Alain didier weill inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise

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LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA



Alain Didier-Weill

LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

Estabelecimento do texto e tradução

Luciano Elia

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Copyright © 1998. Alain Oidier-Weill

Estabelecimento elo texto e tradução LstciaMO Elia

Projeto gráfico e preparação Conlr~

C11pa

ISBN 85-860 ll-ll -8

1998 Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda. < ccapa@easynet.com.br > Rua Barata Ribeiro, ~ 70 - Loja 208 22040-000- Rio de Janeiro - RJ Tcl (55 2I) 236-1999 r:ax ( 55 21) 256-0526


SUMÁRIO

Lacm e a clínica psicanalítica a escansão Il

a pulsão invocante 41

o passe 65

lnsistuição: proposta de um procedimento de passe tran.sinstitucional 81




LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA Seminário em três lições organizado pelo Corpo Freudiano Pesquisa e Transmissão da Psicanálise, realizado no Auditório do Rio Datacentro, Pontifkia Universidade Católica do Rio d.e Janeiro nos dias I, 2 e~ de dezfmbro de 1995.


A EscANsÃo

Agradeço a Marco Antonio Coutinho Jorge por me ter apresentado de modo tão generoso, e esta tarde tentarei lhes trazer alguns elementos para pensar uma questão que herdamos de Lacan, a questão da escansão. O que há de mais originário no sujeito é o fato de que ele é o resultado de um pacto que se produziu num tempo pré-histórico, no qual houve um encontro. uma interseção entre o real e o simbólico. Lacan diz que, nesse momento, o real padece do significante. Neste pacto, que precede o recalcamento originário. no qual o imaginário ainda não intervém, o que se produz é um encontro entre este real humano totalmente enigmático, ou seja, este corpo que chega ao mundo numa materialidade que pesa, que se assemelha a uma folh a d e papel branca, a uma ardósia mágica, e aquilo que sobre ela vem inscrever-se, a ordem do significante. Af se produz um encontro entre "há"


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(simbólico) e "não há" ( real). Com este pacto se delineia uma espécie de dimensão de promessa, promessa de algo que ainda não se pode saber: promessa de um devir. Mas este pacto será um dia rompido, e esta ruptura é o que, desde Freud, cha.mamos o trauma. Pode-se dizer que o trauma é :a aparição violenta desta significação: "Não há significante".

É na medida em que o pré-sujeito -

pois ainda não estamos no nível do sujeito mas do présuj eito - tem de integrar a significação do "não ihá" que, no trauma. ele descobre como uma espécie de revelação às avessas: " Fui enganado". Enquanto o pacto originário s ignifi cava: "Há significante", o trauma lhe diz: "Você acreditava que havia significante, mas não há, o significante não está lá". Chegamos assim ao ponto sem dúvida mais enigmático da psicanálise, aquele em torno do qual m e deterei hoje, qual seja. a maneira pela qual será dada uma resposta a esta ruptura de pacto . A resp osta será dada pela substituição do pacto originário por um segundo . pacto que leva em conta o "'há'' to "não há". E a integração desta contradição ("há" e '' não há") será o n ó desse processo enigm ático que nomeamos recalque originário. Lacan

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funda a instituição do recalque originário na nodulação das três consistências R. S. I. naquilo que denomino segundo pacto. Tentarei falar do modo pelo qual essas três coisas se nodulam. Na resultante d a operação de nodulação emergirá o que chamamos de sujeito. Um sujeito que receberá imagem, palavra e corpo. Esse corpo que surgirá na cena do mundo é um corpo que a psicanálise deve poder situar por relação à tradição. A concepção da nossa tradição é a dos dois corpos, o corpo material e o corpo imaterial; o corpo feito de matéria, destinado a retornar à terra, como cadáver, e o corpo espiritual que, segundo as crenças, pode sobreviver sob o nome de alma. Esta teoria dos dois corpos é a base mesma de uma concepção do poder no Ocide~te: a concepção dos dois corpos do rei 1• Quando o corpo perecível do rei morre, sobrevive o corpo imaterial I. N. do E. Sobre es te ponto, ver KANTOROWlCZ, Ernsc H . Os dois corpos do râ: um estudo sobre te{)logia polítita medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, e, dentre suas referências, particularmente SHAKESPEARE. William. "Ricardo li". Em: Obra compltta, vol. In: dramas históricos. Trad. F. Carlos de Alm~ida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Rio de J;meiro, Nova Aguilar, I 995. p. 75-13 8.

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que vai encarnar-se em seu sucessor, de maneira que haja continuidade de poder. Nós, psicanalistas, no entanto, lidamos com um terceiro tipo de corpo, que é um misto, um composto que surgirá, e ao nível do qual perde-se toda e qualguer noção de pureza originária. Podemos supor que este composto misto no qual a inocência se perde pode suscitar fantasias de retorno à pureza, que não são estranhas a cercos movimenws totalitários, nostálgicos de uma pureza originária que seria possível reencontrar. Se o corpo é um misto, é que os diferentes parâmetros que constituem esse corpo estão em vizinhansa, uns com os outros, segundo um tipo de fronteira sobre a qual devemos refletir, pois ou bem essa fronteira é impermeável, ou é permeável, porosa. O que se passa, por exemplo, quando essa fronteira entre o real, o simbólico e o imaginário cessa de ser impermeável? O real do corpo emancipa-se e começa a corromper o limite imaginário e a informação que este limite recebia do simbólico, de tal modo que começa a surgir algo de monstruoso: mostração da mixagem de todo monstro que mostra a indeterminação dos limites. A forma humana esfacela-se bruscamente e é invadida por esse real monstruoso que faz do homem um lobisomem; de um humano, um inumamo.


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Muitas pessoas têm um prazer particularmente intenso em ver filmes de terror, nos quais os monstros são postos em cena. O que é que se quer ver? Que interesse pela aparição da monstruosidade é esse? Quando assistimos a uma tal metamorfose que faz com que se esfacelem os limites hum.mos, e que o imundo se apodere do mundo humano, o que é impressionante não é a transformação final. na qual partimos de um homem e chegamos a um lobisomem. O que é particularmente impressionante, no testemunho dos próprios espectadores que declaram seu interesse nesse tipo de cena, é o instante de indecisão, de luta interior, na qual a forma humana resiste durante um certo tempo à invasão da forma bestial, até o ponto em que ela não pode mais resistir, é progressivamence invadida e desaparece. Quando então aparece o lobo definitivo e estável, a angústia acaba, pois temos acesso a um limite estável que nos retransmite nossa estabilidade. Este exemplo da monstruosidade- eu o menciono porque ele não é sem relação com a clínica psicanalítica, que nos ensina que existem transformações monstruosas do corpo assim como essas no imaginário humano coloca-nos a seguinte questão: o que faz com que a fronteira entre o real e o simbólico seja impermeável e o que faz com que ela possa não sê-lo?

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A partir desse preâmbulo, entro no cerne do tema: como podemos representar para nós mesmos o estabelecimento dessas fronteiras estáveis o u instáveis? Abordo por esse viés o tempo originári o, mítico - pois ningu ém nunca pôde observá-lo diretamente, dele só falamos por sua ausência, quando de não se produz na psicose, em particular- esse tempo fundador no qual alg~­ ma coisa no recalque originário se nodula. Efetivamente, uma das formas de pensar a psicose ou pelo menos cercas psicoses é aquilo que ímpede esse tempo de nodulação originária. Como pensar, então, esta operação na qual o sujeito esboroado pela experiência traumática faz a experiência de que o corpo da mãe é furado? Geralmente isso ocorre através da visão: a maioria das observações nos introduzem no fato de que é pela visão que esse furo simbólico no real é apreendido. Como o sujeito, diante dessa catástrofe que ele vivencia como.uma traição, desaba? Em sua experiência inaugural com o Homem dos Lobos, Freud nos diz que o menino que testemu nhara a cena primária faz cocô, p roduz uma matéria fecal: ele se torna puro objeto diante dessa situação traumática, ele cai. Eis o que chamamos a queda humana. Corno, a partir dessa queda, o humano vai se levantar, reencontrar a postura erera 16


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própria à espécie humana, a força que o fará colocar-se novamente de pé? Nesse ponto, a seguinte operação encontra lugar: o sujeito vai poder substituir esse furo sim- • bóli co no real por um furo real no simbólico. N o ponto em que havia um furo no fora, ele instituirá nele mesmo um furo. Corno será possível que o sujeito faça o luto de uma parte d e si para instituir, em si, um tal furo? Vejam CJUe aqui a psicanálise não corrobora a concepção religiosa CJUe nos diz que hf uma criação ex~nihílo, a partir do nada. A psicanálise dirige .s ua atenção para uma coisa inteiramente diferente, ela se volta para o fato de gue, a partir do significante, o sujeito possa criar o nada. Pois é a partir do momento em que cria em si mesmo o nada que o sujeito t omará seu prumo. Prossigo através de aproximações parciais da dificuldade da questão. Nessa operação, o sujeito substitui o mau- o lhado 2 pelo mal-et:~tendido. Basta que haja um furo para que apareça um olhar. 2. N. doTA expresSÃo utilizada no original é mal-vu, ao pé da letra mal-visto, 9 uc traduzimos por mau-olhado porquanto, em português, esta é uma expressão de uso correme que inclui liceralmence a dimensão do olhar. Por sua vez, a expressão mal-mtmclu pode ser traduzida também por mal-ouvido, sentido que, no limite, é admissível.

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Mostrem a uma criancinha uma folha branca na qual tenham feito dois furos, imediatamente ela vai gritar ou chorar, pois a dimensão do olhar se coloca em perspectiva. Em francês a palavra regard [olhar] consoa com o furo de uma clarabóia [lucarne]. Este furo fala de um olhar. Fala-se também na língua francesa do olhar de uma falha geológica, um furo no solo é um olhar. Portanto, a língua nos ensina esse parentesco entre o surgimento do olhar e .uma fratura no real. da qual de nasce. Diria que o primeiro efeit o do recalcamento originário é substituir esse mau-olhado por alguma coisa que é da ordem do mal-entendido: a partir de um primeiro momento em que se encontra na exterioridade, no real. esse furo vem tornar-se um fu ro no simbólico. Algo se institui, sofre um duplo movimento: num primeiro tempo. o sujeito é ;miquilado pelo trauma e num segundo tempo, após essa aniquilação em que o Logos perdeu todos os seus direitos, este há, que havia sido anulado, volta a se fazer ouvir por força de urna insistência própria ao simbólico e ao significante d o Nome-do -Pai. A saída do trauma se dá quando o sujeito integra duas mensagens contraditórias: a permanência do não bá e a insistência do Nome-do-Pai que lhe diz, de maneira siderance: "Há sim, embora o 18


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Lagos possa perder seus direitos, o simbólico pode insistir e te dizer: há". O infans recebe assim duas mensagens absolutamente contraditórias. Como ele poderá lida r com essa coexistência impossível? Através da invenção mais originária da metáfora, pela qual se produz uma espécie de copulação en tre há e não bá. Poderíamos colocar isso sob a forma de uma fração há/não há, dizendo há "sobre" não bá. Surge então uma nova significação, significa~ão metafórica que substitui o dualismo ou há ou não há por uma significação terceira propriamente inaudita, que é, quando ela tem êxito, a significação da metáfora paterna. Esta nova significação sincrônica é absolutamente incompreensível para nossa experiência racional. por ser significativa da ausência no seio da presença. Não seria a sucessão diacrônica que o há e não há nos fa:L ouvir pelo ritmo da música? Quando ouvimos música, seu riemo nos diz alternadamente há e não bá. Há é o instante em que soa o som; não bá, o intervalo vazio entre dois sons. Mas no momento do não há existe com o que uma p romessa: o som retornará. No segundo versículo do Ginesis encontramos a criação das t revas e no terceiro, a criação da

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luz. Na opinião de todos os comentadores, a luz não é a luz visível: trata-se do verbo. A luz visível aparece no décimo segundo ou décimo terceiro versículo, ela é a luz das luminárias e se opõe à luz originária: o verbo. As trevas originárias são a ausência do verbo: a origem do mal. Ora, aprendemos no versículo seguinte que luzes e trevas são posteriormente separadas pelo Criador. São separadas (quinto versículo), e o Criador as nomeia dia e noite. O fato de que sejam separadas nos adverte de que, na origem, luz e trevas não eram separadas, quer dizer, a luz era em suma uma presença que coexistia com as trevas, como se fosse uma luz tenebrosa. Essas considerações visam a lhes dar uma idéia desta operação metafórica peb qual ocorre que o significante originário faça o há e o não há nodularem-se. Este significante, Lacan o escreve no quadro negro: A maiúsculo com uma barra diante do qual ele escreve S maiúsculo. Há um significante da ausência de significante no Outro: S de A barrado, S

(j.) .

Antes de prosseguir, gostaria de lhes fazer obserVar que no trauma, se a metáfora paterna não opera, o sujeito permanece com uma concepção dualista do há e do não há. Em vez desses dois

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termos copularem, ficam separados e, se vocês admitirem imaginá-lo, esta é a origem do pensamento gnóstico. O que é o pensamento gnóstico? É aquele que contesta o monoteísmo, pois considera que não é possível que o Mal e o Bem, ou seja, o não há e o há, estejam assujeicados a uma mesma divindade. não sendo possível que do Um advenha uma tal antinomia. Assim, os gnósticos supõem a existência de duas divindades. Uma na origem do Mal. do faca de que o mundo seja assim tão desgraçado, outra, um Deus do Bem, um Deus que quer o Bem, mas que é absolutamente ineficaz por<luanto não pode lutar contra o Mal. Tudo se passa como se a Lei dada pelo bom Deus fosse ineficaz, inoperante para lutar contra o poder do Deus maligno. E os gnósticos nos interessam porque, na doutrina de São Paulo, fundadora do cristianismo, há uma marca gnóstica. Na recusa de São Paulo pela Lei, ele diz: ''Não é possível que a Lei destinada a salvar o homem nada mais possa por ele depois do pecado original. ela se tornou caduca, ela não pode mais operar, e é por isso que Jesus veio, para restaurar o que o homem não pode mais fazer, com seu livre arbítrio, graças à Lei". Retorno, após esses parênteses, à outra solução possível ao ser humano: o êxito da metáfora 21


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paterna. Pela produção desse significante S (f ), o sujeito integrará uma nova significação: há e não há serão nodulados entre si segundo um processo que Freud estabeleceu em A Dmegarão ( 1925) ao abordar o mecanismo do sim e do não: o sim da Bejahwtg (afirmação) absoluta e o não daAusstossung (expulsão) . Nesse texto, Freud põe em jogo dois pares de sim c de não, um dos quais funciona segundo o princípio de prazer e o eu: o par lntroji<jmn/Wtrjm 1• lntrojiz.jtrtn é o eu que diz sim, e Wtiftn é o eu que diz não. É uma concepção dualista própria ao funcionamento do eu, que obedece ao princípio do bom de dentro/mau de fora. O eu fundamentalmente é dualista. O que se opõe ao eu e o princípio de prazer é o além do princípio de prazer e o sujeito do inconsciente, que enuncia um sim e um não de ordem inteiramente diferente: o sim da Bejabung e o não da Ausstossung não são dualistas, pois estão

J. N. do T. Esses dois termos em alemão, utilizados pelo autor em sua exposição, enconcram-se no texto Dit Vtrntinung (A Dmegação) de Freud [Stuàienausgabe, Funkfurt am Ma in, S. Fischer Verlag, 1989, p. 374) , Edirão Standard Brasileira das 0/mu &icológicas Complettfs de Sigm1md Frwd, vol. XIX. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976, p. 297.

