02 reclamada pela escuridão

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Sinopse… Um recente legado tornou Cassandra Palmer herdeira do título de Pítia, a principal clarividente do mundo. É uma posição que costuma vir acompanhada de anos de treino, mas as circunstâncias de Cassie são um pouco… invulgares. E, agora, ela está presa a um forte poder que todos os vampiros, Elementais e magos da cidade querem monopolizar ou erradicar - e que ela própria não se atreve a usar. Além do mais, Cassie acabou de descobrir que um certo vampiro mestre arrogante lhe colocou um geis - uma reivindicação mágica que afugenta quaisquer pretendentes e que também pode explicar a atração… intensa que sente por eles. Mas está farta de ser manipulada e, a partir de agora, quem tentar fazê-lo descobrirá que ela é uma péssima inimiga…


í Qualquer dia que tenha início num bar repleto de demônios – um casino concebido para parecer com o inferno – não pode acabar bem. Mas naquela altura, só pensei que um bordel teria mais graça – sobretudo um reservado para mulheres e que era servido por íncubos atraentes. Mas os amantes de demônios pendiam de modo infeliz sobre as mesas, apoiando a cabeça como se estivessem com dores e ignorando por completo as suas companheiras. Até Casanova, recostado à minha frente, parecia infeliz. Sua postura era inconscientemente sedutora – uma questão de hábito, eu suponho –, mas a expressão não era tão agradável. — Muito bem, Cassie! — disse bruscamente, quando um dos seus lacaios começou a chorar, de repente, de forma incontrolável. — Diz-me o que queres e depois as leva embora daqui! Tenho um negócio para gerir! — ele referia-se às três velhas empoleiradas em bancos no balcão. Estavam a provocar o sátiro que servia as bebidas. Uma flacidez num local onde, nos da sua raça, raramente se concentrava algo que não fosse uma total atenção. Não era surpreendente: nenhuma delas parecia ter menos de cem anos e, o atributo mais óbvio que tinham eram madeixas emaranhadas e oleosas – grisalhas desde o nascimento – que fluíam num enredado até ao chão. Eu tentei lavar o cabelo de Énio – cujo nome apropriadamente significava “horror” – na noite anterior, mas o shampoo do hotel não tinha ajudado muito. Desisti depois de encontrar o que parecia uma ratazana meio podre num emaranhado debaixo da sua orelha esquerda. Contudo, o cabelo tinha a vantagem de desviar as atenções dos rostos, por isso não se reparava de imediato que, no total, elas só tinham um olho e um dente. Énio tentava agora tirar o olho da sua irmã, Dino – que significa “medo” –, pois queria avaliar o empregado com ar aterrorizado. Entretanto, Pefredo – que significa “alerta” – usava o dente para abrir


um pacote de amendoins. Acabou por desistir e enfiou o pacote envolto em celofane na boca, mascando-o alegremente. Outrora eu supusera que as Gréias não passavam de mitos imaginados há alguns milhares de anos por gregos entediados – e bastante peculiares –, antes da invenção da televisão. Mas parece que não. Recentemente, eu tinha adquirido – está bem, roubado – uma série de objetos do Senado dos Vampiros – o órgão que controla os atos de todos os vampiros norte-americanos – e andava tentando descobrir o que eram. O primeiro que tinha examinado – uma pequena esfera incandescente num estojo preto de madeira – começara a brilhar assim que a peguei. Depois de um breve clarão de luz, chegaram-me as hóspedes. Não conseguia perceber porque o trio tinha estado aprisionado, sobretudo num lugar tão grandioso como o santuário no interior de uma fortaleza de vampiros. Elas eram extremamente irritantes, mas não pareciam ser particularmente perigosas, a não ser para a conta do meu serviço de quarto. Eu tinha trazido as garotas comigo porque a outra opção era deixá-las sem vigia no meu quarto de hotel. Para mulheres de idade, tinham muita energia e, até agora, tinha sido muito trabalhoso entretê-las. Tinha-as deixado à frente de três máquinas de jogos, enquanto tratava dos meus assuntos, mas é óbvio que elas não ficaram lá. Tal como três crianças anciãs, não se mantinham muito tempo atentas a nada. Tinham entrado no bar pouco tempo depois de mim, trazendo nas mãos uma série de recordações conseguidas indubitavelmente por meios ínvios para seres comuns. Dino, com um pequeno diabo vermelho de pelúcia debaixo do braço, deixara comigo um globo de neve antes de se encaminhar para o balcão. Continha uma figura de plástico do casino que, ao invés de estar rodeada por neve falsa, exibia chamas minúsculas que dançavam quando era agitada. Pensei que, com a minha sorte, ia ser presa por ter roubado uma coisa tão fuleira. Apesar do incômodo de me fazer de babá das irmãs esquisitas, a expressão no rosto de Casanova enquanto as observava demonstrou-me que eu poderia ter ali uma vantagem. Sorri e observei as chamas do inferno a consumirem de novo o casino pequenino. — Se não me ajudar, posso mesmo deixá-las aqui. Daria um jeito de mudar o visual — nem me dei ao trabalho de salientar como isso seria mau para o negócio. Casanova estremeceu e engoliu o resto da bebida, dando-me um vislumbre de um pescoço forte e bronzeado debaixo do colarinho afrouxado da camisa. É claro que, tecnicamente, ele não era o Casanova da história. Ser possuído por um demônio íncubo tende a aumentar a esperança de vida de um mortal, mas não tanto assim. O clérigo italiano que era recordado pelo seu êxito inigualável com as mulheres morreu há séculos, mas o motivo da sua reputação sobreviveu. E não havia nenhuma razão de queixa em relação à sua mais recente encarnação. Ele nem sequer estava tentando nada e eu tinha sempre que lembrar que estava ali a negócios.


— Não podia me importar menos com seus problemas — disse-me ele, com violência. — Quanto queres para levá-las daqui? — Não é uma questão de dinheiro. Sabes o que eu quero. Tentei puxar discretamente os calções justos de cetim que tinha vestido para uma posição mais confortável, mas acho que ele reparou. É difícil ter um ar intimidador com uma roupa de diaba com lantejoulas e uma cauda pontiaguda. O escarlate pecador não condizia bem com os meus caracóis loiros arruivados e a mais branca das peles. Eu parecia uma boneca de plástico tentando passar por durona – não me admira que ele não estivesse impressionado. Mas eu tivera de pensar numa maneira de chegar até ele sem ser reconhecida e trazer uma roupa emprestada do armário das empregadas tinha parecido boa ideia. Casanova acendeu um cigarro minúsculo com um isqueiro de ouro branco. — Se tens atração pelo abismo, é com você, mas eu não vou pôr a cabeça na forca e irritar o Antônio. O homem é doido por vingança. Já devias saber. Tendo em conta que Antônio – um vampiro mestre e meu antigo guardião – encabeçava a lista de pessoas que me queriam ter numa urna sobre a prateleira da lareira, eu não podia contrapor. Mas eu tinha de encontrá-lo, a ele e à pessoa que eu desconfiava fortemente que estava com ele, senão a urna não seria necessária. Não sobraria nada de mim para fazer um funeral. E, uma vez que Casanova tinha sido o braço-direito de Tony, havia boas hipóteses de ele saber onde estava escondido aquele cretino matreiro. — Acho que Myra está com ele — disse eu, de forma concisa. Casanova não queria saber pormenores. Não era propriamente segredo que Myra era a pessoa mais recente a tentar ajudar-me a me libertar das agruras da vida. Não tinha sido uma coisa pessoal – mais uma estratégia de carreira, pode-se dizer – até eu lhe fazer uns buracos no corpo. Era óbvio que passara a ser uma coisa pessoal. — Os meus sentimentos — murmurou Casanova. — Mas receio que seja tudo o que posso oferecer. Compreende que a minha posição é algo... Débil. Era uma maneira de clarear as coisas. O fato de Casanova ter ocupado uma posição tão importante na organização criminosa de Tony era, no mínimo, invulgar. Regra geral, os demônios são considerados pelos vampiros como uma concorrência indesejada, mas os íncubos não estão propriamente no topo da escala do poder demoníaco. Na verdade, a maioria dos outros demônios os vê como uma espécie de constrangimento. Mas Casanova era um íncubo invulgar. Montara residência num atraente senhor espanhol há séculos, pensando que estava apenas trocando um corpo hospedeiro envelhecido por uma versão mais nova. Só quando a possessão estava em curso é que percebeu que tinha invadido um vampiro recém-criado, um vampiro demasiado novo para saber como expulsá-lo. Antes que o


vampiro percebesse, já tinham chegado a um entendimento. Os séculos de prática que Casanova tinha em termos de sedução ajudavam o vampiro a alimentar-se com facilidade e, ter um corpo que não envelhecia nem morria, era o ideal para Casanova. Portanto, quando Tony decidiu organizar os íncubos dos EUA num negócio lucrativo para si próprio, Casanova foi a escolha perfeita para geri-lo. O seu Spa Sonhos Decadentes está localizado num edifício monstruoso anexo ao casino de Tony, em Las Vegas, o Dante's. Enquanto os maridos em férias gastam a fortuna da família na roleta, as esposas negligenciadas encontram consolo nos extravagantes tratamentos do spa, entre outras coisas, oferecidos na porta ao lado. Tony enriquece com os rendimentos, os íncubos têm luxúria de sobra para se alimentarem e as senhoras saem de lá tão radiantes que duram dias. Na verdade, é um dos negócios menos repreensíveis de Tony, fora o fato de ser altamente ilegal – ao contrário do que algumas pessoas parecem acreditar, a polícia de Vegas não aprova a prostituição. Mas a verdade é que os vampiros nunca prestaram muita atenção à lei dos humanos. — Qual é a pena hoje em dia para a escravatura? — perguntei, de modo ocioso. — Aposto que faz com que a tal forca pareça muito boa. Pela primeira vez, Casanova perdeu o ar de superioridade. Deixou cair o cigarro e as cinzas quentes espalharam-se pelo sua roupa, deixando marcas minúsculas de queimadura na seda antes que ele conseguisse sacudi-las. — Nunca tive nada a ver com isso! Não fiquei surpreendida com a reação dele. Tony quebra tanto as leis humanas como as dos vampiros ao dedicar-se ao muito lucrativo, mas extremamente perigoso, negócio da venda de feiticeiros. O Círculo de Prata – o conselho de magos que atua na comunidade mágica do mesmo modo que o Senado faz com os vampiros – opõe-se violentamente à ideia e, o tratado que têm com os vampiros, proíbe-o especificamente. Ignorar o tratado era arriscar a guerra e o Senado teria espetado uma estaca em Tony só por isso, se já não tivesse imensas razões para o querer morto. — Vais passar um mau bocado tentando convencer o Senado disso se o teu patrão colocar a culpa em mim — pela sua expressão, Casanova sentiu que havia boas probabilidades. Conhecia o seu patrão tão bem como eu. — Mas, se eu o encontrar primeiro, Tony sai de cena e você se livra. Só tens vantagens em me ajudar — esperava que essa deixa resultasse, o interesse próprio costumava ser a melhor maneira de conseguir a colaboração de um vampiro, mas Casanova recuperou depressa. Acendeu outro cigarro com dedos firmes. — Por que tens tanta certeza de que eu sei onde ele está? Ele não me conta tudo. Agora tem aquele tal de Alphonse para ajudá-lo.


Alphonse era o atual braço-direito de Tony e o seu guarda-costas pessoal. Era seguramente o vampiro mais feio que eu já tinha visto e a sua personalidade não era mais atraente do que o rosto. Mas preferia muito mais a ele do que ao seu patrão. Alphonse não gostava de mim, mas eu duvidava que ele fosse perseguir-me se Tony não estivesse por perto para dar a ordem. — Tony teve de deixar alguém no comando quando desapareceu. Aposto que foi você e que sabes onde ele está. Olhou para mim através de uma névoa de fumo durante um longo minuto. — Tenho o controle temporário — admitiu finalmente —, mas é só de Vegas. Quer contatar Filadélfia? Abanei a cabeça de maneira enfática. Isso era o que eu decididamente não queria. Havia demasiadas pessoas em Filadélfia – a base principal de operações de Tony – que me recordavam com pouca simpatia. — Não, não. Aí podiam me dar qualquer coisa, sim, mas não seria informações. Os lábios de Casanova contorceram-se e o divertimento naqueles olhos cor de uísque tornou-se ainda mais atraente do que a sua habitual sedução cauterizante. Engoli em seco e fingi indiferença, o que me valeu um verdadeiro sorriso. Mas nenhuma informação. — Sabes tão bem como eu que a família não leva bem à deslealdade — murmurou ele. — Isso é, sobretudo verdade, vindo de um híbrido demônio/vampiro que a maioria considera uma aberração. E o fato de, recentemente, eu ter assumido o controle temporário neste lado da costa não me valeu mais admiradores. Há muita gente à espera que eu dê um passo em falso e, trair o patrão seria decididamente o caso. Não estava preparada para a franqueza, que me desconcertou. Fitei-o enquanto uma vaga de medo me percorria o estômago até à garganta. Retraí-a; não podia dar-me ao luxo de mostrar insegurança agora. Se não arranjasse uma maneira de fazer com que Casanova se abrisse, não tardaria muito até que Myra me fizesse o mesmo – com uma faca. Inclinei-me sobre a mesa e joguei o meu melhor trunfo. — Compreendo toda a ideia de vingança da família. Mas pensa bem. Se eu, ou o Senado, espetarmos uma estaca no Tony, você ficará numa posição perfeita para tomar algumas propriedades. Não gostaria que esta casa fosse tua? Casanova passou a mão pelo cabelo castanho que lhe dava pelo ombro e pendia em ondas perfeitas sem nenhum artifício óbvio. Tinha vestido uma camisa de seda crua de um castanho rico quase igual ao dos seus olhos. Eu não era perita em roupa de homem, mas a gravata cor de açafrão parecia cara, tal como o relógio de ouro e os botões de punho a


condizer. Casanova tinha gostos luxuosos e eu tinha dúvidas de que Tony lhe pagasse bem demais – a generosidade não era um dos traços da sua personalidade. Olhou em volta com desejo. — O que eu não daria por uma reforma — disse ele. Faz ideia de como é difícil fazer com que as clientes não reparem no ambiente? — eu percebia o que ele queria dizer. O interior sombrio, ao estilo gótico e o balcão em forma de cabeça de dragão, juntamente com um ocasional bafejo de vapor proveniente das suas narinas, não era propriamente o ideal para o romance. — Os meus rapazes têm de trabalhar o dobro do que deviam. No mês passado criei um vazamento de água para ter uma desculpa para arrumar as paredes, mas ainda falta fazer tanta coisa. E nem me faça falar da entrada! Afugenta metade das potenciais clientes antes de chegarem à porta. — Então, me ajuda com isso. Abanou a cabeça com pesar, expelindo uma fina torrente de fumo juntamente com um suspiro. — Não é possível, chica. Se Tony descobrir, dá cabo de mim. Teria de arranjar um corpo novo, depois de ele espetar uma estaca neste e eu sinto-me um bocado ligado a ele. Era de prever que Casanova não quisesse arriscar. Ficar a observar de fora, à espera de ver quem ganha, era a jogada pragmática – e o pragmatismo é praticamente a característica que define os vampiros. Infelizmente, essa não era uma opção em aberto para mim. Um legado de uma vidente excêntrica tornara-me recentemente na Pítia, a designação da principal clarividente do mundo. O dom de Agnes veio acompanhado de uma quantidade exuberante de poder que todo mundo queria, ou monopolizar, ou erradicar, mas no momento, eu estava presa a ele, desde que ela morrera sem o mínimo de consideração antes de eu perceber como o devolver. Eu esperava passá-lo a outra pessoa, partindo do princípio de que viveria tempo suficiente para tal, mas enquanto isso, Tony queria me matar, o Senado queria me transformar no seu fantoche e – pois, é verdade – eu também tinha conseguido irritar os magos. Que posso eu dizer? Sou uma pessoa de grande sucesso. — Tony não vai vencer os seis senados — disse eu, de modo categórico. — Eles têm acordos mútuos – se um deles andar a caça dele, todos andam. Mais cedo ou mais tarde, hão de apanhá-lo e ele há de começar a culpar todo mundo pelo que aconteceu. Hão de espetarlhe uma estaca, mas aposto dez contra um em como ele vai te incriminar a muitos outros antes disso. Se me ajudar, talvez eu consiga chegar a ele primeiro. Casanova analisou-me enquanto apagava o cigarro num cinzeiro preto. Os olhos escuros percorreram a minha indumentária e um sorriso ténue acorreu-lhe aos lábios. — Dizem por aí que agora você é a Pítia — disse ele, por fim, comprimindo de leve as costas de uma mão de dedos longos contra a minha. — Não pode usar o teu poder para


