idem: 254), distinguindo pelo menos tri's modalidades de segmentaridade: "binarias" (de genero, classe, idade: assim, em Ilheus, a distin~ao entre brancos e negros, por exemplo); "circulares" (do individuo a humanidade: 0 bairro da Conquista, a cidade de Ilheus, a regiao do cacau, a Bahia, 0 Brasil etc.) e "lineares" (ligadas a atividades, "processos" ou "episodios", concomitantes ou sucessivos: a familia, 0 candomble, 0 bloco, 0 trabalho etc.). Ora, urn bloco como 0 Dilazenze pode reunir-se a outras unidades da mesrna natureza, na medida em que todos sao blocos afro. Pode se reunir, tambern, a uma organiza~ao de outra natureza - uma associa~ao de moradores, por exemplo - uma vez que esta se situe, como 0 grupo, no bairro da Conquista ou, melhor ainda, no setor deste bairro denominado Carilos. au pode articular-se com outras formas de organiza~ao: urn terreiro (0 Tombency) ou uma familia (os Rodrigues), ja que estes sao proximos ao bloco. Se, no primeiro caso, temos uma segmentaridade genealogica e binaria (aquela com a qual estamos mais acostumados a lidar), no segundo, estamos as voltas com principios territoriais e circulares, e, no terceiro, com uma segmentaridade institucional e linear. Em outras palavras, alguns blocos podem reunir-se, 'genealogicamente', a fim de opor-se a outros, ou todos os blocos podem reunir-se para negociar com a Prefeitura, por exemplo (e e isso que Agier denomina "tendencia federalizante"); urn ou mais blocos podem se articular 'territorialmente' com outras organiza~6es para se opor a blocos ou organiza~6es ligados a outros territorios; ou podem se aproximar 'institucionalmente' de outras organiza~6es a fim de se opor a outros blocos ou organiza~6esheterogeneos (ponto que sera crucial quando reencontrarmos, adiante, 0 principio de segmentaridade, mas dessa vez em funcionamento no interior da politica de Ilheus).

*** Se a cria~ao do Memorial da Cultura Negra e a nomea~ao de seu administrador fazem parte da historia do movimento negro e da politica de Ilheus, seus personagens principais sao, ao mesmo tempo, protagonistas e produtos dessas historias. Marinho Rodrigues, como vimos, esra envolvido com 0

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movimento afro-cultural desde 0 seu come<;:o. Ja no infcio dos anos 1980, POt volta de seus 14 anos de idade, acompanhava sua mae e seus irmaos mais velhos ao Miny Kongo, Le-Gue DePa e Axe Odara; em 1986, ap6s desentendimentos nesse ultimo bloco, fundou, com alguns de seus irmaos, 0 Dilazenze, do qual e presidente desde entao. Foi vice-ptesidente da segunda diretoria do CEAC, presidente da diretoria seguinte, primeiro administradot do Memorial da Cultura Negra de Ilheus e, provavelmente, 0 nome mais conheeido do movimento afro-cultural de Ilheus, tendo mesmo mantido, em 2003, uma coluna semanal em um dos jornais da eidade. Jabes Ribeiro, por sua vez, esta ligado a um processo hist6rico, 0 da polftica local, aparentemente muito diferente daquele relaeionado aos blocos afro, mas que, em certo sentido, guarda com ele semelhan<;:as algo surpreendentes (e as quais voltarei). Por Outro lado, e claro que, alem de estarem estreitamente relacionados entre si, esses dois processos estao de alguma forma enraizados em um 'contexto hist6rico' mais amplo e de dura<;:ao bem mais longa. E aqui, entretanto, que surgem alguns problemas de difieil solu<;:ao, ja que, do ponto de vista de um antrop6logo, digamos, radical, a no<;:ao de 'contexto hist6rico' pode nao ser tao evidente quanto parece. Como observou Richard Handler (1988: 18-19),0 que se denomina em geral "conhecimento hist6rico" - ou mesmo 0 que se considera descri<;:6es objetivas de determinados contextos - consiste, na maior parte dos casos, em um conjunto de praticas objetivantes que procuram impor interpreta<;:6es como se fossem fatos supostamente objetivos e indiscutlveis. 0 que significa que, perante a hist6ria, a posi<;:ao do antrop610go deveria consistir ou na absten<;:ao de qualquer tentativa de descri<;:ao de um suposto background hist6rico e/ou geografico antecedendo a trama que pretende analisar - evitando assim recorrer, como aconselha Handler (idem: 70), a falsos "panos de fundo como preludio de algum tipo de analise sincronica" -, ou na incorpora<;:ao das diferentes descri<;:6es e interpreta<;:6es a analise, uma vez que os 'contextos' locais ou temporais fazem parte dessas tramas e s6 deveriam aparecer integrados a elas. No caso de Ilheus, por exemplo, diversos tipos de trabalhos hist6ricos podem ser encontrados: umas duas dezenas de textos propriamente academicos, escritos a partir da decada de 1950 (e que, como podemos faeilmente adivinhar, nao concordam inteiramente entre si); cerca de uma dezena de trabalhos encomendados ou patrocinados pela Comissao Executiva do Plano daLavoura Cacaueira (Ceplac) entre as decadas de 1970 e 1990; mais de trinta

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trabalhos escritos por habirantes de Ilheus e da regiao, incluindo mem6rias, cronicas, genealogias familiares, guias turfsricos etc.; e, tambem, mais de duas dezenas de romances, a maioc parte deles escrita por dois dos maiores escritores brasileiros contempocaneos, Jorge Amado e Adonias Filho, ambos naturais e com vinculos na regiao cacaueira. 17 Como se pode imaginar, nao e apenas 0 estilo, mas 0 pr6prio conteudo das narrativas que varia enormemente de genero para genero e, mesmo, de livro para livro. 0 que seria, entao, 0 conhecimento hist6rico sobre Ilheus; ou 0 contexto hist6rico de uma investiga<;iio emogcafica Ii empreendida? Uma hist6ria narrada na chave do desbravamento "democcatico" das terras virgens, efetuado por selfmade men, como prop6e Adonias Filho? A revela<;ao do passado escravagista local - negado ou recalcado por quase todos os cronistas locais, e mesmo por diversos historiadores profissionais -, efetuada pelo minucioso trabalho da historiadora norte-americana Mary Ann Mahony? Ou informa<;6es do tipo daquela fomecida, em 1999, a mesma autora, segundo a qual "0 cacau veio da Africa para a Bahia, trazido poc homens e mulheres que haviam sido vendidos como escravos, de acordo com uma tradi<;ao oral dos trabalhadores rurais do Distrito de Almada, em Ilheus, Bahia" (Mahony 2001a: 95)? Eclaro que, como Mahony, acredito que "essa tradi<;iio nao coincide com qualquer evidencia documental sobre a introdu<;ao do cacau no sui da Bahia" (ibidem), e que 0 feuto e realmente originirio do Mexico, trazido para 0 Brasil no seculo XVII, e para a Bahia no XVIII, por europeus. Nao e disso, contudo, que se trata. Trata-se, sim, da possibilidade de captar essa historia no trabalho de campo e de integca-Ia a narrativa. E aqui os resultados sao algo decepcionantes. Os militantes do movimento negro de Ilheus, assim como os adeptos do candombJe, parecem dedicar pouca, ou nenhuma, aten<;ao aos processos hist6ricos de mais longa dura<;ao, ainda que estejam interessadissimos e conhe<;am bastante bern os de curta dura<;ao, em especial os que envolvem seus grupos e terreiros, por exemplo. Evoca-se, vez por outra, 0 "individualismo" da cultura do cacau para explicar dificuldades de organiza<;ao ou de obten<;ao de ajuda; fala-se tambem, de vez em quando, nas origens escravocratas da riqueza local; mas raramente se passa disso. As elites locais, por outro lado, parecem muito interessadas na historia, mas naquela de que suas familias ou classes teriam sido protagonistas. Nesse sentido, a propria trajet6ria do trabalho de Mahony e ilustrativa. Tendo come<;ado a pesquisar a regiao do cacau no final da decada de 1980,

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deparou-se com uma versao dominante da historia local, que sustentava que a economia cacaueira estaria baseada na pequena propriedade e no trabalho dos proprietarios, quase sem a interven~ao da mao-de-obra escrava - 0 que constituiria urn padrao muito singular nao apenas em reIa~ao a economia a~ucareira do Reconcavo Baiano, mas perante a economia colonial e imperial brasileira como urn todo. Mahony surpreendeu-se nao so com 0 fato de os poucos cronistas e historiadores que sustentavam uma visao distinta simplesmente nao serem ouvidos, mas, prineipalmente, com 0 de que a evidencia documental nao deixava duvidas sobre a existencia e 0 carater fundamental da escravidao na produ~ao cacaueira, 0 que conferia aversao dominante uma completa inverossimilhan~a historica. Entretanto, apos uma apresenta~aode suas teses na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), obteve nao apenas a aprova~ao dos academicos locais, como foi entrevistada peIa rede local de televisao, passando a ser abordada, nos dias seguintes, por diversas pessoas que, encontrando-a nas ruas da cidade, diziam conhecer historias de escravos (Mahony 2001 b).18 Ainda que Mahony e eu acreditemos que sua versao da historia e a verdadeira, um antropologo nao poderia deixar de lembrar que, ha muito tempo, Levi-Strauss (1955; 1962) reveIou que a distin~ao entre hist6ria e mito e muito menos nitida do que imaginamos ou gostariamos. E nesse sentido que estou convencido de que a meIhor abordagem antropologica sobre a historia de Ilheus deveria proceder de uma investiga~ao de todas as narrativas encontradas (de todas as "versoes" da historia de Ilheus, diria certamente LeviStrauss), efetuada com 0 auxilio do mesmo metodo eIaborado pot esse auror para a analise dos mitos. Encontrariamos, desse modo, certamente, a serie de oposi~oes em tomo das quais a historia local parece ser construida, compreendida e instrumentalizada: entre urn passado selvagem e pobre e um presente civilizado e rico; entre outro passado, glorioso, e um presente algo mediocre; entre a regiao, por urn lado, e 0 Estado, 0 pais e 0 mundo, por outro; entre a natureza prodiga, mas dificil e inospita, e a cultura; e assim sucessivamente. 19 Nao se trata aqui, contudo, de desenvolver esses pontos ou de empreender esse exerdcio. Apesar disso, ao contrario de Handler (que remete os lei-路 tores interessados na historia do Quebec aos livros dos historiadores profissionais), e sendo parcialmente sensiveI a algumas criticas,20 fomecerei uma breve descri~ao da regiao e da historia de Ilheus. Trata-se de uma descri~ao mais ou menos superficial e, eu arriscaria dizer, fenomenologica, no sentido de que e com eIa que nos deparamos imediatamente ao chegar a cidade e de que sus-

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penderei qualquer juizo a respeiro de sua possivel verdade objetiva. Trata-se apenas aqui, por um lado, de fomecer ao leitor os elemenros que inevitavelmente intetvem na anilise propriamente etnografica e antropol6gica que constitui 0 objetivo deste trabalho; por outro, trata-se de reconhecer que, se um 'contexto' existe, ele s6 pode, ou s6 deve, set apreendido por um anrrop610go do ponto de visra de seus informantes, 0 que faz com que a hisr6ria local- e mesmo "Ilheus" - sejam, fundamentalmente, 0 que se convencionou designar categorias nativas. Nesse sentido, eu come~aria pelo presente, dizendo que, situado na costa sui do Estado da Bahia, a cerca de 400 km da capital Salvador, 0 Municipio de Ilheus, ocupando uma area de aproximadamente 1.800 km', possuia, em 2000, uma popula¢io de pouco mais de 220 mil habitantes, dos quais mais de 70% vivem na regiao urbanaY 0 numero de eleirores apros a votar nas elei~6es municipais de 2000 foi de quase 105 mil pessoas, das quais apenas cerca de 80 mil efetivamente votaram. 22 Nos ultimos vinte e cinco anos, a popula~ao aumentou em cerca de 70 mil habitantes; 0 numero de favelas, com a ocupa~ao da periferia da cidade e de areas como manguezais, praias e morcos, cresceu muito; as indices de violencia apresentam uma curva ascendente. Em um artigo de pagina inteira, 0 jomallocal A Regiao (23/7/2000, p. 3) sustenta que, em uma popula~ao de aproximadamente 1,2 milhao de habitantes, haveria cerca de 250 mil desempregados na regiao cacaueira. E, mesmo na ausencia de dados oficiais a respeito dessas taxas de desemprego, basta andar pela cidade para adivinhar que devem ser altissimas. Se realizarmos um pequeno esfor~o de desnaturaliza~ao e estranhamenro das percep~6es cotidianas a que estamos tao acostumados, podemos perceber que a paisagem sociol6gica de Ilheus nao deixa de ser fenomenologicamente curiosa, ainda que nada incomum no caso brasileiro, em geral, e no baiano, em particular. Uma reduzidissima elite (dotada, hoje, de recutsos economicos bem limitados) "branca" - na verdade "branqueada", como sugeriu, para Salvador, Riserio (1981: passim) - convive com uma esmagadora maioria negra, que habita principalmente a periferia e os morros da cidade. 23 Nada muito diferente, e claro, do que ocorre na maior parte do Brasil e, em especial, na Bahia. Contudo, no caso de Ilheus, seria preciso observar ainda que, ao contrario do que parece ocorrer em Salvador, a popula~ao negra da cidade, bem como sua "cultura" (termo nativo que engloba da culinaria ao candomble, passando pela roupa, musica, festas, camaval etc.), jamais foram incorporadas aimagem oficial ou turistica da cidade. Salvador romou-se quase

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sinonimo de Bahia, e isso faz com que a men<;ao desse ultimo nome evoque metonimicamente as imagens consagradas pelo primeiro. No entanto, se andar pelas ruas de Ilheus e de Salvador pode suscitar experiencias sensoriais muito semelhantes, isso nao significa que estas se arriculem da mesma forma com as imagens projetadas para fora por cada uma dessas cidades. Ilheus e, em geral, apresentada e representada por meio da apropria<;6es dos livros de Jorge Amado;'4 terreiros de candomble e blocos afro nao constam de folhetos turfsticos;" dois carnavais, como vimos, costumam ser realizados: urn "amecipado" (voltado para fora e que exclui a participa<;ao dos grupos negros) e outro "cultutal" (que, embora permita essa parricipa<;ao, e fundamentalmente voltado para dentro da propria cidade) ;26 e assim por diante. 1sso nao quer dizer, e claro, que Salvador seja objetivamente mais negra, tolerante ou multirracial que Ilheus; significa apenas que a retorica da totalidade (ou 'baianidade', neste caso) incorpora, em Salvador, 0 que se define como cultura negra, e, em Ilheus, nao. 27 Mas isso nao significa tampouco uma ausencia de efeitos reais. Se quase 85% da popula<;ao de Ilheus declarou ao Censo Demografico de 1991 ser negra (ou seja, "pretos" + "pardos" , segundo as categorias usadas no Censo), apenas 7,63% declarou cor "preta". Ja em Salvador (onde a porcentagem de negros e menor que 79%), 14,6% declarou cor "preta". Ao contd.rio do que se costuma imaginar, Censos nao sao

instrumentos neutros e objetivos. 0 mesmo Censo de 1991 revelava, por exemplo, que, em Ilheus, existiriam apenas 151 adeptos do candomble e da umbanda. So 0 Tombency possui mais fieis do que isso, e, como se sabe, os adeptos do candomble nao veem nenhuma contradi<;ao em tambem se identificarem como catolicos. Nesse sentido, Harris et alii (1993) aplicaram, em uma pequena cidade baiana, 0 mesmo questionario usado pelo 1nstituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), apenas modificando a cor "parda" por "morena" (termo que, ao contrario do primeiro, e efetivamente utilizado na experiencia social). 0 resultado e que tanto 0 numero de brancos quanto ode pretos diminuiu em beneficio da nova categoria. Ao exigirem defini<;6es unfvocas daquilo que pode ser objeto de identifica<;6es e negocia,6es multiplas, e ao empregarem categorias muito afastadas da experiencia, os Censos, como adverre Herzfeld (1996: 82-83), sao imporrantes mecanismos de literaliza<;ao das categorias muitos mais fluidas e segmentares que constituem a realidade social. Eles tendem, assim, a ser mais performaticos do que descritivos, na medida em que seus efeitos reificadores atuam por meio das polfticas governamentais e nao governamentais que informam. 28

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Nesse contexro, e ainda de urn ponro de vista meramente fenomenologico, urn observador de outro planeta certamente flcaria sutpreso com a faro de a reduzida elite branqueada de Ilheus ter tido tanto sucesso em manter a controle de praticamente rodos as serores da vida da cidade nos ultimos dais seculos, controle que envolve as mecanismos de exerdcio do poder que rornam a domina~ao possivel e sabre as quais e preciso refletir. Finalmente, observemos que tanto esse panorama ligeiramente desconcertante quanta essa domina~ao, que so nao causa tanta estranheza porque estamos a ela acostumados, parecem adquirir certa coerencia quando incorporados nas narrativas historicas que buscam dar sentido ao presente. Nelas, podemos aprender que, desde a seculo XVI, a regiao de Ilheus foi palco de inumeras tentativas de ocupa~ao, com a explora~ao de madeira e a estabelecimento de engenhos de a~ucar; que, em 1535, foi estabelecida a Capitania Herediraria de Sao Jorge dos Ilheus (transformada em vila trinta anos mais tarde) e diversas dificuldades levaram a interrup~ao de todos as projeros de coloniza~ao, culminando no despovoamento da capitania e no abandono do projero inicial. A partir do inicio do seculo X1X, essa coloniza~ao e retomada, especialmente par meio do estabelecimenro de colonias de imigrantes estrangeiros, as quais, em grande parte, fracassaram. A introdu~ao da lavoura do cacau, na segunda metade do seculo XIX, permitiu a reromada e a sucesso dos projeros de ocupa~ao da regiao, mas e apenas em 1881 que a vila e elevada acondi~ao de cidade, momenta em que, em geral, e reromada a narrativa da historia oficial de llheus, apos urn silencio de quase tres seculos. Sustentase, entao, que, apos a periodo de lutas pela terra (no final do seculo XIX e inicio do XX), estabelece-se uma aristocracia proprietaria das principais reservas de cacau, caracteristica de urn sistema socioeconomico que teve seu

apogeu na decada de 1920, e a inicio de sua desintegra~ao na decada de 1980, com a que ficou conhecido como "crise do cacau". Par Outro lado, se, no inicio do seculo XIX, a regiao ainda era escassamente povoada, a presen~a relativa de uma popula~ao de ascendencia africana ja era notivel: cerca de urn quarto dos 2.400 habitantes eram escravos (Mahony 1998: 92). A expansao economica da segunda metade do seculo fez com que, em cerca de cinqiienta anos, a popula~ao dobrasse. Ao mesmo tempo, como atesta a Censo de 1872,71 % dos habitantes podiam ser classificados como "pretos" au "pardos", percentual que, em 1890, atingiu a faixa de 75% (idem: 93). Com a maci~a migra~ao interna suscitada pelo apogeu cia cultura cacaueira, esses numeros permaneceram em constante expansao,

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a que, ao menos em parte, explica as indices atuais: quase 85% da popula~ao de Ilheus declarau ao Censo Demografico de 1991 ser "parda" au "prera" (em Salvador, a porcenragem e de 78%; na Bahia, 79%: e no Brasil, 47,5%). Par ourra lado, par meio de urn complexo processo de exclusao e exprapria~ao da popula~ao negra (ver Mahony 1998), esse padrao de desenvolvimenro produziu uma elite local que, dada a natureza quase exclusiva de sua atividade economica, ficou conhecida como sendo formada pelos "coroneis do cacau". Essa elite tende a considerar-se - e a ser considerada pelos ourras segmenros da popula~ao - branca, e sua hegemonia nao parece ter sido muito abalada nem mesmo pela crise do cacau e nem pelas conseqiienres tenrativas de desenvolvimenro de atividades economicas alternativas, como a industria eletronica e a turismo. Ora, bern de acordo com esse padrao de desenvolvimenro socioeconomico, a politica em Ilheus sempre tendeu a ser comandada par essa elite: as poucas familias que, duranre mais de urn seculo, dominaram economicamenre a municipio, e nele tambem exerceram, direta au indiretamenre, a poder politico. Assim, ate 1976, dos 24 intendenres e prefeitos de Ilheus, 18 podem ser enconrrados enrre as principais fazendeiros e comerciantes locais. 29 Nesse senrido, a hip6tese de Garcez e Freitas (1979: 79) de que a elite cacaueira "sempre foi descrenre au preferiu caminhos menos tortuosos do que as pr6prios partidos politicos" (como a contrale de organismos regionais, como a Ceplac e ourros) nao pode ser enrendida ao pe da lerra. Os mesmos aurores, alias, lembrando que, ate a decada de 1960, a expressao "bancada do cacau" era de usa corrente, sugerem que a que existia era uma especie de divisao do rrabalho politico denrro do que denominam "burguesia cacaueira" au "elite do cacau" (idem: 78-79): as produtores atuariam na politica panidaria, as comercianres nos organismos regionais (idem: 82). 0 cacau parece, entiio, funcionar como uma especie de dispositivo, produtor da ceneza de que nao apenas as inreresses de produtores e comercianres sao as mesmos, mas que estes sao compartilhados pelos rrabalhadores (idem: 83-84). Dessa forma, e evidenre que a elite cacaueira tambem era capaz de exercer a poder par meio de represenrantes, evenrualmenre oriundos de ourras classes, desde que defendessem esse "inreresse comum". Ponanro, a que Garcez e Freitas (idem: 102) consideram abandono do campo politico-panidario pela elite cacaueira na decada de 1960 deve ser pensado como uma simples mudan~a na forma de conrrolar a poder municipal.

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*** As elei~6es municipais de 1976 foram realizadas nos quadros do bipartidarismo imposro pelo regime milirar. Em Ilheus, 0 padrao rradicional de viroria de um nome ligado a elire cacaueira, em sentido amplo, mais uma vez reperiu-se: Antonio Olimpio Rehem da Silva, a frenre de uma das duas sublegendas do antigo Movimento Oemocratico Brasileiro (MOB), venceu as elei~6es contra Herval Soledade, candidato da mais votada das trIOs sublegendas daAlian~a Renovadora Nacional (Arena). Soledade ja havia sido prefeiro da cidade em duas ocasi6es, entre 1955 e 1959, e entre 1963 e 1967, quando foi preso pelo regime militar sob acusa~6es de corrup~ao das quais foi absolvido (Vinhaes 2001: 132-133). Antonio Olimpio era filho de um fazendeiro que, tendo chegado pobre na regiao, teria enriquecido com 0 cacau e casado com uma mulher de uma familia mais tradicional- 0 que tambem constiruiu um padrao algo recorrente (ver Ribeiro 2001). Soledade obteve 8.832 voros, ou 36,55% do rotal, aos quais se somaram os 1.261 das duas outras sublegendas, 0 que conferiu aArena 10.093 voros, ou 41,77% do rotal. Votos insuficientes, portanto, para derrotar a soma daqueles obtidos por Antonio Olimpio (9.580 ou 39,64% do rotal) e por Jorge Viana (4.492 ou 18,59% do total), que conferiram ao MOB 14.072 voros ou 58,23% do rotal. Muiro menos aten~ao foi concedida, na epoca, ao faro de que, em uma das sublegendas do MOB, encabe~adapor Jorge Viana, aparecia como candidato a vice-prefeiro um jovem politico, de apenas 23 anos de idade, chamado Jabes Ribeiro. Filho de um mororista, ele dificilmente se adequava ao perfil historico dos principais politicos locais; esrudante de direiro, ocupou a sublegenda em fun~ao da propria natureza do dispositivo, com o qual 0 sistema bipartidario de entao visava tanto acomodar for~as partidarias minorit:irias quanro atrair voros de diferentes proveniencias. Uma vez eleita a chapa de Antonio Olimpio, procedeu-se, como sempre, a divisao dos cargos municipais, cabendo a Jabes Ribeiro, tambem professor de fisica e quimica, a Secretaria Municipal de Educa~ao. Em 1982, Antonio Olimpio desincompatibilizou-se a fim de concorrer, sem sucesso, a uma cadeira na Assembleia Legislativa. 0 vice-prefeiro, Jaziel Martins, assumiu e apoiou 0 nome de Jabes para a Prefeitura nas elei~6es de 1982. Com uma calnpanha centrada em temas como "mudanc;a", "renovac;ao" e "povo", Jabes, com apenas 29 anos e vinculado ao chamado MOB "autentico", venceu as elei~6es com uma ampla margem de votos, derrotando um candidaro

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ligado as familias mais tradicionais da cidade, que consideraram, na epoca, a elei~ao urn verdadeiro desastre. Diagnostico que se agravou com as primeiras medidas de urn governo auro-inritulado "Governo Popular", como a cria~ao de urn Conselho Comunitario, obras nos bairros perifericos, apoio a culrura popular etc. Em 1986, mesmo em meio aos problemas economicos provenienres da "crise do cacau" e enfrentando denuncias de corrup~ao de alguns de seus assessores mais proximos, Jabes lan~ou a candidatura de Joao Lirio, secretario de finan~as de sua administra~ao, a Assembleia Legislativa. Lirio foi eleiro depurado estadual, 0 que the conferiu cacife politico para ser lan~ado, pelo prefeito, como candidaro a sua sucessao em 1988. Vitorioso, Lirio assumiu a Prefeitura (tendo como vice Jaziel Martins, 0 mesmo politico que lan~araJabes a prefeiro em 1982), enquanto Jabes foi nomeado para a Secretaria Estadual do Trabalho no governo Waldir Pires. Em 1989, Jabes apoiou a candidarura de Luiz Inacio Lula da Silva no segundo rurno das elei~6es presidenciais e, em 1990, deixou 0 PMDB para ingressar no PSDB e concorrer a uma cadeira na Camara Federal, conseguindo se eleger a partir de maci~a vota~ao obtida em Ilheus. Com mandaro ate 1994, compreende-se que Jabes, aparenremenre, nao pretendesse concorrer mais uma vez a sucessao municipal: se eleiro, teria que abrir mao de dois anos na Camara, e, se derrotado, sofreria urn desgaste em sua imagem de politico vitorioso. Em 1991, lan~ou, assim, a candidarura de seu irmao, Joabes Ribeiro, a Prefeitura de Ilheus. No enranto, quando as pesquisas de opiniao come~aram a indicar que Joabes nao venceria 0 pleiro, Jabes foi se aproximando da candidarura ate decidir concorrer a mais urn mandaro de prefeito - decisao anunciada em pagina inreira pelo semanario regional Agora (20-26/6/1992, p. 9). Apos sua derrota, ja em 30 de maio de 1994, ele declararia ao jornal A Regiiio que nao pretendia concorrer a reelei~ao para depurado federal porque, em Brasilia, costumava "conviver em alguns momenros com urn senrimenro de vazio como urn dos membros da Camara dos Deputados". Ao mesmo tempo, 0 jornal sustenrava que

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"[...] outro fato que levou Jabes Ribeiro a desistir de sua teelei~ao - mesmo liderando rodas as pesquisas de inten~ao de voro no municipio de Ilheus, na casa dos 48% do eleirorado 10cal- foi 0 rumo equivocado do sen partido, segundo informou, no plano nacional. 'A alian~a do PSDB com 0 PFL nao e uma combinac;:ao,

euma mistura', ironizou, acrescentando que trata-se de urn

grande equlYoco e, porramo, fadado ao &acasso. 'Nao podem dar cerro posi-

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':roes tao antag6nicas como a social-democracia com 0 liberalismo') explicou" (A Regiao 30/5/1994, p. 11).

Por ontro lado, ap6s a vit6ria de Jabes em 1982, e de sua derrota para a Assembleia Legislativa no mesmo ano, Antonio Olimpio afastou-se do antigo MOB e iniciou urn movimento de aproxima~ao com 0 grupo politico liderado por Antonio Carlos Magalhaes, que logo fundaria 0 Partido da Frente Liberal (PFL). E foi por este partido que se lan~ou candidato it Prefeitura de llheus em 1992, em elei~6es municipais que acabaram, assim, colocando em oposi~ao direta dois antigos quase aliados. Aproveitando a avalia~ao negativa do governo Joao Lirio, 0 governo estadual investiu direta e pesadamente nas elei~6es de llheus, apoiando 0 nome de Antonio Olimpio. Essa opera~ao foi montada a partir do "compromisso" de transformar 0 Municipio de llheus em uma Zona de Processamento de Exporta~6es (ZPE), 0 que deveria gerar "mais de 10 mil empregos" - possibilidade muito atraente em urn contexto de taxas de desemprego crescentes em fun~ao da conjuntura nacional e da "crise do cacau", no plano local. Finalmente, no dia 3 de outubro de 1992, ap6s uma campanha em que, a partir do inicio de 1992, sempre esteve na frente de todas as pesquisas, Antonio Olimpio, que comandava a coliga~ao Salve llheus (reunindo, alem do PFL, seu partido, 0 PTB, 0 PSL e 0 PRN), foi eleito, pela segunda vez, prefeito de llheus, com 29.024 votos (45% dos votos) contra 20.608 (32%) de Jabes Ribeiro, do PSDB; e 5.295 (8%) de Ruy Carvalho, candidato da Frente llheus, ou Frente Progressista, que reunia partidos de esquerda (PSB - partido do candidato -, PT, PCdoB e PPS). Houve, ainda, 6.802 votos em branco (10,5%), 2.602 nulos (4%) e quase 25% de absten~6es. De fato, ate hoje os ilheenses sao razoavelmente unanimes em sustentar que 0 que consideravam urn mau governo de Joao Lirio, aliado it possibilidade de cria~ao da ZPE com seus 10 mil empregos, esteve entre os principais fatores que determinaram 0 resultado da elei~ao de 1992. Mas eles sao tambern quase unanimes em considerar que 0 segundo governo de Antonio Olimpio teria sido infinitamente pior que 0 de seu antecessor, a ponto de, no final do seu mandato, 0 prefeito nao poder sequer sair de casa e aparecer em publico com medo de ser "apedrejado pelo povo". 0 nao-cumprimento das promessas eleitorais (especialmente a nao-cria~ao da ZPpO), a deteriora~ao fisica e a sujeira da cidade, assim como a suposta corrup~ao na Prefeitura seriam as causas dessa maci~a rejei~ao, que acabou fazendo com que Antonio Olimpio permanecesse quase it margem de seu pr6prio processo sucess6rio

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em 1996. Isso porque alternancia no poder, preconizada pelo sisrema democratico, parece ser causa e conseqiiencia de um estranho silogismo: se 0 prefeiro arual e pior que 0 anterior, isso significa que 0 prefeiro anterior, por pior que se achasse que ele era, e bom. Boa parte das informa~6es fornecidas ate agora provem do serio trabalho de pesquisa desenvolvido por Agenor Gasparetro na regiao do cacau. Aos indices de reprova~ao da administra~aoJoao Urio e as promessas do governo estadual, Gasparetro (1993: 33-35) acrescenta ainda, entre os farores que teriam levado 11 vit6ria de Antonio Olimpio em 1992, 0 nao-estabelecimenro, por parte de Jabes Ribeiro, de uma alian~a com as esquerdas 3! - que, como vimos, obtiveram mais de 5 mil votos, enquanto a diferen~a entre Jabes e Antonio Olimpio foi de quase 8.500 voros. 0 curioso e que, ao contrario da hist6ria contada pelos militantes do movimento negro (11 qual me dedicarei a seguir), a interpreta~ao de Gasparetto nao faz qualquer men~ao a uma possivel participa~ao desse movimento no processo eleitoral, nao mencionando sequer 0 nome do candidaro a vice-prefeiro na chapa de Antonio Olimpio, Ronaldo Santana, que, como veremos, alem de ser negro, desempenhou um papel central na atra~ao do movimento afro-cultural para a campanha. Gasparetto deixa ainda de ressaltar 0 fato de 0 candidaro a vice-prefeiro na chapa de Jabes Ribeiro tambem ser negro. Tampouco a noticia que se seguia 11 manchete da edi~ao de 23/6/1992 do Diario da Tarde, que anunciava as "conven~6es partidarias para escolha de candidatos", fazia men~ao ao fato de o "lider sindica!" Ronaldo Santana e 0 "ex-vereador" Joao Batista Soares Lopes Nero" serem negros. Aparentemente, trata-se aqui, por um lado, de uma propriedade das narrativas locais, muito bem isolada por Michael Herzfeld (1992b: 64) no contexro grego, a saber, 0 faro de que as varia~6es nas narrativas (assim como as "variantes textuais") podem ser 0 efeito do trabalho de principios de segmenta~ao, que, longe de atuarem apenas sobre 0 plano sociol6gico em sentido estriro, operam em todas as dimens6es da vida social. Assim, as narrativas dos eventos aqui analisados, inclusive a minha, seguem linhas de segmenta~ao que se articulam com a dimensao sociopolitica: os mesmos eventos, narrados por agentes ou simples espectadores distintos, aparecem sob luzes e ate com conteudos bastante diferentes - da mesma forma, alias, que a hist6ria regional pode ser narrada enfatizando as popula~6es indigenas, os descendentes de escravos, os migrantes sergipanos, os imigrantes estrangeiros, e assim por diante. Nao creio, contudo, que se deva atribuir a ausencia do movimento negro nos jornais e na narrativa de Gasparetto a uma simples particularidade da

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imprensa ou da produ<,:ao academica locais. Como observou Herzfeld (2001: 130), em um conrexro completamenre diferenre, a influencia do roubo de gado na elei<,:ao, na Grecia nos anos .1980, de ao menos um politico, jamais foi mencionada nos jornais ou nas analises politicas. Na verdade, tudo parece passar-se, por um lado, como se grupos distintos vivessem, a cada elei<,:ao, elei<,:6es completamenre distinras. Por outro lado, penso que se nata tambem de uma tendencia, bastanre disseminada na sociologia, na ciencia politica e, por vezes, na propria anrropologia: retirar de atores socialmenre nao privilegiados roda a agencia de que disp6em em processos dessa natureza. Tudo se passa, neste caso, como uma especie de aceita<,:ao passiva e de duplica<,:ao da ideologia da democracia represenrativa: os unicos agentes efetivos sao as elites e os poHticos. Os eleitores - esse~ seres ficticios cuja existencia se limita a poucos minuros em uma cabine eleiroral ou as paginas de alguns manuais so aparecem como valores agregados em tabelas estatisticas ou como objetos de manipula<,:ao. No enranro, como ja observei, desde os primeiros conraros com 0 movimento negro de Ilheus, no ano eleiroral de 1996, a explica<,:ao de que eu pretendia desenvolver uma pesquisa sobre a politica na cidade era, quase invariavelmenre, respondida com a evoca<,:ao das elei<,:6es municipais de 1992, quando todos os blocos e grupos do movimenro afro-cultural se teriam unido em rorno de uma candidatura para a Prefeitura. Essa evoca<,:ao era imediatamente seguida da narrativa de como haviam sido enganados, de como isso enfraquecera 0 movimenro negro e de como, nas elei<,:6es de 1996, pretendiam ficar fora do processo sucessorio. Ao longo do tempo, presenciei inumeras ocasi6es em que essa quase mitica elei<,:ao de 1992 foi invocada como prova dos riscos aos quais os grupos negros estao sujeiros quando se envolvem com os politicos ou, principalmenre, como prova de que uma uniao de todos os grupos e possivel - no que seria mais um exemplo da "tendencia federalizanre" de que fala Agier, mais uma vez em a<,:ao nas rela<,:6es do movimento com 0 Estado. As historias do movimenro negro e da politica locais, do pais e, provavelmenre, do mundo, imbricam-se aqui. Como bem se sabe, a vitoria de Fernando Collor de Mello nas elei<,:6es presidenciais de 1989 esteve ligada a certa retorica de desconfian<,:a em rela<,:ao aos "politicos profissionais" ou, ao menos, aos "politicos nadicionais". A hipotese de essa retorica ter sido uma das causas de sua vitotia certamente nao sera aqui discutida. 0 faro, conrudo, e que sua ascensao ao poder tendeu a refor<,:ar retoricas dessa natuteza por

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toda parte. Assim, em Ilheus, ja em 1989, urn grupo de pessoas que se definiam como "apolfticas" e descontentes com as "poli'ticos profissionais" _ mesmo que varias delas ja tivessem participado da po](tica partidaria - decidiu criar urn movimento "suprapartidario" ou "apoHtico", destinado a funcionar como uma "lupa social de fiscaliza~ao". Segundo urn de seus fundadores, o objerivo principal, inicialmente, era fazer com que a "sociedade civil" passasse a fiscalizar sistematicamente 0 governo lOaD Lirio (associado diretamente ao nome de ]abes Ribeiro), empreendendo analises do or~amento municipal, organizando a comunidade para participar do governo, auxiliando a cria~ao de movimentos populares, e assim por diante. "Movimento Ilheus Cora~6es" ou "Movimento Ilheense Cora~6es", como foi batizado (e registrado em cartorio com 0 segundo nome, ainda que apenas em agosto de 1992), seria, desse modo, urn "movimento civilizador", que visava tomar "certa distincia da macropoHtica, que e a poHtica dos grandes partidos poHticos", como disse urn de seus principais articuladores. No entamo, como este mesmo articulador reconhecia, 0 movimento acabou sendo "a~ambarcado pela macropoHtica". E 0 curioso e que esse processo parece ter sido desencadeado justamente pelo impeachment de Collor, 0 qual, algo paradoxalmente, fez com que a retorica de desconfian~a para com os poHticos profissionais ganhasse for~a e se generalizasse em todas as dire~6es. Ainda de acordo com este lider, 0 movimento teria adquirido muita "visibilidade" na cidade, a ponto da decisao de participar da politica partidaria ter se tornado inevitavel. Deu-se, entao, inicio a uma campanha visando "revelar" novos candidatos potenciais para a Camara dos Vereadores e mesmo para a Prefeitura. Esses candidatos eram selecionados a partir de seus curriculos, recolhidos entre aqueles que nunca tivessem desempenhado atividade polirico-partidaria e que gozassem de born nome na comunidade. Ao mesmo tempo, os nomes selecionados eram filiados ao Partido Liberal, ainda que a maior parte dos membros do Movimento Ilheense Cora~6es Fosse oriundo do Partido Socialista Brasileiro: diz-se que 1.300 filia~6es foram apresentadas ao PL e, ainda que apenas oitocentas tivessem sido aprovadas, isso foi mais que suficiente para que 0 grupo tivesse 0 conrrole do partido. Lan~ou-se, assim, 0 nome de urn funcionario adminisrrativo do porto de Ilheus, 0 sociologo Ronaldo Santana, para prefeito, com Paulo Roberto Pinto Soares (Cipa) como candidato a vice." AJem disso, cerca de uma dezena de candidaturas a vereador foram lan~adas pelo movimento. Uma delas era justamente a de Mirinho, estivador que tinha rela~6es de amizade com os

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!

I

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membros da primeira direroria do Conselho de Entidades Mro-Culturais de Ilheus. Mirinho aproximou-se dos grupos negros, articulou a cria<;:ao de urn novo bloco afro, 0 D'Logun, e buscou 0 apoio do movimento afro-cultural nao apenas para sua candidatura a vereador como tambern para a de Ronaldo Santana para prefeito. Em 1996, a maior parte dos militantes dos grupos afro-culturais considerava que, embora negros, Mirinho e, principalmente, Ronaldo Santana nao tinham nenhuma vincula<;:ao mais seria com eles: ambos teriam "se infiltrado" no movimento visando simplesmente "usar" os grupos em beneficio de seus pr6prios interesses - "infiltrar" e "usar" sendo dois verbos muito empregados nesse contexto. Como dizia, nessa epoca, Gurita, referindo-se, na verdade, ao candidato a vice-prefeito,

e 0 prefeito negro que tern compromisso com a comunidade negra, que ja vern militando, que participa do movimento, dos

"[, ..J 0 prefeito negro uma coisa,

trabalhos, ha anos, eoutra. Apenas a cor do prefeito pode ser negra, mas a cultura do prefeito nao enegra, entendeu? A participa<;:ao do prefeito dentro do movimenta negro? Nenhuma. Do proprio Mirinho? Nenhuma. Entao foi uma coisa assim muito imediatista, pela amizade, pdo envolvimento".

Em 1992, entretanto, a aproxima<;:ao de Mirinho foi muito bern recebida, tanto que no ano seguinte (ou seja, ap6s as elei<;:6es), ele tornou-se 0 presidente da segunda diretoria do CEACI. Essa aproxima<;:ao nao se sustentava, contudo, apenas nas possiveis afinidades emicas e na amizade que Mirinho poderia ter com os militantes negros; estava baseada, sobretudo, em uma ideia que, ao longo dos dez anos seguintes, nao deixou de povoar 0 discurso e os sonhos do movimento negro ilheense: a constru<;:ao do Centro Mro-Cultural de Ilheus. o Centro deveria ser urn predio destinado a abrigar, expor e vender a "cultura afro" local. Nele, academias de capoeira poderiam promover suas aulas e fazer suas exibi<;:6es; os blocos afro e grupos de dan<;:a poderiam ensaiar e exibir-se; maes e pais-de-santo poderiam jogar buzios e receber clientes; artesaos poderiam comercializar seus produros; cozinheiras poderiam vender suas comidas tipicas; e assim por diante. Tudo isso em urn espa<;:o que deveria receber uma grande quantidade de turistas. Nesse sentido, alem de dar visibilidade a cultura afro local, 0 Centro funcionaria como uma importante fonte de renda para as pessoas e grupos que fazem parte do movimento afro-cultural de Ilheus - sempre as voltas, lembremos, com os problemas do desemprego e da falta de recursos.

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o movimento negro, ou melhor, 0

movimento afro-cultural de I1heus, entrou decididamente na campanha. Are hoje, sustenta-se que Ronaldo Santana chegou a esrar na frente de rodas as pesquisas de opiniao, ainda que nao seja posslvel encontrar nenhuma men~ao a seu nome nas pesquisas da epoca. Assim, nao foi sem cerra surpresa que os milirantes negros souberam que seu candidaro aceitara urn convire de Antonio Ollmpio para preencher a vaga de vice-prefeiro em sua chapa. Segundo os milirantes, para arral-lo, Ollmpio teria argumentado que, mesmo esrando 11 frente das pesquisas, Ronaldo Sanrana nao contaria com recursos para chegar are 0 final da campanha. A proposta foi, dessa forma, aceita, e Mirinho tratou de comunicar imediaramente ao movimento afro-cultural que a nova chapa incorporara 0 compromisso de constru~ao do Cenrro Mro-Culrural 11 sua plaraforma. Nesse momento, os membros do movimento "entraram de cabe~a" na campanha da nova chapa, fazendo apresenta~6es musicais nos comlcios e pedindo voros para os candidaros. Contam sempre que iam para distriros disrantes,34 trabaIhando 0 dia inteiro "a troeo de nada", "sem comer", "com fome mesmo", na

busca dos voros para Antonio Ollmpio e Ronaldo Santana - rudo na expecrariva da constru~ao do Centro Mro-Cultural. Como vimos, foi exatamente essa chapa que venceu as elei~6es municipais de 1992 em Ilheus. A diferen~a de cerca de 8.500 voros em rela~ao aJabes Ribeiro e sempre citada pelos militantes como prova da imporrancia do movimento negro na campanha, uma vez que Mirinho esrimara, na epoca, que os grupos afro eram capazes de obter uma quantidade de voros que oscilaria entre 5 e 10 mil votos. De acordo com uma versao urn pouco diferente dos acontecimentos, estes eram os numeros com os quais Ronaldo Santana se apresentara a (e nao fora procurado por) Anronio Ollmpio a fim de conseguir sua indica~ao como candidaro a vice-prefeito. Tais numeros reriam sido ainda levados a Anronio Carlos Magalhaes e ao governo esradual, que, em ulrima instilncia, foram os responsaveis pela decisao de montar a chapa como ela acabou sendo lan~ada. Ronaldo Santana se apresentaria sempre dizendo que "0 movimento negro de I1heus esti me apoiando; sao doze entidades, cada uma e capaz de obrer entre quinhentos e serecentos votos, logo trabalho com a esrimativa de 6 mil a 8.500 voros". Fala-se, inclusive, de uma suposta pesquisa que reria sido realizada nas comunidades em que havia sedes de entidades negras e que confirmaria as estimarivas. 35 Coligado ao PFL apenas para as elei~6es majoritirias, 0 Partido Liberal, que abrigava, como vimos, os candidatos ligados ao Movimento Ilheense

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Cora~6es, a!em de eleger 0 vice-prefeito, conseguiu obter urn total de 3.217 votos, 0 que, dado 0 quociente eleitoral de 3.124 votos, garantiu ao PL e ao Movimento Ilheense Cora~6es uma vaga na Camara dos Vereadores, justamente para 0 candidato a vice-prefeito da antiga chapa de Ronaldo Santana, Cipa. Mirinho, que obteve 323 votos (cerca de sessenta a menos que Cipa), ficou como primeito suplente; Gildo Pinto, que em 1996 viria a eleger-se vereador e chegaria apresidencia da Camara, ficou com a segunda suplencia, com pouco mais de trezentos votos; Rogerio Pitanga, tambem ligado ao Movimento, obteve cerca de 190 votos e a quarta suplencia. Com a posse de Amonio Olfmpio, em 1993, 0 vice-prefeito foi nomeado para a Secretaria Municipal de Agricultura, Industria e Comercio. Ronaldo Santana, por sua vez, indicou Mirinho como assessor dessa Secretaria, nomeando-o, tambem, secretario de gabinete do vice-prefeito. Alem disso, em fun~ao de um "acordo", Mirinho assumiu em algumas ocasi6es 0 posto de vereador na vaga deixada por Cipa, que, vez por ourra, licenciava-se da Camara a fim de possibilitar a manobra. Foi nesse momento, segundo os militantes negros, que as coisas come~aram a mudar. Como dizia Gilmar, do Dilazenze, as "porras", sempre aber-

tas durante "a politica", comes:aram a se fechar:

"Portas [echadas para tudo quanta era lado que a gente procurava. Quando se

so

trata do movimento negro, as ponas estao sempre fechadas meSillO. Eles procuram a genre na epoca de campanha, quer dizer, de quatro em quarro anas" .

Isso significa que os membros do movimento afro-cultural nao conseguiam ter acesso aos ocupantes do poder municipal; significa, tambem, que o discurso destes, especialmente dos mais proximos, come~ou a mudar. Mirinho, por exemplo, passou a sustentar que nem todos os blocos 0 haviam apoiado e que, por isso, so obtivera uma suplencia. Sustentava, ademais, uma versao corrente ate hoje entre aqueles que nao estao envolvidos com 0 movimento negro, a saber, que os votos do movimento nao foram tao decisivos para a vitoria de Antonio Olfmpio e Ronaldo Santana e que 0 vereador Cipa so se elegera com os votos da zona sui de Ilheus (regiao "nobre" da cidade). Mirinho tambem deixou de convocar as reuni6es do CEACI e de comparecer a elas, e praticamente se afastou do movimento. Dizem, tambem, que promessas de empregos publicos para militantes negros, feitas durante a campanha, nao foram cumpridas. Enfim, 0 "compromisso" de constru~o do Centro MroCultural de Ilheus passou a ser entendido por seus supostos beneficiarios como

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mais uma "promessa" eleitoral e, pior do que isso, como promessa eleitotal nao cumprida. Ronaldo Santana e Mirinho arribulam as dificuldades ao prefeito e, ptincipalmente, asua assessoria, dizendo que "vice nao manda nada" , que "a caneta nao esta nas maos do vice", que "estamos politicos, mas nao somos politicos!" Apesar de algumas mobilizay6es e de tentativas de pressao, foi apenas em junho de 1995 que Antonio Olimpio assinou um decreto de doayao de um terreno, de mais de 3.000 m', situado em uma atea nobre da cidade, onde devetia ser construldo 0 Centro Afro-Cultural de Ilheus. 0 prefeito deixou claro, enrretanto, que nao dispunha de recursos para a consrruyao do predio propriamente dito, e que estes deveriam ser obtidos junto a"iniciativa privada". Foi organizada, entao, uma grande festa para 0 lanyamento de uma campanha de obtenyao de fundos. A televisao local foi convocada e, diante das cameras, Antonio Olimpio, nao apenas entregou 0 titulo de posse, como assinou um cheque pessoal, no valor de R$ 1.000,00, destinado a dar inicio a campanha de arrecadayao de fundos para a construyao do predio. entusiasmo do movimento afro-cultural de Ilheus nao durou muito. Uma semana depois da festa, a Camara dos Vereadores anulou a doayao, sob o argumenro de que 0 terreno doado se localizava em area de preservayao ambienra!, nao alienavel, porranro. Uma das manchetes de primeira pagina do jornalA Regiiio, de 16/1011995, anunciava que "AO [Antonio Olimpio] usa Movimento Negto para atacar 0 Legislativo". 0 texto que se seguia explicava que ele 0 fizera

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"[...] enviando aCamara Municipal urn Projeto de Lei propondo a doa<;ao de uma area ilegal de 3.200 metros quadrados, situada na rodovia IlheuslOliven<;a para que al fosse construido urn Centto de Cultura Afro. Para enviar 0 projeto a Camara, 0 prefeito Antonio Olimpio preparou uma grande festa em 21 de setembro ultimo, convidando inumeros grupos afro, e responsabilizando, a partir daf, 0 Legislativo, que teria que dar 0 aval final". A noticia prosseguia, citando 0 vereador do Partido da Mobiliza<;ao Nacional (PMN), Isaac Albagli de Almeida, muito proximo de Jabes Ribeiro, que sustentava tratar-se de '\irea verden, pertencente a urn loteamento, que 56 poderia ser doada com a assinatura de todos os proprierarios, e conclula que "[ ...] 0

prefeito Anronio Olimpio quer se utilizar dos grupos afro, que sempre

contribufram com a cultura do municipio, para tentar joga-los contra a Camara Municipal, num gesto irresponsavel e desesperado".

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Finalmente, 0 dinheiro doado por Antonio Olimpio para a constrw;:ao do predio foi supostamente empregado por Mirinho para financiar uma campanha publicid.ria na televisao, visando justamente a atrecadas:ao de fundos para essa construs:ao - 0 que significava, em resumo, que, do ponto de vista dos grupos negros, 0 saldo de sua intensa participas:ao eleitoral era rigorosamente igual a zero. Nao deixa de ser importante observar que, ainda em 1996, a deceps:ao e a raiva sentidas pelos militantes do movimento afro-cultural eram menos dirigidas ao prefeito do que ao vice e, especialmente, a Mirinho. Estes seriam os verdadeiros traidores, ja que Antonio Olimpio estaria apenas cumprindo seu papel: "usaram a cultura negra como refem para coloca-los no poder", como sustentava urn militante negro. Mais do que isso, e apesar de tudo, a doas:ao do tetreno para a construs:ao do Centro parece ter cumprido seu papel. Nao que as pessoas fossem ingenuas e nao percebessem 0 carater dessa manobra, desencadeada precisamente quando novas eleis:6es municipais ja despontavam no horizonte. Mas isso nao impedia que se repetisse que, pelo menos, 0 prefeito havia cumprido sua palavra. 0 problema passava, entao, a ser 0 veto da Camara Municipal, e aqui diferentes interpretas:6es eram alinhavadas. 36 A primeira interpretas:ao, de cadter nitidamente politico, era articulada principalmente por aqueles de alguma forma ligados ao grupo que estava no poder: mesmo sabendo que 0 prefeito fizera a doas:ao pensando nas eleis:6es municipais de 1996, nao se podia negar que 0 tetreno fora realmente doado e que 0 compromisso eleitoral havia sido cumprido, mesmo que com considedvel atraso. A Camara, controlada pela oposis:ao ligada a Jabes Ribeiro, tentoll, por sua vez, impedir que 0 movimento negro fosse, mais uma vez, cooptado para a nova campanha. Aqueles mais proximos de Jabes Ribeiro (como Isaac Albagli), ou mais distantes de Antonio Olimpio, diziam que 0 prefeito bern sabia que a Camara nao tinha outra alternativa senao vetar a doas:ao - uma vez que se tratava de area de preservas:ao ambiental - e que, mesmo assim, enviara 0 projeto justamente para criar uma situas:ao de constrangimento entre os vereadores e o grupo de Jabes, de urn lado, e 0 movimento negro, de outro. 0 problema e que, proximo ao tetreno doado, havia urn posto de gasolina e, pouco depois, outra area foi doada ao Exercito, 0 que parecia confirmar a rna vontade da Camara, que podia ser interpretada, por sua vez, como sendo dirigida contra o prefeito ou contra 0 movimento negro.

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Essa ultima alternativa propiciava, assim, uma tetceira modalidade de interprera<;ao: tratava-se de racismo. 0 proprio Mirinho - que evidentemente negava a manobra do prefeiro, dizendo que 0 terreno havia sido doado mais de um ano antes da "poHtica", e culpava a oposi<;ao na Camara - tambem levantava essa questao. Gurira, que se encontrava na diflcil posi<;ao de, ao mesmo tempo, apoiar Jabes (0 que 0 impedia de fazer cdticas poHticas it oposi<;ao na Camara ou e!ogios a Antonio OHmpio) e ser militanre negro, era muiro mais claro: "Preconceito racial, preconceito racial e social. E claro que nao van dizer isso porque compromete a propria reeleis:ao deles, mas e 0 preconceito racial, ra-

cismo. Uma turma de neg6es jogando capoeira, camando, dan<;ando, batendo rambores na zona suI, voce acha?" Apesar disso, Gurita concordava, em parte, com a tese que Mirinho passara a defender para seu 'publico interno' apos as e!ei<;6es, a saber, que 0 apoio do movimento afro-cultural era importante, mas nao suficiente, para a e!ei<;ao de um vereador: 0 movimento "apoia, mas nao vota, divide 0 voro, da voro a fulano por causa da familia, a beltrano por dinheiro... Falta consciencia poHtica". Mesilla sem usaf 0 termo "racismo", Marinho parecia tambem concordar com a possibilidade de que isso ocorrera, ainda que, de seu ponto de vista, essa inrerpreta<;ao nao excluisse outras possiveis: "Eles boicoraram, e a genre come<;Oll a ver que realmente tinha alguma coisa por tras disso tudo, que nao estava havenclo interesse que a coisa acontecesse. Eu acho que des estavarn com medo, pensando assim: 'poxa, esses neg6es van se fortalecer, daqui a poueD esses neg6es vaa criar asas e podem prejudicar flOSSOS objetivos no futuro', porque eu acho que des querem e pensam que a gente

deve ficar debaixo dos pes deles a vida roda, esperando a hora ern que eles precisam bater na porta cia gente. Acho que 0 objetivo era esse) acho que a intenc;:ao nao era que a gente progredisse, mas que a gente ficasse sempre regredindo e des sempre sendo os poderosos, com a gente sempre ali) estendendo a mao,

pedindo a urn, pedindo a outro, uma ajudinha aqui, uma ajudinha ali"." Assim, ainda que alguns sustentem que 0 prefeito tentou ser fie! ao compromisso e!eitoral de consttu<;ao do Centro Afro-Cultural (nao 0 tendo conseguido apenas em fun<;ao da oposi<;ao que sofreu na Camara) e Outros considerem que e!e rompeu esse compromisso, todos parecem concordar com as palavras de Mirinho quando este sustenta que 0 apoio do movimento afro-

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cultural de Ilheus a Anronio Olimpio rinha mesmo como "proposito principal" a construs;ao do Centro: "nos nos embasamos nisso, num compromisso firmado em termos de troca: nos apoiariamos 0 governo atual e em contrapartida eles nos ajudariam a fazer 0 Centro Mro-Cultural de Ilheus". E, com a possivel exces;ao de Paulo Rodrigues, que considerava 0 acordo uma forma espuria de compra de voros, todos pareciam concordar que 0 processo era inteiramente legitimo. Por outro lado, como observei, em 1996, a maior parte dos militantes negros pensava que 0 movimento fora "usado", e usado, principalmente, por Ronaldo Santana e Mirinho a fim de se lans;arem na polftica. Ora, isso teria enfraquecido sensivelmente os grupos negros de Ilheus como urn rodo, ameas;ando-os mesmo de extins;ao, uma ve:z que roda a sua credibilidade junto pessoas com quem trabalhavam havia sido perdida. Pois as promessas feitas pelos militantes negros a outros militantes, simpatizantes e membros das comunidades negras em geral (a construs;ao do Centro, mas tambem os empregos publicos que se rornariam acessiveis a eles) nao foram cumpridas: "a gente quis colaborar para fazer alguma coisa, mas acabou colaborando para 0 politico ganhar, quer dizer, a gente se rransformou em politico sem querer; eles usaram a gente de urn jeiro que a gente se tomou politico". Urn candidaro a vereador, mais ou menos ligado a Antonio Olimpio e rotalmente estranho ao movimento afro-cultural de Ilheus, chegou a sustentar que

as

(([ ...] essa hist6ria traz de maneira sintetica e absolutamenre fie! 0 quadro politico da nossa cidade. 0 candidato Ant6nio Olimpio ofereceu, antes de se eleger, uma compensa,ao pelo voto que seria dado a ele, naquele equivoco do 'e clando que se recebe'. Na verdade, 0 prefeito tentoll cumprir esse compromis-

so, mas a Camara Municipal, atraves da oposic;ao, impediu que 0 prefeito CUffiprisse sua promessa, pocque, se a cumprisse, hoje a comunidade negra 0 esta-

ria apoiando; e isso nao interessava aoposicyao, porque, na verdade, a oposi<;ao na Camara sao os diversos bracyos, os diversos tenraculos, do professor Jabes

Ribeiro",

*** Mesmo que 0 carater "sintetico" da historia do Centro Mro-Cultural de Ilheus possa ser tido como algo exagerado, e inegavel que ela exibe com clareza ao menos eres modalidades de relas;6es sociopoliticas constantemente abordadas pelas ciencias sociais brasileiras, a saber, a compra de voros, as promessas eleirorais e, de modo mais amplo, a 'fraque:za' das instituis;6es demo-

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craticas no Btasil. 0 problema e que, em getal, como ja obsetvei, temas dessa natureza sao abordados a partir de perspectivas inteiramente negativas, em urn duplo sentido: condenam, explicita ou implicitamenre, as praticas analisadas, e tentam explicl-Ias a partir de no~6es problematicas (as mesmas, alias, que as elites costumam acionar), como aliena~ao, priva~o material, ignorancia ou logro. ÂŁ. verdade que esse tipo de abordagem e mais comum na sociologia eleiroral ou na ciencia politica do que na antropologia, uma vez que 0 antropologo, ao menos em tese, deve se esfor~ar por restituir ernograficamente 0 sentido que os agentes atribuem a suas a~6es, bern como tentar articula-lo com ontras dimens6es da experiencia - de urn modo que, em geral, os proprios agentes nao fazem. E, ainda que isso nem sempre aconte~a,38 0 principal problema dos antropologos costuma ser uma tendencia a subordinar as praticas e ideias muiro concretas com que se defrontam no campo a principios gerais que supostamenre serviriam para dar conta do que e obsetvado. Assim, a compra de voros poderia ser explicada em fun~ao do papel dominanre que valores clientelistas e rela~6es de reciprocidade desempenhariam em certas camadas da popula~ao. As promessas eleirorais se tornariam inteligiveis porque, afinal de contas, estariamos as voltas com urn universo social regido por rela~6es pessoais. E mesmo 0 ceticismo e a falta de participa~ao politica poderiam ser atribuidos a pouca adesao aos valores democraticos caractedstica de culturas nao individualisras. o problema e que, como rodas as abordagens culturalistas, as explica~6es que privilegiam a chamada cultura politica tendem a ser circulares (ver Leite 1969: 45, 100, 124; Neiburg e Goldman 1998: 68; Herzfeld 1980: 340; e Herzfeld 1984: 439), operando por meio de uma curiosa sinedoque: 0 ernografo atinge 0 que considera valores cenrrais a partir da obsetva~ao empirica de urn numero necessariamente limitado de comportamentos e ideias e, em seguida, busca exrrair desse material algum principio abstraro, que ele aplica indiscriminadamente a qualquer comportamento ou ideia observaveis, os quais, por sua vez, passam a funcionar como simples confirma~ao de que o valor isolado e mesmo determinanre. Essa circularidade, por sua vez, instaura uma confusao, aponrada por Pierre Clastres (1980: 199; ver, tambem, Goldman e Silva 1998: 45, nota 17), enrre 0 empirico e 0 transcendental. Pois, se e obvio que a compra de voros ou as promessas eleitorais sao praticas e representa~6es empiricamente obsetvaveis, isso nao diz nada acerca do valor moral e de verdade a elas arri-

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buido, os quais constituem urn espa~o abetto pata a divergencia, 0 confliro, a negocia~ao e a mudan~a de opiniao. Ao convetter a~6es e simbolos muiro concreros em categorias, valores ou padr6es, corremos 0 risco de eliminar rodo esse campo de varia~ao, transmutando a troca, por exemplo, em uma especie de razao transcendental do voro. Ao faze-lo, perdemos de vista tanro a polissemia sociologica dos termos com que trabalhamos, quanro a dinamica social que devemos romar inteligivel. Finalmente, como observou Richard Graham (1997: 19-21), "farores culturais" nao constituem determinantes exteriores, prontos a serem acionados quando se deseja explicar 0 dientelismo, o auroritarismo ou a infla~ao: 0 que se denomina cultura e 0 resultado de urn processo em continua elabora~ao, nao urn dado extrinseco e supostamente objetivo. Em contraste com no~6es desse genero - que tern 0 mau costume de se convetterem em chaves mestras, supostamente capazes de abrir qualquer potta -, creio ser mais prudente operar por meio de uma especie de plutaliza~ao nominalista das categorias. Como demonstrou Paul Veyne (1976: 81-82), e preciso substituir grandes e vagas no~6es, como "reciprocidade" ou "redistribui~ao", por uma terminologia mais cuidadosa e mais afinada com a realidade: se dom, presente, troca, escambo, homenagem, presta~ao, endividamento, investimento, compra e venda etc. inegavelmente fazem patte de urn campo.sociossemantico comum, e urn absutdo subsumir rodas essas variedades de rela~ao em uma categoria como reciprocidade. Ao contrario, trata-se de usar a diversidade terminologica como instrumento destinado a dar conta da diversidade dos usos da reciprocidade, elaborando, assim, mais uma pragmatica sociologica que uma semantica ou uma sintaxe. Assim, a compra de voros, por exemplo, nao e apenas uma conseqiiencia dos valores dientelistas ou das regras tradicionais de reciprocidade dominantes em uma sociedade ou camada social qualquer. Ela faz parte de urn modo de viver e pensar a politica, e e apenas sua condena~ao moral previa que impede a percep~ao dessa obviedade antropologica. Nos tendemos a considerala uma verdadeira abomina~ao, algo que atentaria contra os fundamentos da democracia e a dignidade do voro. Todavia, nao nos importamos tanto com o faro de que, com dinheiro, pode-se pagar uma publicidade que, espera-se, redunde em voros. Em outros termos, pode bern ser que a aversao que sentimos pela compra direta de voros esteja de alguma forma ligada ao faro de que, nela, explicita-se de modo quase obsceno a propria natureza de urn sistema idealmente pautado na a~ao individual e concretamente ancorado no equivalente geral- ou seja, a democracia representativa.