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como que de acordo um com o outro. Isto significa que o sujeito integra a contradição que há em S(f). qual seja: bá (S) e não há (f ) . segundo o duplo processo sim t não ao mesmo tempo. Tratase de um sim e um não que não são separados. É porque há um sim e não que esse não não é a foraclusão. Com efeito, uma das maneiras de definir, na minha opinião, o que é a foraclusão, é de que se t rata de um não absoluto que não se faz acompanhar de nenhum sim. Retorno assim a esta idéia de que o trouma4 é da ordem do mau-olhado. Quando o sujeito ince~ gra o S (/+..) (Bejahung), diria que há um tempo de sideração no qual ele integra o significante sem contudo compreendê-lo; é isso a sideração, o que substitui o mau-olhado pelo mal-entendido. O fato de que haja um mal-entendido é algo que se aproxima do chiste. O primeiro tempo em que somos tocados pelo chisce é um rempo de sideração, tempo em que somos tocados pelo 4. N. do T. Trou, em francês, significa J••l-o, o que permite o jogo de palavras encontrávd entre troumatismt e traumatismt. Em português esse jogo seria impossível, já que o neologismo .forauma (ou .for'alma) não guarda a mesma homofonia com traum11, razão pela qual adotamos a forma híbrida trouma.

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significante, nada compreendemos, permanecemos em espera para compreender. e compreenderemos no tempo poster ior em que aparece a luz, o rir. Há portanto um tempo enigmático, um tempo de latência. antes do tempo do bem-entendido, um tempo de espanto, de sideração, no qual há o malentendido. E o mal-entendido é melhor do que o mau-olhado. Esc:e mal-entendido é promessa de atingir um bem-entendido, e p romessa que não é v~ uma vez que o espírito da metáfora pode efetivamente prod1,1zir-se. Examino agora como esse sim e esse não inconscientes fun cionarão. E retorno à idéia colocada pela questão da nodulação. Observávamos que havia substituição de um furo real no simbólico por um furo simbólico no real. H á pois uma primeira interseção entre o real e o simbólico. Quan. do o corpo entrar em cena, o que ocorrerá é que o real pdo qual esse corpo vem à cena poderá ser encadeado por do is lados; de um lado, ele será encadeado pelo simbólico, e- de outro, pelo imaginário. É esta c.adeia q ue fará com que esse corpo se sustente. Como ler então este encadeamento? Embora não se trate de tempo cronológico, é preciso começar por algum ponto, então direi, como hipótese,

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que, num primeiro tempo, o imaginário faz barra sobre o real (1/R ). O que se passa quando o imaginário se impõe sobre o real? O que se passa é que o real, em seu caráter proliferante, do qual eu falei an teriormente quando evoquei a proliferação do real na monstruosidade que nos espreita

todo o tempo -

o .câncer, por exemplo, é a prolife-

ração do real que cessa de ser encadeada e que se desencadeia-. é detido por um limite trazido por L Concebo, portanto, o imaginário como um limite dado à proliferação do real, ao poder proliferante do real. dando-lhe um freio, conferindo-lhe limites espac iais que se tornarão até mesmo visíveis. O real encontra assim um limite a seu apetite de ilimitado e de proliferação. Há aqui, portanto, uma primeira interseção, do real com o imaginário. A interseção d o real com o simbólico (RIS) se faz segundo a ascendência que o real t em sobre o simbólico. Pelo fato desta conexão entre o real e o simbólico, diria que o real recebe do simbólico um t ipo de informação diferente daquela que lhe vem do imaginário: o real recebe, através de uma conexão real-simbólico, a informação do aparecimento de um significante do real, ou um real do significante, que é o que denominamos o significante

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fálico. O significante, o falo, é isso: o surgimento desta significação estranha, esta conexão entre estas duas ordens que parecem tão diferentes, o real e o simbólico. E em decorrência disso, o corpo recebe uma significação fálica. Ele cessa de ser um corpo de pura materialidade, portador do futuro cadáver, na medida em que adquire a significação do que c~amamos a carne. A carne é o que significa que o corpo é erotizado. Enfim, uma terceira conexão se produz, aquela pela qual o simbólico e o imaginário se articulam: o simbólico, fazendo barra sobre o imaginário (S/1), cria um furo no imaginário. Pode-se dizer que é o segundo mandamento de Moisés, ou seja, que, para além da imagem, há um inimaginável, uma proemi'nência do simbólico. · Essas três interseções que tracei de modo panorâmico formam um furo cuja ptim~ira aparição no ensino de Lacan se dá em O Semimzrio, livro 1: os escritos tlcnicos de Fmcà (I 9 5 ~ -4) e O Seminário, livro 2: o eu na teoria de FreuJ e na técnicA da psicanálise (195 4-5) 5, quando ele estabelece um esquema

5. N. do T. Ver, respectivamente, ''A tópica do imaginário", O Stmindrio, liwo

1,

Rio de Janeiro, Jorge Zahar

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ótico e desenha este vaso que representa o eu inconsciente, i (a) , que tem um gargalo. É graças ao vaso e ao gargalo que o objeto, a flor, poderá aparecer, pois Lacan fazia observar que o menino psicótico que era o pequeno Dick - vim a saber que era o próprio filho de Mdaníe Klein - , que não via as flores pois o mundo lhe era opaco e insignificante, põe-se a ver o mundo. As flores começam a aparecer quando se encontram no gargalo do vaso. Vejo esse gargalo, esse furo, como a origem do furo borromeano, onde vocês vêem que convergem o imaginário que é o vaso, a flor que é o real e o furo simbólico do gargalo, que desenha o furo no qual real. imaginário e simbólico en~o os três em conexão. Tentarei agora aprofundar um pouco o que coloquei em jogo. Imagino que nesse tempo do recalque originário em que o sujeito vai aceder a si mesmo perdendo uma parte de si, fazendo o luto de uma parte de si, o que ocorre evoca o que se passa sobre um altar sacrificial, no qual todos os sacrifícios humanos têm em comum o fato de que aquele que se submete ao sacrifício perde Editor, 1979. p. 89-ss., e "Os esquemas freudianos do aparelho psíquico", O Stmimírio, livro 1. ; Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. p. ll3 -ss.

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alguma coisa, e é nessa medida que ele recebe em retorno algo. Eu diria que aí se passa uma situação comparável ao faco de que o sujeito, pelo processo da Ausstossung, diz não, e perde ao dizer sim a esta perda. Não se trata de uma foraclusão, razão pela qual o sujeito diz sim a esta perda; ele perde alguma coisa, perde o que chamamos o falo: t rata-se da castração originária. O que é perdido retornará de duas formas totalmente diversas segundo o sujeito seja homem ou mulher. Se ele é homem, o falo lhe retornará numa relação na qual ele tem o falo, e de encontrará, no objeto feminino, a causa daquilo que fará ereção nesse falo; se esse sujeito é mulher, o falo não é perdido simbolicamente mas realmente, e retorn:~d n~o por intermédio de um objeto mas de um S ,. Assim, poderíamos dizer que o falo pertence mais à mulher do que ao homem, já que é preciso uma mulher para que um homem aprenda que ele tem um falo, dando -o a ela. O ponto que considero mais difícil de compreender é aquele que mostra que é perdendo esta coisa que chamamos de falo que, em retorno, o sujeito recebe a Lei sob duas acepções: ele a recebe sob a forma da palavra, o que a tradição chama de lei oral. e ele a recebe sob a forma do interdito,

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de um dizer que é interdizer 6 , o que a tradição chama a lei escrita. Em minha concepção, as coisas se passam da seguinte forma: o pai intervém nesse ponto, pois toda essa operação metafórica não se efetiva a menos que, em decorrência da relação entre o pai e a mãe, a mãe consinta em fazer o dom do bti pelo pai e, mais do que consentir em fazê-lo, ela faça apelo a isso. Uma mãe pode, em relação à doação do há, agir de três maneiras: ou bem ela diz sim , ou bem ela pode dizer não segundo o modo do recalque, ou bem ela pode dizer não segundo o modo da foraclusão. São os três destinos pelos quais se transmite ou não o significante do Nomedo-Pai. E, na medida em que se transmite assim a Lei, o ponto em que estamos autoriza-nos a dizer

6. N. do T. O termo utili:udo no original é intmlin , cuja tradução em português mais exata, em sentido denotativo, seria intmlitar (proibir) e não inttrJí~. como traduzimos, pela razão de que o autor joga com um sentido de interdição bastante central no ensino de Lac.m, sobretudo em seus últimos seminários, particularmente a partir do Livro 20: mais, ainda (I 975) e para o qual a categoria do J;~,. é de gnnde importância, como aliás se verifica em utilizações posceriores desse mesmo termo ao longo da presente exposição.

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que o sujeito recebe, em troca do que perdeu, três coisas que o fazem humano: ele recebe um corpo - pois é preciso compreender que o corpo que temos é um dom, não é absolutamente natural. não é um corpo de um animal que nos é consubstanciai, ele deve advir, e ele advém exatamente porque é um dom; ele recebe uma imagem, o dom de uma imagem, e ele recebe o dom da palavra. E esses três dons não se fazem sem serem nomeados, o que faz aparecer o que Lacan denomina a função do pai nomeante, ou seja, a função de nomeação. Retomo então as categorias R. S e I para mostrar-lhes como se pode fazê-las funcionar.

RSI. portanto: R tem barra sobre o simbólico, S tem barra sobre o imaginário e I, sobre o real. É por esta razão que não se era ta d e um n6 olímpico, mas de um nó bo rromeano: se cortamos um anel, os crês se desfazem. No nó olímpico, se cortamos um anel, só esse anel cortado se desfaz.

A separação exprime a ascendência que o real tem sobre o simbólico. Isto significa que o simbólico não diz tudo, nele há um furo. É o umbigo do sonho de que fala Freud, e este furo, que se situa além do dizív.el, coloca em perspectiva a dimensão do inaudito. O inaudito, podemos dizer

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que ele é radicalmente barrado, eliminado, cassado pelo discurso dogmático que diz o que diz e não evoca nada diferente do que diz. O discurso poético, ao contrário, é o discurso que tem o poder de transportar-nos para além do sentido e de levar ao entendimento. Assim, eu diria que é na interseção real-simbólico que o dom do inaudito faz o dom da palavra e onde aparecem as primeiras nomeações, o que essas duas palavras fundamentais nomeiam: fala ou silêncio.

O furo no imaginário é o dom do inimaginável, o dom do invisível, é o que faz com que sobre o corpo algo não seja especula~ o que é colocado em jogo pelo recalque originário: o corpo não aparece senão ~elado pelo tapa-sexo. O tapa-sexo é o que testemunha, ensina-nos qu e alguma coisa não se vê, é invisível. O falo, neste n ível, é invisível. D evemos fazer uma distinção entre a roupa de baixo que é o tapa-sexo e a roupa. pois a função da roupa é velar a roupa de baixo. A roupa é da ordem do I sobre R (I/R), ou seja, o real do corpo é revestido pela roupa. e é essa roupa que dá sua consistência ao corpo e é por ela que se produz o dom do corpo.

E voeês vêem que a reflexão sobre as três interseções do nó borromea:no já nos dá uma indi-

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cação sobre as três orientações pelas quais o homem pode se guiar na criação, pois a ascendência de R sobre S, que indica a dimen são do inaudito, é o que o artista, como músico, nos fará ouvir: o que é que nos faz ouvir a música senão o inaudito? A ascendência de S sobre I, que produz o invisível, é o que o pintor nos fará ver. A ascendência de I sobre R , através da qual o corpo se to rna leve, subtraído de seu puro p eso material. produzindo a imaterialidade possível do corpo, é o que o dançarino, que pode esvoaçar p or sobre a gravidade terrestre, livrar-se dela, nos mostrará. Temos, portanto, três nomeações e três separações. Não estou ainda no nível da escansão mas pouco a p ouco dela me aproximo. Concebo o interdito como a capacidade de operar, de criar distinções através da nomeação. O interdito originário p ode ser compreend ido como a capacidade de apreensão do significante sobre o real, estabelecendo distinções separad oras que impedem a confusão caótica. Por exemplo, ainda há pouco quando lhes falava de luze trevas, eu lhes fiz observar que luz e trevas encon t ravam-se indistintas, que a luz, como o trauma, não estava distinta das trevas. Situo no quinto versículo a aparição do pai nomeador que, nomeando, distingue, substitui luz e trevas por dia e noite. 32


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Contudo, através d a nomeação, ocorre também um empobrecimento, pois o dia não restitui toda a luz. O dia é uma apreensão da luz que, em função do limite da nomeação, estanca também o que há d.e ilimitado na luz, ou seja, a nomeação é um avanço no sentido do interdito e das distinções, mas é também um empobrecimento, e eu d irei que é contra este empobrecimento que luta o artista, pois o artista é aquele que nos restitui a d imensão do ilimitado da luz do verbo originário, que foi empobrecido pela nomeação dia . O problema mais difícil a que chegamos é que o dizer do interdizer nomeia. mas. do mesmo modo que o dizer nada pode fazer além de semi-dizer, o interdizer não pode interdizer Ínteiramente1. Isto signi.fica q ue o interdito separador incide sobre um ponto, no qual ele opera, mas há também um ponto em que ele não chega a nomear e a operar distinções, um ponto que escapa à nomeação. Aqui também darei um exemplo que extraí

dos primeiros versículos da Bíblia. Vocês observarão no primeiro e no segundo versículos que as co isas se passam em dois tempos. O primeiro versículo nos diz o que Deus cria, e no segundo 7. N . do T. Cf. nota 6, p. 29.


ALAIN PIOIER-WEILL

ele nomeia o que criou. Ora, há uma coisa que é criada, e apenas uma, que escapa a toda e qualquer nomeação. É o que aparece no segundo versículo: o abismo. É criado o abismo, o furo absoluto, e vocês verão que esta é a única coisa à qual a nomeação não advirá fi. posttriori. Ou seja, mesmo no dizer onipotente do Todo-Poderoso alguma çoisa se subtrai à nomeação e penso que é a partir disso que se pode pensar o surgimento do supereu. De minha parte, vim a compreender a aparição da figura da lei ptrsecut6ria, supereuóica, como ligada ao ponto em que o interdizer é insuficiente ou deficiente. Nesse ponto então o real não é mais contido nem pelo imaginário nem pelo simbóliCo, e aí algo escapa radicalmente à simbolização, produzindo-se, no lugar da separação esperada, um contato. o contato é o mundo do tabu, e vocês sabem que o tabu é o ponto do real com o qual o contato do sujeito pode levá-lo à morte, e eventualmente o leva. Se o tabu era reconhecido nas sociedades ditas primitivas, em nossas sociedades não o identificamos, não conhecemos o tabu, mas podtmos supor que um certo número de doenças mortais talvez estejam ligadas ao que sobrevém quando não há distinções simbólicas, quando não há escansão.