tratar disso? Teria muito valor para mim — senti a pele mais quente do que era costume quando ele me tocou, uma sensação que se espalhou pelo meu braço. Sua voz baixou uma oitava, tornando-se rouca. — Consigo ser muito bom amigo, Cassandra. Levantou-me a mão e virou-a ao contrário para passar de leve um dedo em minha palma. Eu estava prestes a fazer um comentário sarcástico sobre meu pretensioso poder quando ele curvou a cabeça. Seus lábios roçaram a linha que tinha traçado, suaves como seda, mas marcantes como um tição e eu esqueci-me do que ia a dizer. Ergueu os olhos para mim por entre as pestanas escuras e foi como fitar o rosto de um estranho, um estranho com belas feições obscuras e um olhar hipnótico. Lembrei-me do velho ditado que dizia que a única diferença entre Don Juan e Casanova – os dois maiores amantes do mundo –, era que quando Don Juan terminava as relações, as mulheres odiavam-no e, quando Casanova partia, elas continuavam a adorá-lo. Começava a perceber o porquê. Soltei a mão antes que me sentisse tentada a usá-la para arrastá-lo para cima da mesa. — Me deixa! Ele pestanejou com surpresa e tornou a aproximar-se a mim. Dessa vez, a sensação calorosa foi maior quando, além disso, nos tocámos lançando uma intensidade de calor pela minha pele. Tive uma imagem repentina de noites tórridas espanholas, do aroma de jasmim e da pele quente e dourada a deslizar sobre a minha. Fechei os olhos, engolindo em seco, tentando rejeitar as sensações, mas isso só pareceu ajudá-las a tornarem-se mais reais. Alguém me empurrava para um espesso colchão de penas, quase me enterrando nas suas amplas pregas e consegui mesmo sentir a suave costura dos lençóis debaixo das minhas mãos. Uma cascata de cabelo sedoso espalhou-se em toda a minha volta e mãos fortes deslizaram pelos meus flancos, um toque provocador que quase passou despercebido, mas que inundou de calor as minhas veias. Depois, sem aviso prévio, a sensação mudou, passando da quentura sedutora ao calor escaldante. Por um momento, pensei que o toque de Casanova fosse de fato queimar-me, mas ele libertou minha a mão antes que culminasse em verdadeira dor. Abri os olhos e descobri que ainda estávamos sentados no bar; os únicos indícios de que algo tinha acontecido eram o meu rosto corado e o pulso acelerado. Casanova suspirou e tornou a sentar-se. — Seja quem for que o fez, sabia o que estava fazendo — disse-me ele, fazendo sinal para que lhe enchessem o copo. — Só por curiosidade, quem foi? Eu diria que não havia ninguém que eu não conseguisse quebrar. — Não faço ideia do que está falando — esfreguei a mão onde sentia a sensação da marca dos seus dedos e olhei-o com fúria. Não tinha gostado da tentativa de distração – eu não era o petisco vespertino dele –, nem daquilo que lhe tinha posto fim de forma tão dolorosa, fosse lá o que fosse.


— O géis. Eu não sabia que alguém a tinha reclamado primeiro, senão não teria... — O que é um g-é-i-s? — soletrou, coisa que não ajudou muito. Um empregado trouxe-nos mais bebidas e eu dei um trago em parte da minha, com meu humor a piorar a olhos vistos. — Não brinque comigo, Cassie. Sabe o que eu sou. Achou que não ia perceber? — perguntou com impaciência. Então, algo na minha expressão lhe arregalou os olhos. — Não sabe mesmo, não é? Fitei-o com rancor. Mais complicações; era só o que me faltava agora. — Ou diz alguma coisa com sentido, ou... — Alguém, um feiticeiro poderoso ou um vampiro mestre, te reclamou — disse ele com impaciência, corrigindo-se depois. — Não, não te reclamou. Colocou-te uma imensa placa de MANTENHA DISTÂNCIA a um quilômetro de altura. Fiquei ali sentada, sentindo uma nova onda de calor a escalando-me o pescoço. Lembrei-me de uma voz refinada e divertida a dizer-me que eu lhe pertencia, que sempre foi assim e sempre seria. Ia matá-lo. — O que isso significa exatamente? — Um géis é uma ligação mágica, que geralmente envolve um tabu ou uma proibição relativa ao comportamento pessoal — ele percebeu a minha confusão. — Lembra-se da história da Melusina? Veio uma recordação de infância, mas era vaga. — Um conto de fadas francês, parece-me. Era uma semi-fada que se transformava em dragão, certo? Casanova suspirou, abanando a cabeça devido à minha ignorância. — Melusina era uma bela mulher durante seis dias da semana, mas foi amaldiçoada para aparecer como semi-serpente ao sétimo dia. Casou com Raymond de Lusignan depois de ele concordar com um géis que o proibia de vê-la aos domingos, apesar de ela ter se recusado a dizer porquê. Tiveram muitos anos felizes até que um dos primos dele convenceu Raymond de que domingo era o dia que ela passava com o seu amante e ele espiou-a para descobrir a verdade. Isso quebrou o géis, fazendo com que Melusina se tornasse um dragão para sempre e perdesse Raymond, o amor da sua vida. — Estás dizendo que essa história é verdadeira?


— Não faço ideia. A verdade é que é assim que atua um géis — a mão dele pairou sobre a minha, mas não tentou tocar-me de novo. — Este é o mais forte que já senti e já está instalado há algum tempo. É bastante forte. — Defina “algum tempo”. — Anos — disse ele, concentrando-se. — Pelo menos uma década, talvez até mais. E uma década não são apenas dez anos. Para efeitos do feitiço, o tempo é calculado como uma percentagem do seu período de vida. Tens o quê, vinte e poucos? — Faço amanhã vinte e quatro. Encolheu os ombros. — Ora, aí está. Há cerca de metade da sua vida que alguém é seu dono. Uma nova onda de sangue corou-me o rosto. — Ninguém é meu dono — disse eu, de modo sucinto, mas Casanova não pareceu impressionado. — O que este géis faz, além de afugentar os outros? Não tardei a desejar não ter perguntado. — O dúthracht géis é uma forte ligação mágica, uma das mais fortes. Durante a Idade Média, os magos paranoicos com esposas que não eram mágicas usavam-no como uma variação do cinto de castidade. Também já ouvi dizer que era usado em casamentos combinados, para livrá-los do constrangimento inicial — concentrou-se por um instante antes de prosseguir. — Pelo que consigo determinar, permite à pessoa que o estabelece conhecer suas emoções, as verdadeiras, não as que tenta projetar, para que não possas mentir. Também lhe dá uma vaga noção de onde estás em determinado momento. Ele pode não saber a sua localização exata, mas de certeza consegue restringi-la a uma cidade, ou até mesmo a um perímetro menos vasto. Lembrei-me do babaca arrogante que eu desconfiava fortemente estar por trás disso a dizer que, certa vez, tinha conseguido encontrar-me porque tivera ajuda da rede de serviços secretos do Senado. Talvez assim fosse, mas parece que não era só isso. Pus-me a pensar em quantas vezes mais me teria ele contado apenas parte da verdade. — E, por último, mas não menos importante, o géis aumenta a atração entre os dois, tornando cada encontro mais intenso. Vai acabar por não querer fugir. Senti-me a tremer. — Então, nada do que sinto é autêntico — não podia acreditar que ele tinha descido tão baixo. Ele sabia muito bem o que eu sentia em relação a ter os meus pensamentos ou sentimentos alterados.


O babaca em causa era Mircea, um vampiro com quinhentos anos cujo ato mais famoso era o fato de ser o irmão mais velho de Drácula. Tinha sido também a minha primeira paixonite. Não tinha me importado com seu apelido, nem com o fato de ele ser um mestre de primeiro nível e membro do Senado. Tinha ficado muito mais interessada na maneira como os seus belos olhos castanhos se enrugavam nos cantos quando ria, no cabelo cor de mogno que se espalhava sobre os seus ombros largos e naquela boca maliciosamente perfeita e a mais sensual que já vi. Entre os seus outros títulos, Mircea era também o vampiro a quem Tony chamava Mestre. Isso era algo que me devia ter feito pôr em causa muito mais cedo a sinceridade daquele rosto atraente. — O dúthracht não cria emoções — corrigiu-me Casanova. — Não é um feitiço de amor. Só consegue intensificar o que já existe. Por isso é que é estranho que alguém o tenha usado em você com onze, doze anos? Assenti meio entorpecida com a cabeça, mas a verdade é que não achava nada estranho. A minha mãe tornara-se a herdeira do trono de Pítia antes de fugir com meu pai. No entanto, o fato de ela ter sido deserdada não afetava em nada as minhas hipóteses de lhe suceder, porque não é a Pítia antiga que escolhe a nova. A seleção final é feita pelo próprio poder do cargo. Durante milhares de anos, só num ou noutro caso é que não foi escolhida a herdeira designada, aquela que a Pítia antiga treinara para lhe suceder. Mas Mircea tinha apostado que eu seria uma das exceções e não poupara esforços para garantir que, quando chegasse a hora, eu continuaria a ser elegível. Por razões que nunca entendi bem, a herdeira tem de permanecer casta até ter início o ritual da transformação e Mircea não quisera arriscar que uma paixonite de adolescência me retirasse da competição. Por isso marcara-me como reservada reclamando-me para si mesmo. Cretino. — Disseste que aumenta as emoções — disse eu, pensando na primeira vez em que encontrei Mircea na qualidade de adulta. — Se referia apenas às minhas? — Mircea não parecera propriamente desinteressado da última vez que o vi, mas era difícil saber ao certo. Na sua maioria, os vampiros são excelentes mentirosos, mas ele é o campeão incontestável, possivelmente porque é esse o seu trabalho. É o diplomata chefe do Senado, o cara que é enviado para situações complicadas para conseguir o que eles querem através da persuasão, sedução ou trapaça. É muito bom naquilo que faz. — Não. Dá para os dois lados, o que, na opinião da maioria das pessoas, é uma das grandes desvantagens do feitiço — Casanova inclinou-se para frente, tendo um prazer aparente na palestra que estava dando. — Pensa nisso como um amplificador de uma aparelhagem: cada encontro faz aumentá-lo um pouco. Tens de dar-lhe algo para começar, mas assim que começa a funcionar, entram os dois no caminho da obsessão recíproca, quer queiram quer não.


Virei-me de costas para que ele não visse a minha expressão e tentei ignorar o nó apertado que tinha no peito e a dor opressiva na garganta. Não sabia por que me sentia tão traída. Não é que eu sempre tivesse confiado plenamente em Mircea. Eu sabia que nenhum vampiro mestre, sobretudo um membro do Senado, pertencia à categoria de boa pessoa. Ele não podia ter chegado aonde chegou sendo menos do que implacável. Mas eu teria apostado que ele não faria uma coisa dessas. Tony, sim; isso eu conseguia imaginar, mas tolamente tinha acreditado que o patrão dele era diferente. Estúpida. Por quem eu pensava que ele tinha sido treinado? Olhei para trás e vi Casanova com um cauteloso vazio de expressão. — Está dizendo que isso é perigoso? — Toda magia é perigosa, chica — disse-me ele calmamente —, em determinadas circunstâncias. — Não meça palavras — eu não precisava que me poupassem os sentimentos, precisava de respostas. Alguma coisa que me ajudasse a encontrar uma maneira de sair disto. — Não estou medindo — insistiu ele. Uma mulher deixou sair um grito agudo e os olhos dele desviaram-se para um ponto atrás de mim. — Droga! Olhei por cima do ombro e vi que as minhas três companheiras de quarto tinham decidido jogar os dardos, apesar de o bar não estar equipado com um alvo. Enquanto eu estava distraída, Dino posicionara-se numa ponta do balcão e Pefredo na outra, enquanto Énio permanecia na parte da frente soprando palitos contra o desgraçado do empregado. Antes que pudéssemos fazer alguma coisa, Énio soprou outra boca cheia de minúsculos projéteis, deixando o pobre sátiro com o aspecto de uma almofada de alfinetes muito infeliz. A mulher tornou a gritar quando uma floresta de pequenos pontos vermelhos desabrochou no peito dele e Casanova fez sinal ao seu companheiro para que a levasse dali. Ele foi ao resgate do seu empregado e eu fui atrás para salvá-lo. As garotas às vezes me dão ouvidos – quando lhes dá na telha – embora eu tenha a impressão de ser considerada uma desmancha prazeres. Casanova mandou o trêmulo empregado fazer uma pausa bem merecida, enquanto eu aplacava as garotas tirando umas cartas da minha carteira. É um baralho de tarô normal que eu recebi como prenda de aniversário há anos e que está enfeitiçado para atuar como uma espécie de anel da disposição metafísico. Não faz nada específico, mas as suas previsões acerca do ambiente geral em torno de uma situação costumam ser sinistramente exatas. Não fiquei contente quando vi a carta que se projetou do baralho assim que lhe toquei. Apesar do vulgar conceito errado, a carta dos Amantes raramente está relacionada com o fato de se encontrar uma alma gêmea, ou mesmo de se passar um bom momento. O Dois de Copas indica normalmente que o romance vem a caminho, mas a carta dos Amantes é mais complexa. Aponta para uma escolha indefinida, uma escolha que irá envolver tentação


e dor. E, tal como a representação da carta no meu baralho – Adão e Eva a serem expulsos do Paraíso –, a decisão final que terá enormes consequências em tudo o que se seguir. Escusado nunca foi uma das minhas preferidas. Enquanto eu confiscava os palitos que restavam e dava o novo brinquedo às garotas, Casanova arranjou outro empregado. Por fim, voltamos a juntar-nos na nossa mesa. — Tudo depende do teu ponto de vista — disse ele, retomando a conversa como se nada tivesse acontecido. Suponho que, no decorrer dos séculos, ele tenha lidado com coisas piores do que umas avozinhas entediadas. — Por si mesmo, o géis é inofensivo. Mas também o de Melusina o era – desde que não fosse quebrado. A sua versão limita-se a causar devoção em relação a uma pessoa. Se nada interferir com essa relação, os dois viverão felizes para sempre. O fato de eu poder não querer viver, feliz ou não, num estado de espírito induzido pela magia não tinha obviamente importância. — E se alguma coisa interferir mesmo? Casanova pareceu levemente desconfortável. — O amor é uma coisa muito esplendorosa, como eu muito bem sei. Mas também tem o seu lado feio. Se perceber que algo ou alguém ameaça a ligação, ele age para bloquear essa ameaça. — viu a minha impaciência e desenvolveu. — Imagine que uma pessoa, sem poderes mágicos, obviamente, desenvolva um interesse por você. Uma pessoa normal seria incapaz de pressentir o géis, portanto o aviso passaria despercebido. — O que aconteceria? — Depende. Se a ligação fosse recente e os dois não tivessem passado muito tempo juntos... Em outras palavras, se a amplitude estivesse sintonizada no baixo, talvez nada. Mas, quanto mais alto for o volume, mais se sentirá a interferência. Um de vocês, ou mesmo os dois, acabaria por tentar eliminar a ameaça. — Eliminar? Ou seja, matar? — caiu-me o queixo. Mircea devia estar louco. — É provável que não chegasse a isso — assegurou-me Casanova, e eu senti o estômago a relaxar ligeiramente. — A maioria dos pretendentes fugiria suficientemente depressa quando começasse a se queixar do ataque, ou quando o seu amante começasse a ameaçá-los. Ótimo — pensei eu, enquanto o meu estômago regressava ao nó anterior. Podia ficar maluca a qualquer momento, graças à ideia de segurança de Mircea. — Então... E se o autor do géis quisesse que alguém me seduzisse?