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Por ontro lado, como vimos, no campo, a compra e venda de voros aparece como elemento de esrraregias discursivas e nao discursivas variadas. Podese admitir, tacitamente, que 0 costume existe de modo generico e, ao mesmo tempo, negar qualquer denuncia concreta; mas pode-se, igualmente, denegar a existencia da pratica e reconhecer urn sem-numero de casos concreros (arribuindo-os, por exemplo, a urn passado distante ou a alguma regiao atrasada). Pode-se, tambern, condenar duramente alguem por estar comprando votos, ao mesmo tempo que se entende que uma pessoa pobre acabe aceitando a transa~ao; mas pode-se condenar 0 vendedor por falta de amor-proprio e compreender que, afinal de contas, urn politico deve tentar se eleger de qualquer maneira; ou pode-se condenar os dois. Pode-se admitir a troea de apoio eleiroral por um bern, em tese, coletivo, e condenar a busca de bens individuais. Pode-se, ainda, invocar uma transa~ao com seu proprio voto como forma de justificar posi~6es dificeis de confessar (0 apoio a urn candidato considerado ate entao inteiramente inadequado). Pode-se condenar 0 que compra voros, porque, no final das contas, isso revela 0 desprestigio de quem so tern 0 dinheiro, ou aquele que os vende, por nao votar mais por amizade, obediencia ou lealdade. 39 E pode-se fazer mais uma infinidade de coisas com seu proprio voro e com os dos demais. Assim, em 1992, a bem-sucedida tentativa de arrair 0 movimento negro para a campanha de um candidaro a prefeiro esteve em boa parte centrada no "compromisso" de constru~ao do Centro Mro-Cultural. Mas foi apenas quando uma nova campanha eleitoral ja se iniciava, em 1995, que 0 entao prefeiro romou uma iniciativa que poderia ter redundado no cumprimento da promessa. Ele, entretanto, escolheu 0 caminho mais dificil e que, certamente, nao era 0 unico que tinha asua disposi~ao: apresentou urn projero de doa~ao de terreno a Camara dos Vereadores e deixou a constru~ao do predio para a "iniciativa privada". A Camara, controlada pela oposi~ao, recusou 0 projero, apostando que, desse modo, 0 prefeito nao se beneficiaria novamente do trabalho eleitoral e dos voros dos membros do movimenro afro-cultural. 0 prefeiro, por ontro lado, pode argumentar que havia tentado cumprir sua promessa ou saldar sua divida, e que a responsabilidade pelo nao-pagamenro passara, portanto, a ser da oposi~ao. Isso significa, creio, que, se do ponto de vista do movimento negro, 0 trabalho na campanha e a constru~ao do Centro Mro-Cultural podem, de faro, ser encarados como os elementos de uma tfoca, digamos, restrita, 0 meSilla naD ocone quando encaramos 0 fenomeno do ponto de vista dos candidaros e politicos. Para estes, 0 compromisso

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de constru~ao do Centro Afro-Cultural aparece, antes, como uma especie de dfvida, cuja quita~ao pode ser adiada au 'rolada'. Na verdade, a que ocorreu e que ela foi cuidadosamente postergada ate a momenta em que pode ser inscrita em uma nova rransa~ao eleiroral. Esra, par sua vez, ja fazia parre de urn novo ciclo de rransa~6es, inserido em outras elei~6es. E par isso que, em cerro sentido, esse tipo de dfvida nao pode nunca ser pago: seu cararer aberto e a garantia da cominuidade dos fluxos de rela~6es e voros.'o Ao enviar seu projero de doa~ao do terreno para a Camara dos Vereadores, a prefeiro parece ter sido bem-sucedido em transferir sua dfvida para a oposi~ao, que bloqueou a projero. De faro, a movimemo negro tendeu a culpar as vereadores, nao a prefeiro, pelo nao-cumprimemo da promessa. 0 vice-prefeito e a ex-presidente do CEAC rambem foram responsabilizados na medida em que foram as negociadores do acordo. Alem disso, do ponro de visra do movimento negro, eles nao teriam rido a empenho necessaria para conseguir que a Camara dos Vereadores aprovasse a projero de constru~ao do Centro Afro-Culrural. Como membros, au quase membros, do grupo, passaram entao a ser considerados como verdadeiros rraidores, a que nao signiflca apenas mais uma manifesta~ao da suposra tendencia das classes populares em nao votarem e culpabilizarem aqueles que delas rambem fazem parre.4' 0 que se condena em urn 'igual' que pretende ser politico nao e a igualdade, mas a prerensao. Ou, para ser mais preciso, condena-se a "falsidade" daquele que se apresenta como igual visando "usar" seus companheiros para rornar-se diferente, au melhor, superior. Alem disso, a decep~ao e a vergonha de ser enganado par aqueles que, suposrameme, se conhece bern, parecem mais forres do que em rela~ao a urn estranho de quem, afinal de contas, nao se pode esperar outra coisa. Observemos, ademais, que as exemplos de compra de voros mencionados nao subscrevem, de forma alguma, a frequente imagem de polfricos e membros da elire operando sempre com meios tidos como mais modernos, vendendo e comprando de acordo com modelos de mercado, enquanto as membros do movimento negro, au das camadas populares em geral, operariam necessariamente par inrermedio de logicas mais tradicionais, como a da reciprocidade, par exemplo. Como vimos, em 1996, Cosme Araujo, que patrocinara a Dilazenze no carnaval, distribuindo camiseras com seu nome, acusou seus membros de rraidores ("rrafras") par nao a rerem apoiado nas elei~6es municipais daquele ana. Cosme procurava, assim, inscrever a transa~ao que esrabelecera com a Dilazenze na chave de uma rela~ao de reciprocidade, que implicaria vfnculos e compromissos futuros. Os membros do

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bloco, por sua vez, contestavam essa inrerpreta~ao, alegando que tudo se resumia a urn "neg6cio", uma relas:ao "profissional", que se esgotava nela mes-

rna, sem nenhuma conseqiH~ncia para 0 futuro e, porranto, sem nenhuma obriga¢o de apoio a Cosme nas elei~6es de 1996. Em outros termos, tanto as formas de reciprocidade quanto as estruturas de mercado sao capazes de fornecer modelos alternativos, que nao apenas servem para a a~ao, como podem ser retoricamente acionaveis por quaisquer das partes envolvidas em uma determinada rela~ao. o caso das promessas eleitorais tambem adquire novos contornos quando estas sao, por urn lado, situadas nos contextos ernograficos precisos em que funcionam e, por outro, encaradas a parrir de uma perspectiva mais plutal. Alinal, 0 que pode fazer com que, pleito ap6s pleito, os mesmos eleitores sejam capazes de ouvir mais ou menos as mesmas promessas, afirmarem que nao serao cumpridas, votarem nos poHticos que as proferem e, ap6s as elei~6es, verem confirmadas suas suspeitas de que tudo nao passava de mentira? Caso particular de uma questao mais geral que nunca deixa de assombrar aqueles que estudam ou acreditam na poHtica: por que, elei~ao ap6s elei~ao, os eleitores votam em candidatos que, ao mesmo tempo ou logo depois, tendem a considerar inadequados, incompetentes ou mesmo desonestos? Como e poss(vel ter tanta c1areza sobre 0 carater nefasto da politica e, de uma forma ou de outra, persistir dela parricipando? Em primeiro lugar, seria preciso reconhecer, creio, que uma promessa eleitoral nao e identifidvel por caracterfsticas que Ihe seriam pr6prias. E 0 contexto, 0 debate e a negocia~ao que fazem com que uma proposi~ao seja uma promessa, urn compromisso, uma mentira ou qualquer outra coisa. Nas e1ei~6es de 1992, a constru~ao do Centro Mro-Cultutal foi primeiramente aceita peIa movimento negro como urn "comprornisso"; nao realizada, pas-

sou a ser definida como "promessa" e, logo, como "promessa nao cumprida". A questao de se era uma "mentira" (ou seja, se seus proponentes ja sabiam que nao a cumpririam quando a proferiram) e objeto de debate ate hoje. Processo semelhante ocorreu, nessas mesmas e1ei~6es, com uma proposta bern mais ampla: a implanta~ao, em llheus, de uma Zona de Processamento de Exporta~6es que geraria "mais de 10 mil empregos". Na campanha de 1996, as duas proposi~6es foram reativadas sem sucesso: desde 0 infcio foram majoritariamente definidas como falsas e mentirosas. Em segundo lugar, e preciso observar que todos esperam que politicos fa~ mesmo promessas, e que e preciso saber lidar com elas.4' Em 1996, Cesar, do Rastafiry, dizia que 171


"[...] aqui hi 0 costume de pedir a1guma coisa ao candidato, mas as pessoas rem que conquistar 0 candidato anres das dei~6es, porque depois des nao dao nada, e tern muito candidato que promete, mas depois nao cumpee, nac cia nada, esquece. Na polftica passada [1992], antes de a gente ir para Ronaldo Santana, ouvimos a conversa de Antonio Olfmpio e a de Jabes Ribeiro. A mais concreta foi a de Anronio Olfmpio e Ronaldo Santana. Eles prometeram, nos confiamos e quebramos a cacao 0 costume e a gente reeeher alguma doac;ao, mas des so daD no primeiro ano, pOf tet recebido apoio, depois ja nao daD mais". Da mesma forma, quando, tambem em 1996, Jabes Ribeiro sustentou, contra Paulo Rodrigues, ser urn politico "moderno", que nao operava com "promessas vazias", isso foi interpretado de forma negativa pelos militantes negros, que ai viram um modo de evitar assumir compromissos: "politico quando promete nao cumpre; imagine quando nem promete...". Ora, como demonstraram, ha bastante tempo, alguns fil6sofos da linguagem (Austin 1961; 1962; Searle 1969), as promessas nao se justificam por um referente objetivo que lhes seria exterior e em rela~ao ao qual sua veracidade poderia ser medida. Sao, nesse sentido, "ilocur6rias", 0 que significa que instauram aquilo mesmo a que se referem - 0 Centro Mro-Cultural de Ilheus, por exemplo, que nunca existiu a nao ser nos discursos que prometiam cria-lo, 0 que nao deixa, entretanto, de ser uma forma de existencia. No entanto, se seguirmos uma distin~ao de Austin (1962: 101-102), as promessas sao tambem, e talvez sobretudo, "perlocut6rias", na medida em que produzem "efeitos e conseqiiencias sobre os sentimentos, pensamentos ou a~6es da audiencia, do falante ou de ourras pessoas" - fazer com que algumas pessoas preferissem votar naqueles que prometiam 0 Centro, por exemplo. 43 Uma promessa, em suma, e uma "palavra de ordem', nao e "feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer", nao tem nada a ver "com a verossimilhan~a ou com a veracidade" e demonstra uma total "indiferen~a [... J em rela~ao a qualquer credibilidade" (Deleuze e Guattari 1980: 95-96). Nao se trata nunca, portanto, de mentira, uma vez que esta sup6e ainda certa rela~ao com a verdade e, mesmo, algum respeito por ela, ja que, ao mentir, em geral deseja-se a cren~a de outrem.44 Ao contrario, 0 regime discursivo de que fazem parte as promessas nao tern qualquer rela~ao com a verdade e com a mentira, pois nelas, de acordo com a terrivel frase de Goebbels, "nao falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito" (apud Santos 1989: 148). Palmeira e Heredia (1995: 47-48, 72-74; ver, tambem, Palmeira e Heredia 1993) tem, pois, toda a razao em aproximar as promessas (e os "pro172

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gramas", dos quais as primeiras parecem so se distinguir reroricamente45 ) das acusas:6es, a outro genero que povoa a maior parte dos discursos politicos:" ambas sao performaricas (ilocutorias e perlocutorias), ainda que as primeiras sejam mais dirigidas a "coletividades" e as segundas a "reputaS:6es individuais"; ambas insrauram circuiros de comunica¢o e estabelecem vinculos envolvendo "subjetividades", ainda que as promessas estejam ligadas ao futuro e as acusas:6es ao passado e ao presente. Como vimos no capitulo anterior, e 0 abandono do privilegio da sintaxe e da semantica em beneficio de uma pragmatica que permite evitar os falsos problemas colocados pelas promessas eleirorais. Em lugar de insistir na busca de sua 'logica' ou de seus 'referentes', trata-se, simplesmente, de assinalar que promessas e acusas:6es exigem muiro mais aceitabilidade do que credibilidade (ver Herzfeld 1982: 645-646, 657) e que, para isso, devem ser formuladas seguindo formas e adotando categorias convencionais, que garantam sua legitimidade.

*** Se a historia do Centro Mro-Cultural de Ilheus permite, como observei, repensar temas como a compra de voros e as promessas eleirorais, permite tambem, creio, refletir a respeito de algumas supostas caracteristicas mais gerais do funcionamento do sistema democratico no Brasil. Todos conhecemos - e, ate certo ponto, dele compartilhamos - uma especie de senso comum politico, que costuma sustentar que as instituis:6es centrais das democracias ocidentais apresentariam, no caso brasileiro, urn carater flutuante, incerto e duvidoso. Assim, os partidos politicos aqui nao teriam a consistencia ideologica e programatica que os caracterizaria nas democracias mais tradicionais e consolidadas. Do mesmo modo, a constante e irregular circulas:ao de politicos entre partidos aparentemente distintos, os inesperados realinhamentos de alians:as e lealdades, as flutuas:6es ideologicas e mudans:as programaticas seriam tributarios do carater incipiente da democracia brasileira, na qual os partidos ainda nao estariam bern enraizados, de forma que posicionamenros e ideologias permaneceriam ao sabor de idiossincrasias e conveniencias mais ou menos pessoais. Se tivermos alguma inclinas:ao pela antropologia, podemos acrescentar a isso algumas caracteristicas de nossa {'cultura', que tornariam dificil 0 estabelecimento, entre nos, de sistemas e ideais derivados da modernidade individualista e universalista, entre os quais se encontra, certamente, a democracia representativa.

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No entanto, quer sejamos 'orimistas' - supondo que 0 tempo e algumas reformas farao com que a verdadeira democracia aqui se implante - ou 'pessimistas' - presumindo que as resistencias a veneer sao fortes demais, enraizadas nessa especie de segunda natureza em que a cultura se converteu -, somos levados a recorrer a modelos puramente negativos. Se essas perspectivas sao capazes, de fato, de dar conta da realidade politica em a1guma parte, e uma questao que, certamente, nao sera abordada aqui. Basta constatar, por ora, que urn grande numero de pesquisadores que trabalham com a polftica em sociedades como a brasileira se ve for~ado, por bons ou maus motivos, a relativizar, ou mesmo a abandonar, no~oes como partidos, programas e ideologias, tratando, entao, de buscar substitutos empiricos e teoricos aparentemente mais adequados a realidade observada. Assim, para fiearmos no caso dos partidos, parece necessario reconhecer que, por mais que a institui~ao fa~a parte da legisla~ao e da ideologia oficiais, ela nunca pareceu corresponder a uma categoria, ou a uma unidade, realmente eficaz. Que se concentre a analise na demonstra~ao das razoes dessa fraqueza partidaria, ou que ela seja desviada na dire~ao de no~oes tidas como mais explicativas, e aqui secundario. Basta observar que nao e casual que inumeros analistas tenham propoSto outras unidades de analise para a politica brasileira, e a introdu~ao do conceito de "fac~ao" no lugar do de "partido" e urn born exemplo dessa situa~ao. Ora, se esse conceito representa urn descentramento em rela~ao aos modelos mais classicos de analise da politica, creio que urn passo suplementar poderia ser dado se acrescentarmos a ele 0 de segmentaridade, que, como vimos anteriormente, nao tern nenhuma razao para nao ser aplicado as sociedades dotadas de Estado, assim como ao proprio Estado que caracteriza essas sociedades. De toda forma, e claro que a utiliza~ao da no~ao de grupo segmentar entre nos so faz sentido se as unidades e processos efetivamente relevantes no funcionamento politico de nossa sociedade forem realmente da mesma natureza que os observaveis nas chamadas sociedades segmentares - e so vale a pena se ganharmos a1guma inteligibilidade com a introdu~ao do conceito. Sublinhemos, em primeiro lugar, que nao se trata tanto de substituir 0 conceito de fac~ao pelo de segmentaridade quanto de complementar 0 primeira com 0 segundo. Isso porque as duas no~oes nao ocupam 0 mesmo plano epistemologico. Como escreveu Palmeira, "[...] h. multiplas defini~6es de fac~6es, mas entre os antrop610gos h. urn certo consenso de que se trata de unidades de confliro, cujos membros sao arregi-

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mentados por urn lidet com base em ptincipios vatiados. Em geral, estao em jogo conflitos considetados politicos (envolvendo 0 usa do podet publico). As faCS:6es naa sao grupos corporados (via de regra os autores pensam-nas como qua-

se-gtupos, gtupOS diadicos nao cotpotados, etc.)" (Palmeita 1996: 54, nota 5). Isso significa, parece-me, que 0 conceito e descritivo e morfologico, enquanto a no~ao de segmentaridade, como observei anteriormente, destinase, sobretudo, a caracterizar processos, nao grupos. Em segundo lugar, e preciso frisar ainda - e esse ponto e crucial- que a aplica~ao do conceito de segmentaridade nas sociedades com Esrado nao consiste, de forma alguma, na simples transposi~ao de tipologias que funcionavam entre sociedades ou culruras para urn plano intra-social ou intraculrural qualquer. Ou seja, nao se trata de supor que, no interior de sociedades estatais, 0 Estado funcione de modo inteiramente centralizado, enquanto pequenas aldeias, grandes familias, blocos afro ou terreiros de candomble obede~am a principios segmentares. Ainda que a esrrurura segmentar do Estado seja em geral uma "segmenta~odissimulada" (Herzfeld 1992a: 104), ela exisre; ao mesmo tempo, unidades segmentares sao continuamente cooptadas pelo aparelho de Estado, passando a obedecer a uma logica da centraliza~ao. Entre segmentaridade e Estado as rela~6es tambem sao de oposi~ao e de composis;ao, e e precisa reconhecer a "cad.ter necessariamente segmentar de, virtualmente, qualquer Estado-Na~ao" (Herzfeld 1992b: 63 - grifo do aurar)."

*** Tentemos, entao, refrasear a historia politica de Ilheus nos ultimos 25 anos na chave da segmentaridade, tal qual entendida aqui e levando em considera~ao radas as observa~6es ja eferuadas.4' 0 bipartidarismo do regime militar, com suas sublegendas, tentando fazer com que aquilo que era disputa em urn plano nao amea~asse 0 que deveria ser unidade em outro, e urn exemplo suficientemente obvio para dispensar comenrarios adicionais. Mais concretamente, lembremos que Jabes Ribeiro apareceu na vida politica como parte de urn segmento que era urn desmembramento de outro, comandado por Antonio Olimpio (que, evidentemente, tambem constiruiu seu segmemo ao desmembra-lo de urn anterior, e assim por diante). Jabes mostrou-se suficientemente forte para constiruir seu proprio segmento, do qual Joao Lirio poderia ser urn dos ramos. Este, conrudo, ao contrario de Jabes, nao se mostrou capaz de estabelecer sua propria linha de segmenta~ao e acabou desapatecen-

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do do cenario politico. Jabes, por sua vez, foi derrotado em 1992, justamente por aquele de quem, em certo sentido, 'descendia'.49 Mas isso s6 se rornou possivel porque Antonio Olimpio, utilizando as propriedades rizomaticas da segmentaridade, ja tratara de articulat e aliar seu pr6prio segmento a outro, mais amplo, comandado por Antonio Carlos Magalhaes. Ora, foi justamente deste que proveio Roland Lavigne, detrotado pot Jabes Ribeiro em 1996 e em 2000 - com a diferen~a de que, nessa segunda ocasiao, como veremos, tanro Roland quanro Jabes proclamatam sua liga~ao (de 'filia~ao' ou de 'alian~a') com 0 entao senador Antonio Carlos Magalhaes e com 0 presidente da Republica, Fernando Hentique Cardoso. Petcebemos, assim, que 0 que e oposi~ao em urn plano pode petfeitamente ser conjun~ao em outro. Novamente, 0 caso das sublegendas e 6bvio demais. Tambem mais ou menos 6bvio e 0 faro de que opostos no plano municipal, Jabes e Roland pudetam se reencontrar no estadual, com Antonio Carlos Magalhaes, e no nacional, com Fernando Hentique Cardoso: 'terrirorialidade' e 'descendencia' articularam-se para permitir alian~as e oposi~6es. Menos 6bvia, talvez, e a tendencia de os politicos conjugarem-se rodas as vezes que sua existencia ou seu mundo parecem estar sob amea~a. Eo que pode ser observado quando politicos de rodas as tendencias p6em de lado suas discordancias para, por exemplo, defender a democracia (posta em perigo por urn golpe de Estado ou por urn movimento social), criticar 0 baixo nivel de participa~ao politica do povo ou recha~ar acusa~6es genericas contra a "classe politica" (0 que ficou, significativamente, conhecido como "corporativismo"). 50 Nesse sentido, penso que a no~ao de segmentaridade tambem permite uma melhor compreensao das movimenta~6es politicas e dos politicos mudan~as de partidos, incongruencias programaticas etc. -, tratando-as como efeiro do funcionamento de urn sistema dotado de urn certo tipo de estrutura~ao dinamica. Esse deslocamento te6rico pode evitar, talvez, a rendencia a explicar esse tipo de fenomeno em termos puramente negativos (falta de experiencia democratica, juventude dos partidos, ausencia de legisla~ao adequada etc.) ou individualisras (dlculo, interesse, manipula~ao etc.) - processos que, certamente, existem, mas que s6 podem funcionar nos quadros de urn sistema mais amplo que cabe ao analista descrever e analisar. Se a no~ao de segmentaridade pode ajudar, entao, a compreender 0 fi.lllcionamento de nosso pr6prio sistema politico, nao parece menos verdadeiro que a aplica~ao do conceiro a esse sistema tambem gera transforma~6es no plano conceitual. Nesse sentido, e preciso observar que, ao contrario do que o caso Nuer tende a fazer crer, os diferentes segmentos do sistema nao se simam

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univocamente sabre planas uniformes do diagrama segmentar: pode ser verdadeiro que, de um ponto de vista 'genealogico', Jabes Ribeiro provenha de Antonio Olimpio (no sentido em que uma linhagem menor deriva de uma maior), mas isso nao significa que 0 primeiro seja necessariamente a<;ambarcado pelo segundo, de acordo com 0 modelo em que unidades de ordem inferior podem opor-se entre si, mas nao a uma de ordem superior. Antonio Olimpio, nesse caso, esta simultaneamente na origem hieearquica de Jabes Ribeiro e de outros politicos (0 que nao deixa de ser lembrado, com diferentes inten<;6es, por eleitores e adversarios), e figura como unidade da mesma ordem e ao lado de Jabes, 0 que permite que eles se oponham ou se aliem. Em suma, a segmenta<;ao nao esea necessariamente ligada agenealogia, e, se a nareativa diacronica pode aumentar a inteligibilidade da descri<;[o, ela nao e estritamente necessaria ou suficiente para iSSO. 51 Em outros termos, se, nas sociedades dotadas de linhagens, 0 processo de segmenta<;ao parece transcorrer sobre um plano diacronico irreversivel, ese, por outro lado, 0 conjunto das opera<;6es de segmenta<;ao e fusao esea inteiramente dado, como possibilidade, a cada instante, no caso das forma<;6es segmentares em sociedades de Estado tudo parece passar-se sobre um eixo diacronico reversivel, que permite que segmentos separados se reunam para se dissolver mais adiante e, eventualmente, se reunir de novo. Alem disso, a 'politiza<;ao' da no<;ao de segmentaridade permite perceber que nem sempre a logica do famoso proverbio arabe "eu contra meus irmaos; meus irmaos e eu contra meus primos; meus primos, meus irmaos e eu

contra 0 mundo" (Salzman 1978: 53; Favret-Saada 1966: 108) e realmente posta em peatica. Um pouco a maneira do que ocoree com as torcidas de futebol- em que e comum apoiar uma equipe mais 'distante' contra uma mais 'proxima' e, por isso mesmo, dotada de um maior potencial de rivalidade -, em politica nao e incomum que alian<;as que cortam 0 espa<;o segmentar sejam efetuadas. Desse modo, Rubia Carvalho, muito mais proxima, ideologica e 'genealogicamente', de Roland Lavigne, acaba se aliando a Jabes Ribeiro. Este, por sua vez, rompe com seus aliados de esquerda e aproxima-se de Antonio Carlos Magalhaes e de Fernando Henrique Cardoso.

*** Os principais ganhos metodologico, teorico e, eventualmente, politico obtidos com a aplica<;ao de um conceito plural de segmentaridade a nossa propria sociedade talvez sej a, na verdade, 0 aumento de nossa capacidade de

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tornar inteligiveis mecanismos por meio dos quais se da a arricula~ao entre segmentos politicos e unidades derivadas de ourros processos de segmenta~o. Pois, ao contririo do que poderia ocorrer ao confrontarmos sociedades distintas, 0 fato de estarmos as voltas com diferentes l6gicas sociais nao pode aqui ser reduzido a uma simples quesrao de alrernativas culturais - nem, muito menos, a uma especie de jogo de soma zero no qual essas l6gicas apenas se equivaleriam. Trara-se, na verdade, de mecanismos complementares assimerricos, que, longe de simplesmente se oporem ou excluirem, arriculam-se entre si, na medida em que sao alternativamente acionados, de diferentes maneiras, por agentes espedficos que atuam em contextos precisos. Os resultados sociopoliricos derivados do confronto e interpenerra~ao desses mecanismos tendem a infletir-se mais na dire~ao de alguns deles do que de outros. Nesse sentido, talvez seja necessario dar um passo a mais a fim de evirar, definitivamente, os fantasmas tipol6gicos e morfol6gicos, que, como vimos, tendem a assombrar a antropologia todas as vezes em que nos envolvemos na inevitavel tarefa de estabelecer distin~6es entre forma~6es sociais ou caracterizar processos heterogeneos. Nas poucas paginas que escreveram sobre a questao da segmentaridade, Deleuze e Guarrari (1980: 254) levantam uma curiosa questao, que deveria, talvez, estar bern no centro de qualquer investiga~ao antropol6gica das sociedades ditas complexas: "por que retornar aos primitivos, uma vez que se trata da nossa vida?" Parrindo da no~ao de segmentaridade exatamente como foi proposta na decada de 1940 pel<iS africanistas britanicos (ou seja, para dar conta de sociedades "sem Esrado"), os aurotes procedem mediante amplia~6es sucessivas do alcance do conceito. Em primeiro lugar, como ja vimos, enumeram rres modalidades de segmentaridade, bindrias, circulares e lineares (convem, talvez, repetir que essas modalidades, ou modula~6esda segmentaridade, nao constituem, de forma alguma, tipos: elas apresentam, ao contririo, urn carater dinamico, de tal forma que se passa, incessantemente, de uma a outra, como ja veremos). Em seguida, em uma manobra apenas provis6ria, tratam de distinguir uma segmentaridade "primitiva" e uma "de Esrado": se, no primeiro caso, subsisre "cerra flexibilidade", no segundo, remos uma "segmentaridade dura" (idem: 255). E, se a "segmentaridade primitiva" e flexivel, isto se deve ao faro de que os diversos centros de cada dominio de segmenta~ao (territ6rio, parentesco, idade ere.) jamais coincidem - 0 melhor exemplo disso e a impossibilidade de adequar completamente genealogia e territ6rio, impossibilidade com a qual se chocaram quase rodos os que rrabalharam com a segmentaridade. Por ourro lado,

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i~ e justamente 0 Estado que deve ser concebido como 0 espa~o de "ressonancia" de todas as segmenta~6es, as quais se tornam, desse modo, "duras": "[...J a segmentaridade tarna-se dura, na medida em que todos as centros res-

soarn [... J. 0 Estado central nao se constitui pela aboli,ao de uma segmentariclacle circular, mas por concentriciclade dos drculos distintos au por uma res-

sonancia dos centros [... J. As sociedades com Estado comportam-se como aparelhos de ressonancia, elas organizam a ressonancia, enquanto as primitivas a

inibem" (idem: 257). Em suma, "a vida moderna n[o destituiu a segmentaridade [...], ao contrario, a endureceu singularmente" (idem: 256). Esomente a "caixa de ressonancia" do Estado que pode fazer com que divis6es binarias sejam continuamente reproduzidas sem modifica~6es profundas, que os varios drculos que a todos envolvem pare~am ter apenas urn centro, e que as diferentes atividades ou institui~6es com que todos estamos envolvidos tendam para uma forma {lUica ou uma unidade transcendente. Nao se trata aqui, contudo, repito, de supor uma nova tipologia: nao ha distin~ao empirica possivel entre as segmentaridades flexivel e dura; elas estao sempre juntas, interpenetrando-se e transformando uma a outra em todas as partes (idem: 260-261). Michael Herzfeld, que bern percebeu essa rela~ao, observou que os habitantes da aldeia grega que estudou apresentavam uma compreensao muito particular das "[...] rela~6es politicas no interior do Estado-Na,ao. 0 Estado burowitico endossa urn modelo piramidal au hierarquico das rela~aes politicas. Da perspectiva dos alde6es, contuda, a relac;:ao pode. ao contrario, ser segmentar. Nesse modelo. grupos rivais de parentes unem-se na defesa de sua aldeia comumj

aldeias em disputa unem-se em sua lealdade para com uma identidade regional; e regiaes subordinarn suas lealdades competitivas alealdade maior comandada pela na,ao englobante" (Herzfeld 1985: Xl). Mas, se a interpreta~ao de Herzfeld pode ser valida para Creta e para a Grecia, creio que, no caso de Ilheus, e talvez do Brasil, ela deva ser ligeiramente ajustada. Isso porque ela parece supor que os alde6es cretenses pensem sua comunidade como uma especie de pequeno Estado, eo Estado grego como 0 segmento mais inclusivo de urn sistema segmentar de que fazem parte. Ora, se, do ponto de vista da segmentaridade circular, esse modelo e satisfat6rio, ele parece longe de esgotar todas as possibilidades. Assim, ao menos em Ilheus, esse modelo "arborescente" ('nuer')" convive com uma

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segmentaridade mais linear e "rizomatica" Cdinki), em que 0 Estado parece ser visco como urn segmento paralelo aos demais, e 0 faco de ser tido como incomensuravelmente mais forte que os segmentos locais nao significa necessariamente que seja encarado como totalidade englobante em qualquer ocasiao. Assim, do ponto de vista da segmentaridade circular, os politicos (os "grandes" ou "grand6es") parecem englobar os agentes sociais comuns (os "pequenos"), e sente-se que sao tao superiores ou poderosos que parece inutil tentar a eles se opor - melhor, portanto, apoiar aqueles que "mandam na cidade", como me explicaram Marinho e Cesar. Do ponto de vista da segmentaridade binaria, contudo, os politicos tendem a aparecer como seres de outra natureza, movendo-se em um mundo sobre 0 qual os demais agentes sociais sentem nao possuir nenhum alcance - mas eles sao todos da mesma natureza, o que explica, em parte, 0 sentimento de que "codos os politicos sao iguais". 53 Finalmente, do ponto de vista da segmentaridade linear, os politicos fazem parte de unidades com as quais e possivel estabelecer rela<;:6es de alian<;:a, assim como de oposi<;:ao. Se 0 sentimento dominante sera a inferioridade, a estranheza ou a aversao, e se a rela<;:ii.o efetivamente estabelecida sera a de adesao, alienac;ao au resistencia - au seja, se 0 sistema se segmentara ou se reCOffipora -, depende de uma serie de fatores que apenas a ecnografia pode, ao menos em parte, recuperar. Epor isso que aos mecanismos de captura e conjuga<;:ii.o respondem sempre, e incessantemente, as conex6es, resistencias e linhas de fuga. Pois as forma<;:6es segmentares mantem com 0 Estado (ele tambem cortado pela segmenta<;:ao) uma rela<;:ao semelhante a postulada por Pierre Clascres (1974; 1980) para a chefia indigena sui-americana: nos dois casos, trata-se, ao mesmo tempo, de uma prefigura<;:ao do Estado (ja que segmentos e chefia podem funcionar como polos de unifica<;:ao e centraliza<;:ao) e de uma conjura<;:ao (na medida em que a chefia indigena e impotente e que as forma<;:6es segmentares se desfazem e refazem ininterruptamente).S4 Tudo se passa entre 0 celebre adagio atribuido a Maquiavel, "dividir para governar", e sua aparente contestas:ao por parte das "tribos" em que, como escreveu Gellner, "[...] a segmentaridade

e [...] a conseqiiencia do estado de dissidencia [...] e

pode-se exprimir seu principia contrariando 0 adagio: 'Dividi-vospara nao serdes governados'" (apud Favret-Saada 1966: 107 - grifos da autora).

o problema e que, em urn regime de segmentaridade dura, tudo ressoa no (ou na dire<;:ao do) Estado, e a capacidade de divisao dos segmentos tende 180


a deixar de ser urn mecanismo contra-Estado para passar a funcionar como ponto de encaixe para a coopta~ao e a domina~ao. Pois, se, como costuma ser dito, a democracia patece, de fato, estar voltada para a administra~ao de conflitos, esta nao se da no sentido em que usualmente e entendida, ou seja, como acordos e pactos que, de algum modo, devem distribuir as vantagens entre 0 maior numero possivel de agentes. Trata-se antes, creio, de urn processo de distribui~o dos proprios conflitos, jogando conflitos contra conflitos de modo a controlar e impedir a eclosao de ontros, supostarnente mais graves, que arnea~ariarn a estabilidade e a permanencia do sistema. Desse modo, por urn lado - e ainda que, por vezes, reclamem das dificuldades para "unir os blocos" -, sao os proprios lideres negros que se mostram, em geral, muito refrad.rios a qualquer tentativa de unifica~ao. Vimos, no capitulo anterior, como Marinho reagiu, em 1996, as tentativas de Paulo nessa dire~ao; em 1997, ele se mostrava preocupado com 0 que considetava a "invasao do For~a Negra pelo MNU e pelo PT" e dizia abettamente que era "preciso conscientizar as lideran~ do movimento" pata 0 fato de que "0 MNU estava crescendo em cima do movimento afto" (Silva 1998: 114-115). Por ontro lado, esses lideres parecem ter consciencia de que essa caractetistica dos blocos - que, como no casu dos terreiros de candomble, parece funcionat evitando a constitui~ao de podetes supralocais tealmente eficazes - tende a set manipulada pelos politicos em seu ptoprio beneficio. "0 que eles procntam fazer", dizia Gilmar Rodrigues, do Dilazenze, ao lado de muitos ontros em Ilheus, "e dividit 0 grupo". Mazinho, presidente do For~a Negta em 1992, fotneceu uma explica~ao mais complera: "Nos pensamos em calocar urn representante nosso hi. A genre via

0

descaso,

a humilha~ao, e vimos a possibilidade de ter uma 1ideran~a negra na Camara dos Vereadores. Ai surgiu 0 nome de Mirinho, que nos lan~amos no ultimo ano de ]oao Lirio. Fechamos com Mirinho. Mas quando chegou na hora, apareeeu politico com dinheiro e os bloeDs come<;aram a se dispersar. Os bloeDs naG criaram consciencia polftica. Se rodos os bloeDs se juntassem, teria como calocar urn representante nosso la. Eles eram coesos ate determinado momenta, mas na hora do dinheiro, entrava aquela lei de levar vantagem em tudo e os

b10cos se dispersavam. 0 que aconrece quando chega 0 tempo de political Voce esta rrabalhando com determinado grupo, chega um cara e diz que tem R$ 25,00 pra voce, voce 1arga e abra~a esses R$ 25,00. 0 que aconreceu foi isso: quando viram que a articulalf5.o estava forte, surgiram propinas e ai alguns bloeDs se dispersaram".

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o pior, contudo, e que esse e urn jogo que 0 movimento afro-cultural parece nao poder ganhar de modo algum. Pois, se a divisao interna facilita a captura por parte das fon;:as de Estado, 0 mesmo ocorre quando se busca a unidade, por vezes tao decantada. Nao e por acaso, como vimos, que a Prefeitura de Ilheus parece ser a maior interessada na existencia de alguma instancia superior aos pr6prios blocos: pois ela pode sempre recorrer a essa instilncia quando urn ou outro bloco se mosua mais diffcil de tratar (assim como pode recorrer aos blocos individualmente se a instancia superior demonstrar alguma resistencia). De fato, como observou Herzfeld (1996: 77), 0 Estado procura sempre imprimir sua pr6pria forma aos grupos com que entra em rela~ao - e isso inc1ui aqueles que a ele se op6em, bern como os movimentos que, voluntaria ou involuntariamente, dele tentam escapar. 0 "segmendvel", como diz ainda Herzfeld (1992b: 63), e, simultaneamente, 0 "unific:ivel", e a segmentaridade, ao contrario do que se costuma imaginar, nao consiste na divisao de uma suposta unidade primeira em entidades discretas, mas na conversao de multiplicidades em segmentos, ou seja, em unidades simultaneamente divislveis e unific:iveis, de acordo com multiplas estrategias, que van da repressao it resistencia, passando pela manipula~ao e pela coopta~ao.

*** A hist6ria do Centro Mro-Cultural de Ilheus permaneceu no cora~ao das rela~6es entre 0 movimento negro e 0 poder municipal ao longo de pelo menos dez anos. Durante as elei~6es de 1996, havia urn boato constante de que 0 governador da Bahia assinara, "em segredo", a doa~ao de urn terreno para a constru~ao do Centro. Mirinho, que nesse momento apoiava Roland Lavigne, era urn dos principais divulgadores da notfcia. No final da campanha, repetia-se com certa insistencia que, caso a situa~ao vencesse as elei~6es, o Centro seria finalmente construldo. Em 1997, Silva (1998: 90-93) observou 0 assunto ser levantado em duas ocasi6es: quando Gurita prometeu que levaria a questao it Camara dos Vereadores caso tivesse a oporrunidade de assumir 0 cargo (uma vez que era suplente); e, na Sessao Especial da Camara pelo Dia da Consciencia Negra," quando - ja no final do evento - Dino Rocha cobrou a consttu~ao do predio. Um vereador do PT respondeu que tinha informa~6esde que a constru~ao do Centro estava prevista no on;amento municipal para 1998. Tambem em 1998, ao deixar 0 cargo de Gerente de A~ao Cultural da Funda~ao Cultural de Ilheus, Moacir Pinho deixou cinco

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I

projetos de interes.se da comunidade negra, sendo que urn deles era a do Centro Mro-Cultural. E, ainda em 1998, sete blocos afro decidiram apoiar a candidatura de Gilda Pinto a Assembleia Legislativa - candidatura que, como todos sabiam, visava apenas preparar a tetreno para sua reelei<;:ao como vereadar nas elei<;:6es de 2000. Esse apoio, na verdade, jamais se traduziu em alga de concreto, mas a documento de apoio, assinado pelos representantes dos blocos, mencionava explicitamente a Centro Mro-Cultural de Ilheus: "as blacos afro Dilazenze, Rastafiry, Miny Kango, Raizes Negras, D'Logun, Males e Gangas, declaram apaia a candidatura de Gilda Pinto para Deputada Estadual, tendo em vista a conceiro do candidaro junto as entidades de cultura afro, e peIo apoio espontaneo que Gilda sempre prestou a essas agremiac;6es

para a realiza<;:ao das seus projetos eulturais. Uma das bandeiras de Gilda em defesa do Mavimenta Negro de Ilheus e a constru<;:aa do Centro de Cultura Mra, espa<;:a fundamental para difundir as atividades culturais das entidades que subscrevem a presente declara<;:aa de apaia". Em 1999, falava-se do tema apenas de vez em quando, mas, finalmente, em 2000, como vimos, e j<i par ocasiao de novas elei<;:6es municipais, a assunto ganhou fDlego e acabau, de uma forma au de outra, conduzindo a cria<;:ao do Memorial da Cultura Negra de Ilheus.

NOTAS

'Ver Cunha (1991: 290, 2%), Guerreiro (1998: 104-109), Lima (1998: 164-166), Morales (1991: 80), Riserio (1981: passim), Schaeber (1998: 146) e Veiga (1998: 123-124). 2 Ao narrar a genealogia dos blocos afro de Ilheus, Marinho Rodrigues ohservou, com cerro orgulho, que "acho que 0 Dilazenze e 0 unico bloeD de onde nao saiu ninguem", ao que sua esposa acrescentou, ironicamenre, "ainda nao!" Para uma descril1ao complera cia hist6ria dos blocos afro de Ilheus, ver Silva (1998, 2004); para uma analise mais detalhada cla quesrao dos ritmos nesses mesmos blocos, ver Cambria (2002). Observe-se, tambem, que problemas de edi'fio fizeram com que a descri<;ao da genealogia dos blocos afro de Ilheus em Goldman

(2001b: 59) ficasse truncada. Ver Apendice 5. Em consonancia com a advertencia feita na Inrrodu<;io, sublinho que hi certa confusio nativa em torno do numero de blocDS efetivamente existentes em urn determinado momento, confusio que se estende para suas datas de funda<;ao e mesmo para a grafia de seus names. Creio que isso explica, em parte, diferen<;as menores (pelas quais, mais uma vcr, pe<;o desculpas ao leitor) observaveis entre este texto e Goldman (2000; 2001a; 2001b).

3

Urn pomo, em especial, costuma scr deixado de lado: 0 fato de os blocos afro estarem relacionados a algo como classes de idade ou, para ser mais preciso, 0 fato de incidirem mais

4

183


diretamente sobre faixas ed.rias espedficas, como a adolescencia e a primeira juventude. A partir de certa idade. os participantes tendem a diminuir seu grau de envolvimento com 0 grupo ou mesmo a abandona-Io, e apenas os que assumem posi'roes de lideranp contrariam essa tendencia. Da mesma forma, em Salvador, os blocos afro estao ligados a regioes especificas, e tanto as rela'roes de parentesco quanto as religiosas desempenharn urn papd fundamental (ver, entre outros. Agier 2000 e Guerreiro 1998). Agler, alias, percebeu bern as implica'roes dessa multiplicidade de penencimentos, observando que, na sociedade brasileira em geral, haveria "uma concorrencia e uma rela'rao entre diversos modos de identifica<;ao social, seja no plano coletivo, seja no decorrer de cada hist6ria individual" (Agier 1992: 54). 0 unico problema aqui eque essa multiplicidade de modos de identifica<;ao nao ecaractedstica deste ou daqueIe sistema social ou cultural espedfico, mas a conseqliencia universal do fato de que identidades sao sempre 0 resultado do empobrecimento e da sobrecodifica<;ao de urn mimero infinito de pertencimenros - a uma familia, genero, idade, regiao, religiao etc. (ver Serres 1997). 5

E significativo que, no livro que escreveu a partir do artigo sobre a teoria cla linhagem, Kuper (1988) sustente que essa teoria seja a principal responsivel pela "ilusao da sociedade primitiva" e, ao mesmo tempo, que 0 abandono dessa ilusao nao passe pela supera'rao da propria ide:ia de sociedade, como sugerem, entre outros. Strathern et alii (1996) e Toren (1999: 1-21).

6

70 leitor inreressado pode consultar, entre outros, Dumont (1970), Salzman (1978), Meeker (1979), Kuper (1982; 1988), Karp e Maynard (1983) e Dresch (1986). Uma an:ilise mais detalhada de todo 0 debate pode ser encourrada em Goldman (2001b). 8

"Af, ide:ias nao morrero. Nao que elas sobrevivam simplesmente a drulo de arcafsmos. Mas,

em urn momento, elas puderam atingir urn esd.gio cientifico, e depois perde-Io, ou enta~ emigrar para outras ciencias [...]. Af, ide:ias, elas sempre voltam a servir, porque elas sempre serviram, mas segundo os mais diferentes modos atuais" (Deleuze e Guattari 1980: 287). E por isso que Jeanne Favret-Saada pode sustentar que "uma disposi<;ao para a segmenta<;ao" emais importante que a segmenta<;ao propriamente dita, e que urn sistema segmenrar parece repousar menos sobre a "oposi<;ao dos segmenros" do que "sobre a reparti<;ao das oposi<;oes sobre urn cerro numero de niveis ou de encaixamentos ordenados uns em rela<;ao aos outros" (Favret-Saada 1966; 109-11 0).

9

''A teoria da linhagem e a segmenta'rao nao sao a mesma coisa; de faro, elas representam dois diferenres tipos de anrropologia. 0 primeiro trata de seqliencias de eventos no plano da observa<;ao (e em particular com a aparencia dos grupos), enquanto 0 segundo trata de rela<;oes formais que caracterizam os tipos de eventos possiveis" (Dresch 1986: 309). 10

II Ate mesmo 0 carater "banal" da segmenraridade rambem costuma ser, paradoxalmenre, utilizado quando se esgotarn todos os argumenros contra sua generaliza<;ao (Herzfeld 1987: 158).

12 0 movimento de dessubstancializa'rao e generaliza<;ao do conceito de segmentaridade que, como vimos, sempre existiu ao lado das perspectivas mais institucionalistas - ganhou novo folego a parrir do final da decada de 1979, quando, como relata Herzfeld (1987; 219220, nota 5), alguns antropologos (em sua maioria da Universidade de Indiana), estabeleceram, entre eles, urn debate em torno da "relevancia do conceito de segmenta<;ao". Esse deba-

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te acabou sendo crucial para alguns importantes trabalhos daqueles que dele participaram:

Herzfeld (1985; 1987; 1992a: 1992b), Karp e Maynard (1983), Meeker (1979) e Salzman (1978), entre outros. 13 Como j:i escrevera Bastide, em 1960, "os candombles tradicionais podem sern duvida, em certoS casos, se multiplicar por cissiparidade" (Bastide 1960: 523); ou, "e cerro, tambem, que os candombles tradicionais nascem por cissiparidade, a partir de uma celula unica" (Bastide

2000: 86). 14

Tomemos, pois, apenas para as necessidades da causa, a definic;ao de sistema segmentar

proposta pot Dumont (1970: 73): "Dado urn sistema de grupos em que os grupos A, B, C, D etc. compreendem subdivis6es de primeira ordem AI, Al, A3, BI, B2, B3 etc., que, por sua va, compreendem subdivis6es de segunda ordem, Ala, Alb etc., Bla, BIb etc., e assim sucessivamente [...1. sistema chamado segmentar se as subdivis6es das diversas ordens coexistem virtualmente a cada instante e s6 se manifestam alternativameme em situa~6es determinadas".

a

e

15 Conectividade, heterogeneidade e multiplicidade, bern como 0 carater a-significante, nao estrutural e nao generativo, constituem os "seis prindpios do rizoma", em oposic;ao a"mo-

te" (Deleuze e Guattari 1980: 15-25). 16 Ver, por exemplo, Barbosa (2001), em que esse conceito alargado de segmentaridade serve como instrumento para uma analise criativa do trifico de drogas no Rio de Janeiro e de suas

tela,oes com 0 Estado. Ver, tambem, Barbosa (1998; 2005). 17

E claro que os generos podem superpor-se e, por vezes, a classificac;ao e artificial. De toda

forma, apenas como arnostra do ptimeiro genero, vet: Afonso (1991), Almeida (1999; 2000), Andrade (1996),Asmar (1983; 1987), Augel e Guetreiro (1974), Barbosa (1994), Barickman (1995), Couto (1998), Falcon (1995), Fteitas (1979; 1992), Gatcez (1977), Gatceze Fteitas (1979), Gatcez e Matroso (1978), Gaspatetto (1986: 1993), Goldman (1999; 2000; 2001a; 2001b; 2003), Kent (2000), Leeds (1957), Macedo e Ribeiro (1999), Mahony (1996; 1998; 2001a; 2001b), Menezes (1998), Nogueira (2004), Paraiso (1982; 1989), Ribeiro (2001), Ruf e Lacbenaud (2002), Santos (1957), Santos (2001), Silva (1975), Silva (1998; 2004), Valla (1976), Viegas (1998; 2003), Wright (1976) e Zehntner (1914). Para 0 segundo genero (trabalhos encomendados ou patrocinados pela Ceplac), ver: Monso e Barroco (1970), Alencar (1970), Caldeira (1954), Ceplac (1970; 1975; 1982; 1991; 1998), Costaet alii (1971) e Seligson (1971). Para

0

terceiro genero (trabalhos escritos por habitantes

de

Ilheus e da

regiao), vet: Aguiat (1960), Almeida (1996), Aquino (1999), Barros (1915; 1923: 1924), Bondat (1924; 1938), Brandao e Rosatio (1970), Btito (1923), Catdoso (2002), Castro (1981), Costa (1992; 1998), Heine (1994a: 1994b), Lavigne (1955; 1958; 1971), Lipiello (1994; 1996), Matcis (2000), Peteita Filho (1959; 1981), Pessoa (1994), Sa Barreto (1988), Sales (1981), Schaun (1999), Silva Campos (1937), Vieita (1993) e Vinhaes (2001). Finalmente, entre os romances, contos e congeneres, esrao: Aguiar Filho (1946; 1952; 1962; 1968;

1971: 1976; 1981), Amado (1933; 1944; 1946; 1958; 1982; 1984), Ceplac (1979), Mattos (1997) e Simoes (1987). 18 Mahony, em comunicac;ao pessoal, conta que, ao apresentar seu trabalho nesse encontro na VESC, foi censurada por aceitar como verdadeira 0 que seria apenas uma versao da histo-

~

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ria contada por uma das familias tradicionais da regiao. A pessoa que a censurou vinha de uma familia que contava uma versao bern diferente dos fatos, 0 que fez com que se sentisse na obriga<;ao de interpelar a conferencista. 19 Leia-se, por exemplo, 0 ultimo paragrafo do livro de Silva Campos, publicado em 1937 mas escrito sob encomenda de urn prefeito para comemorar 0 cinqiienrenario da eIeva<;ao de Ilheus acategoriade cidade: "Eis ai, em proje<;-io nitida na tela da realidade, 0 que e Ilheus de hoje. Comparemo-Ia mentalmente com 0 malacafento burgo quinhentista fundado pelo capitao casteIhano, que tinha 'bra<;os as armas feito', ouvidor analfabeto e administrador desastrado. Com 0 insignificante vilarinho dos amargurados tempos em que, sedenta de vingan<;a, a bugrada cerval mantinha em xeque as seus mesquinhos habitantes, for<;ando~os a cultivar as quintais a fim de nao perecerem inanidos de fome. E tudo a que'e deve, unicamente, numa labuta penosa e incessante de quatro seculos, aos esfor<;os do elemento nativo e agenerosidade inesgotaveI da terra. Sua prosperidade atual e assim urn beIo capitulo de nossa hist6ria economica, e convincente arestado da capacidade realizadora da nossa gente" (Silva Campos 1937: 529).

Urn parecerista anonimo de Ethnos considerou essa posi<;ao urn exemplo, negativo eclaro, de uma "posi<;ao metodol6gica favor:lvel as diversas perspectivas p6s-modernas e deseonstrucionistas", as quais "beiram a absurdo, transformando-se em modos de negar a realidade empiriea e a impowlneia de se tenrar dizer algo sobre a que sao as cireunsdneias e as 'estruturas' da existeneia". Nesse sentido, servem de "deseulpa para nao realizar alguma eontextualiza~o seria". 0 artigo (Goldman 2001a) aeabou sendo publieado sem 0 treeho em questao, mas eu gostaria de deixar claro que, de meu pontO de vista, nao e de nada disso que se trata, nem p6s-modernismo, nem deseonstrueionismo. Penso, como Guattari (1986a), que essas eoisas nao passam de doen<;as terminais do modernismo, paradigmas "de todas as submiss6es, de todos as compromissos com 0 status quo". A posi<;ao que defendo apenas radiealiza uma formula<;ao cl:issica da antropologia, que remonta a Malinowski, sustentando, simplesmente, que "a hisr6ria nao e, pois, nunea a hist6ria, mas a hist6ria-para", segundo uma expressao de Levi-Strauss (1962: 341) difieilmente superavel em termos de eoneisao e preeisao. Esta rambem me parece ser, alias, uma das conclus6es de Gow (2001, em especial, a "Inrrodu<;ao"), urn dos melhores exemplos de aplica<;ao de uma perspeetiva levistraussiana a historicidade das soeiedades ditas sem hist6ria.

20

21

Ver Apendice VII.

0 que signifiea uma absten<;ao de quase 24% do eleitorado. Alem da alta taxa, que se repete em todas as elei<;6es, a eolegio eIeitoral de Ilheus tern a particularidade de representar menos de 48% de sua popula<;ao. 0 de Itabuna, eidade vizinha, par exemplo, representa mais de 68% da popula<;ao. De aeordo com a vereador Joabes Ribeiro, Ilheus seria a eidade baiana "onde ha a mais distorcida propar<;ao entre habitantes e e1eitores".

22

Exisre, tambem, uma importanre minoria indigena, que vern aparecendo eada vez mais nos ultimos anos -vet Pataiso (1982; 1989), Batickman (1995) e Viegas (1998, 2003).

23

Apropria<;6es que costumam passar peIo filtro da mfdia, originando-se mais nas novelas de teIevisao au filmes de cinema do que nos livros propriamente diros. Alem disso, a rela<;ao da cidade com a obra de Jorge Amado nao e tao homogenea au constante quanta se pode ima24

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ginar. Conta-se que, ate a decada de 1970, seus livros, considerados comunistas e pornogd:ficos, eram proibidos no Instituto Nossa Senhora da Piedade. Hoje, sao praticamente obrigat6rios. Os membros do movimento negro, por sua vez, costumam protestar contra 0 exclusivismo de sua obra como representante da "cultura regional", observando 0 faro de que sistematicamente excluem personagens negras. 25 Sobre 0 turismo em I1heus, ver Menezes (1998). Como observa a aurora, "Em geral, a 'natureza e a hist6ria' sao aponradas como os dois 'fil6es' de explora\ao do rurismo em Ilheus, porem 0 que se entende como 'hist6ria' por vezes tambem e acionado sob 0 nome de 'tradi,ao' ou 'cultura de I1heus'" (Menezes 1998: 12).

Sobre 0 carnaval antecipado, visro pelo movimento negro como "carnaval de brancos", ver Menezes (1998: 84-85) e Silva (1998: 106, 117).

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parece estar se alterando hoje, mas, desde 1997, Menezes (1998: 79-80) obseryou a polemica em rorno da possibilidade de uso turistico dos grupos negros em geral. 0 trabalho de Menezes (1998: 23) revela, tambem, como uma estrutura segmentar esta em jogo nessa polemica, uma vez que diferenres niveis de inclusao identitaria podem ser acionados: "ilheense", "baiana", nordestina", "brasileira", e assim por diante. 27 Asitua\ao

Para uma rapida revisao das diferenres fmmas em que 0 quesiro "cor" foi utilizado nos Censos brasileiros ao longo da hist6ria, ver Posada (1984).

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29 Ver Falcon (1995: 122-123, 128, 139-140), Vinhaes (2001: 113-156), Ceplac (1982: 26) e Freiras (1979). 30 Ainda que 0 Agora de 10-16/1/1992 anunciasse em sua manchete principal: "Sai a ZPE de I1heus", explicando que 0 governo federal aurorizara a "instala\ao de uma Zona de Processamento de Exporta\6es (ZPE) em Ilheus", instala\ao cuja cria\ao era disputada pdo prefeito Joao Lirio e pelo candidato Antonio Olimpio. 31 A pagina 5 do Agora de 22-28/5/1992 noticiava que Jabes estaria tenrando uma coliga\ao de esquerda, envolvendo PT, PSB, PCdoB e PDT, com seu irmao, Joabes, afrente. 31 Nero do medico que deu 0 nome a principal avenida de Ilheus, residencia de parte das familias da dite da cidade, cuja maioria nao tern a menor ideia de que Soares Lopes era negro.

A coluna politica do jornalista Marcos Correa, na pagina 8 do Agora de 2-7/5/1992, noticiava: "Ronaldo Santana lanlYa seu nome para prefeito pdo PL", sem fazer qualquer menlYao, novamente, ao fato de 0 candidato ser negro. 0 candidato, por sua vez, lembrava constantemente aos militantes negros que havia nascido em uma das partes mais pobres da Conquista (conhecida como Jamaica) e que fora menino de ma. 33

Alem da sede, 0 Municipio de Ilheus possui nove disrriros e cerca de quarenta povoados e arraiais. Alguns deles se siruam a rna is de 50 km de discancia da sede.

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35 Urn militanre do Rastafiry lembrou que "0 imporranre mesmo foram as passeatas que a genre fazia em Ilheus, nos distritos; 0 apoio que davamos nos comicios deles".

Ebern possivel que a aparenre complexidade do aparelho de Estado, do qual uma das pedras angulares e, sem dtivida, a divisao dos poderes, sirva tambem para explicar e, talvez, jusrificar e

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legitimar aquilo que de urn ponto de vista mais 'simples' poderia ser encarado como ilusao e traic;:ao. 37 Essa declara,!ao revela, alias, uma enorme clareza em rela,!ao ao papel dos chamados mediadores, tema que sera. abordado no quinto capItulo. 38 Ver, por exemplo, Caldeira (1980; 1984). No primeiro texto, a aurora insiste em exemplos que demonstrariam a suposta ininteligibilidade do discurso politico para os moradores da periferia de Sao Paulo, atribuindo, bondosamente, sua aliena'!ao a "falta de informa<;ao" (Caldeira 1980: 84, 87-88, 108, 115). No segundo, uma monografia, apos insisrir no faro de que a "homogeneidade" dessa periferia se deve a"pobreza" , "falta", "carencia", "dificuldade" etc., sugere que 0 pensamento politico de seus informantes esca preso em drculos viciosos (Caldeira 1984: 198) ou "acaba enrrando em uma especie de drculovicioso" (idem: 219), e que 0 discurso de alguns deles eurn verdadeiro '''samba do crioulo doido'" (idem: 269). No final, de modo tambem caridoso, Caldeira explica que a fragmenta'!ao e as contradi<;oes nos discursos de seus informantes se explicam pela complexidade da sociedade em que vivem (idem: 283-284). Como observou Magalhiies (1998: 115), conrudo, as bricolagens eferuadas pelos eleitores com suas concep<;oes e op'!oes politicas jamais derivam da pura desinforma,!ao ou da simples ignorancia.

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Sobre os dois ultimos ponros, ver Villela e Marques (2002: 76, 83-84).

Nos termos de Deleuze (1990: 221-222), os eleitores estao sempre entre a "quita,!ao aparente" (ou seja, imaginam que saldaram sua divida, mas ela, certamente, ainda sera cobrada mais uma vez) e a "moratoria ilimitada" (quando se posterga 0 pagamento, mas se mantem a obtiga,iio). Sobte esse ponro, ver, tambem, Villela e Marques (2002: 65, 72, 76, 81, 91, 94), Borges (2004: 110, 138-139) e Kuschnir (2000a: 39-40). 40

4l Como dizia alguem em I1heus, "negro nao vota em negro, pobre nao vota em pobre, mulher nao vota em mulher". curioso e que a mesma pessoa dizia, tambem, que, "na hora que o homem tern voto, sua condi,!ao social ou racial nao conta".

a

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Nos termos de Gaxie e Lehingue (1984: 33), "em politica, 'dizer e fazer"'.

Como sugeriu Tambiah (1981: 128), e preciso combinar a ideia do "performativo" da filosofia da linguagem com a de "performance" como arua'!ao - e isso nao apenas no sentida de atua'!ao teatral, mas naquele de "atuar sabre", "influir", 0 que tornaria quase inutil a advertencia de Bourdieu (1982: 95-96) de que "a eficacia simb6lica das palavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exerce-Ia de direito". Pois nao ha quem nao saiba que "a fon;a ilocut6ria das expressoes", seu poder instituinte, nao pode ser buscada "nas pr6prias palavras", mas no carater "institucianal" cia linguagem, na "autoridade" de quem a utiliza.

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Cren'!a que, e claro, nao se confunde com outras, na medida em que existem, como sustenta Veyne (I976: 624), "diferenres modalidades de cren,a", dotadas de "sabores diferentes": "cren'!a-assertiva, cren<;a-delibera,!ao, ato de fe, crem;a-promessa,16gica ideol6gica etc." (enfase minha). A "crenp-promessa", alias, ilustra com precisao 0 que Mannoni (1973) considera a estrutura basica das crenps em geral, a qual pode ser resumida na famosa formula<;ao "eu sei, mas mesmo assim ... ", aplicavel, aparentemente, tanto a horoscopos ("sei que sao falsos, mas mesmo assim...) quanta a politicos ("sei que ele mente, mas mesmo assim... ").

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Como escreve Garrigou (1992: 237-238), urn tanto acidamente, "a poHtica democratica e urn mercado de promessas batizadas de programas" (acrescentando, em nota, que isso "nao e uma perversao, mas a pr6pria substancia da democracia deitoral"). 45

Barreira (1998: 49) contrasta as promessas com os acordos, sublinhando que as primeiras sao publicas e tendem a nao ser cumpridas, enquanto os segundos costumam ser restritos e, via de regra, cumpridos.

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47 Foi justamente a adoC;ao desse tipo de perspectiva que permitiu ao proprio Herzfeld desenvolver uma sofisticada analise de uma aldeia grega, na qual demonstra, etnograficarnente, como segmentaridade e centralidade estatal se op6em e se combinam sirnultaneamente: as eleic;6es locais, por exemplo, s6 ganham inteligibilidade quando encaradas do ponto de vista da "polltica segmentar" (Herzfeld 1985: 99), e mesmo as eleic;6es nacionais s6 se mostram compreensiveis quando tratadas como "poHtica segmentar estendida" (idem: 111).

48

Ver Apendice VI.

E claro que se "segmentac;ao" pode ser aplicada em sentido pr6prio a vida politica das sociedades com Estado, noc;6es ligadas a ideia de descendencia devem ser compreendidas em sentido apenas analogico. 49

Lembro-me da repentina concordancia entre tres deputados briranicos de partidos diferentes -e que ate aquele momento do debate so haviam discordado - quando 0 entrevistador do programa de televisao de que participavam levantou a questao dos protestos contra a "nova ordem mundial": todos foram rapidos e unanimes em lembrar a necessidade de os protestos serern trazidos para 0 interior da poHtica oficial. 50

Essa mesma dualidade de prindpios e observavel no caso dos blocos afro. Em Salvador, por exemplo, 0 He Aiye pode ser reconhecido como origem de todos os blocos sem que isto impec;a que haja competic;ao entre eles - seja nos desfiles de camaval, seja na busca de reconhecimento, projec;ao e sucesso.

51

"Como bem observaram tamo Jeanne Favret-Saada (1966: 107) quanta Adam Kuper (1982: 84),0 modelo nuer s6 apresenta 0 aspecto de arvore cia perspectiva de urn observador externo; do ponto de vista de urn individuo que fac;a parte do sistema, surge, antes, como uma serie de drculos concentricos, em relac;ao aos quais ego ocupa a posic;ao central e a "tribo" representa 0 drculo mais extemo, com as linhagens e os chis intercalando-se entre ambos. 53 Partindo desse sentimenro de quase irritac;ao que todos costumamos experimentar quando ouvimos alguem dizer que "todos os politicos sao iguais", Magalhaes (1998: 52) acabou par concordar com seus informantes, na medida em que "os politicos e os parridos sao percebidos como iguais porque, de fato, ocupam posic;ao homogenea frente aos eleitores, tern 0 mesmo objetivo imediato, etc.", e em que "as politicos sao tornados em conjunto, pertencem a urn rnundo aparte, do qual os comuns nao fazern parte" (idem: 113 - grifo da autora). Reitero apenas que isso so everdadeiro quando se toma 0 ponto de vista da segmentaridade binaria.