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LACAN E A CLINJCA PSICANALÍTICA

O que é escandir? Escandir é transcender; transcender é a distinção absoluta. É transcender o real, estabelecer entre o real, o simbólico e o imaginário uma dimensão transcendente. Quando isto opera, estabelece-se uma interdição que torna impossível, no sujeito, o contato entre real e simbólico. Vejo a origem do ·Mal ligado ao supe-reu como aquilo que se passa quando nos avizi:nhamos do real mortífero, do real não transcendido. Somos então colocados em perigo por este contato imediato com o real. É o que se passa com relação ao monstro. O monstro é a mortificação de um sujeito humano, o que se produz quan.do o real subvene os limites, quando estes não mais se sustencam, quando não há mais t ranscendência em relação ao real. e quando o real corrói, poderíamos dizer, subverte, derruba os limites. O que se passa quando há contato entre o real e o simbólico, ou seja, quando o simbólico não é mais trancendente ao real? A palavra passa a

estar- em perigo, ela morre e surge um olhar supereuóico sob o qual o sujeito não mais pode dizer uma palavra; à simples idéia de falar ele engasga. o u é reduzido ao estado de morto-vivo, m udo, autista.

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A1--"IN DIDlER-WEllL

O que ocorre quando o simbólico e o imagi~ nário deixam de estar separados? Se o invisível desaparece, o que nos acontece? No caso mais benigno, o que nos acontece é enrubescer de vergonha. O que se passa quando enrubescemos de vergonha? Mostramos nossas cores. E por que mostrá-las, enrubescendo, é uma experiência cão dolorosa para nós? Porque temos então o semimenta de que nada mais há em nós de invisível, tornamo~nos inteiramente visíveis, inteiramente transparentes ao olhar do Outro. Introduz-se aqui, portanto, uma segunda forma do supereu, uma segunda manifestação do que se passa quando não há mais transcendência entre essas duas categorias. E quando o imaginário e o real não mais estão separados, quando a imaterialidade é posta em perigo, o que se dá? Pois bem, a capacidade que tenho de ser um corpo dançante, dotado de imaterialidade, que pode voar como um pássaro, cessa< e logo esse corpo torna-se rígido como um corpo de pedra submetido ao peso da gravidade e, por exemplo, caio em depressão, sinto o peso de meu corpo pesar. A partir dessas considerações, começo a po-

der falar de escansão. Tomei tempo para chegar a esse ponto. E penso agora ter elementos para


LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA

dizer o que é a escansão: é o que deve restaurar a transcendência dessas três separações, intervir, de modo apropriado, nos três casos que citei. O corpo, que nos foi dado, é um corpo que pode dançar. Direi que o tipo de escansão que pode restituir ao·depressivo a leveza de seu corpo, falo a partir de minha experiência, não é da ordem da interpretação. Nunca vi uma interpretação fazer o menor efeito em um deprimido ou em um melancólico. Em contrapartida, o que pode criar uma escansão e devolver a vida ao corpo do deprimido é o ritmo. O ritmo, isto é, o que há de mais assemântico e que não cem nenhum sentido, o ritmo da música, o que faz mexer, dançar. O que se passa quando o ser humano está sob a transparência do olhar que o reduz a este objeto enrubescente da vergonha? Há sujeitos que não falam pois vivenciam-se o tempo todo como transparentes. Pois bem, direi que a escansão que é esperada nessa situação é que o olhar fascinante que petrifica aquele que perdeu sua invisibilidade seja substituído por um outro olhar, do qual o analista deve poder dispor. Não posso garantir que ele possa dispor desse olhar, que seja capaz disso, mas digo que o analista dtve dispor do que vem a ser o olhar do pintor. Denomino "olhar do pintor"

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ALAIN DrDIEJt.-WEJU.

este olhar que não apenas pode ver e mostrar o invisível, mas que, ao ver o invisível, o faz aparecer e o faz com toda a clareza. O enigma do invisível que o olh.ar do pintor pode fazer aparecer é um segredo, um segredo que nã~ tem necessidade das sombras para se esconder, como a maioria dos segredos. Os segredos são frágeis, pois não existem senão na sombra, e um segredo que só existe na sombra é frágil porque basta o clarão de uma lâmpada elétrica para fazer desaparecer o segredo aí escondido. O segredo de q ue se trata aqui é um invisível que pode eclodir em plena luz. E esta é, segundo penso, a escansão que o olhar do pintor, o olhar do analista, pode trazer. Enfim, quando o sujeito perde a fala, quando ele é mudo, o tipo de escansão que deve ser introduzido é a escansão própria ao significante siderante. Não digo que seja fácil, m as digo que o analista deve poder, em dado momento, t ransmitir, por intermédio de uma palavra siderante, comparável ao chiste, aquilo que tem por função restituir o suporte da palavra ~quele que perdeu a fala, ou seja, retirá-lo do tempo traumático do não há em que ele se encontra, restituir-lhe a palavra que nasceu com a metáfora que diz hti enio há ao mesmo tempo. Como fazê-lo? Isso não é explicável, é o ponto em que isso exige Juling, às vezes


LACAN E A Ct.fNICA PSICANAÚTICA

sorte; às vezes isso exige muito tempo até, que se encontre a palavra que tornará traduzível o comando siderante, ou seja, o comando da palavra que diz ao sujeito: ." Tu podes falar na medida em que reconheces tua dívida para com a sarça ardente do significante, e que tu consentes em viver essa dívida no ato de sideração". Diria que a escan são, o analista deve t~má-la a seu encargo no ponto em que o supereu age em função de uma deficiência do ip.terdizer. Enquanto Freud coloca o supereu na origem e a ética corno uma reação secundária à culpa supereu6ica, eu situaria o supereu como secundário ao simbólico, secundário ao fato de que o simbólico é deficiente, barrado. Pode-se sempre lutar contra o supereu, e faz parte do destino humano de todos os te~pos lutar contra ele, mas o supereu não é unicamente ligado, como pensa Ferenczi. ao fato de termos pais malvados. Existem pais malvados, . . com certeza, pats perversos que transmttem supereus mortais mas, para além disso, há, na transmissão da própria linguagem, um efeito de estrutura q ue faz com que o bem-dizer entrel.acese com o mal-dizer: o mal-dizer, que maldiz, é inseparável do bem-dizer, pois há, n o bem-dizer, o bem inter-dizer, um furo na nomeação ao qual o tabu faz suplência. E é por isso que o supereu é

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AL\IN DIDIER-WEILL

consubstancial, não se pode prescindir dele. Podese ultrapassá-lo, mas é preciso saber que, se o ultrapassamos, ele não será abolido de uma vez por todas. É um fato de estrutura que o interdizer não pode subsumir todo o real. E talvez isso ocorra também em outros campos, o horror que o homem tem em considerar-se inacabado, em ver que na vida humana algo é desgraçado. Em resposta a esta lei supereu6ica que nos persegue, cabe-nos exercer a possibilidade de não cessar de dever simbolizar esse real não simbolizado que se manifesta nas nês direções que indiquei. Temos que assumir o encargo desse real e mostrar ao analisante que podemos, como analistas, ousar olhar de frent-e o supereu mortífero, sem por isso morrermos. É preciso lhe ensinar e lhe mostrar que podemos olhar a Medusa sem sermos petrificados, ainda que ela jamais venha a ser destruída.

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A PULSÃO INVOCANTE 2.h~hf995

A presença que fala em nós, será ela sexuada? Digamos que antes daquilo que chamamos o trauma, o sujeito fala e ainda não é sexuado. Ele tem, na origem, uma relação à palavra que lhe vem do Outro, e que não tem o caráter do sexo porquanto o Outro não é sexuado. Podemos dizer que, por isso, entre a recepção e a emissão, o sujeito recebe uma palavra que não é sexu~d~, ~as que a partir do trauma e do recalque ongmán o, tendo-se constituído um corpo como sexuado, uma parte da palavra sed submetida ao deter~i~ismo sexual, enquanto uma outra permanecera vtrgem, indeterminada. Assim. hoje tentarei abordar como homem e mulher situam-se diferentemente por relação à palavra e procurarei diferenciar, nessa clivagem h~­ mem/mulher, que afinal de contas é bastante tradtcional, em que consiste o desejo que está em jogo na palavra e em que consiste a pulsão invocante.


ALAIN OIDlER.-WE ILL

O que é o ato de invocar? E por que o canto, mais do que a palavra, presta-se à invocação? Esbocei de modo muito sumário no quadro o fragmento de um desenho utilizado por Lacan em seu Stminlirío' e que representa, como vocês sabem, um vaso com uma flor. Esta é a maneira com que Lacan, em sua primeira reflexão na qual faz uso de espelhos, presentifica esses vasos com o gargalo que representa um furo. Ele exemplifica desse modo o que é o eu (moi), í'sto é, a imagem inconsciente do corpo. Vocês vêem então que esse vaso representa o eu inconsciente, a imagem furada pelo gargalo que permite que a flor aí se coloqu~ - é isso que faz com que originariamente tenhamos uma relação com o objeto de nosso desejo. Podemos ver que o mundo aparece para nós do mesmo modo que a flor, pelo fato de que há uma tomada do real que é o objeto no imaginário por intermédio desse furo, desse gargalo que es~uematicamente representa o furo no corpo, deaxado pela castração no recalque originário. Esse furo não é o mesmo, não tem a mesma estrutura do lado do homem e do lado da mulher. Do lado do homem, podemos dizer que o fato da 8. N. do T. Cf. nou 5, p. 26.

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LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA

castração faz um furo simbólico, um furo simbolizado - pois para conviver com um furo é preciso simbolizá-lo - por um significante que é o significante fálico. E é em função deste significante fálico, que entra numa relação específica com o objeto do desejo, que o corpo do homem ganha sua consistência. Tomo um exemplo simples, o exemplo do primeiro jogo que um menino inventa, sem que tenhamos que ensinar-lhe, o jogo de futebol: de repente, ele chuta uma bola. Proponho-lhes compreender que o chute, como a raquete de tênis, é o símbolo do falo , que se especifica no tocar na bola, quer dizer, no ~epa rar-se desse objeto enigmático que~ a bola, que ele constituí como eternamente perdido. Sim, porque a bola não tem interesse algum quando a prendemos nas mãos, a bola só interessa quando nos separamos. dela, quando a chutamos, isto é, quando a con stituímos como objeto perdido, atrás do qual o homem correrá por toda a vida. É correndo atrás da bola que ele isolou graças a seu pé ou à raquete de tênis erguida que seu corpo se faz ereto e consistente. Então, poderíamos dizer que é isso que dá ao corpo do homem sua consistência. Para uma mulher, esse furo não tem a mesma estrutura, pois não é um furo simbólico, é um furo de ordem real. E, sendo real, ocorre que a relação


AlAIN OJOJER-WEJLl

que a mulher tem com o falo faz com que este lhe venha do simbólico por meio daquele que é seu legítimo detentor. Mas a relação que esta mulher tem_com o falo não basta para simbolizar esse furo na medida em que ele é real. Pois o falo para uma mulher não pode dar conta de todo o real. É nisso que, éomo diz Lacan. a mulher é não toda na ordem do falo. Ela é não toda porque o falo não tudo faz por ela. Resta assim uma parte de real que não é subsumida pelo sexual e que faz apelo.a outra coisa para ser simbolizada. Esta outra "coisa", que é "A Coisa", eu lhes assinalo sua aparição por um dos primeiros jogos da menina: esponuneamente, ela não brinca com a bola da qual se separaria, como o menino, ela rende antes a separar-se, ela própria, do chão, brincando de saltar no ar, pulando corda. É muito diferente lançar-se no ar e lançar, no ar, uma bola. É muito diferente porque não se trata da separação de um objeto causa de um desejo. Nesse jogo precoce a menina inventa a dança, ou seja, inventa o ato de aliviar seu corpo, torná-lo leve, retirar-lhe: o peso. A que faz apelo a menina para que seu corpo. que não é inteiramente simbolizado pelo sexual. encontre um complemento de simbolização? Penso que, quando dança, ela espera uma simbolização do Outro, do Outro com um O maiúsculo. Ela a espera e a obtém.


l.ACAN E A CLÍNICA PSICANAlÍTICA

pois, quando pula e volta ao chão, não são seus músculos que o fazem, é uma relação com o Outro com o qual ela entra numa invocação. Se ela o invoca, o Outro responde de forma a torná-la leve, de forma a tomá-la e a elevá-la no ar, mesmo a deixando cair de novo. É o significante que a torna leve, que a enleva, e, por essa disparidade entre os jogos precoces do menino e da menina, vocês podem ver as referências que observamos em dois tipos de orientações possíveis. Para o homem, creio que se pode dizer que sua relação com o falo e com o objeto pequeno a intervém a partir da questão do recalque originário, ou seja, quando, na esteira do recalque originário, integra-se a significação desse furo real no simbólico que é A Coisa, Das Ding. Esta coisa, enguanto inaudita, invisível e imaterial, é aquilo sobre o que o sujei~o do inconsciente ($) é posto em relação co~ um real que transcende o que é visível. audível de modo finito e limitado. A operação que faz do homem um homem, que tem que se haver com este ilimitado, este inacessível, é aquela pela qual ele substituirá este ilimitado pela significação de um objeto limitado, o ob jeto pequeno a, simbolizado para ele, na maioria das vezes, por uma mulher. Lá onde havia o

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ALAIN DIDIER·W6lll

ilimitado, ele o substitui por um lugar-tenente do Outro, que é o objeto. Este homem opera, poderiamos. dizer, um deslocamento da questão, ele recebe a questão do real ~m sua dimensão de ilimitado ou de infinito, e responde diundo <jue há um objeto finito que adquire uma significação sexual. Enquanto para Freud a sexualização é primária e a sublimação secundária, para nós a sexualização é secundária à instauraç~o deste lu-gar de sublimação que é Das Ding. É nesse ponto que colocamos que a mulher - ou, em todo caso, o feminino porque quando digo a mulher trata-se do feminino -tem uma outra relação com esse ilimitado. Seu desejo não é causado por um objeto a, pois el.a não tem à sua disposição um objeto a que a coloque em movimento, que a faça correr por toda a sua vida atrás desse famoso objeto a. Eventualmente ela tem um filho que pode ter essa função de objeto a, mas jamais um homem, jamais um parceuo. Direi portanto que a mulher não está em posição, como o homem, de esquecer o Outro. A entrada em jogo do objeto a permite fundamentalmente ao homem esquecer a dimensão do Outro no que ela tem de transcendente. A mulher não pode esquecer o Outro porque não há, para e1a, lugar46


LACAN E A CÚNICA PSICANAlÍTICA

tenente do Outro e por isso ela não é uma militante. Ela permanece em relação com o ilimitado da Coisa que ela encarna para o homem no amor cortês. Para conviver com esse ilimitado, ela não dará a solução do desejo masculino, ela o abordará, esse ilimitado, pelo viés do que podemos chamar a invocação. Quando ela entra nessa dimensão é algo tão forte que na maioria das vezes ela hesita, não entra e prefere tagarelar. D iz-se que as mulheres têm a capacidade de falar de coisas fúteis- são os homens que dizem isso- mas penso que a profundidade da futilidade tem sua razão no fato de saber que se ela deixar de ser fútil,

ela entrará nessa dimensão romântica da invocação na qual não se entra sem receios, pois, uma vez que se entra, acabou a brincadeira, é prá valeL Nesse ponto, penso que se pode dizer que o destino do masculino é o jogo do sentido, quer dizer,''ir na direção do sentido, do sentido no qual corre a bola, e o destino do feminino, a preocupação com algo de mais subterrâneo: o jogo da existência, o crer no fato de que se possa existir. Para a mulher, poder acreditar nisso é uma questão, pois a inconsistência que há em seu corpo, essa parte de real que não é subsumida pelo sexual, lhe t raz uma dúvida sobre sua existência, que dá a seu destino um outro delineamento, fazendo-o passar por 47