Não era uma pergunta ingénua. Mircea tinha enviado um vampiro chamado Tomas para fazer amizade comigo quando a saúde da Pítia começou a fraquejar. Lady Phemonoe, a Pítia que eu conhecia melhor pelo nome de Agnes, percebera que estava morrendo e começara com os ritos que libertariam o poder para ser transmitido a uma sucessora. E isso dera início a um novo conjunto de circunstâncias. Agnes podia iniciar o ritual antigo, mas só eu o podia completar – perdendo a virgindade que Mircea tinha guardado com tanto cuidado. Ele designara Tomas para que lhe tomasse conta desse pequeno item, para evitar ser apanhado na sua própria armadilha. Mircea nascera antes de estar na moda a ideia de uma mulher escolher seus parceiros sexuais e, Tomas era o servo de outro vampiro mestre, sendo que dele se esperava que cumprisse ordens. Portanto, como tal, nenhum de nós tinha sido consultado acerca de nada disso. Tomas era um daqueles raros vampiros capazes de imitar a condição humana quase na perfeição, tanto assim que vivemos como companheiros de quarto durante seis meses sem que eu percebesse o que ele era. Tornamo-nos íntimos, embora não tão íntimos como Mircea desejaria. Eu sentia relutância em envolver, fosse quem fosse, em minha vida maluca e pensava que estava protegendo Tomas ao mantê-lo distante. Mas isso só fizera com que Mircea fosse forçado a substituí-lo no ritual. Afinal, tínhamos sido interrompidos antes do acontecimento principal, algo pelo qual me senti grata logo que minha cabeça ganhou alguma clareza. Completar o ritual significava que eu ficaria presa como Pítia toda a vida – um período de tempo, sem dúvida, extremamente abreviado, levando em conta o quanto isso me tornaria num alvo. Não que a minha expectativa de vida no momento parecesse assim tão grande. — O autor do géis pode liberá-lo para uma pessoa em particular – confirmou Casanova. — Já ouvi falar de casos em que o feitiço foi usado em herdeiras pelos seus tutores para assegurar que permaneciam castas até serem escolhidos os pretendentes adequados. O aspecto devoto do feitiço deveria garantir que elas aceitariam de bom grado quem quer que fosse o eleito. Não gostei da expressão de Casanova. — O que aconteceu? Começou a se apalpar para tirar outro cigarro de uma cigarreira fina em ouro. Levando em conta a habitual graciosidade dos seus movimentos, tive a sensação de que não iria gostar da resposta. — O géis foi desprezado porque tinha tendência a replicar — explicou, acendendo o cigarro. — Às vezes funcionava, mas houve casos em que as garotas se suicidaram, para não terem de casar com alguém que não o seu tutor — ao ver a minha expressão de perplexidade, apressou-se a explicar. — É um feitiço muito difícil de ser lançado de forma correta, Cassie. A devoção pode ter vários significados. O géis é concebido para garantir a


lealdade, mas quantas emoções humanas conheces que tenham apenas uma faceta? A lealdade facilmente se transforma em admiração. Por que acha que eu seria leal a alguém que não fosse, de alguma maneira, admirável? A admiração torna-se atração, a atração desenvolve-se em amor e o amor geralmente leva ao desejo de se possuir o objeto amado. Entende? — Sim — aparentemente, meu corpo estava uns passos à frente do meu cérebro, já que os meus braços tinham ficado como pele de galinha. — O sentimento de posse desenvolve muitas vezes um aspecto de exclusividade, esta pessoa deve pertencer a mim e a mais ninguém, estamos destinados a ficar juntos, esse tipo de coisa. Abanou uma mão, fazendo com que o fumo do seu cigarro se entrelaçasse de forma confusa em direção ao teto. Eu também me senti um pouco assim. O meu cérebro andava aos tropeções, tentando encontrar sentido para esta confusão e minhas emoções andavam por todo o lado. — Isso leva à avidez — prosseguiu Casanova —, que pode converter-se em desespero ou ódio, se for frustrada. Mesmo quando é lançado de forma correta, o feitiço provoca muitas vezes problemas, sendo que, a quantidade e o tipo de problemas dependem das personalidades de quem está ligado a ele. E, por ser tão complexo, é fácil fazer asneira. A maioria dos magos já nem sequer tenta fazê-lo. Ou o teu admirador é um poderoso utilizador de magia, ou conhece alguém que o é. — Ele pode dar-se ao luxo de ter o melhor — disse eu, de modo abstraído. Deve ter parecido a solução perfeita: deixar-me com Tony, um dos seus supostos leais servos e colocar-me sob o efeito do géis, para permanecer intacta até descobrir se o poder passaria ou não para mim. Era um grande plano, se não pensássemos nos meus sentimentos. O que, claro, aconteceu. Os vampiros mestres tendem a ameaçar os seus servos como se fossem peças de xadrez, deslocando-os sem se preocuparem com coisas pequenas, como a eventual vontade da própria peça. — Não pode ser o Antônio — ponderou Casanova, olhando para mim de modo especulativo. — Esteve na corte dele durante anos antes de fugir. O feitiço nunca teria permitido que o deixasse e você sequer teria querido tentar. Estremeci. Só a ideia de estar apaixonada por Tony era suficiente para me deixar indisposta. — Pode ser retirado? — Pela pessoa que o criou, certamente. — Não. Sem ele.


Casanova abanou a cabeça. — Eu não conseguiria fazê-lo e, eu sou muito bom, chica — lançou-me um olhar astuto. — É claro que, se eu soubesse mais acerca de quem estamos falando, isso poderia ajudar. Talvez um dos meus contatos... Eu não queria dizer. Tony era o superior imediato dele, mas Mircea era o mestre de Tony. Como tal, ele podia reclamar tudo o que pertencia a Tony e a qualquer pessoa que lhe devesse lealdade. Regra geral: havia uma determinada quantidade de manobras que tinham de ser feitas antes que um mestre sênior pudesse simplesmente tirar as posses de um dos seus subalternos, pelo menos se esse subordinado tivesse atingido o estatuto de mestre de terceiro nível, como era o caso de Tony. Mas, uma vez que Tony estava agora em guerra aberta contra Mircea e o Senado, tudo o que ele tinha revertera para o controle do seu mestre. O que era outra maneira de dizer que Mircea era mestre de Casanova. Era improvável que o íncubo o desafiasse, mas obviamente não iria ajudar-me em nada sem ter mais informações. Suspirei. Não gostava de me sentir entre a espada e a parede, mas a quem mais poderia eu perguntar? — É o Mircea — disse eu, depois de me certificar de que ninguém estava ouvindo a conversa. Casanova ficou sem expressão por um instante, depois deu um salto como se tivesse fogo na bunda. — Podia ter dito antes, Cassie! — silvou, com um sussurro alarmado. — Ver esse corpo esfolado vivo não faz parte dos meus planos! — Sente-se — disse, com irritação. — Diz-me como posso me livrar dessa coisa. — Não pode. Aceita um conselho, chica — disse ele, de modo sério. — Vai para casa encontrar com o simpático vampiro mestre, peça perdão por lhe ter causado algum tipo de incômodo e faz o que ele te mandar. Não vai querer que ele se zangue contigo. — Já vi Mircea irritado — disse eu. Era verdade, embora até agora nunca tivesse sido comigo. Dei um toque com o pé na cadeira de Casanova. — Sente-se. As pessoas estão começando a olhar. — É claro — concordou Casanova — e, é por isso que eu vou direto para o meu gabinete, para pegar o telefone e ligar ao patrão. Se não quer que ele te encontre, sugiro que utilize o tempo livre para dar no pé. Não que isso adiante muito. — Tens medo dele! — Deixe-me pensar — disse ele, com sarcasmo. — Sim! Tal como você deverias ter.


Fitei-o de modo confuso. O vampiro que eu conhecia não era de brincadeira, mas eu nunca o tinha visto fazer nada que justificasse o fato de um demônio centenário estar tremendo como vara verde sobre os seus sapatos de marca. — Estamos falando de Mircea, certo? Casanova olhou em volta e depois sentou no lugar ao lado do meu, com um ar sério quase cômico. — Ouve bem, minha menina, e presta atenção, porque nunca mais tornarei a dizer isso. O Mircea é o maior manipulador que já conheci. Há uma razão para ele ser o principal negociador do Senado. Ele consegue sempre o que quer. O meu conselho é: facilita a vida dele e talvez ele te facilite a sua. Agarrei-lhe na gravata para impedi-lo de correr para o telefone e puxei-lhe a cara para perto da minha. Não costumo ser do tipo violento – vi demasiada violência durante a infância para querer tomar parte dela – mas, naquele momento, estava extremamente zangada para me importar com isso. — Já fez o teu discurso, agora ouve o meu. Conheço muito bem a manipulação. Não passei um dia da minha vida sem ter alguém me puxando pelo pescoço. Nem essa coisa toda da Pítia foi ideia minha. Mas, sabes o que mais? Isso muda mesmo as coisas, não é? O Mircea não é meu dono, pense ele o que pensar. Ninguém é meu dono. E, de agora em diante, quem quiser tentar me enganar vai descobrir que eu sou uma inimiga muito má. Entendeu? Casanova fingiu que estava asfixiando e eu soltei-o. Deixou-se cair na cadeira, com um ar mais divertido do que assustado. — Se é assim tão poderosa, para quê precisa da minha ajuda? — perguntou, de modo astuto. — Por que não retira você mesma o géis e aproveita para lançar sua ira sobre o Antônio? — Não é bem assim que as coisas funcionam — disse eu, secamente. — E onde está a graça? O sorriso que Casanova tinha estado tentando refrear, sem sucesso, abriu-se no rosto. — É uma piada privada — disse, com uma gargalhada. — Tinha de ser íncubo para entender. — Dá-me a versão complicada. Fez um ar tímido. A expressão teria parecido estranha no seu rosto de feições fortes, mas ele foi convincente.


— Antevisão, poder-se dizer. Como ansiar pelo próximo combate de pesos pesados do campeonato. Neste canto — disse ele, com a voz a ganhar a cadência de um apresentador de boxe veterano — temos o Lorde Mircea, sem nenhuma derrota em quinhentos anos de manobras políticas e sociais. E no outro canto, a sua adversária, a enganadoramente doce Cassandra, que há pouco subiu ao trono de Pítia — deu um sorriso ainda mais aberto. — Tens de entender, Cassie. Para um íncubo, as coisas não melhoram muito mais do que isso. Se eu não fosse tão protetor desse corpo, estaria disputando um lugar com vista para o ringue. — Não está dizendo coisa com coisa — disse eu, com repulsa. — Diz-me algo que eu possa usar! — Por que não me diz você alguma coisa, para variar? — rebateu. — O que, de fato, acha que vai fazer se encontrar o Tony? Ele já anda por aqui há muito tempo. Não vai ser fácil de matar. Por que não relaxa e deixa que Mircea trate dele? Mais cedo ou mais tarde ele há de encontrá-lo e aí eu e tu ficamos os dois... — Mircea não sabe lidar com a Myra! — não podia acreditar que Casanova ainda não tivesse percebido. — Poderá ser capaz de me proteger aqui e agora, mas não é o presente que me preocupa — Myra tinha sido a herdeira de Agnes até cair em más companhias e ser deserdada. Mas o seu declínio não lhe tinha tirado as capacidades, o que significava que ela podia esgueirar-se até ao passado e atacar-me muito antes de eu sequer saber quem ela era. Até podia matar um dos meus pais, assegurando-se de que eu nunca nasceria. E Mircea não podia fazer nada em relação a isso. — Mas se Antônio está protegendo-a, como é que espera... — Tenho umas surpresas para o Tony. O que preciso de você... — É provável que vá me custar caro. Não pode acreditar... — ele parou de falar quando viu minha expressão. — O que foi? Pus-me de pé num pulo, oscilando um pouco sobre os saltos e olhei fixamente por cima da sua cabeça para a figura que surgia na entrada do bar. Meu mago de guerra menos preferido atravessava a sala a passos largos. Seu cabelo loiro e curto parecia ter sido cortado por um golpe de catana e os gélidos olhos verdes estavam irados. Não que isso não fosse habitual: eu nunca o vira a sorrir e, normalmente, considerava que estava num dia bom se ele não estivesse tentando me matar. Levando em conta que ele tinha vestido o seu costumeiro sobretudo – aquele que estava cheio de armas escondidas –, não me parecia que hoje fosse um desses dias.


í

— Esse é quem eu penso que é? — Casanova lançou um olhar de relance em pânico ao mago, cujo casaco se abrira com o vento e revelara poder de fogo suficiente para aniquilar um pelotão. Até os vampiros são cautelosos perto de magos de guerra, feiticeiros e bruxas que foram treinados pelo Círculo em técnicas de combate humanas e mágicas. Eles têm a mentalidade do “disparar primeiro e fazer perguntas depois” que as forças policiais humanas abandonaram na época do Velho Oeste. Claro que os agentes da polícia não têm de enfrentar esse tipo de surpresa muitas vezes reservada aos magos. Eu já vira o suficiente deste mago em particular e, ao que parece, Casanova sentia o mesmo. Sem esperar que eu respondesse, deixou de lado a dignidade e escondeu-se debaixo da mesa. Estava a pensar se valeria a pena tentar fugir quando Énio saltou do banco alto e correu na minha direção. Fez sinal ao mago e levantou as sobrancelhas espessas que, no caso dela, protegiam apenas pregas de pele vazias. Não sei bem como percebi o que ela estava a pensar, pois ela não disse uma palavra, mas entendi o objetivo. Abanei a cabeça com ênfase. Não estava bem certa do que ele era, mas “amigo” não me soava bem. Énio virou-se para encarar o mago, que estava apenas a duas mesas de distância. Ele parou de repente e, passado um segundo, eu percebi o porquê. As três irmãs não eram bonitas para ninguém, mas tinham um aspecto suficientemente inofensivo. O rosto mirrado de Ênio – com tantas pregas que nem se notava a ausência dos olhos –, a boca desdentada e o cabelo desgrenhado faziam com que costumasse parecer uma sem-abrigo particularmente feia. Mas agora não estava com esse aspecto.


Os meus conhecimentos mitológicos não são assim tão bons compreendendo, sobretudo, ideias fragmentadas deixadas por lições muito antigas dadas por Eugenie, a minha antiga governanta. Esta foi uma das ocasiões em que desejei ter prestado mais atenção. No lugar onde estivera uma velhota minúscula estava agora uma enorme amazona, coberta apenas por um cabelo denso até ao tornozelo e muito sangue. A transformação de Énio foi tão rápida que eu nem a vi acontecer, mas a cara de Pritkin, que se transformara no rosto pálido e fechado com que ele fica quando está verdadeiramente aterrorizado, demonstroume que a história dela não era apenas aquilo de que eu me lembrava. Decidi que não queria saber. Nunca afirmei ser uma heroína. Além do mais, Casanova começara a fugir discretamente, usando as mesas como proteção e, eu continuava sem saber o paradeiro de Tony. Deixei-me cair no chão e fui atrás dele. Logo a seguir, gerou-se o pandemônio atrás de nós, mas eu não era louca o suficiente para olhar em volta. Já tinha muita prática em fugas e já aprendera que é a melhor maneira de manter a mente concentrada no objetivo. Metade de uma cadeira preta voou sobre minha cabeça, mas eu me limitei a baixar-me ainda mais e a engatinhar mais depressa. Casanova parecia estar a dirigir-se para uma extensão de parede vazia, mas eu sabia que não era isso. Esta era uma das casas de Tony e ele nunca construía nada que não tivesse pelo menos uma dúzia de saídas de emergência. Eu estava bastante certa de que em algum lugar lá para cima havia uma porta escondida por um feitiço, portanto, quando a metade superior do corpo de Casanova desapareceu no papel de parede chinês, não fiquei surpreendida. Agarrei-me ao blazer dele, fechei os olhos com força e segui-o. Quando tornei a abri-los, descobri que estávamos num corredor utilitário iluminado por luzes fluorescentes industriais. Casanova tentou libertar-se de mim, mas eu agarrei-me a ele com todas as minhas forças. Não foi fácil, já que a fuga improvisada me deixara com a roupa interior entalada e ele era mais forte do que eu. Mas ele era a melhor ligação que eu tinha com Tony e eu não ia perdê-lo. — Ora, está bem! — disse ele, arrastando-me para me pôr de pé. — Por aqui! Corremos até uma porta que ia dar num corredor muito mais luxuoso, revestido com um espesso tapete de pelúcia escarlate. O papel de parede em brocado dourado exibia uma fileira de desenhos lascivos e exalava um perfume almiscarado. Ofeguei, mas Casanova estava demasiado atarefado apertando o botão de chamada do elevador uma dúzia de vezes. Mesmo quando eu estava prestes a desistir da ideia de sequer respirar, o elevador chegou por fim e nós saltamos para dentro. Casanova apertou o botão para o quinto andar e eu consegui deixar sair um protesto asfixiado. — Não devíamos ir para baixo, para o estacionamento? Se ficarmos no edifício, ele encontra-nos. Lançou-me um olhar.