Como sugeriu Gellner, a "vontade de autonornia em face de urn poder central" seria urn tra<;o de unidade das tribos da Africa do Norte" (apud Favret-Saada 1966: 107); Salzman (1978: 63), por sua vez, demonstrou como a organizac;ao segmentar dos Yomut sempre funcionou como uma rnaquina de guerra contra 0 Estado persa; e, no plano tearico, Karp e 54

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Maynard (1983: 488) sugerem que "as Nuer contribuem com urn exemplo negativo para a teoria do Estado". Criado peIo movimento negro a fim de servir de contraponto as comemorac;6es oficiais do 13 de maio (abolic;ao da escravidao, denunciada peIo movimento como "falsa abolic;ao"), a Dia da Consciencia Negra passou a ser ceIebrado, a panir de 1971, no dia 20 de novembro, data na qual, em 1695, teria sido assassinado Zumbi dos Palmares, Hder do maior quilombo e da maior resistencia negra da hist6ria do Brasil. 55

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CAPfTUL04

2000:

Ii

ELEI<;:6ES

Ao contdrio do que ocorrera em 1996, a sirua~ao do movimento afrocultural de Ilheus por ocasiao das elei~6es municipais de 2000 - bern como suas rela~6es com 0 poder municipal - parecia bern menos problemarica. Desde 1997, os grupos vinham novamente parricipando do carnaval da cidade e, para isso, haviam recome~do a receber urn auxilio financeiro por parre da Prefeitura. A parrir de 1999, a competi~ao entre os blocos havia sido reintroduzida, e ate mesmo a premia~ao para 0 vencedor do desfile que nao fora paga naquele ana (evento que sed analisado no proximo capirulo), acabara converrida em urn adicional financeiro que 0 Dilazenze receberia no carnaval seguinte. Finalmente, no carnaval de 2000, a Prefeirura extinguiu 0 Ilheus Folia, fazendo com que 0 unico carnaval da cidade voltasse a ser 0 Culrural, evento no qual os blocos afro ocupam, vim os, uma posi~ao central. Alem disso, nao e exagerado dizer que, ao longo dos tres primeiros anos do segundo mandato de Jabes Ribeiro, as rela~6es entre 0 movimento negro e a Prefeirura haviam sido, no minimo, razoaveis, ao contdrio do que ocorrera na adminisrra~ao anterior, de Antonio Olfmpio. A ternida retalia~ao contra os grupos que haviam apoiado Roland Lavigne em 1996 acabou nao ocorrendo, e 0 movimento, sem duvida, tinha acesso mais facil aos orgaos municipais com os quais precisava relacionar-se (principalmente a Funda~ao Cultural de Ilheus e a Ilheustur). Ate mesmo 0 afastamento de Moacir Pinho (dirigente do MNU local) da Funda~ao Cultural de Ilheus em 1998 - conseqiiencia do rompimento do PT com 0 governo municipal que anunciara seu apoio areelei~ao de Fernando Henrique Cardoso aPresidencia da Republica - parecia, aos olhos dos membros do movimento afro-cultural, facilitar, e nao complicar, as rela~6es com a Prefeirura e a administra~ao municipal. Nao se deve imaginar, entretanto, nenhum cenario muito idilico para as pretens6es e desejos dos militantes negros. Os grupos afro continuavam a sentir que eram mais ou menos desprezados, tratados como inferiores, preteridos em muitas ocasi6es em beneficio de outros grupos - como as academias de bale classico e moderno, que proliferam em Ilheus, 1 ou as atra~6es contratadas de fora da cidade, como grupos de pagode, trios elerricos, e outras. Sentiam, tambem, que os pagamentos a que faziam jus por suas apresenta~6es

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eram muito baixos, efetuados com atrasos ,espantosos e, por vezes, nem mes-

mo realizados. Nesse cenario, e evidente que muiros blocos e militantes pretendiam desenvolver durante "a politica" de 2000 0 mesmo tipo de "trabalho" que sempre haviam realizado: rrabalhar para quem os conrratasse profissionalmente; pedir votos para quem com eles conseguisse estabelecer urna rela¢io urn pouco mais estivel e duradoura; votar seguindo suas linhas de Iealdade (pessoais, familiares, do proprio grupo, de outros grupos de que faziam parte ou mesmo partidarias e ideologicas) e de acordo com sua "consciencia". E daro que a no~ao nativa de "voto consciente" nao deve ser confundida nem com 0 pressuposto de que a analise das elei~6es deve partir da existenciade urn "cidadao informado, atento e consciente" (Gaxie 1978: 13), nem com 0 tema de que apenas uma conscientiza~ao politica efetiva pode fazer com que os eleitores votem corretamente. Assim como Palmeira (1991: 123; 1996: 47-49) e Villela e Marques (2002: 65-66, 69, 97) observaram em Pernambuco, em Ilheus, votar "conscientemente" significa, em geral, votar de acordo com ao menos uma de suas lealdades, e nao simplesmente por dinheiro ou a mando de alguem. Herzfeld (1985: Ill) tambem observou a expressao "eu tenho minha consciencia", que, em Creta, significava, basica-

mente, votar de acordo com 0 "costume", e nao vendendo de forma mercantil 0 voto- mesmo sentido assinalado por Banerjee (1999) na fndia. Se acrescentarmos a isso 0 apelo, por parte de politicos e candidatos, ao "voto consciente" como forma de advertencia contra a venda do voto (Scotto 1994: 47; Villela e Marques 2002: 82; entre outros), podemos conduir que, assim como ocorre com outros principios da democracia participativa,' estamos aqui as voltas com varia~6es locais em torno de temas tidos como centrais tanto pela ideologia democdtica quanto por muitos analistas do processo eleitoral. 0 que nao significa, tampouco, que tais varia~6es sejam simples desvios ou deturpa~6es: 0 "voto consciente" em Ilheus e tao consciente como em qualquer outro lugar ou grupo, apontando, no final das contas, para a importancia do estabelecimemo de rela~6es mais duradouras e menos imediatistas. Por outro lado, em 2000, 0 assedio ao movimento afro-cultural parecia mais imenso, assim como 0 esfor~o de alguns candidatos para conquistar 0 direito de se lan~arem como representantes desse movimento. Urn deles, certamente, era Gurita, que se apresentava agora como professor Gurita, concorrendo, mais uma vez, a uma vaga de vereador. Ele argumentava que sua derrota nas elei~6es de 1996 era urn fato inteiramente previsivel, pois, naquele momento, estava apenas come~ando a preparar sua carreira. E que, portanto, 0 pleito de 2000 consistia no momento adequado para que, finalmen-


te, 0 movimento negro da cidade elegesse um representante na Camara Municipal. Marinho Rodrigues - nesse momento presidente do Dilazenze, do CEAC e, sem duvida, 0 nome mais conhecido do movimento negro de llheus - pretendia apoia-lo, mas encontrava algumas dificuldades para faze-lo. Em primeiro lugar, nao eram poucos os que recordavam a arua<;:ao de Gurita no carnaval de 1999, quando, suposramenre, reria colaborado para privar 0 Dilazenze do premio a que tinha direiro por rer vencido a competi<;:ao dos blocos (como veremos no pr6ximo capirulo). Sua performance nas elei<;:6es proporcionais de 1998 - quando fora um dos coordenadores da campanha de Rubia Carvalho para deputado federal- tambem era questionada, uma vez que, dizia-se, ele nao teria cumprido os inumeros compromissos e promessas que teria eferuado a fim de obter votos para sua candidata. Uma das irmas de Marinho, por exemplo, ainda reclamava por nao ter recebido 0 material de constru<;:ao para a reforma de sua casa, material que, supostamente, teria sido prometido a ela. Alem disso, e preciso observar que, entre 1997 e 2000, Gurita funcionara como uma especie de mediador entre 0 movimento afro-cultural e a administra<;:ao municipal de Ilheus (tema que sed abordado com detalhes no proximo capirulo). Como ja vimos, os voros que conquistara em 1996, mesmo nao tendo sido suficientes para elege-lo como vereador, 0 haviam credenciado como detentor de um razoavel capital polftico, assim como ocupante de uma importante posi<;:ao na rede de rela<;:6es com 0 movimento negro. Sua nomea<;:ao para a chefia da Divisao de Esportes da Secretaria Municipal de Educa<;:ao decorrera desse diagn6stico e 0 colocara em uma posi<;:ao em que, supostamente, possuia os meios para articular 0 relacionamento entre 0 movimento afro-culrural e a Prefeirura. Por outro lado, essa posi<;:ao tambem servia para que Gurita se rornasse uma especie de bode expiatorio potencial para tudo 0 que se imaginava nao ter dado certo. Seguindo uma logica semelhante a de inumeros sistemas de bruxaria, os fracassos eram convertidos em falhas pessoais (algo que nao havia sido feito como deveria ou como se esperava), e Gurita encontrava-se em uma posi<;:ao suficientemente distante para ser acusado, e suficientemente pr6xima para que a acusa<;:ao pudesse ter alguma eficacia, fazendo-o, talvez, modificar seu comportamento, aprofundar seus compromissos com os grupos envolvidos ou, em ultima instincia, perder seus votos e cargos.

Ja em 1997, Gurita trocara de partido, filiando-se ao PSDB, legenda do prefeito, 0 que, sem duvida, facilitara sua nomea<;:ao e, em tese, deveria facilitar sua a<;:ao como mediador. Ele explicava essa mudan<;:a com 0 mesmo dis-

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I

curso que podia ser ouvido de praricamente todos os militantes do movimento afro-cultural e, certamente, de imimeros segmentos da popula~ao local: "em Ilheus nao tern jeito, e preciso apoiar 0 governo, aqui nem existe oposi~ao". Eclaro que todos sabiam que existia uma oposi~ao, mas esse discurso significava, basicamente, 0 pressuposto de que 0 apoio a qualquer individuo ou grupo "inimigo do prefeito" so poderia acarrerar retalia~6es diretas e imediatas - 0 que nao teria ocorrido em 1996 apenas porque, naquele momento, Jabes nao era 0 prefeito. 3 Nesse senrido, as ades6es politicas parecem relacionadas a avalia~6es a respeito da for~a das candidaruras, for~a que, e claro, tern que ser publicamente demonsrrada duranre toda a campanha. E essas demonstra~6es de for~a sao, em geral, responsaveis pela cren~a nas possibilidades de vitoria de determinado candidato - cren~a que e, sem duvida, urn dos elementos (ainda que nao 0 unico) a determinar a adesao.4 Esse tipo de raciodnio, alias, estende-se aos pianos esradual e nacional, e havia sido amplamente acionado, em 1998, para justificar tanto 0 apoio quanto 0 voto em Antonio Carlos Magalhaes e em Fernando Henrique Cardoso. Por outro lado, essa tambem era a justificariva apresentada por Jabes Ribeiro para se ter aliado ao PFL e apoiado a reelei~ao do presidente da Republica (ao contrario do que fizera apenas dois anos antes, na campanha de 1996, quando se aliara ao PT e dirigira duras crfticas aos governos esradual e federal). "Sem essa mudan~a em suas alian~as, 0 povo estaria apedrejando 0 prefeito na rna, ja que ele nao teria dinheiro nem para limpar a cidade" - era a explica~ao que todos os aliados de Jabes (assim como ele proprio) davam para o que a oposi~ao chamava de trai~ao e quebra de compromissos. E curioso recordar que era essa, tambem, a linha de argumenta~ao de Antonio Olimpio, nas elei~6es de 1992, e de Roland Lavigne, nas de 1996: ambos sustenravam que apenas eles, que contavam com 0 apoio do governo estadual, poderiam adminisrrar Ilheus satisfatoriamente - argumento que Jabes combareu ferozmente, sendo malsucedido na primeira ocasiao, mas triunfando na segunda. Tudo indica, pois, que os discursos e argumentos politicos parecem fazer parte de urn estoque finito e limitado de enunciados, que circulam incessantemente entre emissores e receptores que nao apenas alternam constantemente sua posi~ao respectiva no processo, como atualizam enunciados aparentemente identicos para justificar posi~6es muito diferentes, e enunciados diferentes para justificar posi~6es identicas - tudo de acordo com os contex-

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tos e as interesses em jogo, ista

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e, com a "conjuntura", como costumam jus-

tamente dizer os poliricos. Essa e uma das raz6es pelas quais as tecnicas de

L~


pesquisa que privilegiam as enrrevisras parecem parricularmenre inadequadas ao caso da politica: politicos e eleitores tendem a adotar uma especie de discurso generico, em que cliches, criados em diversas insdllcias, como a midia por exemplo, sao rapida e conrinuamenre absorvidos e repetidos. Por isso, as pessoas parecem poder dizer qualquer coisa a respeito da politica, dependendo do momento,de seu humor, do inrerlocutor, e assim por dianre. E por isso, igualmenre, que, tambem em Ilheus, podemos observar que as mesmas acusa~6es lan~adas pelos eleitores conrra os politicos - que estes nao cumprem suas promessas, que s6 pensam neles mesmos, que s6 se inreressam por dinheito etc. - sao usadas pelos politicos a flm de criticar os eleitores. 5 Assim, 0 cafe-da-manha organizado por Gurita no predio da Associa~ao Desportiva 19 de Mar~o, no dia 27 de agosto de 2000, visava precisamenre mostrar aos represenranres do movimenro afro-cultural da cidade que ele conrava com 0 apoio do prefeito e que, portanro, tinha condi~6es de eleger-se vereador e ser 0 representanre do movimenro na Camara Municipal. Por outro lado, ele tambem pretendia mostrar a Jabes Ribeiro que ja conrava com 0 apoio do movimenro negro e, conseqiienremenre, com uma boa base de votos, 0 que, certamenre, aumenraria seu prestfgio junro ao prefeito, fazendo com que seu apoio fosse, talvez, ainda mais consistenre. Logo na abertura do cafe-da-manha - que, alem dos militanres negros e de Jabes, conrava ainda com a presen~a de algumas autoridades municipais -, Gurita anunciou a transforma~ao do primeiro andar do predio da 19 de Mar~o no Memorial da Cultura Negra de Ilheus, e acrescenrou: "Pela primeira vez na cidade de Ilheus, a genre consegue, com muito trabalho, com a~6es, agregar a parte maior do movimento em uma campanha de prefeito e vereador. Nas outras vezes, 0 movimento se dividia muito, urn ia apoiar fulano, Dutro ia apoiar beltrano, e ficava aquela divisao. Mas, com 0 amadurecimento no dia-a-dia e com as pancadas que nos temos tornado ao longo dos allOS, esta campanha agora esra diferente. Nesta campanha, 0 movimento ne-

gro de Ilheus tern urn candidato a vereador definido e tern urn candidato a prefeilO definido. E necessario entao pedir a voces que, a partir de hoje, para demonstrar esse apoio. para que as pessoas sintam esse apoio, que voc~s comecern a borae 0 bIDeD na fua, comecem a botar 0 time em campo. Colocando 0 blDeD na rua e dizendo 'n6s estamos com 0 prefeito Jabes Ribeiro e estarnos com Gurita, que e 0 nosso vereador'. E necessario que se faya isso porque assim a gente mostra a toda a comunidade ilheense que 0 movimento negro da

cidade de Ilheus tern uma

defini~iio

politica, tern uma consciencia politica e

que tern os seus candidatos pr6prios. Porque aqueles que acham que, apoian-

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do 0 candidato A ou B VaG ganhat alguma coisa, isso e ilusao. Podem ganhat agota uma camisa de batizado de capoeita, podem ganhat urn tambot com pele de couro, mas daqui a pOlleD a pele gasta, 0 tambor acaba e e1es vaa fiear an-

dando pata wis. Desta vez, 0 compromisso do movimenro negro de Ilheus e tet urn candidato a veteadot na Camata para poder desenvolver politicas para o movimento negro da cidade de Ilheus, atraves de grandes projeros, de grandes a<;6es que venham trazer, sobretudo, emprego e renda para esse movimento. Porque a gente sabe 0 quanta se sacrifica a turrna que desenvolve a cultura,

que faz da cultura ate uma forma de emprego e nao ganha dinheiro; a gente sabe que nao se ganha dinheiro aqui fazendo cultura, sobretudo aqui na nossa cidade de Ilheus. Mas eu tenho cetteza de que atraves de projeros, 0 podet Legislativo, em parceria com

0

poder Executivo, vai desenvolver grandes pro-

jews, que trarao seguranc.;:a para aqueles que produzem a cultura negra aqui em nosso munidpio"

Ainda que, nas elei~6es municipais de 2000, Gurita talvez fosse 0 unico candidato a vereador que realmente aspirava a se apresentar como representante do movimento negro da cidade, ele estava longe de ser 0 unico a pretender 0 apoio desse movimento. Como sempre acontece em Ilheus, algumas outras candidaturas amea~avam, em maior ou menor grau, sua pretensao. 6 EHcio Gomes, urn dos fundadores do bloco afro Gangas em 1986, ja tendo se candidatado a vereador em 1992, voltara a candidatar-se, desta vez pelo PSD, partido aliado ao prefeito Jabes Ribeiro. Ap6s 0 fracasso de 1992, Elfcio convertera-se a uma religiao evangelica, deixara seu bloco e afastara-se quase completamente do movimento afro-cultural. Apesar disso, seu passado de militante negro podia habilita-lo, se nao a representar 0 movimento, ao menos a se apresentar como alguem que mantinha rela~6es hist6ricas com os grupos negros, que, portanto, s6 teriam a ganhar caso ele fosse eleito - 0 que efetivamente veio a oconer: EHcio obteve 652 votos (contra os cerca de noventa que obtivera em 1992, pelo PL) e totnou-se vereador, candidato a reelei~ao em 2004. Maria Lucia Magalhaes Batista era candidata pelo PPB, partido que apoiava a candidatura Roland Lavigne para a Prefeitura, e costumava aparecer principalmente nos comicios realizados na Conquista, bairto onde residia. Apresentando-se como membro do Dilazenze (0 que ela ja nao era hi muitos anos) e como "produtora de cultura negra" (0 que ninguem sabia muito bern 0 que queria dizer), Nega Lucia, como e conhecida, temava capturar alguns votos do movimemo afro-cultural, nao apenas para si mesma, mas, principalmeme, para Roland. Sua candidatura, emreramo, jamais chegou a

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ser muiro consistente ou a ser levada efetivamente a serio pelos militantes negros, ainda que ela viesse a obter 159 voros, quantidade muiro abaixo do necessario para elege-la, mas, nao obstante, suficiente para que, apos as elei~6es, tenha sido convidada por Joabes Ribeiro para trabalhar com ele - e mesmo que, durante as elei~6es, tivesse estado do lado oposro. AJem de Gurita, Elicio e N ega Lucia, alguns outros nomes, menos cotados, apareciam como possiveis candidatos ligados ao movimento negro. Contudo, 0 principal problema que Marinho enfrentava para oficializar 0 apoio a Gurita tinha origem em sua propria familia. Um de seus irmaos, Gilvan Rodrigues, decidira candidatar-se mais uma vez a vereador, lan~ando-se pelo PSC, partido que possuia candidatura propria para a Prefeitura. Curiosamente, o candidaro a prefeiro era Cosme Araujo, 0 vereador negro, advogado e vizinho dos Rodrigues, contra quem, em 1996, eles haviam se envolvido em uma verdadeita batalha. Gilvan, que estivera no centro do embate e que sempre parecera 0 mais avesso ao nome de Cosme, acabara sendo convidado por este a se filiar ao partido e se lan~ar candidaro. Como N ega Lucia, ele tambem so costumava aparecer nos comicios na Conquista e adjacencias, apresentando como slogan de campanha "Gilvan Rodrigues. A Cultura de Ilheus Tem Nome". Alem de insinuar sua condi~ao de membro privilegiado do movimento afro-cultural, 0 discurso de Gilvan tinha um unico alvo, Gurita: acusava-o de ser um falso tepresentante "da cultura afro e da cultura negra brasileira"; de ter traido os blocos afro no carnaval de 1999; de ter anunciado a seu candidaro a prefeiro que "tinha condi~6es de atrancar 0 voro do movimento negro, 0 voro do pessoal da religiao afro-brasileira"; e Gilvan completava: "Mentira! Esse candidaro nao tem nenhuma credibilidade, nao tem nenhum servi~o prestado as entidades afro-culturais de Ilheus".

*** Quinze dias apos chegar a Ilheus, em agosro de 2000, sofri um pequeno acidente, que me deixou impossibilitado de sait de casa por quase um meso Decidi, entao, propor a Marinho Rodrigues rornar-se meu auxiliar de pesquisa, proposta que ele aceirou imediatamente, agtadecendo a "ajuda" (ja que "esrou precisando mesmo"), mas fazendo questao de acrescentar que aceitatia a proposta de qualquer maneira, nao apenas porque assim tambem poderia "ajudar-me" como, ptincipalmente, pela oportunidade de discurir e analisar "a politica", coisa de que tanto gosta. Nunca tive raz6es para duvidar que

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isso Fosse verdade, ral a inreresse e a competencia demonstrados par Marinho ao longo dos tres anos em que acabou desempenhando essa fun~ao de auxiliar de pesquisa. o primeiro trabalho que solicitei a Marinho foi uma tenrativa de levantamento das inten~6es de voto dos membros de sua familia, dos componentes do Dilazenze e de freqiienradores do Tombeney. E ainda que, no final, apenas as primeiros tivessem sido "pesquisados", Marinho nao deixou de demonstrar sua surpresa com a que considerava uma quantidade excessiva de votos para Gilvan. 1sso, e claro, traia a obvio, au seja, que Marinho tambern tinha urn interesse pessoal na pesquisa sabre polltica. Afinal de conras, a esta altura, ele ja havia sido procurado pelo prefeito, ("que me convocou para a guerra") e ja havia decidido que apoiaria nao apenas Jabes, mas tambem Gurita. Aqueles que manifestavam sua inten~ao de votar em Gilvan - evocando sempre a parenresco, mas, muitas vezes, tambem uma rela~ao de compadrio au de ajuda passada que se acrescenravam aos la~os familiares -, Marinho buscava "explicar que votar em Gilvan e perder a voto, ja que ele nao tern chance nenhuma de se eleger; votar em Gurita e uma chance de a movimenro negro finalmenre eleger urn vereador". 0 fato de varios problemas com Gurita terem ocorrido no passado recenre era minimizado com a argumento de que, apesar de tudo, ele era alguem de quem se poderia, depois de eleito, "cob tar as compromissos assumidos". o levantamento efetuado par Marinho compreendia trinta pessoas. Todas (com exce~ao de uma, que disse que anularia a voto) declararam que votariam em Jabes Ribeiro para prefeito. Para vereador, doze anunciatam a voto em Gilvan, dez em Gurita, e as oito restantes dividiram-se entre quatro candidatos (dos quais, urn receberia quatro votos, outro receberia dais voros e as dais restanres, urn voto cada). Na listagem, e facil observar que as membros de familias nucleares tendiam avatar homogeneamenre e que, em geral, ao menos no plano das declara~6es de inten~ao, todos tentavam agradat Marinho, que, como todos sabiam, "estava com Jabes e com Gurita". As justificativas para a voto eram redundanres: em Gurita, porque "ele represenra a movimento negro" au porque "Marinho esta com ele"; em Gilvan, par set irmao, filho au tio; nos demais, par apresentarem urn grau de parenresco ainda mais proximo do que Gilvan'? au porque, no passado, teriam ajudado de tal forma que a eles nada poderia ser negado, incluindo a voto. Dessa modestissima amostra, creio que alguns aspectos devem ser salientados. Em primeiro lugar, que a proposi~ao que sustenta que uma rela~ao .\0-

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cial privilegiada (seja de consangiiinidade, afinidade, a1ian~a, amizade ou "divida") determina

0

voto, sem ser incorreta, nao acerta inteiramente

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alva.

Pois cada urn mantem mais de uma rela~ao social que pode considerar privilegiada em determinado momento e, no limire, e no momenro do voro que e precise escolher qual delas devera ser selecionada. 8 Assim, 0 conhecido fenomeno de divisao de voros no interior de uma familia ou grupo' tambem funciona para os individuos. Urn eleitor de Ilheus explicou que votaria em detetminado candidato para vereador porque este 0 ajudara muito em urn momento de grande necessidade; 0 problema e que havia ourro candidato que tambem 0 ajudara em ourra ocasiao; 0 primeiro, entretanto, 0 ajudara antes do segundo; sendo assim, ele decidira votar no primeiro candidaro e mostrar seu agradecimenro ao segundo votando em seu irmao, que era candidaro a prefeito. 0 fato de que nenhum dos dois provavelmente jamais viria a saber de tao complexa decisao sugere que 0 agradecimento visava mais pacificar a consciencia do eleitor do que servir de instrumento para uma finalidade qualquer; 0 fato de os dois candidatos pertencerem a partidos diferentes, e mesmo antagonicos, nao tinha, evidentemente, qualquer importancia. Outra forma de "dividir 0 voro" e votar em alguem e pedir voros para outrem. 1O Assim, quando urn dos irmaos do prefeiro, secretario municipal de servi~os publicos, procedeu 11 entrega de cestas basicas no bairro da Conquista, pediu voros para Gurita, que 0 acompanhava no ato, mas fez questao de ressaltar que, pessoalmente, nao poderia vorar nele, uma vez que, como rodos sabiam, seu pr6prio irmao era candidato a vereador. Finalmente, a listagem e as explica~6es coletadas por Marinho sugerem, tambem, que 0 vocabuJario que associa, explicita ou implicitamente, qualquer a~ao politica a uma transa~ao economica deveria ter seu uso cuidadosamente limitado aos casos em que, de faro, seu rendimento e apreciavel. Pois reduzir as proposi~6es que explicam 0 voro como uma forma de "agradecimento" ou como 0 pagamento de uma "divida" a f6rmulas do tipo credorl devedor significa, por vezes, trair 0 espirito com que sao formuladas. Do ponto de vista nativo, "agradecer" ou "pagar uma divida" sao, sobretudo, maneiras de ficar em paz com a pr6pria consciencia. Mais do que a uma especie de economicismo genetalizado - que, aJem de tudo, acaba tambem por despolitizar a politica, na medida em que evita encarar os dispositivos de poder em si mesmos, substituindo-os por similes e meraforas economicas -, remetem para 0 que poderiamos denominar, seguindo Paul Veyne (I987), certas formas de subjetiva~ao politica. Assim, 0 que Foucault (I984b: 32-33) revelou

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para a etica antiga tambern parece ocorrer na politica: nesta, como naquela, nao existem apenas normas ideais e comportamentos reais, mas tambem modos de subjetiva~ao ajustando esses dois pianos. De fato, no mesmo sentido em que Foucault fala da constitui~ao de urn sujeito ou de uma consciencia moral, poderfamos falar da objetiva~ao de urn sujeito politico e de uma consciencia politica, pois, como lembra Veyne (1987: 7), as rela~6es de mando e obediencia passam necessariamente pela consciencia dos agentes, 0 que converte a subjetividade em uma dimensao espedfica, como a economia ou a politica em sentido testrito. Essa subjetividade nao deve, entretanto, ser confundida com nenhum tipo de sujeito originario: rrata-se, antes, de "componentes de subjetiva~ao" (Guattari 1989: 24), que articulam modos de rela~ao consigo e com os outros. 0 que denominamos sujeitos sao apenas "terminais" em rela~ao a esses processos de objetiva~ao.ll Assim, a democracia, como qualquer sistema politico ou social, ecomposta por normas, mas tambem depende dos comportamentos efetivamente levados a cabo para funcionar. Se essas duas dimens6es parecem nao se ajustar - por exemplo, se boa parte dos eleitores nao comparece as urnas pata votar, mesmo em urn sistema como 0 brasileiro, em que 0 voto e obrigatorio -, podemos construir belos modelos destinados a explicar por que isso nao acontece, imaginando que, em algum lugar, no tempo ou no espa~o, as coisas sejam mais adequadas; apelando para 0 carater recente de nossa democracia, para a falta de educa~ao politica do povo, para a inconseqiiencia das elites, para lacunas da legisla~ao eleitoral, para a parcialidade da midia etc. Podemos, tambem, propor mudan~as nas leis ou simplesmente acionar 0 sistema repressivo. Mais interessante, contudo, e interrogar mais profundamente 0 que se passa com os sujeitos quando estes votam ou deixam de votar, ou quando votam nesse ou naquele candidato. 12 Se votar e uma obriga~ao legal, a possibilidade de nao faze-lo esra sempre aberta e todos sabem que, especialmente para os eleitores mais pobres, as san~6es contra a absten~ao eleitoral (impossibilidade de tirar passaporte, suspensao de salario etc.) sao quase irrisorias. No entanto, a maior parte das pessoas vota, mas elas 0 fazem por raWes que podem ser bern diferentes. Como demonstrou Banerjee (1999), na fndia, onde 0 voto nao e obrigatorio, votar pode ser visto como urn dever ligado aideia de cidadania, como expressao da condi~ao de cidadao, como urn direito do qual nao se deve abrir mao, como forma de auto-estima, como uma especie de arma para intervir no sistema formulas que nao excluem de modo algum 0 uso "tarico" do voto visando

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obter algum beneficia mais imediato. Acrescentemos a isso que alguem pode votar simplesmente porque se sente a isso obrigado, porque supoe que pode ajudar a mudar 0 mundo (muito au pouco) com seu voto au porque e isso 0 que se faz no primeiro domingo de outubro, e teremos uma ideia da diversidade de razoes que levam ao voto em Ilheus e, provavelmente, em toda parte. Da mesma forma, pode-se nita votar porque se perdeu 0 titulo ha muito tempo e nao se providenciou outro, porque a mudan~a de domicilio nao foi realizada ou porque os politicos sao todos iguais, e assim por diante. Alem disso, votar nesse ou naquele candidato depende nao apenas dos aspectos do candidato selecionados por cada eleitor (ver Goldman e Sant'Anna 1995: 26), como tambem das dimensoes de sua propria subjetividade que 0 eleitor colocad, naquela ocasiao, em relevo. Pode-se, certamente, votar em De Gaulle por ser 0 unico capaz de controlar os comunistas ou em virtude da "dignidade de sua vida privada" (Veyne 1987: 8); pode-se votar (ou deixar de votar) em Collor porque ele e 0 unico capaz de deter Lula, porque ele e bonito ou porque "ele tem aquela coisa de anos 60" (Goldman e Sant'Anna 1995: 25); pode-se votar (ou nao) em Jabes Ribeiro por este ser aliado (ou inimigo) de Antonio Carlos Magalhaes ou Fernando Henrique Cardoso; pode-se votar (ou deixar de votar) em Gurita porque ele sera um representante do movimento negro ou porque sera mais ficil fazer cobran~as a um candidato que depende dos votos do grupo. Assim, 0 argumento de Marinho contra 0 voto em Gilvan (votar nele significaria simplesmente "perder 0 voto") so podia funcionar nos casos em que havia alguma homogeneidade entre as objetiva~oes das quais ele era, ao mesmo tempo, 0 autor e a suporte, e aquelas de seus inrerlocutores. Nao se perde 0 voto quando se imagina estar votando de acordo com sua consciencia moral, ou quando se imagina que, mesmo perdendo a elei~ao, 0 candidato podera oferecer alguma coisa ao eleitor. De toda forma, esse tipo de argumento reproduz evidentemente um discurso de circula00 muito mais abrangente. A propaganda de radio do PSDB em Ilheus, nas elei~oes de 2000, alardeava esse ponto sem meias palavras: 13 "Nao perca seu voto! Vote em quem vai vencer as elei~oes! Vote Jabes 45!" Independente de se considerar esse argumento de um ponto de vista mais simpatico ou critico, 0 fata e que inumeros candidatos a vereador 0 empregam constantemente nas elei~oes em Ilheus eo mesmo e evidentemente verdadeiro nas elei~oes estaduais e nacionais. 14 o curioso e que 0 proprio Gilvan parecia concordar ao menos com a parte do argumento de Marinho que sustentava que ele nao tinha qualquer

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chance de ser eleiro. Dizia aberramente que sabia disso e que nao podia fazer nada a respeiro porque nao dispunha dos recursos necessarios para a campanha. AJem disso, manifesrava por vezes cerro cericismo acerea de seu proprio voro, ou seja, nao havia decidido ainda sevoraria em si mesmo - ral como ocorrera, alias, em 1992, quando nao anunciara sua eandidarura a ninguem e, eonseqiientemente, nao obtivera nenhum vato, nem meSilla

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seu. Por que en-

tao ele se eandidatara era a pergunta obvia que faziamos, mesmo que, em parte, ja eonhecessemos a resposta, pois todos sabem que nem sempre alguem se candidata com 0 unico objetivo de veneer as elei~6es e ser eleito; as vezes, e tambern para obter alguma vantagem (imaginaria ou real) marginal ou furura. IS o proprio Gilvan dizia que se eandidatara em 1992 "apenas para compor a lista do parrido", mas ninguem acreditava muiro nessa explica~ao. Na verdade, candidaro relativamente bern votado em 1988, ele equivocara-se em interpretar 0 resultado dessa elei~ao como simples derrota eleitoral, e em abandonar 0 trabalho politico quase imediatamente apos 0 pleiro. Ate hoje, repete-se que, naquele momento, Gilvan havia adquirido uma for~a eleiroral que podia e devia ter urilizado nas elei~6es seguintes - 0 que simplesmente significa que muitas vezes perder uma elei~ao pode ser apenas urn meio para ganhar ourra. Ja em 2000, dizia-se que a candidatura de Gilvan havia sido planejada por Cosme Araujo, visando tirar alguns votos de Gurita na Conquista e que, para isso, ele estaria recebendo uma "ajuda" do candidaro a prefeiro. Em 1996, Dino Rocha anunciava aberramente que se candidatara a fim de se beneficiar da licen~a a que tern direiro os funcionarios publicos que disputam elei~6es - mesmo que, no final da campanha, tenha mudado de ideia e tentado obter alguns voros. Inumeros candidaros em Ilheus - Cosme Araujo e Gildo Pinto sao apenas dois exemplos - lan~aram seus nomes na disputa por uma vaga de depurado estadual em 1998, sabendo perfeitamente que nao tinham a menor chance de conquista-la, mas que uma vota~ao razoavel no municipio lan~ava ou refor~ava as bases para uma candidarura a vereador, ou mesmo prefeiro, em 2000. A propria candidarura de Cosme a prefeiro - abrindo mao de uma quase certa reelei~ao para a Camara - era interpretada por quase rodos como resultado de algum acordo estabelecido com Jabes Ribeiro com 0 proposiro de "tirar votos" de Roland Lavigne (de quem Cosme havia sido aliado em 1996, contra 0 mesmo Jabes). Da mesma forma, a candidarura de Rubia Carvalho it Camara Federal em 1998 (e nao it Assembleia Legislativa, na qual suas chances de vitoria eram muiro maiores) foi lida por muiros como uma manobra de Jabes visando "tirar voros" do mesmo Roland, e seu fracasso (ja que este se reelegeu) nao impediu que 0 202


prefeito reperisse a estrategia em 2002, lan~ando urn quase desconhecido, Pipa, que obteve mais de 13 mil votos em Ilheus. Se a manobra de fato existiu, se ela foi realmente a responsivel pela nao-reelei~ao de Roland Lavigne em 2002 e se Rubia ou Pipa tinham consciencia da opera~ao sao questoes de diffcil resposta, mas que nos colocam na dire~ao de outro importante procedimenro das raticas e estrategias eleitorais, acionado em todos os pleitos. Uma coisa sao os cilculos do eleitor quando decide seu voto e outra, bern diferente, os dos polfticos no momento em que pedem esse voto ou lan~am suas candidaturas. Mas tambem sao distintos os interesses e d.lculos conscientes de urn candidato que concorre sabendo que suas chances, naquele momento, sao remotas ou mesmo inexistentes, e aqueles dos que apoiam tal candidatura. Nao tanto daqueles que por diversas razoes - parentesco, agradecimento, compromisso, ironia (os que escolhem os candidatos mais feios ou com as names mais estranhos 16), demissao ("para naG ganhar mesilla", como dizem alguns) - votam em candidatos improviveis, mas dos que lan~am e, ate certo ponto, apoiam candidatos desse tipo ou de natureza semelhante. Ora, se, por urn lado, 0 estabelecimento e 0 exerdcio dos sistemas polfticos ditos democraticos sempre dependeram da cria~ao e do acionamento simultaneos de uma serie de tecnicas disciplinares e de controle, por outro, e claro que a a~ao e a margem de manobra dos agentes estao, ate certo ponto, constrangidas pelas regras de funcionamento do sistema. Em suma, se a democracia formal depende de certas formas de poder, ela tambern e uma das condi~oes reais para que priticas na aparencia muito diferentes do ideal democritico sejam efetivamente postas em a~ao. Nesse sentido, nao cabe discutir 0 que seria uma verdadeira democracia, nem se este ou aquele Estado espedfico (0 brasileiro, por exemplo) e ou nao democratico. Trata-se apenas de tentar conferir urn minimo de inteligibilidade a processos muito reais que em contextos de sociedades nacionais organizadas, ao menos em parte, sobre prindpios democriticos. Pois, se concordarmos, por urn instante, em denominar "Esrado democratico" aquele "[...] que apela aas principias da demacracia politica, cuja governo procede de elei<;6es livres (no sentido de que os cidadaos podem efetivamente escalher entre candidates ao pader realmente diferentes), que pratica uma certa separa<;ao entre

as ordens legislativa, executiva e judiciaria. que em urn plano mais geral reconhece serem os conflitos constitutivos da existencia social e, pdo menos em prindpia, afirma que a negocia<;ao e 0 melhor meio para resolve-los, e que

admite ser a fun<;ao do Direito a de garantir a liberdade das pessoas (e de seus bens) e sua igualdade perante a lei." (Chatelet e Pisier-Kouchner 1983: 170),

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nao precisaremos de muita imagina~ao para adivinhar que uma organiza~ao molar dessa natureza exige todo um trabalho molecular de objetiva~ao. E foi provavelmente Foucault (1975: 4 a capa) 0 primeiro a sublinhar com a devida enfase essa dependencia, ao demonstrar a existencia de uma cerra modalidade de poder que rornou possivel a democracia como forma politica: "sem duvida, 0 seculo XVIII inventou as liberdades; mas ele lhes forneceu um subsolo profundo e s6lido - a sociedade disciplinar, da qual ainda somos um produro". Trata-se aqui, como sustenta Pizzorno (1988: 244), da "hip6tese de que os regimes democd.ticos modernos liberais s6 sao possiveis devido a um longo trabalho previo de 'disciplinariza~ao' de seus cidadaos".17 Assim, quando Michel Offerle (1993a: 147) chama a aten~ao para 0 fato de que a democracia representativa sempre pareceu uma "monstruosidade juridica", na medida em que conjuga um ideal da democracia direta (a participa~ao eleitoral) e ourro do governo de notaveis (os efetivos responsaveis pelo funcionamento do sistema), ele nos poe na pista de uma solu~ao para 0 velho problema das rela~oes entre praticas e ideais, comportamentos e normas, ou como se quiser denominar. Pois tudo se passa, tambem entre n6s, como na analise da democracia grega conduzida por Paul Veyne, que demonstra que 0 regime politico grego estava apoiado sobre a coexistencia e a alternancia de dois modelos bem diferentes: um "militante",18 exigindo a participa~ao de rodos os cidadaos, e um mais "realista", 0 governo de uma minoria ativa que conta com cerra passividade generalizada em rela~ao a vida politica (Veyne 198458-60). Da mesma forma - mesmo sabendo que, entre a democracia grega e aque1a que emerge no seculo XVIII, apenas 0 nome permanece (idem: 57-58)-, nao e dificil perceber que a democracia representativa se apoia sobre uma ourra ambigiiidade constitutiva: de um lado, a representa~ao politica; de ourro, a profissionaliza~ao dos politicos. A representa~ao politica moderna, como 0 militantismo para os antigos gregos, e um de nossos "semi-ideais", como diria Veyne: mais que uma ideologia, ja que nao se trata de simples falsifica~ao da realidade ou de uma mentira uti\, nao chega a constituir uma pratica, uma vez que sua concretiza~ao e infletida sem Cessar por mecanismos economicos, comunicacionais, de controle e ourros. A profissionaliza~ao dos politicos, caracteristica da politica moderna, por sua vez, funciona determinando a esfera dos que efetivamente tem possibilidade de participar da vida politica, bem como limitando as possibilidades de a~ao (Bourdieu 1989),19 Nao se trata, pois, de imaginar que os ideais e as normas simplesmente se oponham as praticas e aos comportamenros, Ao contrario, e apenas sobre 204


o pano de fundo do semi-ideal da democracia represenrariva que Suas praticas podem funcionar e fazer sentido. Do mesmo modo, e apenas se apoiando sobre praticas dessa natureza que 0 ideal da democracia pode sobreviver e continuar a ser sustenrado conrra todas as evidencias do cotidiano. Nesse sentido, e importanre lembrar, ainda que de modo muiro sumario, algumas das regras basicas de opera<;:ao do sistema eleiroral brasileiro (ver Porto 2000; 2002), pois elas tra<;:am urn campo e determinam regras que, mesmo quando ultrapassadas ou violadas, nao deixam de constituir uma das materias-primas com as quais se faz a democracia. Trata-se, como se sabe, de urn regime presidencialista bicameral (Camara dos Deputados e Senado), no qual elei<;:6es gerais, realizadas de quatro em quatro anos, escolhem, por urn lado, 0 presidenre da Republica, os governadores dos estados e os membros do Senado, cujo mandato e de oito anos (cargos ditos "majoritarios); por outro, escolhem-se os ocupanres da Camara dos Deputados e das Camaras Estaduais (Assembleias Legislativas) - cargos chamados "proporcionais". Tambem de quatro em quatro anos, mas sem coincidir com as elei<;:6es gerais, sao realizadas elei<;:6es municipais, nas quais se escolhem os prefeitos dos municipios (em elei<;:6es majoritarias) e os vereadores das Camaras Municipais (em elei<;:6es proporcionais). Nas elei<;:6es majorirarias, os partidos apresenram urn candidaro para cada nlvel em disputa (a nao ser quando concorrem em coliga<;:6es); 0 eleiror vota em urn nome, e 0 mais votado e eleiro. Nas elei<;:6es proporcionais, os partidos ou coliga<;:6es apresentam uma lista de candidaros para cada nlvel em disputa, e 0 eleitor vota em apenas urn nome para cada cargo. Os votos vilidos e em branco sao somados, e 0 total e dividido pelo numero de cadeiras a serem preenchidas, obtendo-se 0 "quocienre eleiroral". Apenas os partidos ou coliga<;:6es com numero de votos acima do quocienre eleiroral disputam as vagas. Os voros de cada urn desses partidos ou coliga<;:6es sao divididos pelo quocienre, obtendo-se, desse modo, 0 "quocienre partidario" - numero de cadeiras a que cada partido ou coliga<;:ao tern direito, preenchidas, na ordem, pelos mais votados de cada urn deles. Finalmenre, as $Obi-as da divisao servem para redistribuir as cadeiras restanres por meio de uma formula路 especifica. Em 1992, por exemplo, 0 quocienre eleiroral em Ilheus foi de 3.124 votos e, em 1996, de 3.549. Em 2000, urn partido ou coliga<;:ao elegia urn candidato para cada 4.065 votos recebidos pela legenda, independente do numero de voros de cada candidato: se 0 partido recebesse 8.130 voros, elegeria dois candidatos, e assim por dianre. Havia urn rotal de 330 candidatos a Camara, eo vereador mais votado teve 1.475 voros, enquanto 0 eleiro com menos votos

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teve 485. Os pattidos mais votados nessas elei~6es receberam cerca de 11 mil voros cada, 0 que garantiu a elei~ao de tres vereadores por cada urn deles (ja compuradas ai as "sobras eleirorais"). 0 PSDB, por exemplo, obteve 10.902 voros, sendo que 3.181 foram dados apenas a legenda. Seus tres candidaros eleiros somaram 3.472 voros - menos, portanto, que 0 quociente necessario para a elei~ao de urn vereador. Dos ourros 23 candidaros, apenas dez obtiveram mais que cern voros cada (e apenas quatro obtiveram mais que quinhenros). Mas tudo isso apenas explicita 0 que qualquer politico sabe, ou seja, que, nas elei~6es proporcionais, a vit6ria eleiroral de alguem depende do desempenho de seus companheiros de partido ou coliga~ao derrotados no pleito. Em Ilheus, esses candidaros - cuja unica fun~ao, consciente ou nao, e obter voros para que a legenda eleja ourros candidatos - sao chamados "mulas", porque cartegam os viroriosos nas costas, ou porque cartegam certa quantidade de votos para que ourro candidaro seja eleiro. Evidentemente, 0 fen6meno dos "mulas" nao e exclusivo de Ilheus, fazendo patte constitutiva dos sistemas eleirorais que, como 0 brasileiro, adotaram a vota~ao proporcionaJ.2째 Nesses sistemas, urn politico de sucesso e aquele capaz de, nos termos de Deleuze e Guattari, capturar e sobrecodificar candidaros movidos por interesses, calculos e apoios excessivamente locais ou pontuais, variados demais para garantir uma elei~ao.21 Da mesma forma, 0 politico bem-sucedido sobrecodifica em seu beneficio os diferentes c6digos que fazem com que uma familia divida os voros de seus membros entre varios candidaros aos quais sente dever algo ou nos quais deposita alguma esperan~a; ou aqueles que levam urn bloco afro a apoiar urn candidaro visando obtet vantagens que os demais blocos nao terao; ou os que fazem uma vizinhan~a se inclinar na dire~ao de alguem que, supostamente, trara melhorias para sua vida cotidiana. Canalizando as multiplas l6gicas em a~ao, as diversas motiva~6es pessoais, as oposi~6es e confliros locais, 0 politico de sucesso os orienta a todos em sua dire~ao ou beneficio, sobrecodificando a dispersao que caracteriza todos esses elementos e processos, e fazendo com que conjuntos muito heterogeneos de voros se somem e garantam sua elei~ao. AMm disso - e por mais evidente que seja 0 faro de que "mulas" nao sao recrurados exclusivamente em fun~ao de seu pettencimento etnico -, creio que os movimentos negros constituem urn terreno fetti! para que a opera~ao de captura de "mulas" prospere. A pesquisa de Ana Lucia Valente (J 986) sobre a patticipa~ao dos negros e 0 lugar ocupado pelo tema das rela~6es raciais nas elei~6es paulistas de 1982 comprova bern este ponto. Como demonstra a

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autora, praticameme todos os partidos politicos se imetessaram em lan~ar candidatos negros a fim de obter "evemuais votos que poderiam ser conseguidos no meio negro", e por maiores que tenham sido as resistencias de militames negros que "achavam que os partidos estavam apenas imeressados em usar 0 negro como massa de manobra" (Valeme 1986: 44), parecem ter sido razoavelmeme bem-sucedidos, com 0 lan~amemo de algo em torno de 55 candidatos negros (idem: 51-53) - a maior parte deles fazendo "dobradinhas" com outros candidatos que detinham mais recursos, e para os quais acabavam aruando como verdadeiros cabos eleitorais (idem: 80-81). Apenas dois candidatos negros conseguiram eleger-se, urn ex-jogador de futebol e urn militante ligado ao movimemo opedrio, os quais, por motivos obviameme distimos, consideravam que a quesrao racial nao era politicameme pertineme (idem: 77). Esses dois candidatos foram eleitos pelo PMDB, partido que mais obteve votos nessas elei~6es, tendo mesmo conseguido eleger 0 governador do estado, e que certameme se beneficiou com a vota~ao dos candidatos negros nao eleitos (idem: 68-69). Por ourro lado, uma vez no poder, 0 PMDB demonstrou uma enorme resistencia a indicar negros para cargos importames, e mesmo a tratar mais profundameme a questao negra, ainda que dissolvida no conjunto das "minorias" (idem: 98-101): logo apos sua posse, 0 governador criou 0 Conselho da Condi~ao Feminina (do qual nao fazia parte nenhuma negra), mas foi apenas dois anos mais tarde, e apos inumeras press6es, que 0 Conselho de Participa~ao e Desenvolvimemo da Comunidade Negra foi criado (idem: 101103). Assim, se e verdade que diversos candidatos negros empregam uma retorica racial a fim de justificar suas oscila~6es politicas e mudan~as de partidos (alegando que a lura deve ser "social", nao "politica", ou que "nao importa 0 partido mas a causa negra", que seria "suprapartidaria" - idem: 49, 55), tambern nao e menos verdadeiro 0 fato de que, como conclui a aurora, os partidos politicos, oriemados, por defini~ao, para a "sociedade em geral", tendem a funcionar como uma especie de filrro da questao racial, dissolvendo-a apos caprura-la: "instrumemo eficaz para minar for~as potenciais de qualquer movimemo social" (idem: 65).22 E claro, emretamo, que 0 grau de previsibilidade da opera~ao de captura, uriliza~ao e abandono de "mulas" esra longe de ser completo. A anunciada derrota de Rubia Carvalho em 1998 foi imerpretada por ela e seus assessores como uma especie de sacrificio visando as elei~6es municipais de 2000, quando, supostameme, teria seu nome Ian~ado para a Prefeirura ou, na pior das

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hip6teses, para 0 cargo de vice-prefeito, se Jabes Ribeito decidisse tentar a reelei~ao. Esta foi, de fato, sua op~ao, e durante alguns meses 0 preenchimento do posto de vice-prefeito foi adiado, provocando boatos em torno de varios nomes, inclusive 0 de Rubia Carvalho. No entanto, 0 fato de Rubia agora pertencer ao partido do prefeito fazia com que seu nome nao Fosse visto como ideal para uma almejada alian~a com antigos inimigos politicos com quem Jabes procurava uma composi~ao. Finalmente, na ultima semana de junho, revelou-se que 0 candidato a vice-prefeito deveria vir do PTB, partido aliado ao PFL no plano estadual, ja que isso "sinalizaria a parceria" (termo sempre utilizado por Jabes para designar a alian~a) entre governos municipal e estadual. No dia 28 de junho, Angela Maria Correa de Souza foi anunciada como candidata a vice-prefeita na chapa de Jabes Ribeiro. Logo ap6s 0 anuncio de que 0 PTB preencheria 0 cargo de vice-prefeiro, Rubia Carvalho lan~ou seu nome para a Camara dos Vereadores - elei~ao tida como certa tanto pelos eleitores quanto por seus assessores. Estes, no entanto, confidenciavam que a candidara havia ficado "deprimida" com a decisao de Jabes e que nao demonstrava muito entusiasmo com a campanha para vereador. Essa "depressao" parece ter se agravado muito quando 0 nome da vice foi finalmente divulgado: Angela era mulher, ligada a grupos cristaos e envolvida com atividades de "a~ao social", possuindo exatamente 0 mesmo perfil politico de Rubia Carvalho. Nas elei~6es majorirarias, a coliga~ao Ilheus no Caminho Certo - comandada por Jabes Ribeiro e envolvendo, alem do PSDB, 0 PTB, PMDB, PMN, PAN, PHS, PRP, PST e PSDC - era tida como franca favorita desde o infcio da campanha; seu principal adversario era 0 PFL, mais uma vez comandado por Roland Lavigne. Ao contrario do que acontecera em 1996, dessa vez tanto Jabes quanto Roland disputavam 0 apoio do governo do estado e do senador Antonio Carlos Magalhaes. Essa rivalidade envolvia a obten~ao de declara~6es explkitas de apoio (tanto 0 governador quanto 0 senador se manifestaram, ao longo da campanha, a favor dos dois candidatos) e, principalmente, a possibilidade de convencer os eleitores de que contavarn efetivamente com tal apoio, quer no plano estadual, quer no federal. Se Roland Lavigne podia usar como argumento a sua filia~ao partidaria e hist6ria politica, Jabes Ribeiro evocava 0 fato de pertencer ao partido do presidente da Republica, aliado, por sua vez, ao PFL do governador e do senador. Tratarse-ia, pois, de reeditar, no plano municipal, a alian~a que vencera as elei~6es presidenciais de 1994 el998.

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Alem dessas duas chapas, disputavam as elei<;:6es do ano 2000 a coliga<;:ao Frente para Mudar de Verdade (PT, PSB, PCdoB e PPS), 0 PDT, 0 PSC eo PV: No dia 3 de outubro, Jabes Ribeiro elegeu-se, pela terceira vez, prefeiro de Ilheus, com 33.775 voros (cerca de 47% dos voros vilidos); Roland Lavigne obteve 27.257 voros (pouco mais de 37%); a coliga<;:ao encabe<;:ada pelo PT, 7.304 voros (10%); 0 PSC de Cosme Araujo, 2.102 votos (3%); 0 PV; 1.822 voros (2,5%); e 0 PDT, 473 votos (0,65%). Logo ap6s as elei<;:6es, comentava-se que Jabes Ribeiro estaria deixando 0 PSDB para se filiar ao PTB, o que era explicado seja pela necessidade de solidificar a "parceria" com 0 governo do estado, seja como manobra para evitar um processo de expulsao que 0 PSDB certamente moveria contra ele em fun<;:ao de sua alian<;:a com 0 grupo de Antonio Carlos Magalhaes. Jabes acabou nao ingressando no PTB (que, neste interim, anunciara seu apoio a candidatuta de Ciro Gomes, pelo PPS, a Presidencia da Republica, em 2002), preferindo permanecer "sem partido" ou, como se diz as vezes em Ilheus, "a toa". Ao lado de Jabes, Joabes, seu irmao, segundo candidaro mais votado para a Camara dos Vereadores (com mais de 1.400 voros), tambem abandonou 0 PSDB. Ambos comunicaram a decisao a popula<;:ao por meio de radios locais, ao mesmo tempo que anunciayam que deixavam 0 PSDB para Rubia Carvalho, que, reconhecida, agradeceu publicamente a heran<;:a. Roland Lavigne, por sua vez, deixou 0 PFL logo ap6s as elei<;:6es, tentou ingressar no PMDB baiano e acabou no PSDB. Jabes foi para 0 PFL; Joabes para 0 PP. Para grande sutpresa de boa parte dos eleitores, Rubia Carvalho obteve apenas 603 votos, nao passando da terceira suplencia de seu partido na Camara dos Vereadores. Derrota inicialmente interpretada por seus assessores como decorrente do faro de Rubia, certa da vit6ria e, ao mesmo tempo, deprimida por nao ter sido indicada candidata a vice-prefeita de Jabes, nao ter realizado uma campanha eleiroral eficiente. Como disse a ela um de seus assessores antes das elei<;:6es, a candidata tanto poderia ter "mais de 3 mil voros" como poderia nao se eleger. Pouco depois, essa explica<;:ao foi acrescida de outra: ap6s sua nao-indica<;:ao para vice-prefeita, Rubia teria tentado uma aproxima<;:ao com Roland Lavigne, oferecendo-se, inclusive, para fazer denuncias de corrup<;:ao contra a administra<;:ao Jabes Ribeiro, da qual havia participado. Jabes teria sabido da "trai<;:ao" e tratado de dificultar, de rodas as maneiras possiveis, a candidatura de Rubia. ÂŁ. preciso observar, tambem, que dois candidaros a vereador para quem Rubia "pedia voros" quando ainda imaginava que seria candidata a vice-pre, I ,

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feito, acabaram por rer uma vora<;:ao superior asua: um deles obreve 749 votos eo outro, Gurita, 625. Os dois, em cerro sentido deviam ter sido "mulas" de Rubia, mas a dinamica do processo eleitoral acabou transformando a situa<;:ao e ambos acabaram superando a candidata: 0 primeiro foi eleiro vereador, e Gurita ficou com a segunda suplencia de sua legenda. Como comentou um dos assessores de Rubia, ela acabou tendo que disputar a elei<;:ao com candidaros para quem, pouco antes, pedia voros, e nao foi "nada bonito" ter que dizer aos eleirores "olha, aqueles voros que eu pedi para eles, agora voces devern da-los a mim". Everdade que, como vimos, desde 1996, Gurita tinha cerra consciencia do risco de concorrer a uma elei<;:ao como simples "mula", e que era por isso que sustentava nao ser possivel se eleger apenas com os votos do movimento negro, sendo preciso diversificar os apoios. A manobra e bem conhecida, mas aprese'nta seus riscos, como mostra 0 exemplo de Gilvan, que, em 1988, acabou perdendo os voros que tinha e nao conquistando os que queria. Da mesma forma, Gutita insistiu tanto no faro de ser "0 candidaro do esporte" que foi preciso Marinho dizer a ele, explicitamente, ser imprescindivel acrescentar a seu slogan de campanha ("Professor Gurita: A Vez do Esporre") a expressao "e da Cultura", e que ele deveria falar mais da "questao cultural" e do bairro da Conquista em suas interven<;:6es nos comfcios. Ap6s sua segunda derrota em 2000, Gurita, cuja familia e evangelica, voltou-se cada vez mais para bases eleirorais dessas denomina<;:6es religiosas (das quais, alias, provinha tambem 0 Outro candidato apoiado por Rubia e que acabou se elegendo). Essa mudan<;:a, evidentemente, tem dificultado suas rela<;:6es com os blocos afro e, especialmente, com os adeptos do candombJe. Por outro lado, 0 faro e que Gurita, realmente, vinha servindo de "mula" para outros candidaros desde as elei<;:6es de 1996. Sua fun<;:ao implfcita sempre foi a obren<;:ao de votos junto ao movimento afro-cuirural de Ilheus e, evidentemente, mais alguns na Conquisra, bairro onde reside e possui seu reduto eleiroral. Seu estaruto (real ou prerendido) de "representante" do movimento negro deve, porranto, ser entendido ao menos em dois sentidos: como intermediario (nas duas dire<;:6es) nas rela<;:6es entre 0 movimento e 0 poder municipal, cerramente; mas rambem como uma especie de canal pelo qual deveriam fluir os voros oriundos dos militantes negros, voros que, mesmo quando empiricamente dados ao pr6prio Gurita, serviriam para eleger outros candidaros. Ese, nas elei<;:6es proporcionais, polfticos como Gurita desempenham essa fun<;:ao de canalizadores de votos, nas majoritarias, seu pa-

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pel passa a ser 0 de cabos eleirorais, pedindo e obtendo diretamente votos para os candidaros a prefeiro. E claro que mecanismos dessa natureza estao rambem em marcha nas elei~6es estaduais e nacionais. Do ponto de vista de Cosme Araujo, por exemplo, lan~ar-se candidato a depurado estadual nas elei~6es de 1998 tinha como objetivo a obten~ao de cetta quantidade de voros que 0 forraleceriam para as elei~6es municipais de 2000; para ourros candidaros da mesma legenda, tratava-se de conseguir urn contingente de votos para essa legenda, 0 que, portanto, podia ajuda-los a se eleger; para candidaros it Camara Federal- com quem Cosme formaria algumas "dobradinhas" -, bern como para candidatos aos cargos majorit:irios para 0 Senado e govemos estadual e federal, rratavase de urn cabo eleitoral, capaz de exercer influencia sobre mais de 8 mil voros no Municipio de I1heus. Isso significa que rodo politico tende a ser, simultaneamente, candidato, mula e cabo eleitoral, ao mesmo tempo que disp6e de suas proprias mulas e cabos eleirorais. Se, entre 0 eleiror comum, 0 eleiror que influencia 0 voro de outros eleitores, aquele que trabalha nas elei~6es, 0 cabo eleiroral, os profissionais da politica e os politicos propriamente diros, existe, e claro, uma diferen~a, esta, mesmo quando concebida como de natureza ("ele virou politico"), nao impede as passagens e as transi~6es entre as diversas posi~6es, nem implica que nao se possa ocupar mais de uma delas ao mesmo tempo.

*** Ourra posi~ao multifuncional pode ser a de pesquisador ou, mais precisamente, daqueles que sao recrutados para a aplica~ao de pesquisas eleitorais de opiniao. Nas elei~6es de 2000, divulgou-se, entre os membros do Dilazenze, que 0 comite de campanha de Jabes Ribeiro estava recrutando "pesquisadores", que deveriam aplicar urn questionario, recebendo R$ 5,00 por cada urn que Fosse preenchido. Varias pessoas compareceram ao local de recruramento: aqueles que nao eram eleitores em Ilheus, ou que nao dispunham do dtu10 eleiroral, foram imediatamente dispensados; os demais ficaram sabendo que, alem de aplicar a "pesquisa", havia a possibilidade de serem selecionados pata atuar na boca de uma no dia das elei~6es - recebendo os habituais R$ 10,00 pagos por esse tipo de atividade -, mas que deveriam, de toda forma, passar por uma "capacita~ao". Esta, que durou nada menos que sete horas continuas, incluiu a aplica~ao de testes psicotecnicos e a solicita~ao de uma reda~ao cujo tema era "Jabes Ribeiro". No final, os candidaros ouviam uma

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propaganda deiroral de Jabes e era expliciramenre solicitado a des que votassem no candidato. 56 enrao, sua performance no processo de capacita~ao e suas reda~6es acerca do prefeito eram avaliadas, e a sde~ao final efetuada. o questionario a ser aplicado era apresenrava 0 cabe~ho "Coliga~ao Ilheus no Caminho Cerro. Projero Ouvindo Voce". Em seguida, constavam o subtltulo "Pesquisa" e 0 texro: "esrou aqui a pedido do prefeiro Jabes Ribeiro, e gostaria de saber se 0 sr. (a) pode fazer algumas sugest6es para 0 seu programa de governo. Nao sera mais de cinco minuros. Antes eu yOU fazer algumas pergunras para compor 0 questionario". Finalmenre, anres da data e do nome, numero e assinatura do pesquisador, vinham as quest6es a serem respondidas: "- Qual 0 seu nome completa? - Como voce

e mais conhecido?