ALAIN DIDIER-WEIU.

caminhos de realização diferent~s dos do homem, este último em busca do sentido, num pensamento que se pode dizer causal Há um sentido no objeto, é preciso encontrar o objeto, essa é a origem do sentido. H á mais que um sentido e ele sabe que há uma caus~. É isso que, na minha opinião, está na origem do fato de que o homem tem um pensamento, como se diz, objetivo, apreensível pelo pensame~to científico. Uma das coisas mais difíceis de pensar é a produção daquilo que uma mulher pode fazer quando entra nessa invocação que é a dança. Uma mulher é mais especialmente levada a dançar do que um homem; penso que o feminino, como tal, é chamado a dançar. Eu. pessoalmente, ouvi muitas mulheres reconhecerem que, no fundo, mas no fundo mesmo, dançar é o que elas teriam desejado fazer. Conheço até mesmo mulheres que não vão a espetáculos de dança., tamanho é o mal que isto lhes faz, e isso lhes faz mal porque manifesta a realização absoluta de uma mulher, realização que ela não suporta que lhe tenha escapado. Quando vemos uma mulher dançar, contrariamente à produção de um homem, para a q ual podemos sempre perceber que há uma causa, compreendemos que o movimento femin ino


LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA

especifica-se por ser sem causa. Ele não é explicável por um encadeamento de causa a efeito. A mulher, nesse domínio, situa-se em um setor que escapa ao pensamento causal do homem, que quer compreender tudo. Exíste ali algo que escapa à explicação causal. Por quê? Ligo o pensamento causal do homem ao fato de que ele é causado pelo objeto, sua corrida é guiada pelo fato de que ele corre atrás de uma bola, ele é causado porque a bola corre à frente dele, e há entre ele e a bola uma latência. Quando uma mulher dança, quando o feminino dança, será que podemos dizer que ela é causada pela música, pelo Outro? Eu diria que não, ela não é causada pelo Outro, pois, quando ela dança, ela é o Outro. Para ser causado, é preciso um hiato temporal - correr atrás da bola. No caso, a mulher não corre atrás do Outro, ela é o Outro, o que significa que há uma sincronia, não uma diacronia; ela é sincronicamente o Outro e é por isso que não se trata de causa. Chegamos então ao ponto de tentar repensar a dialética entre gozo fálico e Outro gozo. Para um homem o gozo fálico é causa do semblante que ele tem de ser um homem. Se um homem vem a gozar sexualmente de uma mulher, o ganho fundamental para esse homem é que ele extrai desse

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ALAIN DID IER-WEILL

goz~ um semblante de idencidad~ sexu.al. Ele crê poder pensar q.ue é um homem. E por tsso que o homem tem necessidade da mulher ê que se pode dizer que a mulher é a verdade do homem, coisa que todas as polícias do mundo sabem, pois, quando se procura ~m criminoso, diz-se: "Procurem a mulher!". Q uando se encontra a mulher. não se está muito longe do cara. Isto não é recíproco, o homem não é a verdade da mulher porque a mulher não extrai urna idéia de sua identidade do gozo fálico. Desse ponto de vista ela é menos tola, menos "pato" do semblante. O que ela procura não é sua identidade sexual, é algo mais radical do que isso: sua existência. O que ela procura é crer em sua existência, poder crer nisso. Por isso a famosa insatisfação histérica é algo que, em minha opinião, Freud não captou inteiramente. Lacan fez um chiste, que eu não compreendi durante um certo tempo e que hoje me parece claro: "Qualquer um que ame urna mulher, seja qual for o seu sexo, é hetero"9 • Ele queria indicar por

9- N . do. T. A citaç~o pode ser encontrada em "I.:Étourdit",Sciliat,n. -4. Paris, Seuil, 1973, P· 23: "Disons hétérosexuel par définition, ce qui aime les femmes, qud que soit son sexe propre".

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LACAN E A CÚNlCA PSICANALÍTICA

esse dito que a relação com o gozo Outro da mulher é de tal modo Outra que produz o hetero, faz confrontar com o hetero, quer dizer, com a Alteridade absoluta. O que faz com que ao masculino seja interditado o acesso a este gozo Outro- chamemolo por seu nome- de ordem mística? Diria que para o homem, se há alguma coisa que produz o interdito, interdito de gozo, é que, no sentido literal. o interdito é fundamentalmente um interdi.{!r, e este inter é o inter que há entre esses dois significantes que Lacan escreve S,-S~. O homem é aquele que toma para si o intervalo S,-52., na medida em que o desejo é articulado pelo movimento de sideração que vai no sentido sl ~ s,,. enquanto a mulher é interdita pelo movimento . faz desaparecer inverso; indo no sentido SI~ o interdizer para aceder ao impossível místico.

sl.

A sideração é o que ocorre a um ser humano

quando ele é reduzido a um só significante. Por força do par significante isso parece impossível, mas é possível franquear o interdito, o interdizer, pois a sideração nos dá esra experiência clínica em que o sujeito falante pode ser remetido ao significante do recalque originário enquanto perdido. Lacan faz a esse propósito uma observação

sl

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AL\IN DIDIER..WEILL

bastante interessante no Seminário, livro l r: os quatf'o conuirosJu.ndammtais da psicanálin ( 1964). Quando fala desse significante 5 2 originário, ele diz: o problema é que quando o sujeito se constitui, bem na origem, como significante 5 2 originário - é no momento em que ele comenta. o Homem dos lobos em sua constituição ao nfvd do récalque originário - , ele não mais poderá permanecer num só significante. Trata-se com efeito de sair do ponto em que stl, ou seja, sair desta subjetividade absoluta que é o ponto originário em que a significância faz padecer o real, e em que há ~ma interseção primordial reaVsimbólico. Segundo penso, a sideração é o que ocorre de modo transitório a um sujeito quando. num tempo fugidio, ele é reconduzido violentamente a este significante originário do não-saber absoluto, em que, siderado, ele fica boquiaberto, lívido, despojado de tudo aquilo de que estava munido, desprovido de tudo aquilo que tinha. O interdito é permanecer na sideração; é igualmente um interdito de goio, pois podemos dizer que a sider ação é uma experiência de gozo de ordem possivelmente mística. A mística permanece na sideração, numa relação absoluta com o Outro, enquanto a desideração é o ato pelo qual o sujeito retira-se deste tipo de gozo em decorrência do

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L\CAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

achado de um significante em que se articula seu desejo, o significante 5 1 • Eu diria que o homem é votado a encontrar escansões sucessivas introduzidas pelo significante 5 1 , que revelam fragmentos de sentido e subtraem ao gozo, o gozo gerado pelo fato de se estar exclusivamente ao nível do significante origin~rio único. A partir do momento em que falamos, em que destacamos palavras, fonemas, estabelecemos escansões das quais nasce a inteligibilidade do discurso. Será que vocês já se perguntaram o que faz aparecer esse gozo muito particular que se pode experimentar ouvindo cantar a voz de uma diva na ópera? A voz da diva na ópera me parece retomar a questão da invocação da dançarina, pois ê a invocação absoluta. Se a voz da cantora nos produz um efeito tão particular de emoção- vocês podem observar o que caracteriza a voz feminina quando ela se eleva no agudo e no superagudo é que quanto mais a voz se eleva, mais a descontinuidade ligada aos cortes da fala desaparece, e mais se produz uma voz que substitui esta descontinuidade pela continuidade absoluta. Gostaria que vocês o sentissem para compreenderem que é no momento em que a continuidade substitui a descontinuidade que aparece o gozo, o gozo


ALAII' DIOIER.WE!ll

não fálico, o Outro gozo, o gozo excedente, o gozo que faz com que nesse momento não se saiba mais se é a diva ou o divino que canta. A palavra diva não foi fabricada por acaso. Vou lhes contar um pequeno escândalo que ocorreu em I 774 na Cone do Rei Lufs XV. quando Gluà apresentou sua ópera Oiftu t Euddia 10, quinz e ano s antes da Revolução Francesa. Quando esta ópera foi apresentada diante dos

1 O. N . do E. C h ris toph Williba(d R itter von GLUCK (171 4-1787) apresenta a primeira versão de Orft14 t Eurúlict em Vieru, em 1762, antes de sua declara-

da intenção de reformar a 6pera. Em sua "reforma da 6pera" Gluck, a partir dos c5nones d a tragédia grega, busca fazer com que a música sirva à poesia, tornando a . Abtrtunt rclev~ntc para o drama e a orquestração adequach às palilvru. Assim, "' flm de se t er uma .s6 dimensão mu- · sical com textura mais contínua, constant emente expressiva e cond icionada pelo texto, a fronte ira entre o reciutivo e a ~ria tende a desaparecer. e o coro ganha valor de personagem. A versão de 177-+. citada pelo autor, amplia consideravelmente a anterior e o protagonista masculino, anterionncnre dedicado ao l 4Stralo contralto Guadagni, é destinado ao tenor Legros. A escrita do canto do protagonista, já modificada do contralto para o soprano por ocasião de uma versão em Pacm.a em 1769, altera sua tessirura uma outra vez.


LACAN E A ClÍNICA PSICANALÍTICA

convidados do rei11 , houve um escândalo de que não se faz idéia, escândalo que fez aparecer um conflito muito violento entre homens e mulheres, expresso nos termos ''o canto do Rei" e o "canto da Rainha". Eu lhes trarei também algumas linhas de uma carta de M.lria Antonieta a sua irmã Maria Cristina, quando o escândalo edodiu ap6s a ópera: "Não se fala em outra coisa. Reina em todas as mentes uma fermentação tão extraordinária quanto você puder imaginar sobre este evento, é incrível, as pessoas se dividem, se atacam, se odeiam, se embacem, como se se tratasse de uma questão de religião". E ela não estava errada, porque provavelmente era de uma questão de religião que se tratava. Na mesma época, Julie de Lespinasse 1~ escrevia do lado

N. do T.

No original, parttms fOJffiU, expressão que se refere ao espaço, na sala de espetáculo, que se situ~ imediatamente atds da orquest ra, no qual se podia assitir de pé. ou no qual eram colocadas poltronas especiais, Optamos por traduzir a expressão pelo seu sentido- é dos convidados d o rei que se trata - assinalando, por esta nota, o sentido literal da expressão utilizada pelo autor em sua exposição. 12. N. do E. Julie-Jcanne-Eléonore de LESPINASSE (17}2-1776) exerceu um grande encanto sobre os freqüentadores dos "salões liredrios" por sua rara curiosidade intelectual e sua abertura de CSP,irito que a permitiam escutar e • inclusive divid ir as mais diveru s e audaciosas propostas. l i.

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A.I.AIN DlDfER-WEILt

do "canto das mulheres", após a audição dessa ópe· ra, na qual ela estava: "Gostaria de ouvir dez vezes por dia esta audição de Orftu. Esta perda que me dilacera e que me faz gozar daquilo de que lamento [ela acabara de perder seu amante] . Perdi meu Eurídice, este gozo me deixa louca. Ele me arrasta, minha alma está ávida desta espécie .de dor". Eis o que é introduzido. Até então, a ópera, criada no Renascimento - podemos dar-lhe os títulos de nobreza com Monteverdi- obedecia à lei do parlar cantando. Parlar cantando significa que aquele que canta fala ao cantar, ou seja, quando ele canta, imita a fala, faz ouvir todas as leis da sintaxe, dos cortes sintáticos, a descontinuidade da fala. E o que aparece com esta ópera de Glück é que, pela primeira vez, alguma coisa contraria o parlt~r cantando: é a primt~ la voa, o que significa que a voz, nesta ópera, se emancipa à palavra. A voz bruscamente se destaca, abandona as escansões ligadas à palavra. Abandonando as escansões, ela se dirige para um lugar de continuidade no qual a inceligibilidade cai, e aparece para os auditores um tipo de gozo que apavora os homens - · o canto do Rei - e que, no conjunto, arrebata as mulheres. Pessoas corno Jean-Jacques Rousseau estiveram do lado do canto das mulheres. As mulheres reconheceram imediatamente que este gozo, que 56


I.ACAN E A CLlNICA PSICANALITICA.

aparecia com a substituição da inteligibilidade das escansões vocais pela continuidade da voz, ou seja, pela emancipação da voz que se livra do poder das escansões, lhes concernia: "que me faz gozar daquilo de que lamento, que me deixa louca, que me torna ávida desta espécie de dor". Isto nos coloca questões: o qu~ fa2; com que os homens recusem com tamanha violência este gozo que pode apoderar-se deles mas que os aterroriza? Em <]Ue o fato de ser capturado por este gozo, que fcrniniza, põe em risco o masculino? Diria que quando este gozo se apodera de nós, o que se passa é um abandono do pensamento causal, posto que, nesse momento. somos colocados por esse tipo de voz numa relação em que não há mais interdito com o Outro, porque a escansão é o interdito de uma relação de proximidade com o Outro ao passo que esta voz é em suma um m~ ­ dium que cria a possibilidade de umnelação imediata com o Outro, deixando cair o lugar-tenente do Outro, o objeto a, que só aparece, como o car· retel no Fort-Da, com a escansão.

Com esta voz, introduz-se o que não tem causa, o que a mística Hadewijch de AntuérpiaiJ 13. N. do E. HADEWlJCH de Amué rpi~. mfstica e devota que viveu no século Xlll. Escreveu quatorze

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AJ...\IN DIDIER-WE.ILL

chamava o sem~porq,tê. Eis a invocação de Hadewijch: "Senhor. dirijo-me a ci. Por que canto amor. tu que nada me pediste? ( ... ) É sem-porquê''. A expressão vem dela: é sem-porquê. E eu diria que esta voz da diva é sem-porquê, pois não é o Outro que é sua c;ausa; nesse momento, o humano se torna Outro. Por que é sem-porquê? Se nos perguntamos por que o Outro não vem a nós, há um porquê, é porque há um recalque. Por que recalcamos o Outro? A isso podemos responder, e é Freud quem responde. Ele descobre que há um recalque do significante da Alceridade. Podemos responder por que dizemos não ao Outro, mas

será que podemos responder· a esta outra questão: "Por que há Outro?". A esta questão não podemos responder. Se não há Outro uma vez que o sujeito o recusou, por que há Outro? Não podemos responder. É sem-porquê. Fechando esses parênteses, retornemos à questão: por que é a mulher que pode encarnar de modo tão particular esse sem-porquê? Eu lhes fiz observar, desde o início de m.inha exposição, que a mulher é a depositária de um real que não é simbolizado pelo sexual, de tal modo que seu corpo Visões, trinta e unu C11ms tm prost~, dezesseis CartAs rim11Jas e quarenta e cinco Pomuu eJtró.ficos.