— Acha mesmo que ele veio sozinho? — encolhi os ombros. Nunca tinha visto Pritkin trabalhar com outros magos, portanto parecia-me possível. Já provocava caos suficiente sozinho. — Tem apoio, quase de certeza — informou-me Casanova, percorrendo a roupa ligeiramente amarrotada com as mãos trêmulas. — Deixa que as defesas internas tratem deles. O elevador parou num gabinete espaçoso que se parecia muito com uma sala de estar. Havia espelhos e chaises longues1 por toda parte e uma das paredes era forrada por um balcão quase tão grande como o lá de baixo. Um assistente com bom aspecto – que provavelmente iria ser recrutado pelos íncubos, se não o tivesse sido já –, tentou oferecer-nos refrescos, mas Casanova fez-lhe sinal de que não queria. Apressamo-nos a passar por um conjunto de portas até um luxuoso gabinete interior. Casanova ignorou a enorme cama de dossel colocada de modo desarmônico num canto e as duas mulheres, com trajes reduzidos, reclinadas sobre ela. Atravessou um quadro modernista multicolor que tapava a maior parte da parede e eu fui atrás dele, ignorando os olhares ameaçadores que as garotas me lançavam. Do outro lado havia uma sala estreita que tinha apenas uma mesa, uma cadeira e um grande espelho pendurado na parede. Ele abanou uma mão sobre a superfície do espelho e este cintilou como uma miragem no deserto. Percebi que era assim que ele controlava o que os seus empregados faziam. Já tinha visto mecanismos deste gênero. Tony nunca conseguira usar câmaras de segurança, uma vez que as coisas elétricas não se dão bem com sentinelas poderosas e a fortaleza dele em Filadélfia estava repleta delas. Eu tivera de aprender como funcionava o seu equipamento de vigilância para conseguir enganá-lo quando fazia coisas que preferia que ele não soubesse – como roubar-lhe os arquivos pessoais e entregá-los aos agentes federais. A verdade é que isso não correu muito bem, mas pelo menos não fui apanhada durante os preparativos. Descobri na época que qualquer superfície com reflexo podia ser enfeitiçada para funcionar como um monitor ligado a outros exteriores reluzentes num determinado perímetro. Tendo em conta o número de espelhos e todo o mármore polido que ali havia, era provável que Casanova conseguisse controlar qualquer coisa no interior do spa. Murmurou uma palavra e apareceu uma imagem do bar. Indaguei-me sobre a que se deveria a distorção, até perceber que ele estava a usar o grande gongo chinês atrás do balcão como câmera. Como o gongo era convexo, a imagem também era, além de ter um tom ligeiramente de bronze. Vi as costas de três pessoas que identifiquei como sendo magos de guerra, pela quantidade de armamento que traziam. Não vi Pritkin e tive receio de que Énio o tivesse comido. Ela certamente parecia capaz disso. A indistinta velhota tinha dado lugar a uma selvagem coberta de sangue cuja cabeça roçava o rebordo das lanternas com franjas que 1

É um estofado sofá em forma de uma cadeira que é longo o suficiente para apoiar as pernas.


pendiam do lustre central. Seu cabelo continuava grisalho, mas o corpo sofrera uma verdadeira atualização e ela tinha agora um total complemento de dentes e olhos. Os dentes eram mais compridos e afiados do que os de um vampiro e os olhos eram amarelos e fendidos como os de um gato. Parecia irritada, talvez por estar envolta numa rede mágica, cortesia dos magos. Esquartejou-a com garras de dez centímetros e a rede rasgou-se como se fosse papel, mas antes que ela conseguisse mexer-se, os débeis cordões voltaram a entrelaçar-se, prendendo-a com rapidez. A mim parecia-me um empate e indaguei-me sobre por que as irmãs dela, que continuavam a descontrair ao balcão, não intervinham. Mal tinha acabado de pensar nisso quando Pefredo olhou de relance para o gongo. Como era a vez dela de ter o olho, conseguiu piscar antes de se libertar. Lembrei-me de que, na época em que pesquisei alguma informação sobre as irmãs depois de elas terem aparecido de surpresa, Pefredo fora chamada de “a mestre das surpresas alarmantes”. Não tinha percebido bem o que isso significava, mas uma vez que fora dada às três a tarefa de proteger as Górgonas, imaginei que cada uma delas tivesse algum tipo de talento bélico. Mas, tendo em conta o que acontecera à Medusa, não me parecia que elas tivessem sido muito eficazes. Como se me tivesse ouvido, Pefredo desviou subitamente o olhar para o mago mais próximo, uma delicada mulher asiática que nem sequer teve tempo de gritar antes de o pesado lustre lacado se estatelar sobre a sua cabeça. Houve pedaços de madeira lascada voando por toda parte e a mulher desapareceu debaixo de uma pilha de seda vermelha. Parece que as garotas tinham andado treinando. Passados alguns segundos, a maga conseguiu sair rastejando de debaixo do lustre, com um ar estraçalhado e ensanguentado, mas ainda respirando. Contudo, não estava em condições de voltar à luta e seus companheiros estavam tendo dificuldades em segurar Énio sozinhos. Ela rasgava a rede quase mais depressa do que eles conseguiam repará-la e começava a parecer uma questão de quem se cansaria primeiro. Eu não conseguia dizer se ela estava ficando cansada, mas mesmo de costas para mim, os magos pareciam esgotados, com os braços erguidos visivelmente trêmulos. — Temos um problema — disse Casanova. — Não me diga! — observei Pefredo olhar de relance para um dos outros magos, que logo deu um tiro no pé. Dino bebericava cerveja e tentava namoriscar com o novo empregado, que se agachara atrás do balcão com os braços por cima da cabeça. Era provável que Casanova fosse receber pedidos de subsídio de combate a partir de agora. Decidi que podia sobreviver sem descobrir qual era o talento especial dela. — Não. Temos um problema sério — ergui os olhos para o tom de voz de Casanova e vi um mago irritado parado à soleira da porta, com uma espingarda de canos cerrados apontada para nós.


Suspirei. — Olá, Pritkin. — Chama tuas harpias senão essa será uma conversa muito curta. Tornei a suspirar. Pritkin tem esse efeito em mim. — Não são harpias. São as Gréias, antigas semideusas gregas. Ou algo do gênero. Pritkin escarneceu. Era o que ele fazia melhor, além de matar coisas. — Calculei que compactuasse com os monstros. Chama-as — uma ponta de raiva acompanhou-lhe as palavras, ameaçando não tardar a transformar-se em algo mais substancial. — Não consigo — era verdade, mas não me surpreendeu que ele não acreditasse em mim. Não me lembro de Pritkin alguma vez ter acreditado em alguma coisa que eu dissesse; isso me fazia pensar em por que ele se dava sequer ao trabalho de falar comigo. Claro está que a conversa provavelmente não encabeçava sua lista. Estaria em algum outro lugar depois de arrastar-me de volta ao Círculo de Prata, atirar-me para uma masmorra muito alta e perder a chave. Descobri que uma espingarda de canos duplos e cerrados faz muito barulho quando é engatilhada numa sala pequena. — Faz o que ele diz, Cassie — disse Casanova, metendo-se na conversa. — Gosto desse corpo tal como é. Se ficar com um grande buraco, vou ficar muito irritado. — E é isso mesmo que nos preocupa — o comentário surgiu do fantasma que acabara de atravessar a parede. Casanova desferiu um golpe na sua direção, como se fosse uma mosca irritante, mas falhou. — Pensei que os íncubos deveriam ser encantadores — disse Billy, desviando-se a planar. Casanova não conseguia ver Billy, mas era óbvio que os seus sentidos de demônio conseguiam ouvi-lo. Sua testa atraente adquiriu uma ruga irritada, mas ele não se dignou a responder. Fiquei contente com isso, pois significava que Pritkin não podia ter certeza de que Billy ali estava. Billy Joe é o que resta de um apostador americano de origem irlandesa com uma paixão por mulheres devassas, poemas indecentes e batota nas cartas. Devido a esta última situação, trocou as suas fichas pela última vez com a tenra idade de vinte e nove anos. Um par de cowboys não gostou do seu ligeiro sotaque irlandês, nem da camisa plissada, nem do fato de as garotas do saloon lhe estarem dando muita atenção. Mas a gota de água aconteceu quando ele ganhou demasiadas mãos nas cartas e o apanharam com um ás escondido na manga. Pouco tempo depois, Billy foi apresentado ao interior de uma saca de estopa, que, por sua vez, travou conhecimento com o fundo do Mississipi.


Assim devia ter acabado uma vida alegre, embora abreviada. Mas, umas semanas antes, Billy ganhara uma série de favores de uma condessa – pelo menos ele afirmava que ela tinha título –, um dos quais era um feio colar de rubi que funcionava como talismã. Este absorvia energia mágica do mundo natural e transmitia-a para o seu proprietário, ou, neste caso, para o fantasma do seu proprietário. O espírito de Billy passou a residir no colar, que estava ganhando pó numa loja de antiguidades até eu aparecer por lá à procura de um presente para a minha governanta, que era notoriamente esquisita. Em toda minha vida consegui ver fantasmas, mas até eu fiquei surpreendida com meu brinde. Não tardamos a descobrir que eu não só era a primeira pessoa em anos que conseguia vê-lo, como era também a única das proprietárias do colar que conseguia doar energia mais do que suficiente para a subsistência dele. Com doações regulares da minha parte, Billy conseguiu tornar-se muito mais ativo. Em troca, eu recebia a ajuda dele nos meus vários problemas. Pelo menos em teoria. Reparou no meu olhar e encolheu os ombros. — Este lugar tem entradas demais. Não consegui vigiar todas. — Olhou de relance para trás do mago. — Ele vem com o ajudante. Estava olhando para o que parecia ser uma estátua de argila do tamanho de um homem. Eu confundira-o com uma estátua da primeira vez que o vira, mas na verdade, era um golem. Pensa-se que tenham sido os rabis versados em magia cabalística a inventá-los, mas hoje em dia eram populares entre os magos de guerra como assistentes – talvez por ser difícil ferir uma coisa sem órgãos internos. Analisei possíveis estratégias, mas nenhuma das minhas defesas habituais me parecia boa ideia. O pentagrama inclinado tatuado nas minhas costas é, na verdade, uma sentinela capaz de travar a maioria dos ataques mágicos. Foi concebido pelo próprio Círculo de Prata e eu já o tinha visto fazer coisas bastante espantosas, mas não sabia se conseguiria travar um ataque não mágico daquele calibre. Esta não me parecia a melhor hora para o pôr à prova. Também tinha uma pulseira feita de pequenos punhais entrelaçados que pareciam antipatizar com Pritkin ainda mais do que eu. Pertencera outrora a um mago das trevas que a usara, sobretudo para destruir coisas. Ele era maléfico e eu desconfiava que a joia também, mas não conseguia livrar-me dela. Já tinha tentado enterrá-la, jogá-la no vaso e atirá-la num aterro sanitário, mas não havia nada a fazer. Fizesse o que fizesse, quando olhava para o pulso lá estava ela de novo, inteiramente reluzente e impecável, cintilando para mim com insolência. Às vezes, dava jeito e quase sempre obedecia às minhas ordens, mas nunca deixava escapar uma oportunidade para reviver os bons velhos tempos. Da última vez que nos encontramos, tinha lançado por vontade própria duas facas espectrais para esfaquear


Pritkin. Nessa ocasião, a mão da pulseira estava firme no meu bolso; não é preciso dizer mais nada. Felizmente, eu tinha outra opção. — Ó Billy! Acha que consegue possuir um golem? — os olhos de Pritkin nem vacilaram, mas os seus ombros contorceram-se ligeiramente. — Nunca experimentei — Billy flutuou até lá e olhou para o golem sem entusiasmo. Ele não gosta de possessões. Esgotam seus níveis de energia e muitas vezes não resultam. Em vez disso, o truque preferido dele é flutuar através de alguém, para captar pensamentos esparsos e deixar para trás uma pista ou outra da sua autoria. Mas isso não nos ajudaria agora. — Suponho que só haja uma maneira de descobrir — resmungou. Assim que Billy entrou na coisa, descobri porque as experiências são feitas em condições controladas. O golem começou a andar de lado pelo gabinete exterior, derrubando vasos de plantas e fazendo as garotas fugirem aos gritos para a sala do lado. Depois mudou de rota e foi chocar contra Pritkin, fazendo-o esparramar-se. Eu não sabia dizer se aquilo tinha sido deliberado ou não, mas duvidei quando a criatura começou a ricochetear pelo nosso cubículo minúsculo como uma bola de pinguepongue em alta velocidade. A caminho da destruição da mesa, derrubou-me com um golpe repentino e fez-me tropeçar no mago. Comecei a gritar com Billy para que saísse de dentro da coisa, mas fiquei sem fôlego por ação do joelho de Pritkin, que entrou em contato com o meu estômago quando caí em cima dele. Para ser justa, o meu salto alto pode tê-lo acertado num lugar sensível, mas foi um acidente. Não me parece que o joelho dele o tenha sido. Enquanto me debatia para ter ar suficiente para mandá-lo parar, apoderou-se de mim uma sensação muito familiar e extremamente desagradável. As viagens no tempo deveriam ser controladas pela Pítia, não o inverso, mas alguém teria de dizer isso ao meu poder. Só tive tempo de pensar “Oh não, agora não”, antes de começar a divagar por aquela zona fria e obscura entre o tempo. Depois da minha curta queda livre, o chão subiu correndo e bateu-me na cara. Quando a minha visão ficou nítida, identifiquei a superfície como sendo tapeçaria com um padrão oriental vermelho e preto, mal esticada sobre um soalho de madeira muito duro. Por um minuto de estupefação, pensei que estava de volta ao bar, mas depois reparei nos dois pares de pés à minha frente. Não tinham aspecto de pertencer a turistas. A mulher usava sapatos de salto em seda preta com adornos espalhados na ponta do pé. Condiziam com o bordado de seu elaborado vestido preto de noite, cuja bainha estava a poucos centímetros da minha cara. Os desenhos percorriam a parte da frente do vestido até chegarem a uma cintura indescritivelmente fina e depois desapareciam, suponho que para não minimizar a fortuna em diamantes que ela tinha pendurada no pescoço esguio e presa aos seus caracóis dourados. Olhei de relance para os seus belos olhos azuis, semicerrados


com aversão ao olhar para mim e desviei rapidamente o olhar. Não é boa ideia fitar um vampiro nos olhos durante muito tempo e é inquestionável que era isso que ela era. Pus-me de pé com esforço e tive outro choque. Quase voltei a cair – só Tony seria sádico o suficiente para obrigar as empregadas a usarem saltos de sete centímetros e meio – e uma mão esticou-se para me equilibrar. Uma mão que me era muito familiar. Tal como a mulher, o seu acompanhante estava obviamente vestido para a noite, com um fraque preto por cima de um colete curto, camisa branca e gravata de laço branca. Os sapatos extremamente envernizados brilhavam mais do que as joias discretas – botões de punho simples em ouro que condiziam com o gancho que lhe apanhava o cabelo em rabo-de-cavalo na nuca. Os acessórios discretos não me surpreenderam – Mircea nunca gostara de roupas vistosas. O que me espantou foi a abrupta e avassaladora sensação de alegria que se apoderou de mim assim que os nossos olhares se cruzaram. Fiquei subitamente aturdida com a pura beleza masculina dele. Era gracioso ao ponto de me deixar sem fôlego. Pernas longas e traços elegantes, como um bailarino ou um corredor de longa distância – ou aquilo que era de fato, o resultado de sangue nobre que remontava a gerações. Só uma característica não se enquadrava nessa imagem: sua boca não era a versão aristocrática de lábios finos, pois ele tinha os lábios cheios e bem definidos de um sensualista. Talvez tivesse havido mais misturas nos genes do que a família gostaria de admitir, gente que poderia não ter os maneirismos dos seus senhores, mas que sabia rir e dançar e beber com uma paixão que os aristocratas haviam esquecido. Supostamente, era Drácula que tinha nascido de uma fogosa garota cigana, mas por vezes eu indagava-me sobre se os velhos boatos não teriam confundido as coisas e se não seria Mircea a ter sangue romeno. Se assim fosse, até ficava bem. Ele tinha a mão debaixo do meu cotovelo, num toque leve e impessoal, mas por algum motivo, deixou-me o braço todo a formigar. Tentei sentir o géis de que Casanova falara, mas nada o indicou. Se não soubesse o que sei, teria jurado que não havia nenhum feitiço para descobrir. Percebi vagamente que minhas mãos tinham começado a acariciar a espessa seda do colete de Mircea. Era carmim, com dragões vermelhos bordados e parecia um bocadinho vistoso demais para ele, embora a sobreposição de tons tornasse o padrão quase invisível, a menos que a luz incidisse diretamente nele. Senti a macieza do bordado nas pontas dos meus dedos, um padrão belo e intrincado. Até dava para ver as escamas minúsculas dos dragões. Foi então que as minhas mãos errantes descobriram algo mais interessante, a ténue saliência dos mamilos, quase imperceptível debaixo de várias camadas de tecido. Percorri-os delicadamente com a ponta dos dedos, com todo o meu corpo a vibrar de prazer com aquela pequena sensação. Estar perto de Mircea não provocava nenhum dos efeitos entorpecedores


da tentativa de sedução de Casanova. Eu podia ter me afastado; só não conseguia pensar em nada que quisesse menos. Mircea também não ia a lugar nenhum. Limitou-se a ficar ali, com um ar abstraído, mas a mão no meu braço começou a puxar-me suavemente de encontro a ele. Fui de bom grado, perdida na admiração pelo modo como a lapada a gás lhe iluminava o cabelo e uma energia latejante percorreu-me subitamente o braço. Atingiu-me o ombro e depois tornou a baixar, para saltar da ponta dos dedos como se fosse eletricidade. Mircea estremeceu ligeiramente ao ser atingido pela sensação, mas não me soltou. A sensação ecoou de trás para frente, prendendo-nos aos dois numa sensação interminável que me deixou os pelos do braço em pé e o corpo tenso. Os olhos escuros examinaram-me com a mesma lentidão e minucia com que eu o inspecionara ele. A sensação daquele olhar fez-me estremecer e a sobrancelha de Mircea empinou-se um pouco com a minha reação. A mão dele deslocou-se para o fundo das minhas costas, mas encontrou apenas a estrutura rígida do corpete. Seu toque deslizou até à curva do meu quadril com os dedos a dispersarem-se sobre o cetim fino dos meus calções enquanto ele me puxava para si. Respirei fundo e tentei lidar com as cargas de emoção que me envolviam, mas não serviu de nada. Mircea não ajudava nada ao esticar-se para roçar delicadamente o meu rosto com a parte de trás dos dedos. Uma faísca dourada saltou para suas pupilas, uma cor que, por experiência própria, eu sabia que indicava uma emoção acentuada. Quando ele estava mesmo zangado ou excitado, seus olhos enchiam-se com uma espiral de luz cor de canela e âmbar, conferindo-lhes um brilho sobrenatural que uns achavam assustador, mas que eu sempre achara lindo. Alguém clareou a garganta com uma forte tossidela. A voz de Pritkin soou sobre o meu ombro. — Minhas sinceras desculpas, meu senhor, minha senhora. Temo que uma das nossas atrizes não se encontre bem. Suponho que não tenha sido ofendida? — De maneira alguma — Mircea parecia distraído e não fez nenhum movimento para me soltar. — Vou levá-la para os bastidores, onde poderá repousar — Pritkin pousou uma mão no meu braço, para me levar dali, mas a mão de Mircea apertou-me o quadril. Os olhos dele tinham começado a brilhar e os salpicos verdes e castanhos claros já não eram visíveis sobre a maré crescente de dourado avermelhado. — A criança não parece estar bem, Conde Basarab — disse a vampira, pegando no braço que ele tinha livre, imitando a posição de Pritkin em relação a mim. — Não a detenhamos.