- 5exo - Idade - Endere,o completo - Qual a sua ptincipal atividade? - Emptego fixo - Emprego temporario - Dona de casa; aposenrado/a - Estudante - Sem atividade/desempregado? - 0 Sr.(a) considera que a atual administra,ao de Jabes Ribeiro emelhor, igual ou piot que a de Antonio Olfmpio? - Qual a obra ou melhoria que 0 Sr.(a) acha necessaria para seu baireo ou rua? - E para nossa cidade. qual a obra ou as:ao mais necessaria? Seguran,a publica - policia nas ruas Saude - Postas de Saude funcionando bern Educa,ao - Escola para todos Saneamento basico - Esgotamento sanitaria Cal,arnenta de ruas - Constru,ao de Escadarias Transporte coletivo born e barato Shows e oureas atividades culturais de gta,a para 0 povo Loteamenro popular - habita,ao popular""

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Questionarios desse tipo sao amplamenre aplicados em Ilheus em rodas as dei~6es.24 Alem disso, conrudo, 0 significanre "pesquisa" opera de outras formas. Primeiro, e claro, como urn t6pico ou terreno de disputas. Em 2000, divulgavam-se muitas pesquisas diferenres, com resultados bastanre distin-

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tos; acusavam-se de falsas ou falsificadas aquelas que colocavam adversarios em posi~ao de vantagem; mencionavam-se resulrados de pesquisas que ninguem sabia muito bem onde e por quem haviam sido aplicadas, e assim por diante. Em 1996, ja no final de setembro, 0 centro de Ilheus foi inundado por panfletos de excelente qualidade grafica anunciando uma "pesquisa mOPE", que conferia 44% das inten~6es de voto a Roland Lavigne, e 43% a]abes Ribeiro. Em comkio, este ulrimo denunciou 0 que denominou "fraude", amea~ando de prisao ate os que estivessem apenas distribuindo 0 panfleto. Tres dias depois, Roland obteve pouco mais de 27% dos votos validos, e ]abes foi eleito prefeito de Ilheus com quase 58% da vota~ao. No inkio de setembro de 2000, a revista Isto E divulgou uma ampla pesquisa eleitoral do 1nstituto Brasmarket, que indicava, em Ilheus, um empate tecnico entre ]abes e Roland (34% e 30% das inten~6es de voto, respectivamente). A equipe do primeiro candidato, que ate entao estava absolutamente segura da vit6ria, ostentando a hip6tese de uma vantagem de cerca de 20 pontos percentuais, demonstrou cerra preocupa~ao, mas apresentou a versao de que a pesquisa fora feita por via telef6nica e apenas no centro da cidade. Roland, por outro lado, nao podia insistir muito no resulrado, pois vinha difundindo abertamente a existencia de pesquisas que indicavam que contaria com mais de 50% da preferencia dos eleitores: como brandir, agora, 30%1 Uma das radios locais, que fazia oposi~ao cerrada ao prefeito, indagava constantemente como era possivel que este tivesse apenas 34% das inten~6es de voto quando vinha alardeando contar com 70%. Na verdade, a radio 'confundia' (no duplo sentido de fazer e provocar confusao) a pesquisa de inten~6es de voto com outra, relativa a aprova~ao da administra~ao municipal, divulgada alguns dias antes. 0 fato e que, no dia lode outubro, a diferen~a entre os dois candidatos foi de pouco mais de oito pontos percentuais (42,5% para ]abes, 34,3% para Roland), 0 que garantiu a reelei~ao de ]abes Ribeiro para a Prefeitura de Ilheus. Alem disso, 0 resultado revelou, tambem, se levarmos em conta a "margem de erra", que a pesquisa Brasmarket nao estava

nem muito cerra, nem muito errada - 0 que parece, alias, ser 0 destino da maior parre dessas pesquisas. No dia 30 de junho, 0 jornal A Regiiio noticiava que as inumeras "pesquisas" de inten~ao de voto relativas as elei~6es proporcionais para vereador eram inteiramente falsas e que apenas os tolos nelas acreditavam. Apesar disso, candidatos, assessores e cabos eleitorais usavam amplamente resulrados de supostas sondagens no intuito de refor~r ou de minar candidaturas. Mari-

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000 contou que urn dos candidaros apoiados pelo Dilazenze dizia claramenre que era preciso espalhar pela cidade a norkia de que havia uma pesquisa que 0 colocava em muito boa situa9io nas preferencias eleirorais - boaro muito facil de espalhar, ainda segundo Marinho, ja que bastaria divulga-lo para duas ou tres pessoas na pra~a onde fica situada a Prefeitura (conhecido local de fofocas, boataria e articula~6es polfticas) para que, em poucas horas, a notkia Fosse conhecida em roda a cidade. 0 mesmo candidaro tambem repetia que o prefeito the dissera ter encomendado uma pesquisa que garantia que ele seria eleito vereador. Re.sultados de pesquisas tambem sao acionados no intuito de propor, explicar ou justificar apoios e alian~as eleitorais - especialmente quando estas podem parecer muiro estranhas de urn ponto de vista estritamente partidario ou ideologico. E muito comum que urn candidaro proponha a outro, ou outros, que todos lancem suas candidaturas e que, a uma certa disrancia das elei~6es, mandem "fazer uma pesquisa" destinada a detectar 0 detentor do maior indice de popularidade, que devera, entao, ser apoiado pelos demais, que, assim, terao que renunciar a suas candidaturas. Membros do PT dizem que essa estrategia teria feiro com que, em 1992, 0 partido tivesse apoiado urn candidato do PSB na sucessao municipal. Do mesmo modo, ja vimos que 0 Movimento Ilheus Cora~6es explicava sua alian~ com Antonio Olfmpio nessas mesmas elei~6es por raz6es anilogas. Em 1998, era uma pesquisa que "explicava" 0 lan~amenro de Rubia Carvalho como candidata a Camara Federal, e nao aAssembleia Legislativa, como ela parecia desejar. Em julho de 2000, Cosme Araujo ainda propunha que os quatro candidaros "mais fracos" se aliassem, com tres deles apoiando 0 que viesse a ser indicado como 0 mais popular em uma pesquisa a ser encomendada. As pesquisas nao consistem, assim, em simples instrumentos neutros de aferi~ao de uma realidade que seria a elas exterior e quase indiferente. Elas fazem parte integrante dessa realidade, funcionando como dispositivos de captura e como formas retoricas fundamentais nas lutas que, supostamente, deveriam se limitar a rerratar." E e claro que minha propria pesquisa tambem tendia a ser compreendida mais como arma do que como camera. Desde a suspeira, em 1996, de que Paulo usava a pesquisa como pretexro para atrair 0 movimento afro-cultural de llheus para a candidatura de Jabes Ribeiro a prefeiro, ate 0 convite, feiro em 2003 por alguns de seus irmaos, para que eu mesmo Fosse "assessor" da futura candidatura de Marinho Rodrigues a Camara Municipal, era nessa chave que meus amigos, conhecidos e informan-

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tes, em Ilheus, tendiam, ao menos em patte, a intetptetat 0 que eu estava la fazendo. 26 Algo semelhante ao que ocotre com as pesquisas parece acontecer tambern com os chamados debates eleitorais. Sua fun¢io manifesta, como se sabe, seria informar 0 eleitor a respeito das propostas, ideologias e posi~6es dos candidatos, assim como obriga-los a se manifestar sobre urn certo numero de temas e quest6es tidos como impottantes - tudo isso tendo em vista possibilitar 0 voto "correto", ou seja, aquele que, nas palavras de Leoncio Mattins Rodrigues (1994: 3), procede por "adequa~ao entre os interesses e valores de eleitor e os do candidato escolhido".27 Na realidade, os debates eleitorais tendem a funcionar - tal qual os comicios na analise de Palmeira e Heredia (1993) - como espa~os e momentos destinados a manifesta~ao de for~a polftica e eleitoral. For~a que pode residir na capacidade ret6rica do candidato, na forma como enfrenta, encurrala ou ridiculariza seus oponentes, ou mesmo em sua capacidade de convetter 0 debate em verdadeiro ato eleitoral. Nas elei~6es municipais de Ilheus em 2000, apenas urn debate - realizado por uma radio local famosa por fazer oposi~ao a Jabes Ribeiro - colocou frente a frente todos os seis candidatos a Prefeitura. Urn segundo debate, realizado na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), situada no Municipio de Ilheus, mas pr6xima a ltabuna, nao contou com a presen~a de Roland Lavigne, cuja ausencia foi simbolizada por uma cadeira vazia. 0 Clube dos Dirigentes Lojistas de Ilheus, por sua vez, realizou uma serie de debates com todos os candidatos, mas estes enfrentavam a plateia separadamente em dias distintos. Em todos os casos, 0 mais incomum e que as quest6es formuladas fossem efetivamente respondidas. Tratava-se, antes, de acusar ontros candidatos, de dirigir-se diretamente ao eleitor, em tom de campanha, pedindo seu voto, de anunciar atos eleitorais (como comicios ou caminhadas) ou de mobilizar a plateia presente - no unico debate que contava com uma, 0 da UESC. A este debate, realizado no dia 18 de setembro de 2000, compareceu, de fato, urn grande publico, ja que 0 audit6rio principal da universidade (que tambem e urn teatro) estava praticamente lotado, 0 que significa a presen~a de cerca de mil pessoas. No palco, uma mesa com cinco candidatos, uma cadeira vazia representando a ausencia de Roland Lavigne e, no centro, dois membros da Associa~ao de Docentes, promotora efetiva do evento. Ap6s as apresenta~6es iniciais - em que todos evocaram tra~os importantes de suas biografias, suas atividades profissionais e sua experiencia politica -, cada can-

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didato tinha cinco minutos pata dirigir uma pergunta a outro por ele escolhido; esre, por sua vez, tinha direito a cinco minutos de resposta, seguidos por tres minutos para a treplica do perguntador. Jabes (do PSDB) escolheu perguntar a Cosme (do PSC), que decidiu perguntar aJabes; Nelson (do PT) perguntou a Maria Adise (do PV), que perguntou a Nelson; Oldeck (do PDT) licou de fora, e isso provocou cerra rea<;ao do publico, que suspeitava que as perguntas visavam sobretudo "levantar a bola" para 0 perguntado, ou suscirar a possibilidade de autopromo<;ao no momento da treplica. Mais tarde, 0 publico passou a ter 0 direito de perguntar. Nas respostas, 0 que parecia imporrar nao era tanto 0 conteudo ou a informa<;ao real contida na interven<;ao, mas a for<;a retorica do argumento. Nesse sentido, Jabes e Nelson acabaram por polarizar 0 debare e cada vez menos se preocupavam em responder ao que era efetivamente perguntado, tratando de retorquir a interven<;ao anterior do oponente. Nelson acusava Jabes de traidor e oporrunista; Jabes dizia conhecer 0 PI; e saber que 0 PT era urn na conversa e outro na pr:hica, oporrunista. Subitamente, come<;aram a ser levantadas quest6es muito pessoais para Cosme e Adise, insinuando corrup<;ao do primeiro (que teria recebido R$ 700.000,00 para se lan<;ar candidaro a prefeito e rirar votos de Roland Lavigne) e evocando algum crime cometido por urn familiar da segunda. Simultaneamente, a plateia come<;ou a se manifestar com mais for<;a. De urn lado do auditorio, concentravamse alguns grupos vestidos com camisetas de candidatos a vereador ou a prefeito, principalmente de Jabes. Havia tambem uma enorme quantidade de crian<;as, vestidas com 0 uniforme de uma escola municipal siruada em urn bairro popular proximo a UESC. De forma cada vez mais clara, foi possivel perceber que algumas pessoas sentadas nas primeiras fileiras de polrronas comandavam as que estavam atras, puxando aplausos para Jabes e vaias para os demais, especialmente para Nelson. Do outro lado do auditorio, 0 publico parecia composto por professores, secrer:irios municipais, radialistas e algumas familias, mas a inclina<;ao da maior parre por Jabes tambem parecia bastante evidente. Ao receber uma pergunta da plateia, indagando de onde esraria vindo 0 dinheiro de sua campanha, e se ele pagara pessoas para virem ao debate, Jabes indignou-se, afirmando que nao responderia "a essa pergunta boba", voltando a fazer crlticas a Nelson e ao PT em geral, e dizendo que avisara, desde 0 inicio, que rinha que se rerirar as nove horas para urn ato de campanha. E, mesmo faltando ainda dez minutos para as nove, os puxadores de aplausos

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senrados a frenre comeyaram a aplaudir ease levanrar, prosseguindo com os aplausos de pe, bern como fazendo gesros para parre da plateia, que, rapidamenre, tambern se levanrou, passou a aplaudir de pe e comeyou a gritar 0 nome de Jabes. Imediata e sucessivamenre, 0 candidaro, seus assessores, os puxadores de aplausos e a parre da plateia que gritava comeyaram a se retirar do audit6rio, deixando-o com apenas cerca de urn quarro de sua lotayao. Do lado de fora, tres onibus recolhiam os apoiadores de Jabes, e comenrava-se que se tratava das mesmas pessoas que recebem uma diaria de R$ 10,00 para agitar bandeiras por rodo urn dia. Marinho ainda observou que a organizayao das campanhas de Jabes era sempre admiravel, sem se inreressar, de forma alguma, em discutir se a manobra de esvaziar 0 audit6rio, bern como a de trazer crianyas de uma escola municipal para urn debate eleitoral, eram legitimas. Na verdade, essa admirayao pela boa organizayao, independenre do candidato que esta em jogo, parece ser urn trayo recorrenre nas elei y6es em Ilheus.

*** Se a candidatura de Jabes Ribeiro a reeleiyao parecia ir bern tanro nos debates quanro nas pesquisas, isso nao excluia que dela fizesse parre urn investimenro mais direro na chamada cultura negra local. Urn certo apoio a candidatura de Gurita por parte da Prefeitura, bern como diversas tenrativas de atrayao do movimenro negro como urn rodo e de Marinho Rodrigues em particular, pareciam testemunhar esse esforyo. Everdade que, como vimos, Jabes costumava lembrar que, ao longo de roda a sua carreira polftica, sempre manrivera relay6es privilegiadas com 0 movimenro afro-cultural, e que essas relay6es comprovavam seus compromissos com a questao negra como urn todo. Essa suposta proximidade parece, de faro, ter aumentado nas eleiy6es municipais de 2000. Em conversa com Marinho, por ocasiao do cafe-damanha de apoio a Gurita, em 30 de agosto, 0 prefeito - alem de convocar 0 Dilazenze e Marinho para "a guerra" - disse que pretendia fazer de Ilheus "0 segundo maior p610 cultural da Bahia em termos de cultura negra". Sugeriu, paralelamenre, a organizayao de urn comite do movimenro afro-cultural, nos moldes dos ja existenres Comite das Mulheres e Comite da Juvenrude. Como estes, a funyao basica desse Comite Negro (ou Comite 45. Movimento Negro de Ilheus) seria, evidenremenre, 0 apoio a candidatura de Jabes. Ainda que tais comites se destinassem exclusivamenre aeleiyao majoritaria (visando

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evitat conflitos com e entte os candidatos as propotcionais), neste caso, actescentou 0 ptefeito, 0 comite podetia tambem apoiar a candidatura de Gurita a vereador - desde que, como ressaltou um dos assessores mais proximos do prefeito, "nao fique parecendo que e 0 comite do Gurita", pois nao deveria dar a impressao de que Jabes estaria ajudando ostensivamente um candidato a vereador em detrimento dos demais que tambem 0 apoiavam, 0 que significaria prejuiw eleitoral cerro. ÂŁ, claro que 0 fato de Gurita ser negro explicava a exce~ao com a qual acenava 0 prefeito. De toda forma, 0 comite deveria nao apenas manifestar 0 apoio do movimento afro a candidatura de Jabes como tambem organizar alguns eventos eleitorais. No entanto, a {mica manifesta~ao que acabou sendo programada foi uma "caminhada", que deveria ser seguida de um "ato publico" diante do Memorial, no dia 19 de setembro. 0 ato acabou nao sendo realizado - supostamente porque a Prefeitura nao forneceu os 6nibus, a sonoriza~ao, a ilumina~ao, 0 palco, as camisetas e 0 cache de R$ 600,00 que haviam sido solicitados -, a caminhada reuniu pouquissima gente, e a ideia do Comite 45. Movimento Negro de Ilheus foi inteiramente deixada de lado. Embora a rela~ao entre 0 movimento afro-cultural e 0 prefeito e candidato a reelei~ao parecesse estar indo muito bem, um evento, ocorrido na segunda quinzena de julho de 2000, mas cujos efeitos se prolongaram quase ate as elei~6es, amea~ou complicar esse relacionamento. 0 irmao do prefeito, e secretario municipal, envolveu-se em um conflito com um deputado estadual do PT baiano, que realizava uma reuniao com funcionarios do municipio. Evidentemente, 0 que realmente se teria passado e muito dificil de dizer, eo caso foi tao conttoverso que a melhor forma de acompanha-lo talvez seja seguir a troca de panfletos, arrigos e materias pagas que se sucederam. Assim, pouco depois do conflito, uma serie de entidades, encabe~adas pelo MNU, disrribuiu pela cidade um panfleto intitulado "Basta de Racismo": "BASTA DE RACISMO!

o deputado estadual Paulo Anuncia~iio,

do PT, foi violentamente agredido no Parque de Opera<;6es, quando participava de uma reuniiio com trabalha-

dores. 0 agressor,

0

secrerario de servic;os pliblicos, John Ribeiro, irmao do

atual prefeito, tenrOll pegar uma arma e chamou Paulo Anunciac;ao de "negro

vagabundo descarado", "preto viado" e "deputado de merda". 0 ilusrre secrerario naa esperava que urn negro, ex-gari e rasrafari, puclesse ser deputado estadual. 0 faro revoltou a Bahia, em especial a comuniclade negra que, atraves desta nota, vern a publico denunciar e repudiar a truculencia do Sr. John Ri-

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beiro. que, em qualquer outra cidade brasileira, estaria demitido e na cadeia por crime de racismo. Caso 0 prefeito passe a mao pela cabec;a do seu irmao, como vern fazendo ate agora, estari comprometendo decisivamente a imagem do seu governo que passara a ser visto como urn governo racista.

ILHEUS, CIDADE NEGRA, EXIGE JUSTI<;:A! Maioria absoluta da popula~ao baiana e mais de 60% da popula~ao ilheense, os negros estao nos bairros mais carentes do munidpio, nos povoados mais abandonados, nos piores e mais mal remunerados empregos. Servem de massa de manobra para os poliricos que solembram de nos na hora em que precisam dos votos ou quando querem animar seus palanques com boa musica, danc;a e ourros elemenros da cultura que produzimos. Na verdade, a popula~ao negra vern construindo ao lange desses seculos uma hist6ria de resistencia, de lutas e beleza em defesa das nossas rafzes culturais e direito acidadania. 0 mito da democracia racial, finalmente desmascarado, coloca na ordem do dia a discussao sobre a cidade que queremos. Quando um secretario agtide um deputado eo chama de "negro vagabundo", ai esta escancarado 0 racismo da nossa sociedade. Esta desmascatada tambem a pratica dos atuais "Capitaes-do-Mato" e "Feitotes" que no passado ca~avam nosso povo e hoje usam de cargos publicos para tentat nos calar. Em Ilheus, nas porras do novo seculo, nao foi diferente. o irmao do prefeito, jogando por terra sua propria raiz, promoveu urn dos mais abominaveis atos de racismo ja vistos nos ultimos tempos nesta cidade. Alias, pobre cidade que, negra, ainda nao sabe do podet que possui! Nos, representantes de entidades negtas, populates e sindicais de Ilheus e tegiao, juntamos nossa voz a de milhares de entidades de todo 0 pals que estao, neste momento, repudiando e denunciando a atitude do atual secrerario de Servic;os Publicos de Ilheus. BASTA DE RACISMO! EXIGIMOS ADEMISsAo DE JOHN RIBEIRO! Esta e a tinica forma do governo municipal provar que e contra 0 racismo e a truculencia!

Movimento Negro Unificado (MNU); Grupo Negro do SINTSEF; Bloca Afro FOt~a Negra; Associa~ao de Moradores da Av. Palmates; Ass. de Moradores do Alto do Coqueiro; SINDAE; SINTSEF; APPI; SINSEPI; Grupo de Capoeira Luanda; Mov. de Liberta~ao dos Sem Tetra (MLST); Polo de Unidade Camponesa; Ass. Cooperativista Dom Helder Camara".

o acontecimento parece ter mobilizado 0

comando da campanha de Jabes. Poucos dias ap6s a nota do MNU, na pagina 4 da edi~ao de 30 de julho de 2000 do jornal A Regiiio, uma materia, paga pda Prefeitura de Ilheus

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e assinada por John Ribeiro (na qualidade de secredrio de Servi~os Publicos), buscava responder as acusa~6es: "PREFEITURA MUNICIPAL DE ILHEuS

Secretaria de Servi~os Publicos Nota de Esclarecimento Em virtude da utiliza~ao politico-partidaria de alguns segmentos do PT, que se aproveitam do momento eleitoral pata explorar fato ocorrido na sede da Secretaria de Servi~os Publicos, no ultimo dia 20 de julho de 2000, venho a publico repudiar a atitude destes setores e fazer esclarecimentos acomunidade de Ilheus. Na data acima referida, fui informado por telefone, pot volta das 8 horas, que a sede da Secretaria de Servi~os Publicos havia sido invadida par um grupo de panfletagem e candidatos a vereador do PT. 01. Como esse tipo de atividade politico-eleitoral e proibida nas dependencias das reparti~6es publicas, considerando que no local funciona 0 Setor de Opera~6es da Prefeitura - 0 que exige medidas de segutan~a - me ditigi asecretatia e solicitei que 0 grupo se retirasse ate a ponaria. 02. Acompanhados pelo deputado estadual Paulo Anuncia~ao, 0 grupo se teCliSOU a deixar 0 local e passou a me fazer insultos e agress6es, usando palavras de baixo calao, como: "descarado, fascista" e Durros termos impublicaveis, 0 que me levou a solicitar 0 apoio da Polfcia Militar. Nesse sentido, prestei queixa aPolfcia Civil e denuncia ao ministerio publico, para a devida apura~ao dos fatos. 03. Ap6s 0 epis6dio, esse grupo tem procurado explorar 0 fato, me acusando de usar arma de fogo e ref tido uma atitude racista. Essa e uma acusac;ao rnentirosa. Quem me conhece, conhece a minha hist6ria de vida, de homem negro e trabalhadar, sabe que seria incapaz de tal atitude. Diante desses fatos lamendveis, reaflrmo 0 compromisso de luta por uma 50ciedade mais igualitaria, e repudio mais uma vez a atitude aetica e oportunista das pessoas envolvidas, que demonstram despreparo para 0 exercicio da vida publica. Atenciosamente, JOHN RIBEIRO

Secreta.rio de Servic;os Ptiblicos".

Alem disso, ja no dia 27 de julho, Gurita apressara-se em convocar uma reuniao com os grupos afro, reuniao a qual compareceram pouquissimos representantes de entidades. E possive! que ao menos alguns deles, como Marinho Rodrigues, do Dilazenze, tenham evitado comparecer ao encontro por

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I

,

pressentirem que se tratava de uma manobra destinada a "usar" 0 movimento negro a fim de apoiar Jabes e John, provando, desse modo, que 0 ultimo nao era racista. De toda forma, Gurita lan<,:ou, alguns dias mais tarde, um panfleto intitulado "0 Movimento Negro Esd. com Jabes", no qual constayam os nomes do CEAC, oito blocos afro, bandas de reggae e quatro academias de capoeira - alem de um enigmatico "Movimento Negro de Ilheus". panfleto, impressa em pape! de boa qualidade, com marca d'agua e desenhos coloridos de tematica supostamente afro, dizia:

o

"0 MOVIMENTO

NEGRO ESTA COM]ABES

Nos, do MOVIMENTO DA CULTURA NEGRA DE ILHEus, manifestamos 0 nosso apoio incondicional a candidatura de ]ABES a prefeito de Ilheus. Nao temos duvida que ]ABES e ILHEUS NO CAMINHO CERTO. A sua a~ao tem sido fundamental para

0

avan<;o do movimento negro em nosso municipio. Vma

prova disso e 0 apoio que sempre deu a todas as manifesta~oes politicas, culturais, economicas, sociais e religiosas da popula~ao negra de Ilheus: Criou 0 Carnaval Cultural, abrindo espa~o para todas as manifesta~oes culturais da cidade: Criou 0 Memorial da Cultura Negra de Ilheus: Apoiou todos os eventos promovidos pelos segmentos da cultura negra - Noite da Beleza Negra, Batizados de Capoeira e Festa dos Terreiros; Realizou 0 seminario para discutir a gera<;ao de emprego e renda com as ativi-

dades da cultura negra; Apoiou todas as atividades do DIA NACIONAL DA CONSCI~NCIA NEGRA; e Criou 0 Conselho de Assistencia as Comunidades Negras. Por tudo isso, pedimos 째 seu apoio a candidatura de ]ABES para prefeito. A elei~ao de ]ABES por mais um periodo e a consolida~ao de todos os projetos que estao sendo trabalhados em apoio ao movimento negro em Ilheus e a rodos os segmentos da popula~ao. Ilheus, Julho de 2000. Movimemo Negro de Ilheus, Conselho das EntidadesMro-Culturais (CEAC), Grupo Mro Dilazenze, Grupo Mro Rastafari, Grupo Mro Zambi Axe, Grupo Cultural Leoes do Reggae, Bloco Mro Miny Kongo, Bloco Mro Guerreiros de Zulu, Grupos Mro Danados do Reggae, Rafzes Negras, Bandas de Reggae Quilombo, Rafzes, Quizila, Ruanda e Savana, Academias de Capoeira Camarada Camaradinha, Luanda, Libetdade, Ra~a e Capubahia". Ao tomar conhecimento desse panfleto, Marinho demonstrou grande irrita<,:ao. Nao apenas porque 0 nome do Dilazenze aparecia entre os signata-

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rios, como rambem porque 0 CEAC, argao de que ele era presidenre, praticamenre encabe~ava a lista dos supostos apoios. 1nrerpelado, Gurita respondeu que a reuniao aqual Marinho nao comparecera decidira 0 apoio e que, afinal de conras, como "todos estao mesmo com Jabes", nao vira nenhum problema em incluir seus nomes no panfleto. Este, conrudo, parecia ter ultrapassado 0 limite que Marinho, como militanre negro, estabelecia para si mesmo em termos de alian~as e apoios politicos. Afinal, tratava-se de defender alguem que, aparenremenre, havia cometido urn serio ato de racismo, e esse era urn assunro grave demais para ser objeto de acordos ou composi~oes. Lembrando que Gurita semp"e insinuava a existencia de racismo enrre alguns secretarios municipais - que, ironicamente, 0 chamavam de "advogado dos negroes" -, Marinho pergunrava como urn candidato que se dizia membro do movimenro negro podia ficar do lado de urn agressor, e nao de quem havia sido agredido, em urn caso de racismo. Ao mesmo tempo, Marinho temia que qualquer manifesta~ao fosse interpretada pelo prefeito como sinal de oposi~ao e, principalmenre, que isso acarretasse retalia~oes conrra 0 Dilazenze, 0 CEAC e 0 movimenro afro-cultural como urn todo. Fazendo eco ao apelo de Jaco Sanrana para que alguma coisa fosse feita, ofereci-me para tenrar redigir uma nota que, sem atingir 0 prefeito, deixasse claro que 0 CEAC e as enridades que compunham 0 Conselho nao haviam participado da reda~ao do panfleto e nao compactuavam com 0 ato de racismo: "CONSELHO DE ENTIDADES AFRO-CULTURAIS - CEAC

o Conselho de Entidades Nro-Culturais (CEAC) de Ilheus, surpreendido com a divulga,ao do panfleto intitulado "0 Movimento Negro Esta com Jabes", gostaria de prestar alguns esclarecimentos a popula,ao ilheense. 1. Ainda que reconhe,a os esfor,os e as a,6es da administra,ao Jabes Ribeiro em pro! do movimento negro da cidade, 0 CEAC ainda nao definiu se tomara uma posi,ao oficial em rela,ao as elei,6es municipais do ano 2000 em Ilheus. 1sso porque ainda nao houve oportunidade de discutir com os candidatos, porque nao houve oportunidade de discurir dentro do Conse!ho, e porque a tradic;ao do Conselho e assumir posic;6es politicas somente quando estas sao consensuais aos grupos que 0 comp6em; quando isso nao eposs{vel, 0 Conse-

lho deixa a criterio de cada entidade a escolha da posi~o que !he parece a melhor. 2. 0 CEAC viu-se, entao, surpreendido com a divulga,ao de urn panfleto que usa seu nome e de varias dos grupos que 0 comp6em sem que 0 Conselho tenha sido consultado e sem que ele tenha deliberado a respeito desse assunto.

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3. 0 CEAC gostaria, enfim, que sua seriedade e importancia sejam respeitadas, e que seu nome nao seja utilizado a nao sec pelas insdncias regulamentares previstas em seus estatutos.

Gilmario Rodrigues Santos Coordenador Executivo do CEAC". Marinho concordou com 0 texto, mas ainda argumentou que nao havia recursos para sua impressao. Ofereci, tambem, os R$ 50,00 necessarios, e membtos do Dilazenze distribuiram 0 panfleto pela cidade. Como disseram mais tarde, "a coisa repercutiu": varios telefonemas de apoio, inclusive 0 de Moacir Pinho, do MNU, cumprimentos nas mas, comentarios de que 0 panfleto havia "agitado a cidade". Provavelmente em func;:ao dessa repercussao, logo na manha seguinte, Gurita foi a casa de Marinho, com 0 panfleto do CEAC na mao e com 0 argumento de que, certamente, tratava-se de coisa do MNU e do PT. Marinho reagiu, dizendo que 0 documento era mesmo do CEAC, e que Gurita nao podia ter feito 0 que fizera, critica com a qual este acabou concordando. De toda forma, 0 panfleto do CEAC acabou por enfraquecer a posic;:ao de Gurita na campanha de ]abes, comprometendo sua suposta condic;:ao de representante do movimento afro-cultural da cidade. Alem disso, na tarde do dia seguinte a divulgac;:ao do panfleto, a Prefeitura liberou a primeira parcela de uma prometida verba destinada a financiar urn projeto social que 0 Dilazenze vinha desenvolvendo com crianc;:as dos Carilos, 0 Projeto Batukere. E ainda que 0 dinheiro liberado representasse apenas 10% do total prometido, a pagamento foi interpretado como resultado direto do panfleto e, por alguns, como urn sinal de que valia a pena "radicalizar" urn pOI.ICO, pois assim talvez pudessem obter 0 restante da verba para 0 projeto. Gilvan desejava mesmo que Cosme Araujo denunciasse a panfleto de Gurita em sessao na Camara dos Vereadores, 0 que Marinho recusou peremptoriamente. Gilvan teve, entao, que se contentar em incluir 0 episodio dos panfletos nas duras criticas que faria a Gurita no comicio de Cosme realizado na Conquista. Esse episodio, na verdade, faz parte de uma serie de outros eventos e de diversos conjuntos de relac;:6es. Nas comemorac;:6es do Dia da Consciencia Negra de 1998, a posic;:ao de Gurita perante a questao das relac;:6es raciais ja parecera urn pouco incerta. Convidado - ao lado de Moacir Pinho, do MNU - para uma entrevista em uma radio local, ele teria se esquivado ao ser perguntado diretamente se havia racismo em llheus. Moacir, ao contrario, respondera taxativamente que sim e fizera urn duro e born discurso em toma da

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questao. Na mesma ocasiao, GUtita, com 0 auxilio do CEAC, foi urn dos teSponsaveis pela otganiza~ao de urn evento, a ser realizado no dia 19 de novembro, que Faria parte das comemora~6es do Dia de Zumbi (20 de novembro). Fracassadas as tentativas de trazer convidados "de fora" - uma vez que a Prefeitura se recusara a arcar com as despesas necessarias -, foi organizada uma mesa-redonda da qual participaram 0 pr6prio Gurita, Moacir, Marinho, 0 coronel comandante do Tiro de Guerra local, urn membro de urn grupo de capoeira e "0 antrop610go que pesquisa ha muito tempo a cultura negra de Ilheus". Tanto Moacir quanto eu insistimos em quest6es ligadas ao racismo; 0 coronel (que, comigo, completava os dois unicos brancos em meio a urn publico de mais de cinqiienta pessoas) tratou de negar a existencia de qualquer tipo de discrimina~ao racial, se nao no Brasil como um todo, ao menos no Exercito brasileiro. E, enquanto Moacir chamava a aten~ao para 0 risco de desmobiliza~ao presente no argumento apresentado por uma revista de circula~ao nacional que negava a existencia de ra~as humanas, o coronel insistia que, no Exercito, s6 havia uma ra~a, "a ra~a brasileira". Os discUtsos de GUtita e do representante do grupo de capoeira foram algo diferentes. Sem negar a existencia de racismo, insistiam na importancia da iniciativa individual, de "correr arras", como se costuma dizer em Ilheus, de ser bem-sucedido pessoalmente, servindo, assim, como exemplo para os demais ao estimular sua "auto-estima" (talvez a expressao mais urilizada da noite). Contestado por uma militante presente - que indagou se 0 discUtso da "falta de auto-estima" nao seria urn modo de culpabilizar os pr6prios negros por sua discrimina~ao -, Gurita respondeu que desejava apenas chamar a aten~ao para a importancia de se enfatizar "os progressos feitos pelo negro", o que nao deixava de ser uma forma de articular grandes quest6es coletivas com experiencias, interesses e ambi~6es pessoais. Do lado do Dilazenze, e de ourros blocos, a questao do racismo tambern e muito complicada. Primeiro, porque, como aprendi muito rapidameme em Ilheus, se e relativamente facil falar de racismo, digamos, abstratamentesustentando e ouvindo que e evideme que ele existe, que em Ilheus se maniFesta da pior maneira possivel, ou seja, de forma dissimulada, que a "burguesia" e racista, e assim por diame -, e muito diffcil abordar a questao de forma concreta e particularizada. E essa dificuldade diz tanto respeito aenuncia~ao de quem seria 0 sujeito desse racismo quanto a nomina~ao de seu objeto: rarissimas foram as ocasi6es em que ouvi alguem, sempre auseme, ser acusado de racismo; ou alguem, tambem auseme, ser mencionado como vitima concreta de discrimina~ao racial. Insistir na questao levava, no maximo, ao 224


reconhecimento de que se trata, realmente, de coisa "vergonhosa", quer dizer, que provoca vergonha mesmo em quem a sofre ou ate apenas fala dela. 2' Por ocasiao das comemora<;:6es do 7 de setembro de 1998, 0 Dilazenze e 0 movimento afro-cultural em geral haviam se envolvido em urn epis6dio que possula dimens6es raciais. Mais precisamente, 0 epis6dio ocorreu ao final do desfile, durante 0 Griro dos Exduidos - protesro organizado pela Igreja Cat6lica, contando, por vezes, com a participa<;:ao de associa<;:6es da sociedade civil-, que, ja ha alguns anos, vern marcando 0 final do desfile do Dia da Independencia em varias cidades brasileiras. Moacir Pinho fez questao de levantar 0 assunto quando conversavamos, em urn bar, ap6s a mesa redonda de 19 de novembro. Disse que ficara muiro triste com a participa¢o de blocos afro e que seria preciso muiro tempo para esquecer e perdoar. Na verdade, interessada em atrapalhar a manifesta<;:ao, que considerava que beneficiaria 0 PT, a Prefeitura de Ilheus, alem de promover demonstra<;:6es acrobaticas de bombeiros e militares, contratara urn trio eletrico e alguns blocos para que rocassem ap6s 0 desfile - abafando assim as palavras de ordem dos manifestantes, que, desse modo, dificilmente poderiam ser ouvidas pelas milhares de pessoas que lotavam a Avenida Soares Lopes (os desfiles de 7 de setembro sao muito populares em Ilheus). Marinho, que alguns dias antes me havia contado a hist6ria, dizendo que estava la apenas para "defender 0 meu" (ou seja, para receber uma remunera<;:ao), viu-se na obriga<;:ao de concordar com Moacir - que nao deixava de enfatizar 0 faro de os negros fazerem parte dos discriminados e exduldos - e de conduir que estava se sentindo muiro mal com o que ocorrera. Moacir procurou encerrar a discussao, admitindo que os blocos talvez nao soubessem 0 que estava em jogo, mas que tudo fora cuidadosamente preparado por alguns secretarios municipais sabidamente racistas seu alvo agora era Gurita, que tambem conversava conosco, e que concordou, em parte, com a culpa dos secretarios apenas para melhor inocentar 0 prefeiro. Essa dificuldade em se falar de racismo tambem ficou dara durante as elei<;:6es municipais de 2000, se observarmos 0 fato de que, ao contrario do que parecia temer a assessoria de Jabes, 0 epis6dio John Ribeiro foi muito pouco explorado - ou nao foi explorado de forma alguma - na campanha eleiroral, que ja estava nas mas, por aquele que, em tese, poderia ser seu maior beneficiario, Roland Lavigne. E isso nao apenas porque este era, mais uma vez, 0 principal candidaro de oposi<;:ao a reelei<;:ao do prefeito de Ilheus, mas porque ele mesmo vinha sendo sistematicamente acusado de racismo e, mesmo, de genoddio. Desde 0 inicio do processo eleiroral, circulava por toda a

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cidade urn panflero, de otima qualidade grafica e impressa em pape! de primeira linha, que anunciava: "DEPUTADO ROLAND LAVIGNE ENVOLVIDO EM CRIME CONTRA fNDlOS

A denuncia veiculada pelo jornal 0 Globo (30 de agosto) e por outros orgaos da imprensa nacional e estadual de que 0 deputado federal Roland Lavigne esta envolvido num grave crime de genoddio contra a primeira tribo indigena conhecida no Brasil, os pataxos ha ha hae, chocou 0 Brasil e 0 mundo. De acordo com a nodcia, que tern repercllssao internacional, "Vrna gerac;:ao de pataxos foi esterilizada. Todas as mulheres em idade fertil da aldeia sofreram ligadura de rrompas durante a campanha eleitoral de 94, sem autoriza~ao da FUNA!". Ainda segundo 0 jornal 0 Globo, "Os pataxos afirmam que as cirurgias de ligadura de trompas foram patrocinadas pelo medico e deputado federal Roland Lavigne (PFL BA) na epoca dono de hospitais na regiao". Para agravar ainda mais a situac;:ao de Roland Lavigne, 0 crime de genoddio denunciado pelos Indios Pataxos a ONU e a FUNAl foi praticado com 0 dinheiro do SUS em ttoea de voros.

Alem disso, 0 crime tern relac.;:ao com a dis-

puta dos fazendeiros da regiao pela posse das terras dos pataxos. Desde 0 descobrimento do Brasil os pataxos vern sendo empurrados do litoral - area de Santa Cruz de CabraIia para 0 interior. o ministro da Saude, Jose Serra, 0 Ministerio Publico, a Secretaria de Saude da Bahia e 0 Conselho Regional de Medicina ja estao investigando 0 caso e afirmam que vaa to mar providencias. Porem, n6s eleitores do sui cia Bahia, representantes cia soeiedade civil, naa devemos nos contentar com isso. Nao se trata apenas de urn crime de corrupc;:ao deitoral au de urn crime caroum. Urn

crime dessa natureza vai alem do direito penal. Atinge 0 direito avida. 0 direito de existir de uma ra<;a, de urn pava. E pratica comparavel aos piores crimes cometidos contra a humanidade e merece puni<;ao exemplar.

A existencia de uma rede de fraudadores do SUS na qual se destacava 0 deputado Roland Lavigne foi amplamente denunciada pela imprensa e nenhuma provideneia foi ramada. Nada foi feito para punir os criminosos que agora, em novo periodo eleirarat retomam a pratica de esterilizarem mulheres do povo com 0 dinheiro publico em tmca de voras .. E como se nao bastasse, utiliza uma

carreta transformada em hospital ambulante explorando as necessidades dos mais humildes para tentar se reeleger deputado federal com 0 slogan saude e vida. Isso

e uma vergonha.

Chega de crimes contra a humanidade. Queremos apura<;ao dos crimes e puni<;ao dos criminosos. MOVIMENTO rELA ETICA NA POLfTICA".

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As razoes que reriam levado Roland Lavigne a deixar de lado 0 episodio John Ribeiro e, conseqiientemenre, urn tema potencialmente explosivo em uma cidade onde quase 85% da popula~ao se idenrifica como negra, e onde seu principal adversario buscava, explicitamenre, 0 apoio do movimento negro, e uma questao de dificil resposta - ao menos para quem nao teve qualquer acesso a campanha do candidato. Talvez ele tenha avaliado que os dividendos eleitorais do episodio seriam muito baixos; talvez temesse ressuscitar as acusa~oes de racismo que pairavam sobre ele mesmo; talvez tenha decidido que 0 melhor, quando se trata de urn tema como 0 racismo, no Brasil, e nao tocar no assunro de jeito algum, seja porque este nao seria muito relevante, seja porque ninguem pode saber como a polemica poderia terminar. o fato e que, no dia 24 de agosto de 2000, ainda havia muita discussao em torno do caso John Ribeiro. Para esta data, havia sido marcado urn enCOntro do secretario e de Gurita com os pais das crian~as que, nos Carilos, faziam parte do Batukere, 0 projeto social desenvolvido pelo Dilazenze. 0 objetivo do encontro, em tese, era tentar explicar as razoes do atraso no repasse das verbas da Prefeitura destinadas ao projeto. Decidiu-se, entretanto, que a "reuniao" - que acabou, e claro, convertendo-se em ato eleitoral- deveria tambem ser ocasiao para a distribui~ao de cestas basicas as familias presentes, que, dessa forma, estariam sendo incluidas em urn programa mais amplo de distribui~ao de alimentos. Essa distribui~ao de cestas basicas, como ja observei, converteu-se, nos ultimos anos, e em todo 0 pais, em urn importante meio de obten~ao de apoio politico e de votos. Pouco importando a origem dos recursos - oriundos dos inconraveis programas municipais, estaduais e federais, mas tambem particulares ou do terceiro setor -, os distribuidores tratam de, pelo menos, insinuar que sao os responsaveis pelo fornecimento. Em Ilheus, eram comuns os comentarios de eleitores vinculando 0 suposto crescimento eleitoral de urn candidato a prefeito ou vereador em determinada regiao da cidade a distribui~ao de cestas, bern como hipoteticas quedas de popularidade a interrup~ao desse servi~o. Os candidatos travavam verdadeiras batalhas retoricas, legais e, por vezes, fisicas, em torno das cestas. Proclamavam que a distribui~ao era iniciativa sua e acusavam os adversarios de tenrar impedi-la ou de distribuir cestas irregularmente - como Jabes fazia com Roland; recorriam a justi~a ou chamavam a policia para impedir uma distribui~aoque taxavam de ilegal- como Roland fizera com urn evento comandado por John em urn distrito de Ilheus (0 que, evidentemente, permitiu a Jabes acusa-lo de tenrar

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impedir que a comida chegasse 11 boca do povo). A sele~ao e 0 cadasrramento das regioes e familias que deveriam receber 0 beneficio seguiam, ao menos nos momentos proximos ao pleiro, linhas de for~a polfticas, com a atua<;ao de cabos eleirorais e com 0 registro dos dados eleirorais dos cadastrados. 29 Realizada na quadta do Dilazenze, a entrega das cestas aos "pais do Batukere", como eram chamados os beneficiarios, acabou sendo, porranto, urn aro eleiroral, no qual Gurita e Jabes - tepresentado por seu irmao e secretario municipal John Ribeiro - eram os principais interessados. 0 primeiro nao mediu palavras: logo apos se apresentar e evocar seu trabalho em prol do movimento negro e do bairro da Conquista, foi direro ao ponto: "Eu estou na campanha de vereador, todD mundo sahe disso, enos precisamos ganhar essas elei~6es de vereador e de prefeito. Precisamos ganhar e 0 momen-

to aqui e realmente de pedirvotos a voces. Eu nao vim aqui para encher lingui,a nao. Eu vim esdarecer algumas coisas, bater urn papo, continuar com

0

meu

apoio e pedir 0 voto de voces, de cada urn de voces, dos amigos, dos vizinhos, da familia. Porque nos precisamos deger urn vereador que tenha compromisso com os Carilos, com a Conquista, que tenha compromisso com a cultura

popular da cidade, com 0 esporte da cidade". John Ribeiro, por sua vez, entre ironico e cauteloso, come<;ou seu discurso dizendo que "nao vou entrar de sola como Gurita entrou, pedindo voto no inlcio. Eu pe<;o no final!" E, imediatamente, agradeceu 0 apoio do Dilazenze "por alguns faros que tecentemente aconteceram na minha vida e os componentes do Dilazenze em nenhum momento sequer perguntaram a mim se 0 faro era verdadeiro ou mentira, mas simplesmente me apoiaram. Por isso estou agradecendo publicamente a esse grupo". No final do discurso, pediu urn "voto de confian~a", enfatizando que naG se tratava, contudo, de "yato de confian<;a para Jabes": "[...J eu sou suspeito para pedir 0 voto para Jabes porque, alem de trabalhar no

e

municipio, eu sou irmio. Quem tern que pedir 0 voto de Jabes 0 passado dele. a consciencia de voces que cleve votar. Mas eu quero pedir voto para

e

esse negao aqui. Vou chamar de de negao porque de sabe que estamos em familia. Votar em Gurita evotar em voces mesmos, evotar em urn represenrante de voces, da nossa rac;a, daqui da nossa area, uma pessoa que nao s6 merece 0 nosso voro, mas que urn irmao cia genre, que esra aqui, que nao vai falhar com a genre, que nao vai desaparecer depois".

e

E claro que John Ribeiro se referia, veladamente, ao confliro com 0 deputado do PT - bern como a outras acusa~oes de racismo que contra de vi228


nham sendo levantadas. 30 Ignorando completamente 0 panfleto do CEAC, agradeceu ao Dilazenze pelo apoio manifesto no panfleto de Gurita, 0 mesmo que Marinho repudiara veementemente. Apesar disso, este ultimo permaneceu 0 tempo todo em silencio e, no dia seguinte, ao relatar 0 ato, fingiu nao ter entendido muito bern do que John estaria falando. Perante 0 meu espanto, sorriu e disse que, felizmente, as pessoas presentes nao haviam entendido essa parte do discurso. Concluiu, tambern, que, em rela~ao ao suposto objetivo real do encontro - as verbas municipais para 0 Projeto Batukere, do Dilazenze -, nada acontecera. Finalmente, em tom de desalento, completou que 0 que houvera fora "muita poHtica". A evoca~ao, por parte de John, do estatuto de Gurita como "representante de voces, da nossa ra~a", replicava parte da materia paga por ele assinada, publicada em 30 de julho, em que sustentava que "quem me conhece, conhece a minha historia de vida, de homem negro e trabalhador". Diante de publicos majoritaria ou exclusivamente negros, seu irmao Jabes sustenta, as vezes, posi~ao semelhante. Vimos, tambern, como, mesmo sem se dizer negro, 0 coronel presente na cerimonia do 20 de novembro de 1998 defendia, contra 0 representante do MNU, a existencia de "uma unica ra~a, a ra~a brasileira". Nas sess6es especiais da Camara dos Vereadores de Ilheus alusivas aos Dia da Consciencia Negra, e muito comum os vereadores evocarem, em seus discursos, sua condi~ao de negros. Mas eles sempre tendem a fuze-lo relacionando essa condi~o particular a uma especie de situa~o geral de urn pais, ou ao menos de urn estado ou regiao, em que todos, de algurna forma, seriarn negros ou possuiriam algum "sangue negro" (e tambem "sangue indio")." Em 2003, essa mesma Camara Municipal designou uma comissao que deveria redigir uma "cartilha de conscientiza~ao negra", da qual setiam impressas 5 mil capias, a serem distribuidas em escolas e outras institui~6es, no dia 20 de novembro. A comissao, formada por cinco vereadores, convidou alguns representantes do movimento negro para uma serie de reuni6es, que deveriam servir para a prepara~ao do texto da cartilha. Apenas uma foi realizada, e, nela, 0 vereador Joabes Ribeiro, irmao do prefeito e tambem membro da comissao, declarou solenemente: "[...J essa carrilha serve para podermos construir urn movimento afirmativo de conscientizas:ao racial nessa cidade, que tern 70% de negros de cor e os outros

e e que 0 negro cleve agir, quais sao seus direitos, que ele saiba que e maiaria, que e dominante. E eu fiz iS50 porque

30% de negros de que

0

ra~a.

Queremos uma cartilha de ac;ao afirmativa, como

negro cleve se comportar, como

229


estou cansado de ser semibranco em urn pais afro, nao agUento mais. Eu nao estoll preocupado com voto, estou preocupado e que Ilheus possa, urn dia, ser dominada pela maioria negra, que e isso e que edireito. Mas nao e para dominar s6 peIo dominio nao: e para dominar porque essa e a realidade da nossa propor~ao,

e isso que e cerro. Nao da mais para todo negro olhar para branco e chamar ele de barao. Nao da mais! Todo negro olha para 0 branco e diz que e doutor, e patmo. E preciso parar com isso! 0 que a gente quer e igualdade, mas para ter igualdade tern que ter conscientiza<;ao. Essa e a ideia da cartilha, que nao e urn simples documento, mas urn instfumento para estar ali avista de toda a comunidade afro-descendente, que e uma maioria que quer ter urn

papel na hisroria dessa cidade. Essa e a ideia da Camara". A cartilha, ate onde eu saiba, nunca foi produzida. Em vez disso, no dia 20 de novembro de 2003, a Ptefeitura enviou ao Memorial da Cultura Negra uma enorme quantidade de panfletos (boa parte dos quais acabou sendo usada como papel para anota~6es) que deveriam ser distribuidos entre os grupos negros. Graficamente muiro semelhante ao panfleto elaborado por Gurita em 2000 para apoiar Jabes, este se resumia ao seguinte texto: "20 DE NOVEMBRO. Dia da consciencia negra.

Era uma vez uma cidade encantada, que de tao bela e acolhedora abrigou pessoas de varias origens. Entre eIas, havia muitos afro-descendentes que aqui construlram uma cultura e uma consciencia ricas e poderosas: a consciencia

negra. 0 samba, 0 candomble, 0 maculele e a culinaria que eles trouxeram passaram a fazer parre do dia-a-dia de todos nos. E para valorizar tudo isso, 0 prefeito Jabes Ribeiro tomou diversas iniciativas, criou 0 Carnaval Cultural e o Memorial da Cultura Negra. Os grupos afro agradecem. A cidade tambem. Aquele Axe" . Essa retorica do 'somos todos negros' e encarada pelos militantes afro ora com ironia, ora com irritaerao, mas sempre com a perfeita consciencia de que e1a e acionada visando resultados bern precisos, principalmente facilitar a aproxima~ao com 0 movimento afro-cultural a fim de, e claro, utiliza-lo para finalidades que nao sao as suas. No mesmo 20 de novembro para 0 qual a Camara elaboraria a cartilha de conscientiza~ao, e para 0 qual a Prefeitura distribuiu 0 panfleto acima reproduzido, 0 Conselho das Entidades AfroCulturais e 0 Memorial da Cultura Negra organizaram urn evento comemorativo do Dia de Zumbi, que deveria contar com apresenta~6es dos blocos afro em frente ao predio da 19 de Mar~o. Surpreendentemente, Jacks Rodri-

230


~

I:

I, I;

gues, presidente do CEAC, chegou ao local acompanhado de urn administrador distrital que pretendia se candidatar as elei<;6es municipais de 2004, e que utilizava 0 slogan "100% Alcides" (clara alusao ao "100% Negro", que ornamenta muitas camisetas e adesivos em Ilheus e em outras partes). A medida que os diferentes grupos se iam apresentando, 0 candidato, seus assessores e 0 pr6prio Jacks distribuiam camisetas de campanha e cerveja para aqueles que desciam do palco. Indignado - principalmente, como explicou mais tarde, por se tratar do Dia de Zumbi -, Marinho Rodrigues, em seu discurso, advertiu para urn dos riscos que 0 movimento negro sempre correria em Ilheus, a saber, 0 de vir a ser "usado" por pessoas que, na verdade, nao tinham absolutamente nada a ver com a luta negra, e que s6 pensavam em seus interesses e objetivos pessoais: "n6s nao precisarnos de capitaes-do-mato", concluiu Marinho, empregando uma forte expressao que, por vezes, e utilizada pelos militantes negros como forma de denuncia velada (uma vez que os denunciados quase nunca sao nomeados, embora todos saibam de quem se trata) contra atitudes que consideram racistas. Mais tarde, 0 candidato aproximou-se e disse nao compreender a irrita<;ao de Marinho "porque eu tambem sou negao". Marinho, que considera 0 interlocutor absolutamente branco, respondeu: "tudo bern, mas entao por que s6 agora voce esca dizendo issa?" Em mar<;o de 2003, urn morador de Ilheus, branco e de classe media, decidiu comemorar seu aniversario com uma "noite afro", realizada no clu-

be Social de Ilheus, 0 mais exclusivo da cidade, situado no final da Avenida Soares Lopes. Alem de convidar as familias mais conhecidas de Ilheus - e 0 convite exigia "raupa afro" -, 0 aniversariante tambem convidou muitos mem-

bros dos blocos afro da cidade. Apesar de algumas crfticas a musica da festaque, supostarnente, deveria ser afro mas, na realidade, era axe-music -, eles divertirarn-se bastante, nao apenas com a festa em si, mas, principalmente, vendo "os burgueses" desfilarem com roupas que consideravam ser afro. De toda forma, essa comemora<;ao marcou uma aproxima<;ao entre 0 bloco afro Miny Kongo e 0 aniversariante, que, diz-se, ja trabalhou como "carnavalesco" em algumas escolas de samba do Rio de Janeiro. Ele passou a fazer parte da diretoria do bloco e atribuiu-se a tarefa de leva-Io a conquista do carnaval 2004. Desde que a competi<;ao entre os blocos fora reintroduzida, em 1999,0 Dilazenze vencera todos os carnavais, conquistando 0 inedito titulo de pentacarnpeao do Carnaval Cultural de Ilheus. Interromper essa seqiiencia passou a ser urn ponto de honra para os demais blocos, em especial para os outros

231

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dois considerados "grandes", 0 Rasrafiry e 0 Miny Kongo. A colabora~ao do ex-carnavalesco foi, assim, bern recebida pelos membros do tilrimo, e 0 fato de ele ser considerado branco nao chegava sequer a ser uma questao, uma vez que a presen~a de nao-negros nos blocos afro de Ilheus - e mesmo sua participa~ao no comando dos mesmos - nao e urn problema em si, embora nao seja tao freqiiente, por razoes, digamos, estatisticas. Como veremos no tilrimo capitulo, 0 Dilazenze acabou desfilando como "hors-concours" no carnaval de 2004, e 0 Miny Kongo, de fato, conquistou 0 dtulo. No dia 13 de maio de 2004, durante a entrega do Quarto Trofeu CEAC1 de Culrura Negra, 0 carnavalesco foi contemplado com uma das premia~oes. Em seu discurso de agradecimento, atacou frontalmente 0 Dilazenze e vangloriou-se de, sozinho, ter conseguido derrotar 0 rival. Ao receber 0 trofeu relativo a participa~ao de seu bloco no desfile, Marinho Rodrigues fez questao de responder ao ataque. Sustentou, mais uma vez, que 0 grande perigo que assombra os blocos afro de Ilheus e 0 de serem "usados" por pessoas que com eles nao tern uma verdadeira rela~ao; que esses blocos nao precisam de "capitaes-do-mato" que lhes digam 0 que fazer; e que, ao se considerar 0 tinico vitorioso do carnaval, 0 carnavalesco estava ofendendo, nao 0 Dilazenze, mas o pr6prio Miny Kongo e os antigos membros do bloco. 0 discurso foi muiro bern recebido e mesmo os componentes do Miny Kongo cumprimentaram Marinho por suas palavras.

*** Esse conjunto de acontecimentos e discursos aponta para diversas direObservemos de inlcio, que, se, em Ilheus, as posi~oes dos agentes a respeiro das rela~oes raciais e do racismo podem ser expressas em uma linguagem mais direta do que aquela a que estamos acostumados, isso nao significa que sejam distintas, em natureza, do que se afirma em outros locais e contextos, nem mesmo das posi~oes mais habituais no campo academico. Como se sabe, 0 debate que parece assombrar a vida intelectual brasileira hi muiro tempo se manifesrou, inicialmenre, na celebre dtivida sobre se existiria aqui, ou nao, urn racismo propriamenre dito, ou seja, se as discrimina~oes e exclusoes que, ao menos em principio, rodos reconhecem existir, possuiriam, ainda que em parte, uma base racial ou ernica, ou se seriam apenas, como se costuma dizer, de origem estritamenre social ou socioeconomica. Na medida em que essas desigualdades permaneceram, tornando-se ainda mais gritan~oes.

232


tes, e que sua correla~ao com pertencimentos emicos foi ficando cada vez mais dificil de set negada - seja em virtude de trabalhos aCadeinicos sofisticados, seja em fun~ao, digamos, de obsetva~6es a olho nu -, 0 debate patece ter sofrido uma pequena transforma~ao, mesmo que a pura nega~ao da existencia de racismo enquanto tal no Brasil, sem duvida, ainda persista em certos drculos ou em determinadas sirua~6es. Tomou-se, contudo, bern mais comum 0 reconhecimento de que, se algum tipo de discrimina~ao racial existe, ela apareceria, entre nos, sob modalidades, digamos, mais suaves do que em outros contextos nacionais ou culturais. Emuito dificil, de fato, achat alguem, hoje, que siga admirando abertamente a democracia racial brasileita, em compara~ao com a terdvel discrimina~ao norte-americana; mas e bern mais facil encontrar quem sustente que, no Brasil, pelo menos, essa discrimina~ao e os conflitos a ela relacionados nao atingiriam a gravidade e a onipresen~a que possuem, por exemplo, nos Estados Unidos. Essa perspectiva permeia ate mesmo os posicionamentos de muitos daqueles que, a fim de melhor denunciar

0

racismo entre n65, insistem no caniter mais perverso

do preconceito

dissimulado que conheceriamos, em oposi~ao 11 discrimina~ao aberta de outras partes do mundo, as quais, ao menos, permitiriam urn combate mais diceto e ostensivo.

Nao se trata aqui, e claro, de entrar nesse debate, que e muito complexo e exigiria urn trabalho espedfico. Mas creio ser possivel sustentar que, em ultima instancia, 0 carater aparentemente quantitativo das vis6es que nele se enfrentam (mais ou menos racismo, racismo pior ou melhor etc.) esta apoiado sobre julgamentos que incidem, antes, sobre supostas diferen~as qualitativas entre 0 que tende a ser considerado tipos distintos de racismo -ligados, por sua vez, a diferentes formas de classifica~ao dos individuos tendo por base sua "cac;a"

OU

"cor". Pais, como se sabe, sup6e-se existir, de urn lado, urn ra-

cismo de "origem", vigente em sociedades e culturas onde existiria uma nitida linha de separa~ao entre cores ou ra~as, chegando mesmo a constiruir urn sistema binario. E, de outro, urn racismo dito de "marca", predominante em

contextos socioculrurais que privilegiariam classifica~6es mais fluidas, tendendo para urn modelo continuo, no qual os individuos poderiam ser mais ou menos brancos ou negros. Uma polemica mais ou menos recente opondo Michael Hanchard (19%) e Peter Fry (1995) deixa claro esse ponto. 0 primeiro sugere que a "democracia racial" nao passa de uma ideologia que busca escamotear, com sucesso cada vez menor, as inegaveis desigualdades socioeconomicas baseadas nos pertenci-

233


mentos raciais. 0 segundo responde, argumentando, primeiro, que as "ideologias" ou "representac;6es" nao sao menos reais que a "realidade" e, em seguida, que 0 "modelo bipolar" de classifica~ao racial e tfpico dos Estados Unidos, ou do mundo anglo-saxonico, nao podendo ser projetado sobre outros contextos (idem: 13). Ao mesmo tempo, admite que, no Brasil, estarfamos as voltas com a coexistencia dos dois modelos: "0 ideal da democracia racial e a brutalidade do racismo coexistem de tal forma que e a situa~ao [...] que determina qual vai prevalecer" (idem: 135). o problema, como demonstrou Petonnet (1986), e que 0 modelo dualista nao resiste a uma boa emografia, e isso vale para Ilheus ou para 0 Harlem: subjacente, ou ao lado, de qualquer classifica~ao dual, encontram-se sempre outros modelos de classifica~ao, modelos que nao apenas sao multiplos, como, principalmente, sao utilizados de distintas maneiras. Como vimos no Capftulo 2, em um primeiro momento, Paulo Rodrigues foi aceito no movimento afro-cultural de Ilheus ao acionar marcadores que, na cidade, conotam a condi~ao negra: naturalidade ilheense, pai estivador, cor da pele ("mulata", como disse), luta contra 0 preconceito. Mais tarde, outras dimens6es existenciaiscomo a cultura, a habilidade para a musica e a dan~a, a disposi~ao para a Festa eo carnaval- tornaram-se mais imporrantes e ele foi totalmente exclufdo do movimento. Vimos, tambem, no capftulo anterior, como Gurita, ao mesmo tempo, reconhecia a "cor" do candidato a vice-prefeito como negra e sua "cultura" como nao negra - a pergunta "mas, afinaI, de e negro ou nao e" 56 podendo mesmo surgir nos censos ou no espfrito de antropologos desavisados. Isso significa, mais uma vez, que 0 abandono de perspectivas sintaticas e semanticas em beneficio de uma pragmatica - tambem advogado por Fry (1995: 125-126) - parece ser a condi~ao de possibilidade de uma compreensao mais sofisticada, nao so do racismo, mas de alguns correlatos, como as no~6es de ra~a, emicidade, identidade etc. E desse ponto de vista que John Galaty (1982) propos a substitui~ao das anilises semanticas da emicidadepreocupadas com a identifica~ao dos grupos denotados pelos marcadores etnicos - por uma perspectiva pragmatica, que nao apenas leve em considera~ao os contextos cambiantes de a~ao e as posi~6es neles ocupadas pelos agentes, mas, sobrerudo, parra delas. Nesse sentido, os marcadores etnicos funcionam como os shifters lingiifsticos, conotando categorias cujas fronteiras sao moveis e instaveis. 0 que nao significa, evidentemente, que tudo seja possfve!' mas apenas que os limites de inclusao e exclusao nao sao fixos e nao podem ser conhecidos antes da investiga~ao empfrica (idem: 16).

234


Eclaro que, em cada contexto ptagmatico, um, ou alguns, dos marcadares tende a predominar; mas esse predomlnio, local e mutavel, nao se confunde, de forma alguma, com a fun~ao de sobrecodifica~ao que, em regimes espedficos, um marcador pode exercer sobre os demais. Nos termos de Deleuze e Guattari (1972), seria preciso, talvez, distinguir modos de classifica~ao, e meSilla racismos, 'selvagens' e 'desp6ticos'. No primeiro caso, estarfamos as voltas com c6digos polivocos acionados alternadamente; no segundo, com uma sobrecodifica~aodesses c6digos par parte de um significante tido como ptivilegiado. Que este seja a cor da pele, a genealogia, a heran~a genetica ou mesmo 0 patrimonio cultutal importa pouco perante essa fun~ao de sobrecodifica~ao.

Tanto as classifica~6es 'selvagens' quanto as 'desp6ticas' sao segmentares: alguem enegro, em determinada situa~ao, sempre com, para e em oposi~ao a outrem. Nesse sentido, nao ha distin~ao entre sistemas descontinuos e cOntinuos, mas, sim, entre as duas modalidades da segmentaridade. Do ponto de vista da flexfvel, os c6digos que permitem decidir se A esra com B em oposi~ao a C, ou se A esta em oposi~ao aBe C, sao de muitas naturezas e encontram-se em estado de varia<;ao continua. 32 as sistemas "cluros", por sua vez, sao tao segmentares quanta os Durros, mas ndes, para usaf a expres-

sao de Herzfeld (1992a: 104), a segmentaridade esta como que "dissimulada" e se apresenta como oposi~ao fixa. Esse e um dos processos que Herzfeld (1996: 76) denomina "Iiteraliza~ao": pertencimentos, que, nos idiomas 10cais, sao mais "estilos" que "identidades" operando claramente como shifters (eu, que sou "eu" para mim, mas sou "voce" para voce, tambem posso ser l

branco para alguem e nao para outrem), tendem a ser cristalizados na forma de identidades ernicas ou nacionais (idem: 74-77; 80-81; 93) - as quais, longe de serem 0 solo sobre 0 qual se consttoem as forma~6es estatais, sao um dos resultados das mesmas. 33 Sublinhemos, novamente, que nao se trata aqui de uma oposi~ao entre formas ideol6gicas ou sociais individualizadas, mas de processos insraveis em regime de varia~ao continua. Nesse sentido, os antrop610gos, que, por vezes, gostam de imaginar que seu papel e a desreifica~ao do que os agentes sociais reificariam, deveriam ser mais madestas, uma vez que, frequentemente,

e0

contrario que ocone. A antropologia, de fato, deve lutar contra a literaliza~ao, mas suas arma nao pode ser a denuncia do que os nativos pensam estar fazendo. Ao contrario, como ernografia das praticas e como pragmatica, a disciplina s6 pode apoiar-se, precisamente, sobre 0 carater flexfvel das classifica~6es cotidianas, a fim de enfrentar 0 aparente entijecimento operado pelo Estado 235


e por oureas insrirui~6es. E e apenas isso que podemos denominar conrexrualiza~ao e relariviza~ao. Observei rapidamenre, acima, que 0 racismo pode ser encarado seja como preconceiro, seja como faro empirico, esraristicamenre mensuravel, digamos. o primeiro caso compona, sem duvida, uma dificuldade, pois, como lembra Herzfeld (idem: 11), a possibilidade de acesso do etn6grafo aos "innermost thoughts" dos nativos e, no minimo, duvidosa. E, ao menos em llheus, alguns nativos parecem concordar com isso, de tal modo que, quando pergunrados se alguem e racista ou nao, tendem a nao responder diretamenre a questao, preferindo disconer sobre a existencia de racismo em geral na cidade, ou citar casos concreros de atirudes que consideram racistas. Por outro lado, se indices estatfsticos, como sabemos, podem ser inrerpretados de muitas formas - e e duvidoso que algum dia urn deles sirva de argumenro definitivo sobre seja la 0 que for -, tern ao menos 0 merito de nos colocarem na verdadeira pista do problema. Pois 0 racismo, mais ou menos que um preconceiro ou uma ideologia, e, sobrerudo, uma pratica e, mais precisamente, uma forma de poder: "[...J 0 que faz a especificidade do racismo moderno nao esta ligado a menta-

lidades, a ideologias, a mentiras do poder. Esta ligado tecnologia do poder" (Foucault 1997: 230).34

a tecnica do podet, a

Ora, esse "racismo moderno" de que fala Foucault e, sem duvida, um racismo de Estado. Nao no senrido de que s6 e praticado por Estados, mas porque possui uma forma-Estado, forma que, como vimos acima, procede por meio de uma especie de 'domestica~ao' do racismo selvagem (no senrido levisreaussiano dos termos), sobrecodificando seus c6digos e submetendo-o ao imperio de urn valor ou criterio cenrral. Ocone que, ao mesmo tempo que enrijece os c6digos locais, essa opera~ao os rorna, nao mais flexiveis, certamenre, mas bern mais d6ceis: "0 racismo europeu como pretensao do homem beaneD nunca procedeu por

exclusao nem especifica~ao de alguem designado como Outco [...]. 0 racismo procede por determina<;ao das variac;6es de divergencias, em funs:ao do costo Homem beaneD que pretende integrar em ondas cada vez mais excentricas e retardadas as trac;os que naG sao conformes, ora para rolera-Ios em determina-

do lugar, ora para apaga-los no muco que jamais supona a alteridade [...]. Do ponto de vista do racismo, nao existe exterior, nao existem as pessoas de fora. 56 existem pessoas que deveriam sec como n65, e cuja crime e naG 0 serem"

(De1euze e Guattari 1980: 218).