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não é encarnado como o do homem. Estra11jamtnte 14 ou não, o fato da mulher não ser encarnada faz dela aquela a quem o homem diz "meu anjo'' - o anjo é verdadeiramente uma criatura que não é encarnada, que não cem corpo. e que não tem sexo.

O fato de que na imaginação do homem haja esta idéia de que a mulher é um anjo explica o que se passa na cena da ópera: não podemos compreender a menos que tomemos em consideração o fato de que a ópera é a operação pela qual fez-se subir à cena profana uma mulher que toma o lugar da voz do anjo que era cantada pelo castrato, com o acordo da Igreja, nos três séculos que precederam

a 6per.3. e o Renascimento. Desde a origem, os padres de Igreja inclinaram-se sobre o modo pelo qual se poderia tornar os fiéis sensíveis à louvação de Deus. Como louvar a Deus? A tradição estabeleceu que o louvar a Deus é feito fundamentalmente 14. N. do T. No original itr11n_gtmmt. palavra que combina du.as outras: êtrt (ser) e tmgc (anjo), termo pn:sente n.a seqüência do pensamento do autor na frase, produzindo o efeito semântico str-anjo (êtn-ange), inteiramente homônimo de étrtmge (estranho), jogo que quisemos recuperar em português com o neologismo estrtmjamentc no lugar da tradução liiteral tstranht~mcnte.

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pelos anjos, por toda uma hierarquia celeste de anjos que é desenvolvida no livro' de Denis o Areopagita1 s. O extraordinário é que esses anjos louvam a Deus de um modo totalmente inaudível, em silêncio, sem que se possa ouvir a lõuvação, A Igreja considerou inclusive que o gênio dos grandes músicos como Mozart vinha do fato de que eles ouviam um eco, vagamente ensurdecido, do canto dos anjos. A Igreja assim colocou em cena o canto do anjo a partir do século XII ou XIII e, para fazer os anjos cantarem, a primeira idéia foi a de fazer cantarem jovens garotos, pois as raparigas, não se podia colocá-las em cena. Os jovens pré-púberes tinham vozes que subiam ao agudo permitindo fazer ouvir a voz angélica, pois o anjo só pode cantar no agudo, em nenhum caso no grave. Um anjo que canta no grave eventualmente pode ser um anjo maldito, pode ser Lúcifer. Um anjo desencarnado, um verdadeiro anjo, só pode subir aos agudos. Depois disso passou-se toda uma história: as crianças foram substituídas pelos tastrati, o que durou dois ou três séculos, com o consentimento 15. N . do E. Ver Pseudo-Denys L:ARÉO~GITE. Outvrrs cqmpJltts Ju pscuJo-Dmys L:Arfopt~litt. Tradução do grego de Maurice de Gandillac. Paris, Aubier,l990.

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da Igreja. Como tastrati adultos, eles tinham vozes femininas extraordinárias que faziam com que a mulher não precisasse subir à cena para que se fizesse ouvir a acuidade das vozes angélicas. Assim a ópera é a operação pela qual o anjo sobe à cena. Para nós isso é interessante porque é a operação que confirma um pouco o ponto em torno do qual giramos: o fato de que a mulher se presta a encarnar o anjo nos remete a esta questão tão difícil, a de que, em alguma parte de seu corpo. uma disposição a impele a ser um anjo, a cantar como um anjo, pois há uma certa não-encarnação do real de seu corpo. Isto ocorre porque ela é nãotoda, porque o falo não reina como senhor e porque há uma parte que permanece à parte do sexual: o anjo, fora do sexo. Se este gozo feminino deve se manter de tal modo afastado do canto do Rei, como compreender então que tenham sido sempre os homens que escreveram óperas, que colocaram em cena vozes angélicas, arrebatadoras, que os perturbam tanto? O que pretendo fazer observar é que todas essas mulheres que cantam, creio não haver nenhuma exc~ção , todas foram lançadas à morte, todas morreram. e, quando elas morrem, há uma derrapagem do grito arrebatador que se situa no superagudo

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tendendo ao grito. Por que esse grito foi tão freqüentemente colocado em cena na ópera? A hipótese que me propus é a de que esse grito possivelmente testemunhava o momento em que a mulher abandonava o corpo do anjo pelo viés da morte, e que era este o testemunho do sofrimento pelo qual - em todo caso, no imaginário do ho·mem - o anjo morre, ou seja, o que é desencarnado morre. Na medida em que o anjo não grita, é talvez o que faz ouvir a dor que pode representar para uma mulher a encarnação em sua carne porque, quando ela é lançada à morte, é sua carne que é mortificada, e é nesse momento que a encarnação com esta dor terrível do grito se faz ouvtr. Dei-lhes elementos para pensar, em sua oposição, os discursos masculino e feminino, propondo compreender que 0: que guia o homem é um tipo de desejo causado por este objeto destacável do qual ele passa sua vida a se separar para correr atrás dele, ·e o que guia a mulher seria um caminho inteiramente diferente, que, através da dança, através do canto, é o caminho da pulsão invocante. Lacan diz em algum lugar que a pulsão invocante é o que há de mais próximo da experiência do inconsciente. Ele diz também que um fim de análise que vai mais longe do que aquele pro·posto por

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Freud é um fim de análise que ultrapassaria o fantasma sexual e que daria acesso à pulsão. A questão que me coloco, e ao colocar-me eu a coloco para vocês, é a seguinte: será que o fim de análise não teria por função, entre outras. a de dar a um Sujeito acesso à pulsão invocante, da qual comecei a falar hoje? Se esta pulsão tem relação com a sublimação, ela não remeteria à dessexualização de Freud mas sim a esta parte indeterminada, ilimitada, que precisamente escapa a toda e qualquer determinação sexual. Muito obrigado.



o PASSE Jde~del99J

Bom dia. Hoje trabalharemos sobre a questão do passe. uma questão verdadeiramente densa e complexa. Parto de uma constatação que fiz, e que outros além de mim devem ter feito: há alguns anos eu tinha um analisante que concluiu sua. análise tornando-se analista. Durante esta análise, eu ficava freqüentemente como que maravilhado pela capacidade de invenção deste analisante, pelo modo como ele metaforizava as questões do real, pela maneira como ele respondia a elas, e pela forma como ele pôde concluir sua análise. Alguns anos depois do fim de sua análise. ele veio a' inscreverse em uma das numerosas instituições de psicanalistas que existem em Paris, e enviou-me uma carta dizendo que. pela primeira vez, testemunharia publicamente de sua experiência de jovem analista. Fuí, então. ouvi-lo. O que mais me impressionou quando o .ouvi falar foi que eu, que durante anos


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fôra a testemunha de sua inventividade, pude compreender o preço que lhe custou o fato de falar em uma associação guiada por uma certa ortodoxia: sua palavra, rica em invenção, havia-se profundamente empobrecido. No discurso extremamente tradicional que ele sustentava, eu não pod ia mais reconhecer nenhum traço do sujeito metaforizante que eu havia escutado durante tantos anos. A questão que se coloca é a segui~e: como podemos dar conta de um dualismo segundo o qual haveria um lugar privado, o lugar da análise, do divã, que se prestaria à possível criação do sujeito, e um outro lugar, o lugar público, no qual o analista deve dar conta de sua experiência diante de seus colegas, lugar no qual só se ouve um discurso que, para não destoar da ortodoxia, não mais daria lugar à sua cap acid:~de de invençã.o? Con:to. portanto, devemos compreender um tal dualismo? Caberia dizer que as sociedades psicanalíticas tradicionais orientaram-se no sentido desta clivagem, apoiando-se na idéia de que s6 um sujeito de exceção, Freud, ou Lacan, seria capaz de ultrapassar esse dualismo, sustentando um discurso capaz de estabelecer uma continuidade entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em

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extensão. Lacan, insurgindo-se contra esse dualismo, teve uma idéia genial, que eu formularia através da seguinte questão: será que o ato de objetivar um sujeito de exceção num homem de carne e osso não seria uma defesa contra o fato de reconhecer que existe um outro sujeito de exceção que é o sujeito do inconsciente, sujeito que pode falar não no dualismo, mas a partir de um ponto de vista terceiro, o ponto de vista da divisão? Freud já havia observado coisas dessa ordem. Por exemplo, num texto em que ele evoca sua relação com seus alunos, ou com alguns de seus alunos, sem nomeá-los, ele diz algo assim: "Temos a impressão de que aquilo que eu elaboro na psicanálise, um aluno só anseia por aceitar, em dar seu assentimento, mas de fato eu, Freud, sinto nisso uma espécie de frieza, de inafetividade, de tal maneira q ue o sim que é dado desse modo à teoria do inconsciente é um sim que parece não se prestar a nenhuma conseqüência". Implicitamente, Freud coloca a seguinte questão: "Será que o fato . de que conscientemente o eu diz sim significa que o inconsciente também diz sim?". Para ilustrar essa questão, lembro-lhes o que sucedeu a alguns discípulos de Freud, como Hartmann, Kris e Loewenstein, que promoveram,

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nos Estados Unidos, a teoria do eu autônomo. Como devemos compreender o faro de que, quan~ do em algum momento Hartmann trabalha coin Freud, ele está em posição de dizer sim ao inconsciente freudiano e que, vinte anos depois, sua teoria manifesta que ele diz não a esse mesmo inconsciente? Deveríamos supor que ele evoluiu, ou devemos compreender que, quando ele dissera sim, vinte anos antes, ele, sem o saber, já havia dito não, e que o tempo transcorrido não fez mais que revelar o fato de que o seu sim, de ordem euóica, era de fato um sim que velava a ausência de um sim inconsciente. Isso me evoca a leitura que f12 de um texto de Platão, o Teeteto 16 , no qual há um diálogo, absolutamente apaixonante com relação a isso, entre o estrangeiro e Teeteto. Quando este combate a posição dos sofistas, o aluno responde ao mestre: "Sim, sim, estou de acordo com a sua demonstração, o senhor tem toda a razão". Em resposta, o mestre diz algo assim: "Como posso saber se este sim que você me dá, você não o teria dado aos sofistas, se você tivesse tido um mestre sofista? O que garante que você próprio está intimamente convencido desce sim? Será que posso sabê-lo?". 16. N. do E. Ver PLATÃO. Thlítrte. Trad. de Michel Narcy. Paris, Flammarion. 1995.

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Podemos supor a estupefação do aluno, que imaginava que bastaria dizer sim para que este sim fosse em si mesmo uma prova. Chegamos assim à idéia, analiticamente formulada, de que o enunciado do sim não prova que haja uma enunciação do sun. Farei uma sumária comparação entre essa aptidão a dizer sim e aquela que chamamos em francês o blní~oui~oui [bendito-sim-sim] 17• O interessante da fórmula francesa é que ela faz ouvir uma repetição do sim, o estar de acordo na dimensão da repetição , que se opõe àquilo que denominamos a insistência. A insistência do sim é coisa inteiramente diversa da repetição do sim. A insistência do sim é aquela que o inquisidor situaria no princípio do perseverare Jiabolicum do herege. Se o herege é um sujeito, um mau sujeito, é que a relação que ele cem com o significante não é a de um sim que se repete, é a. de um sim que insiste,

ou seja, de um sim que encontrou o consentimento do inconsciente. 17. N. do T. Em português a expressão que corresponde em sentido a esta expressão francesa é VQCa de presépio. Mantivemos, no texto, a expressão original e sua tradução literal em função do valor ck aliteração do sim, presente na expressão francesa, e que é retomada pelo autor na seqüência de sua exposição.

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O sim consciente é, então, um sim no qual o eu proclama que é fiel, fiel porque o fato de que ele diz sim garante que de é o bom moço, que ele é gentil. enquanto o sim do inconsciente é um sim que só pode ser proferido em absoluta solidão: quando proferido, nada garante ao sujeito que ele terá o acordo da autoridade, sej:1 ela qual for, e , é a. partir daí que a significação do autorizar-se, autorizar-se por si mtsmo encontra seu princípio. Vejam que há .dois "s", há o autorizar-se e ha o si mesmo. Tudo o que a instituição quer é reconhecer seus membros, autentificá-los, autorizando-os a serem membros. Ora, o que especifica o sujeito do incons• ciente é não ser aucorizável. Portanto o autorizar-se cria imediatamente um perigo para a instituição, pois se o sujeito autoriza-se por si mesmo, o que será da autoridade da instituição que sustenta sua legitimidade, e sua força, no fato de que ela aútoriza. analistas a serem analistas? Isso foi, em todo caso, o que se passou no infcio entre a IPA e L.acan. A IPA tirava seu poder de autorizar, pois, autorizao- . do sujeitos que aceitavam esta autoridade, da fundamentava sua própria autoridade. Compreendemos o horror desta instituição venerável quando Lacan colocou no frontispkio de sua Escola: "O analista não poderia autorizar-se senão por si mesmo". A instituição, a partir daf, não teria caducad'o?

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lACAN E A CÚNJCA PSICANAÚTlCA

É neste ponto que Lacan responde com o passe. A hipótese que ele faz é que o fato de que o sujeito se autorize por si mesmo não o lança numa solidão absoluta de ordem mística em que ele só teria que prestar contas a si mesmo. Lacan supõe que o ato de se autorizar não é somente o ato pelo qual o sujeito faz o ato de se tornar analista; é também um ato dotado de tra.nsmissibilidade, ou seja. um ato que pode ser retirado do campo do inefável para ser transmitido a terceiros. Esse aspecto nos aproxima muito do problema da sublimação, na medida em que, tal como Freud a situou, a sublimação é a produção de algo que se transmite sozinho. Não é necessário fazer militância em torno de Louis Armstrong ou Sidney Bechet qu~do eles fazem música, porque há algo que faz com que o que já se constitui como um produto se transmita sozinho. Em contrapartida, para que algo se transmita é preciso que haja ouvintes que falem desse algo. Esses ouvintes constituem o que Lacan chamou de passadores, os receptores da palavra do pa.sse 18 • Formulo assim (mot 18. N. do T. A expressão utiliz.ada pelo autor no original é mot J, passe, literalmente pt~lsrvn~ Je ptmt, forma pda qual optamos na t r<1dução. Cabe esclarecer que, em francês, moi tiL fH'SSl e mot à'tSprit ( chiste, às vezes t u.duzido

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de passt ] porque o modelo que Lacan utilizou para justificar o mecanismo do passe foi o modelo do chiste [mot J)esprít O chiste tem a particularidade de que, uma vez produzido, ele se transmite sozinho, não é necessária uma instituição para transmiti-lo. Ele se transmite sozinho. boca a boca, tanto mais quanto o próprio autor do chiste é esquecido. Quando contamos uns aos outros todas as histórias engraçadas de que lembramos num bar, esquecemos que estamos em dívida para com o produtor dessas histórias. Quanto mais essas palavras são proferidas, mais guardam seu sabor. Quanto mais se transmitem, mais atestam a força de transmissão que lhes é própria. E não se sabe mais qual é o patron(mico do autor, tornado anônamo.

J.