Mircea ignorou-a. — Quem é você? — perguntou ele. Sua pronúncia estava mais carregada do que eu alguma vez a ouvira e o seu tom de voz estava repleto da mesma admiração que eu sentia. Engoli em seco e abanei a cabeça. Não havia uma resposta segura. Eu não sabia onde e nem sequer em que tempo estava, mas como a vampira tinha uma ligeira armação no vestido, não me pareceu que fosse algum local que me fosse familiar. Havia uma boa hipótese de eu ainda nem sequer ter nascido. — Ninguém — sussurrei. A companheira de Mircea fez aquilo que, numa pessoa menos elegante, seria bufar. — Vamos perder a estreia — disse, puxando-lhe a manga. Depois de uma notória pausa, Mircea soltou-me, com a energia invisível a esticar-se entre nós como fios de puxa-puxa à medida que a sua mão deslizava para longe. Deixou que a sua companheira o conduzisse pelo corredor abaixo, mas olhou para trás várias vezes, mirando-me com espanto. A energia formou um arco entre nós, mas não cedeu, como se houvesse um cordel invisível a abranger essa distância, unindo-nos. Depois eles desapareceram por um pequeno arco com cortinas, entrando no que reconheci vagamente como sendo um camarote. Assim que as cortinas de veludo vermelho se fecharam atrás deles tapando-me a vista, a ligação entre nós quebrou-se. Fui acometida de imediato por um anseio tão intenso que chegou a ser doloroso. Apertou-me o estômago como se alguém me tivesse dado um soco repentino e deu início a uma dor de cabeça latejante atrás dos olhos. Quase nem reparei em Pritkin a arrastar-me para o fundo do corredor, onde se erguia um conjunto de cadeiras – outro grupo de camarotes, eu supus. Ali perto, uma orquestra começava a afinar os instrumentos, o que explicava a razão para não haver mais ninguém à vista. O espetáculo estava prestes a começar. As escadas estavam iluminadas por uma série de pequenas luminárias ao longo da parede, com grandes áreas de sombra entre elas. Não era o esconderijo ideal, mas eu estava demasiado ansiosa para me preocupar com isso. Tinha as mãos tremendo e suor a saltar-me do rosto. Senti-me como um viciado a quem tinham mostrado a seringa, mas negado a dose. Foi horrível. — O que fizeste? — Pritkin olhava-me com fúria, com o cabelo louro curto espetado em tufos, como se também estivesse zangado. Era uma expressão bastante feroz, mas eu já a tinha visto antes. E, comparada com o que acabara de acontecer, era quase trivial. — Ia perguntar o mesmo — respondi, massageando o pescoço para tentar clarear a cabeça. Tinha o outro braço agarrado ao estômago, onde parecia que a ausência de Mircea


me tinha rasgado um buraco. Isso não podia estar a acontecer – eu não ia permitir. Não iria passar o resto da vida babando por ele como uma adolescente fazia com uma estrela de rock. Não era uma groupie, que diabo! Pritkin deu-me um pequeno abanão e eu olhei para ele sem vontade. Nas únicas outras ocasiões em que eu fora arrastada pelo tempo, a viagem tinha sido desencadeada pela proximidade de uma pessoa cujo passado estava sob ameaça. — Tenho de ser franca contigo — disse eu, com sinceridade. — Se há alguém tentando atrapalhar tua concepção, ou algo assim, não sinto uma necessidade urgente de intervir. O rosto dele, já de si normalmente corado, ruborizou com um tom mais escuro de vermelho. — Leva-nos de volta para onde pertencemos antes que mudemos alguma coisa! — disse, com brusquidão. Eu não gostava que me dessem ordens, mas ele tinha razão. E o fato de eu sentir um forte ímpeto para descer o corredor e lançar-me para os braços de Mircea era outra boa razão para sair dali. Fechei os olhos e concentrei-me no gabinete de Casanova no Dante's, mas, embora o conseguisse ver com nitidez, não havia uma chance de poder a empurrar-me para lá. Tentei de novo, mas suponho que as minhas baterias precisassem ser carregadas, porque nada aconteceu. — Poderá haver um ligeiro atraso neste voo — disse eu, sentindo-me nauseada. Todo tipo de medo começou a encher-me o cérebro. E se houvesse um limite de tempo no ritual que a antiga Pítia tivesse se esquecido de referir? E se eu pura e simplesmente não pudesse regressar porque o poder tinha cansado de esperar que eu selasse o acordo e tinha passado para outra pessoa? Podíamos estar presos para sempre neste lugar, fosse lá onde fosse. — De que diabo está falando? — perguntou Pritkin. — Leva-nos de volta imediatamente! — Não consigo. — Como assim, não consegue? Cada momento que passamos aqui é um perigo! Pritkin estava de novo a abanar-me e acho que estava ficando preocupado, já que a sua voz se tornara mais áspera. Não senti qualquer solidariedade – fosse o que fosse que ele estava sentindo, não era nada em comparação com a minha disposição. Não estaria a minha vida já suficientemente complicada, para agora também ter de arcar com as responsabilidades da Pítia? Será que a entidade que geria esse espetáculo não poderia deixarme tratar de alguns dos itens da minha lista pessoal de problemas antes de me arrastar para a


resolução dos das outras pessoas? Não era justo e eu estava ficando farta. Se a ideia era eu fazer alguma coisa, tudo bem. Venha ela. — Deixe-me soletrar — disse eu a Pritkin, libertando-me do aperto dele. — Não fui eu quem nos trouxe até aqui. Nem sequer sei onde estamos. Só sei que não consigo fazer com que regressemos, seja porque o poder decidiu que já não gosta de mim ou porque quer que eu faça alguma coisa antes de ir embora — eu apostava na última hipótese, pois não me parecia que aterrissar aos pés de Mircea tivesse sido um acaso. Pritkin não parecia acreditar em mim, mas não me importei. Virei de costas, fazendo menção de tentar descobrir se Mircea tinha alguma ideia brilhante, mas a mão de Pritkin envolveu-me o pulso apertando-o como um torniquete. — Não vai a lugar algum — disse ele, de modo implacável. — Tenho que descobrir qual é o problema e lidar com ele, senão nenhum de nós irá a lugar nenhum — disse eu, bruscamente. — Portanto, a não ser que saiba dizer onde estamos e por que aqui estamos, não vejo muitas alternativas senão ir à descoberta. Entendeu? — Estamos em Londres, em finais de 1888 ou inícios de 1889. Ergui a sobrancelha. Eu não tinha visto nenhum indício que ajudasse a limitar as hipóteses, a não ser a roupa da mulher – a de Mircea era um traje formal normal que poderia provir de qualquer período numa vasta extensão de tempo. Era um pouco desconcertante saber que Pritkin era um conhecedor da moda feminina. Disse isso e ele grunhiu, antes de me enfiar um pedaço de papel nas mãos. — Tome! Alguém deixou cair isso — desviei os olhos do seu perpétuo olhar ameaçador para examinar o folheto preto e amarelo que ele me tinha dado. Nele havia um homem olhando para o alto de um monte, para três velhas feias e enrugadas. Fizeram-me lembrar das Gréias, mas tinham melhor cabelo. Informava-me que era uma recordação da representação de Macbeth no Lyceum Theatre, com início em 29 de Dezembro de 1888. — Muito bem, ótimo. Já sabemos a data. Já é um começo, mas não me parece que nos levará muito longe — tentei libertar-me de novo, mas ele impediu-me, dessa vez com palavras. — Quanto mais alimentares o géis, mais forte ele se torna. Para não dizer que as prostitutas desta zona estão mais vestidas do que tu neste momento. Não pode ir a lugar nenhum sem provocar um motim. — Como sabia? — era desconcertante descobrir que há anos andava a usar o equivalente a uma placa nas costas. Todo mundo via menos eu? Pritkin encolheu um ombro.


— Percebi da primeira vez que os vi juntos. Analisei a situação e achei que valia a pena tentar. — Por acaso não poderá fazer nada em relação a isso? Afinal de contas, estamos juntos nisso e é provável que eu conseguisse pensar com mais clareza se... — Só Mircea o pode retirar — disse Pritkin, destruindo a pouca esperança que eu tinha. — Nem o mago que lançou o feitiço o pode desfazer sem o consentimento dele. Por hora, o melhor que pode fazer é manter-se longe dele. Franzi o cenho. Era basicamente o mesmo que Casanova tinha dito, mas eu não acreditava. — Não sei muito de magia, mas até eu sei que não existe nenhum feitiço que não possa ser quebrado. Tem que haver uma maneira! — a expressão de Pritkin não se alterou, mas um clarão momentâneo nos seus olhos demonstrou-me que eu tinha razão. — Você sabe de algo — disse eu, de modo acusador. Ele fez um ar evasivo, mas acabou por responder. Suponho que tenha concluído que era mais rápido fazer-me a vontade. — Todos os geasa são diferentes, mas a maioria tem uma coisa em comum. Cada um deles tem embutida uma... Uma rede de segurança, se assim quiser. Mircea não haveria de querer ser apanhado na sua própria armadilha, por isso deve ter concebido o géis com uma escapatória do feitiço, para o caso de algo correr mal. — E isso seria o quê? — Só Mircea e o mago que o lançou é que sabem. Olhei-o fixamente, tentando perceber se estaria mentindo. Suas palavras soavam verdadeiras, mas então, por que é que eu tinha a sensação de que ele não estava dizendo tudo? Até porque nunca ninguém diz. — Se estamos em 1888, Mircea ainda não fez nada. Não há nenhum géis. Ou não deveria haver — acrescentei, uma vez que era óbvio que algo se passava. — Tens o hábito de se meter em situações sem precedentes — disse Pritkin, com um olhar carregado. — Nunca ouvi falar desse cenário em particular. Não sei o que acontecerá se vocês dois passarem tempo juntos nessa era, mas duvido que vá gostar das consequências — ajustou o casaco comprido para minimizar as horrendas saliências por debaixo. — Fica aqui. Vou dar uma espiada para ver se vejo algo fora do comum. Vivi nesse período e tenho mais chances de reparar em algo do que tu. Regressarei em breve e depois discutiremos nossas opções. Partiu antes que eu pudesse reagir, deixando-me a olhar desconcertada para ele. É verdade que os feiticeiros vivem mais tempo do que as pessoas normais, mas não o


suficiente para – mais de um século depois – aparentarem ter trinta e cinco anos. Desde pouco depois de conhecê-lo, percebi que Pritkin não era apenas o que parecia, mas isso estava se tornando muito estranho. Sentei-me num dos degraus e abracei os joelhos, olhando para um pedaço de tapete sem pelo. A indumentária reduzida era fria e os chifres estavam aumentando a dor de cabeça. Tirei-os da cabeça e fiquei olhando para eles. A purpurina dourada começava a desfazer-se em lascas, revelando a espuma branca rígida por baixo. Senti-me um pouco mal por causa disso. Partindo do princípio de que havíamos de regressar ao nosso tempo, a garota a quem assaltei o armário iria ter de pagar uns novos. Claro que, se não regressássemos logo, ela iria precisar de uma roupa completa nova. Percebi que as escadas estavam esfriando, mas não me preocupei com isso até uma mulher aparecer de repente à minha frente. Tinha um vestido azul comprido e parecia tão consistente como qualquer pessoa normal, mas percebi logo que era um fantasma. Isso ficou devendo-se mais ao fato de ela trazer uma cabeça amputada debaixo do braço do que ao meu sentido apurado para o paranormal. A cabeça, com uma barba pontiaguda a condizer com o seu cabelo castanho-escuro, tinha uns olhos azuis-claros focados em mim. — Um grande melhoramento de Fausto! — disse a cabeça, revirando os olhos para quem a transportava. A mulher fitava-me sem expressão, mas, quando falou, a sua voz não parecia satisfeita. — Por que nos perturba? Suspirei o mais profundamente que consegui sem que o maldito corpete me abrisse ao meio. Era só o que me faltava, uma fantasma moribunda. Sentia-me grata por eu própria não me ter transformado em espírito, pois aí teria muito mais razões para estar preocupada. Já tinha viajado no tempo sem meu corpo, aparecendo noutra era sob a forma de espírito ou possuindo o corpo de alguém. Mas qualquer um dos estados criava problemas maiores do que suportar uma roupa desconfortável. Deixar para trás meu corpo significa correr o risco de morrer, a menos que eu encontre outro espírito que faça de babá ao meu corpo enquanto eu estou fora. Como normalmente o único disponível é Billy Joe, é uma coisa que tento evitar. Sobretudo em Vegas, onde todos os seus vícios preferidos estão à mão de semear. A outra desvantagem é que viajar sob a forma de espírito drena-me a energia muito depressa para me permitir fazer grande coisa, a não ser que eu possua alguém e lhe retire sua energia. Mas não gosto nem beber no mesmo copo de outra pessoa, quanto mais de usar seu corpo. Depois de me tornar herdeira da Pítia, adquiri a capacidade de assumir minha própria forma durante a viagem, embora isso também tenha uma desvantagem. Houve uma possessão que resultou num ferimento para a pessoa em que eu estava a residir – sob a forma de um dedo do pé quase amputado –, mas eu consegui deixar para trás o ferimento


quando regressei ao meu próprio corpo. Mas se alguma coisa me acontecesse agora, era para ficar. A vantagem da minha atual condição é o fato de os fantasmas não terem muito poder sobre os vivos. Em certas condições, podem canibalizar outros espíritos, mas atacar um corpo vivo costuma drenar lhes mais poder do que aquele que ganham. Ainda assim, não havia motivo para provocá-la. — Vou embora em breve — disse eu, com a esperança de que fosse verdade. — Tenho uma coisa para fazer e depois saio daqui. — Então não faz parte do espetáculo? — perguntou a cabeça, parecendo desiludida. — Estou só de visita — disse eu, rapidamente, pois os olhos da mulher tinham começado a brilhar. Isso não é bom sinal num fantasma; significa que estão invocando seu poder, normalmente antes de deixarem que o conheçamos. — Sério, eu quero ir embora, mas ainda não posso. Espero que não demore muito tempo. — A outra disse o mesmo — entoou ela, com o cabelo escuro a começar a agitar-se suavemente ao redor do rosto à medida que o poder aumentava. — Mas depois de envenenar o vinho, não foi embora. Agora você está aqui. Isso tem de parar. — Ela? — não gostei do som daquilo. — A única pessoa que trouxe comigo é um homem. Aliás, você o viu? Cerca de um metro e setenta e sete, loiro, vestido como o Exterminador Implacável? Desculpa — disse eu, quando a sua testa se enrugou ligeiramente. — Quer dizer, tem vestido uma capa comprida por cima de um monte de armas. Em breve estará de volta e nós resolvemos isto. — Não é o mago que nos preocupa — disse a fantasma, com firmeza. — A ameaça és tu e a outra mulher. Tens de ir embora. — Receio que ela seja algo territorial — disse a cabeça, com um ar solidário. — Já andamos há tanto tempo por aqui, entende? Essa terra já pertencia à minha família muito antes de aqui terem construído um teatro e é ela que nos sustenta — lançou-me um alegre olhar de esguelha. — Hoje em dia isso é mais divertido. Os malditos Cabeças Redondas fecharam todos os teatros, bem como os bares, os bordéis e tudo o que não fosse uma igreja. Até proibiram o desporto ao domingo! Tiveram a gentileza de me decapitar antes que eu tivesse de viver esse período. Mas no fim triunfamos, não foi? — Hã-hã — eu pouco a ouvia. Todos os fantasmas que já conheci querem contar-me a história da sua vida e se eu não tivesse aprendido a assentir com a cabeça e a sorrir enquanto pensava noutras coisas, já teria ficado doida há muito tempo. E eu tinha muito em que pensar. Pelo pouco que tinha conseguido descobrir acerca da minha posição, sobretudo através dos rumores que Billy Joe ouvira escondido, a lógica era esta: se alguém da minha própria era estivesse interferindo na linha temporal, a bola estava do meu lado. O problema era meu e


eu teria de resolvê-lo. Mas se alguém de outra época estivesse tentando interferir, esse era o território da Pítia da época a que pertencia essa pessoa. Se isso era verdade, a interferência que me trouxera aqui devia ser proveniente da minha época. Mas a única pessoa que eu conhecia capaz de andar a transitar entre séculos não estava em posição de fazê-lo. Billy confirmara com alguns dos seus contatos espectrais e garantira-me que os ferimentos que eu fiz a Myra sob a forma de espírito teriam se manifestado sob a forma de ferimentos físicos assim que ela regressasse ao seu corpo. E não era possível que ela tivesse curado uma coisa daquelas numa semana. Mas, se a mulher que os fantasmas tinham referido não era Myra, só podia ser outra Pítia. Talvez meu poder se tivesse confundido, ou eu tivesse sido chamada para ajudar num problema difícil. Como não sabia como isso funcionava, tudo era possível. Se conseguisse encontrá-la, podia apelar por um pouco de cortesia profissional e pedir que mandasse a mim e a Pritkin para o lugar a que pertencemos. — Pode mostrar essa outra mulher? Talvez eu consiga convencê-la a ir embora e a mandar-me também para casa. A mulher pareceu insegura, mas a cabeça parecia feliz por ajudar. — Claro que sim! Ela não está longe — falou alegremente. — Há pouco estava num dos camarotes. O entusiasmo do homem pareceu ajudar a mulher a decidir-se e ela assentiu bruscamente com a cabeça. — Então vamos. Depressa. Os fantasmas seguiram-me escada abaixo, tendo a delicadeza de não passar através de mim, depois conduziram o caminho até ao camarote ao lado do de Mircea. Abri as cortinas e espreitei lá para dentro, mas estava vazio. No palco, uma mulher com um vestido verde medieval com enormes mangas de forro vermelho gesticulava com dramatismo. Quase nem reparei nela. Meus olhos fixaram-se em Mircea, que fitava a elaborada estrutura dourada do palco em vez da atriz, com o olhar fixo de alguém que não está realmente a ver. Senti o mesmo. Um olhar para ele e tudo o resto me pareceu subitamente irrelevante. Já tinha sido enfeitiçada antes, mas nunca me sentira assim. Nessa altura, tinha percebido que era uma fraude; só não tinha me importado. Mas mesmo sabendo que isso se devia a um géis, não deixava de ser uma sensação inacreditavelmente real. Eu podia detestar o fato de ele me ter feito isso, mas não conseguia detestá-lo. Só a ideia era absurda. — Olha — o fantasma apontou um dedo à frente da minha cara. — O vinho já foi entregue.