236


Submetido a urn processo de axiomatiza~ao, 0 racismo pode tornar-se ate mesmo diferencial, ape!ando, por exemplo, mais para a no~ao de cultura do que para a de ra~a.35 Nao porque a primeira, como as vezes se finge imaginar, sofra de urn defeito congenito que, necessariamente, a fa~ ser utilizada com 0 mesmo terrive! pape! da segunda. Estamos as voltas, na verdade, com diferentes modos de tratar a ra~a ou a cultura, e a luta trava-se precisamente em torno desses modos de tratamento. 0 racismo de base cultural e apenas 0 resultado de uma sobrecodifica~aope!a cultura, assim como 0 biol6gico resulta de uma sobrecodifica~aope!a natureza. Nao deixa de ser verdade, contudo, que a cultura parece mais bern dotada para 0 processo de axiomatiza~ao, fazendo com que existam posi~oes desiguais no sistema, mas nao permitindo que exista algo realmente diferente, fora do sistema. Isso faz com que esse racismo contemporaneo nao opere mais "em termos de divisoes binarias e de exclusoes, mas como estrategia de inclusao diferenciada" (Hardt e Negri 2001: 213), e que "a exclusao racialgeralmente apare~acomo resultado da inclusao diferencial" (Hardt 2000: 366) - dispositivo cujos mecanismo serao, em parte, analisados no pr6ximo capitulo.

NOTAS

I

No dia 30 de ourubro de 1998. acompanhei 0 Ballet Afro Dilazenze em uma apresentalfao.

agenciada pela Ilheusrur, em urn luxuoso hotel proximo a Ilheus, que abrigava urn congresso

de jufzes do trabalho. 0 grupo deveria se exibic logo ap6s uma apresenta¢o do Ballet Allegro, uma das academias de bale cIassico e moderno cia cidade. As pessimas condilfoes de rransporte, a necessidade de caminhar cerca de 1 km carregando os insrrumentos, 0 "lanche" servido em uma sala fechada (sandukhes de pao de forma e refrigerantes quentes, enquanto. no salao principal, bebia-se cerveja e uisque e cornia-se camarao empanado e salgaclinhos de bacalhau) e, principalmente, 0 tom de superioridade e certo desprezo com 0 qual eram tratados bailarinos e musicos, fizeram com que eu compreendesse muito bern as reclamalfoes do grupo. 2

Como observou, alias, Bezerra (1999) para a questao da representalfao politica.

3 Alero

disso, em Ilheus, quase todos parecem concordar com a informante de Valente (1986: 150): "Todo mundo e governista. Todos aqueles que estao na oposilfao hoje sao governistas. Ja 0 foram no passado. com 0 poder na mao. e lutam pelo poder, porque sao governistas". 4 E por isso, como demonstraram Palmeira e Heredia (1995: 35-38), que os polfticos podem sustentar, ao mesmo tempo, que "comicio nao da voto" e que os comkios sao essenciais para uma campanha vitoriosa. A demonstralfao de forp que Ihes conferiria esse cara.ter, contudo, nao e uma exclusividade sua: outros atos eleitorais tern essa mesma caractedstica e, como vimos, em Ilheus, 0 desejado apoio do movimento afro-cultural, bern como a propria cria~o

237


do Memorial da Cultura Negra, parecem estar mais ligados a essa busca indireta do que a uma avalialfao de que acarretariam imediatamente votos. 5 Ver sobre esse ponto, entre outros, Villela e Marques (2002: 74) e Kuschnir (2000a: 35). Par vezes, eprecisa esperar muito para que urn eleitor se pronuncie como urn dos informan_ tes de Caldeira - que, infelizmente, nao analisa a declaralfio - na periferia de Sao Paulo: "Olha, eu nao acredito em nada, ta, nacla: tudo 0 que eu falei para voce, voce esquece que e memira, viu, eu nao acrediro em nada, nao acrediro no presidente, nao acredito em nada, eu s6 acredito no que eu ver e pegar assim na mao [...]. Sou urn cara completamente neutro" (Caldeira 1984: 252). 6 Como

demonsnou etnograficamente SCOttO (1994), inspirada em Bourdieu (1989), a con_ quista da representalfao politica depende, em grande parte, nao apenas do "trabalho de representalfao", mas de urn verdadeiro trabalho de apresentalfao, envolvendo a constculfao de uma imagem adequada a represemacrao que se pretende conquistar. Essa operacrao e, em geral, levada a cabo por meio da selecrao e combinac;:ao de caracterlsticas pessoais, nacros autobiogcaficos e enunciados discursivos do candidato, visando a produlfao de urn sImbolo apareme e perfeitamente adequado aquilo que simboliza - na verdade, urn leone.

7 Caso de uma das cunhadas de Marinho, cuja mae era candiclata, e para quem seu marid o cunhou 0 slogan: "mim por mim vote em minha sogra".

Como observaram Villela e Marques (2002: 74) no serrao de Pernambuco, para que uma das inumeras lealdades empiricamente existentes possa efetivameme render voros, eprecise cultiva-Ia, preserva-Ia e aciona-Ia de forma carreta no momento adequado.

8

Vcr, par exemplo, Heredia (1996: 60), Herzfeld (1985: 104), Palmeira (1991: 125: 1996: 51) e Villela e Marques (2002).

9

10 Herzfeld (1985: 117) observou 0 mesmo fenomeno em Creta: alguns eleitores, ideologicamente comprometidos, pediam votos para seu partido, mas anunciavam daramente que teriam que votar em outro em funcrao de relacr6es familiares e de linhagem.

11 Devo a Emerson Giumbelli a aproximalfaO entre 0 tema da subjetivacrao moral e a subjetivac;:ao polftica. Creio mesmo que seria possIvel estabelecer urn paralelo entre as quatro dimens6es da etica isoladas por Foucault e as quest6es que deverfamos colocar em polfticamesmo que, neste caso, nao nos defrontemos com sistemas altamente conscientes e organizados de reflexao, como ocorre com a filosofia antiga. De toda forma, quando alguem obedece a alguem, 0 que obedece a que: a alma, 0 corpo, a consciencia, os atos apenas (substan~ cia polftica)? Por que alguem obedece a alguem: em funlfao da razao, da moral, da forlfa, da dignidade, da honea (modo de sujeicrao politico)? Que atitude ou postura e tomada quando se obedece a alguem: boa vontade, rna vontade, ironia, servilismo (elaboracrao do trabalho politico)? 0 que e que se pretende quando se obedece a alguem: obter vantagens, nao ser punido, tornar-se melhor (teleologia do sujeito poHtico)?

Como escreveu Sherry Ortner (1984: 151), "os antrop6logos em geral consideraram que atores com muita densidade psicologica eram metodologicamente dificeis de manipular". Assim, tanto as formas de subjetivalfao, quanto os complexos processos par meio dos quais subjetividade e socialidade se engendram mutuameme tendem a ser deixados de fora de muitas etnografias. 12

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Em 2000, assim como em 1996, nao houve propaganda eleitoral de Ilheus na televisao. A rede local fica situada em Itabuna, mas seria obrigada a ceder 0 horario caso os partidos tivessem feito a solicitalfao a tempo. 0 fato de estes nao 0 terem feito foi atribuldo tanto a uma escassez generalizada de recursos quanto a Jabes Ribeiro, que, pressentindo que tal campanha seria a ele desfavoravel, teria manobrado para impedir qualquer solicitalfao. 13

14 Christine Chaves (2003: 128) sustenta que "0 voto no candidato de maior possibilidade de vitaria, comumente desqualificador do eleitor para os mais diferentes analisras politicos, porque assodado despolitizalfao, nada mais exprime do que a inteligencia do sistema poHtico, e com ele guarda uma coerencia intdnseca".]a Nunes et alii (1993) chegaram mesmo a tentar quantificar esse tipo de oplfao. Como escreveu Gasparetto (1995a), esses autores teriam detecrado "a existencia de urn tipo de eleitor que se pauta, para sua tomada de decisao, no candidato que devera sair-se vencedor. Esse eleitor seria altamente influenciavel pela divulgalfao de pesquisas de intencr6es de voto" e votaria, basicamente, visando "nao perder 0 voto". Gasparetto, que sustenta rer comprovado essa hipatese em suas pesquisas no sui da Bahia, insisre nos efeitos da divulgalfao de pesquisas sobre as deitores e fala, mesmo, de urn tipo de "deitor que vota-ganhador", e que seria disrinto tanto do quevota etica e politicamente, quanta do que vota mercantilmente. Ele conclui, assim, que em eleilf6es municipais acirradas esse deitor pode decidir 0 pleito, e advoga a favor do voto facultativo.

a

Por isso e curiosa a perplexidade, algo ingenua, de Oliveira (sId: 30; ver, tambem, Oliveira 1991), ao indagar-se par que, nas eleilf6es municipais de Salvador em 1992, foram lanlfadas candidaturas que, no final, "nao ultrapassaram a barreira dos 200 votos". A resposta, algo pomposa, irnagina que se trata da "emergencia de pequenas lideranlfas cuja influencia poHrica circunscreve-se a pequenos grupos". Mais interessante reria sido perseguir a outra questao colocada: "por que os partidos recrutaram candidatos cujas possibilidades de serem eleitos eram tao inaringiveis"? Mas 0 autor, infelizmente, nao 0 faz. Em Ilheus, em 2004, 25 candidatos a vereador obtiveram menos que dez votos; oito nao obriveram nenhurn voto. 15

16 Este, alias, como ja observei, e urn terna de divertimento em Ilheus, tanto na imprensa local quanto nas conversas coridianas. Eis alguns apelidos. oficialmente utilizados, coletados entre 1996 e 2004: AB, Alan Delon, Aracildo da Brasgas, Baixinho, Bigu, Bizunga, Borrachinha, Britocop, Callfolinha, Canguru, Caranha, Cobrinha, Corta Luz, Crispim Ze do Caixao, Cupim, Dende ou Dendiesel, Dona Onlfa. Eliana do Fla, Fafa Fitness, GG, Joao Carona, Joni Carroceiro, Jose Mascate. Josedex, Juju, Mae Neguinha, Mangueira, Maurino Arrupiado, Meinha, Mocheco, Nona, Paichao, Paulo da Veia, Paulo Gordo, Peixe-Galo, Perninha do Ovo, Peruna, Pinha, Que Que, Raimundo Moqueca, Russo, Samuel da Mortwiria, Socorro Para Ilheus, Toni Topo, Velho Manga, Ze Baixinho, Ze Bolao, Ze Dentista. Ze do Cacique do Ar, Ze Perigo.

Deleuze (1990: 240-242, 244-246) sugeriu ainda que a analise foucaultiana do processo de substitui910 das sociedades de soberania pelas sociedades disciptinares entre os seculos XVIII e:XX deveria ser complemenrada, hoje, pela analise de uma nova transilfao que, politicamente, corresponderia aimplantalfao de uma outra modalidade de capitalismo no plano economica, com a conseqliente necessidade de transportar os mecanismos disciplinares - criados, desenvolvidos e operados nos espalfos fechados e limitados das fabricas, pris6es, escolas e hospitais - para os espalfos abertos e potencialmenre sem timites do mundo como urn todo. 17

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Eaestrutura constitufda, ou definida, por essa opera~o que Deleuze da 0 nome de "sociedade de controle", e e com esse pano de fundo que as analises do funcionamento real dos sistemas democdticos contemparaneos deveriam ser conduzidas. Semelhante ao "clima mental dos partidos politicos ativistas" (Veyne 1984: 58), no qual "urn homem que nao faz poHtica nao passa por urn homem tranqiiilo. mas por urn mau cidadiio" (idem: 60). 18

"Considerava-se a militancia como nos consideramos a democracia ou os direitos do homem: nao era exclusivamente uma ideologia nem imediatamenre uma pdtica" (Veyne 1984: 58); "a Antiguidade pensava a polftica em termos de milicancia tao naturalmente quanto a pensamos em termos de democracia e nao podia concebe-Ia de outra maneira. Tal e 0 equfvoco da palavra ideologia: apologia, mas tambem preconceitos" (idem: 62). 19

E evidente que a adoc;ao do voto em lista ou distrital simplesmente Faria com que se substitufssem manobras de captura empregadas no sistema proporcional por outras. Assim, as convenc;6es partidarias - que, na verdade, ja decidem as candidaturas - adquiririam uma importancia extra, fazendo com que as disputas e manobras nelas observaveis tendessem a 'aperfeic;oar-se'. 20

"Chamamos 'captura' essa essencia interior ou essa unidade do Estado" (Deleuze e Guattari 1980: 531); "a sobrecodificac;ao, esta e a operac;ao que constitui a essencia do Estado" (Deleuze e Guattari 1972: 236 - grifo dos aurores). Ou, nas palavras de Guattari (I 986b: 289), "[...] o termo sobrecodiflcac;ao corresponde a uma codiflcas:ao de segundo grau. Exemplo: sociedades agrarias primitivas, funcionando segundo seu proprio sistema de codificac;ao territorializado, sao sobrecodificadas par uma estrutura imperial, relativamente desterritorializada, impondo a elas sua hegemonia militar, religiosa, fiscal etc". 21

"as partidos tern medo de lans:ar candidatos negros a postoS mais 'significativos' da politica, porque sua imagem nao teria boa receptividade na populac;ao" (Valente 1986: 70).

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23 Vma eleitora que respondeu a esse questionario disse que acreditava ser "coisa de ]abes", ja que perguntavam 0 que achava do prefeito. Disse, tambem, que respondeu que "achava que estava tudo otimo", mas, quando perguntada se essa era realmente sua opiniao, respondeu que nao sabia, pois "nao entendo nada de politica'.

E aparentemenre em toda parte: ver Goldman e Silva (1998: 36) para 0 mesmo procedimento no Estado do Rio.

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Patrick Champagne vern desenvolvendo urn importante trabalho de analise crftica das pesquisas de opiniao, em especial as eleitorais. Ver, sobretudo, Champagne (1990), mas, tambern, Champagne (1988; 1995).

2S

Como sugeri no Prologo deste livro, 0 fato de os nativos poderem interpretar a presenc;a do antropologo da maneira que acharem mais convincente - nao importando 0 que de diga ou o que ache que esta fazendo no campo - impede que a mera explicitac;ao de intenc;6es ou 0 consentimento informado possam ser utilizados como desculpas para possiveis deslizes eticos do pesquisador. Trata-se sempre, pois, de interpretac;6es, jamais de ignorancia ou simples desconhecimento.

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Pois "votaria errado 0 socialista que, por desinformac;ao, votasse no candidato liberal, ou vice-versa' (Rodrigues 1994: 3).

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n Trata-se, aparentemente, do mesma sentimenro descrieo por Primo Levi como "a vergonha de sec urn hornem". Como observou Deleuze (1990: 233), esse sentimento nao tern a ver com "responsabilidade". mas sim com 0 fata de sermos "manchados" por alga como 0 racismo, principalmente peIa simples fata de exisrirem seres humanos e estruturas sociais racistas, mas tambem porque sentimos, confusamente, que naa somas capazes de impedir sua existencia e que, as vezes, chegamos mesma a fazer concessoes a ele. 28

Em 1996, foram distribuidas algumas senhas falsas que, supostamente, poderiam sec trocadas por cestas b<isicas no principal com ire de campanha de Jabes, situado na Avenida Soares Lopes.

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Aparentemente inspirada em manobra semelhante realizada em ltabuna alguns dias antes provocando grande confusao na distribui'fao efetuada pe1a Prefeitura, ji que havia mais senhas do que cestas -, essa nao teve muito sucesso. "Todo mundo percebeu que era armac;ao de Roland", foi a explicac;ao generalizada para 0 caso. E continuariam a se-Io: durante 0 Grito dos Excluidos de 2003, uma militante negra portava urn cartaz em que dizia ter sido vitima de racismo e de violencia fisica da parte de John Ribeiro.

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Assim, na sessao especial de 24 de novembro de 1999. urn vereador declarava que a luta pda igualdade racial "[...] e nossa. porque todos nos acreditamos ter 0 sangue negro, todos nos temos a cultura negra, todos nos temos a historia negra no nosso sangue, na nossa vida, na nossa tropicalidade, em radas as nossas experiencias, em radas as nossas convivencias". Da mesma forma, como vimos, 0 prefeira Jabes Ribeiro costumava adotar 0 mesmo tom, declarando, por exemplo, em 20 de marc;o de 2000, na cerimonia de assinatura do proracolo entre a Prefeitura e 0 CEAC, que "este sangue aqui conhece bern as raizes culturais. os afrodescendentes, aqueles que representam a lura, a constru'fao desse nosso querido pais". Ou, na assinaturado contrato com a Associac;ao Desportiva 19 de Marc;o, em 19 de maio de 2000, que "nesse sangue corre 0 sangue das origens de tantos e tantos que aqui construiram esse nosso pais". 31

Como escrevem Deleuze e Guattari, "a segmentaridade primitiva e, ao mesmo tempo, a de urn codigo poHvoco. fundado nas linhagens, suas situac;6es e suas relac;6es, e a de uma territorialidade itinerante, fundada em divis6es locais emaranhadas. as codigos e os territorios, as linhagens de cHis e as territorialidades tribais organizam urn tecido de segmentaridade relativamente flexivel" (Deleuze e Guattari 1980: 255 - grifo dos autores)". E por isso, tambem, que Pierre Clasrres (1974) tern toda razao em recusar a imagem banal de urn etnocentrismo universal, e distinguir 0 etnocentrismo 'selvagem', que "julga sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em sustentar urn discurso cientifico sobre elas", do nosso. que deseja "situar-se de uma s6 vex no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece sob muitos aspectos solidamente instalada em sua particularidade" (idem: 16). Pois, onde hi Estado, assiste-se sempre a tentativa de "supressao mais ou menos autoriraria das diferenc;as socioculturais" (Clastres 1980: 54). 32

Essa e a condi'fao, tambem, para que deixemos de pensar a diferenc;a "no sentido identirario (representa'fJ.o das caracteristicas particulares de cada individuo ou grupo)" e passemos a pensi-la como devir, urn "diferir", inclusive, e talvex especialmente, de si mesrno: "0 conceito de diferenc;a (...] ejustamente 0 que nos arranca de nos mesmos enos faz devir outro" (Rolnik 1995: 255). Para uma crftica das teorias da etnicidade baseadas em uma concepc;ao 33

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identitaria da identidade, ver Ossowicki (2003). E, para uma abordagem etnografica nessa

mesma dire<;ao, ver Gow (1991). "Yer, rambem, Foucault (1997: 51-53, 75-77, 227-235). Como observou Foucault de modo mais geral, na antropologia, foi "Clastres [quem] fez aparecer uma concep<;:ao do podercomo tecnologia. liberando-se do privilegio da regra e da proibi<;:ao que dominava a etnologia de

Durkheim a Levi-Strauss" (Foucault 1976b: 184). 35 Sobre a axiomariza<;:ao, ver Deleuze e Guattari (l972: 163-164). Sabre a culturaliza<;:ao do racismo, ver Hardt (2000: 364): "racismo que nao mais se ap6ia em urn conceito biol6gico

de ra,a". Yer, tambem, Hardt e Negri (2001: 210-215).

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CAPITULO

5

1998/1999:CARNAVAL Ap6s dois dias de tensao aguatdando 0 resultado do desfile dos blocos afro no Carnaval Cultural de Ilheus de 1999, recebemos a noticia de que a Funda~ao Cultural e a Ilheusrur divulgariam a classifica~ao geral da comperi~ao para a imprensa na tarde daquela sexra-feira, 19 de fevereiro, no Teatro Municipal. Obtivemos, assim, a "sumula de ponrua~ao", que, pot urn lado, confirmava os rumores de que 0 Dilazenze havia sido, pe1a primeira vez, 0 campeao do carnaval, mas, por outro, apresenrava uma serie de discrepancias em rela~ao a tudo 0 que vinha sendo divulgado oralmenre. Nem a ponrua~ao final de cada grupo, nem a classifica~ao dos blocos a parrir do segundo colocado correspondiam ao que se comenrava por toda a cidade desde a quartafeira de cinzas. Em frenre ao Tearro Municipal, enconrramos Moacir Pinho, que, mesmo rendo deixado 0 cargo de gerenre de A~ao Culrural da Funda~ao Culrural de Ilheus quando seu partido, 0 PT, rompera a alian~a com 0 governo municipal, havia sido convidado a participar da comissao organizadora do carnaval 1999 e, na condi~ao de jurado de "enredo", do juri que julgara 0 desfile. Marinho, muito desconfiado, mostrou a Moacir os resultados oficiais, e ele, aparenremente surpreso, afirmou imediatamenre nao rer sido aquele 0 resultado que safra da comissao julgadora ao final dos desfiles do domingo de carnaval, pois apesar do faro de cada grupo ter desfilado em dois dias diferentes alternados, havia sido estabelecido pela comissao que apenas 0 primeiro desfile seria considerado tendo em vista a atribui~ao das notas aos diversos quesitos em julgamenro. Moacir sugeriu que, ainda que 0 Dilazenze tivesse permanecido como campeao, sua ponrua~ao havia sido reduzida visando encurtar sua distancia em rela~ao ao segundo colocado, e que houvera uma inversao de algumas posi~6es: 0 Rastafiry, urn dos blocos mais tradicionais da cidade, teria sido al~ado do terceiro para 0 segundo lugar, em prejufw do Zambi Axe, bloco fundado apenas quatro anos anres e que desfilara pela primeira vez no carnaval. Incitando Marinho a denunciar as altera~6es, Moacir argumenrava que 0 Dilazenze era 0 unico grupo "com moral" para a denuncia, uma vez que fora 0 campeao, e que ele, pessoalmenre, confirmaria a irregularidade assim que ela Fosse denunciada. "Fizeram polftica com 0 des-

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file", conduiu Moacir. E embora ele nao seja natural de Ilheus, 0 termo "politica" foi acentuado e pronunciado com a inconfundivel entona~ao que, na cidade, e quase sempre utilizada quando se fala do tema, e que transmite infalivelmente ao ouvinte todo 0 desprezo que a atividade politica suscita e toda a distancia que dela se deve manter. Como ja observei, 0 carnaval e, sem duvida, a atividade mais importante a que se dedica um bloco afro. Foi a ma vontade em compreender esse ponto o principal motivo para os desentendimentos entre Paulo Rodrigues e os militantes do movimento afro-cultural, em 1996, e e certamente essa imporrancia que parece estar no cora~ao dos conflitos que continuamente op6em os movimentos negros autodefinidos como "culturais" aqueles que preferem considerar-se "politicos". 0 carnaval de 1999, entretanto, parecia apresentar, a!em disso, algumas dimens6es extras, que conferiam a ele, aos olhos dos militantes afro-culturais, uma especie de suplemento de imporrancia, tornando-o ainda mais especial. A hist6ria do carnaval em Ilheus nao e um tema que possa ser considerado muito bem documentado, mas podemos ter alguma certeza, ao menos, de que a festa e bem antiga. 0 historiador Silva Campos, em sua Cronica da Capitania de Sao Jorge dos Ilheus, de 1937 - escrita, como ja foi observado, sob encomenda da Prefeitura, visando a comemora~ao do cinqiientenario da eleva~ao de Ilheus a categoria de cidade -, sustenta que 0 primeiro carnaval ilheense teria sido 0 de 1889, "sepultando de uma vez por todas 0 nocivo e estupido divertimento do entrudo" (Silva Campos 1937: 275). Em 1936, a Prefeitura teria auxiliado "os cord6es carnavalescos para dar brilhantismo a festa popular" (idem: 504), mesmo que, e ainda de acordo com Silva Campos, a "festa profana mais popular" nao fosse 0 carnaval, mas a "Mi-Careme" ou "segundo carnaval" - realizada, como sugere 0 nome, no meio da quaresma -, que se estendia "do sabado de aleluia ate a sexta-feira de Pascoa, as vezes" (ibidem). Finalmente, essa "Mi-Careme" - que esta na origem das micaretas contemporaneas - "conquistara todos os povoados do interior", enquanto, no carnaval, costumava-se fretar navios para acompanhar a festa em Salvador (idem: 471). o testemunho de Vinhaes (2001: 308-316), que acompanhou pessoalmente carnavais em Ilheus desde a decada de 1920, sugere que, ate pelo menos 1950, 0 carnaval realizado no centro da cidade, e em alguns de seus dubes, era basicamente uma diversao para a elite branca; entretanto, sobre 0 que faria durante as festas a imensa maioria negra, nada e dito. Em 1950, contudo -

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na esteira de uma certa difusao dos afoxes em Salvador, com a criac;:ao do Filhos de Gandhi, em 1949 -, urn dos pais-de-sanro mais famosos de Ilheus, Pedro Farias, teria criado seu afoxe, 0 Filhos da Africa, que viria a desfilar, ininrerruptamenre, ate 1970 (ao lado de, pelo menos, mais urn afoxe, 0 Filhos de Atuanda, que teve vida mais curta). Nos anos 1960, esses afoxes ja se misturavam as escolas de samba, surgidas ao longo da decada, escolas que, ao lado dos "blocos de arrasto", parecem ter sido as principais forc;:as do carnaval ilheense ate 1980. A partir desse momenro, verificou-se urn duplo processo que vern marcando a Festa em Ilheus ate hoje. Por urn lado, como ja observei, a emergencia dos blocos afro, os quais teplicam localmenre 0 processo que, em Salvador, Riserio (1981) designou "reafricanizac;:ao do carnaval". Por outro, a inrroduc;:ao dos trios eletricos e, mais tarde, dos blocos de trio. De acordo com 0 que conram os militantes negros, 0 primeiro bloco afro a desfilar no carnaval de Ilheus foi 0 Le-Gue DePa, em 1981. Tres anos mais tarde - e pouco mais de trinra anos ap6s 0 surgimenro do trio eletrico em Salvador -, a Prefeituta de Ilheus (duranre a primeira gestao de Jabes Ribeiro, observe-se) teria monrado urn trio pata que seus invenrores, os famosos Dodo e Osmar, desfilassem na cidade "animando os dias carnavalescos" (Vinhaes 2001: 313). Em 1990 (durante a gestao de Joao Lfrio, sucessor e correligionario de Jabes Ribeiro), teriam, enfim, surgido os primeiros blocos de trio, igualmenre inspirados em modelo criado em Salvadot, e que 0 pr6prio Vinhaes (idem: 313-314) denomina "blocos de ricos" ou "blocos elitizados". Esses blocos sao, na verdade, agrupamenros de pessoas - cuja quanridade, em Ilheus, pode chegar a muitas cenrenas - que saem pela principal avenida da cidade em torno de urn grande caminhao dotado de amplificadores e caixas de som extremamenre potenres, e em cima do qual se enconrra 0 trio eletrico. 0 conjunto e cercado por cordas sustentadas e puxadas pot seguranc;:as, os quais tambem tern a func;:ao de impedir que aqueles que nao esrao vestidos com 0 short e a camiseta do bloco enrrem no espac;:o reservado. Como em Salvador, esse uniforme e denominado "abada", em uma inreressanre apropriac;:ao de urn tetmo de origem ioruba que servia para designar as tunicas usadas pelos escravos moc;:ambicanos e, mais tarde, uma bata vestida pelos fieis do candomble. Os membros dos blocos afro diziam, escandalizados, que, em Salvador, urn abada podia custar ate R$ 700,00; em Ilheus, seu prec;:o oscilava enrre R$ 100,00 e R$ 200,00, 0 que evidenremenre colocava esses blocos de trio totalmenre fora do alcance da imensa maioria negra e pobre da populac;:ao local- com a excec;:ao, dizia-se, dos "negros e pobres ousados",

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! ,

I !

capazes de se endividar par urn ana inteiro com a unico proposito de desfilarem nesses blocos. Em fun<;ao de sua origem e de sua estrutura, as blocos de trio sao chamados pelos militantes negros de "blocos de barao" (cf. Cambria 2002: 23, nota 28) ou de "blocos de brancos". E e tambem em fun<;ao do sucesso que esses blocos vinham fazendo em I1heus que Cesar, do Rastafiry, podia dizer, em 1996, que "[...] a movimento negto vern sofrendo hi quatorze anos denno de Ilheus: desde a primeiro governo de Antonio Olfmpio; depois veio Jabes Ribeiro, que passou para Joao Lirio; depois voltou de novo Antonio Olimpio; e agora volta Jabes Ribeiro. Nesses quatorze anos, as entidades negras de Ilheus v~m softendo ate para desfilar no carnaval. Porque a costume e receber alguma doa<;ao para desfilar. Mas des so dao no primeiro ana par ter recebido apoio, depois ja nao dao mais e ate boicotam as emidades para que das nao desfilem. Eles nao ajudam nada e vivem boicotando as entidades. E foi sofrimento! Porque hi quatorze anos 0 movimento negro safre denno de Ilheus! Eu ate ja pensei em ir embora e so estou aqui par causa do Rastafiry e do movimento negro de Ilheus que eu queta defender". Cesar referia-se tanto ao surgimento dos trios eletricos e dos blocos de trio (durante os governos Jabes Ribeiro e Joao Urio, respectivamente, como vimos) quanto, e talvez principalmente, ao fato de que, a partir de 1994 (ou seja, no segundo ana do segundo governo Antonio Olimpio - que, como vimos, do ponto de vista dos militantes negros, foi eleito com grande ajuda dos blocos afro), a carnaval de I1heus sofreu grandes oscila<;6es no que diz respeito a sua estrutura, localiza<;ao e, mesmo, as suas datas de realiza<;ao. Em 1994, aproveitando as obras que eram realizadas na principal avenida da cidade - a Soares Lopes, situada a beira-mar, local de resid~ncia da elite e palco dos desfiles de carnaval par decadas -, a Prefeitura transferiu as festejos para a baino do Malhado, urn pouco mais distante do centro da cidade, considerado inadequado, do ponto de vista fisico, para a des,fiIe dos blocos afro, e marginal, do ponto de vista social, para a realiza<;ao de urn evento tao importante. Dizia-se mesmo que a mudan<;a de local estava relacionada ao preconceito dos brancos ricos, moradores da Soares Lopes, que nao desejavam a presen<;a de negros pobres em frente a suas casas, mesmo que Fosse par apenas quatro noites. Nem disso, e pela primeira vez, celebrava-se a "carnaval antecipado": copiando uma ideia do prefeito de Itabuna, cidade vizinha, Antonio Olimpio

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n I adiantara 0 carnaval de Ilheus em rres semanas, com 0 argumento de que tal antecipa~ao facilitaria a contrata~ao de "atra~6es de fora" da cidade (grandes bandas e trios), uma vez que evitaria a concorrencia dos carnavais mais famosos - os de Porto Seguro e Salvador, principalmente -, concorrencia que faria com que a remunera~ao dos melhores grupos ficasse alta demais, elevando astronomicamente os custos de organiza~ao do carnaval ilheense. Do ponto de vista dos blocos afro, entretanto, a antecipa~ao do carnaval apenas servia para aprofundar 0 processo de redu~ao do espa~o, cada vez mais exfguo, que ocupavam no carnaval de Ilheus. Mais do que isso, as "atra~6es de fora" eram contratadas, na verdade, pelos blocos de trio, que se haviam constitufdo como associa~6es permanentes, cujas sedes se localizavam, na maior parte dos casos, na Avenida Soares Lopes, muitas vezes em antigas casas de familiares dos dirigentes, ja que quase todos eram oriundos de tradicionais familias da elite cacaueira. Havia uns cinco blocos de trio em Ilheus, e urn deles era dirigido justamente por urn dos filhos do prefeito Antonio Olfmpio, 0 que refor~ava as suspeitas de que havia uma grande articula~ao entre a Prefeitura, os blocos de trio e a elite branca em geral, articula~ao destinada a obter altos lucros com 0 carnaval e a eliminar a presen~a dos blocos afro do mesmo. Na verdade, esse processo nao era exatamente novo. Ele prolongava 0 que ja vinha ocorrendo desde 0 governo Joao Lfrio (aliado de Jabes Ribeiro, lembremos), que, em 1991 e 1992, privara os blocos afro da tradicional ajuda financeira que a Prefeitura, hi muito tempo, fornecia para que pudessem desfilar no carnaval. Com escassos recursos pr6prios, ou com algum dinheiro obtido junto ao comercio ou a politicos locais, alguns blocos ainda conseguiram desfilar nesses anos, mas, evidentemente, nao houve competi~ao, e os desfiles foram considerados muito fracos. Em 1993 e 1994 (0 primeiro e 0 segundo carnavais do governo Antonio Olfmpio), 0 auxflio oficial foi restabelecido para ser, contudo, novamente suprimido em 1995 e 1996 -quando o carnaval continuou a ser realizado no bairro do Malhado. Desse modo, poucos blocos desfilavam, e os que conseguiam faze-lo costumavam desfilar no formato de "levadas", 0 que significa que os foli6es vestiam camisetas em lugar de fantasias, e que 0 bloco nao possufa nem enredo determinado nem musica-tema para 0 desfile. Dizia-se, abertamente, que 0 dinheiro que deveria ser repassado aos blocos afro era direcionado para os blocos de trio. Ap6s a elei~ao de Jabes Ribeiro, em 1996, 0 grupo vitorioso insistiu muito no tema do "resgate do carnaval de Ilheus" e, para isso, come~ou planejando

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e organizando dois carnavais. Em 1997, pouco ap6s assumir 0 poder, 0 prefeito, por urn lado, manteve 0 "carnaval amecipado" (batizado de Ilheus Folia, nome aparememente copiado do Cabo Folia, de Cabo Frio, no Estado do Rio), realizado em janeiro, naAvenidaSoares Lopes novameme, mas com a mesma estrutura urilizada no governo anterior, apoiada sobre os blocos de trio. Por outro lado, a Prefeitura realizou urn pequeno "Carnaval Cultural", como passou a ser conhecido desde emao 0 carnaval oficial, ainda sem desfiIe, mas com urn palco momado em uma das extremidades da Avenida Soares Lopes, onde se apresemaram blocos afro (que comaram com urn pequeno auxilio financeiro da Prefeitura) e "atra~6es locais" em geral. Em agosro de 1997, a Prefeitura realizou, tambem, a "Primeira Etapa do Semimirio SeqUenciai de Prepara~ao para 0 Carnaval98", visando aprofundar 0 "resgate do Carnaval Cultural de Ilheus" e reintroduzir os blocos afro no cemro dessa manifesta~ao (Silva 1998: 94, 104). Com efeito, ja em 1998 - e apesar da manuten~ao do modelo de dois carnavais -, os blocos afro voltaram a desfilar na Avenida Soares Lopes e a receber 0 auxilio financeiro da Prefeitura. Em 1999, foi restabelecida a competi~ao entre os blocos. Em 2000,0 Ilheus Folia foi extimo, mas 0 carnaval- que, mesmo sendo 0 unico, cominuou a ser chamado de "cultural" - seguiu obedecendo 0 modelo dos dois anos ameriores: blocos afro em desfile competitivo, blocos de arrasto (blocos mais informais, mais ou menos parecidos com os blocos de sujo do Rio de Janeiro), palcos com "atra~6es locais" eo "carnaval amigo", que se desenrolava no Circo Folias da Gabriela, espa~o fechado com uma lona e tambem situado, como todo 0 resto, naAvenida Soares Lopes. Ate 2003, essa estrutura e esse cronograma foram preservados, mas em 2004, 0 unfeo carnaval foi novameme amecipado, dessa vez para 0 infcio de fevereiro, mamidas as atra~6es dos anos ameriores, acrescidas, mais uma vez, de trios eletricos e "atra~6es de fora", comratadas pela Prefeitura. Os blocos de trio - que evidemememe sofreram urn processo de decadencia ao longo dos dois mandatos consecurivos de Jabes Ribeiro (apenas dois sobreviveram) - voltaram a desfilar com mais for~a no carnaval de 2004.

***

'I

il,

Em fun~ao de todos esses evemos e processos, talvez seja possivel imaginar que a insistencia de Jabes Ribeiro e sua equipe no discurso do ''resgate do Carnaval Cultural" poderia ser pensada, por eles mesmos, como uma es-

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t ,


pecie de tentativa de teproduzit, a pattit do apatelho de Estado, 0 processo mais espontaneo ocottido em Salvador no inicio da decada de 1970, batizado por Riserio (1981) "reafricaniza~ao do carnaval". Do ponto de vista do movimento afro-cultural, entretanto, 0 desprew pelos blocos afro e 0 que poderiamos chamar, ironicamente, de 'desafricaniza~o' do carnaval de Ilheus nao haviam come~ado com Antonio Olimpio (contra quem os "jabistas" certamente imaginavam reagir), mas no governo anterior, 0 de Joao Lirio, e mesmo antes, no primeiro mandato do pr6prio Jabes Ribeiro, quando, dizem os militantes negros, os afoxes e escolas de samba foram abandonados a tal ponro que jamais se recuperaram - em beneficio dos trios eletricos, que deram origem aos blocos de trio, que tanto viriam a prejudicar 0 rrabalho dos blocos afro. 1 Era esse, na verdade, 0 sentido das palavras de Cesar, do Rastafiry, assim como daquelas de Gilmar, do Dilazenze: "A gente aqui, membros do movimenro afro-cultural de Ilheus, praticamente s6 ganha dinheiro em duas epocas, polltica e carnaval. Mas a gente trabalha com 0 carnaval com bastante diliculdade, porque os 6rgaos publicos e da iniciativa privada nao tern interesse em patrocinar nenhuma entidade afro. Quer dizer, a gente sobrevive das poucas coisas que a gente faz e dos poucos amigos que temos. Nao ha interesse por parte da Prefeitura em manter os blocos afro na fua. Hi mais interesse em manter as blocos de trio que e1itizaram 0 carnaval de Ilheus, a verdade e essa. 0 carnaval de Ilheus esri elitizado, quem esta comandando 0 carnaval de Ilheus sao os bar6ezinhos, os lithos de prefeiro, os Iithos de secretanos do prefeiro, eles e que estao mandando no carnaval de Itheus".

E claro, contudo, que, como sempre, os sentimentos dos dirigentes dos blocos afro em rela~ao ao Ilheus Folia podiam ser muito variados e, as vezes, conflitantes. Por um lado, tendiam a considerar que se tratava de um "carnaval de brancos" (Menezes 1998: 82, 84), uma perversao da verdadeira festa, aquela que eles, sobretudo, sabem fazer; por outro, sentiam-se inevitavelmente atraidos pelos possiveis rendimentos materiais e financeiros e pela "visibilidade" que 0 evento poderia proporcionar, uma vez que 0 turismo de fora da cidade tendia a ser bem mais pronunciado no carnaval antecipado do que no cultural (idem: 89). Em 1999,0 CEAC esfor~ou-sebastante para participar do Ilheus Folia. Propos aPrefeitura que esta financiasse, com cerca de R$ 35.000,00, um bloco de trio organizado pelo Conselho, bloco que contaria com a participa~ao de todos os blocos afro da cidade. Esse bloco, significativamente batizado Bloco

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Mro Os Quilombolas, realizaria dois desfiles na Avenida Soares Lopes, com uma estrutura em tudo identica ados blocos de trio usuais. A resposta da Prefeitura, como se pode imaginar, foi que, de fato, seria muito interessante que o Ilheus Folia contasse com um bloco dessa natureza, mas que a obten~ao dos recursos, no carnaval antecipado, era uma tarefa dos pr6prios blocos, que deveriam financiar seus desfiles com a obten~ao de patrocinadores (em geral por meio das leis de incentivo a cultura) e com a venda dos abadas aqueles que neles desejavam desfilar. E ja que era evidentemente impossivel vender 0 quer que Fosse aos membros dos blocos afro, ou obter urn patrodnio para urn bloco com as caracteristicas dos "Quilombolas" (e tambem redigir um projeto que concorresse aos incentivos culturais estaduais e federais), a ideia foi logo abandonada pelos dirigentes do CEAC. Observamos aqui, mais uma vez, como a unidade do movimento afrocultural de Ilheus se estabelece, quase sempre, em suas rela~6es com 0 Estado. Foi apenas a ideia de poder participar do Ilheus Folia, caso um financiamento da Prefeitura Fosse obtido, que permitiu 0 desenvolvimento dessa estranha ideia de um bloco unico farmado pelos membros de todos os blocos. AMm disso, pode-se observar, igualmente, que nao sao apenas as desigualdades economicas que estabelecem barreiras para que 0 movimento negro possa participar de urn evento basicamente 'branco' como 0 Ilheus Folia. Everdade que a impossibilidade de vender abadas a pessoas pobres desempenhava sua fun~ao; mas e verdade, igualmente, que a dificuldade de obten~ao de patrodnio estava diretamente ligada a infinitamente menor boa vontade demonstrada por comerciantes e empresarios para com os lideres negros do que em rela~ao aos membros da elite que dirigiam os blocos de trio; e e verdade, enfim, que a exigencia de apresentar urn projeto para 0 acesso aos incentivos culturais estatais exclui, de imediato, do jogo aqueles que praticamente s6 sabem ler e escrever. 2 Antes de 1999,0 Dilazenze ja pretendera desfilar no carnaval antecipado com sua banda (ou seja, parte da bateria e sem as alas tradicionais de foli6es fantasiados que comp6em um bloco afro). Na reuniao destinada a organiza~ao do evento, Marinho descobriu que havia uma regra que estabelecia uma multa para os blocos de trio que nao cumprissem os horarios estabelecidos. Argumentou, sem receber resposta, que seu bloco nao tinha recursos financeiros para arcar com uma possivel penalidade. Pouco depois, viu-se constrangido a ouvir os dirigentes dos blocos de trio sustentarem que estes, na verdade, ofereciam empregos as pessoas mais pobres de Ilheus - tanto como

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II

seguran~as

quanto como "cordeiros" (os que seguram a corda que isola 0 bloco do resro da mulridao) -, e que isso, no final das contas, ja era uma forma de permirir que essas pessoas brincassem e participassem do carnaval antecipado. 0 Dilazenze nao desfilou no Ilheus Folia. Se, para os blocos afro em geral, 0 carnaval de 1999 - com 0 rerorno da competi~ao entre eles e urn auxilio financeiro supostamente mais substancial - representava urn grande momento de sua hist6ria, para 0 Dilazenze, em particular, esse carnaval era absolutamente central. Considerado unanimemente, diziam os membros do grupo, 0 melhor bloco afro da cidade, nunca havia conquistado urn titulo de campeao do carnaval de Ilheus, e seus participantes eram obrigados a ouvir dos membros do arqui-rival Rastafiry (campeao do ultimo desfile com competi~ao, em 1988) todo tipo de ptovoca~6es e brincadeiras. E verdade que alguns oscilavam entre considerar a competi~ao uma forma saudavel de estimular os blocos a se aperfei~oarem e condenala como uma maneira nociva de acirrar as ja conhecidas rivalidades entre os blocos - mas, mesmo neste caso, suspeito que pesava mais 0 medo da derrota do que 0 da divisao. Uma vez decidido, contudo, que haveria mesmo a disputa, todos no Dilazenze pareceram imediata e profundamente compenetrados da necessidade absoluta de vencer 0 carnaval pela primeira vez, consolidando-se assim como 0 principal bloco afro da cidade. Para alcan~ar essa vit6ria, tida como fundamental, nao se economizou nos gastos - na medida do possivel, e claro. A distribui~ao dos recursos, por parte da Prefeitura, foi muito complicada. Oferecendo uma verba total de R$ 22.000,00, a comissao organizadora do carnaval delegou ao CEAC a espinhosa tarefa de proceder adistribui~ao do dinheiro entre os diferentes grupos que comp6em 0 Conseiho. Os tres blocos considerados maiores Dilazenze, Rastafiry e Miny Kongo - argumentaram que deveriam receber uma quantia mais alta, uma vez que seus gastos seriam maiores. Por outro !ado, os blocos tidos como menores (Raizes Negras e D'Logun, que desfilariam reunidos, e Zambi Axe), a Levada da Capoeira (grupo formado por lutadores de uma das academias da cidade), 0 Danados do Reggae (bloco novo que tambem sairia como "Ievada"), 0 Moxe Filhos de Ogum e a Embaixada Gege-Nago (grupo formado apenas por crian~as e adolescentes, que desfilam batendo ritmicamente pequenos peda~os de madeira a que chamam "pauzinhos" - 0 que fornece 0 nome pelo qual 0 grupo e mais conhecido) argumentavam que a quantia restante seria insuficiente para suas necessidades. Depois de muita confusao, foram destinados R$ 4.000,00 a cada urn dos

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tres grandes blocos; R$ 2.000,00 a cada um dos menores e ao Moxe; R$ 1.500,00 a Embaixada Gege-Nago; e R$ 1.250,00 a Levada. o Dilazenze, entretanto, gastou um pouco mais do que recebera, utilizando, para isso, alguns dos sistemas nativos de credito.' Esses gastos foram ainda mais altos, porque a libera~ao do dinheiro por parte da Prefeitura demorou muito mais do que 0 previsto, so chegando aos blocos tres dias antes do carnaval, 0 que obrigou a todos a efetuarem suas compras as pressas, no comercio local (que, diga-se de passagem, costuma aguardar a libera~ao do dinheiro para os blocos com grande ansiedade e aumentar seus pre~os logo que isso ocorre), sem poder buscar pre~os mais acessiveis fora de Ilheus. Marinho acreditava que a diferen~a entre 0 que gastara e 0 que dispunha poderia ser coberta com a prometida premia~ao do campeao do carnaval, que deveria equivaler a 20% da verba recebida pe!a entidade vencedora - 0 que, no caso do Dilazenze, representaria R$ 800,00, quantia suficiente nao apenas para pagar as dividas, como para a feijoada da vitoria, acompanhada de muita cerveja, que deveria ser oferecida no sabado posterior a divulga~ao dos resultados. o problema e que, logo apos encontrar Moacir e confirmar que "fizeram politica com 0 desfile", Marinho encontrou Gurita e, ao indagar sobre a premia~ao a que 0 Dilazenze fazia jus, foi surpreendido com a informa~ao de que nao haveria qualquer premia~ao em dinheiro, apenas trofeus, e que e!e, provave!mente, entendera mal as regras da competi~ao. Ligeiramente transtornado, Marinho passou a levantar suspeitas sobre 0 pape! de Gurita no que considerava ser 0 "desaparecimento" do premio, bem como a especular sobre os efeitos dessa atitude sobre a candidatura de Gurita a vereador nas e!ei~6es de 2000. Por um lado, 0 resultado de toda essa confusao foi a decisao de cance!ar a feijoada da vitoria, tomada em clima de muita consterna~ao. Eu mesmo argumentei que talvez Fosse possive! oferecer apenas a feijoada propriamente dita, e solicitar aos membros do bloco que trouxessem a bebida, sistema usado em muitas festas particulares. Explicaram-me, entao, que "fica muito feio nao ter bebida pe!o menos para os membros da bateria", e que esta nao era a primeira ocasiao em que havia dificuldades para a feijoada. No ana anterior, mesmo sem competi~ao formal, 0 Dilazenze fora considerado 0 me!hor bloco do Carnaval Cultural e, por isso, decidira-se oferecer uma feijoada. Nao havia dinheiro, mas como 1998 era "ano de politica" (ou seja, de e!ei~6es), 0 dinheiro foi finalmente obtido junto a dois politicos locais, que pretendiam

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lan~ar

seus nomes a depurado federal e esradual. Assim, alem das dividas deixadas pelos gastos efetuados por conta da premia~ao futura, 1999 nao era "ano de politica" e a situa~ao era, portanto, bern mais complicada, levando ao cancelamento da feijoada. Urn dos politicos que "ajudara" na feijoada de 1998 fora Gildo Pinto, ex-participante do Movimento Ilheus Cora~6es, derrotado nas elei~6es de 1992, mas que conseguira eleger-se em 1996, chegando mesmo 11 presidencia da Camara Municipal. Em 1999, ele tambem foi acionado na tentativa de solu~ao de urn problema financeiro, mas os resultados foram bern diferentes, servindo, nao obstante, como born exemplo de urn tipo de rela~ao que costuma ser estabelecida entre blocos e politicos. Uma das dividas deixadas pelo deficit do carnaval 1999 no Dilazenze era com uma distribuidora de cervejas. Os R$ 200,00, pagos com urn cheque pre-datado de urn dos irmaos de Marinho que na epoca estava empregado, precisavam, agora, ser depositados na conta visando "cobrir 0 cheque". Marinho recorreu, entao, a Gildo Pinto, que, ap6s ajudar 0 bloco em 1998, fora por ele apoiado em sua campanha para deputado estadual (na qual fora derrotado, mas que, como todos sabiam, tinha apenas 0 intuito de firmar sua candidatura 11 reelei~ao para vereador em 2000) e que, alem disso, devia R$ 30,00 no bar do bloco, dinheiro gasto para comprar cervejas distribuidas entre alguns correligionarios ainda na epoca da campanha. Procurado por Marinho, Gildo teria afirmado que evidentemente nao podia negar sua ajuda ao Dilazenze, mas, mais tarde, teria dito que nao conseguira obter 0 dinheiro porque "a coisa esta feia". 0 cheque, finalmente, s6 pode ser coberto com dinheiro cedido por urn amigo de Marinho. Algum tempo antes de recorrer a Gildo para cobrir 0 cheque, Marinho o havia procutado com 0 objetivo de obter urn emprego de porreiro em urn colegio municipal. 0 vereador teria argumentado que era "muito dificil" conseguir 0 posto, 0 que levou Marinho a concluir que ele nao desejava encaminhar 0 pedido 11 Prefeitura para "nao ficar devendo nada ao prefeito". Muito a contragosto, Marinho fez 0 pedido a Gurita, que, por urn lado, fez questao de mostrar-se muito surpreso ao escutar 0 relato da resposta de Gildo - uma vez que ouvira dizer que ele obtivera empregos para muitos correligiomirios, e mesmo para alguns parentes - e, por outro, prometeu conseguir 0 emprego pedido. Marinho, pouco depois, confessou-se extremamente arrependido por ter procurado Gurita, e sustentou s6 te-Io feito em virtude da pressao de sua esposa e ao fato de estar desempregado ha alguns anos, 0 que

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fazia com que 0 salario minimo por ela recebido em uma lanchonete de posto de gasolina fosse a unica fonte de tenda constante e esravel para 0 sustento da filha e da casa, ja que 0 dinheiro obtido com as apresenta~6es do Dilazenze era pouco e incerto. 0 problema, dizia Marinho, e que se obtivesse 0 emprego e, mais rarde, decidisse nao apoiar Gurita em sua campanha para vereador, cortia 0 risco de que esre, ou alguem proximo a ele, "jogasse em sua cara" que ele conseguira urn emprego quando "esrava passando fome" e que agora agia como "mal-agradecido": "os poliricos fazem sempre assim, jogam na cara 0 que eles acham que sao favores que fizeram para alguern", concluiu Marinho. Gildo Pinto tambem fora 0 personagem principal de uma cena algo inusitada que eu presenciara ainda durante os preparativos do Dilazenze para 0 carnaval1999. No final da tarde do dia em queseria realizado 0 VIII Femadila (Festival de Musica do Dilazenze, que voltava a se realizat apos alguns anos de interrup~ao), destinado it escolha da musica-tema do grupo para 0 desfile que ocorteria quatro dias depois,' Gildo chegou it quadra onde 0 evento estava sendo preparado. Acompanhado por urn de seus "assessores" - que e negro, amigo pessoal de Marinho e participa de urn dos blocos afro da cidade, o D'Logun (criado, lembremos, em 1992 a fim de apoiar a campanha de alguns componentes do Movimento Ilheus Cora~6es, induindo Gildo Pinto) -, pediu para conversar a sos com Marinho. Apos alguns minutos de conversa e de movimenta~ao, foram ate a casa de Marinho e de la foram embora. Imaginamos, eu e todos os que assistiram it cena de longe, que Gildo fora oferecer alguma especie de ajuda para 0 carnaval do grupo, tendo em vista 0 apoio que recebera nas elei~6es do ano anterior e 0 apoio que desejava para aquelas do ano seguinte. Ficamos, pois, muito surpresos quando descobrimos que, sabendo que a verba da Prefeirura fora liberada para 0 grupo, ele fora, na verdade, "descontar urn cheque com 0 Dilazenze", cheque que poderia ser apresentado ao banco apos 0 carnaval, quando ele ja teria recebido seu "salario de vereador" - ja que, funcionario do sindicato dos porruarios de Ilheus, do qual foi presidente, Gildo acumula outra remunera~ao). Nossa surpresa foi ainda maior ao nos darmos conta de que Marinho nao apenas "descontara 0 cheque", como convidara Gildo para fazer parte do juri do festival naquela noite, convite que ele lamentou nao poder aceitar em fun~ao de "compromissos inadiaveis".

A reciprocidade pode muito bern ser uma estrurura fundamental da existencia humana em sociedade ou urn elemento de dlculo nas rela~6es sociais

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concretas. Nada disso, entretanto, elimina 0 faro de que, do ponto de vista dos agentes, trata-se de urn dispositivo a1go perigoso e cheio de riscos. Seu acionamento ou invoca~ao pode, certamente, em alguns casos, permitir a obten~ao de vantagens, mas pode tambem, e talvez principalmente, comprometer de tal forma 0 devedor que este se ve preso a uma rede de rela~6es das quais nao consegue se livrar mesmo quando assim 0 deseja. Isso poderia explicar, eventualmente, 0 faro de os eleirores - ao menos os mais pobres - tenderem a preferir os 'ciclos curros', ou seja, aqueles em que as presta~6es estao 0 mais proximo possivel do ponto de vista temporal. Nos 0 vimos com 0 confliro entre 0 Dilazenze e Cosme Araujo, em 1996, mas, tambem, com rodas as transa~6es em geral resumidas e discriminadas com 0 nome de compra de voros. Os politicos, ao contd.rio, parecem preferir ciclos mais longos, ou seja, aqueles em que 0 intervalo entre as presta~6es pode fazer com que a necessidade de retribui~ao apare~a como divida, que se rorna, progressivamente, cada vez mais dificil de ser paga, podendo mesmo, em alguns casos, atingir 0 estaturo de "divida impagavel", como as vezes se diz. E isso e verdadeiro tanto nos momentos em que os politicos se encontram na posi~ao de credores - e o processo aqui e cerramente mais evidente - quanro quando se colocam como devedores. Neste caso - como ocorreu com 0 Centro Mro-Cultural de Ilheus, em 1992 -, 0 nao-pagamento da divida por parre dos politicos prolonga a rela~ao com os suposros credores, fazendo com que aqueles que se acham na expectativa de receber sua contrapresta~ao temam uma ruptura das rela~6es, que inevitavelmente implicaria em nao-pagamenro. 5 Gildo Pinto jamais quitou a divida de R$ 30,00 que contraira no bar do Dilazenze, mas "cobriu" 0 cheque descontado nas vesperas do carnaval. Depois disso, manteve-se afastado por algum tempo e so voltou a procurar 0 grupo no final de 1999, quando ja preparava a campanha para sua reelei~ao nas elei~6es municipais do ano seguinte. Gildo estava acompanhado de Jacks, o futuro presidente do CEACI e, na epoca, dirigente do D'Logun e funcionario do sindicaro dos porruarios (no qual Gildo, que conseguira 0 emprego para ele, trabalhava) - mesma posi~ao do assessor que estivera presente no episodio do cheque e que, mais uma vez, estava ao lado do vereador. 0 objetivo da visita era propor a Marinho que trabalhasse na campanha de Gildo. No entanto, aquilo que, de cerro ponto de vista, era urn pedido de apoio politico foi, na verdade, apresentado como uma oferta de emprego: Marinho rornar-se-ia "assessor" de Gildo. Este termo, como ji observei, possui urn amplo espectro de aplica~6es em Ilheus, designando tanto urn cargo oficial

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(uma fun<;:ao remunerada de assessorial quanro os auxiliares, digamos, informais de poHricos e, mesmo, qualquer urn que suposramenre ajude ou de opini6es sobre poHrica. Como vimos no primeiro capitulo, diz-se, em Ilheus, que alguns vereadores chegam a conrratar cerca de vinre assessores, 0 que, evidenremenre, faz com que 0 salario de cada urn deles seja bern reduzido. 6 "assessor" do epis6dio do cheque trabalhava, na realidade, como porteiro ou ascensorista da Camara dos Vereadores, e recebia uma remunera<;:ao nao apenas muito baixa, como variavel e inconstante. Em 1996, Paulo Rodrigues foi classificado como assessor do CEAC para assunros polfticos; e, quando se cogitou na candidatura de Marinho para vereador em 2004, eu mesmo fui convidado a ser seu assessor de campanha. Essa imprecisao na defini<;:ao do que e realmente urn assessor tern sua positividade. Gildo oferecia urn "emprego" a Marinho, mas nao falava em salario. Diretamenre inrerpelado pelo inreressado, 0 vereador mencionou vagamenre "uma cesta bisica" (0 que e, aparenremenre, a forma de pagamento do assessor que 0 acompanhaval e, dianre da surpresa do interlocutor, complementou, dizendo que nao seria "uma cesta basica qualquer, mas aquefa cesta bisica" ou "uma super cesta bisica". As cestas basicas, de fato, parecern ter se convertido, ao menos em Ilheus, em uma especie de unidade monetaria especial, ou, para ser mais preciso, em urn tipo de moeda empregada principalmenre - mas nao exclusivamenre - no pagamento de servi<;:os eleitorais. Introduzidas nos ultimos anos por meio de varios programas governamenrais assistencialistas, elas assinalam tambem, e claro, a siruas;ao de carencia e dependencia do beneficiirio em relas;ao ao fornecedor das mesmas. Ao ouvir a resposta de Marinho, dizendo que pensaria no assunto, Gildo encerrou a conversa, afirmando que gostaria muito que ele aceitasse 0 emprego, pois assim saberia que 0 estava ajudando e, que, no futuro, ficaria muito feliz em visitar a casa de Marinho a fim de "comer urn churrasco pago com 0 teu pr6prio dinheirinho".7 Marinho, que costuma organizar pequenos churrascos em casa ao menos uma vez por mes, nada respondeu, mas, ap6s a partida dos visitantes, comentou, irritado, que estes haviam tenrado faze-Io passar por uma "humilha<;:ao", sugerindo que "passava fome" e que nao podia sequer "pagar urn churrasco". Acrescenrou, ainda, que esse era 0 estilo dos polfticos de Ilheus quando se dirigiam as "pessoas mais humildes" - estilo que, poderiamos dizer resumidamenre, visa sobrepor a situa<;:ao de superioridade do polftico a posi<;:ao de relativa inferioridade na qual aquele que pede algo em geral se enconrra.

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Esse estilo e essa tet6rica da humilha~ao podem, de fato, ser observados quase a olho nu em Ilheus. Eles nao se limitam, entreranto, como Marinho sugeria, aos poliricos locais, estando presentes em quase todas as rela~6es que p6em em contato agentes oriundos de camadas sociais distintas. Envolvem urn tom de superioridade, uma expressao de distanciamento e urn ar de pressa, que parecem destinados a produzir a imagem de alguem que esta querendo "ajudar", nunca pedir ou impor seja Ja 0 que for. "Ajuda" e, efetivamente, o termo central nesse tipo de rela~ao: e empregado, como pedido, pelo mendigo que pede uma esmola, assim como, na forma de ofena, pelo politico que oferece dinheiro ou por aqueles que, como Gildo Pinto, tentam contratar alguem para urn trabalho ou servi~o. 0 termo e igualmente empregado, contudo, e com muita freqiiencia, nas rela~6es entre 0 poder publico municipal como urn todo e 0 movimento negro de Ilheus. 8 Em outubro de 1998, a Ilheustur (6rgao municipal encarregado de gerir 0 turismo na cidade) entrou em contato com 0 Dilazenze a fim de que 0 bloco realizasse dez apresenta~6es do chamado "turismo receptivo" - apresenta~6es do grupo de dan~a para turistas que estariam desembarcando no pono de Ilheus, que serve como urn dos pontos de parada dos cruzeiros realizados por navios de luxo pela costa brasileira. 0 Dilazenze apresentou urn or~amento de R$ 6.000,00, ao qual a Ilheustur contrapropos imediatamente uma ofena de R$ 3.000,00, quantia maxima, alegava, de que poderia dispor - e mesmo assim pagando apenas dois ter~os adiantados e 0 restante apenas no final do conjunto de apresenta~6es, que deveriam se estender ate dezembro. Alem disso, esse adiantamento de R$ 2.000,00 nao poderia ser pago em especie, mas na forma de instrumentos musicais, cujos pre~os, ademais, os membros do grupo deveriam levantar para levar a uma reuniao com 0 presidente da Ilheustur. Este planejava efetuar 0 pagamento dos instrumentos a prazo, mas deparou-se com uma dificuldade: nenhuma loja especializada aceitava vender dessa forma para a Prefeitura de Ilheus, que, diziam, era famosa por nao homar as dividas contrafdas. Assim, em uma reuniao bastante constrangedora, 0 presidente da Ilheustur sugeriu que 0 pr6prio Dilazenze adquirisse os instrumentos com "urn canao de credito emprestado", e pagasse parceladamente a fatura do canao, utilizando os repasses mensais que receberia do 6rgao. Acostumado com os atrasos nos repasses de dinheiro municipal, e de sobreaviso, principalmente, em fun~ao de uma dfvida de R$ 2.000,00 que a pr6pria Ilheustur tinha para com 0 Dilazenze ha quase tres anos, Marinho hesitou muito em aceitar a proposta. 0 tom do presidente da

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empresa, que ja era de superioridade e comando, subiu um pouco mais quando afirmou: "eu quero ajudar voces, mas neste caso so resta abortar 0 projeto", mesma expressao utilizada pelo tesouteiro que, convocado it sala de reuni6es, explicou a impossibilidade de comprar it vista 0 material musical. Finalmente, Marinho aceirou receber parceladamente e decidiu que compraria os instrumemos it medida que 0 dinheiro Fosse sendo repassado para 0 Dilazenze, utilizando, enquamo isso, 0 material antigo do grupo e alguns insrrumemos emprestados. 0 negocio foi finalmeme fechado, mas 0 presidente da Ilheustur, mais uma vez, fez questao de frisar 0 carater de "ajuda" que 0 acordo, a seus olhos, possuia. Em um trabalho fundamental, Richard Graham (1997) demonstrou que o verdadeiro sentido das elei~6es, freqUente e inintertuptamente realizadas ao longo de rodo 0 Segundo Reinado no Brasil, era menos 0 de responder pela efetiva escolha dos governantes por parte do povo (ja que os resultados eleirorais eram quase sempre objero de manobras fraudulentas ou alvo do uso aberro da violencia) do que funcionar como uma especie de "teatro" em que "os participantes usavam a linguagem da estratifica~ao social para, mais que excluir os votantes, diferencia-los" (idem: 150), ou seja, para exibir e ratificar uma ordem social extremamente estratificada e elitista. Apos a reforma de 1881, esse "teatro das elei~6es" teria deixado de funcionar e 0 autor apenas levanta a questao do destino dessas praticas de ostenta~ao de starus, voltadas para distinguir "claramente os poucos que dirigiam as elei~6es dos muiros que apenas votavam" (idem: 158). Creio que, longe de terem desaparecido, essas praticas se dissolveram nas rela~6es cotidianas entre politicos e eleirores, rornando-se particularmente visiveis nos momentos de campanha. Em outros termos, se pode ser verdade que 0 "tempo da politica" abre ou intensifica canais de comunica~ao entre diferentes camadas sociais, e preciso reconhecer, igualmente, que isso nao significa necessariamente uma maior permeabilidade entre tais camadas. Bem ao contrario, pode representar uma ocasiao extremamente adequada para a exibi~ao de status e para a reafirma~ao de rodas as hierar. .. qUlas SOCialS. Nesse sentido, ao estabelecerem, de dois em dois anos, 0 espa~o onde sao encenados esses dramas, que mesdam participa~ao e exclusao, as elei~6es constroem de faro a domina~ao, mas nao da forma como se imagina que fazem. Pois nao se trata nem da simples institui~ao de uma soberania legitima, nem da mera legitima~ao de formas de dominio preexistentes. Trata-se de mais um mecanismo de poder, no sentido material e foucaultiano da expressao (nao

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no burgues ou marxista). Nas elei~6es e na "politica", ha muito mais do que politica: ha podetes, subjetividades e agencias, elementos que uma anttopologia da polftica nao pode deixat de lado.