Essa palavra de passe será ou não ouvida pelo passador? O pa~sador é alguém a quem é demandado dizer sim, caso ele a ouça, mas não de dizer o sim da vaca de presépio 19, o sim de um funcionário. Este é um termo que Lacan empregou, ele como Jiro tspirituoso) têm, ambas, a mesma estrutura mot dt... Cabe observu que em seu emprego usual a expressão mot . Je pust significa stnhtt, sentido também pttsence no p-.sse porqu<~nto trata-se para o pusante de pronunciar a palavra que o faz passar. 19. N . do T. No origina(. Wni--ot~i-a~~i. Cf. nota 17, p. 69. 72


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disse que esperava que os passadores não fossem funcionários do inconsciente. O passador, assim. é alguém que é suposto poder ouvir. isto é, suposto poder dizer sim inconscientemente. Observarei, contudo, o seguinte: um amante da música é perfeitamente capaz de ouvir uma música, de ouvi-la perfeitamente bem, sem que por isso lhe seja exigido produzir mús ica. Quanto ao passador. é a mesma coisa: não é porque ele é capaz de ouvir que lhe será exigido poder falar no mesmo nível em que ele ouve. É por isso que o passador não é o passance, sendo este último alguém que está, em princípio. em posição de se fazer ouvir. Assim, o passador, e isso faz parte das coisas que escandalizaram os \•eteranos. é alguém que, estando no posto de comando do dispositivo do passe, é um jovem; para os veteranos, o fato de que seja um jovem quem está na porta de entrada, por assim dizer, da instituição, na qual até mesmo um "velho" pode demandar entrar, fazendo o passe, equivale a colocar o mundo de cabeça para baixo. Lacan visava significar com isso que o analista; no fundo, ·não é como o vinho que se aprimora envelhecendo, pois o analista, com a idade, tende a esquecer aquilo mesmo que fez dele um analista, podendo instalar-se na hierarquia, na

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honorabilidade, para esquecer o ato fundador, caso este tenha ocorrido, pois às vezes ele nunca ocor· reca. A mantermos nossa analogia com o chiste, o passador será assim aquele que ri do chiste, ou seja, aquele por quem a mensagem é bem entendida, aquele que diz: "Captei cem por cento". O problema é que em seguida o passador terá que falar, deverá encontrar palavras para t raduzir o que ouviu. E ele deve fazê-lo a um júri - pois é assim q ue é denominada a instância à qual ele- fala - . júri que eu compararia ao público que recebe a mensagem do chiste, júri dividido por aquilo que ouviu do passador: pois bem, houve um passante. No a posteriori, após esses dois a posteriori, podemos dizer que algo passou a este terceiro que é o público. Isso coloca duas formas absolutamente opostas de encarar a transmissão da psicanálise: tratase de uma transmissão que em suma faz fé no poder da transmissão própria do significante quando articulado, e veremos mais adiante que esse famoso significante é aqúele que Lacan denomina S (t ). Ele escreve na primeira versão da Proposiíio 0 (1967)2. que todo aquele que articuleS(~) sem 20. N. do T. Cf. "Proposição de 9 de outubro de 1967: primeira versio", Opf6o ÚC4nÍIInll n. 16, agosto de 1996. p. 5-12. Trad. Paulo Siqueira.

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passar pelos protocolos tradicionais de reconhecimento é um passante da psicanálise, o que ele chama de AE (analista de Escola). Podemos num primeiro momento op or dois tipos de transmissão: aquela que é própria ao significante S (/f.) quando ele é articulado, transmissão que faz com que ele se transmita sozinho, e aquela que depende da militância. Dizer que S transmite-se sozinho é perigoso para quem? Para todos aqueles que pensam que Freud e Lacan não podem transmitir-se sem 'aparelhos de militân cia, e que se não houver militância, Freud e Lacan estarão em perigo. O ato de militância baseia-se na idéia de que o pai está fundamentalmente em perigo: se não se milita por ele, ele decairá, definhará. A esse respeito, aquele que nada nas raias da militância considera que a transmissão da psicanálise passa pelo ato de tomar esta ou aquela cidade, este ou aquele hospital, dispensário ou instituiçãc;>. e que a transmissão da psicanálise é como jogar Banco Im obiliário: adquirir um palácio aqui, duas casas bem situadas acolá, e assim por diante. Em suma, o militante não crê no poder de trans~ missão de S (f..).

(1/J

Gostaria de lembrar-lhes de que a psicanálise começou a ser transmitida sem instituições.

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Quando Freud escreveu seus primeiros grandes livros, como a I nterprttllfão de S<>nbos ( I 900), não havia analist as para ouvi-lo, nem instituições. No início, na au sência de instituições e de analistas, houve um poder próprio ao que existia na palavra de Freud que fazia com que ela se tenha transmitido e chegado a nós, hoje. Podemos inclusive supor que a força com a qual Freud articulava o que Lacan chamou de S(-i) levou-o, por sua vez, a supor que muito antes que nós, que estamos hoje aí, existíssemos, um dia estaríamos aí para ouvir sua mensagem. D iria mesmo que se hoje estamos af para falar sobre isso, é porque houve na cabeça desse cara que se chamava Freud a possibilidade de supor uma transmissão que requeria uma orelha de analista que é a nossa, hoje. Vocês vêem, portanto, dois tipos absolutamente dissimétricos de t ransmissão. Para levar mais longe esta ;malogia fe ita por Lacan entre pal.wra de passe e ch iste, eu lhes contarei, sem dúvida relembrando -a a vocês, urna das muitas pequenas histórias judaicas que Freud nos conta em Cbistts t sua re~io com o ínconsâtntt ( I 905). Uma dessas histórias põe em cena um casamenteiro e um pretendente, ou seja, um homem que vem demandar uma mulher a um outro. H á nisso um dispositivo muito simples, que para nós é bastante

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LACAN E A CLÍNICA PSlCANALÍTIC"

interessante porque o casamenteiro está verdadeiramente na posição do analista que ouve a demanda desse analisánte que é o pretendente, e que demand a a um sujeito suposto saber o que ele deseja, isto é, a mulher de seus sonhos. Nesse diálogo entre o pretendente e o casamenteiro, entre o analisante-pretendente e o casamenteiro, o que se passa é sempre a mesma história, mas escolhi esta porque é preciso escolher alguma. O pretendente chega com o casamenteiro no endereço combiruldo e o casamenteiro diz: "Você vai ver, ela é o máximo". Batem na porta, a porta se abre, e aparece a prometida. O pretendente desesperado volta-se para o casamenteiro e lhe diz: "Mas afinal de contas, ela é corcunda". O casamenteiro lhe responde: "Claro, mas isso não tem problema, os homens não olharão para ela, você poderá ficar tranqüilo". O pretendente retruca: "Mas, faça-me o favor, ela é assustado ra, ela é caqlha". O casamenteiro res~ ponde: "Escute, isso é na verdade muito bom, ela não olhará os homens, só pensará em você"." Mas , além de tud o, ela parece muda". O casamenteiro diz: ·~ssim ela não te encherá os ouvidos o dia inteiro". E aí, o pretendente, furio so, compreende que está diante de um vigarista absoluto. E então o casamenteiro lhe diz: "Sabe, você pode faLar alto, ela também é surda".

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A história acaba aí. Mas, para mim - já que não conhecemos sua continuação - o verdadeiro enigma desta história é que o pretendente, após um tempo de sideração, faz como nós, cai na gargalhada. E se ele cai na gargalhada; é porque compreendeu algo de fundamental. Talvez ele não possa dizer o quê, mas o simples fato de que ri indica que compreendeu que o casamenteiro efetivamente não está mais para ele na posição em que estava instalado, numa relação paranóica, de desconfiança e de traição absoluta. Se de ri, o que se passa é que ele compreendeu seu verdadeiro desejo, que n ão é o objeto sexual. Ele compreendeu que, para além do objeto sexual, há um outro desejo, o der sejo de fazer reconhecer que ele pode existir sem o suporte do objeto enquanto objeto colado ao sujeito - . cola que Lacan denomina princípio de prazer, a coalescênda do objeto a com o significanteS(/..). E podemos dizer que, além do princípio de prazer, trata-se do descolamento entre o objeto e o significante. Minha hipótese é a de que o rir, que neste momento eclode do pretendente, no qual ele abandona sua demanda e passa ao desejo, revela que ele entra em relação com o significante fundador da palavra; ele passa da desconfiança à confiança na palavra. e poderf.amos dizer que isso é o surgimento deste além do

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princípio de prazer que é a pulsão de morte, que não deixa de ter relação com o que dizíamos ontem a respeito da pulsão invocante. Esta pequena história nos testemunha de que o desejo que Lacan chama desejo de um o utro bem, de um bem em segundo grau, para além do objeto, é tran~missível , ou seja, não é imposs!vel transmiti-lo. Eu colocava os princípios teóricos da exigência, da necessidade do passe para sair do dualismo que invoquei; falei-lhes então rapidamente deste dispositivo imaginado por Lacan para deter esse possível empobrecimento da transmissão, dispositivo do qual. lembro-lhes, Lacan esperava um ensino rival ao seu. Ele esperava com efeito que do passe adviesse a produção d e significantes novos que rivalizassem com seu próprio ensino, pois Lacan, contrariamente ao que muitos pensam, não temia absolutamente um ensino rival, mas, ao contrário, ele o ~uscava e o pedia. Para Lacan, a única justifi cativa da Escola Freudiana em relação à IPA era o passe, visto que este representava, na Escola, um lugar não subordinado ao poder, um lugar onde o recalque podia ser posto em cheque, onde a transmissão universitária da psicanálise se interrompesse, batesse em retirada.

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ALAIN DlDIER.WEJLL

Posto que a idéia de Lacan era a de que, na IPA, só havia o discurso universitário. a justificativa que ele poderia dar para a Escol'l Freudiana era dizer que em sua Escola havia discurso analítico. Quando Lacan deu lugar ao ensino universitário, ele nomeou um responsável -Jacques-Alain Miller, a quem ele havia confiado responsabilidades em Vincennes - por este ensino, ou seja, ele o situou fora da Escola porque era predso este fora para que fosse sustentado o discurso universitário. É marcante observar que, historicamen~, foi o reconhecimento do fracasso do passe que fez com que Lacan deixasse de sustentar o universitário fora da Escola e o tenha feito passar _a seu tntenor.

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INSISTUIÇÃO PROPOSTA DE UM PROCEDIMENTO DE PASSE TRANSINSTITUCIONAL

Conferência proferida na sede do Corpo Freudiano Pesquisa e Transmissão da Psicanálise,

em 15 de abril de 1997.



INSISfUIÇÃ0 1

proposta de um procedimento de passe transinstitucional

Falarei esta noite acerca de um projeto que estou propondo a alguns amigos com quem trabalho. Como tenho amizade por vocês, vou compartilhar isso esta noice.

Trata-se de pensar um tipo de procedimento, de laço social encre analistas, que concerne àquilo de que nos ressentimos com muita freqüên, cia em nossas associações. J. N. do T. Cabe assinalar que a palavra-chave do título - lnsistuição (Insistuition) - é um neologismo metafórico, que como tal condensa duas outras palavras

- insistência (in.risttmct) e instituisão (irutitutíon) -criando um sentido novo que afeta a estabilidade repetitiva e monótona da instituição, inoculando-lhe a dimensão da insistência própria ao inconsciente, que obriga ao não esquecimento do desejo, já que o princípio do prazer tende a produzir sistematicamenre este esquecimento. Agradeço a gentil colaboração de María de Lourdes Fernandes e Teresinha Costa na transcrição, e de Miriam Aparecida Nogueira Linu na revide.


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Isso ocorre porque, nas associações definidas por um dentro e um fora. a própria existência de um tal limite entre um interior e um exterior freqüentemente nos faz sentir de forma cruel que no interior da associação falamos Jo inconsciente, mas não obrígatoriamente com o inconsciente. A idéia, pois, é a de ver como poderíamos fazer para falar do inconsciente com o inconsciente,: ~om nosso inconsciente, quer dize~ de modo tal que não seja apenas através do divã e da poltrona que se faça o enunciado dessa relação. Isso não deixa de estar relacionado com o passe, mas não é o passe.

Parcirei de uma reflexão sobre o passe antes de chegar a esta proposição. Primeiramente, qual foi a exigência que fez com que Lacan inventasse o dispositivo do 'passe? A partir do que está na proposta do passe, Lacan faz a seguinte observação: se Freud confiou a transmissão da psicanálise à lPA, conhecendo suficientemente a estrutura do grupo. que ele havia analisado nos textos que escreveu sobre o Exército e a Igreja, para saber que esta instituição recalcaria a sua mensagem, é porque apostou no recalque como meio de transmissão da psicanálise. Sobre isso, Lacan fez sua hip6tese extraordinária: Freud tecia considerado que o recalque seria


V.CAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

um meio eficaz de transmissão da psicanálise, na medida em que o recalque, contrariamente à foradusão, conserva, e o que ele conserva escondido pode com o tempo sair do recalque. Tendo formulado isso. Lacan se opôs a este tipo de transmissão inventando o passe porque a idéia do passe é a idéia de uma transmissão sem recalque. Mas se o passe era a única justificação da Escola Freudiana1 em relação à IPA, no momento em que Lacan constatou que o passe, por razões que analisaremos juntos, resultou num fracasso, ele dissolveu a Escola.

Podemos c;onsiderar que naquele momento ele volcou atrás, voltou ao. modelo freudiano e talvez tenha dito para si mesmo que não podia fazer melhor que Freud. Naquele momento confiou a transmissão da psicanálise a uma instituição que não era a IPA. mas uma instituição dirigida por antigos universitários, a Escola da CausaJ.

2. O autor refere-se à Escola Freudiana de Paris

(Écou Frtwrlimnt J, Paris), fundada em I 964 por Lacan. 3. Aqui a referência é à Escola da Causa Analítica (Érolt Jt Ia C11usc An11lyti91U), fundada após a dissolução, feita por i....lcan em 1981, da Escola Freudiana de Paris (Éeou Fmulimnt Je PRris) , a que St refere a nota anterior.

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Podemos supor que ele apostou no que, segundo ele, Freud havia feito no seu ensino: que, no recalcamento desse ensino, repetia-se o penhor de sua conservação. na medida em que a suspensão do recalque sempre é possível. Talvez de. que sempre disse que a psicanálise só poderia sobreviver na dimensão do conflito, tenha especulado sobre esse conflito entre aquilo que recalca e aquil~ que contesta o recalque. O mesmo sempre fez com a IPA e também com seus próprios alunos. Parco de fenômenos concretos que são pontos de justificação da invenção do passe. Que analista não ceve a ocasião de observar algo que eu pude observar, mas sei que não fui o único a fazêlo? Há alguns anos um dos meus analisantes. que havia terminado sua análise vários anos antes, convidou-me a escutar sua primeira conferência na insti tuição na qual ele havia situado seu trabalho•. Este analisante tinha a particularidade de ter

4. N. do E. Ainda que o autor retome este fato e, nuis adiante, a história do pretendente e do casamenteiro, que são trabalhados na lição sobre o passe (p. 65-80), decidimos manter integralmente o conteúdo de suas exposições unu vez que as mesmas não só se deram em diferentes momentos de seu trabalho no Brasil como . servem a diferentes desdobramentos clínicos e teóricos.