Indicou um tabuleiro com uma garrafa e vários copos pousado numa mesinha atrás dos lugares ocupados por Mircea e a loira. — Do que está falando? — obriguei meus olhos a olharem para o fantasma e não para Mircea e recebi em resposta algo semelhante a um pensamento racional. — Estás dizendo que aquela garrafa está envenenada? — Ela disse que iria ficar até que fosse consumida, mas talvez seu poder fosse insuficiente — a fantasma pareceu satisfeita pela primeira vez. Quase conseguia ouvi-la pensar: “Uma já foi, falta a outra.” Ignorei-a, com um pânico tão avassalador de que algo acontecesse a Mircea que quase não conseguia suportar. Saí correndo do camarote e choquei com Pritkin, que tinha ali estado parado com um ar irritado. Equilibrou-nos, para não acabarmos no chão. — Me larga! — bati nas mãos que agarravam meus braços de forma dolorosa. — Tenho que entrar ali! — Disse para ficar longe dele. Quer ficar completamente inebriada? — Então vai você — disse eu, concluindo que ele podia ter razão. O meu desejo de entrar naquele camarote era tanto que não podia ser boa ideia. — Lá dentro há uma garrafa de vinho que pode estar envenenada. Tens de ir buscá-la! — eu não sabia se o veneno poderia matar um vampiro, mas não tinha a intenção de descobrir. Ele experimentou fazer o seu habitual olhar furioso por um segundo, depois seu rosto mudou e eu percebi que estava em apuros. — Se eu fizer isso, jura que fala comigo o tempo que eu desejar sem se transportar no tempo, tentar me matar, ou me lançar feitiços, pragas, ou outros impedimentos? Olhei para ele a pestanejar. — Queres conversar? — nós nunca falávamos. Apunhalávamo-nos, alvejávamo-nos e tentávamos arrebentar um com o outro, sim, mas nunca falávamos. — Sobre o quê? — perguntei com nervosismo, mas Pritkin limitou-se a fazer-me um sorriso maléfico. Tinha-me na mão e sabia disso. — Tudo bem. Como queira. Conversamos, desde que concorde em não tentar me matar, me prender, ou me arrastar para o Círculo, ou para outra pessoa qualquer. E também não tens um tempo indefinido. Uma hora. É pegar ou largar. — De acordo — para ser sincera, ele não perdeu tempo a partir do momento em que o acordo foi firmado, largando-me de imediato e deslizando pela cortina. Esperei ansiosamente durante vários minutos, mas nada aconteceu. Por fim, já não aguentava e voltei ao camarote vazio para ver pelo menos o que se passava. Não era coisa boa.


Em palco, um Macbeth esquelético com um bigode caído dava início ao monólogo do “punhal da mente”, enquanto no camarote Pritkin tinha um punhal na garganta, cortesia da loira. Ela estava a ser protegida do público por Mircea, posicionado atrás dela, mas meu camarote estava mais perto do palco e eu conseguia vê-los perfeitamente. Antes que eu pudesse pensar em como ajudar Pritkin, as coisas pioraram quando Mircea começou a abrir a garrafa. Tinha os olhos no mago e um ligeiro sorriso nos lábios. Eu não gostava daquele olhar. Mircea sempre acreditara convictamente em deixar que o castigo condissesse com o crime. Se tivesse concluído que Pritkin estava tentando envenenálos, era perfeitamente capaz de forçar todo o conteúdo da garrafa pela goela do mago abaixo e esperar para ver o que acontecia. Em condições normais, Pritkin teria sido capaz de sair sozinho desse tipo de coisa, mas ele estava a tentando não atrair atenções para o que estava a acontecer. Eu gostava da dedicação que ele tinha pela coisa toda da integridade da linha temporal, mas deixar-se matar por causa disso parecia-me um pouco fanático. Eu era a Pítia, pelo menos temporariamente, e não estava disposta a chegar tão longe. Em condições normais, não perderia uma noite de sono devido à morte de Pritkin, mas ele tinha entrado naquele camarote porque eu lhe pedira. Se morresse, a culpa seria em parte minha. Suspirei e ergui o pulso. Um punhal de luz difusa saltou praticamente da minha pulseira para pairar ao lado do meu braço. Estava bastante entusiasmado com a perspectiva de uma luta, mas eu não estava certa de este ser um grande plano. Entre outras coisas, tinha a sensação de que poderia decidir apunhalar Pritkin em vez de despedaçar a garrafa. Eles tinham um passado e, tanto quanto eu sabia, nunca tinham lutado do mesmo lado. — Atira apenas a garrafa — disse eu, com firmeza. — Não ataque o mago, já sabe como ele fica. Estou falando sério. Recebi uma ténue oscilação, que esperei que fosse de assentimento, antes de o punhal partir. Voou sobre o balcão em direção à garrafa que Mircea acabara de levar aos lábios de Pritkin. Estilhaçou o vidro espesso com facilidade, fazendo o escuro vinho tinto cascatear sobre o casaco do mago e salpicar na imaculada camisa branca de Mircea. Mircea rodopiou, com o gargalo da garrafa ainda na mão e viu-me. Abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa e depois parou e limitou-se a ficar ali parado, com um ar aturdido. Infelizmente, minha faca não lhe seguiu o exemplo e decidiu exagerar. Em palco, Macbeth perguntava se era um punhal que via diante de si. Minha faca reluzente e luminescente mergulhou e desceu sobre a multidão perplexa, provocando arquejos e até alguns gritos antes de parar diante do rosto aturdido do ator. Oscilou para cima e para baixo por um minuto, como se estivesse fazendo uma onda e depois voou de regresso a mim. Um aplauso estrondoso explodiu por todo o teatro, abafando o resto das falas do ator. Assim que o centro das atenções voltou a fundir-se na minha pulseira, senti espalhar-se por mim a desorientação que indicava que a viagem no tempo estava a começar.


— Agarra minha mão, depressa! — gritei a Pritkin. — Vamos partir a qualquer instante. Ele usara o momento de distração para se libertar da loira. Ela interpunha-se entre ele e a saída, mas ele contornou o problema saltando por cima de uma cadeira vazia e lançando-se sobre a divisória entre os camarotes. Quase escorregou na beira, mas eu segurei-lhe a mão. Logo a seguir estávamos mais uma vez a rodopiar através do tempo.


í Aterrissamos por cima um do outro num chão branco de mosaico e algo caiu com um splash mesmo à frente do meu nariz. Troquei os olhos para tentar identificar a substância rosa pálido. Assim que consegui, dei um guincho e rastejei para trás, deixando Pritkin em desequilíbrio com o movimento. Uma mão retorcida com a pele da cor e da textura de pedra antiga agarrou a ofensiva substância e devolveu-a a uma bandeja de prata. — Não são permitidos convidados — fui informada pela voz de barítono áspera. Não respondi, pois estava muito ocupada olhando a travessa de dedos amputados que o dono da voz apertava entre garras compridas e curvas. Devia ter me preocupado mais com o rosto cinzento esverdeado, como uma rocha bolorenta, que espreitava para mim por cima da bandeja. Tinha uma grande cicatriz que ia da têmpora ao pescoço e o único olho que lhe restava, uma órbita amarela estreita, competia por espaço na testa com dois chifres pretos enrolados – coisa que não se via todos os dias. Mas eu não parecia conseguir desviar a atenção dos dedos amputados. Devia haver vinte, ou mais e todos eram dedos indicadores, pelo que pude perceber, enfiados no meio de pedaços de pão. As unhas tinham sido aparadas e havia uma folha de alface frisada cuidadosamente enrolada em volta de cada um. Sandes de dedos – observou uma determinada parte do meu cérebro. Engasguei-me, apanhada entre uma ânsia de vômito e uma risada histérica. Meu olhar deslocou-se pelo que eu agora identificava como sendo uma cozinha atribulada. Outra das coisas cor de pedra – esta com olhos verdes cintilantes e asas de


morcego – estava sob um banco alto numa ilha próxima, comprimindo algo em pequenos moldes em forma de dedo. Meu cérebro paralisado desentorpeceu-se por fim o suficiente para reconhecer o cheiro. — Oh, graças a Deus — deixei-me cair sobre Pritkin, com alívio. — É patê! — Onde estamos? — perguntou ele, arrastando-me para me pôr de pé. Tive dificuldade em aguentar-me de pé, primeiro porque, não sei como, tinha perdido um sapato e, depois porque me passou pela frente uma coisa cinzenta maior, jogando-me ao chão com a cauda. Vestido uma roupa de cozinheiro branca, composta com uma pequena echarpe vermelha e um chapéu alto. A frente da túnica tinha um brasão vermelho vivo, amarelo e preto que me era muito familiar – as cores de Tony. — No Dante's — depois de Pritkin cair por cima de mim no teatro, minha concentração deve ter vacilado. Tínhamos acabado um bocadinho desviados da rota. — Tem certeza de que aqui é o casino? — o mago olhava uma travessa ali perto e que continha rabanetes que tinham sido parcialmente pelados para se parecerem com globos oculares humanos. Tinham azeitonas como pupilas e quase parecia que as pimentos nos lançavam um olhar zangado. Olhei com mais atenção para o escudo, do qual havia uma cópia em todas as fardas à vista e que aparecia por cima de um conjunto de portas oscilantes do outro lado da sala. Parecia-me muito familiar. Antônio Gallina nascera numa família de fazendeiros criadores de galinhas às portas de Florença, sensivelmente na época em que Miguel Ângelo esculpia o seu fauno para o velho Médici. Mas cerca de duzentos anos depois, quando o empobrecido rei inglês Carlos I começou a vender títulos de nobreza para custear sua obsessão pela arte, o filho ilegítimo do fazendeiro que se tornara vampiro mestre, já tinha escondido mais do que o suficiente para comprar um baronato. Pessoalmente, achava que os heráldicos, os homens que tinham concebido o brasão de Tony, tinham passado um bocadinho de tempo a mais no bar na noite anterior. Suponho que pudesse ter sido pior – como o pobre boticário francês a quem foi concedida uma cota de armas representando três penicos em prata –, mas a cômica galinha amarela no meio do escudo de Tony já era má o suficiente. Era para ser uma brincadeira com seu apelido, que significa galinha, em italiano, mas a ave gorda ostentava uma semelhança perturbadora com seu proprietário. — Bastante certeza — disse eu. Teria desenvolvido, mas uma das criaturas que estava cozinhando um espécime diminuto, com uma rede de cabelo que lhe confinava as longas e caídas orelhas de burro, passou por ali correndo. Pisou em meu pé descalço com umas unhas em forma de garras, fazendo-me encolher e chegar mais para trás. Isso resultou em Pritkin sendo esmagado contra um carrinho de transporte cheio de tabuleiros com caldeirões pretos minúsculos.


— O que são aquelas coisas? — perguntei. Tirei o sapato que me restava para me proteger de quebrar o pescoço caso tivéssemos de fugir correndo. Mantive-me atenta na criatura à nossa frente, mas ele não parecia manifestamente hostil, apesar do aspecto. A única coisa que fazia para apoiar seu pedido era apontar energicamente para as portas oscilantes com uma colher. — Bolo de rum — disse um cozinheiro minúsculo ao passar. Trazia vestida apenas a parte de cima do habitual conjunto de túnica e calças, que neste caso roçava pelo chão. Uma cauda comprida de lagarto projetava-se debaixo dela. Assemelhava-se a muitas das outras criaturas na sala, a maioria das quais tinha asas de morcego, mãos em forma de garra e caudas compridas, mas a semelhança acabava aí. As cabeças deles iam da ave ao réptil, havendo aqui e ali alguma com pêlos. Uns tinham chifres e outros orelhas caídas e as alturas iam do meio metro até uma altura suficiente para espiarem meus peitos. Os olhos variavam em cor e tamanho, mas todos pareciam cintilar como se estivessem iluminados por dentro por uma lâmpada de alta potência. Era enervante, sobretudo porque me lembravam de alguma coisa e eu não conseguia perceber bem o quê. — Gárgulas — disse Pritkin, enquanto saíamos aos tropeções pelas portas oscilantes que iam dar num curto corredor. Ao fundo, uma porta que parecia ser de madeira antiga e entalhada, mas que era leve demais para ser autêntica, desembocava num corredor muito mais comprido e largo. Estava forrado com artilharia medieval e armaduras cobertas de teias de aranha e difusamente iluminado por tochas tremeluzentes – falsas, é claro. As sentinelas do Dante's eram mínimas nos pisos de cima, por isso a eletricidade funcionava bem, tirando o ocasional crepitar. E com tochas verdadeiras teria sido difícil iludir as regras de segurança relativas a incêndios. Parei e olhei furiosamente para o mago, que olhava em volta como se estivesse à espera que algo saltasse em cima dele a qualquer momento. Seria muito agradável que o Universo parasse de me atirar contra as criaturas saídas de fábulas, mitos e pesadelos. — As gárgulas não existem! — disse eu, no exato momento em que dois dos pequenos monstros empurraram um carrinho pela porta fora e começaram a arrastá-lo pelo corredor abaixo. O chão, pintado para parecer pedra desgastada, estava coberto por um tapete estreito de pelúcia cor de vinho envelhecida, com pouco mais de meio metro, que se estendia pelo centro. Não melhorava em muito a decoração e ameaçava fazer capotar o carrinho sempre que uma das rodas o encontrava. — É só um nome — insisti, embora meus olhos me dissessem o contrário. — Todo mundo sabe disso. — Como podes ter vivido tanto tempo no nosso mundo e saber tão pouco? — indagou Pritkin. — Já deve ter visto coisas estranhas. Você cresceu com um vampiro! Por esta altura, os empregados já tinham percorrido o corredor e parado diante de um elevador. Um deles pressionou o botão de chamada com a ponta de uma cauda pontiaguda.