*** No dia 12 de fevereiro de 1999,0 Carnaval Cultural de Ilheus era oficialmente aberro pelo prefeiro Jabes Ribeiro. No documento assinado a fim de receber a verba da Prefeitura para seus desfiles, as entidades afro haviam se compromerido a enviar ao menos parre de suas baterias para a cerim6nia de aberrura, realizada na noite de sexta-feira, vespera de carnaval, na Avenida Soares Lopes. 0 problema e que Gurita, 0 idealizador da proposta, adverrira que 0 ttansporre dos musicos e insttumentos - problema que sempre se coloca rodas as vezes em que urn grupo afro vai se apresentar - ficaria sob a responsabilidade dos grupos negros, 0 que, do ponto de vista destes, inviabilizava seu comparecimento, na medida em que teriam que destinar parte dos ja escassos recursos cedidos pela Prefeitura para pagar esse ttansporre. Alem disso, especialmente no Dilazenze, a movimenta~ao visando a prepara~ao do desfile de domingo era muito grande, principalmente porque, com 0 attaso no repasse da verba, 0 tempo ficara exrremamente curro para todos os preparativos.

Em fun~ao disso, apenas os blocos politicamente mais pr6ximos a Gurira, bern como aqueles cujas sedes se localizam nas imedia~6es do centro da cidade, enviaram alguns musicos, de modo que a aberrura do Carnaval Cultural acabou sendo considerada uma cerim6nia "muito fraca". Visivelmente irritado, Gurita repetia para todos que haveria problemas e puni~6es, uma vez que o prefeito fazia quesrao da presen~a dos blocos, e que todos haviam, formalmente, assinado urn documento de compromisso. Mais tarde, urn dos membros da comissao de organiza~ao do carnaval diria que 0 prefeito nao se havia manifestado sobre 0 assunto, nem parecia se imporrar com 0 nao-comparecimento dos blocos, 0 que confirmou a impressao geral de que, mais uma vez, era Gurita querendo "se aparecer". Em outros termo, suspeirava-se que Gurita prerendia apenas exibir os blocos ao prefeito ou, mais exatamente, mosttar a Jabes que detinha 0 conttole dos blocos e que poderia ser realmenre, ral qual apregoava, 0 "representante" do movimento negro junto aPrefeitura de Ilheus. De toda forma, no sabado e na segunda-feira de carnaval, desfilaram a Levada da Capoeira, 0 Raizes Negras (que saia em conjunto com

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o D'Logun), 0 Rastafiry e 0 Zambi Axe. No domingo e na ten;:a-feira, era a VeL da Embaixada Gege-Nago, do Moxe Filhos de Ogum, Danados do Reggae, Miny Kongo e Dilazenze. o domingo de carnaval, 14 de fevereiro de 1999, foi, portanto, urn dia de intensa movimenta~ao e de muita tensao na sede do Grupo Cultural Dilazenze. Trabalhava-se desde bern cedo pata que tudo estivesse pronto no momento do desfile apesat do attaso na compra de material suscitado pelo repasse tardio da verba da Prefeitura. Uma outra forma de atraso, alias, era uma das grandes preocupa~6es do grupo. A comissao organizadora do carnaval decidira incluir a "pontualidade" como urn dos quesitos de julgamento do desfile, e 0 Dilazenze, reconhecidamente, costumava ter problemas com o horario. Lembrava-se mesmo que a derrota para 0 Rastafiry, no ultimo desfile competitivo, ocorrera em fun~ao de urn enorme atraso para entrar na avenida. Marinho, que reconhecia, resignadamente, que era quase impossive! cumprir 0 horario estabe!ecido, decidiu, entao, aceitar uma sugestao feita por mim (talvez a pessoa mais preocupada com 0 assunto), e avisou os membros do bloco que 0 desfile do Dilazenze deveria iniciar as sete e meia da noite, quando, na verdade, isso so deveria ocorrer uma hora mais tarde. A pequena mentira acabou funcionando bern, e as sete horas - horario perfeitamente compative! para urn desfile as oito e meia -, 0 bloco, estacionado entre a sede do Dilazenze e 0 terreiro Tombency (que ficam urn defronte 0 outro), estava prestes a dar inicio a sua marcha ate a Avenida Soares Lopes, com todas as suas alas preparadas e ordenadas, eo caminhao, que servia de carro alegorico transportando urn mode!o estilizado de urn quilombo e os dois destaques representando Zumbi dos Palmares e sua esposa Dandara (0 tema escolhido fora 0 mesmo que Marinho tentara, sem sucesso, usar para desfilar no carnaval antecipado, Os Quilombolas), pronto para a partida. Nesse momento, algo de muito grave pareceu ocorrer, uma vez que a saida do bloco foi interrompida enquanto muita gente corria de urn lado para 0 outro e Marinho, muito nervoso, repetia que "0 bicho pegou".' Momentos antes da saida do bloco, uma das irmas de Marinho - maepequena do terreiro (ou seja, principal auxiliar da mae-de-santo, que, neste caso, e tambern sua mae biological e urn dos dois unicos membros do sibling de quatorze irmaos que possui, ao lado de Gilvan, 0 "dom" de receber os orixas em seu corpo - entrou em transe, sendo possuida por uma "qualidade" feminina de Exu. 1O Sua Pombagira, entre espalhafatosas risadas e com 0 vocabulario algo imoral que caracteriza esse tipo de espirito, afirmou imediatamente

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que "eu sei que voces pensaram que eu nao vinha, mas eu vim. Porque rem muito homem gostoso aqui hoje". Logo em seguida, entretanto, notou-se que o espirito nao estava ali apenas para brincadeiras. Em urn estilo que urn amigo ingles definiu como "shakespeariano", a Pombagira proclamou: "parece que voces estao dormindo com os olhos dos outros para nao ver 0 que est>. acontecendo, para nao ver que fizeram e mandaram uma coisa grande contra voces" . o que a Pombagira de Nidinha anunciava e que 0 Dilazenze teria sido vitirna de urn feiti<;:o, certamente lan<;:ado por rivais, que sofreriam de uma inveja profunda devido ao sucesso do grupo nos ultimos anos, e que desejariam impedir, a qualquer custo, que 0 bloco vencesse 0 desfile de carnaval. Repreendendo duramente Marinho por ter "esquecido" de comprar os ingredientes que, na vespera, deveriam ter sido utilizados em urn sacrificio propiciatorio para Exu, Dona Ilza tratou de improvisar uma oferenda para a divindade que serve de intermediaria a todos os orixas, "abrindo os caminhos" e garantindo 0 sucesso das empreitadas humanas. Sete pequenos bolinhos de farinha e dende foram confeccionados e depositados em sete encruzilhadas, uma das moradas de Exu, situadas proximas ao terreiro. Em seguida, a maede-santo soprou grandes quantidades de pemba branca - po que, no candombIe, serve para purifica<;:ao e "descarrego", ou seja, para afastar as vibra<;:oes negativas e as mas influencias - sobre todos nos e decretou que, a partir daquele momento, 0 bloco poderia sair para desfilar na avenida. Marinho ainda contou que sentiu a presen<;:a dos espiritos de seus avos maternos, antigos e poderosos lideres do terreiro, que seus olhos se encheram de lagrimas, mas que foi capaz de "segurar a onda", pensando no desfile e na necessidade de vit6ria. Fogos de artificio foram lan<;:ados, algumas pombas brancas soltas,11 e 0 bloco saiu pela Avenida Brasil, antiga Rua dos Carilos, em dire<;:ao a ladeira que nos conduziria ao centro da cidade. Tocando e cantando com for<;:a e emo<;:ao a musica-tema do carnaval,12 desfilamos, primeiramente, pelas ruas do bairro da Conquista, repletas de gente sobre as cal<;:adas, cantando e aplaudindo 0 bloco. Em cerro sentido, esse era 0 momento alto do carnaval e, mais do que para aqueles que assistiriam ao desfile na Soares Lopes, era para os vizinhos e, em ultima instancia, para si mesmos, que os membros do Dilazenze haviam preparado seu carnaval. 13 Descemos, assim, a Ladeira da Coelba, tao ingreme que obriga os musicos a interromperem seu toque e os folioes a marcharem com muito cuidado. No pe da ladeira, ao atravessarmos a movi-

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mentada Avenida ltabuna, 0 primeiro incidente: urn automovel avan~ou 0 sinal vermelho, ignorando tambem 0 guarda de transito que protegia a passagem do bloco. Alguem bateu no vidro do carro e 0 guarda, imediatamente, pos a mao sobre a arma que trazia na cintura. Todos correram na dire~ao do policial, em meio a uma enorme gritaria; os membros da bateria, com os instrumentos sobre a cabe~a, amea~aram arremessa-Ios sabre 0 guarda; urn dos irmaos de Marinho disse ao policial que, se ele sacasse a arma e atirasse, tambern morreria; outro afirmou que faria uma queixa formal contra ele no Batalhao da PoHcia Militar; final mente, Marinho conseguiu apaziguar os animos e contornar a situa~ao, com 0 bloco retomando 0 caminho da Avenida Soares Lopes. Esse episodio, ao lado de dois ou tres conflitos menores que ocorreram durante, ou logo apos, 0 desfile, viriam a ser lembrados como prova dos perigos acarretados pelo feiti~o lan~ado contra 0 bloco. Todos repetiam que, caso a Pombagira de Nidinha nao tivesse feito sua adverrencia, e caso Dona Ilza nao tivesse realizado urn trabalho de prote~ao de ultima hora, 0 carnaval do Dilazenze certamente teria acabado naAvenida ltabuna, em meio a uma grande tragedia. De toda forma - e para minha enorme surpresa, ja que 0 atraso na saida e 0 incidente com 0 policial haviam me convencido de que a pontualidade era caso perdido -, entramos na avenida exatamente as oito e meia da noite. Mais do que isso, nos 0 fizemos antes do Miny Kongo, urn dos grandes rivais do Dilazenze, que deveria ter desfilado uma hora antes, mas se atrasara. Atraso que nao apenas diminuiu a nota final do bloco, como permitiu ao Dilazenze desfilar acompanhado do melhor carro de som disponivel para 0 desfile, enquanto 0 Miny Kongo acabou desfilando sem carro de som algum, 0 que teria diminuido ainda mais sua nota. Todos esses eventos serviram para comprovar aquilo de que ja se suspeitava aberramente: que a origem do feiti~o lan~a足 do contra 0 grupo era precisamente 0 Miny Kongo, 0 unico blow afro de Ilheus - a1em do Dilazenze, e claro - que conta, entre seus dirigentes, com urn pai-de-santo do candomble. Nao que se acreditasse que este, ou mesmo seu bloco, fossem os unicos responsaveis pelo feiti~o: imaginava-se, igualmente, que 0 terceiro grande bloco de Ilheus, 0 Rastafiry, tambern estivera envolvido na trama, mas nao podia haver duvidas sobre quem teria sido, digamos, o autor material do trabalho. Foi nessa dire~ao, porranto, que 0 infortunio, devidamente evitado pela interven~ao da Pombagira de Nidinha e por Dona Ilza, acabou sendo desviado. 0 penultimo lugar atribuido ao Miny Kongo no carnaval1999 e 0 fato de que 0 Rastafiry so obteve 0 vice-campeonato em

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fun~ao

da "politica" feita com 0 desfile eram constantemente mencionados, ap6s 0 carnaval, como provas irrefutaveis de culpabilidade no caso do feiti~o - alem, e claro, de que se trataria mesmo de blocos "incompetentes" e, afinal de contas, incapazes de competir de igual para igual com 0 Dilazenze. 14 Repetia-se, tambem, que a origem do problema se localizava, inquestionavelmente, na "inveja" que 0 Miny Kongo e 0 Rastafiry sentiam em rela~ao ao Dilazenze, inveja que seria tao profunda que faria com que fossem capazes ate mesmo de inverter radicalmente a verdade das coisas, espalhando pela cidade que 0 sucesso e a vit6ria do bloco s6 aconteciam em fun~ao dos trabalhos magicos e de feiti~aria realizados por Dona Ilza.

*** Do ponto de vista do movimento afro-cultural de Ilheus, 0 carnaval de 1999, a despeito de todos os problemas enfrentados, realmente representou o "resgate do Carnaval Cultural" a que repetidamente fazia alusao 0 prefeiro da cidade. Todos reconheciam que, apesar de nao ter sido apoiado pelo movimento nas elei~6es de 1996, desde que assumira 0 mandato, Jabes empreendera serios esfor~os para que 0 Carnaval Cultural pudesse ser realizado a contento. Logo no inicio de 1997, permitira a apresenta~ao dos blocos ainda que estes nao desfilassem; separara 0 carnaval dos blocos de trio e restabelecerao desfile dos blocos afro em 1998, bern como 0 auxilio financeiro; em 1999, reintroduzira a competi~ao dos blocos afro e, ao menos em tese, a premia~ao do vencedor do carnaval; e, em 2000, ainda restauraria 0 carnaval unico, na data oficial e com lugar de destaque para os blocos afro. Essa situa~ao, como outras abordadas ao longo deste livro, estao claramente relacionadas a uma antiga e dificil questao: organiza~6es como os blocos afro (mas tambern os terreiros de candomble, grupos carnavalescos, academias de capoeira e assim por diante) seriam, afinal de contas, focos e formas de resistencia ou, pelo conmirio, grupos e alvos privilegiados para os esfor~os de coopta~ao empreendidos pelo Estado e pelos politicos em geral? Na literatura sobre essas organiza~6es, este costuma ser urn ponto algo delicado, uma vez que os pesquisadores possuem com elas, em gera!' urn envolvimento pessoal e politico bastante pronunciado. Assim, Agier (1992; 2000), por exemplo, contorna habilmente a complexa questao da rela~ao dos blocos negros com a politica partidaria.I' Siqueira (1996: 139, 141-142) parece considerar que pelo menos alguns blocos (e 0 IleAiye e,como sempre, 0 caso

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privilegiado) represenrariam "nticleos" dorados de "fun~ao espedfica e autonoma", constituindo uma "organiza<;:ao etnica" que seria uma forma de "re-

sisrencia poHtico-cultural contemporanea". Morales (1988: 267, 270-273; 1991: 84) parece concordar com essa posi~ao, ainda que tenre demonstrar que a medida que se convertem em "grupos culturais" e buscam desenvolver atividades ligadas a seu bairro ou grupo social, os blocos passariam a fazer parte do jogo do clienrelismo poHtico. Nesse senrido, op6e 0 IleAiye ao Afoxe Filhos de Gandhi como exemplos privilegiados de p610s, respectivamenre, de maior e menor resisteneia (ou de menor e maior coopta~ao). McCallum (1996; 1997) e Cunha (2000) parecem adotar uma posi~ao analoga, argumenrando que as tentativas de resisteneia ou os esfor~os para controlar tens6es e diferen~as inrernas caractedsticos das organiza~6es baseadas nas poHticas de idenridade tendem a dora-las de uma maior maleabilidade no que diz respeito a alian~as com for~as politicas de outra ordem - e, conseqiienremenre, de urn maior potencial de coopta~ao. Na verdade, nao e dificil perceber que a "cultura" - termo que serve de denominador comum as formas de sociabilidade aqui em questao - parece fazer parte do arsenal de aparelhos de captura de que disp6em os Estados e os poderosos. Conceito cunhado por Deleuze e Guattari (1980: 528-591), "aparelho de captura" designa basicamenre os dispositivos de apropria~ao das a~6es humanas heterogeneas e em varia~ao continua e de sua conversao em atividades homogeneas, regulaveis e mutuamenre comparaveis. 16 E dessa forma que a conversao de territ6rios de explora~ao em terras de produ~ao (tornando os primeiros comparaveis e apropriaveis) e urn aparelho de captura que, simultaneamenre, possibilita a "renda fundiaria" e e correlato da objetiva~ao da propriedade e do proprierario (idem: 549-551).17 Do mesmo modo, 0 "trabalho" e a "moeda" sao aparelhos de captura da a~ao livre de varia~ao continua e troca, objetivando 0 trabalhador, 0 lucro e 0 imposto (idem: 551-554). Como evidentemenre nao ha razao para supor que a lista dos aparelhos de captura seja finita, podemos aplicar 0 conceito a qualquer dispositivo que opere de forma hom610ga aqueles concretamente isolados por Deleuze e Guattari. Na verdade, sao os pr6prios autores que chamam a aten~ao para 0 fato de que e 0 Estado, em bloco, que poderia ser considerado 0 aparelho de captura por exceleneia, atuando sempre por meio de convers6es das for~as que captura e utilizando, para isso, uma grande variedade de dispositivos espedficos dos quais a renda, 0 trabalho e a moeda sao apenas tres casos particulares que parecem, alias, funeionar com mais for~a no momento de cons-

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titui~ao histotica do capitalismo do que em suas fases

mais avan~adas. Se aCtescentarmos a isso 0 faro de que por "Esrado" nao se pretende meramenre designar uma institui~ao, mas urn modo de funcionamento e uma forma de poder, compreendemos por que "chamamos 'captura' essa essencia inrerior ou essa unidade do Estado" (idem: 532). Ou seja, compreendemos que nao existe urn Esrado que captura, mas que a captura e 0 Estado e vice-versa - 0 que significa que, deste ponto de visra, a diferen~a entre 0 aparelho de Estado propriamente dito e as chamadas "organiza~6es nao governamentais", por exemplo, e absolutamente irrelevante. Observemos, finalmente, que Deleuze e Guartari (idem: 434, 528-529) tambern isolaram 0 que denominam os "dois polos" do Estado, uma vez que este opera ranto por "captura magiea" quanro por "contrato juridico". Isso quer dizer, em primeiro lugar, que, se a organiza~ao legal e, sem duvida, urn dos bra~os do Esrado, a capacidade de atrair, promerer, seduzir, eo outro; e, em segundo, que a oscila~ao conrinua e permanente enrre os codigos expliciros e os ardis e rrapa~as inconfessaveis e 0 modo mesmo de funcionamento desse tipo de poder. IS Nao e dificil agora, porranto, perceber que a "cultura" funciona, em Ilheus e talvez em toda parre, como urn poderoso aparelho de captura. Esse, alias, e 0 senrido da tese de Guarrari segundo a qual "[...J 0 conceito de cultura e ptofundamenre reacionario. E uma maneira de

separar atividades semi6ticas [...] em esferas [...]. Tais atividades, assim isoladas, sao padtonizadas, instituidas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotiza~ao dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas

realidades politicas" (Guattari 1986c: 15). Em termos ernograficos, a defini~ao das praticas rituais executadas por uma mae-decsanto, ou das musicas de urn bloco afro, como "cultura" tern a capacidade de, simultaneamente, capturar essas a~6es, isolando-as da vida dos envolvidos, e eliminar a for~a (religiosa ou estetica) que as caracterizam,I9 converrendo-as em atividades homogeneas e comparaveis a urn sem-numero de outras, fazendo com que possam, dessa forma, ser oferecidas em urn mercado generalizado: "assim como 0 capital e urn modo de semiotiza~ao que permite ter urn equivalente geral para as produ~6es economicas e sociais, a cultura e 0 equivalente geral para as produ~6es de poder" (idem: 24). E de nada adianta aqui 0 purismo bem-inrencionado que argumenraria que essa no~ao de cultura nada tern a ver com aquela com a qual trabalhariam os antropologos. Como Guattari rambem demonstrou, os rres sentidos da cultura

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- "cultura-valor", "cultura-alma coleriva" e "cultura-mercadoria" (idem: 17) - podem muiro bern ter aparecido sucessivameme ao longo do tempo, mas isso nao significa que nao funcionem em bloco e ao mesmo tempo (idem: 19). Desse modo, em Ilheus, a cultura negra (enquanto "cultura-alma coletiva") so pode "desenvolver-se" (au seja, atingir a estatuto de "cultura-valor") ao se transformar em "cultura-mercadoria" (au seja, ao passar a funcionar de acordo com as regras do equivaleme geral para ser exposta e, literalmeme, vendida em urn mercado). A cultura .0, ao mesmo tempo, uma "palavra-cilada" (idem: 17) e urn aparelho de captura, possivelmeme urn dos mais bern adaptados as exigencias da sociedade de comrole que caracteriza a capital isrna comemporaneo. Essa tambern parece ser a conclusao de Michael Herzfeld (1992a: 99, 107; 1996: 26-27), quando sugere que seria proprio das forma~6es estatais promoverem uma especie de transla~ao do social ao cultural, acionando mecanismos semiotico-polfticos que convertem as "rela~6es indexicas" locais (au propriamente "sociais", uma vez que envolvem conhecimemo direto mutua, produzem finas distin~6es entre pessoas e grupos e dependem em alto grau de sua comextualidade) em rela~6es "iconicas" au "culturais" (que ten路 dem a literalizar as simbolos, desvinculando-os de seus comextos pragmaticos). Uma imagem de unidade cultural parece obscurecer a relatividade social; o "generico" parece se superpor ao "genealogico". E nesse semido que a Estado nada mais .0 do que a conjunto de opera~6es voltadas para a essencializa,ao, naturaliza,ao e literaliza~ao de experiencias sociais sempre multipI as e polifonicas: a ninguem .0 permitido possuir mais que uma religiao, urn pertencimento local, uma etnia ou uma cor; "estilos", sempre moveis e contextuais, convertem-se em "identidades>l, que sao cristalizadas em "etnicidades", que, por sua vez, tendem a se enrijecer como "nacionalidades"

(Herzfeld 1996: 42路43); a "labilidade semantica dos valores locais", que faz com que pertencimemos familiares, grupais, ernicos e mesmo nacionais fun路 cionem como verdadeiros shifters (idem: 45-46) tende a ser eliminada au Iimitada pelo Estado. Ao mesmo tempo, uma vez substancializadas, essas variaveis (doravante "valores" ou meSilla "coisas") retornam

avida social cotidia-

na e alimemam odios, discrimina~6es e massacres. Desse pomo de vista, .0 possivel observar que a democracia nao .0 necessariameme sinonimo de toler:1ncia e de urn menor grau de essencializa,ao: a comrario pode ocorrer, na medida em que a diversidade tambem pode ser condenada em nome da igualdade (idem: 83, 111).

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Essas considera<,;6es permitem igualmente, creio, retomar uma questao levantada por Peter Fry em urn texto muito famoso, apresentado pela primeira vez em 1976. Nele, Fry dedicou-se a analisar 0 fascinante processo de "conversao de simbolos emicos em simbolos nacionais" (Fry 1977: 47). Seu argumento basico era que, ao contrario do que ocorreria em paises como os Estados Unidos, por exemplo, no caso brasileiro "os produtores de simbolos nacionais e da culrura de massa escolheram itens culturais produzidos por grupos dominados" (ibidem): "Para falar a verdade, acho dificil responder a estas questoes. Uma possibilidade e a de que tanto 0 candomble como 0 samba constitulam os pradutos culturais mais originais do Brasil e eram, portanto, capazes de distinguir simbolicamente 0 Brasil de outras nayoes latino-americanas e do mundo desenvolvi-

do. Outra interpreta<,;ao possive!, e a que realmente prefira, ea de que a ado,ao de tais simbolos era politicamente conveniente, instrumento para assegurar a

domina,ao mascarando-a sob outra nome [... J. Aconversao de simbolos emicos em sfmbolos nacionais nao apenas oculta uma situac;:ao de dominac;:ao ra-

cial, mas torna muito mais dificil a tarefa de denuncia-Ia. Quando se convertern simbolos de 'fronteiras' etnicas em simbolos que afirmam os limites da naeionalidade, converte-se 0 que era originalmente perigoso em alga 'timpo',

'segura' e 'domesticado'. Agora que 0 candomble e 0 samba sao considerados chic e respeitaveis. perderam 0 poder que antes possulam. Nao existe soulfood no Brasil" (ibidem - grifos do autor). Vinte e cinco anos mais tarde, Fry republicou seu texto sobre a soulfood, acrescentando uma introdu<,;ao e urn adendo ("0 tempo passa"), em que exprime uma radical mudan<,;a de opiniao e de posi<,;ao. Nao tanto, observe-se, na dire<,;ao da ado<,;ao da primeira resposta aventada no trecho acima citado, mas, aparentemente, naquela da elisao da propria questao que levantara. Na medida em que descobriu, no Brasil, "uma sociedade em que todos compartilhavam conceitos e premissas culturais basicos" (Fry 200 1: 50), a autor passou a sustentar a necessidade de abandonar uma perspecriva dualista, excessivamente marcada pelos contextos anglo-saxonicos, que encararia 0 Brasil como uma sociedade fundamentalmente dividida. 20 Ao contrario do proprio autor, nao creio que sua tese original deva ser abandonada com tanta rapidez. Everdade, sem dtivida, que seu equivoco central consistia em adotar uma visao excessivamente dualista; no entanto, a op<,;ao por uma perspectiva unitarista, tambem excessiva e enrijecida, nao parece levar muito lange e, ao contrario, faz correr 0 risco de jogar fora a bebe

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com a agua do banho. 0 processo isolado por Fry em 197721 e realmente crucial, e basra que seu dualismo seja subsrirufdo por certa modalidade de pluralismo para que as reses do auror readquiram for~a e juventude. Pois 0 que nao parece evidente e que a feijoada, 0 candombJe, 0 samba ou a musica afro possam ser al~ados definirivamente da condi~ao de signos minorirarios para aquela de sfmbolos majorirarios. Na verdade, rudo se passa como se 0 valor semi6tico de cada uma dessas produ~6es oscilasse de acordo com os nfveis segmentares que atravessam. Nesse sentido, 0 problema polftico central das elites nao seria tanto a simples apropria~ao e deslocamento dos sfmbolos, mas a elimina~ao de suas ambigiiidades, fazendo com que adquiram um sentido unfvoco -literalizando-os, como diz Herzfeld -, tarefa que, e claro, nao pode jamais ser inteiramente bem-sucedida. Nao e por acaso, portanto, como lembra Fry (1977: 46), que, em 1973, 0 jornal 0 Estado de S. Paulo tenha criticado duramente 0 governo paulista por este ter organizado uma grande Festa publica'de umbanda. 0 mal-entendido interno a elite paulista explica-se, talvez, se admitirmos que, enquanto 0 governador visava um nfvel segmentar mais elevado - sobre 0 qual a umbanda e outras forma~6es podem funcionar como representa~6es do Brasil como um todo -, 0 peri6dico mirava um nfvel segmentar menos inclusivo, no qual elite e umbandistas s6 podem mesmo se opor. E por isso que a questao, acima levantada, acerca do carater conservador ou de resistencia das formas minoritarias de organiza~ao nao se pode responder de modo unfvoco. Se, por um lado, convem evitar rodo romantismo e admitir que, muitas vezes, essas forma~6es se prestam a captura e se conjugam com 0 Estado ou com as for~as majorirarias, por outro, e preciso recusar qualquer especie de pessimismo ou fatalismo: as capturas e conjuga~6es respondem sempre, e incessantemente, as conexi5es, as linhas de fuga e as resistencias." 0 unico problema e que estas devem ser compreendidas em um sentido ligeiramente distinto daquele a que estamos mais habituados: como sublinha Zourabichvilli (2000: 353 - grifos do autor), "resistir se distingue de reagir", e em um sentido propriamente micropolftico e molecular a resistencia e sempre primeira em rela~ao a caprura, ja que esta s6 pode incidir sobre formas de vida e for~as vitais que lutam para perseverar em seu ser. 23 E nesse sentido que, ao analisar "0 olhar da imprensa baiana" sobre os blocos afro, Cunha (1989: 180) pode mostrar como 0 desfile inaugural do He Aiye, em 1974, revelava a possibilidade de um uso inteiramente subversivo da chamada cultura negra. Essa subversao, em um primeiro momenro, foi

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combatida com violencia (com acusa~6es de racismo ao bloco, que nao permitia que brancos participassem de seu desfile de carnaval), mas, logo depois, foi objero de tentativas de neutraliza~ao por meio de mecanismos de reapropria~o segmentar semelhantes aqueles descriros por Fry: a cultura negra como patrimonio de rodos, 0 desfile apenas como folclore e estetica, nao como poIitica e resistencia. Mas seria preciso muita ingenuidade ou ma vontade para imaginar que essa reapropria~ao possa ser absoluta e esgotar 0 fenomeno. Ao contrario, trata-se antes de um infinito jogo de desafios, respostas, contrarespostas e assim por diante: "0 que para os diversos grupos e 0 lugar da resistencia apresenta-se nas paginas dos peri6dicos como exotica" (ibidem - grifos da aurora). Da mesma forma, ao analisar a Festa baiana do Dois de ]ulho, Cecilia McCallum (1997) mostra que 0 faro de "0 caboclo", que e nela celebrado, ai aparecer como simbolo de baianidade nao significa que ele 0 seja sempre e em todos os niveis, podendo aparecer, ao contdrio, como um personagem que encarna a resistencia popular (e nao brasileira), que caracteriza os culros afro (nao a Bahia) e que esra ligado a negros e mesti~os (nao aos baianos). Mais uma vez, 0 problema politico das elites e dos poderosos e abolir essa varia~ao continua segmentar e tentar fazer com que 0 caboclo ou as "baianas" que vendem comidas "tipicas" funcionem apenas sobre um nivel especifico, o mais inclusivo, evidentemente. 24 A mesma autora tambem demonstra (McCallum 1996: 207) que 0 faro de esse tipo de englobamento pelo nivel segmentar superior efetivamente ocorrer em determinadas ocasi6es (como no futebol, por exemplo) nao significa, em hip6tese alguma, 0 triunfo de um sentimento inteiramente positivo de nacionalidade. Ao contrario, esse "nacionalismo local" nao deixa de conviver com sentimentos inteiramente negativos acerca do Estado e mesmo da na~ao. E isso s6 e possivel porque as duas rea~6es se passam nao apenas sobre niveis segmentares distintos como de acordo com diferentes formas de segmentaridade: uma circular, indo do individuo a na~ao, outra binaria ou linear, que faz com que as comemora~6es pelas vit6rias "nao neguem a hierarquia, mas simplesmente a desloquem temporariarnente" (idem: 222). Ao insistir na existencia de uma "dialetica de 'hegemonia' e 'resistencia''' (idem: 208) e sugerir aten~ao as politicas de resistencia,25 McCallum observa com precisao que mesmo a coopta~ao eleiroralmente bem-sucedida nao significa captura total, e que 0 conhecido ceticismo popular acerca da politica poderia ser encarado como forma de resistencia ou, para ser mais preciso e nao con-

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fundi-Io com uma simples 'rea~ao', como um dos efeitos de uma resistencia fundamental: "0 ptocesso eleitoral nao e uma medida absoluta de hegemonia" (McCallum 1997: 27).26 Como vimos, nao ha duvida de que, em I1heus, e talvez em toda parte, distintos segmentos politicos buscam capturar fra~6es do movimento negro e articular-se com elas; este movimento, por sua vez, funciona, ao menos em

parte, de acordo com uma 16gica igualmente segmentar. De modo mais geral, poderiamos enrao, talvez, sustentar que as diversas formas de segmenta~ao que recortam nao apenas os grupos afro e as camadas mais pobres da popula~ao de I1heus, mas a cidade como um todo, funcionam como pontos de encaixe para a grande politica, ou melhor, para os diversos segmentos que se abrigam sob este r6tulo. Assim, um candidato capaz de aproveitar essas divis6es segmentares pode nao apenas impedir que os blocos se articulem em torno de um candidato, como, e ao mesmo tempo, garantir um raroavel numero de votos para sua pr6pria elei~ao. Por outro lado, e crucial recordar e subliI nhar,que os membros das organiza~6es negras nao costumam ter hito em suas i'ncurs6es diretas na politica parridaria - e isso nao apenas em I1heus, onde, como tambem observei, 0 movimento negro lamenta continuamente jamais ter conseguido eleger um vereador. Em Salvador, por exemplo, em 1988, 0 presidente do Moxe Filhos de Gandhi conseguiu apenas 242 votos nas elei~6es para a Camara Municipal, e 0 do lie Aiye, 781 votos, em um universo de aproximadamente 4 mil associados em cada uma das organiza~6es (Morales 1991: 86). Em I1heus, em 2004, concorrendo desta feita pelo PP, Gurita obteve quase oitocentos votos em I1heus, vOta~ao insuficiente, mais uma vez, para elege-Io vereador. Elicio Gomes, concorrendo pelo PTC, nao conseguiu sua reelei~ao, ainda que rivesse obtido mais de 1.400 votos contra os 652 da elei~ao de 2000; Joao Cesar, que concorreu pelo PSTU, teve apenas 68 votos; Bernadete e Edson Ferramenta, ambos do PT e ligados ao MNU, obtiveram, respecrivamente, 141 e 121 votos; Nen, ligado ao bloco afro D'Logun, conseguiu 126 votos; Claudio Magalhaes, do PCdoB, lider do movimento indigena de Oliven~a, tampouco conseguiu eleger-se, apesar dos seus 521 votos. Da mesma forma, candidatos ligados ao movimento negro ou ao "movimento cultural" tentaram, sem sucesso, sua elei~ao como vereadores em cidades como Caravelas, N ova Vi~osa e Belmonte. 27 Eevidente que, em todos os casos, esses candidatos ligados a movimentos negros ou "culturais" capturam e canalizam fluxos de votos na dire~ao de outras candidaturas mais bem-sucedidas, ou seja, atuam como mulas dos eleitos. Observemos, contudo, que nao sao apenas votos 0 que e drenado dessa

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maneira: eo conjunto das rela~6es sociais dos envolvidos, sua milirancia cultural e, em ultima instancia, sua vida, que sao capturados e sobrecodificados nesse processo. E e nesse sentido que cabe indagar se nao sao as elei~6es de modo geml, e a politica como urn todo, que deveriam set encaradas, sempte e em toda patte, como aparelhos de captura. Citando Termico Sampaio Ferraz, Valente (1986: 110) lembta que "[...J a eleic;ao

eurn mecanismo vital de absorc;ao dos protestos ao oferecer uma

grande oportunidade de manifesta<;ao de insatisfac;6es, com relativamente pOlleD risco para a estrutura do sistema, ja que urn candidato escolhido por protesto oem precisa ser deito ou 'caso eleito, nao precisa necessariamente influenciar as decis6es cia rnaquina political))

Mesma conclusao que a de Richard Graham em seu estudo sabre a polirica no Brasil no seculo XIX. Obcecada par conciliat elei~6es, legitimidade e ordem, a elite btasileira desenvolvia urn esfor~o muito consciente pata canalizar qualquer forma de protesto au oposi~ao pata a interior da politica eleitoral: "0 constante esfor~o de legislar elei~6es justas demonstra uma preocupa~ao em abrit a politica a homens de opini6es divergentes, que assim nao se voltatiam contra a regime" (Graham 1997: 105). Em outros tetmos, como demonstrou Michel Offerle (1993a: 139-140), a estabelecimento e a funcionamento de urn sistema democratico exigem, como seu cottelato, a produ~ao de urn cetto tipo de agente social, a "eleitor". Nao esse ser ficticio cuja existencia se limita a poucos minuras em uma cabine eleitoral au as paginas de alguns manuais, mas urn produra bern especifico, resultante de todo urn processo de "domestica~ao", de "ottopedia social", que visa produzir urn sujeito que nao seja excessivamente passivo - au a sistema perderia seu apoio au legitimidade - mas que, ao mesmo tempo, nao se tome arivo demais, consentindo em so patticipar do processo politico nas instancias e momentos ridos como adequados. 28 Epar isso que a exalta~ao de Clemenceau - "0 principia do sufragio universal nao permite nenhum compromisso. Ele concede a mesmo direito ao sabia e ao ignorante: ele a concede em vittude de urn direito natural" (idem: 141) - pode ser respondida com a cinismo de Ledru-Rollin: "logica da igualdade e rneio de evitar a revolu~ao" (ibidem). E que Same (1973: 1.105) pode perguntar "par que eu votaria? Porque me convenceram de que a unico ato politico de minha vida consiste ern colocar meu voto na urna a cada quatro anas?') E conduir: ~'mas isso e 0 contd.rio de urn ato".

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*** Se 0 ano de 1998 representou, para os blocos afro, uma especie de renascimenro, foi rambem 0 momenro em que Jabes Ribeiro promoveu uma profunda modifica~ao em suas alian~as poliricas e, quem sabe, em suas pr6prias posi~6es ideol6gicas e dourrinarias. Logo no come~o do ano, 0 prefeito deu sinais de que ensaiava uma aproxima~ao com 0 governo estadual, possibilitada, dizia-se, por suas boas rela~6es com Luiz Eduardo Magalhaes, que falecera ha pouco tempo. E ainda que Jabes tivesse garantido, pessoalmenre, a alguns membros do PT de Ilheus (que, lembremos, possula a vice-Prefeitura e participava da administra~ao municipal, ocupando alguns postos) que jamais apoiaria as for~as pollticas ligadas ao senador Antonio Carlos Magalhaes, seus aliados de esquerda, ptessenrindo que ele de fato 0 faria, passaram a ataca-lo no come~o de junho, quando, no dia 3,0 principal politico do PT de Ilheus publicou urn artigo no Diario da Tarde com duras crfticas ao governo Fernando Henrique Cardoso e ao projeto de reelei~ao do presidenre da Republica. No dia 6, 0 Informativo do Diretorio Municipal publicou urn panfleto inritulado "Que Vergonha! Jabes Traiu Ourra Vez!", acusando 0 prefeito de, apos se ter beneficiado da postura de oposi~ao a Antonio Carlos Magalhaes em 1996, estar "aderindo ao carlismo".29 Em seguida, quando 0 apoio ao governo estadual e a reelei~ao do presidenre da Republica foi finalmenre anunciado, 0 Partido dos Trabalhadores rompeu formalmenre a alian~a e exigiu de seus membros 0 abandono de todos os cargos que eventualmenre ocupassem na administra~o municipal. 0 vice-prefeito, que, ao \ado do unico vereador do partido, havia condenado as acusa~6es a Jabes, preferiu sair do partido (mesmo destino, alias, seguido pouco tempo depois pelo vereador) e permanecer no governo. Por outro lado, Moacir Pinho, que, como vimos, ocupava 0 cargo de gerenre de A~ao Cultural da Funda~ao Cultural de Ilheus, e que nao acreditava que Jabes apoiaria os governos estadual e federal, viuse obrigado a renunciar, junro com alguns membros do MNU local que ocupavam cargos de terceiro ou quarto escalao no governo municipal. Foi nesse momento tambem que 0 CEAC come~ou a aprofundar seus compromissos com 0 prefeito, com alguns blocos chegando mesmo a se apresenrar no comicio do presidenre da Republica, realizado em Ilheus no dia 21 de agosto de 1998. Este comicio, alias, foi, significativamenre, 0 primeiro da campanha presidencial e, de acordo com 0 Didrio da Tarde, teria reunido mais de 20 mil pessoas. No palanque, estavam 0 enrao presidente da Republica, 0

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governador da Bahia, 0 enrao senador Anronio Carlos Magalhaes, Jabes Ribeiro, Rubia Carvalho, Roland Lavigne e ourros aliados, ex-aliados, fururos aliados, inimigos, ex-inimigos e fururos inimigos. Simulraneamente, 0 CEAC dispos-se a participar da campanha dos candidatos a Assembleia Legislativa e a Camara Federal que apoiavam a reelei<;ao de Fernando Henrique Cardoso eo governo estadual, e reivindicou junto a Prefeirura 0 direito de indicar urn nome para ocupar 0 cargo deixado vago na Funda<;ao Cultural de Ilheus com a renuncia de Moacir Pinho - cargo ate hoje nao preenchido. Simuldnea e paralelamente a essas aproxima<;6es, Jabes Ribeiro tratava de articular candidaturas para as elei<;6es legislativas de 1998. Urn dos nomes era 0 de Rubia Carvalho, a ex-inimiga politica e, depois, aliada eleitoral, que assumira a Secretaria de Assistencia Social em 1997. Rubia, dizia-se, pretendia se candidatar mais uma vez a Assembleia Legislativa, como 0 fizera em 1994, quando se lanyara pelo PL e obtivera 4.593 votos no municipio de Ilheus (e quase nada fora dele). Em 1998, nao apenas a propria candidata, como a maior parte dos eleitores, pareciam acreditar que ela teria urn numero suficiente de votos para se eleger - em fun<;ao de seu papel nas elei<;6es municipais de 1996 e do cargo que ocupara no ultimo ano e meio. 30 Jabes, conrudo, preferindo outra solu<;ao, convenceu Rubia a lan<;ar seu nome para a Camara dos Depurados, deixando a AssembJeia Legislativa para Jorge Medauar. E embora 0 semanarioA Regido do dia 25 de maio noticiasse, em sua pagina 4, apenas que "Tucanos escolhem Rubia Carvalho como candidata a depurada federal", a manobra deu margem a uma interpreta<;ao que sustentava que, no fundo, 0 que Jabes pretendia era apenas a redu<;ao do numero de votos que seu arqui-rival, Roland Lavigne - candidato a reelei<;ao como depurado federal- obteria em Ilheus. Isso, evidentemente, teria rela<;6es com as elei<;6es municipais de 2000, quando - todos comentavam - os dois provavelmente voltariam a se enfrentar. o apoio do movimento afro-cultural ao prefeito nas elei<;6es nacionais de 1998 traduziu-se, concretamente, desse modo, no apoio a chapa montada parJabes, bern como aqueles que ele apoiava abertarnente: Fernando Henrique Cardoso, para a Presidencia; Cesar Barges, para governador; Paulo Souro, para senador; Paulo Medauar, para depurado estadual; Rubia Carvalho, para depurado federal. No caso desta ultima candidarura, 0 apoio era refor<;ado por algumas rela<;6es mantidas pela candidata com 0 movimento negro e, principalmente, pelo envolvimento direto de Gurita em sua campanha. Ocupando 0 cargo de chefe da Divisao de Esportes da Secretaria Municipal de Edu-

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ca~ao

de Ilheus, Gurita atuava abettamente como cabo eleiroral de Rubia e seu intermediario junto ao movimento afro-cultural da cidade. No dia 26 de setembro - cerca de uma semana antes das elei~6es, portanto -, Gurita dirigiu-se a casa de Marinho para confirmar 0 apoio a Rubia e para explicar alguns "mal-entendidos" que, segundo ele, vinham ocorrendo nas rela~6es com 0 movimento negro. Alguns militantes, que se apresentayam em aros eleirotais da campanha, itritados com 0 que consideravam urn atraso indevido em seus pagamentos, haviam procurado Marinho para que este transmitisse a Rubia seu protesro. A candidata respondera que Gurita setia o responsavel por esse "setor" da campanha, resposta que provocara algumas suspeitas de que Gurita nao estaria repassando 0 dinheiro recebido de Rubia para 0 pagamento dos grupos afro. Como lembra Herzfeld (1982: 648), roda "distribui~ao de culpa" possui uma "natureza publica ou social", e faz patte das rela~6es sociais mais cotidianas de qualquer comunidade. Em Ilheus, a culpabiliza~ao dos mais ptOximos e urn fenomeno poHtico facilmente perceptivel, funcionando tanto quando se imagina que aquele que ocupa uma posi~ao superior (presidente da Republica, governador, prefeiro, ou mesmo simples candidaro) nao est;! sendo realmente informando do que esta acontecendo (e por isso nao age para resolver a situa~ao), como quando se suspeita que aqueles que ocupam posi~6es intermediarias e mais proximas esrao agindo em beneficia proprio, e nao como verdadeiros intermediarios conectando inferiores e superiores. A chamada media~ao e, sem duvida, uma arte muiro diffcil de ser praticada. Ela exige, por urn lado, que algum tipo de rela~ao entre aqueles que 0 mediador deve por em contato efetivamente se estabele~a ou, ao menos, pare~a se estabelecer - sob pena de que se duvide de sua capacidade ou interesse em mediar. Por outro lado, entretanto, a media~ao exige tambem, e sempre, que urn contato direto entre os mediados jamais se estabele~a completamente - 0 que Faria com que a media~ao simplesmente perdesse sua razao de ser. Nesse sentido, toda media~ao e, simultaneamente, uma antimedia~ao, e rodo mediador e urn suspeiro potencial de estar atuando apenas para si mesmo. Na verdade, 0 uso conceitual do termo media~ao comporta urn problema basico, a saber, 0 binarismo para 0 qual inevitavelmente patece tender. Esse binarismo e responsavel por uma especie de miragem, uma terce ira margem do rio, na qual 0 mediador confortavelmente se instalatia.J1 No entanto, como demonstrou Graham (1997) para as rela~6es de poder no Brasil durante 0 Segundo Reinado, a estrutura clientelista (que se enraiza suposta-

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mente em processos de media~ao) e, na verdade, rriadica: alguem pede a alguem por alguem, e nao h:i nenhuma razao para considerar 0 termo medio como urn simples intermediario de uma rela~ao dual que seria mais importante. Enesse sentido que se pode falar na existencia de "tres elos" (idem: 304) e "dois niveis" (idem: 306) de clientelismo: "para baixo" (entre 0 que pede e aquele por quem ele pede) e "para cima" (entre 0 que pede e aquele a quem ele pede). Ainda que, de formas diferentes e evidentemente assimetricas, todos os envolvidos em rela~6es clientelistas sao prisioneiros uns dos outros (idem: 320-321), e estamos aqui certamente as voltas mais com uma forma de poder e urn modo de governar extremamente adequados para uma sociedade fina e rigidamente estratificada (idem: 15,64-65,272) do que com urn simples sistema ideol6gico ou cultural apoiado em valores tradicionais e hiedrquicos. Ora, no contexto do movimento negro de Ilheus, Gurita parecia representar bern 0 caso classico do mediador. Negro, morador da Conquista e com boas rela~6es com muitos militantes do movimento afro-cultural, ele, ao mesmo tempo, podia ser visto como alguem perrencente a outra "classe", uma vez que completara urn curso superior, trabalhava em diversas escolas freqUentadas pela elite local, relacionava-se com diversos membros dessa elite e jamais fora, de fato, militante do movimento negro. A!em disso, e como ja observei, estava envolvido com a politica desde 1992 (quando ingressara no PT de Ilheus), tendo se candidatado a vereador em 1996, pelo PTdoB, candidatura que, cerramente, seria repetida em 2000, desta feita pelo PSDB. Finalmente, era uma pessoa acessivel e estava sempre por perro - 0 que permitia, de urn lado, dirigir-se a ele sempre que se desejava solicitar algo, mas, de outro, tornava muito mais plausivel suspeitar dele e reclamar com ele do que aguardar urn dificil e improvavel acesso direto a pessoas socialmente tao distantes quanto a candidata Rubia Carvalho ou 0 prefeito Jabes Ribeiro. A visita de Gurita a Marinho tinha, pois, 0 objetivo central de explicar os "mal-entendidos" a respeito do repasse de dinheiro, bern como, para nao haver duvidas, de deixar com ele urn cheque pre-datado no valor de metade da divida, cheque que Marinho deveria descontar na data prevista, repassando 0 dinheiro para os militantes que se haviam apresentado na campanha de Rubia. Gurita esclareceu, assim, que os atrasos eram responsabilidade do comite eleitoral da candidata, e que ele, "simples intermediario", nao tinha poderes para dispor dos recursos. Ao mesmo tempo, fazia questao de sugerir que, caso eleita, Rubia cerramente nomearia urn assessor oriundo do movi-

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mento negro (muito provavelmente, insinuava, ele mesmo) e que, nesse caso, passaria a possuir algum poder pr6prio. Todo esse cemirio fazia com que as rela<;:6es entre os militantes negros e Gurita fossem extremamente ambiguas: de admira<;:ao, por ele "ter chegado onde chegou"; de desconfian<;:a, uma vez que poderia sempre estar agindo apenas em beneficio pr6prio; de emula<;:ao, ja que 0 lugar ou os lugares por ele ocupados pareciam profundamente compensadores e desejaveis. Marinho, por exemplo, parecia imaginar, quase silenciosamente, que 0 assessor a ser nomeado por Rubia poderia ser ele, nao Gurita - hip6tese que se rornava mais provavel caso este conseguisse sua elei<;:ao para vereador e que, talvez, explique, em parte, 0 relativo entusiasmo de Marinho por sua candidatura. Nessa mesma conversa, entretanto, urn dos irmaos de Marinho, Gilvan, procurou provocar Gurita de todas as formas. Sustentou que Rubia nao teria a quantidade de votos que ele anunciava, 25 mil apenas em Ilheus, 0 que, supostamente, garantiria sua eleis;ao para a Camara dos Deputados. Argumentando que esse numero era inatingivel- uma vez que 0 pr6prio Jabes Ribeiro obtivera cerca de 23 mil, em 1990, quando se elegera deputado federal, e que Rubia jamais alcan<;:aria uma vota<;:ao superior a de Jabes -, Gilvan insinuou que 0 prefeito estaria, na verdade, muito pouco preocupado com a elei<;:ao de Rubia, pretendendo apenas usa-la a fim de "tomar voros de Roland Lavigne". Sustentando que Rubia nao ultrapassaria a marca dos 15 mil voros, Gilvan propos a Gurita apostar uma caixa de cervejas, usando a quantidade de 20 mil votos como marca para 0 desafio. Rubia Carvalho, de fato, nao se elegeu: obteve 14.253 voros em Ilheus e 21.556 em rodo 0 estado, 0 que fazia dela apenas a decima colocada de sua coliga<;:ao. E, se a estrategia de tirar votos de Roland Lavigne era de fato verdadeira, os resultados nao pareceram muito animadores: em 1994, ele tivera 16.265 votos em Ilheus; e, em 1998, essa quantidade caira muiro pouco, para 15.534 voros - ainda que, no primeiro caso, sua vota<;:ao representasse mais de urn quarto dos votos validos do municipio, enquanto, no segundo, cerca de urn quinto. Isso deixou Gilvan extremamente orgulhoso de seu conhecimento da politica local, ainda que Gurita jamais tenha pago a aposta. Ainda na mesma conversa com Marinho e Gilvan, Gurita confessou sua dificuldade para votar em Jorge Medauar para deputado estadual, uma vez que 0 considerava "urn burgues". Da mesma forma, sentia-se constrangido votando em Fernando Hentique Cardoso, Antonio Carlos Magalhaes e outros, uma vez que sempre votara "na esquerda", tendo sido mesmo, como vi-

mos, urn dos fundadores do PT em Ilheus. Gilvan concordou, e contou que 276


estava ttabalhando na campanha de urn candidaro do PFL a deputado fedetal, aliado de Antonio Cados Magalhaes, cuja assessotia havia prometido a ele urn emprego em caso de boa vota~ao em Ilheus. Mas que, "oficiosamente", podia nos dizer que nao votaria nele porque "nao voro na direita". 0 problema e que, caso 0 candidato fosse eleito, ele poderia conseguir urn emprego cuja "qualidade" (ou seja, 0 valor do salario) dependia do numero de votos obtidos em Ilheus. Desempregado ha muito tempo, essa era uma oporrunidade dificil de desperdi~ar. Ap6s as elei~6es, Gilvan confessou que acabara mesmo votando no candidaro do PFL, em parte porque 0 emprego era tao fundamental que fez com que acredirasse ter que contribuir com seu pr6prio voro para a vit6ria do candidato; e, em parte, porque temia que, em sua se~ao eleitoral, nao aparecesse nenhum voro para a candidaro, a que, e claro, denunciaria sua rrai~ao. 0 restante de seus voros, contudo, teriam sido dirigidos para "a esquerda" e, alem disso, ele teria recusado usar urn carro com propaganda do candidaro no dia das elei~6es: "nao posso desfilar par ai com urn carro da direita, 0 que meu pessoal diria de mim?" Sartre (1973: 1.100) escreveu que a voro secrero pode ser considerado "0 simbolo de rodas as trai~6es que 0 individuo pode cometer para com os grupos de que faz parte". Creio que seria necessaria, contudo, precisar e arnpliar a alcance dessa profunda afirmativa. Em primeiro lugar, 0 carater realmente secrero do voro parece mais urn elemento de ret6rica politica do que uma realidade efetiva. De faro, evoca-se esse carater tanto para enaltecer a democracia representativa quanto para nao declarar abertamente 0 pr6prio voro. Na realidade, entretanro, as coisas sao urn pouco mais complicadas, e urn born cabo eleiroral e capaz de descobrir, com razoavel dose de precisao, quem deixou de votar como prometera que 0 faria. Por sua vez, os cabos eleirorais que nao se revelam capazes de obter a quantidade de voros que prometem aos candidaros a que estao ligados correm 0 risco de perder sua remunera~ao, e mesmo seu rrabalho. Alem disso, a cren~a difusa, mas rawavelmente bern disseminada, de que e sempre possivel descobrir como urn eleiror vorou cumpre, par si s6, uma importante fun~ao de conrrole - e e em parte a necessidade de difundir essa cren~a que leva os cabos eleitorais a anotarem, cuidadosamente, as dados dos titulos de eleiror daqueles que os procuram em busca de alguma "ajuda" na epoca das elei~6es. Da mesma forma, em 1998, quando 0 voro eletronico foi introduzido em Ilheus, corriam boaros de que ele permitia a identifica~ao do voro e, ate, de que uma fotografia do eleiror era tirada no momento em que apertava 0 botao de votar.

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Em segundo lugar, como rambem sugere Sanre, 0 voro secrero torna mais facil pacificar a propria consciencia quando urn eleitor sente que nio se comportou eleitoralmente como deveria. EPOSSIVei trabalhar para urn candidato e pedir uma grande quantidade de votos para ele; mas 0 voro pessoal e Intimo pode ser conferido a qualquer urn, permitindo assim conciliar convic~6es e deveres contraditorios, escolhas e necessidades antinomicas. Trata-se aqui, desse modo, de mais urn desses "double binds"32 de que estio repletas as democracias representativas e que, evidentemente, nio comprometem em nada 0 sistema, servindo, ao contrario, como uma das condi~6es de que seu funcionamento continuado nio represente jamais grandes riscos para a ordem estabelecida. voro tende a aparecer, assim, aos olhos dos eleirores, como a liniea ocasiio em que, de tempos em tempos, urn cidadio pode exprimir sua vontade politica; e, ao mesmo tempo, como algo insignificante, perdido no enorme conjunto de atos semelhantes. "Eu", dizia urn informante em Ilheus, "em rela~io ao eleitorado nio sou nada, urn pingo no oceano". 0 mesmo informante, por outro lado, considerava votar uma a~io dotada de importancia quase transcendente, sua lillica forma de participa~io politica. Da mesma forma, quando alguem quer enfatizar, em Ilheus, que jamais votaria em determinado candidaro costuma utilizar uma constru~io verbal caracreristiea: "se depender do meu voro, ele nio se elege de jeiro nenhum" ou "se faltar urn voro para ele se eleger e esse voro for 0 meu, ele nio se elege de jeito nenhum". Muiro importante e, ao mesmo tempo, desprovido de qualquer importancia, 0 voro secrero pode, assim, ser objeto de inumeras opera~6es. Em terceiro lugar, nio e apenas 0 cadter secrero do voro que nio resiste a uma investiga~io emogdfica: os outros dois atributos fundamentais que costumam ser empregados na defini~io do aro de votar tambem parecem ter a mesma sone, quando submetidos a esse tipo de investiga~io. Como demonstrou Daniel Gaode (1978), 0 celebre principio do one man, one vote e sempre, na realidade, infletido por uma especie de voro censidrio oculto, que depende do grau de investimenro do eleiror na politica, bern como de seu capital material e cultural. Marinho, por exemplo, funcionava como uma especie de conselheiro, buscando explicar que votar dessa ou daquela maneira nio levaria a nada, e que seria preciso votar de Outro modo a fim de que determinado objetivo Fosse atingido. Da mesma forma, Gilvan lamentava-se por nio ter "alcan~ado a epoca de minha avo: al sim eu teria sido eleiro e nio sairia mais, porque na epoca das elei~6es 0 terreiro vivia cheio de gente que vinha saber

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em quem votar".33 Eu mesmo, em 1998, me vi na situac;:ao de, meio voluntaria, meio involuntariamente, fazer com que algumas pessoas sustentassem que votariam em Lula nas eleic;:6es presidenciais porque "Marcia esra com Lula". Nao tendo votado par estar fora de meu domicilio eleiroral, nao seria, pais, de rodo incorrero dizer que votei tres au quatro vezes... Finalmente, a carater universal do voro tampouco e encontrado em estado puro na realidade etnogdfica. Em parte porque, como demonstrou Michel Offerle (l993a: 134-135, 145 34), a universalizac;:ao do voro tende a se deter na barreira das distinc;:6es tidas como "naturais". E ainda que estas, evidentemente, variem segundo as locais e as epocas, a faro e que determinadas categorias de pessoas (mulheres e escravos au, em outras sociedades e momentos, menores de idade e pr6digos) sao sempre formal e inevitavelmente exclufdas do direiro ao voro au do dever de votar. Assim, no caso brasileiro, embora a voro seja obrigat6rio para rodos com idade entre 18 e 70 anos (com excec;:ao de algumas situac;:6es especiais), e opcional para as que tern entre 16 e 18, bern como para aqueles acima dos 70. Ademais, as sanc;:6es pelo naocomparecimento as umas sao muito brandas, a que explica parcialmente a abstenc;:ao eleiroral. AJem disso, entretanto, e de urn ponto de vista mais substantivo, a suposta universalidade do voro esbarra no fato de que este atinge e interessa de maneira muito diferenciada a conjunto dos eleitares. Vimos como a fndice de abstenc;:ao eleitoral no municipio de Ilheus tende a ser bastante elevado: dos 104.135 eleitores apros avatar nas eleiC;:6es municipais de 2000 (e que ja representam, e claro, apenas uma parte dos 223 mil habitantes de Ilheus- em romo de 47% paraser mais preciso), 24.645 nao a fizeram, 2.241 anularam seus voros e 1.146 votaram em branco. Isso significa que 27% dos eleirores nao escolheram nenhum candidaro e, mais do que isso, que, na realidade, apenas 35% da populac;:ao escolheu efetivamente algum candidaro em 2000 - e somente 32% da populac;:ao nas eleic;:6es presidenciais de 2002. 35 E evidente que tudo isso pode ser explicado de muitas maneiras, seja invocando a grande contingente de eleirores residentes em zonas turais de diffcil acesso, as muiros migrantes que nao transferiram seus tftulos, au outra boa razao qualquer. Nada disso elimina, contudo, a importancia da observac;:ao de Guennifley (1994: 26) segundo a qual a contradi<;:iio entre a sentimento de necessidade de uma unidade transcendente do resultado eleitoral e a fata inelutavel da diversidade dos voros nao s6 e constitutiva da democracia representativa como toma mais compreensfvel que uma suspeita em relac;:ao ao sufragio e aos eleiros parec;:a consubstancial a esse sistema - a qual, nesse sen-

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tido, e como ocorre com a prisao na analise de Foucault (1975: 314-315), parece estar, desde seu nascimento, sempre em crise e exigindo rigorosas medidas corretivas. 36 AJem disso, tudo aponta, tambern, na dire~ao de uma falta de interesse muiro real, que revela que a suposta universalidade do voro, da mesma forma que seu carater secrero e igualidrio, perrence mais ao dominio dos valores ideais de cerra camada da popula~ao do que ao mundo real de qualquer uma delas. E era em fun~ao de tudo isso que, no campo, rornava-se realmente difici! acompanhar e levar a serio as inumeras analises eleitorais apresentadas nos meios de comunica~ao de massa em termos de "op~6es do eleirorado" por este ou aquele "programa" de candidaros, partidos ou coliga~6esvencedores, e assim por diante. Ap6s menos de urn mes acompanhando de perro como funcionava a institui~ao central da democracia representativa, era realmente dificil nao experimentar cerro ceticismo e, por vezes, cerra irrita~ao, com essas analises tao assepticas quanto idealistas, no sentido tecnico do termo.'?

NOTAS Como escreveu Almeida: "[... J a oposi<;ao entre bloeDs de trio [... J e as blocos afro e urn cerna recorrente. No carnaval de 1998, durante 0 desfile, 0 Dilazenze eorcou em conflito com urn trio que passava no sentido coonaria, pais este, possuidor de urn "som" mais forre, naa (eve a delicadeza de parae de toear" (Almeida 1999: 144, nota 24. Ver, cambem, Almeida

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2000: 144). 2 Nao era apenas nasegunda metade do seculo XIX, como demonstrou Graham (1997: 266267,277-278), que 0 grau de alfahetizac;.ao funcionava como criteria de distins:ao social. Mesma para liberar pequenos auxilios financeiros (em torna de R$ 500,00) para as blocos afro, a Prefeitura de Ilheus tern habito de exigir "urn projetinho", podendo, da mesrna forma, exigir urn relat6rio para depois do evenro. 0 fato de essas exigencias quase nunca serem cumpridas s6 serve para atestar seu carater de aparato simb61ico-politico, destinado a marcar distincr6es sociais, e nao de pretense mecanismo radonal que faria parte do sistema de adminisrracrao econ6mica das financras publicas.

Isso inclui, quando se trata de pessoas ffsicas, promessas verbais de pagamenro ap6s 0 evento visado e. no caso de pessoas juridicas, os cart6es de credito e os cheques pre-datados. Nestes casas, em geral. e preciso pedir a ajuda de parentes e amigos formalmenre empregados, ja que, em Ilheus, essa condicrJ.o nao significa apenas urn salario e uma carreira de trabalho assinada, mas uma conta banciria (com a possibilidade, perranto, de uso de cheques pre-datados) e. muitas vezes, urn CaftaO de credito, 0 que permite muitas estrategias de sobrevivencia. Ao conrrario do que as vezes se imagina, urn emprego formal e as decumenros a de vinculades nao tern apenas urn valor simb6lico. 3

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De acordo com Cambria (2002: 60), os membros do Dilazenze classificariam seu repert6rio em dois tipos de musicas: as "musicas-tema" - "desenvolvidas a partir de apostilas especialmente elaboradas para cada carnaval e [...] vinculadas aos temas escolhidos (que tratam sempre da tem:itica racial e da cultura negra) -, e as "musicas-poesia", que seriam "todas as musicas compostas em diferentes ocasi6es fora do carnaval". Pessoalmente, so ouvi falar das primeiras, todas as demais sendo definidas apenas por oposic:;:ao a estas.

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Bourdieu (1972: 221-224; 1996) foi provavelmente 0 auror que mais enfatizou 0 pape! do tempo nos processos de reciprocidade. Nao obstante, parece-me que ele companilha com a literatura sobre 0 tema cerra pobreza conceitual, 0 que acaba fazendo com que processos distimos sejam confundidos sob a mesma categoria. Do ponto de vista aqui adotado, ao contrario, divida, por exemplo, nao se refere a uma relac:;:ao estrutural que aquele que recebe algo de alguem necessariamente contrairia, mas a uma relac:;:ao possivel, cuja objetivac:;:ao depende de diversos fatores, entre os quais 0 tipo de transac:;:ao efetuada e, principalmente, 0 cararer simetrico ou assimetrico das posic:;:6es dos parceiros sobre diferentes eixos. A limitac:;:ao da abordagem de Bourdieu deriva, creio, de sua premissa em adotar urn ponto de vista sociologico quer dizer, extrinseco e superior ao dos nativos. Como observou Warren (2000: 275-276), em relac:;:ao anoc:;:ao de "capital cultural", seria necessario desenvolver uma "no<;:ao antropologica" da mesma, ou seja, uma noc:;:ao que levasse em conta aquilo que eefetivamente considerado pelos grupos estudados, nao apenas pelos setores dominantes da sociedade. 5

l

Kuschnir (2000b: 82) observou 0 mesmo fenomeno no Rio de Janeiro, onde batizado de "dividir 0 cargo".