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U.CAN E A CLÍNICA "PSICANALÍTICA

sustentado no divã um discurso panicularmente criativo e inventiva. muito metaforizante, quepessoalmente me ensinou muita coisa. Às vezes eu tinha o sentimento de o estar ouvindo em um seminário de psicanálise muito inspirado. Contudo, fiquei muito espancado na primeira vez que eu o vi falar em público, porque toda aquela invencividade de que eu havia sido testemunha havia-se tornado um discurso perfeitamente ortodoxo que respondia àquilo que a instituição esperava dele, um discurso conforme a instituição. O paradoxo era pois o seguinte: dualidade de discurso pondo em evidência que um discurso criativo pode acontecer na intimidade do lugar privado analítico e em oposição a um discurso conforme. tradicional, no lugar público, como se este implicasse que a invenção metafórica fosse empobrecida. Como se a palavra metafórica não pudesse passar em público e, inversamente, como se a palavra pública não pudesse mais se dirigir ao inconsciente. Pode-se dizer que · este dualismo obedece à ideologia burguesa da vida privada e da vida pública. Será que isso é inexorável? Este caso que acabo de citar não obedecia a uma organização. a coisa se fez sozinha, mas a IPA tinha a particularidade de organizar um tal dualismo. ela o desejava 87


AL\JN DJDlER-WEJLL

inteiramente e tendia a instaurá-lo. Na época da crítica de Lacan à IPA, os candidatos a análise acompanhavam o ensino público na dimensão da extensão que era completamente cortada da dimensão da intensão que é o lugar do divã analftico. A questão é: como pensar, se é que isso é pensável, todo o problema da articulação da extensão com a in tensão?

É preciso reconhecer que no meio psicanalítico há uma tendência geral de considerar que é preciso ser um sujeito excepcional, um Freud, um Lacan, para sustent.ar um discurso de analisando que escape ao privado para passar ao público. Freud fal a a partir de seus sonhos e Lacan fala como analisando em seus seminirios. No fundo, o passe coloca a seguinte questão: se o sujeito do inconsciente é um lugar terceiro que substitui o dualismo discurso privado/ discurso público por um só discurso porém dividido, isto é, se o sujeito do inconsciente produz a divisão no lugar do dualismo, não ~eria uma defesa dos analistas objetivar o sujeito de exceção em um homem excepcional. o que impede de reconhecer o verdadeiro sujeito de exceção que ~ o sujeito do inconsciente, próprio de cada um? O que seria preciso a uma palavra privada para que pela voz pública ela se dirija ao íntimo de cada um? 88


LACAN E A CUNICA PSICA.NAUTICA

Lacan tomou o chiste 5 como modelo do que pode ser a palavra de passe. Ninguém sabe quem inventou o chiste. Observaremos, no entanto, que a particularidade de um chiste, quando espirituoso, é sua capacidade de encontrar auditores, ouvintes, é o fato de que o chiste se transmite no público de boca em boca segundo uma transmissibilidade que não demanda militância. Isso é muito importante. Diria que, no chiste, o que vem no lugar da militância é o poder despertado por aquilo que podemos chamar de pulsão invocante, quer dizer, o movimento que leva a uma palavra que adquiriu as caracter!sticas da cransmíssibilidade do desejo inconsciente. E por isso que a palavra de passe buscada daria a possibilidade de falar do desejo inconsciente com o desejo inconsciente e não descrevendo-o no quadro negro. Uma das histórias de chiste de Freud com a qual significamos o que deve se passar, o que deve acontecer para que uma palavra tenha acesso ao

5. N. do T Em francês, a expressão que designa o tbistt é mot J'csprit (literalmente palilvn~ tspirituosa, ou dito tspi~ rituoso, como o Wrtz do alemão de Freud é às vezes traduzido em português) o que permite ao autor jogar com o emprego de outras txpr.essóes contendo o termo pal#VI'II , como no caso d;~ frase em foco. em que aparecem moi J'csprit e m~t àe pasu, que traduzimos como paiA11r~~ Je passe.

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AI.AlN OIOIER-WEILL

espírito e à transmissão, é a história do casamenteiro e do pretendente. É uma situação que nos interessa muito porque podemo's dizer que o pretendente é o analisando que pede ao casamenteiro , que é o analista, que este lhe dê o objeto dos seus sonhos. O pretendente pede ao casamenteiro a mulher de seus sonhos e este diz:: "Eu achei !" e o levá, batem à porta, a porta se abre, o pretendente fica aterrorizado, vai ao casamenteiro e diz: - "Ela é corcunda!?"- "É melhor assi~ porque assim ninguém vai alhar para ela, pode ficar tranqüilo!"- ·:Mas ela é anã!?"- "Sai muito menos caro para vestir... "- "E ela é caolha! ?" - "Ela não vai olhar para os outros . ... eu não quero h omens... " - "Mas, casamentetro mais me casar... !?" - " Pode falar mais alto, ela é surda também!". O interessante é que podemos aventar a seg uinte hipótese: da mesma maneira que nós rimos, podemos supor que também o pretendente riu. Pode-se s upo r que, como o analisando, ele ficou siderado pela intc:..pretação genial, que compreendeu e ao mesmo tempo não compreendeu inconscientemente no que consiste a interpretação, sem entrar em detalhes. Segundo me parece, a significação fundame·ntal. o sentido da interpretação é que durante todo momento do diálogo em que o pretendente descobre que o casamen teiro

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lACAN E A CUNICA PSICANAÚTICA

é um enganador, é que de está na demanda absoluta, ele se sente e se situa como inteiramente definido pelo objeto sexual, sua identificação está ligada ao objeto. E pode-se dizer que a interpretação do casamenteiro faz cair a dimensão do objeto, faz com que desapareça uma questão para que uma outra surja: ao desaparecer a questão "Quem

sou eu em relação ao objeto?", surge uma questão mais profunda em que apaw:e não mais um objeto que determina a identidade, não ''Quem sou eu?", mas "Sou eu?", "Sou eu quando não h~ objeto?". Essa questão do "sou eu~" remete à pulsão na medida em que a pulsão se enraíza no significante e não no objeto. A questão mais radical. aquela do "sou eu?", aquela do sujeito, é mais profunda do que aquela do eu estar em relação com o objeto. Eu diria que é neste momento que nasce a invocação, quando o sujeito não é mais determinado pelo objeto mas pelo significante, isto o coloca em outro movimento em que ele descob..e que a ques. tão fundame~tal é a da e"iscência. E quando rimos desse chiste é porque inconscientemente rimos da alegria de existir como sujeit os da palavra, e não sujeitados a um objeto. Lacan, em sua proposição sobre o passe, diz que a maneira (e s6 há uma) de atestar que houve

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Al.AIN DIDIEit-WEILL

pass e é ouvir que o passance art iculou um significante que é o famoso significanteS (/.). E acrescenta que isso nada cem a ver com os procedimentos de habilitação da IPA, de ser aprovado por cal ou tal instância hierárquica: quem quer que venha a articular esse significante, terá substituído o fato de ser reconhecido por uma hierarquia pelo fato de que o sujeito não tem que ser autorizado mas autorizar-se por si mesmo. Há aí um enigma que é este "se". O que é este autorizar-se por si mesmo? Quando Lacan fundou a Escola Freudiana em 1964, ele o fez sob esta frase: "o analista só poderia autorizar-se por si mesmo". Imediatamente houve uma grande reação de uma boa parte da comunidade analftica, particularmente da IPA, naturalmente, cuja primeira acusação foi a seguinte: "Qualquer canalha vai se instalàr como analista, pois, não havendo nenhum controle, fica-se ·simplesmente em função da subjetividade daquele que diria: 'Eu sou analista' ". Isto aliás não é completamente falso, po rque houve canalhas. Trata-se de um problema que é, todavia, mais profundo. O analista só poder autorizar-se por si mesmo coloca um perigo. pela razão seguinte: quando na IPA um candidato pede

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L.ACAN E A CUNICA PSICANALÍTICA

para autorizar-se, pede para ser autorizado, para ser nomeado analista, é preciso reconhecer que é a IPA que é nomeada, autorizada. A identidade da IPA vem do fato de que, nomeando um analista, é ela que, na verdade, é nomeada. Uma tal estrutura é necessariamente contestada de maneira radical se o analista só se autoriza por si mesmo. Então, a questão que se colocou a Lacan e que continua a ser colocada a nós é a seguinte: se verdadeiramente nós nos autorizamos por nós mesmos, e se damos à nossa instituição uma significação diferente daquel~ ·que os membros da IPA dão à sua própria instituição, que significação damos nós a nossa instituição? . - ,.. , Para assumtr esta questao, tres anos apos a proposição do passe, Lacan acrescentou à sua fórmula inicial - o analista só poJeria autorizyr-se pM si mesmo - crês palavrinhas que introduzem o passe: o analista só poderia autorizar-se por si mesmo e por alguns outros. Visto que a palavra de passe é o famoso significanteS (~). antes de lhes falar do procedimento que tenho em mente, quero falar do paradoxo que há nest e significante. Um tal significante implica que o falante, quer di:zer, aquele que articula o S ( ~). transmite sua divisão. Não se trata portanto do dualismo do qual anterior-

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ALAIN OIOIER-WEILL

mente falamos. Quando ouvimos um sujeito dividido, que fala, qua1 é a posição do receptor? Examinaremos depois a posição do emissor. No dispositivo de Lacan havia. dois tipos de receptores, o passador e os membros do júri. Como definir o que acontece com aquele que ouve esse significante que tem a estrutura de um chiste? ouvinte é remetido à sua própria divisão. Este fato faz com que ele diga sim a alguma coisa mas sem saber a quê. Em outras palavras, para se ouvir aquilo que introduz imediatamente a dimensão esp~­ rituosa, como diz Freud, não é necessário um saber teórico mas o desaparecimento da censura do. ouvinte. Em outras palavras, a relação do passador e dos membros d o júri com seu próprio supereu desaparece e a estrutura do eu é também dissipada.

o

Sustentamo-nos em nosso supereu. O supereu é em nós aquilo que quer que ouçamos o já sabido e que nada nos surpreenda. pois se h.á surpresa. o supereu desaparece, sua sobrevivência depende de que não haja surprésa. O perigo é que temos, provavelmente, uma rdação supereuóica com a própria teoria psicanalítica. Cada um de nós adquiriu um saber que lhe é caro, o saber já sabido, e quando nos agarramos a esse saber já sabido, não estamos

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LACAN E A CÚNlCA PSICANALÍTICA

ainda prontos para ir em direção ao ainda não sabido. O supereu admite que um não saber possa surgir, desde que seu aparecimento não faça o saber já sabido desaparecer. Por exemplo, não há problema, para o supereu, que possamos adquirir um suplemento de saber numa aula de geografia na universidade, mas o que ele não quer é que o saber já sabido desapareça. Será que somos capazes de escutar um analista. que, produzindo o "significante de espírito" 6 , leva-nos a renunciar àquil o que já sabíamos, de maneira tal que reexaminemos nossa relação com o saber de uma maneira completamente diferente para dar lugar a um novo significante que aparece? Assim, o passador, para Lacan, é aquele que é capaz d e ser um bom ouvinte, mas nem por isso lhe é exigível ser um passante. Espera-se dele que . . . possa ouv~r um outro que se autortza por st mesmo, que seja capaz de ouvir perfeitamente sem estar necessariamente no ponto de se autorizar. Não é a mesma. coisa mas podemos compará-lo, por exemplo, com um amante de poesia, que gosta 6. N . do T. Ver nota 5, página 89. Aqui, a expressão significtJntt dt tsp frito é uma variante de "palavra de espírito", o que seria a tradução literal de mot d'esprit, que signifaca chiste, em francês.

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AIJ.IN DIDIER..WEILL

de poesia, que ouve a poesia, mas nem por isso vai escrever poesia. Isso não 9uer dizer que ele não esteja movido na direção de um dia tornar-se um poeta. Se este movimento continuar, tende a transformar o sujeito, de ouvinte, em alguém que se faz ouvir. Gostaria de mostrar-lhes o quanto' a posição do júri, particularmente a tarefa dos membros do júri, é importante, a tal ponto que a não realizaç~o dessa tarefa levou ao fracasso do passe. O júri unha duas funções: nomear ou não [o passante como analista], mas acima e antes de tudo, sim. balizar a experiência. produzir novas produções. ~ ~racasso do passe consistiu no fato de que 0 JUrt nomeava, mas nada simbolizou. No que c~ncerne a isso o júri ficou completamente silenctoso, não produziu um pensamento teórico novo. Lacan chegou a dizer que esperava do júri um ensino rival ao seu, ao nível de sua elaboração significante. Será que cada um de nós não teria que ser membro do júri em relação a Freud? Reflitamos um pouco sobre o fato de que, em geral, pensa~~s .~ue diz~mos síin a Freud. Mas será que esse stm enunc1ado que damos a Freud é suficiente para provar que dizemos inconscientemente sim a

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LACAN E A CLfNICA PSICANALITICA

Freud? Não deixa de ser uma posição perigosa considerar que Freud é nosso passante. Enquanto analistas, temos 9ue ser o seu passador e, mais que passador, alguém que diz em que lhe diz sim. Quando se diz este "sim", mais que um enu·nciado, isto é uma enunciação. Um exemplo: no começo do século,. Freud estava rodeado de discípulos, entre os quais Hartmann e Loewenstein, que lhe disseram sim. Vinte anos depois, eles elaboram uma nova teoria analítica, que se transportou para os Estados Unidos, a teoria do eu autônomo, que significa pura e simplesmente dizer não a teoria de Freud, Então, o que isso quer dizer? Será que em vinte anos eles mudaram de opinião? Ou será que quando eles acreditavam dizer sim, eles não sabiam que já estavam dizendo não? Não se trata aqui de criticá-los. Coloco esta pergunta para cada um de nós: como podemos saber se inconscientemente dizemos sim ao inconsciente de que fala Freud? , E isso autorizar·se por si mesmo: não é transmitir o que já se sabe, é torná-lo transmissível, pois autorizar-se analista não é um ato místico, inefável, que nenhuma palavra poderia comentar. Mas se este at o não é mfstico, é porque é preciso tornar transmissível em que, naquilo <JUê dizemos pensar, pensamos segundo a dupla inscrição, ou 97


AL\IN DIDIER-WEILL -

seja, com nosso inconsciente, e que um ouvinte possa ouvir isso. Se ele ouve, o fato de que seja dividido ao ouvir é um sinal da articulação desta divisão. Agora vou falar um pouco daquilo que acontece do lado do ouvinte, aquele que é capaz de ouvir S (/.). O que garante que, em sua palavra, ela possa fazer-se ouvir? A grande dificuldade que de imediato se coloéa é a seguinte: a partir do momento em que falamos , não podemos não esquecer o Outro de onde recebemos a palavra, porque se o ouvíssemos ao mesmo tempo em que falamos, não poderíamos falar. É preciso que haja um silêncio do Outro comparável ao branco da folha branca que é necessário para escrever. Assim eu definiria o paradoxo de S (~): enquanto receptor, ouço o Outro sem poder ainda me fazer ouvir, e, enquanto emissor falante, falo, mas sem poder ser receptor ouvindo o Outro. E quanto a isso eu diria que S(/.) é um significante que nos retira desta dualidade para introduzirnos nesta célebre divisão, na qual sou ao mesmo tempo aquele que ouve o Outro e aquele que se ouve enquanto receptor sem por isso ficar alucinado.