Tinha cara de cão e corpo de morcego, enquanto seu companheiro estava coberto de escamas acinzentadas e escorria baba de uma língua de meio metro. — A coisa mais estranha em relação ao nosso cozinheiro em Philly — disse eu a Pritkin com um ar confuso —, era o fato de ele estar quase surdo por ouvir heavy metal aos berros. Mas era um humano. Bem — emendei passado um momento —, até que Tony prometeu fettuccíne à Alfredo numa visita importante e, o cozinheiro, por qualquer motivo, ouviu bacon, alface e tomate... Enfim, eles não deviam estar decorando uma catedral qualquer em algum lugar? — As criaturas nas catedrais medievais não são gárgulas, são grotescos — respondeu de modo convencido, enquanto nos encaminhávamos para o carrinho. — Para com isso! Entendestes o que quero dizer! Por que eles estão aqui? — Clandestinos — disse ele resumidamente. — Mão-de-obra barata. Fitei-o com desconfiança, mas se havia sentido de humor no mago, eu ainda não tinha visto sinal disso. — Clandestinos? De onde? — Do Mundo das Fadas — respondeu ele, no tom abrupto que usa quando está irritado. O que parece acontecer quase sempre, pelo menos quando está comigo. — Há séculos que vêm para o nosso mundo. Mas os números aumentaram muito nos últimos tempos, porque os Elementais da Luz têm andado dificultando a vida dos das Trevas... Entre os quais se encontram as criaturas a que chamamos gárgulas. Os magos que se dedicam aos assuntos dos Elementais têm se queixado da quantidade de chegadas não autorizadas que temos tido em consequência disso. — Então eles vêm para cá e fazem serviço de quarto? O elevador chegou e as gárgulas arrastaram o carrinho carregado lá para dentro, ignorando os ociosos humanos. — Tradicionalmente, foi lhes dado emprego como guardiões de templos no mundo antigo e de edifícios mágicos em séculos mais recentes. Mas os avanços das sentinelas menosprezaram a necessidade desse tipo de coisa. Ao contrário dos Elementais da Luz, eles não podem fazer-se passar por humanos, por isso sua entrada é restrita — fez uma expressão carregada. — Sua entrada legal — corrigiu. — Suponho que, por estas bandas, eles se limitem a misturar-se com o ambiente circundante — disse eu, mas Pritkin não estava ouvindo. Tinha-se acocorado e olhava para o outro lado da esquina com tanta cautela como se esperasse encontrar um exército do outro lado.


— Fique aqui — ordenou. — Vou averiguar a zona. Quando voltar, vamos ter aquela conversa que prometeu, caso contrário nosso próximo encontro não será tão agradável. — Agradável? Que definição mais estranha dessa palavra é que vo... — parei porque ele já tinha partido, desaparecendo pela esquina e nas sombras como um personagem de um vídeo game. O cara era obviamente um sorrateiro, mas eu tinha prometido ouvi-lo. E se houvesse alguma hipótese de fazer um acordo para me livrar ele e o Círculo do meu encalço, eu queria fazê-lo. Não me pareceu que fosse boa ideia voltar à cozinha, por isso fiquei pelo corredor. As armaduras estavam cobertas por tapeçarias feias, sendo que a mais próxima representava um Ciclope abrindo caminho devorando um exército de humanos, com um soldado em cada mão e um braço a pendendo da sua boca ensanguentada. Decidir concentrar-me na armadura. Isso acabou por ser mais divertido do que eu esperava. As armaduras estavam colocadas sobre estrados individuais de madeira e ostentavam placas de latão, cada uma delas com uma inscrição em latim. Eu tivera de aprender latim na adolescência, graças à ideia da minha governanta do que constituía uma educação decente, mas a única vez que o usara fora da sala de aula tinha sido quando eu e Laura, uma amiga fantasma, brincamos de pensar em lemas para Tony. O preferido dela era Nunquam reliquiae redire: carpe omniem impremis2. Eu preferira Mundus vult decipi3, mas ficámo-nos por Revelare pecunia!4, porque se encaixava melhor no escudo. Meu latim estava enferrujado, mas não demorei muito a perceber que, tal como os nossos esforços, as inscrições do Dante's não eram tão sérias como pareciam. Prehende uxorem meam, sis!5, implorava o dizer no cavaleiro mais próximo. Sorri e fui descendo o corredor, traduzindo pelo caminho. Alguns dos mais divertidos eram: Certe, toto, sentio nos in kansate non iam adesse6, Elvem vivere7 e Estne volumen in amiculum, na solum tibi libet me videre?8 Eu estava agachada diante de um cavaleiro, cerca de meio metro do corredor tentando entender a piada, quando Pritkin chegou correndo a toda a velocidade do outro lado. Percebi que havia problema antes de ele abrir a boca – pois estava sendo seguido por uma fileira de armas planando.

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Nunca regresses por segundos: absorve tudo à primeira. A cada minuto nasce um sugador. 4 Mostra-me o dinheiro! 5 Fica com a minha mulher, por favor! 6 Sabe, Totó, tenho a sensação de que já não estamos no Kansas. 7 Elvis está vivo. 8 O que tens por baixo do manto é um pergaminho ou só está contente por me ver? 3


— Levanta! — gritou, no momento em que uma peça do arsenal flutuante – uma faca comprida o suficiente para ser considerada uma espada curta – fez uma rasante. Se ele não tivesse se esquivado no último instante, teria ficado sem cabeça. Ainda assim, um arco de sangue vermelho vivo jorrou da sua orelha semi-amputada. Admito que fiquei ali parada por um instante. Em minha defesa, a última vez que eu tinha visto Pritkin rodeado de armas levitando, as armas eram dele. Antes que eu conseguisse perceber por que a faca dele estava o atacando, duas outras figuras apareceram na esquina. Reconheci-os como sendo os magos que tinham enfrentado Énio anteriormente no bar de Casanova. — Eles não estão contigo? — perguntei, estupidamente. Não se deu ao trabalho de responder. — Nos tira daqui! — gritou, projetando um braço como alguém que faz um mau movimento de dança disco. Os outros magos pararam de modo abrupto. Não percebi o porquê até me esticar e minha mão estirada encontrar um muro tangível de energia. Os escudos de Pritkin cintilavam à nossa volta, ondulantes e com um azul tênue à luz tremeluzente de uma tocha próxima. — Vão embora! — Entrega-nos a farsante, Pritkin — exigiu um dos magos. Era alto e tinha o pomo de adão proeminente, a pele pálida e uma voz estrondosa que não condizia com a sua compleição magrinha. — Ela não vale isso. — Ela terá um julgamento justo — acrescentou o mago de pele negra e mais corpulento, embora o olhar que me lançou não tenha sido amistoso. — Vem em paz enquanto pode. — O que está acontecendo? — perguntei. A única resposta que obtive foi uma coisa grande que passou a zumbir pelo meu rosto, a um milímetro do meu nariz. Dei um salto para trás com um grito, no exato momento em que um machado pesado embatia contra uma armadura próxima. Foi um golpe de sorte, uma vez que a pilha de metal antigo estava prestes a dar-me com uma espada na cabeça. O machado atingiu a coisa no peito, deixando-a deformada e fazendo-a cambalear para cima de uma tapeçaria. Olhei em volta com frenesi, sem entender o que estava acontecendo. O machado tinha trespassado os escudos de Pritkin como se nem estivessem lá. Ainda mais preocupante era o fato de não terem sido os magos a atirar aquela coisa – ela tinha vindo de algum lugar de trás de nós –, mas não havia ninguém lá atrás. Um dos cavaleiros estava sem sua arma, mas não havia ninguém por perto que a tivesse lançado. Um som retinido fez-me atirar a cabeça para trás e, por um segundo, julguei que os magos estavam atacando. Mas embora o aspecto deles estivesse ainda mais sinistro, eu já deixara de ser seu foco de atenção. Tinham os olhos e as armas alinhados com a armadura


danificada. Ao invés de ter se limitado a tombar, esta parecia estar se esforçando para se soltar da tapeçaria. Assim que se desfez do material pesado, começou às apalpadas em busca da sua espada que o impacto tinha derrubado. Mas Pritkin agarrou primeiro na arma e, apesar de a armadura ser quase tão alta como ele, apontou-a de modo ameaçador à criatura. O cavaleiro pareceu imperturbável. Endireitou-se e depois arrancou um escudo da parede lançando-o contra nós como se fosse um disco voador com cinquenta quilos. Pritkin atirou-se para cima de mim, esmagando-nos contra a parede no exato momento em que a pesada esfera de ferro trespassava o ar em que tínhamos estado. Estatelou-se contra um vitral ao fundo do corredor, provocando uma chuva de estilhaços multicoloridos sobre a escadaria dos fundos. Nem sequer tive tempo de recuperar o fôlego antes de Pritkin cair ao chão e me puxar para debaixo de si, empurrando-me a cabeça tão para baixo que o meu nariz descobriu, por experiência própria, como a pedra falsa pode ser dura. Contudo, não me queixei, porque logo a seguir fiquei com o cabelo desgrenhado por causa de outro escudo que agitou o ar acima de nós. Arrancou um pedaço da parede do outro lado do corredor, embutindo-se a meio caminho entre uma estátua e a camada de pedra. Os dois magos de guerra devem ter feito algo que chamou a atenção da armadura porque, de repente, a relíquia antiga começou a encaminhar-se para eles, deixando flocos de ferrugem espalhados pelo chão atrás de si. Agarrei-me ao braço de Pritkin, perplexa e incrédula. — Como é que aquela coisa passou pela minha sentinela? — o primeiro escudo tinha ficado a cerca de trinta centímetros de nós e o segundo não me acertara por um centímetro, talvez. A que distância teria de chegar uma ameaça para que minha estrela decidisse prestar atenção? Pritkin ignorou-me. Pôs-se de pé num salto, agarrando a espada que deixara cair quando tivéramos de travar conhecimento com a parede. Revelou-se uma má jogada. O rosto do cavaleiro tapado pela viseira virou-se na nossa direção. Suponho que não gostasse que mais ninguém tocasse em sua arma. Ele não conseguia lutar com os três magos ao mesmo tempo, mas de alguma maneira, isso não me fazia sentir melhor. Isso se tornou especialmente verdade passado um segundo, quando o corredor ecoou com o barulho de duas dúzias de figuras de metal pisando em seus pedestais em simultâneo. Parecia que as defesas internas que Casanova referira tinham decidido entrar na parada. O exército de metal que se aproximava parecia a versão medieval de um corpo de baile, todos a mover-se em perfeita sincronia, mas em vez de levantarem as pernas, levavam armas no ombro. — O Círculo encontrou uma maneira de bloquear sua sentinela, ela não vai funcionar — disse Pritkin de modo sucinto quando me pus de pé, ignorando a dor do meu nariz ferido


e dos joelhos arranhados. Ele sondava a fileira que se aproximava em busca de algum sinal de fraqueza. Eu esperava sinceramente que ele encontrasse algum, porque os cavaleiros mais próximos tinham começado a fazer girar machados pesados ao redor da cabeça, com tanta rapidez que quase nem se viam – e os que vinham logo a seguir tinham espadas desembainhadas com um aspecto muito afiado. Foi então que me lembrei do que ele tinha dito. Estiquei-me por cima do ombro para agarrar a parte de cima da minha estrela inclinada. Ainda lá estava, mas suas ligeiras saliências mantinham-se inativas debaixo dos meus dedos. — O Círculo só consegue removê-la se a tiver em seu poder — acrescentou ele. — Mas ela não faiscará. Não espero por isso. — Ia me dizer isso quando? Pritkin não respondeu, pois estava atarefado tirando do seu cinturão uma 45 à moda antiga e a descarregar balas nos cavaleiros mais próximos. Todas as balas acertaram, deixando buracos consideráveis, mas não houve salpicos de sangue nem tecidos corporais estropiados. O amassado que tremeluzia através das perfurações na cabeça com armadura mais próxima revelou a razão – tudo o que vi foi o interior vazio do elmo e parte de uma tapeçaria na parede lá atrás. Lá dentro não havia ninguém para ferir. Pritkin deve ter percebido isso, já que tornou a enfiar a arma no coldre e optou por lançar uma brilhante bola de fogo cor de laranja na fileira. Foi poderosa o suficiente para incendiar um dos estandartes que pendiam do teto, reduzindo-o rapidamente a uns retalhos de tecido em chamas. Mas quando as chamas se extinguiram, percebi que tivera menos efeito nos cavaleiros. Os dois mais próximos emergiram com o ar de participantes numa corrida de pares de pernas atadas, vacilando com os corpos fundidos um no outro dos quadris para baixo. Mas continuavam a vir e os outros só tinham sido chamuscados e derrubados. — As armas deles estão encantadas — disse Pritkin rigidamente. — E eu tenho andado a usar meus escudos quase sem parar o dia inteiro. Não vão durar e há poucos feitiços que funcionem dentro do perímetro das sentinelas do casino. Transporta-nos daqui para fora! Nada me teria agradado mais, mas havia um ligeiro problema. Eu podia estar na posse de uma quantidade extraordinária de poder, pelo menos temporariamente, mas a verdade é que não queria usá-lo. O poder não era de graça, sobretudo em quantidades tão grandes. Eu já convivera o suficiente com utilizadores de magia para saber que, quando se pede emprestado um poder, a conta acaba por chegar. Não me agradava a ideia de não saber o que seria essa conta, ou quem poderia enviá-la. — Por que os cavaleiros estão nos atacando? — perguntei, na esperança de outra solução, qualquer outra. — Nós não fizemos nada! — talvez eu estivesse a interpretar erradamente a situação e as defesas do casino estivessem, na verdade, tentando derrotar os magos por nós. Se assim fosse, só precisávamos sair da frente.


Pritkin destruiu rapidamente essa esperança. — Andrew e Stephan desencadearam as defesas automáticas quando usaram armas dentro do casino. Como eu não reagi, deveríamos estar em segurança, mas eles aproximaram-se demais. As defesas confundiram-nos com os agressores e agora somos todos alvos a abater. Tira-nos já daqui! Não tive tempo para explicar o meu ponto de vista acerca do meu novo poder porque tive de me esquivar de uma lança lançada por um cavaleiro ao fundo do corredor. Dei um salto para o lado mesmo antes de ela bater no chão onde eu estava antes, atirando pedaços de cimento pintado para cima de mim. Senti um líquido escorrer pela face esquerda e levei uma mão trêmula até o rosto. As pontas dos meus dedos voltaram pintadas de vermelho, mas minha sentinela nem sequer me deu uma pontada. Olhei com incredulidade para minha mão manchada de sangue. Lá se foi a proteção sobrenatural. — Nos leva embora! — gritou Pritkin. — Não posso! — eu teria que quebrar minha resolução, mas só se tivesse certeza de que a única alternativa era a morte. Se alguém me enviasse uma conta por causa de Londres, eu poderia argumentar racionalmente que tinha estado libertando-me da confusão para a qual fora arrastada contra minha vontade. Agora não teria a mesma desculpa para invocar o poder e não tinha a intenção de ficar devendo minha vida a alguém se eu pudesse evitar. Em termos mágicos, esse tipo de dívida pode ser uma coisa muito ruim. Pritkin poderia ter argumentado, mas os cavaleiros cauterizados estavam se recuperando com rapidez. Mandou seu arsenal animado para o meio da multidão, com as facas num entrelaçamento descontrolado a proporcionarem novos alvos aos cavaleiros. Juntei meus punhais à mistura, mesmo a tempo de aniquilar um machado que se dirigia aos rodopios para o crânio de Pritkin. Ele não tinha reparado porque estava usando a espada para bloquear uma lança que, lançada do outro lado, quase o tinha trespassado. Da última vez que eu tivera oportunidade de ver Pritkin lutando, ele parecia estar se divertindo. Dessa vez, seu rosto não demonstrava tal emoção. É claro que a orelha pendendo podia ter alguma coisa a ver com isso. Olhei em volta em busca de uma escapatória, mas não parecia existir nenhuma. As escadas dos fundos estavam cercadas por um campo minado de vidro partido, não que isso fosse um enorme obstáculo. Meus pés descalços não teriam apreciado, mas se Pritkin conseguisse levantar aquela espada enorme, conseguiria provavelmente içar-me para passar. Mas duvido que ele conseguisse fazer isso ao mesmo tempo em que combatia a fileira de cavaleiros que se interpunha entre nós e essa parte do corredor. O mesmo era válido para a porta da cozinha. Estava bloqueada por uma armadura tombada, que estava sendo desmembrada por uma das minhas facas imateriais e por três companheiros da coisa, que ainda estavam de pé.