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0

sistema e

Enquanto essa conversa se desenrolava na sala da casa de Marinho, na cozinha, Jacks argumentava com Sonilda, esposa de Marinho, que ela precisava convence-lo da necessidade de aceitar 0 "emprego". A catica era bern pensada: desempregado ha muitos anos, Marinho encontrava-se na delicada situac:;:ao de depender financeiramente da esposa - e isso em urn meio social no qual 0 papd de provedor e urn dos atributos masculinos por excelencia. No final, 0 amor-proprio de Marinho acabou sendo mais forte que a continua pressao da esposa para que aceitasse 0 "emprego". 7

Como observou Borges (2004: 71), na periferia de Brasilia, "ajudar" parece mesmo ser 0 papel fundamental de urn politico, em especial em todos os lugares onde "tudo emuito dificil". Que tudo continue dificil parece, portanto, algo estrategico. Por outro lado, como observou McCallum (1996: 212), em Salvador, a definic:;:ao da vida como uma "luta" contra as dificuldades parece parte das representac:;:6es de certas camadas sociais no Brasil.

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Essa narrativa foi construfda, em parte, com informac:;:6es obtidas dos membros do Dilazenze nos dias seguintes ao evento. Isso porque 0 estado ligeiramente embriagado do etn6grafo fez com que perdesse uma serie de nuanc:;:as dos acontecimemos.

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10 Assim uma Pombagira e definida no Tombency, bern como nos terreiros angola em geral. Neles, ecomum afirmar que, aparte 0 orixa principal ao qual se "penence", e dois ou tres outros, hierarquicamente subordinados, todos contamos, em nossas cabec:;:as, com urn "escravo" do orixa, seu Exu ou Pombagira, segundo os casos. Alem disso, espfritos de antepassados tambem comp6em a pessoa humana. as filhos-de-santo iniciados podem assim, ao menos em tese, ser possufdos por qualquer dessas entidades. Dona nza, por exemplo, pode ser possuida pela cabocla Jupira; Gilvan, pelo marujo Malandrinho; e assim por diante - e

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isso ainda que os espiritos dos mortos, em geral. nao devam possuir os humanos, sua aproxima\=ao servindo apenas como fonte de problemas e doenl.?s. Finalmente, pode-se tambem ser possuido pela "qualidade inf.mtil" dos orixis, oseres, que tambem sao componentes da pessoa e que tambem podem eventualmente possui-la (vet Goldman 1984; 1985a; 1990; 2003).

11 Tudo indica que esse ritual segue modelo estabelecido pelo He Aiye em Salvador (Agier 2000: 141-154). Nao creio, contudo, ao contra.rio do que sugere 0 autor, que seja posslvel reduzir esse rito de saida a uma forma de afirmalfao da identidade. Ainda que isso possa ser verdadeiro de urn ponto de vista extrinseco - assim como tambem 0 e 0 faro de que 0 rito organiza urn pouco as fortes emo\=oes que todos os participantes inevitavelmente experimentam -, 0 que os atores enfatizam 0 tempo todo e a necessidade magico-religiosa de purificalfao, protelfao e forl.? a fim de conseguir urn objetivo: urn belo desfile com a consequente vitoria final. E e dificil entender a necessidade de se acrescentar algo mais a esses proposiros tao daros e importantes. Ver Apendice VIII.

12 Composta porToinho Brother, que acahara de recuperar-se de uma longa enfermidade e voltara a compor para 0 Dilazenze. Toinho era trocador de onibus e havia frequentado apenas as primeiras series do eosino fundamental. Ao ouvir pela primeira vez Grito Negro, SUfpreendi-me com a verso de abertura e, sem pensar, argumentei que nao fazia sentido urn "ceu azul a hrilhar" em uma "noite de lua". Toinho respondeu que, na noite em que compusera a musica, pensara, justamente, que 0 ceu estava, mais do que negro, azul. Esta talvez seja a ocasiao de tentar me redimir urn pouco dessa imperdoavel grosseria pessoal e imelectual, prestando a devida homenagem ao maior compositor da Conquista, precocemente falecido, com pouco mais de 30 anos de idade. A linda letra de Grito Negro diz:

"Noite de lua, ceu azul a brilhar, urn canto ecoa Urn grito, urn lamemo sao soltos no ar Um grito de liberdade, e urn lamento de dor o canto mata a saudade, negro quilombola sua terra deixou Quem leva, me leva, que vamos ae, a levada e agora Quem leva, me leva, que vamos ae, rei Zumbi quilombola Vieram sendo escravizados, presos, marcados como animais Foram ate tonurados, mas nunca deixaram as seus ideais De igualdade e justi~, sem essa de sofreguidao Dilazenze hoje e 0 palco da negra luta de nossos irmaos Quem leva, me leva, que vamos ae, a levada e agora Quem leva, me leva, que vamos ae, rei Zumbi quilombola Olha negro essa luta tem a ver com voce, tenha mais consciencia pois voce tern muito a que aprender, rei Zumbi e quilombolas deram a sangue e a vida, Dilazenze e cultura, orgulho negro e tern sempre a salda Quem leva, me leva, que vamos ae, a levada e agora Quem leva, me leva, que vamos ae, rei Zumbi quilombola". 13 Almeida (1999: 154; 2000: 159) alude a emo,ao suscitada pdo desfile do Dilazenze e pot desfilar no Dilazenze. Ver Apendice VIII. 14 Almeida (2000: 73) observou urn membro do Dilazenze falando das "rivalidades" entre as bloeDS, "aludindo inclusive aos que reeorrem afeitil.?ria para prejudicar 0 Dilazenze".

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0 que the valeu uma crfrica explfcita de Moura (Moura eAgier 2000: 373-374). Ver, tambern, Vianna (2001). 16 MeSilla fazendo a ressalva de que a distio,!3.o eefetuada em "teemos somerrte descritivos", Deleuze e Guattari (1980: 549) sustentam que "agenciamentos seriais, itinerantes au territoriais", operanclo por meio de codigos poHvocos, sao capturados e convertidos em "agenciamemos sedent:irios, de conjunto au de Terra", que operam por sohrecodificac;ao.

17 Borges (2004: 59) lembra que Engels ja sublinhara que a propriedade atua como forma de retirar a liberdade de movimemo dos agentes, fixando-os e contribuindo para convene-los em trahalhadores. Em sua etnografia realizada na periferia de Brasilia, a autora observou como esse mecanismo funciona efetivamente, "amarrando" e "prendendo" 0 beneficiario de urn Iote aquilo que "ganhou" e, como se nao bastasse, fazendo com que se sima eternarnente grato aos doadores, votando neles sempre que necessario (idem: 163). 18 Em outro contexto, Paul Veyne (1987: 16). observa que, do ponto de vista da experi(~ncia individual das pessoas comuns, a realidade do Estado e dupla: "[...] as impostos a pagar, as multas de estacionamento, urn sentimento geral de obriga<;ao social, de dever, cujos limites com a moral propriamente dita permanecem incertos [...]. De outro lado, existe uma experiencia bern diferente, quando 0 Estado aparece por inteiro enos solicita de urn modo completamente diferente [...]. 0 Estado toma a palavra na televisao para urn di:ilogo com seus suditos, dialogo no qual sua prerrogativa, alias, e a de monologar".

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Como disse Dona lIza, ao mostrar-me a Tombency: "isto aqui e minha vida!".

Este e tambem, como vimos, 0 sentido da polemica mantida por Fry com Hanchard, abordada no Capitulo 4.

10

a

'1 Magalhaes (1998: 27) lembra que, em 1986, Oliven tambern se dedicou an:ilise da "apro-

pria<;ao e generaliza<;ao de manifesta<;6es culturais especificas de certos grupos para outros grupos sociais", encarando esse processo como "urn fenomeno peculiar da dinamica cultural brasileira". Ha evidentemente certo exagero aqui, ja que, desse ponto de vista, nao saberiamos muito bern 0 que fazer com 0 jazz, por exemplo. Alem disso, nao seria tao diffcil sustentar que simbolos dominados podem ser convertidos a posi<;ao de dominantes, porque, seguindo conhecidos procedimentos de "distinr;:ao", as elites manteriam seus pr6prios simbolos e valores fora do alcance dos demais grupos sociais. Deleuze e Guattari (1980: 268-269, 586-591) distinguem as conex6es revolucionarias das conjuga<;6es reterritorializadoras, e sustentam que e na imprevisivel varia<;ao entre am~as que a luta politica se distribui: "como isso vira fascista ou revolucionario" (Deleuze e G~attari 1972: 310).

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23 Ouvindo uma musica do lie Aiye com meus amigos de Ilheus, mostrei-me intrigado com o verso "a liberdade parece com a linha do Equador" (que, mais tarde, eu usaria como epigrafe de urn livro). Sugeri que ambas seriam imaginarias; responderam-me, primeiro, que as duas estao ai, s6 que ninguem as ve; depois, que, como a linha do Equador, a liberdade tambern tern que ser tra<;ada.

Sabre 0 cabodo, ver tambem Santos (1995). Para uma visao geral da captura da cultura negra baiana, ver Santos (2000).

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"Por essa razao, a politica pessoal que denominei 'resistencia', tao rica em simbolismo, metaffsica, pathos, humor e raciocinio terra-a-terra, merece seria aten<;ao" (McCallum 1997: 27-28).

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26 Pois,

como afirmou Christine Alencar Chaves (comunica<;ao pessoal), adesao nao significa necessariamente submissao.

27 As informa<;oes sobre esses munidpios vern, respectivamente, de Cedlia Mello (2003), Tomas Martin Ossowicki (2003) e Levindo da Costa Pereira Jr. (2005), que desenvolvem pesquisas nessas localidades.

28 "0 eleitor de quem se teme 0 embrutecimento ou a brutalidade, 0 excesso de paixao au a excesso de indiferen<;a, deve ser guiado, enquadrado, controlado" (Offerle 1993a: 139)

0 artigo e 0 panfleta foram respondidos, urn mes mais tarde, por uma nota da Prefeitura ("Ao Povo de Ilheus"), publicada nos jornais da cidade, e por urn panfleto do Diretorio Municipal do PSDB ("Nota ao Povo de Ilheus"), os quais, entre outras acusalfoes, sustemayam que a posi<;ao do PT seria tipica "das trevas da Idade Media, do nazifascismo, do stalinismo e demais regimes ditatoriais". 29

Em Ilheus, praticamente ninguem duvida que ocupantes de cargos publicos utilizem sua posilfaO para obter votos. Em 1996, ao constatarem minha agradavel surpresa com a elei<;ao para a Camara Municipal de uma mulher, negra e pobre, que trabalhava como merenCleira do municipio, meus amigos espantaram-se, riram e perguntaram se eu nao sabia que ela desviara a merenda escolar para poder distribuir cestas basicas em sua campanha.

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31 0 que faz, por exemplo, que missionarios possam ser considerados mediadores, quando e evidente que estao bern instalados sobre uma das margens do rio. As abordagens que, visando fazer da media<;3.o e do clientelismo urn tralfo cultural geral da sociedade brasileira, mencionam, como uma de suas manifestalfoes, 0 papel de Exu nos cultos afro-brasileiros deveriam levar esse exemplo a serio. Pois Exu parece, de faro, ser urn mediador, mas ao pe cia letra, uma vez que, desempenhada sua nmlfaO de colocar homens e orixas em comunicalfao, sai de cena. Missionarios, mediadores polfticos e outros, ao contrario, compoem sempre 0 terceiro vertice do triangulo dientelista isolado por Graham. De toda forma, ha uma extensa literatura sobre a quesrao da medialfao, e nao e meu objetivo aqui nem analisa-Ia, nem critica-la. Para urn uso criativo da no<;3.o em estudos de antropologia da politica, ver Kuschnir (2000a; 2000h).

Ver Goldman e Sanr'Anna (1995: 33-35). Como se sabe, com 0 conceito de double bind, Gregory Bateson procurou trazer aluz a estrutura dos processos de produlfao da esquizofrenia; ao mesmo tempo, sugeriu que esses processos estao igualrnente presenres nas "relalfoes normais" (Bateson 1972: 209), mais precisamenre, nessas complexas situalfOes em que duas "injunlfoes negativas" conflitantes sao acompanhadas por "uma injunlfao negativa terciaria proibindo a vitima de escapar do campo" (idem: 206-207). 0 que engendra esses estados em que "nao importa 0 que alguern fac;a, ele 'nao pode veneer'" (idem: 201). 32

Mesmo Dona Ilza, que nao se cansa de insistir na separalfao absoluta entre 0 candomble e a politica, reconhece que algumas pessoas "vern ao terreiro e perguntarn 'minha mae, corn quem a senhora esd? E com este? Entao e com ele que estoll tam bern"'. 33

34

Ver, lambem, Offerle (l993b).

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35 A isso devemos acrescentar 0 fato de que nem todos os que possuem 0 direito ao voto possuem, tambem, 0 de serem votados. 0 caso mais interessante, sem duvida, e 0 dos analfabetoS, que readquiriram 0 direito de votar- em carater facultativo, observe-se - apenas em 1988, mas permanecem inelegiveis (ver Porto 2000; 2002). 0 que, recentemente, fez com que juizes eleitorais decidissem aplicar testes de alfabetizac;ao em candidatos a cargos elerivos. Essa inelegibilidade dos analfabetos apenas acrescenta uma prova ao fato de que 0 princIpio abstraro da representac;ao polltica se encontra sempre infletido por diferentes variaveis sociopoHricas, e que as eleic;oes e sua regulamentac;ao continuam sendo ocasioes tao privilegiadas para a exibi¢o das diferenc;as e distinc;oes sociais quanto 0 eram no Brasil do Segundo Reinado (Graham 1997). 36 Urn dos temas preferidos de Machado de Assis, que, em diversas cronicas e obras ficcionais, divertia-se em imaginar as maquinac;oes destinadas a burlar urn determinado sistema eleitoral, aquelas voltadas para impedir a continuidade das primeiras por meio de correc;oes e reformas, e as novas maquinac;oes visando burlar 0 novo sistema, 0 qual deveria, assim, ser novamente reformado, e assim por diante (ver, por exemplo, "A Serenissima Republica"). Para uma apresentac;ao geral das posic;oes poHticas de Machado de Assis, ver Faoro (1974).

Baseado no principio de que tudo 0 que acontece durante 0 trabalho de campo deste faz parte, reproduzo no Apendice 11 uma "entrevista" enviada por escrito, em meados de agosto de 2000, ao Jornal da Cidadania, do Instituto Brasileiro de Anilises Sociais e Economicas (Ibase), que me havia encaminhado, porcorreio eletronico, algumas questoes relativas a"participac;ao politica dos jovens". 0 leiter observari, com certa facilidade, 0 estado de irritac;ao do antrop610go - 0 que talvez explique 0 fato de 0 jornal ter publicado apenas uma frase de tudo 0 que enviei.

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CAPfTULO

2004:

6

CANDIDATURA

Do ponto de vista de Matinho Rodrigues - bem como daquele de sua familia, de seu bloco e de pelo menos parte do movimento afro-cultural da cidade -, sua nomea~ao para administrador do Memorial da Cultura Negra de Ilheus significava 0 coroamento de uma trajet6ria, simultaneamente, individual e coletiva, que, finalmente, estaria recebendo 0 devido reconhecimento. Reconhecimento, em primeiro lugar, por parte dos poderosos da cidade, daqueles que a administram e nela "mandam", e que, quase sempre, sao "brancos". Acreditava-se, contudo, que esse reconhecimento por parte da elite seria estendido a todos os que nao fazem parte do movimento afro-cultural: os "brancos" em geral, mas tambem os nao brancos que pouca, ou nenhuma, rela~ao mantem com 0 movimento, bem como aqueles que participam exclusivamente do movimento negro poHtico. Ou seja, 0 reconhecimento se propagaria em ondas concentricas, que, partindo de Marinho, acabariam por envolver Ilheus como um todo - e mesmo pessoas e regi6es mais ou menos distantes da cidade. No entanto, ate mesmo onde 0 reconhecimento deveria ser mais espontineo - no drculo mais exclusivo, que compreenderia a familia nuclear e a familia extensa de Marinho -, 0 carater individual da conquista nao deixava de entrecruzar-se com sua natureza coletiva. Mais precisamente, se 0 merito de Marinho era, sem dtivida, pessoal, isso nao poderia fazer esquecer que seu sucesso era 0 resultado de redes de rela~6es em que ele sempre esteve envolvido, bem como dos grupos e movimentos de que participou. Nesse sentido, e claro que todos tinham certeza de que Marinho possuia obriga~6es para com as pessoas que faziam, ou haviam feito, parte dessas redes, grupos e movimentos, obriga~6es que, como todos sabem, os que atingem posi~6es mais elevadas tem 0 mau habito de esquecer. Marinho, entretanto, parecia ser 0 primeiro a reconhecer essa situa~ao, e isso antes mesmo de sua indica~ao para 0 Memorial: "Se eu consegui tuda issa, eu agrade<;a aa Oilazenze. Faram as trabalhas que ell fiz no Dilazenze que levaram a esse reconhecimento do meu nome. Entao,

eu agrade<;a sempre aa Oilazenze e tenha que retribuir aa Oilazenze. Se eu asslJ-mir mesma a gerencia administrativa do Memorial, euma vit6ria do Dila-

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zenzej se eu chegar la, e por causa do Dilazenze. E eu tenho certeza de que, eu estando la, a remunera'rao que eu vou ter vai ajudar muito 0 Dilazenze. Se eu

ja ajudo 0 Dilazenze sem ter nada, imagina tendo!"

o problema e que, se Marinho e os demais membros do grupo parecern, as vezes, conceber 0 Dilazenze como uma entidade quase transcendente, pairando acima dos individuos que 0 comp6em, em outras ocasi6es, 0 grupo tende a ser pensado como nao sendo nada aJem do somat6rio de seus componentes ou, mais precisamente, 0 conjunto dos membros da familia Rodrigues que participam mais diretamente do bloco, com 0 presidente - justamente Marinho - a frente. Concretamente, entretanto, na maior parte dos casos, 0 que se observa e uma curiosa misrura dessas duas concep~6es a respeito do Dilazenze. Assim, uma das cunhadas de Marinho protestou contra sua decisao de entregar a administra~o do restaurante do Memorial "ao Dilazenze", e nao a seu marido (e irmao de Marinho), dizendo: "rudo e 0 Dilazenze! Voce nao esta vendo que ele nao quer dar nada pra voce, que rudo eo Dilazenze, que 0 Dilazenze e quem sempre tern prioridade?" Outros irmaos de Marinho, mais ativos no bloco, argumentavam que 0 sucesso havia "subido para a cabe~a" do irmao, expressao sempre empregada quando se deseja sugerir que alguem teria esquecido suas lealdades basicas e estaria pensando apenas em si mesmo e agindo em beneficio pr6prio. Desse ponto de vista, Marinho nao estaria fazendo tudo 0 que a posi~ao que ocupava permitiria que fizesse pelos irmaos. A rea~ao, claro, consistia na suspeita de que essas crfticas nao passavam de ciumes, e mesmo de inveja, pelo sucesso do irmao, sentimentos que impediam que se compreendesse que 0 triunfo pessoal de Marinho era, ao mesmo tempo, 0 triunfo do grupo e que, inevitavelmente, beneficiaria esse grupo como urn todo. Por outro lado, e sem nenhuma duvida possivel, Marinho claramente experimentava a sensa~ao de urn sucesso pessoal. Repetia, com orgulho, que cosrumava ser parado nas ruas por pessoas desconhecidas, que desejavam cumprimenta-Io por algo que teria declarado em uma das repetidas entrevistas em radios que vinha concedendo; que os meios de comunica~ao insistiam para que comparecesse a diferentes programas; que urn jornallocal oferecera a ele uma coluna semanal destinada a divulgar 0 movimento afro-cultural de llheus (cinco artigos de uma coluna cada foram publicados entre 21 de outubro e 24 de novembro de 2003);1 que recebia diversos telefonemas de apoio a suas posi~6es, e assim por diante. Simultaneamente, Marinho argumentava saber que seu sucesso estava despertando ciumes e inveja, sentimentos que

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eIe dizia considerar normais em pessoas mais distantes, mas extremamente preocupantes quando se tratava de amigos pr6ximos ou, principalmente, de membros de sua pr6pria familia. De roda forma, esses conflitos manifestam uma propriedade sempre latente, uma especie de tensao estrutural nao apenas entre

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"grupo" e as "pes-

soas", como tambern entre grupos definidos de diferentes maneiras ou recortados em niveis segmentares distintos, e entre as pessoas que os comp6em, as quais igualmente se definem de diferentes maneiras de acordo com 0 pertencimento destacado em fun~ao do niveI segmentar em que se situam para uma reIa~ao espedfica. Assim, como observei no quarto capitulo, os membros de familias nucleares tendem a votar em conjunto e, muitas vezes, 0 fazem, em oposi~ao ou it reveIia da familia extensa, do bloco ou do terreiro. Mais do que isso, tudo indica que todas as vezes que os conflitos se acirram no plano da familia extensa, por exemplo, a solidariedade na familia nuclear tende a aumentar - e vice-versa, ja que esposos e filhos tendem a se sentir preteridos quando sup6em que seu conjuges ou pais se estariam dedicando de modo excessivo aos irmaos ou aos pr6prios pais. 0 mesmo e verdadeiro nas rela~6es com os demais grupos. Por urn lado, a familia nuclear parece funcionar como uma especie de prote~ao contra os problemas enfrentados no bloco ou no terreiro; por outro, protesta-se muito sempre que se imagina que alguem esta deixando sua familia em segundo plano para se dedicar ao Dilazenze ou ao Tombency com exclusividade. Finalmente, uma dedica~o tida por excessiva ao bloco pode ser reclamada tambern para 0 terreiro, e vice-versa. De modo an:ilogo, muitas vezes os projetos individuais entram em conflito com inscancias mais coletivas. No caso do Dilazenze, como demonstra Silva (2004: cap. 5), esse conflito costuma articular-se a partir da oposi~ao entre 0 bloco concebido como conjunto de artistas ou como entidade coletiva que, tambem, desenvolveria atividades artisticas (alem das culturais e sociais, por exemplo). As mesmas pessoas ora tendem para uma posi~ao, ora para a ourra, mas, no Dilazenze, essa dualidade sempre foi encarnada por Marinho, de urn lado - defendendo, em geral, posi~6es mais 'coletivistas' -, e por Ney e Gleide, de outro, partidarios de uma concep~ao mais artistica das atividades do grupO.2 Se Marinho foi 0 presidente do bloco por mais de quinze anos, Ney, seu irmao, foi 0 mestre de bateria, e Gleide, sua sobrinha, a core6grafa e principal bailarina, por mais de dez anos. Em diversas ocasi6es, Marinho sustentou que ambos andavam "de sapato alto" - imaginando-se superiores aos outros, fazendo cobran~as demais

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e nao dando nenhuma retribui~ao ao grupo - e afasrando-se de suas "raizes", o que Marinho considera 0 grande risco dos musicos e bailarinos afro. Por sua VeL, ranto Ney quanto Gleide pensavam que a administra~ao do Dilazenze poderia set rnais "profissional" e rnais "arrojada", au seja, voltacia para uma

maior expansao das atividades propriamente artisticas do grupo. Em 2003, Gleide mudou-se para 0 Rio de Janeiro em fun~ao de seu casamento, mudan~a que abriu a possibilidade de busca de melhores condi~6es para 0 desenvolvimento de suas extraordinarias habilidades como bailarina afro. Em Ilheus, Ney - cujas habilidades como percussionista nao sao menores - tratou de reativar 0 Sambadila, originalmente urn grupo de samba de roda composto por membros do Dilazenze, criado no come~o da decada de 1990 e praticamente desativado a partir de 1995. Ney pretendia, justamente, que 0 Sambadila se convertesse no carro-chefe do que supunha ser a voca~ao artistica do Dilazenze e, para isso, acreditava que a banda deveria ter certa independencia em rela~ao ao bloco - posi~ao, e claro, com a qual Marinho nao concordava em hip6tese alguma. Na verdade, as rela~6es entre Marinho e Ney - que sempre me pareceram urn misto de solidariedade fraterna, companheirismo no trabalho e rivalidade mais ou menos dissimulada - vinham se complicando desde meados de 2002, quando 0 primeiro decidira enfrentar sem treguas 0 presidente do CEAC, 6rgao do qual, lembremos, 0 segundo era 0 vice-presidente. De urn lado, Marinho sentia que 0 apoio de Ney a suas posi~6es nao era 0 que ele desejava, e 0 acusava, por vezes, de ser conivente com Jacks Rodrigues; de outro, Ney come~ou a demonstrar seu desejo de assumir as presidencias do Dilazenze e do pr6prio CEAC - pretensao em rela~ao a qual a posi~ao de Marinho oscilava entre a oposi~ao, a neutralidade e 0 apoio final (que de nada valeu, alias, uma vez que Jacks conseguiu ser reeleito). Ao mesmo tempo, Marinho sustentava que Ney se opunha a tudo 0 que ele planejava para 0 Dilazenze, dertubando ate mesmo sua proposta para 0 tema do carnaval2003. Enquanto isso, Marinho organizava as atividades do Memorial da Cultura Negra. 0 restaurante foi entregue ao Dilazenze (na verdade, e sua esposa quem 0 faz funcionar) ap6s ter sido atribui~ao do CEAC. A esposa de Ney, tambem membro do Dilazenze, foi "contratada" como secreraria do Memorial, e outras componentes do bloco como gar~onetes para as atividades das noites de sexta-feira, quando 0 Memorial e palco de apresenta~6es musicais. No inicio, estas foram abertas a todos os blocos afro, mas, progressivamente, o Dilazenze tornou-se 0 unico responsavel por elas - 0 que se acabou tornan-

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do mais urn foco de disputas entre os dois irmaos, ja que os musicos do Sambadila, que se consideram "artistas", estabeleceram algumas exigencias para se apresentar, exigencias que, do ponto de vista de Marinho (que considera 0 grupo parte do Dilazenze), seriam rotalmente descabidas. Apos 0 camaval de 2003, as coisas complicaram-se ainda mais. 0 complexo quadro de rela<,;6es, no qual se misturavam sentimentos de vaidade, orgulho, admira<,;ao e inveja, agravou-se quando Marinho foi diretamente incentivado por urn secrerario municipal - urn dos correligionarios mais antigos de Jabes Ribeiro e urn dos responsaveis pelo unico diario da cidade, 0 mesmo jomal em que Marinho publicava sua coluna - a lan<,;ar-se candidaro a vereador nas elei<,;6es municipais de 2004. Esse convite, lembremos, remonta ao processo de nomea<,;iio para a administra<,;iio do Memorial da Cultura Negra, quando 0 prefeiro teria insistido na importancia do movimento negro de Ilheus eleger urn vereador, e no faro de que Marinho seria 0 candidato ideal, por ser 0 unico capaz de unir os grupos negros e apresentar-se em uma candidatura consistente. Apos muita hesita<,;ao, Marinho aceirou 0 convite, filiandose ao PMN, partido de seu novo patrono politico. Nessa decisao, pesaram, sem duvida, certa cren<,;a na possibilidade de vitoria, 0 reconhecimento da importancia de urn vereador ligado ao movimento afro-cultural, urn pouco de orgulho por estar sendo convidado pelos donos do poder e urn temor meio difuso de que a nao-aceita<,;ao poderia implicar em sua demissao da administra<,;ao do Memorial, cargo de confian<,;a do prefeito, afinal de contas. Alem disso, seu patrono garantia que ele proprio seria candidaro a prefeiro, 0 que significava que nao disputaria votos com Marinho e, principalmente, que nao pretendia utiliza-lo como simples mula.

*** A ideia de uma candidatura aCamara Municipal oriunda do movimenro afro-cultural e, entretanto, e como ja observei, bern antiga, remontando ao menos a campanha de Gilvan Rodrigues em 1988. Em 1997, quando 0 CEAC se encontrava em processo de reestrutura<,;ao, Marinho ja dizia que "a inten<,;ao desse Conselho e brigar [...] por uma cadeira na Camara dos Vereadores, brigar por espa<,;os na politica tambem" (Silva 1998: 94-95). Entre 1998 e 2000, houve muitas conversas e debates em romo da possibilidade, importancia e necessidade de 0 movimento negro eleger urn vereador. E embora diversas pessoas, em diferentes ocasi6es, tivessem pretendido essa con-

路 I

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dic;ao, 0 faro e que 0 nome de Marinho sempre aparecia como urn dos mais adequados. Na verdade, desde 1998, a possibilidade de Marinho concorrer a urn lugar na Camara Municipal era eventualmente aventada, as vezes em rom de brincadeira, as vezes bern a serio. Assim, logo apos as eleic;oes nacionais daquele ano, ao ser procurado por uma vizinha que reclamava do barulho causado pelos ensaios carnavalescos do Dilazenze na hora de seu programa de televisao favorito, Marinho ouviua dizer que queria falar com ele porque alguem a havia avisado de que "Marinho manda na Conquista". 0 tom claramente exagerado e jocoso da afirmativa nao impediu que varios dos que testemunhavam a conversa proclamassem que ele deveria candidatar-se a vereador, e alguem chegou mesmo a dizer que ele, certamente, obteria mais votos que Gilvan, que, presente, nao deixou de demonstrar certo constrangimento. E mesmo que 0 rom dessas intervenc;oes ainda Fosse algo jocoso, alguma seriedade podia ser percebida por tras das brincadeiras. Entre as eleic;oes nacionais de 1998 e as municipais de 2000, 0 nome de Marinho como candidaro a vereador foi levantado, pelo menos, em mais duas situac;oes, por dois irmaos seus, os quais foram ora apoiados, ora censurados por outros parentes e amigos. Em rodas as ocasioes, 0 possivel candidato recusava-se, peremptoriamente, ate mesmo a discutir a possibilidade de se candidatar ou, mais precisamente, de "virar politico": "Ell acho que ell nao daria para ser polftico. Sou urn militante negro atuante,

brigo, enfrento qualquer coisa. Mas a politica e, assim, suja demais, e eu acho que nan reria sangue para suportar. Quando 0 cara se elege, ele se modifica, ele cai na

politica. Por exemplo, urn vereador do PCdoB, que tinha urn trabalho de porta de fabrica, urn cara realmeote militante, nas lutas, nas greves, ate que conse-

guiu se deger. Depois que estava deito, se modifieDu, se modifieDu tanto que esta sendo candidato aree1ei<;ao mas naa vai conseguir nada, porque ele se queimou

com todos os sindicatos, e se queimou porque quando chegou la, caiu na polirica. Entao, ell acredito muito nissa, na transformac;ao do cara com 0 poder".3

Ora, essa concepc;ao da politica como algo ao mesmo tempo poluido e poluente, capaz de afetar e transformar mesmo as melhores pessoas e, evidentemente, central nas relac;oes que 0 movimento afro-cultural de Ilheus mantem com os politicos em geral e com a Prefeirura em particular. Ela tambern e fundamental quando alguem muito proximo - parente ou amigo torna-se, ou pretende rornar-se, politico. Quando Marinho, alguns anos depois, aceirou candidatar-se a vereador, foi sua esposa que observou que ele,

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rapidamente, "esra ficando diferente", 0 que fazia com que ela temesse muito pela sorre de seu casamento caso 0 marido insistisse no ptojeto. A hist6ria do envolvimento de Gilvan Rodrigues com a polltica tambern e urn caso paradigmatico dessa rela~ao negativa com a polltica ou, para ser mais preciso, dessa rela~ao com a polltica definida como uma atividade essencialmente negativa. Gilvan, lembremos, e 0 outro filho de Dona Ilza, que, ao lado de Nidinha, tern 0 "dom" do transe, ou seja, e possuido pelos orixas e espiritos aos quais esta consagrado. Alem disso, e urn grande conhecedor do candomble e, ainda que esse ponto nao possa ser oficialmente adiantado, e tido por todos como 0 mais provavel sucessor de sua mae it frente do terreiro Ewa Tombency Neto! Finalmente, e tambem urn dos rres membros do sib de quatorze irmaos que conseguiram conduir 0 ensino medio. Entre 1978 e 1987, Gilvan trabalhou na Prefeirura de Ilheus, emprego obtido gra~as it interven~ao de Pedro Farias, pai-de-santo muito conhecido na cidade, que foi chefe de gabinete de diversos prefeitos. Em 1988, ap6s deixar seu emprego em meio a urn conflito com 0 entao prefeito Joao Lirio, Gilvan decidiu lan~ar sua candidarura a vereador pelo PSB. Alem de ter trabalhado na Prefeirura, contava, para ser eleito, com 0 apoio do movimento negro de Ilheus e, em especial, com 0 dos terreiros de candomble, ja que, com quase quinze anos de inicia~ao religiosa na epoca, e tido como 0 mais provavel sucessor de sua mae a frente do Tombency, ele era ainda 0 representante da Federa~ao Baiana de Cultos Mro-Brasileiros em Ilheus. Os 150 votos que obteve nao foram suficientes para elege-lo, mas a vota~ao foi considerada expressiva e teria permitido ao beneficiario continuar na polltica. Gilvan, entretanto, passou a acreditar que sua derrota se devia a falta de apoio justamente nos redutos de onde mais esperava votos, nos terreiros, nos blocos e, mesmo, em sua familia. De seu ponto de vista, teria sido justamente a falta de envolvimento efetivo dessa ultima em sua campanha que 0 teria feito desistir de se recandidatar com seriedade nas elei~6es subsequentes. Nao obstante, foi candidato em 1992, mas apenas, afirma, para ajudar a preencher a lisra de seu parrido, nao tendo obtido, por isso, nenhum voto ("nem 0 meu mesmo", como costuma dizer), ja que, como membro do movimento afro-cultural, apoiara a candidatura de Mirinho. Depois disso, voltou a se candidatar nas elei~6es de 2000 (quando obteve apenas 23 votos) como "estrategia", explica, visando lan~ar-se com seriedade e possibilidade de vitoria em 2004. Entre os paremes de Gilvan, comudo, a explica~ao para seu relativo fracasso eleitoral era urn pouco difereme. Dizem, mais ou menos aberramente,

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que, em lugar de garantir os voros que potencialmente possuia nos terreiros de candomble, no movimenro negro como um rodo e no bairro da Conquista, Gilvan - considerando que tais voros estavam "garantidos" - preferiu se dedicar ao "voro dos burgueses" (ou seja, da classe media branca da cidade), perdendo seu tempo de campanha com "pessoas que nem nos cumprimentam" e que, evidentemente, jamais votariam em um candidaro pobre e negro. Resultado: perdeu voros quase cerros e nao conquistou os que pretendia. Essa teria sido, na verdade, a razao pela qual, mesmo tendo votado em Gilvan ("meu voro foi dele porque e meu irmao"), boa parte de seus irmaos nao reria trabalhado em sua campanha. Gilvan afirma que as coisas se teriam passado de modo ainda pior, e que alguns de seus irmaos teriam trabalhado para ourros candidatos, que a eles ofereceram dinheiro, 0 que reria feiro com que muiros a quem pedia 0 voro respondessem: "mas se nem teus irmaos vao votar , ". com voce... De modo mais abrangente, e como ja observei, ao menos desde 1988, 0 movimento afro-cultural de I1heus vinha efetivamente tentando, ainda que sem sucesso, e1eger um vereador que 0 representasse. Nas e1ei~6es de 1988, como acabamos de sublinhar, Gilvan obteve uma vota~ao considerada boa, mas insuficiente para e1ege-lo. Em 1992, como tambem ja observei, Mirinho, 0 entao presidente do CEAC, conseguiu colocar-se como primeiro suplente de seu partido, tendo inclusive assumido 0 cargo em algumas ocasi6es. Em 1996, uma serie de candidaros dividiram 0 apoio do movimento negro: nenhum deles se e1egeu, ainda que Gurita tenha conseguido um mimero suficiente de voros para permanecer na vida politica como chefe de divisao ou subsecrerario municipal. Em 2000, Gurita voltou a tentar ocupar a posi~ao de representante do movimento afro-cultural; e, para 2004, cogitava-se precisamente na candidatura de Marinho Rodrigues. Essas tentativas mal-sucedidas do movimento afro-cultural de I1heus para eleger um vereador tendem, em geral, a ser interpretadas como fracassos derivados de raz6es de ardem puramente negativa. Em 1996, como vimos, Paulo Rodrigues considerava que a incapacidade de 0 movimento negro eleger um ou dois vereadores derivava de sua falta de consciencia e inabilidade politicas; 0 entao candidaro a prefeito Jabes Ribeiro sugeria que se tratava de falra de organiza~ao; Gilvan pensava que rudo nao passava de falta de experiencia politica; pessoas ligadas aos grupos negros - Gurita ou 0 proprio Marinho, por exemplo - argumentavam que essa dificuldade provinha das divis6es internas do movimento. Gutros poderiam ser tentados a supor que a dificulda-

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de em eleger urn represenranre esti, de alguma forma, ligada a pouca adesao que as 'camadas populares' tendem a apresenrar em rela<;ao a valores basicos da civiliza<;ao ocidenral, como 0 individualismo e a igualdade, valores que esrariam no cenrro das democracias represenrativas. Cada uma dessas inrerprera<;6es segue, e claro, as concep<;6es de politica e as preferencias pessoais dos inrerpretes, e rodas, sem duvida, apresentam algo de verdadeiro. No enranro, antes de apelar para grandes causas (falta de educa<;ao politica, compromisso de participa<;ao, adesao a belas ideologias etc.), parece mais interessanre idenrificar ao menos alguns dos mecanismos responsaveis pela produ<;ao desses resultados. Pois tais resultados parecem derivar de urn confronro enrre logicas sociais distinras, marcadas por uma assimetria de poder. Assim, a concep<;ao de politica adotada pela maior parte dos membros do movimenro negro de Ilheus - ao conrtirio do que ocorre com boa parte da classe dominanre e com os politicos em geral- associa essa atividade, como vimos, a algo poluidor, transitorio e transcendenre. Desse modo, pode-se ate mesmo chegar a considerar que a derrota de urn irmao em uma elei<;ao nao e urn faro inreiramente negativo, uma vez que a derrota tern, ao menos, a virtude de impedir que ele se rome "politico", ou seja, alguem que se imagina poftador de urn sem-numero de defeiros morais. Nesse senrido, ha uma coexistencia de sentimenros oposros, que faz com que pessoas e grupos possam, simultaneamenre, ansiar pela elei<;ao de alguem que os represenre e temer a irrup<;ao, em seu cotidiano, de poderosos mecanismos de hierarquiza<;ao. Mais urn "double bind', mais urn ponro de apoio para 0 funcionamenro dos sistemas politicos constituidos pelas democracias representativas. Apesar de rodas as raz6es negativas, permanece assim 0 fato de que 0 efeito positivo, ainda que nao inrencional, do que parecem ser simples carencias (de consciencia, organiza<;ao, experiencia, unidade ou ideologia) e a conjura<;ao do fantasma da desigualdade inrerna ao grupo - desde que se aceite designar "grupo" uma realidade multiforme e movel, segmentar, como vimos, que pode assumir a forma de uma familia, vizinhan<;a, bloco, movimento etc. Pois 0 problema, como demonstrou, enrre outros, Beatriz Heredia (1996: 6768), e que a inrroje<;ao da politica - que e, sobretudo, uma maneira de gerir rela<;6es entre desiguais - no seio de urn grupo que se concebe sob 0 signa da igualdade e sempre muito dificil. s Mais do que isso, como observei em diversas ocasi6es, uma serie de mecanismos de dilui<;ao de poder e continuamenre posta em a<;ao nos meios sociais de que fazem parte os militantes do movimenro afro-cultural de Ilheus.

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AMm de se considerar a politica algo exrerior, sujo e passageiro, pode-se "dividir os voros", no sentido de que, ao serem procurados por diferentes candidatos em busca de apoio eleitoral, chefes de familia, maes-de-sanro, dirigentes de blocos afro tentam determinar, com maior ou menor grau de sucesso, em que candidaros diferentes membros da familia, terreiro ou grupo cultural deverao votar. Pode-se, igualmente, 'dividir' voros no sentido de votar em alguem, pedir votos para outrem e trabalhar para urn terceiro, em ftm~ao das multiplas lealdades em que rodos sentem estar envolvidos ou da necessidade de dinheiro por muitos experimentada. E pode-se, tambem, apoiar, ajudar ou lan~ar muiros candidaros, por partidos diferentes, 0 que faz com que suas vota~6es, de alguma forma, anulem-se reciprocamente. Ora, essa resistencia em colaborar voluntariamente para 0 sucesso dos mecanismos de centraliza~ao do poder e essa recusa pratica em aceitar a introje~ao de mecanismos de hierarquiza~ao assemelham-se, sem duvida, ao que Pierre Clastres (1974; 1980) denominou "contra-Estado", esse conjunto de mecanismos que, nas sociedades "sem Estado", impedem a constitui~ao de urn poder central ou coercitivo. Mas e claro que nao temos nenhuma razao para supor que tais mecanismos funcionem apenas nas "sociedades primitivas", e devemos reconhecer que eles estao bern vivos entre n6s (ver Deleuze e Guattari 1980: 441-446; Lima e Goldman 2001: 308; Lima e Goldman 2003; Barbosa 2002). Nao obstante, e preciso evitar rodo romantismo e reconhecer 0 6bvio: que, em uma sociedade dotada de Estado, 0 funcionamento dos mecanismos contra-Estado pode, muitas vezes, contrariar sua pr6pria orienta~ao. Assim, no confronto entre 16gicas sociais distintas, marcadas pela assimetria de poder acima evocada, a resultante do choque entre concep~6es da politica moralmente negativas e moralmente positivas tende a se infletir na dire~ao das segundas, ou seja, a favor do Estado.

*** Os processos que acabaram conduzindo asua nomea~ao para 0 Memorial, entretanto, parecem ter abalado as resistencias de Marinho asua pr6pria candidatura, bern como algumas de suas convic~6es a respeito da politica: a divisao do movimento negro poderia, quem sabe, ser compensada pela for~a de seu pr6prio grupo e de sua familia; e a possibilidade de entrar na politica e "continuar sendo a mesma pessoa" foi sendo considerada cada vez mais plausive!. Esse processo, e claro, nao se deu de urn dia para 0 outro. Em agosto de

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2002, Marinho, em uma reuniao do entao candidato a depurado estadual, e irmao do prefeito, Joabes Ribeiro com representantes de alguns terreiros de candomble e com a recem-fundada Associa<;:ao dos Blocos do Sui e EJmemoSui Baianos (Abase), Marinho sustentou que "[...J 0 movimento afro-cultural de Ilheus tern urn projeto muito gtande, urn

projeta ambicioso. Potque e urn absurdo que Ilheus, uma cidade negra, nao consiga eleger urn vereador comprometido com 0 movimento negro. N6s nao teroos urn candidato que possa representar esse movimento, que fale em nome desse movimento, que fac;a esse movimento ser respeitado. Na epoca das eleier6es, varios candidatos sempre se intitulam candidatos do movimento negro

de Ilheus, mas nao e disso que estau falando. E que agora esse movimento esta maduro, esta mais experiente, para que saia uma candidatura de dentro dele mesma. 1sso nao quer dizer que seja fulano au beltrano, mas que seja uma can-

didatura que crescs:a dentro do movimento, que saia de dentro do movimento, discutida peIo movimento, que 0 movimento se engaje na campanha e consiga eleger urn vereador que tenha compromisso com 0 movimento. Porque 0

movimento negro hoje tern uma consciencia polftica muito melhor do que ha alguns anos, porque n6s aprendemos com 0 tempo, ganhamos urn pouco de experiencia. Nossa ideia, entao, e lan\ar urn candidato a vereador nas eleifYoes de 2004, candidato que, saindo do proprio movimento, tivesse seu apoio e que, caso fosse vitorioso, apoiasse esse movimento".

Na verdade, Marinho apenas repetia aqui em publico 0 que dissera um mes antes ao prefeito de Ilheus, quando este, concordando com ele, sustentara ser 0 pr6prio Marinho a unica pessoa capaz de reunir 0 movimento afrocultural em tomo de uma candidatura a vereador. Incentivo que, sem duvida, atingiu em cheio seu alvo: imediatamente ap6s essa reuniao, Marinho procurou sua familia para relatar 0 ocorrido, e todos se puseram imediatamente de acordo com 0 prefeito - ate mesmo sua esposa, que sempre fora extremamente refrataria a essa ideia, e seu irmao Gilvan, sempre interessado em lan~ar sua pr6pria candidatura. A partir desse momento - de alguma forma cumprindo sua selffulfilled prophecy segundo a qual a polftica modifica inevitavelmente as pessoas -, Marinho parece ter come~ado a comportar-se como candidato. Dizia que sua candidatura nao derivava de um desejo pessoal, mas de uma pressao dos grupos a que pertencia;6 que, uma vez eleito, seria 0 representante de todo 0 movimento negro, nao apenas de sua familia, bloco ou mesmo do movimento afro-cultural, e assim por diante. Ao mesmo tempo, tres irmaos e um cunhado decidiram organizar um "grupo polftico" a fim de cuidar de sua

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candidatura, e eu mesmo fui convocado por eles para nao permitir que 0 irmao desistisse da candidarura, bern como para trabalhar como "assessor" de sua campanha - afinal de contas eu estava "hi tanto tempo esrudando a politica de Ilheus...". o problema e que rudo isso se misturava, de modo complexo, it sucessao no CEAC e no Dilazenze. Atribuiu-se a Sergio Pereira, urn dos concorrentes de Ney na elei~ao para a presidencia do Conselho, a divulga~ao de uma suposta declara~ao de Marinho, que teria diro que, caso Fosse eleiro vereador, nao empregaria nenhum parente, uma vez que considerava essa atirude moralmente equivocada. Urn de seus irmaos, desempregado hi muiro tempo, questionou Marinho, que confirmou 0 boaro e ouviu que isso seria urn absurdo, pois ate 0 prefeiro da cidade "contrarou a familia toda". Alem disso, Marinho suspeitava, mais ou menos abertamente, que 0 incentivo dos irmaos it sua candidarura visava nao apenas a obten~ao de empregos como tambem afasti-lo do cargo de presidente do Dilazenze (aspirado por Ney) e, principalmente, daquele de administrador do Memorial (que e urn cargo de conf1an~a, exigindo a desincompatibiliza~ao), que ficariam, conseqiientemente, disponiveis para outrem. Pior do que isso, e como acontece tao freqiientemente na politica, a rea~ao dos suposros beneficiarios dos compromissos proclamadqs por Marinho (os membros de outros blocos ou organiza~6esnegras) foi de ceticismo, e nao compensou a indigna~ao autentica dos que se sentiam prejudicados (sua familia e seu bloco). Pois os membros dos outros grupos negros, afro-culrurais ou politicos, nao podiam acreditar que Marinho deixaria de beneficiar os grupos aos quais pertencia; ji seus irmaos nao podiam entender que ele nao as beneficiaria, e protestaram violentamente, certos, mais uma vez, de que 0

sucesso, de faro, havia "subido para a cabe~a" do irmao. Prova disso era, certamehte, a hesita~ao de Marinho em apoiar Ney para o cargo de presidente do Conselho das Entidades Mro-Culrurais de Ilheus, sob a estranha alega~ao de que, como administrador do Memorial, deveria comporrar-se de modo imparcial. Por fim, Marinho decidiu apoiar 0 irmao, e como, a essa altura, a imbrica~ao entre a sucessao no CEACI e a politica local ja se encontrava muiro adiantada, procurou urn secretirio municipal, que disse nao apenas estar muiro interessado nas elei~6es para 0 Conselho como disposro a "ajudar" 0 candidaro por ele apoiado. E claro que isso significava, concluiu, urn compromisso com uma candidarura consciente, nao 0 apoio fisiol6gico que determinado candidaro a vereador vinha aberramente dando it reelei~ao de Jacks Rodrigues. 298


o candidato em questao era a mesmo Alcides Kruschewsky, que, como vimos (Capitulo 4), havia sido levado par Jacks para as comemora~6es do Dia da Consciencia Negra em 2003. Utilizando como slogan "100% Alcides"que lembra imediatamente a inscri~ao "100% Negro", presente em camisetas e adesivos par todo a Brasil-, esse candidato, desde 2003, buscava obter a apoio do movimento afro-cultural e dos terreiros de candomble de Ilheus para sua elei~ao a Cimara Municipal. I Par outro lado, 0 secretario interessado em influir nas elei~6es do CEAC era um dos inumeros "pre-candidatos" que disputavam a indica~ao do prefeito para concorrer asua sucessao por seu partido. Ap6s oito anos afrente da Prefeitura de Ilheus, e ap6s ter eliminado ou afastado de seu grupo ou partido todos aqueles que, supostamente, poderiam adquirir for~a politica suficiente para amea~a-lo, Jabes Ribeiro encontrava-se, de fato, na dificil situa~ao de nao dispor de nenhum nome que apresentasse condi~6es de vit6ria nas elei~6es majoritarias. Ao mesmo tempo, era obrigado a equilibrar-se entre os "pre-candidatos", ja que cada um que nao fosse indicado poderia converterse em um inimigo politico capaz de pelo menos dificultar a elei~ao do nome escolhido pelo prefeito para sucede-lo. Assim, Jabes protelou essa indica~ao ate 0 ultimo momento, e acabou se decidindo por um nome tido pela maior parte dos ilheenses como eleitoralmente inviavel- 0 de Soane Nazare, um dos fundadores da Universidade Estadual de Santa Cruz, presidente da Universidade Livre do Mar e da Mata (Maramata),7 que jamais disputata um cargo eletivo anteriormente, e que agora, pelo PFL, comandava a coliga~ao Ilheus Nao Pode Parar. A oposi~ao, por outro lado, achava-se, desta feita, bastante dividida. A vice-prefeita Angela Maria Correa de Souza - que, dependendo da versao, recusou-se a ser candidata com 0 apoio do prefeito, ou foi por ele recusadalan~ou-se pelo PAN (a frente da coliga~ao Pelo Bem de Ilheus). 0 PT (liderando a coliga~ao Para Ilheus Mudar e Crescer) lan~ou 0 nome de Ruy Carvalho. Pelo PMDB, foi lan~ada a forte candidatura de Valderico Reis, dono da mais importante emissora local de radio (que ha muito fazia oposi~ao feroz a Jabes Ribeiro) e de uma grande empresa de transporte urbano, cuja concessao para operar em Ilheus fora recentemente revogada pela Prefeitura. Outros partidos, como 0 PSTU (Magno Lavigne) eo PCO (Antonio Correa), tambem lan~aram seus candidatos. Finalmente, e mais uma vez, Roland Lavigne era, tambem, candidato aPrefeitura de Ilheus. No entanto, em uma cutiosa e completa inversao do que ocorrera nas duas ultimas elei~6es, sua

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candidatura foi lan<;:ada pela presidente do PSDB (llder da coliga<;:ao Tou na Frente - sic), Rubia Carvalho, a mesma que, em 1996, lembremos, a fim de nao apoiar Roland, acabara aderindo a ]abes, que, agora, estava no PFL, partido do qual Roland, justamente, provinha. Enquanto isso, 0 PMN, partido no qual Marinho ingressara quando decidira aceitar 0 "convite" do prefeito para ser candidato a vereador, tambern passava por uma interessante transforma<;:ao. Deixando de ser controlado por urn dos principais e mais antigos aliados do prefeito, 0 partido passara a ser presidido por alguem que, como Alcides (tambem do PMN), pretendia igualmente candidatar-se a vereador e, para isso, buscava atrair 0 movimento afro-cultural para sua candidatura, investindo principalmente em Marinho Rodrigues, incentivando-o a tambern se lan<;:ar candidato e oferecendo a oportunidade de criar urn novo bloco em urn dos bairros mais pobres e populosos da cidade, onde 0 presidente do PMN pretendia justamente estabelecer sua principal base eleitoral. Marinho parecia muito interessado nessas possibilidades, mas tudo se complicou quando 0 PMN decidiu nao apoiar 0 candidato a prefeito indicado por ]abes Ribeiro e aderir acampanha de Roland Lavigne para a Prefeitura. De fato, a situa<;:ao de Marinho tornou-se delicada. Se, para se lan<;:ar como candidato a vereador, ele deveria deixar 0 cargo de administrador do Memorial ate 0 dia 3 de julho, qualquer anuncio anterior de apoio a Roland significaria, fatalmente, sua demissao do mesmo cargo. Os interessados em sua candidatura - seus irmaos, alguns amigos, 0 CEACI, 0 presidente do PMN e outros -, por sua vez, sugeriam incessantemente que ele renunciasse logo ao cargo, sendo que 0 ultimo chegou a insinuar que poderia pagar 0 equivalente a seu saHrio. Ap6s muita hesita<;:ao e muitas mudan<;:as de posi<;:ao, Marinho decidiu, finalmente, nao se candidatar a Camara Municipal. Para isso, contribulram, provavelmente, certo temor de se afastar do grupo de ]abes Ribeiro ap6s alguns anos de proximidade; urn pouco de medo de perder um emprego e urn salario que ha muito tempo ele buscava; a suspeita de que 0 PMN pretendia utiliza-lo como mula na elei<;:ao de seu presidente e de Alcides; a desconfian<;:a de que 0 presidente do CEACI (e talvez ate mesmo alguns de seus amigos e irmaos) estivessem, na verdade, interessados em substitul-lo na administra<;:ao do Memorial; e, talvez, minha unica contribui<;:ao como "assessor polftico" de sua curta trajet6ria polftica, pois, indagado diretamente, nao rive duvidas em responder que acreditava que ele nao deveria lan<;:ar-se candidato, uma vez que suas chances de elei<;:ao me pareciam praricamente nulas e que ele poderia vir a experimentar uma grande decep<;:ao.

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A decisao de nao concorrer a Camara serviu, ao lado da derrora df Ney nas elei~6es para a presidencia do CEACI - vencidas, mais uma vez, por Jacks Rodrigues com, diz-se, 0 apoio osrensivo de AIcides -, de combusrlvel para um novo agravamento das rela~6es no interior da familia Rodrigues. Ney passou a insisrir com mais for~a na necessidade de elei~6es no Dilazenze e no fato de que desejava a presidencia do bloco, posi~ao aparentemente apoiada pela maior parre da familia, que parecia acreditar que, ap6s ter obtido tudo 0 que obtivera, era chegado 0 momento de Marinho "abrir espa~os" ou "dar oporrunidade" ao irmao - 0 que, em linguagem dasrreana, pode simplesmente significar que ele parecia estar prestes a ter sucesso em um processo de acumula~ao de poder tido como ilegitimo e que era necessario bloquear. Marinho aceitou nao concorrer a reelei~ao, mais tarde lan~ou uma chapa e, finalmente, retirou-a, permitindo a Ney concorrer como candidato unico. Eleito no dia 17 de julho de 2004, Ney tomou posse no dia 28 de agosto; eleito no dia 13 de abril do mesmo ano, Jacks Rodrigues fora reempossado no CEACI no dia 13 de maio. Ja as elei~6es municipais de Ilheus em 2004 foram bem mais conturbadas do que de costume e sua analise detalhada deve ficar para outra ocasiao. Limito-me, pois, a destacar alguns pontos mais relevantes. Dos 117.659 eleitores, 92.752 comparecerarn para votar, com umaabsten~ao de 21,17%. Nas elei~6es proporcionais, houve 1,29% de votos em branco e 2,50% de nulos. o candidato a vereador mais votado obteve 2.220 votos, e 0 eleito menos votado (AIcides Kruschewsky, do PMN), 1.082 votos. Nas elei~6es majoritarias, entretanto, a vota~ao do candidato que, supostamente, liderava todas as pesquisas de opiniao, Valderico Reis, do PMDB, foi provisoriarnente anulada: embora muito pouca gente soubesse disso antes das elei~6es, 8 sua candidatura achava-se sub judice em fun~ao de aparentes irregularidades com 0 candidato a vice-prefeito em sua chapa. Desse modo, inicialmente, os votos dados a ele foram contados, mas nao divulgados, aespera de um pronunciamento final da Justi~a Eleitoral. Mais tarde, divulgou-se que Valderico obteve algo em tomo de 34.739 votos, bem mais, porranto, que os 22.472 de Ruy Carvalho, do PT, 0 mais votado entre os demais candidatos. Soane Nazare, do PFL, candidato do prefeito Jabes Ribeiro, nao passou dos 9.609 votos e ficou em terceiro ou quarto lugar, dependendo do julgamento do caso Valderico. Roland Lavigne, do PSDB, ainda obteve quase quatrocentos votos, ainda que, menos de um mes antes do pleiro, tenha renunciado a sua candidatura, dedarando apoio ao candidato do PT - fato que, de alguma forma, completava a dan~a de alian~as eleitorais em Ilheus: em 1996, 0 PT 301


ficara com Jabes contra Roland; em 2000, fizera oposi<;:ao a ambos; e, em 2004, Roland juntou-se ao PT contra Jabes. No dia 1 de janeiro de 2005, Valderico Reis foi empossado como prefeito de Ilheus, mas, ao menos ate maio, um recurso movido pelo PT, pedindo a anula<;:ao de sua elei<;:6es com a conseqUente posse de Ruy Carvalho, continuava a tramitar nos tribunais superiores, em Brasilia. Como parte das conseqUencias desses resultados, Marinho Rodrigues deixou a cargo de administrador do Memorial da Cultura Negra de Ilheus; a pr6prio Memorial foi, na pr:itica, desativado e, finalmente, despejado par falta de pagamento pelos propriedrios da Associa<;:ao Desportiva 19 de Mar<;:o; a carnaval de 2005 foi realizado como micareta em abril; as blocos afro receberam pouquissimos recursas da Prefeitura e foram obrigados a desfilar reunidos em duas grandes levadas, perante urn publico muito pequeno e sem a presen<;:a de nenhuma autoridade municipal.

*** Os elementos presentes nessa trama - sucesso, orgulho, acusa<;:6es de ciume e inveja, par urn lado; surpresa, indigna<;:ao, acusa<;:6es de presun<;:ao e soberba, par outro - nao apenas conduziram as tens6es entre pessoas muito pr6ximas a urn ponto quase insupordvel, como desenharam uma possivel solu<;:ao para a caso. Em urn universo em que as rela<;:6es familiares sao fundamentais e a candombJe faz parte da vida mais cotidiana, era de fato mais au menos 6bvio que a diagn6stico acerca de tudo a que estava acontecendo se dirigisse para a obscura regiao do olho grande, dos feiti<;:os e do mau-olhado. Finalmente, tudo explodiu em uma reuniao com a Sambadila, a qual visava justamente tentar resolver as problemas relativos as apresenta<;:6es do grupo no Memorial. Marinho atribuiu as desentendimentos a uma inaceitavellista de exigencias apresentada pelos musicos; estes, ao contdrio, sustentaram que Marinho teria sido extremamente gtosseiro, chegando mesmo a tentar "humilhar" urn de seus irmaos, que, surpreendentemente, dado seu conhecido temperamento explosivo, nao teria reagido, apesar das ofensas. No sabado subseqUente, Marinho conduziu, no Mem~rial, uma reuniao do Dilazenze. Ao final da reuniao, de forma totalmente inesperada, entregou uma carta de renuncia a presidencia do grupo, e ptoclamou que dali em diante as problemas existentes nao eram mais de sua al<;:ada e que quem quisesse que as resolvesse. Ney - que no infcio da reuniao sustentara a necessidade de elei<;:ao de uma nova diretoria sem receber resposta - protestou veementemente,

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argumenrando que aque!e nao era 0 modo de conduzir uma sucessao. Alguem sugeriu que Marinho consriruisse uma comissao e!eiroral, da qual e!e pr6prio parriciparia, mas sua resposra foi inreiramenre negariva. A jusra compreensao do que se seguiu exige, inicialmenre, que lembremos que 0 Dilazenze e um bloco afro ligado nao apenas a uma familia, mas a um rerreiro de candomble. Mais do que isso, essa liga~ao e, e!a mesma, esrabe!ecida de acordo com regras re!igiosas. De acordo com Dona Ilza, a cria~ao do bloco resulrou, em parre, da vonrade dos orixis, e foi e!a quem escolheu seu nome, romado de empresrimo a Hip6liro Reis, 0 africano quecomo observei no segundo capirulo - reria sido 0 responsive! pe!as primeiras obriga~oes re!igiosas do rio e da mae de Dona Ilza. Um dos mais imporranres anrepassados do Tombency, 0 espiriro de Hip6liro foi consulrado no jogo de buzios e permiriu que sua dijina (nome pelo qual 0 fie! do candomble passa a ser conhecido ap6s sua inicia~ao) Fosse urilizada a fim de barizar 0 recemcriado bloco. 9 Para isso, uma serie de riruais foram realizados, os quais colocaram 0 Dilazenze sob a prote~ao de Xango (0 orixi de Hip6liro Reis) , associaram indissoluve!menre os "fundamenros" re!igiosos do bloco e do terreiro lO e estabe!eceram que Marinho Rodrigues deveria ser 0 !ider do grupo por sete anos. U ma nova consulta aos buzios fez com que, um ano anres de se encerrar, a "missao" de Marinho, como e chamada e pensada sua lideran~a no Dilazenze, Fosse prolongada por mais sete anos - praw que deveria encerrar-se em romo de 2002, mas que em decorrencia da prorroga~ao deveria terminar apenas em tomo de 2008. Isso significa que Marinho jamais poderia renunciar unilateralmenre a presidencia do bloco, uma vez que sua substitui~ao exigia complexos riruais e, principalmenre, a permissao dos espiriros dos morros, principalmenre 0 de Dilazenze Malungo, ou seja, Hip6lito Reis. Esse argumenro, na verdade, fora utilizado, ao longo dos anos, rodas as vezes que Marinho amea~ava, por um motivo ou omro, deixar a lideran~a do bloco. Por outro lado, e!e tambem 0 utilizava quando senria que alguem tinha pretensoes ao cargo - como aconrecia, naque!e momenro, com Ney. De roda forma, e em cerro senrido, rudo era possive!, uma vez que as missoes atribuidas aos humanos pe!as divindades e espiriros ancestrais podem ser modificadas, desde que seja obtido o consenrimenro dos morros e dos deuses, bem como realizados os trabalhos rituais apropriados. A renuncia de Marinho e os confliros que a teriam originado estavam, porranro, enredados em uma trama em que se misruravam re!a~oes familia-

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res, ambi~6es poliricas e dimens6es de ordem mistica. Pouco antes da renuncia, Eliana Vieira, uma mo~a que fazia patte do grupo de dan~a do Dilazenze e que passou a residir na casa dos Rodrigues (desempenhando algumas fun~6es domesricas que se esrendiam, por vezes, a trabalhos do terreiro), procurou Dona Ilza - que insistiu no fato de que ela nao possuia qualquer envolvimento com os acontecimentos - e, muito preocupada, contou a ela que havia sonhado com duas coisas muito esrranhas. No primeiro sonho, sentia um cheiro muito forte e acabava descobrindo que, em cima do teto do barracao do terreiro, havia restos de animais mortos, cachorro, gato e bode, todos pretos, restos envoltos em nuvens de moscas e exalando um terdvel odor de morte. No segundo sonho, via a orixa principal de Gleide, Jansa, dan~ando e, com sua espada, impedindo 0 avan~o de uma Pombagira que, supostarnente, seria sua pr6pria "escrava"; ao mesmo tempo, a Pombagira era a~oitada com um cip6 de caboclo por um dos ogas da casa. Mae-de-santo muito experiente, Dona Ilza suspeitou a existencia de uma mensagem atras desses sonhos. Poucos dias depois, bem cedo pela manha, quando cochilava ap6s uma noite mal dormida, ouviu por tres vezes uma voz que dizia a ela para "ir ao jogo", ou seja, para jogar os buzios a fim de descobrir 0 que estava ocorrendo. Na terceira e ultima vez, a voz foi acompanhada pelo perfume do charuto que sua mae costumava fumar. No jogo de buzios que se apressou a lan~ar, sua cabocla revelou a existencia de uma terdvel trama destinada a destruir 0 Dilazenze e, talvez, ate mesmo 0 terreiro e a familia Rodrigues. Dona Ilza preferiu nao revelar a seus filhos os detalhes da hist6ria, limitando-se a advertir que 0 Memorial estava muito "carregado" de influencias malignas e que um ritual de "limpeza e descarrego" era estritamente necessario. Logo que chegaram ao local para realizar 0 rito, todos sentiram a intensidade das for~as negativas ali presentes, a tal ponto que uma das oficiantes se sentiu muito mal e teve que ser socorrida. Aparentemente, a pr6pria galinha urilizada como veiculo para a absor~ao dessas for~as nem mesmo chegou a ser sacrificada, tendo morrido antes, em fun~ao da quantidade de males que absorvera. Essas interven~6es sobrenaturais pareciam ter acalmado um pouco 0 ambiente, e Marinho concordou em adiar sua safda da presidencia do Dilazenze para depois do carnaval. Uma semana mais rarde, contudo, uma nova lista de exigencias apresenrada pelos membros do Sambadila provocou outra rea~ao violenta de Marinho, que, mais uma vez, teria sido muito grosseiro

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com urn irmao. De volta it Conquista, os dois desentenderam-se diante da mae, e urn terceiro irmao proclamou que, na medida em que Marinho vinha tratando a todos como inimigos, a partir daquele momenta nao deveria mais se considerar seu irmao. Em meio aos gritos, choro e emoc;;ao generalizados, a cabocla de Dona Ilza a possuiu e, ap6s entoar cantigas de candomble que falam das relac;;6es entre irmaos e entre filhos e pais, tratou de explicar a todos o que estava, de fato, acontecendo. No segundo sonho de Eliana, a Pombagira que se apresentava como escrava da Iansa de Gleide era, na verdade, urn Exu maligno que a orixi e 0 oga tentavam impedir de se aproximar do grupo e destrui-Io. 0 primeiro sonho, por sua vez, significava que trabalhos e feitic;;os vinham sendo realizados, eo jogo de buzios, finalmente, revelara a identidade dos envolvidos. Uma "mulher de torso grande" seria a responsivel por urn terr/vel feitic;;o destinado a destruir 0 Dilazenze. II Esta mulher seria, na verdade, uma mae-de-santo que tambern participava do movimento afro-cultural, estando, portanto, sempre presente nas reuni6es e encontros realizados no Memorial. 0 jogo de buzios revelou ainda que ela teria mesmo lanc;;ado urn desafio a Dona Ilza: "quero ver a forc;;a dessa mae-de-santo agora que a santa foi embora e que os outros dais van se desentender". A "santa" era Gleide, que, como vimos, mudara-se para 0 Rio de Janeiro; "os outros dois" eram Marinho e Ney, e os tres em conjunto representavam os pilares sobre os quais 0 Dilazenze se alicerc;;ava. Em outros termos, a mae-de-santo estaria tentando enfeitic;;ar os irmaos, jogando-os uns contra os outros, com 0 objetivo final de destruir 0 Dilazenze. Objetivo, claro, compartilhado por outros grupos, invejosos do sucesso do bloco e que, porranto, seriam cumplices da feiticeira, ou, no minimo, agentes do mau-olhado, que, suscitado pela inveja ou olho grande, produziria danos compariveis ao dos feitic;;os. Na verdade, os dois processos nao eram apenas cumulativos, mas tambem complementares, e a cabocla advertiu que 0 dirigente de urn bloco afro, relativamente pr6ximo ao Dilazenze, seria 0 principal transmissor do feitic;;o. Mesmo que ele atuasse involuntariamente, sua inveja e cobic;;a 0 transformavam no veiculo ideal para que 0 feitic;;o Fosse capaz de atingir pessoas muito protegidas, ji que iniciadas no culto e, alem disso, filhos carnais de uma poderosa mae-de-santo. Alem disso, 0 feitic;;o teria abalado a "aldeia dos mortos", pois, como vimos, 0 Dilazenze esti ligado aos eguns e de urn deles recebeu seu nome. Abalara, tambem, a pr6pria Dona Ilza, que nao estaria mais resistindo aos

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desentendimentos entre as filhos e que, advertiu a cabocla, "s6 esta de pe porque eu estou segurando"; no entanto, se todos continuassem a agir da mesma forma ease desentender, a espirito afastar-se-ia e eles poderiam vir a perder a mae. Antes de promover uma reconcilia~aoentre todos e, principalmente, de obrigar Ney e Marinho a se abra~arem, a cabocla ainda anunciou que estivera presente na discussao entre ambos e que fora ela que impedira a primeiro de revidar fisicamente a agressao verbal do segundo. Finalmence, antes de deixar a corpo de Dona Ilza, a espirito prescreveu alguns rituais a serem realizados e, em especial, alguns comportamencos a serem adotados au evitados, sendo que a principal deles deveria ser a evita~ao do transmissor do feiti~o. Evita~ao a ser efetuada com cuidado, pais, afinal, este nao era incencionalmence responsavel pelo mal que vinha mais transmitindo do que causando. De toda forma, seria importance reduzir as rela~6es com ele ao minima e, principalmence, evitar ficar de costas para ele. A1guem lembrou, encao, que a transmissor nao apenas estava presence it violenta discussao entre Ney e Marinho, como estava constantemente seguindo a ultimo em suas atividades no Memorial, au seja, "vivia nas suas costas".