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LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA

O próprio deste significante, quando vem à palavra, é que ele coloca o sujeito em relação com o esquecimento original. mas com aquela parte de inesquecível que há no esquecimento. E se o sujeito consegue fazer ouvir este inesquecível, esta parte do inesquecível que se estabeleceu em sua relação com o Outro, o suj eito faz ouvir que não é estrangeiro ao estrangeiro. Emprego esta dupla negação para dizer que é muito diferente de ser idêntico ao idêntico. Por exemplo: quando viajo e vou ao estrangeiro, o fato de que posso não ser um estrangeiro ao estrangeiro define o tipo de identidade que recebo. e esta é a paixão de viajar. Isso é muito diferente da identÍ· dade que resulta de ser idêntico ao idêntico. Mas quando a identidade vem apenas do fato de ser idêntico ao idêntico, estamos no princípio do pensamento fascista. Ser não estrangeiro ao estrangeiro não está nas três identificações que Freud isolou. É o princípio da identificação metafórica da qual fala Lacan, quer diz.er a identidade metafóriça com o Outro. Quando o sujeito advém no lugar do Outro, ele não pode se identificar com o Outro, mas pode não ser estrangeiro a este estrangeiro. É esu o caminho da metáfora.

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Al..AJN DIOIER.-WEJl.L

_ Agora, como definir o fracasso do passe, ou SeJa. a não transmi~sibiüdade do significanteS (IJ? Considerando que houve casos de passe em que a transmissão de S (/.) teve lugar, podemos perguntar o que terá reduzido o júri à condição de não produtividade. Primeira observação: será que alguém que ouve um testemunho sabendo que tem duas tarefas a realizar- nomear e simbolizar- não encontra dificuldades? Será que o simples fato de saber que tem que nomear não cria condições desfavoráveis à simbolização? Para simbolizar, talvez ~eja _pre~iso estar livre de qualquer preocupação tnstttuCJonal de nomeação. Segunda ~bservação: se a palavra de passe tem a_ estrutu~a do chiste, será que não basta um que na para dizer que houve chiste? Se concordamos com isso, admitimos que o inconsciente não é democr~tico, nã:o se preocupa com o fato de que ~ júri, seja ele qual for, seja ele um corpo de JUrados do vestibul.ar, da universidade, da banca examinadora, tenha que ser composto por um número ímpar de membros porque se for preciso votar é preciso que se configure uma maioria. Isto significa que a lei do grupo não leva em conta essa especificidade do inconsciente. O inconsciente não pensa e não procede senão por um a 1-1m. 100


LACAN E A CLfNICA PSJCANALfTICA

Terceira observação: permanecemos na meditação acerca da articulação entre a intcnsão e a txlcnsão. M as como pensar a extensão? Será que esta exterioridade à qwl deve dirigir-se o inconsciente existe em si mesma ou deve ser criada? Se a extensão é definida pelo dentro institucional. será que corresponde à extensão que aquele que faz um chiste visa inconscientemente? A transferência inconsciente daquele que faz um chiste concerne ao simbólico, e o simbólico não é delimitado por uma fronteira, como a que circunscreve o interior da instituição. Portanto, quando o significante do chiste passa, ele cria uma significação que não existe de maneira institucionaL Aliás, é preciso observar que na Escola Freudiana havia dois passes: havia o passe dos candidatos que se dirigiam a uma extensão institucional e havia o passe do chamado Lacan que definia o seu seminário como o lugar onde ele não cessava de passar o passe. E Lacan nunca quis fazer o seu seminário na Escola Freudiana. Ele sentiu claramente que isso não funcionaria bem. Ele falava num lugar aberto a qualquer pessoa e tinha um público totalmente heterogêneo que ele mesmo não conhecia, o que lhe proporcio~ nava uma alteridade com a qual ele podia transferir como alteridade. 101


AWN DIDIER.-WEILL

Feitas essas observações preliminares, transmito-lhes o conteúdo destas dificuldades e o ensino que podemos tirar do fracasso histórico do passe, que consiste no dispositivo de trabalho que começo a propor a alguns colegas. O primeiro dos diversos aspectos que há a considerar neste dispositivo é o fato de não situar a atividade de simbolização no interior de uma associação. Ela permanece fora de toda e qualquer associação, no vazio, entre analistas que trabalham um por um. Em segundo lugar, o que deve ser . produzido não são nomeações, mas unicamente um trabalho de simbolização e numa estrutura que não·seja de grupo. que se enderece e que solicite o um por um. O dispositivo que imagino na situação atual seria primeiramente destinado àqueles que se tornam analistas e àqueles que se rt~tornam analistas, na medida em que se pode pensar que cada um de nós tem sempre que rMornaNt analista. Não é como quando somos cabeleireiros, por exemplo: nossa identidade de analistas não existe fora do nosso ato. Não há str analis.ta. Há em algumas ins~ tituições pessoas que pensam serem analistas. Se consideramos que a palavra analista não é um substantivo, mas um verbo, quer dizer, um ato, isso exige

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LACAN E A CLIN JCA PSICANAÚTICA

a renúncia à idéia de ser, e à identificação do nome "analista" ao ser, ou àquilo que a Filosofia chama de ser. Todos nós conhecemos instituições totalitárias e eu diria que sua mais simples definição é acreditar no Ser. No "ser analista", coisa que se é de uma vez por todas, p orque o Ser é permanente.

É por isso que o dispositivo concerniria a cada analista que considera que não pode cessar de se tornar analista, o que, por si só, já faz balançar a idéia de uma hierarquia entre analistas. Tornando-nos ou retornando-nos analistas, ou encontrando-nos na situação de sermos fortemente questionados pela existência do inconsci. ente, seja pela prática analítica, seja pela leitura dê um texto que pode nos perturbar, confrontamonos sempre com a idéia de que, com efeito, para nosso inconsciente, o inconsciente permanece sempre uma hipótese, no fundo de nós mesmos. Não é por que sabemos que há inconsciente que forçosamente acreditamos nisso. O reconhecimento de que não acreditarpos nisso forçosamente exige que passemos por circuitos para que possamos reencontrar o caminho da existência dessa hipótese. Suponho assim que aquilo de que falaria alguém, veterano ou iniciante, que estivesse nessa

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AWN DIDIER-WEILL

disposição, seria algo de que não poderia não falar, falaria de uma questão que o teria arrebatado, não poderia dar uma aula, fazer uma exposição. do tipo: "Daqui a dois meses vou falar do recalque, ·daqui a três meses, daquele outro tema". Um sujeito assim disposto não teria escolha: não poderia falar de outra coisa senão daquilo que o fisgou. O dispositivo que pcoponho não é exatamente o do passe. É um dispositivo que tenta reencontrar o espírito do passe, mas não é o passe. Há dois tipos diferentes de ouvintes cujo trabalho deve levar em conta a questão fundamental da lei do tempo. Um primeiro tipo de ouvinte é aquele que, colocado a trabalhar inconscientemente a partir do que ouve, unicamente responda., sem ter que proferir nenhum julgamento sobre aquilo que ouviu, e que responda unicamente produzindo o trabalho inconsciente, o saber que resulta da elaboração inconsciente nele suscitada pelo que ouviu, sem preocupação com a relação que e.ssa elaboração inconsciente pode ter com aquilo que já sabe da teoria. Se quisermos fazer uma relação com o chíste, este ouvinte corresponderia àquele que ri no chiste. Quando se ri é porque inconscientemente compreendeu-se alguma coisa. A idéia é que se consiga 104


LACAN E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

dizer o que se compreendeu inconscientemente, sem nenhum julgamento quanto à pertinência teórica. A idéia subjacente a esta proposta é a de que. se houve uma simbolização autêntica, isso produz também, implicitamente, uma nomeação daquele que fala. Se o primeiro trabalho induz a um verdadeiro trabalho inconsciente - e não é necessário nomear o passante com esse nome pomposo, institucional, de passante - isso signifi ca que, de faco, houve passagem. A passagem de S (,..) implica, como no caso do chiste, um tempo de sideração antes da compreensão. E se pensarmos que o tempo da sideração, conforme observa Freud, é um fa co de estrutura, este fato implica ·que o ouvinte, para respeitar esse tempo, não responda imediatamente. Observamos. mesmo nas reuniões de psicanalistas, que', quando se responde a alguém que acaba d e falar não levando em conta o tempo de sideração, a intervenção é feira freqüentemente de maneira supereuóica, isto é. o ato de dizer é só uma ocasião para se dizer aquilo que já se sabe. N ão se trata, assim, neste dispositivo. de favorecer isso. E esta é a razão pela qual, levando em conta o fato de estrutura que é esse tempo de sideração. eu proporia um tempo, um tempo de de-sideração que implica que, depois que alguém 105


AI.AIN DIDlER-WEIU

tenha falado, não se fale imediatamente, e que se faça um novo encontro em ocasião posterior. Na nova reunião, então, se houver ouvintes que tenham entrado nesse trabalho, eles transmitirão a sua elaboração. Poderíamos dizer que aquele que inicialmente falou é um "eu" que falou a um ''tu", o qual, no momento desta segunda reunião, lhe responde. Mas suponho um terceiro tempo. que seria o tempo do "ele", ou seja. um out ro tipo de ouvinte que não na mesma noite, mas no só-depois. teria um tempo para estudar cuidadosamente, numa outra perspectiva, aquele primeiro discurso e os discursos que foram induzidos por ~ste primeiro. A estes segundos auditores caberia a tarefa de refletir sobre as duas produções: do emissor e do receptor, numa posição, portanto, de testemunho, de terceiro, entre o emissor·e o receptor e aí, mas só aí, nesse momento, eventualmente, fazer um trabalho teórico, fruto do tempo de reflexão sobre os dois discursos e de avaliar, nesses dois discursos e em sua confrontação, se apareceu algo de novo. Mantendo a comparação com o chiste. poderíamos dizer que esta é a função daquele que relatou o chiste porque no chiste há pelo menos três pessoas: há o locutor, o receptor que autentifica o chiste, que diz " Tu passastes alguma 106


I.ACA.N E A Cl..lNICA P5lCANAÚTlCA

coisa", pois é o seu riso e só ele que diz: "Eu te reconheço como aquele que passou a coisa espirituosa", e fmalmente uma terceira presença que faz com que aquilo que aconteceu entre os dois se transmita a nós. seja relatado e levado em conta. Esse dispositivo na verdade é muito simples e, no ent.a nto, apóia-se em considerações um pouco complicadas. Tais considerações levam em conta a idéia de Lacan. que me parece muito forte, segundo a qual poderia haver uma t ransmissão sem recalque entre os analistas sem, por outro lado. cair no pessimismo de Lacan no final de seu ensino. quando a questão do passe parecia-lhe uma questão perdida, o que o fazia pensar que não era possCvel fazer de outra forma. Trata-se, assim, de permanecer fi el a Lacan, que pensava que era possível uma outra transmissibilídade que não aquela da IPA, levando em conta, ao mesmo tempo, os fracassos ma.nifestos que aconteceram na Escola Freudiana em torno da questão do passe. Para que haja uma chance de transmissibilidade do inconsciente entre analisc~s. é necessário que s~ possa encontrar a alteridade. É preciso reconhecer que não mais encontramos essa alceridade nas pessoas que são muito próximas de nós em nossas instituições. Nossas próprias associações são absolutamente necessárias, mas por que não 107


ALAIN DIDIER-WEILL

utilizar a chance da existência da alceridade e fazêla trabalhar quando isso for possível? Na França, nossa primeira tentativa de fazer trabalhar a alteridade se deu no laço que foi criado há alguns anos, denominado lnterassocíativo) e que reúne atualmente vinte associações - francesas, italianas, dinamarquesas, belgas. Não é fácil ter uma vizinhança de vinte associações: inevitavelmente há conflitos, dificuldades, mas o grande interesse disso é criar as condições de possibilidade de encontrar a alteridade.

' esse dispositivo a meus coPretendo propor legas. o que ainda não fiz. Essa proposta não se dirige a associações mas a sujeitos individualmente falando, e concerne a apenas um por. um, sujeitos que estariam prontos a fazer funcionar a sua aheridade, a função da alteridade, porq~e no caso do Interassoâativo, reconhecemo-nos sem nos conhecermos. Sei que, a faze.r esta experiênéia, me interessaria muito que os ouvintes que poderiam acolher o que eu teria a dizer não fossem meus colegas da associação. Com eles, aliás, sei, a pritwí, que não iria funcionar porque somos colegas demasiado próximos. Seria para mim interessante que não fossem meus colegas e sim dinamarqueses, belgas ou brasileiros. 108


LACAN E A CLÍNICA PSICANALITICA

Por que não imaginar um dispositivo que fizesse trabalhar a alteridade? Penso que temos a sorte de inventar progressivamente uma comunidade espalhada, explodida, que não é como duas comunidades monolíticas que conhecemos, que falam em uníssono- a Escola da Causa e a IPA. Penso que criamos uma comunidade, constituímos uma comunidade mais heterogênea. Essa heterogeneidade existe de fato e considero isso muito bom! E por que não usar a sorte de a termos criado para fazer algo mais do que nossa política de boa vizinhança, fazer funcionar aquilo que o heterogêneo pode trazer na própria transmissão do inconsciente? Além desse dispositivo, poderíamos imaginar também outros e fazer funcionar um laço social, particular, algo que na minha opinião é buscado pelos analistas desta comunidade explodida, cujos membros escolheram não falar em uníssono. Acho que vale a pena assumir, o mais longe possível, a razão pela qual não estamos numa dessas comunidades em que se fala em uníssono, em que não há nenhuma alteridade. Este é o grão para moer que eu tinha a propor a vocês.

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Alain Oidier-Weill

Psiquiatra, psicanalista e dramaturgo, foi membro da École Frntdimnc de Paris e é um dos fundadores do Mouvement du Coftt Freuditn e do lnttrassoâatif dt PsychllnRlyst. 1

Autor de Inconsciente freudiano t transmiwio Ja psicanálise Gorge Zahar, I 988). Fim de umR análise, finalidAde da psicanálise (org.) Oorge Zahar, 199 3), Nota A~l: Freud, Lacan e a arte (Contra Capa Livraria, 1997), Os três tempo.._s da -lti Gorge Zahar; I998) e lnvocarions: Dionysos, Morse, S11int Paul et Freud (Calrnann-Lévy, I 998). Dentre suas peças de teatro, destacam-se Pol, L' Heurt Ju thé chczles Penàlebury efímmy.

Luciano Elia Psicanalista, membro doLilroAnalítico do Rio de Janeiro. Autor de Corpo t sexualidade tm Fm~á t Lacan (Uapê. 1995).


SUMÁRIO · Parte I

Alain Didiei'-Weill

uma

Preliminar a revis.io da concepção de sublimaçio e~n Freud

7

l~p

Alam Didier-Weill O artista e o pslcana!i.ta questionados um pelo outro

19

Chawlá Azouri

Testemunhos de um encontro com o vaz:io

37

Oaude .Rabant

O vazio, o enigma

47

rarte n AJain Didler-Wàll A Nota Az:ul: de quatro tempos subjdi.vanteJ na rruíska

57

O circuito pufsional

85

Marco AJ\tonio Coutinho Jof!e Clarice I..ispector e o podu da p1lavr.o

105



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