A emocionada reconcilia~ao dos irmaos diante da cabocia, assim como as rituais e comportamentos par ela prescritos, certamente serviram para aliviar um pouco a tensao quase insuportavel que se estava vivendo, mas nao foram suficientes para acabar com ela au com suas causas objetivas. A pr6pria Dona Ilza, alias, advertira que as divindades e espiritos s6 podem preparar a terreno para a comportamento correto dos homens, mas que, se estes nao agirem adequadamente, nada pode ser resolvido. Em outros termos, creio que a demonstra~ao etnogr:ifica de Evans-Pritchard- segundo a qual a bruxaria au a feiti~aria convivem perfeitamente com as mais corriqueiras no~6es de causalidade ffsica - pode, sem duvida, ser estendida para determina~6es de ordem social au psicol6gica. Afinal, ninguem imaginava realmente que a feiti~o lan~ado contra a Dilazenze Fosse a causa de sentimentos e a~6es que, na verdade, ele se limitava a agregar, amplificar e direcionar. 0 que significa, tambem, que a fato de saber que uma pessoa esta agindo de determinado modo porque foi enfeiti~a nao anula, necessariamente, as desconfian~ em rela~o a ela, nem funciona, automaticamente, como prova de sua inocencia ultima. o Dilazenze e, ate certo ponto, a Tombency e as Rodrigues, pareciam, assim, amea~ados tanto par uma serie de manipula~6es intencionais efetuadas par uma agente maligna consciente, quanta par for~as negativas emanadas, involuncariamente, par pessoas que, na verdade, invejavam a sucesso do blo-

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co. Em outros termos, rudo se passava como se feiti~aria e bruxaria - no sentido dassico definido por Evans-Pritchard a partir das praticas e concep~6es zande - confluissem para amea~ar 0 grupo, 0 terreiro e a familia. Na verdade, entretamo, a situa~ao era ainda urn pouco mais complexa. Havia, certameme, uma feiticeira; e havia, igualmeme, aqueles que conduziam seus feiti~os ate urn alvo dificil de ser atingido. De fato, como observou FavretSaada (1977: 219-226), esse processo pelo qual urn feiti~o e conduzido ate suas vitimas pode ser obra do proprio feiticeiro ou de urn conduror "involuntario" (idem: 222) ou mesmo "rebelde" (idem: 225). No caso por ela estudado no Bocage frances, 0 papel de conduror parece darameme determinado pelas rela~6es de paremesco e pela proximidade familiar daquele que conduz em rela~ao ao feiticeiro, 0 primeiro sendo, em geral, filho do segundo e devendo sofrer graves conseqiiencias quando tema furtar-se a missao atribuida pelo pai. Em Ilheus (e talvez em ourras partes), comudo, 0 papel de conduror (mesmo involumario ou rebelde - ainda que esse ultimo caso jamais tenha surgido empiricameme) parece, ao comrario, depender de qualidades imrinsecas aos semimemos experimemados pelo condutor do feiti~o em rela~ao a seu alvo. Mais precisameme, e sempre a inveja que pode predispor mesmo 0 mais bem-imencionado dos amigos a servir de transmissor de for~as malignas e destrurivas. Se acrescemarmos a isso 0 fato de que a inveja (ou o "olho grande") tende a ser concebida como urn semimemo involumario, e que pode, ate certo pomo, produzir por si s6 efeiros negativos (tratando-se, emao, do "mau-olhado"), poderiamos conduir que, de faro, uma modalidade de feiti~aria conjugava-se com determinada variame de bruxaria a fim de atacar aqueles cujo sucesso se deseja, ao mesmo tempo, impedir e alcan~ar. Em outros termos, a inveja parece ser 0 minimo denominador comum de uma serie de praticas que vao da pura cobi~a ate 0 feiti~o mais expliciro, passando pela hostilidade nas rela~6es pessoais, pelo mau-olhado e pela bruxaria. Alem disso, comudo, a inveja permite seguir uma pista que pode conduzir a uma rela~ao mais geral emre dominios usualmeme concebidos como distimos, mais precisameme, paremesco, religiao e politica. Para isso, e preciso inicialmeme, e mais uma vez, seguir Jeanne Favret-Saada e admitir que 0 que esd em jogo na feiti~aria nao e, nem de longe, a racionalidade ou irracionalidade da sirua~ao ou dos envolvidos, mas "essas situa~6es nas quais nao ha lugar para dois" (idem: 212).'1 Em seguida, devemos admitir que a inveja e, sem duvida, 0 semimenro adequado a essas sirua~6es, uma vez que nelas, por defini~ao, e 0 faro de que

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ocupo uma posi<;ao de desejo que impede outrem de ocupa-la. Alem disso, a inveja tambem parece inequivocamente relacionada ao que sempre constituiu urn tema classico das investiga<;oes sobre bruxaria, a saber, que esta e uma "explica<;ao do inforrunio" - pois 0 fato de alguem ocupar uma posi<;ao que desejo, impedindo-me, porranto, de faze-lo, pode ser urn sinal de que mobiliwu a bruxaria, a feiti<;aria, ou ambas, a fim de me prejudicar. 13 Lembremos que, no caso especlfico da bruxaria, tal qual conceptualizada pela teoria etnogdfica elaborada por Evans-Pritchard a partir das pdticas e concep<;oes zande, 0 ponto central dessa explica<;ao e a possibilidade de culpabilizar urn individuo por algum mal, mesmo quando os atos danosos que provoca nao dependem de sua vontade. Em outros termos, se a causa ultima dos infortunios pode ser localizada no sistema impessoal da bruxaria, sua causa eficiente, sem duvida, sao alguns individuos muito concretos, unicos sobre os quais controles e san<;oes podem incidir - uma vez que a bruxaria enquanto tal esta fora do alcance dos homens. Isso significa, por outro lado, que os 'culpados' podem nao apenas se dizer inocentes por nao terem praticado os atos de que sao acusados como ate mesmo admitir seu pape!, mas, ao menos em princlpio, argumentar que suas a<;oes dependem de for<;as e de urn sistema que eles mesmos nao sao capazes de controlar. Finalmente, se entendermos a inveja e a feiti<;aria na chave proposta por Favret-Saada, compreenderemos bern porque tanto uma quanto a ourra se articularn tao freqiientemente com a politica. Afinal, esta ultima e, sem duvida, uma dimensao ou campo em que, quase sempre, urn protagonista deve necessariarnente eliminar outros a fim de ocupar os poucos espa<;os disponiveis. Concep<;ao que talvez seja ainda mais generalizada. Lembro-me bern do conselho de Seu Malandrinho, urn dos espiritos que possuem Gilvan, quando pedi a ele ajuda para tomar algumas decisoes, bern como coragem para segui-las: "e so voce se concentrar no que voce querl Mesmo que voce tenha que passar por cima dos outros para conseguir 0 que quer!" Nesse sentido, seria possivel generalizar a transposi<;ao do esquema da bruxaria operada por Michael Herzfeld (1982: 651) no intuito de analisar antropologicamente as burocracias estatais - que tambem funcionariam, sugere 0 auror, como possivel "explica<;ao do inforrunio". Como dizia urn velho habitante das margens do Saara logo apos ter sua planta<;ao destruida por elefantes selvagens, "contra as tempestades de areia, os elefantes e 0 Estado so Deus pode nos protegeI" .14 Porque ralvez seja a politica em geral, no sentido nativo do termo, que pode ser concebida de acordo com tal esquema. Pois

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esta nao e urn enorme sistema de fon;:as impessoais que pode ser responsabilizado pelos piores atos cometidos pelos humanos? E que, fora do alcance das a<;:6es ordinarias, faz com que a indigna<;:ao ou a calera s6 possam ser dirigidas para os politicos de carne e osso? Mas que, ao mesmo tempo, e por outro lado, permite que tudo 0 que esses politicos fa<;:am seja, no limite, toleravel, uma vez que, afinal de contas, nao sao os responsaveis por seus atos e que e apenas "a poHtici' que os obriga a agir dessa forma? Como tantos outros pesquisadores em outros lugares, convivi, em Ilheus, com essas multiplas misturas de cren<;:a com desconfian<;:a - no sistema, em si mesmo e nas pessoas -, mistutas que parecem constituir urn dos cernes da experieneia vivida da poHtica, e que Sao cuidadosamente deixadas de lado quando sobre ela se reflete ou se legisla. De toda forma, se este livro termina aqui, a hist6ria com a qual se encerra esta longe de ter acabado. Pode bern ser que as tens6es se agravem e desemboquem, tardia e algo paradoxalmente, em urn processo de desmoronamento generalizado, espeeie de transforma<;:ao daquele anuneiado ha mais de trinta anos, quando Dona Ilza, arriscando a preserva¢o de sua pr6pria familia, aceitou a missao de tomar-se mae-de-santo. Por outro lado, como ja aconteceu em tantas outras ocasi6es, pode bern ser que as rela<;:6es, familiares e outras, se recomponham, de tal forma que os Rodrigues, 0 Dilazenze e 0 Tombency continuem a ser 0 que sempre foram, urn desses territorios existeneiais onde a vida vale a pena ser vivida. NOTAS 1

Ver Apendice III.

2

Na verdade, urn biDeD afro, como urn terreira de candomble (e como muita coisa no mun-

do), e uma mistura de tudo isso: missao, vocac;.ao, cultura ou religiao, arte, exibi<f3"o, meio de

sociabilidade e modo de ganhar algum dinheiro. 3A

opiniao de Marinho e compartilhada peiD mundo afora, e aparece traduzida em inume-

ros aforismos que traduzem 0 cantter intrinsecamente maligno e corrupto da poHtica: "quem vence e custoso naa ficar com cara de demonio" - no serrao de Minas Gerais (Chaves 2003: 59); "quem vai para 0 inferno torna-se 0 demonio" - na fndia (Banerjee 1999); "alguns comem enquamo outros votam" - em Creta (Herzfeld 1985: 111); "vote cedo, vote muiro" na Irlanda; e assim por diante. 4 No

e

candomble, 0 sucessor de uma mae-de-sanro falecida so efetivamente conhecido quando, algum tempo ap6s sua morte, os btizios sao jogados e, por meio deles, os orids comunicam aos homens sua decisao. 0 que nao impede, evidentemente, que, com muita antecedencia, rodos especulem discretamente sobre 0 futuro.

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5 Como escreveu Heredia (1996: 68), ''A resistencia da comunidade a ter candidates proprios faz sentido, na medida em que chamar alguem para ser politico e, de fato, chama-Io para ser de fora da comunidade. Dito de outro modo, faz sentido porque trazendo-se a polltica - que e exterior a - para dentro da comunidade, sao introduzidas rela<;:6es de desigualdade entre iguais. Alguem eleito, automaticamente, passa a ser de fora, isto e, deixa de ser urn membra a mais, tornando-se uma perda para a referida comunidade. 0 fato de urn individuo votar em urn parente au vizinho poderia ser visto, no esquema da vida cotidiana, como apenas urn momento da rela<;ao que os une, como uma rerribui<;ao de retribuis:ao de favores par meio do voto. No entanto, como vimos, retribuir com 0 voto significa alga diferente. Ao final, quem 0 deu estara contribuindo para colocar seu vizinho ou parente em uma condi<;ao mais alta na hierarquia social e de poder, portanto, para que 0 equiHbrio da rela<;:iio ate endo mantida nao se restabele<;a".

Como observou Kuschnir (2000a: 17-19), os candidatos tendem sempre a apresemar suas candidaruras como algo que nao depende de suas vontades, como urn "dever" ou "sacrificio", imposto pelos eleitores ou partidos - a que refor<;a a ideia de que 0 candidato pertence a determinada coietividade e que deve, portanto, a ela ser fie!' 6

J

Funda<;ao municipal que pretende "relacionar educa<;ao ambiental, ecologia e a memoria da cultura regional, desenvolvimento economico sustemavel, recursos do mar e da mata, gestao ambiental urbana e, finalmente, caeau como politica de preserva<;ao" (ver Menezes 1998: cap. 2).

7

Vma radio e urn jornallocais que divulgaram as informa<;6es foram suspensos pela Justi<;a Eleitoral.

8

9

Dona Ilza compos uma musica, sempre cantada nos ensaios do bloeo: "Numa ciaade da Africa tinha urn babalan Dilazenze Malungo, forc;:a para ian Urn dia Zambi chamou Em urn egum rransformou Dilazenze Malunga, farc;:a para ian ~ muzenza, ian, e muzenza, ian".

Os "fundamentos" de urn rerreiro consistem basicamente, nos objetos materiais que contern a for<;a das divindades aos quais estao ligados, ou, para ser mais preciso, no conjunco formado pelos objetos e por essas for<;:as. Encontram-se, em geral, enterrados no centro do barracao. 0 Dilazenze possui, tambem, seus "fundamentos", que estao enterrados ao lado daqueles do Tombency. Ver Apendice VIII. 10

J

II "Torso" e 0 nome que se da, no candomble de Ilheus, ao turbante ou trunfa usada par algumas adeptas do candomble e pelas mulheres que se vestem de "baianas", seja para vender acarajes e outras comidas tfpicas, seja para participar de desfiles carnavalescos ou similares.

12 Vale a pena citar, por extenso, 0 belo rrecho em que a autora chega a essa condusao: "Quando alguem se pergunta como, no seculo XX, urn individuo normal, isto e, nutrido pela cultUfa das Luzes, pode se deixar tomar pelo discurso da feiri<;aria (esra e uma quescao que, como todo mundo, eu me coloquei), nao ha nenhuma chance de resposta se apenas se leva em coota a irracionalidade desse discurso. Mais exatamenre, uma unica resposta eposslvel, a qual con-

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siste em relegar ao estatuto de atrasados, imbecis ou loucos aqueles que se deixam par ele tomar. Se, ao contrario, darno-nos conta de que se trata, na feitic;aria, dessas situacr5es nas quais nao ha lugar para dais, ou ainda, situacr5es nas quais se deve matar ou moreer - a questao da racionalidade do sistema sendo relegada ao segundo plano -, compreende-se melhor que qualquer urn possa par ele ser tornado" (Favret-Saada 1977: 212). 13 Se, no Bocage, a conexao entre feiticraria e inveja - "no discurso local, 0 feiticeiro e, fundamentalmente, urn ser 'invejoso'" (Favret-Saada 1977: 343) - depende de uma concepcrao do feiticeiro como alguem dotado de uma forcra incontrolavel- seu "dominio e perpetuamente insuficiente para a utilizacrao da totalidade de sua forcra" (ibidem) -, 0 mesmo nao parece ocoreer em Ilheus, onde a inveja surge antes como uma for'ra primaria.

14 Agradecro a Peter Gow ter me revelado esse magnifico aforismo, parte, sem duvida, de uma dessas belas filosofias polfticas e da natureza que encontramos em tantas sociedades contra 0 Esrado.

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332 d


AI'ENDICES

Apendice I - Glossario ADRIANA RIBEIRO - Esposa do ex-prefeiro Jabes Ribeiro, parricipou, ainda que nao formalmenre, da adminisrra,ao da Funda,ao Culrural de Ilheus (Fundaci) enrre 1997 e 2004. ALClDES KRUSCHEWSKY - Candidato a vereador eleito em 2004 pelo PMN, com 1.082 votos. Concentrou parre de sua campanha junto aos blocos afro e terreiros de candomble. Utilizava 0 slogan "100% A1cides". ANTONIO CARLOS MAGALHAEs - Talvez 0 mais conhecido politico baiano, tendo sido, a parrir do final da decada de 1950 e em varias ocasi6es, prefeito de Salvador, governador do Estado, deputado, senador e ministro. Renunciou a cadeira de senador em 200 1, visando evitar uma cassa<;ao resultante de urn processo envolvendo 0 que

ficou conhecido como "esciindalo do painel eletr6nico", e reelegeu-se em 2002. Exerce, ainda, grande influencia na poHtica de praticamenre todos os municipios baianos. ANTONIO OUMPIO REHEM DA SILVA - Ex-prefeiro de Ilheus entre 1977 e 1982 (pelo MDB) e, mais tarde, entre 1993 e 1996 (pelo PFL). AsSOCIA<;AO DESPORTIVA 19 DE MARCO - Localizada na rua de mesmo nome, proxima ao cenrro de Ilheus, foi fundada na decada de 1960 e conrinua sendo propriedade dos membros da familia negra que a criou e que ainda a administra. Clube de domino e centro de reuni6es, promove bailes, serestas e feijoadas. Em maio de 2000,

a parte terrea de sua sede foi arrendada pela Prefeitura de Ilheus a fim de la instalar o recem-criado Memorial da Cultura Negra de Ilheus. BEBETO (ADALBERTO) SOUZA GALvAo - Militante negro do PCdoB, ligado a assentamenros rurais e sindicatos urbanos, foi vereador enrre 1997 e 2000, tendo sido derrotado na tentativa de reeleic;ao. CEAC au CEAC1 (Conselho das Enridades Mro-Culturais de Ilheus) - Conselho que reune os grupos afro-culturais de Ilheus, congregando, hoje, quinze enridades. Fundado em 1989, foi recriado em 1992 e, mais tarde, em 1997, continuando a funcionar como canal de cantata entre os grupos negros e a administraljio municipal.

CENTRO AFRO-CUTURAL DE 1LHEUS - Projero concebido duranre 0 processo eleitoral de 1992, que consistia na constru,ao de um predio destinado a abrigar, expor e vender a cultura afro local. Na campanha eleitoral de 1992, a promessa de sua constru-

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'rao teria levado os grupos afro-eulturais a apoiarem a eandidatura de Antonio Olimpio a prefeito.

CEPLAC (COMISSAO EXECUTIVA DO PLANO DA LAVOURA CACAUEIRA) - 6rgao do Minisrerio da Agriculrura, Pecuaria e Abasrecimento, foi criada em 1957 para pesquisa e desenvolvimento da eeonomia eaeaueira. CEsAR BORGES - Politico baiano alinhado a Antonio Carlos Magalhaes, foi governador do Estado e senador, tendo visitado Ilheus, eleitoralmente, em algumas oeasi6es. COSME ARAllJo - Advogado e politico negra ilheense, vizinho da familia Rodrigues. Foi vereador entre 1993 e 2000, e candidato a deputado estadual e prefeito em diferentes oeasi6es. DINO ROCHA - Funcionario da Prefeitura e membro do Dilazenze (do qual foi diretor de eventos), foi candidato a vereador em 1996. ELiCIO GOMES - Urn dos fundadores do bloco afro Gangas, em 1986, converreu-se, mais tarde, a uma denomina'rao evangeliea, deixando 0 bloeo e se afastando do movimento afro-cultural. Foi candidato derrotado a vereadar em 1992, elegeu-se em 2000 e foi novamente derrotado em 2004. FABIO SOUTO - Politico baiano alinhado a Antonio Carlos Magalhaes; filho de Paulo SOUto, foi deputado estadual e federal; sua candidatura a Prefeitura de Ilheus foi aventada em mais de uma oeasiao, mas jamais se eoneretizou. GERSON MARQUES - Tecnico de turismo, formado no Rio de Janeiro, trabalhou no setor tUrlstieo da Prefeitura em diversas oeasi6es. Em 1996, foi urn dos assessores de Rubia Carvalho; em 2000, apoiou Jabes Ribeiro e, em 2004, Ruy Carvalho, do PT. E cunhado de Jaco Santana e tern boas rela~6es com 0 movimento afro-cultural de Ilheus. GILDO PINTO - Foi presidente do sindicato dos porruarios de Ilheus, do qual e funcionario. Foi membra do Movimento Ilheus Cora~6es, tendo ajudado a fundar 0 blocd afro D'Logun em 1992. Denotado nas elei~6es proporcionais desse ano, elegeu-s~ em 1996, chegando a presidencia da Camara Municipal, mas nao conseguiu a reelei~ao em 2000. Foi candidato a deputado estadual em 1998, com 0 apoio formal de sete blocos afro. GILMAR RODRIGUES SANTOS - Urn dos dez filhos homens de Dona Ilza Rodrigues, e o principal oga do Tombency e foi vice-presidente e presidente da primeira versao do CEACI, em 1990. Depois disso, afastou-se do movimento afro-cultural, parricipando apenas de algumas atividades do Dilazenze. Trabalha, par vezes, como cabo eleitoral de diferentes candidatos locais.

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GILVAN RODRIGUES SANTOS - Urn dos dez filhos homens de Dona I1za Rodrigues, e rido como seu provavel sucessor it frenre do Tombency. Grande conhecedor do candomble, panicipa, tambem, da polirica, desde 1978, quando foi nabalhat na Ptefeitma de I1heus, onde petmaneceu ate 1987. Em 1988, quando ocupavao catgo de teptesenrante da Fedetac;ao Baiana de Cultos Afro-Brasileiros em I1heus, candidatouse, seffi sucesso aCamara Municipal. Voltou a se candidatar em diversas ocasi6es, mas nunea teve uma votac;:ao tao boa quanta a primeira. Nao obstante, trabalha re-

gularmenre como cabo eleitoral de diferenres candidatos locais e estaduais. Nunca esteve muira proximo do movimento afro-cultural, mas

e0 atual vice-presidente do

Dilazenze. GLEIDE RODRIGUES SANTOS DE SOUZA (MENINA G'LEU) - Neta de Dona I1za Rodrigues, filha-de-santo do Tombency, coreografa e principal bailarina do Dilazenze. Mudou-se para 0 Rio de Janeiro em 2003. GUMERClNDO TAVARES - De uma tradieional familia cacaueira ilheense, (en tOll sec candidato a prefeito de I1heus em 1996 pelo Panido Trabalhista Brasileiro. Quando o grupo de Antonio Carlos Magalhaes indicou outro candidaro, afastou-se e, apa-

rentemente, nunea mais participou

cia polftica na cidade.

GURITA (ALzIMARIO) BELMONTE VIEIRA - Politico negro, de cerca de 35 anos, com curso superior de educac;ao fisica, foi urn dos fundadores do Panido dos Trabalhadores em I1heus, tendo, conrudo, deixado 0 panido em 1995 pata se candidatat a veteadot pelo PTdoB em 1996, vinculando-se ao grupo politico de Rubia Catvalho e, POt meio deste, a Jabes Ribeiro. Nao se elegeu, mas foi nomeado pata 0 catgo de chefe da Divisao de Espones da Sectetatia Municipal de Educac;ao de I1heus, que ocupou ate recentemente. Voltou a se candidatar a vereadof, sem sucesso, em 2000 e 2004, sempre tentando se apresentar como representante do movimento afro-cultutal da cidade. ILHEUSTUR - 6rgao municipal encattegado de gerit

0

turismo na cidade de I1heus.

JABES RIBEIRO - Tres vezes prefeito de I1heus (de 1983 a 1988, e de 1997 a 2004), secretario estadual do Ttabalho no governo Waldir Pires (entre 1989 e 1990), deputado federal entre 1991 e 1994, e, possivelmente, 0 mais importante politico ilheense vivo. Foi do MOB autentico, depois do PMDB, PSDB (tendo, contudo, apoiado a candidatuta Lula em 1994) e, finalmente, do PFL, alinhando-se, em 1998, ao gtUpo de Antonio Carlos Magalhaes, do qual sempre fora adversario. JACKS RODRIGUES - Dirigenre do bloco afro D'Logun, foi lanc;ado candidato it presidencia do CEAC por Marinho Rodrigues em 2001, tendo, logo apos a posse, tompido com ele. Urn dos adeptos da candidatuta de Alcides Kruschewsky em 2004. Foi reeleito para a presidencia do CEAC em 2004.

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JACO QAMILTON GALDINO) SANTANA -Artista plastico (especializado em moveis ecologicos) nascido em Catavelas, onde patticipou do movimento cultural e da se~ao local do Partido dos Trabalhadores, mudou-se para IIheus em 1996, estabelecendo rela~6es de amizade e participa~ao com 0 movimento afro-cultural da cidade e, ptincipalmente, com 0 Dilazenze. E cunhado de Gerson Marques. JOABES RIBEIRO - [rmao do ex-prefeito Jabes Ribeito, e veteadot desde 1996, tendo sido, 0 mais votado nas elei~6es municipais de 2000. Foi candidato a deputado estadual dertotado em 2002 e pre-candidato aPrefeitura em 1996, sendo substituido pelo irmao alguns meses antes da elei~6es. JoAo CEsAR - Militante negro que transita entre 0 MNU e 0 movimento afto-cultural, foi candidato a vereador em 1996, pelo PDT, e em 2004, pelo PSTU. JoAo LrRIO - Politico do grupo de Jabes Ribeito, foi seu secretario municipal, alem de deputado estadual e prefeito de IIheus entre 1989 e 1992. LUIZ CARILO - Ptofessor de bale classico e de teatto, foi urn dos fundadores, em 1981, do ptimeito bloco afto de IIheus, 0 U-Gue DePa, do qual participava boa patte da familia Rodtigues. A partir do final da decada de 1980, afastou-se completamente do movimento negto, tornando-se assessor do Sebrae e passando a residir fora de IIheus. Em 2002, reapareceu como candidato ao cargo de administrador do Memorial da Cultura Negra de IIheus. MARCELINA PLACIDA (DONA MAC;:U) - Filha-de-santo da fundadora do terreito Tombency em Salvador (a famosa Maria Jenoveva do Bonfim, ou Maria Nenem), e a mae-de-santo de Dona [zabel Rodrigues (Dona Roxa), Dona IIza Rodtigues (Mae Mucale) e de parte dos filhos carnais desta ultima. MARIA LOcIA MAGALHAEs BATISTA (N!GA LUCIA) - Ex-integtante do Dilazenze, concorreu algumas vezes ao cargo de vereador, apresentando-se sempre como membra

do bloco e ptodutora de cultura negra. Nunca conseguiu se eleger, mas obteve alguns pequenos e temporarios empregos junto a politicos locais. MARINHO (GILMARIO) RODRIGUES SANTOS - Urn dos dez filhos homens de Dona IIza Rodrigues, e oga do Tombency, foi presidente do Grupo Cultural Dilazenze entre 1988 e 2004, presidente do CEAC entte 1997 e 2001, administrador do Memorial da Cultura Negra de IIheus a panir de 2002, e e sem duvida, 0 mais conhecido nome do movimento afto-cultural de IIheus. MARIO GUSMAo - Grande ator negro, bailarino e animadar cultural baiano, membro do !Ie Aiye e do Olodum, motou em IIheus entre 1982 e 1983, tendo sido urn dos iniciadores do movimento afro-cultural local.

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MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHEUS - Prolongamento e substituto do Centro Mro-Cututal de Ilheus, foi inaugutado em 2000 - e teinaugutado em diversas ocasi6es -, funcionando no predio da Associa~ao Desportiva 19 de Mar~o. MIRINHO (ALDIRCEMIRO) DUARTE Luz - Estivador, fundador do bloco afro D'Logun, foi 0 segundo presidente do CEACI. Articulou a aproxima~ao dos blocos afro com a candidatura a prefeito de Ronaldo Santana e Antonio Olimpio, em 1996, tendo ele pr6prio obtido a vaga de primeiro suplente de vereador do seu partido. Com a posse de Antonio Olimpio, em 1993, foi nomeado secretirio de gabinete do viceprefeito Ronaldo Sanrana, e assumiu, algumas vezes a vaga de vereador. MNU (MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO) - Movimento criado em Sao Paulo, em 1978, a fim de servir de p610 unificador dos varios grupos negros existentes no Brasil - ambi~ao que nunca chegou a se realizar. Em Ilheus, as tentativas de estabe1ecimento do MNU remontarn adecada de 1980, mas nunca foram inteiramente bern sucedidas. MOACIR PINHO - Militante do MNU e de movimentos de luta pela terra, nasceu em Salvador e mudou-se para Ilheus em 1993, ligando-se, tambem, ao PT. Foi gerente de projetos da Fundaci ate a ruptura entre 0 PT e 0 prefeito Jabes Ribeiro, e participou da organiza~ao de diversas atividades tidas como "culturais". Estudou Filosofia na Universidade Estadual de Santa Cruz e, hoje, organiza urn assentamento na zona rural do munidpio de Ilheus. NEY (GILSONEI) RODRIGUES SANTOS- Urn dos dez filhos homens de Dona Ilza Rodrigues, grande percussionista e mestre de bateria do Dilazenze, foi vice-presidente do grupo na gestao de Marinho Rodrigues e e seu atual presidente. Foi, tambem vicepresidente de Jacks Rodrigues no CEAC e candidato por ele derrotado nas ultimas elei~6es para 0 Conselho. PAULO CESAR DE MENEZES (CESAR) - Cozinheiro da Marinha Mercante, foi 0 fundador e e 0 presidente do Bloco Mro Rastafiry; foi, tambem, vice-presidente do CEAC durante a gestao de Marinho Rodrigues. PAULO RODRIGUES DOS SANTOS - Historiador, ex-mestrando em antropologia social e mestre em geografia humana, deixou Ilheus muito novo, retornando apenas em 1996. Auxiliou, em seu inkio, a pesquisa que deu origem a este livro; participou, de alguma forma, do movimento afro-cultural ate romper com seus membros. E responsivel pela coleta de muitas informa~6es aqui utilizadas. PAULO SOUTO - Politico baiano alinhado a Antonio Carlos Magalhaes, foi governador do Estado e senador, tendo visitado Ilheus, e1eitoralmente, em algumas ocasi6es. Alero disso, possui ylnculos familiares- na regiao cacaueira, tendo ai residiclo na juventude. E pai de Fabio Souto.

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PEDRO FARIAS - Pai-de-santo muito famosa em Ilheus, comandava 0 Tetteito de Ode. Alem disso, foi 0 fundadot do Moxe Filhos daArtica, que desfilou no carnaval ilheense de 1950 a 1970. Foi, tambem, chefe de gabinete de divetsos ptefeitos em Ilheus. Motteu, assassinado, em 2002. ROLAND LAVIGNE - Politico otiginatio de Una, cidade pt6xima de Ilheus, foi ptefeito desse municipio, bern como de Camacan. Elegeu-se deputado estadual, em 1990, e federal, em 1994, nao tendo conseguido a reelei~ao em 2002. Foi candidato a prefeito de Ilheus em 1996, pelo PL, em 2000, pelo PFL, e em 2004, pelo PSDB (ap6s rapida passagem pelo PMDB), tendo renunciado a candidatura algumas semanas antes do pleito. RONALDO SANTANA - Funcionario administrativo do porto de Ilheus e soci610go, foi como candidato a prefei to de Ilheus, em 1992, pelo Movimento Ilheus Cora~6es. Obteve 0 apoio do movimento afto-cultural a quem ptometeu a consttu~ao do Centto Mto-Cutural de Ilheus. Acabou aceitando 0 posto de vice na vitoriosa chapa de Antonio Olimpio. Foi nomeado para a Secretaria Municipal de Agricultura. Industria e Comercio. denunciado como traidar peIo movimento negro e, ap6s 1997, parece ter se afastado da politica. lan~ado

RUBIA CARVALHO - Filha e esposa de ricos comerciantes de cacau, candidatou-se a Assembleia Legislativa em 1994 e tentou ser candidata a Prefeitura em 1996. Mastada da competi~ao por manobra que atribuiu ao grupo politico de Antonio Carlos Magalhaes, passou a apoiar a candidatura vitoriosa de Jabes Ribeito. Foi nomeada para a Secretaria de A<j:ao Social e concorreu, sem sucesso, a Camara Federal, em 1998, e a Camara Municipal, em 2000. Presidente do PSDB local a partir de 2001, apoiou a abortada candidatura de Roland Lavigne a Prefeitura da cidade em 2004.

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Apendice II Entrevista enviada pot escrito, em 17 de agosto de 2000, ao Jornal da Cidadania, da ONG Instituto Btasileito de Analises Sociais e Economicas (Ibase), que havia encaminhado, pot correio eletronico, algumas quest6es telativas "participa~ao politica dos jovens".

a

- "OLi, Marcio, como combinamos, estas sao as perguntas. A entrevista e para uma materia do Jornal da Cidadania, publicado pelo Ibase. Obrigado" Acho que seria legal dizer uma coisa preliminarmente. Eu pesquiso elei~6es e politica no Brasil desde 1995, mas 0 fa~o como anrrop610go. 1sso quer dizer que minha questao central e descobrir 0 que as pessoas pensam e tern a dizer sabre esses assuntos; e eu 0 fa<;o sem supor que existam modelos ideais aos quais eu OU as pessoas nos devamos referir. Em segundo lugar, como a pesquisa anrropol6gica ebasicamenre qualitativa e interessada nas variac;oes e diferenc;as, e muito diffcil raciocinar em termos de coisas como "0 brasileiro", "a democracia" etc. Eu ereio que essas coisas s6 tern sentido contextual.

I. 0 brasileiro namora com a ditadura? Ele confia nas institui¢es democraticas? A democracia burguesa opera basicamenre por meio de urn jogo continuo de participac;ao e exclusao. As pesseas sao chamadas a participar, mas nao se permite que essa participacrao ultrapasse urn ceno limiar. Penso que, quando algumas pessoas exprimem uma cerra nostalgia pela ('ditadura", 0 que se esta. sustentando eque, ja que a participa~iio emesmo uma farsa, emelhor que ela seja eliminada. A "eonfians:a nas instituis:6es dernoedtieas" tambern depende, ereio, do grau de participa~ao e de visibilidade que essas institui~6es se permitem. Observe que nao estou dizendo que ditadura e demoeracia sao a rnesma eoisa, ou que as instituis:6es ditas demoenlticas na verdade nao 0 sao. Buseo apenas traduzir 0 que os agentes sociais exprimem em diversos eontextos. 2. A democracia esta consolidada no Brasil? Pergunta impossive! de responder. 0 que

e, exatamente, demoeracia? Eo que

eexatarnente uma demoeracia eonsolidada? Se se pensa em demoeracia como o opOSto de urn governo autoritario ou mesmo ditatorial, aeho que nao eorremos muitos riseos. Aparentemente, as eamadas dominantes pereeberarn que

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vale mais a pena manter a dominac;ao com 0 jogo democritico do que sem de.

Por ourro lado, se se enrender por democracia urn espa,o de parricipa¢o efetiva, acho que nao apenas da nao esta consolidada como esta em regressao. A restri~ao da democracia ao jogo deitoral e partidario, e 0 poder cada vez maior da tecnocraeia sao a prova disso.

3. Como poderiamos definir, de maneira geral, 0 comportamento dos joyens nesta elei<;:ao: estao desinteressados ou, ao contrario, esrao expressando, com desencanto e descren<;:a, sua rea<;:ao ao atual jogo politico? Jusramente, nao podemos definir nada de maneira geral. Ha joyens que buscam parricipar do processo eleitoral (por diferenres motivos, alias), hi j ovens que nao estao interessados nde, e ha jovens cujo desinteresse

euma reas:ao aos

processos de fechamento que mencionei acima. Nesse senrido, nao ha qualquer especificidade dos jovens. Alias, 0 interesse pela polftica nao e absolutamente urn sentimento natural e espontaneo.

4. Se a descren<;:a dos joyens existe, quais os motiyos? A descren,a dos jovens e a mesma dos mais velhos. E nao e preciso muito esfor,o para enrender por que ela existe. 0 surpreendenre e que alguns nao se deixem levar por ela. De toda forma, estamos 0 tempo todo oscilando enrre cren.;:a e descren.;:a, e basta que algumas variaveis se alterem para que pare,a que os jovens decidiram participar da polftica (como no impeachment de Collor, por exemplo). 5. Por que a indigna<;:ao dos joyens com 0 jogo politico nao se transforma em a<;:ao em yez de revolta passiva? (Concorda com esta passiYidade?) Os chamados regimes democraticos sempre operaram com essa 16gica: a indignas:ao e a resistencia devem ser incorporadas ao sistema. Nao penso que os jovens sejam "passivos" ou "descrentes"; penso que sua relativa "ausencia" do jogo politico reflete antes a insuficiencia das atuais instituic;oes para dar conta

do que se passa no mundo real. 6. 0 brasileiro conviYe bern com a diferen<;:a, com as minorias (os jovens,

esp~cificamente)? Observe como a pergunta eengra.;:ada: "0 brasileiro" (uma unidade puramente abstrata que oculta justamente qualquer diferen.;:a) convive bern com "a diferenc;a" (reduzida assim a fenomeno secundario em relac;ao a uma unidade

primeira)? Nao da para responder.

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7. 0 brasileiro considera mais facil contar com as rela<;6es pessoais,

0

apadrinhamento, do que com 0 jogo politico, nao? Por que? Memoria da coloniza<;ao patriarca! e do populismo politico (Vargas, Janio etc.)? Nao concordo com a premissa. Ela sup6e que 0 "jogo polfrico" se op6e necessariamente as "rela<;6es pessoais" e ao "apadrinhamento", mas isso nao everda-

de: basta observar a polftica em qualquer lugar do mundo para se dar conta de que essas coisas estao inteiramente imbricadas, e que sua separa<;ao e apenas um modelo ideal (no duplo sentido da palavra), que cumpre fun<;6es ideol6gicas importantes. 8. A parricipa<;ao politica da popula<;ao tura! ou circunstancia!?

epequena. Isso euma rela<;ao estru-

o que isso quer dizer? Baixa parricipa<;ao eleitoral? Baixa participa<;ao partidada? Desinteresse geral na "politica"? A rela<;ao, mais que circunstancial, e contextual.

9. A ausencia dos direitos sociais no Brasil (educa<;iio, saude e traba!ho, por exemplo) e civis (integridade fisica, igua!dade perante a lei, Iiberdade de pensamento) pode estar causando 0 desinteresse pela politica? Um antrop610go holandes que conhe<;o me disse que ninguem se interessa por polftica na Holanda porque os direitos sociais e civis ja estao todos garantidos. Portanto, nao haveria muito 0 que fazer politicamente. Que a situa<;ao inversa possa ser citada como causa do mesma fenomeno prova, creio, que a rdac;ao nao se sustenta.

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Apendice III Colunas de Marinho Rodrigues no Didrio de Ilhius (outubro-novembro de 2003)

Diario de Ilheus, 21 de outubro de 2003 MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Com 0 objetivo de preservar, valorizar e divulgar a cultura negra na sociedade ilheense, e visando agregar todos os afro-descendentes na luta contra o racismo e suas mais diversas formas de discrimina<,:ao, 0 Memorial da Cultura Negra foi enrregue aos grupos afro de Ilheus, atraves do Conselho das Enridades Mro-Culturais (CEAC), pelo Prefeito Jabes Ribeiro no dia 28 de junho de 2002, como resultado de uma longa lura que remonra ha mais de dez anos. A proposta central do Memorial e desenvolver projetos educacionais, politico-culturais e carnavalescos, buscando resgatar a auto-estima da popula<,:ao negra e elevar 0 nlvel de sua consciencia crltica. Tambem faz parte dos objetivos do Memorial manter uma politica de gera<,:ao de emprego e renda, estabelecer urn inrercambio com a comunidade negra e grupos culturais da Bahia, do Brasil e do exterior. Memorial esta localizado na parte terrea do predio da Associa<,:ao 19 de Mar<,:o, na Av. Itabuna, Centro de Ilheus, contando com uma sala para oficinas de dan<,:a, percussao, e capoeira; urn bar e restauranre com comidas rlpicas da Bahia; 5 lojinhas de artesanatos; uma biblioteca com livros, CDs, revistas e videos sobre cultura negra. Exibi<,:6es de cultura afro e shows folcl6ricos sao realizados todas as sextas-feiras e sabados, alem de exposi<,:6es fotograficas e da realiza<,:ao de palestras e debates. 0 Memorial funciona de segunda-feira a Sabado das 9:00h as 12:00h e das 14:00h as 16:00h. Vale a pena fazer uma visitinha.

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Baile Afro estriia com sucesso Lan<,:ado no ultimo Sabado, dia 11, no Memorial da Cultura Negra, 0 baile Mro foi 0 maior sucesso, animado pela Banda Percussiva do Dilazenze,

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que contou com panicipas:6es dos cantores Wilson Charmitr do Miny Kongo, Ronaldo do Grupo Le6es do Reggae, Cesar do Rasrafiry, Sergio e Carine Gomes do Dilazenze. 0 publico canrou e dan<;:ou are as 2:00h da madrugada. 0 baile Mro vai acontecer todos os sabados are 0 mes de fevereiro de 2004 sempre no Memorial a parrir das 21 :OOh. Sexta Cultural virou point

o Projeto Sexra Culrural, realizado pelo grupo Dilazenze no Memorial da Culrura Negra, virou point do samba de roda. Sao cenrenas de pessoas que todas as sexras vao ao Memorial dan<;:ar 0 samba de roda do Grupo Sambadila, que ja conquisrou 0 publico, urn publico jovem e animado que se identificou de cara com 0 samba de roda. 0 Grupo Sambadila realiza os seus ensaios todas as sexras-feiras no Memorial a parrir das 21:00h.

*** Diario de I1heus, 03 de novembro de 2003 MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Lideranra do Movimento Negro se reune para discutir programariio do 20 de Novembro AI; lideran<;:as dos grupos culrurais de I1heus se reuniram no ulrimo dia

29 as 17:00h no Memorial da Culrura Negra para discurir a programa<;:ao da Semana Nacional da Consciencia Negra, que tera inkio em I1heus no dia 15 de novembro, com a realiza<;:ao do 2째 Encontro dos Dirigentes de Entidades Mro-Culrurais de I1heus. A programa<;:ao seguiri ate 0 dia 22 de novembro com: torneio de fursal Zumbi dos Palmares, mostra de video, palestra, debates, baile afro e exposi<;:6es. Dia 20, Dia Nacional da Consciencia Negra, sera comemorado com urn grande show em pra<;:a publica com a parricipa<;:ao de grupos de capoeira, bandas Mro e bandas de reggae. As lideran<;:as estao prometendo uma grande surpresa para 0 show do dia 20 de novembro.

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Elas nOlO revelaram, mas rem zum zum zum rolando nos basridores de que um dos pre-candidaros a prefeiro de Ilheus do PFL ira presentear aos 70% dos afro-descendentes de I1heus com um show do Olodum, de Salvador. A programa~ao sera toda concentrada no Memorial da Cultura Negra, na rua 31 de Mar~o, Av.ltabuna, sob a coordena~ao do Memorial e do Conselho de Entidades Mro-Culturais (CEAC) e contara com apoio da Funda~ao Cultural e Secretaria de Turismo de I1heus. Um outro assunto discutido na reuniao foi a candidatura de um vereador do movimento negro, que, segundo alguns dirigentes presentes na reuniao da direroria do CEAC, esta retardando a discussao sobre 0 assunto, que era para ser em julho, depois mudou para setembro, outubro e agora sera em novembro. No nosso entender s6 quem perde com este desinteresse sao os grupos afro que precisam mostrar a for~a que tem. Afinal de contas, somos 70% de negros e 0 momento e oponuno para uma candidatura com cores, criatividade e a alegria que supera as dificuldades, independente de quem seja o nome.

Projeto Social Batukere recebe beneflcios

I I!

Em cerimonia realizada na ultima sexta-feira, dia 24, na sede social do grupo Dilazenze, no Alro da Conquista, 0 projeto social Batukere recebeu da Funda~ao Clemente Mariani, de Salvador, doa~6es de instrumentos musicais e equipamentos de som no valor de R$ 11.000,00 (onze mil reais). A cerimonia de entrega dos equipamentos contou com a presen~a do Sr. Paulo de Jesus, representante daquela funda~ao, e de autoridades municipais, empresas e comunidade. Segundo os dirigentes do Dilazenze, mantenedores do projeto, esta ajuda chegou em boa hora, pois, depois de tres anos 0 projeto vem enfrentando muitas dificuldades para continuar funcionando. Depois desta ajuda, com certeza vamos revitalizar as energias para continuarmos em frente. o Projero Batukere atende a 60 crian~as e adolescentes de 7 a 14 anos moradores do Alro da Conquista que estejam freqUentando escola e tirando boas notas. o projeto oferece aulas de dan~a afro, percussao, cidadania, canto, teatro, capoeira e anesanato. As principais necessidades que 0 projero enfrenta sao com a merenda e com materiais de reposi~ao das oficinas.

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Quem quiser ajudar 0 projeto Iigue para 0 tel. (73) 231-8344 ou 6336914, endere~o Av. Brasil, nO 485, bairro Conquista - Ilheus, ou conta bancariaAg. 191 conta 17.144.

Terreiros de candomble se reunem para criar associariio Cerca de 21 terreiros de candomble foram representados na reuniao do dia 22/10/03 no Memorial da Cultura Negra de Ilheus com 0 objetivo de criat a Associa~ao dos Terreiros de Candomble de Ilheus. A reuniao contou com a presen~a de babalorixas e ialorixas que falaram sobre a imporrancia da cria~ao de uma entidade que possa unir os terreiros. ponto alto da reuniao foi a regulariza~ao da documenta~ao dos terteiros. Todos se queixaram de nao poder teceber recursos publicos para a reforma e estrutura dos terreiros, para as festas dos orixas, POt nao serem reconhecidos juridicamente. aurras reuni6es acontecerao para solucionar esta

a

situa~ao.

A proxima sera nesta quinta-feira, dia 6/11/03, as 19:00h, no Memorial da Cultura Negra.

*** Diario de Ilheus, 10 de novembro de 2003 MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

22 anos depois a polemica continua: qualjOi 0 primeiro bloco afro de Ilheus? Ha exatamente 22 anos atras surgia em Ilheus 0 primeiro Grupo Mro que mais tarde chamariamos de "Bloco Mro Le-Gue DePf', fundado em 1981, em plena comemora~ao do Centenario da cidade de Ilheus, por um grupo de amigos, entre eles 0 professor e primeiro presidente da entidade, Luis Carilo, Emanuel Mendon~a, mae Ilza e seus filhos Gilmar Rodrigues e Gilderison Rodrigues. Ali eram realizados os ensaios para 0 carnaval ao som dos atabaques, agogos, xequeres e congas. Todos dan~avam Ijexa, jogavam as cajas - a dan~a da epoca.

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lk-Gue DeN. no seu in/cio sofreu uma influencia grande dos afoxes Filhos de Gandhi e Badaue de Salvador. Talvez isso explique a polemica que exisre ate hoje. Quem foi 0 primeiro bloco afro de Hheus? 0 lk-Gue DePa ou 0 Miny Kongo? Todos os dois grupos no seu in/cio tinham caracteristicas muito grandes de urn afoxe. Tocavam e dan<;:avam 0 Ijexa. Miny Kongo, urn ano depois de sair com estas caracteristicas, sofreu uma mudan<;:a ja influenciado pelo Bloco Mro He Aiye de Salvador e passou realmente a ser urn bloco afro introduzindo no grupo instrumentos como repique, surdos e caixas. 0 ritmo ja era 0 Samba-Reggae usado pelos blocos afro de Salvador. lk-Gue DePa introduziu os mesmos insrrumentos, mas a batida era Ijexa, a musica era Ijexa, ritmo do afoxe, apesar de ser chamado de bloco afro, as caracteristicas ainda eram de afoxe. o lk-Gue DePa sa/a do Alto da Conquista dos Carilos, celeiro at~ hoje de blocos afro, depois, passou a sair do Bairro do Malhado ate 0 fim de sua existencia. o Miny Kongo ate hoje participa do carnaval e e considerado 0 pai de muitos outros blocos afro como: Zimbabue, Rastafiry, For<;:a Negra, Axe Odara, entre outros, e teve urn fundador ilustre, 0 ator e bailarino Mario Gusmao, que termina contribuindo e influenciando na forma<;:ao de muitos dirigentes de blocos afro e na cria<;:ao de novos blocos afro como 0 Dilazenze e 0 Axe Odara. Depois de 22 anos de historia a polemica continua. 0 importante e que a semente foi plantada e germinou. Hoje, ja sao 10 blocos afro espalhados pelos quatro cantos da cidade e que nao so fazem 0 carnaval, eles desenvolvem projetos que envolvem musicas, dan<;:as, religiao, politicas culturais, enfim, atividades que contribuem para a forma<;:ao da cidadania Mro-Brasileira. Eles ajudam a preservar e divulgar a cultura negra na cidade, lutam contra 0 racismo e atraves de projetos educacionais buscam resgatar a auto-estima da popula<;:ao negra e leva-Ia a n/vel de consciencia critica. As dificuldades ainda sao muitas. A discrimina¢o ainda e grande para com os blocos afro, e so quem participa de urn e que sabe. o movimento esta crescendo e se organizando, ganhando for<;:a politica, pois so atraves dela e que daremos uma vida melhor para nossa popula<;:ao negra.

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*** Diario de Ilheus, 17 de novembro de 2003 MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

20 de Novembro - Dia da Consciencia Negra AI; informa~6es sobre Zumbi na realidade sao poucas.

0 que se sabe e que seu nome era Francisco, nasceu em Palmares, em 1655; foi levado ainda crian~a para Pernambuco por uma das primeiras expedi~6es enviadas a Palmares com 0 intuito de destruir 0 quilombo, pelo entao governador de Pernambuco, Francisco Barreto. 0 padre portugues, Anronio Melo, foi 0 responsavel pela guarda e educa~ao do jovem Francisco, que, aos 15 anos, fugiu do di~trito de Porto Calvo e foi para Palmares. Algumas dtividas sobre a naturali~ade de Zumbi constantemente surgem, seja de Alagoas ou Pernambuco, mas nao podemos esquecer que no seculo XVII a capitania de Pernambuco abrangia 0 que hoje se conhece como Rio Grande do Norte ate Alagoas. o nome Zumbi suscita varias interpreta~6es. Alguns historiadores acreditam que 0 nome signifique Deus da Guerra, que se remete as palavras de origem quimbundo, lfngua angolana - N'Zambiapongo, N'Zambi e N'Zumbi - todas significando Deus, 0 que pode estar relacionado ao sentido de Zumbi como uma varia~ao ortogdfica desras palavras. Outras correntes interpretativas apontam 0 nome Zumbi como urn posto dentro da hierarquia Palmarina. A ausencia de dados historicos mais consistentes sobre Palmares e uma pdtica ja conhecida nacionalmente, como forma de diluir praticamente 0 episodio na memoria dos brasileiros em geral e, especialmente, os negros. Mas segundo 0 historiador Decio Freitas, 0 Quilombo dos Palmares resistiu a 120 anos de luta contra varias incurs6es sem sucesso promovidas pelo governo de Pernambuco. Sua destrui~ao foi comandada pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que, como outras tantas expedi~6es, fracassou na primeira tentativa em 1692. A guerra continuou por mais 2 anos, ate que em 1694 urn exercito de 9 mil homens comparado somente ao episodio da Invasao Holandesa, em termos de relevincia para a coroa Portuguesa, destruiu as bases de Palmares. Este exercito era composto de soldados, penitenciarios, indios, negros e voluntarios de Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio Grande do

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Norte e Paraiba. Todos muito determinados a destruir Palmares, matar Zumbi e ganhar lotes em terras Palmarinas. Apesar da destruis:ao do Quilombo e sua comemoras:ao pelas autoridades locais, Zumbi fugiu, se escondeu no mato e iniciou uma guerrilha contra Domingos Jorge Velho. Traido por urn de seus homens de confians:a, Antonio Soares, que depois de capturado e torturado conduziu Domingos Jorge Velho ao esconderijo de Zumbi, que supostamente morteu, com tiros e inumeros ferimentos de arma branca, aos 40 anos. Teve seu corpo mutilado e a cabes:a enviada para 0 Recife, onde foi exposta em pras:a publica. 20 de novembro, dia da Consciencia Negra, em homenagem a mem6ria do Ifder negro Zumbi dos Palmares, deve se fortalecer no imaginario nacional nao somente como uma data de comemoras:[o, mas de reivindicas:[o e reflexao para todos os brasileiros na luta contra 0 racismo e a intoleril.ncia. Memorial da Cultura Negra abriu a Semana Zumbi dos Palmares neste sabado, dia 15, com 0 2째 Encontro dos Dirigentes dos Blocos Mro de Ilheus que contou com as presens:as dos colunistas Ze Carlinhos e Emanuel Mendons:a (Neneu) e do presidente do PMN, Massarolo, que, a convite do presidente do CEAC, Jacks Rodrigues, coordenou 0 encontro. A programas:ao da Semana Zumbi prossegue ate 0 dia 21 com mostra de video, palestra, shows e exposis:[o no Memorial. Os eventos acontecerao pela manha das 9:00h as 12:00h e a tarde das 14:00h as 20:00h.

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*** Diario de Ilheus, 24 de novembro de 2003 MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Consciencia Negra Realizada pelo Memorial da Cultura Negra em parceria com 0 Couselho das Entidades Mro de Ilheus, aI' Semana Zumbi dos Palmares teve seu ponto alto no dia 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciencia Negra. Urn grande evento foi realizado em frente ao Memorial e contou com as participas:6es dos grupos Dilazenze, Danados do Reggae, Le6es do Reggae, Zambi Axe e do Miny Kongo, que naquela data comemorava 23 anos de fundado.

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Mas 0 que me chamou aten~ao foi a falta de consciencia polltiea do Movimento Mro Cultutal, ptincipalmente da ditetoria do CEAC (Conselho das Entidades Mro Culturais) que, em pleno evento disrribuia camiseras para os grupos afro com propaganda pollrica de urn candidato a vereador que pagava cerveja para quem divulgasse seu nome e para quem vestisse a sua camisa. Uma falta de respeito para com a comunidade negra, que organizou a Semana Zumbi dos Palmares com muito esfor~o e s6 contou com 0 apoio sempre decisivo do prefeito Jabes Ribeiro e da sua esposa Adriana Ribeiro. Esra na hora do CEAC rever suas atitudes. Ao inves de ficar trazendo candidatos que nao rem compromisso com as nossa luras, se aproveita da inconsciencia polltica dos dirigentes dos grupos afro para nao discutir com seriedade uma candidatura pr6pria para 0 Movimento Negro. Prestigiaram 0 evenro 0 prefeito Jabes Ribeiro e sua esposa Adriana; 0 professor Soane Nazare, presidente da Maramara; as Ialorixas Mae Ilza Rodrigues e Mae Gessi; 0 coordenador do MNU de Ilheus, Moacir; os secretarios Paulo Medauar, Romualdo Pereira e Isaac Albagli.

Dilazenie realiza 0 3' encontro para discutir planejamento 2004

o Grupo Culrural Dilazenze, do Alto da Conquisra, estara realizando neste sabado, a partir das 10 horas, no Memorial da Cultura Negra, 0 3째 Encontro da Entidade para a avalia~ao das a~6es do Grupo em 2003 e para discurir e elaborar 0 planejamenro da enridade para 2004. Na oportunidade, sera tambern escolhido 0 tema do carnaval 2004. As propostas para 0 tema do Dilazenze poderao ser entregues ate as 10 horas do dia 29/11 no Memorial, e os candidatos terao 10 minuros para defender sua proposta, que sera votada por todos os presentes, eo J,Tlais votado sera 0 vencedor. Essa e uma forma democrarica adotada pelo Dilazenze e que vern dando certo.

350


Apendice IV - A familia Rodrigues

Tiodolina Felix Rodrigues (lya Tidu) (±1865-?)

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Isabel Rodrigues Pereira Euzebio Felix Rodrigues (Gombe) (D. Roxa) (± 1900-1973) 1

Vivaldo Nivaldo

Valeutim Afouso Pereira _

Irene

Ilzete

IIza Rodrigues dos Saulos (Mueale) (1934)

Irani Vivaldino

Jose Miguel dos Santos

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Gleide (1979)

351


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1980 1982 1984

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1988 1990

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1986

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Gangas

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For~a

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Negra

o Danados

do Reggae

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Raizes Negras

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1992

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D'Logun

1994

ZambiAxe

1996 Leoes do Reggae

1998 2000

' - - - Guerreiros de Zulu

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---

1976

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I

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Antonio Olfmpio

I I Jubes

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Jorge Viana (Jabes Ribeiro)

1988

1982

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MOB

Herval

Jose

Soledade

Louren~o

POS

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Ribeiro (Antonio OHmpio: deputado

estadual derrotado)

I

I

MDB

POS

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I

10ao Urio (deputado ? estadual em 1986) . Jahes Ribeiro (Secretario Estadual)

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1992

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I

1989

I

1990

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PT

PFL

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AntOnio Olimpio apoia Collor

apoia Lula

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I

PSDB

PFL

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Jabes Ribeiro

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I

I

PSDB

PSB路PT

PFL

Jabe.~

(Deputado Federal)

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RonaldoSantana

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Ant3nio Olimpio

Ruy Carvalho

Ribeiro

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(vice-prefeito)

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199.

I

PT

PSDB-PFL

I

Fernando Henrique Cardoso Antonio Carlos Mal':alhlie.~ (Senadar)

PSDB

I

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Ribeiro

I

PT

I

Nelson Simoes

PFL

l-rl

I

Jabes Ribeiro

Gumercindo Roland Tavares Lavigne

I

I PFL I Roland Lavigne

I

PT

I

Jabes apoia Lula Joabs Ribeiro (Dcputado Estadual)

I

PSDB-PFL

PT

I

I

Luis rnacio Lula da Silva

Jabes apoia

FMC e ACM

Rubia

Carvalho

2002

2000

I

I

PSDB-PT

I

I

Jabt.'S apoia Lula

'"

1998

1996

2004

I PSDB-PFL

I

Jose Scrra

I PT (PSDB)

I Ruy Carvalho (apaia de Roland Lavigne)

I

I

I

PMDB

PAN

PFL

I

I

I

Valderico Angela Soane Reis de SOU7..8 Nazare


1

Apendice VII - Mapas

,

1- BRASIL

354


2 - ESTADO DA BAHIA

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355

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1 3 - REGI6ES DA BAHIA

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356

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4 - MICRORECIAO CACAUElRA

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357


5 - ILHEUS (BAHIA): BAIRROS DA CIDADE

ACTO DO

OASIUO

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PONTAL'"

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CONDOMINIO MORADA DO PONTAe

358

1


Apendice VIII - Fotos

o Ballet Afro Dilazenze apresenta-se na quadra do bloco

Parte da bateria do Dilazenze apresenta-se na quadra do blow

359

J


Parte da bateria do Dilazenze apresenta-se na quadra do bloco

o Dilazenze desfila no carnaval 1999 360


o Dilazenze desfila no carnaval1999

~----

361


Da esquerda para a direita: Marcio da Lua, Jaco Santana, Ninho Rodrigues (em pe), Marinho Rodrigues e Ney Rodrigues (primeiro plano)

Parte do Ballet Afro Dilazenze apresenta-se, em frente aquadra do bloco, para a televisao 362


Dona Ilza Rodrigues e Gilvan Rodrigues tocam ritualmente 0 ponto em que estao enterrados os fundamentos do 10mbenry (e do Dilazenze) em uma fista no terreiro

r

Dona Ilza Rodrigues pratica rituais propiciat6rios para a saida do Dilazenze no carnaval2000 363 b


o entito preftito Jabes Ribeiro entrega a Marinho Rodrigues 0 troftu conquistado pelo Dilazenze em um torneio de fittebol na Conquista (it esquerda do preftito, Toinho Brother; atrds de Marinho, Gurita)

o Memorial da Cultura Negra de Ilheus

l~36_4

___


I'f I

o Memorial da Cultura Negra de llhius

A Avenida Brasil (ou Rua dos Carilos)

365


~T I

Parte da ftmilia Rodrigues em /rente il casa de Dona llza (no ultimo plano, em pi, Nidinha Rodrigues)

A entrada do Tombency e da casa de Dona llza Rodrigues

366


T

Outdoors nas eleiroes rnuniClpais de 1996 (ao fimdo, urn dos acessos ao bairro da Conquista)

367


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