— Não há escadas ocultas? — perguntou Pritkin, numa voz calma que, naquele momento, pareceu muito destoante. — Eles deverão ter dificuldades em usá-las. — Como eu vou saber? — olhei em volta de modo frenético, mas minha atenção estava monopolizada por um cavaleiro que empunhava uma lança de aspecto maléfico. Alphonse, que colecionava todos os tipos de armas, tinha uma idêntica na parede do seu esconderijo. Já tinha parecido suficientemente ameaçadora só de estar ali pendurada; era muito pior agora que estava a uma proximidade quase suficiente para arrancar a cabeça de Pritkin ou a minha. — Verifica as tapeçarias! — ordenou Pritkin, projetando-se para frente para dar um golpe nos joelhos da armadura. — Pode haver uma porta escondida! — a faca dele arrancou uma das pernas do nosso atacante, fazendo-o tombar. Mas ele continuou avançando, arrastando-se para frente com os braços e usando a perna que lhe restava para empurrar. O que é ainda mais desconcertante é que a sua perna amputada se contorcia pelo chão atrás dele, tentando acompanhar o acontecimento principal. Para conseguirmos travar uma destas coisas, teríamos de desmembrá-la por completo, mas havia muitas delas e poucos de nós para que isso fosse possível. Ficaríamos feitos em pedaços muito antes delas. Dei um puxão na cortina mais próxima e afastei-a para o lado, mas a única coisa que vi foram mais pedras falsas. Pus-me a apalpar na esperança de encontrar uma porta oculta, mas não tive sorte. Olhei de relance para o elevador, mas a luz que indicava os andares revelava que este estava a cinco pisos de distância. Sem falar nos dois magos que travavam um combate dos diabos na frente dele. Enquanto eu afastava as outras tapeçarias na nossa diminuta zona de segurança em busca de saídas não existentes, a perna desmembrada da armadura tornava a unir-se ao corpo. O metal na parte de cima da coxa liquefez-se como mercúrio e as duas secções fundiram-se como um todo. Passado um segundo, já nem se percebia que tinha existido um ferimento. Aceitei, por fim, que estávamos numa situação sem saída. Até o desmembramento não passava de um breve incômodo para estas coisas. Tony era um cretino reles, mas não quando se tratava de segurança. Que diabo. — Nada de escadas! — gritei. Pritkin rodopiou sobre si, varrendo o pé de outro cavaleiro para fazê-lo cair e deu-me uma cotovelada. Caí diante de um pedestal vazio com os ouvidos retinindo. Meu cérebro traduziu automaticamente a frase à frente dos meus olhos: Medio tutissimus íbis9. Era uma citação de Ovídio a aconselhar moderação e parecia muito estranha no Dante's, lar dos extremismos. Enquanto me debatia para me sentar, os seis cavaleiros ao fundo do corredor, que se dirigiam para nós de modo desajeitado, ficaram a um passo de distância. Isso dava-nos a 9

No meio é que está a virtude.


escolha de sermos transformados em espetos, ou de sermos desmembrados pelos seus companheiros que estavam do outro lado, visto que era óbvio que não íamos conseguir aguentar todos por muito tempo. Eu estava prestes a esquecer das consequências e transportar-nos para longe dali quando reparei numa coisa interessante. Uma das facas maiores de Pritkin estava atarefada fatiando um cavaleiro próximo. A armadura tinha perdido sua arma, que estava agarrada ao punho que acabara de ser amputado pelo pulso. Mas não fazia qualquer esforço para recuperá-lo, apesar de jazer sobre o tapete a poucos centímetros de distância. A mão em cota de malha também estava inerte, sem tentar voltar a juntar-se ao corpo como tinha feito a perna do outro cavaleiro. De repente percebi que tinha uma visão privilegiada da cena porque não havia um único cavaleiro perto do centro do corredor. Estavam agrupados em cada um dos lados do tapete estreito, do qual se afastavam para evitar tocar. Olhei de relance para a luta atrás de nós e o cenário era o mesmo. Os cavaleiros de um dos lados tinham ido atrás dos magos, os do outro lado tinham vindo atrás de nós, mas nenhum dos grupos entrara em contato com a peça semelhante à pelo de rato que estava no centro. Por um breve instante, quase me apeteceu exultar a paranoia de Tony, que concebia sempre uma maneira de fugir a todas as armadilhas, até às suas. Pritkin tinha se posto de joelhos para bloquear outro ataque de lanças, enquanto um segundo e terceiro cavaleiros convergiam para a sua posição de espadas em punho. Não esperei para ver se seria rápido o suficiente para lidar com o dilema e lancei-me para cima dele, atingindo-o com um baque que nos fez rebolar para cima do tapete. Aterrissamos na diagonal, com a perna esquerda de Pritkin e todo o meu lado direito a balançar para fora do rebordo. Antes que eu pudesse fazer algo, um cavaleiro deu um golpe com a espada, espetando Pritkin na batata da perna, no lugar que se projetava para fora no meio das minhas pernas. — Não se mexa! — gritei, enquanto o mago me empurrava para o lado e enterrava sua espada na barriga do cavaleiro. O golpe obrigou a coisa pesada a recuar, mas também arrancou brutalmente a espada da perna de Pritkin. Ele arquejou, mas ameaçou ir atrás do cavaleiro como se não houvesse quase uma dúzia deles a um passo de distância, dirigindo-se a nós de ambos os lados. Subi pelo seu corpo e sentei-me em cima dele, agarrando uma mão-cheia de cabelo para virar sua cabeça. — A virtude! — gritei, para ser ouvida por cima dos sons estridentes da batalha. — No meio estamos em segurança! Arrastei-lhe a perna ensanguentada para o tapete cor de vinho e coloquei todo meu peso sobre as partes ilesas do seu corpo. Embora ele estivesse ferido, eu não teria conseguido segurá-lo muito tempo, mas assim que deixamos de tocar no chão, foi como se os cavaleiros tivessem simplesmente deixado de nos ver. Começaram a arrastar-se pelo corredor em direção ao local para onde os magos haviam recuado. Pritkin fez um ar perplexo, mas seguiu meu dedo indicador até à inscrição do pedestal e entendeu.


— Precisamos voltar à cozinha — disse ele, pondo-se de joelhos. Teve o cuidado de não tocar em mais nada a não ser no tapete, mas vacilou ligeiramente, assustando-me. Olhei para baixo e percebi o problema. A perna das suas calças estava ensopada de vermelho, fazendo-a combinar com o casaco debaixo da sua orelha ferida. O sangue era tanto que eu suspeitei que tivesse sido atingida uma artéria principal. Ele apoiou-se pesadamente em mim enquanto prosseguíamos pela estreita passagem segura, reforçando o efeito. Sons de um combate furioso surgiam do outro lado do corredor, indubitavelmente provenientes dos magos, mas nós ignoramos. Pessoalmente, eu estava torcendo pelo inimigo. Agora já sabia como lidar com ele, enquanto os magos não possuíam uma zona de descanso. Entramos de rompante na cozinha. — Precisamos de uma ambulância! — gritei, semicerrando os olhos e olhando ao redor. Via-se mal, pois a divisão parecia ofuscantemente bem iluminada depois do corredor, mas tive uma vaga sensação de uma série de formas agachadas que paravam para nos fitar com uns olhos enormes e reluzentes. — Não. Eu cuido disso — Pritkin deixou-se cair do lado de dentro da porta. Ao tirar as botas, poças de sangue púrpuras inundaram o antes imaculado chão da cozinha. Seu rosto perdeu a pouca cor que tinha. Agarrei um pano de prato que ali estava e coloquei-o sobre o ferimento. Com licença ou sem ela, eu não ia ficar ali a vê-lo esvair-se em sangue. — Vou transportar-nos para um hospital — disse eu, mas ele afastou-se do meu toque. — Não! Eu consigo curar isso — murmurou algo muito baixinho e o fluxo de sangue diminuiu, de fato, mas não me agradou a respiração superficial e ofegante dele, nem a palidez húmida do seu rosto. Também me arrepiou seriamente ver a orelha que pendia subir lentamente de volta à parte lateral do seu rosto e voltar a unir-se a ele. — Por que não quer ir a um hospital? — inquiri, tentando ignorar a orelha, que deu uma derradeira reviravolta para se alinhar com a inclinação da outra. De repente, encaixaram-se algumas das peças do quebra cabeça. — Espera aí. Aqueles magos não estavam somente atrás de mim, não é? O Círculo também anda te perseguindo! Pritkin não respondeu, pois estava muito ocupado a entoar algo inaudível. Senti uma presença a pairar sobre nós e ergui o olhar para ver uma gárgula com olhos vermelhos e delicados brincos de rubi nas orelhas pontiagudas e felinas – que não era nada harmonioso. Afastou-me com um empurrão suave, mas firme. Fiquei ali parada com constrangimento, sem saber se havia de protestar ou não. Não disse nada, sobretudo porque a coisa não me transmitiu uma sensação de malevolência.


Podia ter alguma coisa que ver com as joias, ou com o fato de ter cobertura de chocolate no seu queixo felpudo. Parecia ter sido a decisão certa. Uma mão que mais parecia uma pata pairou sobre a perna de Pritkin por um instante e depois, lentamente, a ferida aberta começou a sarar. O processo parecia estar a ajudá-lo a sarar, mas a julgar pela maneira como seus olhos se arregalavam, não era agradável. Ele parecia querer dizer alguma coisa, por isso inclinei-me um pouco, mantendo-me fora do alcance dos seus punhos cerrados. — Me oportet propter praeceptum te nocere10 — ofegou. — Muito engraçado. — Podia ter nos transportado dali a qualquer momento! — Não sem pagar um preço. O olhar furioso de Pritkin quase estabeleceu um novo recorde. — Qual preço? Podia ter sido morta! E eu também! — Stercus accidit11 — enquanto ele decifrava meu latim enferrujado, fui à procura de outra maneira de sair dali. Não tinha a intenção de voltar a pôr os pés naquele corredor, nem pretendia transportar-me dali depois de ter ido tão longe para evitá-lo. O que encontrei foi muito satisfatório. Se não tivesse ficado tão atarantada com as gárgulas, podia ter me lembrado de dar uma averiguada antes e poupar-nos daquela cena toda no corredor. Depois de passar por duas enormes geladeiras embutidas, uma sala refrigerada e um armazém para bens não perecíveis, encontrei uma zona de cargas e descargas que ia dar nos fundos do casino. Olhei para o estacionamento iluminado pelo sol e senti-me seriamente tentada a ir embora enquanto o mago sarava. Não tinha tempo para isso, fosse o que fosse. Tinha de convencer Casanova a dizer onde estava escondido seu patrão. Não que eu estivesse cem por cento certa de que Myra estava com ele, mas era um bom palpite. Ambos trabalhavam para o mesmo cara, o líder da máfia vampira russa, conhecido nos livros de História pelo nome de Rasputin. O que os livros não dizem é que ele descobriu outras utilizações para as suas formidáveis capacidades de persuasão, logo depois de um príncipe russo o ter “matado”. Depois de ter mantido a discrição por uns tempos, tomou sob o seu controle grande parte do tráfico de drogas, corrupção e venda de armas mágicas ilegais no Leste da Europa. Recentemente, decidira acrescentar os vampiros norte-americanos ao seu crescente império apoderando-se do Senado e, conseguido ainda, aniquilar quatro membros. Mas isso só traria 10 11

Para começar, vou ter que te fazer mal. Essas merdas acontecem.


resultados se ele matasse o líder e, a Cônsul revelara-se mais dura do que ele esperava. Tudo aquilo era muito ao estilo da Guerra Fria e não me interessava muito, fora o fato de eu ter me metido por acaso no meio disso. Depois do golpe mal dado, Rasputin tinha simplesmente desaparecido. Havia milhares de vampiros e magos à procura dele, mas até agora não tinham encontrado nada. Não que existam muitos esconderijos bons e, uma vez que Tony e Myra tinham desaparecido na mesma época, eu apostava que eles estavam juntos. Mas, estivesse ela onde estivesse, eu tinha que encontrá-la antes que ela se recuperasse do nosso último encontro, senão ela iria certamente me encontrar. E duvido que eu fosse gostar da experiência. Ou sobreviver a ela. Mas eu tinha prometido e, era intrigante pensar que eu e Pritkin poderíamos estar do mesmo lado, para variar. O inimigo do meu inimigo poderia não ser, neste caso, propriamente meu amigo, mas eu aceitaria tudo o que não fosse absoluta hostilidade. Precisava de toda ajuda que conseguisse arranjar e Casanova tinha ficado muito nervoso quando Pritkin apareceu. Isso poderia ser útil. Esquivei-me de um par de gárgulas que lutavam por um caixote de couves ao subir a rampa e voltei para dentro. Foi então que começou a verdadeira diversão.


í — Cassie! — Casanova subiu rapidamente a rampa de carga e descarga tentando minimizar seu tempo ao sol. Passado um instante, apareceram minhas três delinquentes, que seguiam ociosamente o seu rastro. Ótimo. Tinha mesmo conseguido esquecer-me delas por um momento. As gárgulas olharam para o trio e começaram uma lamúria estridente que me fez querer tapar os ouvidos. — Viu o que a porcaria dos teus encantamentos fez? — perguntei furiosamente a Casanova quando ele parou de deslizar à minha frente. — Podiam ter me matado! — Temos problemas piores. Com um puxão, afastei Énio da gárgula que ela estava cutucando com um pau. As atemorizadas criaturas semelhantes a um pássaro fugiram correndo lá para dentro, guinchando sonoramente. — E onde estavas? — inquiri, extremamente zangada para me preocupar com o fato de não ser inteligente irritar uma deusa antiga. — Vocês três estão sempre ansiosas por uma luta, mas da primeira vez que eu preciso de ajuda, andam fazendo manicure! Era verdade – Dino exibia um novo conjunto de unhas vermelho vivo –, mas não era justo, tendo em conta que elas tinham dado uma ajuda no bar. Mas eu não estava com disposição para me importar com isso. O fato de o Círculo ter bloqueado minha sentinela


tinha me perturbado seriamente, agora que tinha tempo para pensar nisso. Era minha única arma de defesa e estar sem ela fazia eu me sentir extremamente vulnerável. Énio fez um ar ofendido, mas deixou-me ficar com o pau. Pefredo e Dino se chegaram a nós enquanto eu retomava minha irritação com Casanova. — Agora o Pritkin está meio morto — informei-o eu. — E os magos estão de certeza... Agarrou-me na mão com tanta força que eu gemi. — Onde ele está? — começou a vasculhar o casaco de modo frenético. — Por que nunca encontro a droga do celular quando preciso dele? Temos que arranjar um médico e depressa! — por um momento, achei que estava sendo sarcástico, mas bastou-me olhar para sua cara para perceber que não. O cara parecia absolutamente aterrorizado. — O que aconteceu com você? Desde quando se preocupa... Casanova deixou-me ali parada falando sozinha, enquanto corria lá para dentro. Fui atrás dele, com as Gréias no meu encalço. No caminho para dentro, Énio pegou numa vassoura e transformou-a numa arma, arrancando-lhe a parte de cima para deixar uma ponta aguçada. Não tentei dissuadi-la. Ela estava de volta ao “modo velhota”, mas mesmo assim provavelmente ganharia. Tornei a entrar na cozinha, onde encontrei um Pritkin lívido a receber festas de um Casanova frenético. O mago afastou o vampiro derrubando-o com força suficiente para deixá-lo esparramado e olhou furiosamente para a gárgula que o tinha ajudado. Uma vez que ele estava de novo de pé, tive de partir do princípio de que o remédio dela, fosse lá o que fosse, tinha dado resultado. — Tira essa coisa de cima de mim — gritou, num tom áspero. — Já! Casanova levantou-se do chão. Não só não respondeu, como na verdade se encolheu ligeiramente. — Consigo um curandeiro dentro de cinco minutos! Fitei o vampiro como se ele tivesse perdido o juízo, coisa que talvez tivesse acontecido. Os vampiros e os magos têm uma relação adversa, com origem no fato de ambos alegarem ser a força suprema no mundo sobrenatural. A visão de um vampiro tão velho como Casanova a adular um mago de guerra que acabara de atacá-lo era surreal. — Não preciso de nenhum curandeiro. Preciso que o maldito géis seja retirado — disse Pritkin, com fúria. Aquilo chamou-me a atenção.


— Ela consegue retirá-lo? — corri em frente, quase não me atrevendo a acreditar que pudesse ser assim tão simples e as Gréias acompanharam o meu movimento. Não obtive resposta porque as gárgulas começaram a guinchar como se tivesse chegado o Armagedom – com suas vozes em conjunto suficientemente altas para estilhaçar vários copos nas proximidades. Tapei os ouvidos e deixei-me cair de joelhos com o choque e Dino caiu em cima de mim. Não sei bem se tropeçou, ou se estava a tentar proteger-me da saraivada de comida – pãezinhos, bolos e diversas partes corporais moldadas em patê – que estava sendo atirada contra nós de todas as direções. Fosse como fosse, a aterrissagem fez saltar o olho da cara e deslizar pelo chão. Ela guinchou e rastejou atrás dele, derrubando gárgulas pelo caminho, à esquerda e à direita. As irmãs juntaram-se à luta para dar apoio e eu abriguei-me debaixo da mesa, onde encontrei Casanova e Pritkin. — Podia ser ferido! Não posso permitir que vá lá para fora! Casanova estava quase aos gritos, para conseguir ser ouvido e agarrava no braço direito de Pritkin com as duas mãos. — As gárgulas consideram as cozinhas como uma responsabilidade sagrada, tal como acontecia com os templos que as alimentavam. Veem as Gréias como uma ameaça, mas eu explico... — Não quero saber dos seus problemas pessoais — disse Pritkin, com rispidez, pegando no vampiro pela parte da frente da sua camisa de marca. — Obriga-a a retirar o géis, senão terás mais problemas do que alguma vez sonhaste. — Peraí, eu é que tenho um géis — interrompi. — Lembram-se? Se vão retirar alguma coisa de alguém, é de mim. — Isso não tem nada a ver contigo! — disse Pritkin, enquanto uma coisa pesada batia no tampo da mesa e rebolava para o chão. Era a pequena gárgula com a rede de cabelo e as orelhas de burro. E ela não estava se mexendo. Arrastei-a para debaixo da mesa também, mas não estava bem certa de como verificar a pulsação, nem sequer sabia bem se tinha. Do que eu tinha certeza era de que o sangue de cor esverdeada que vertia para cima do mosaico não era coisa boa. — Muito bem, já chega — rastejei por debaixo da mesa e pus-me de pé. O nível de ruído era inacreditável e, nos poucos segundos em que eu estivera preocupada, a cozinha tinha sido totalmente estraçalhada. Dino tinha recuperado o olho, mas cambaleava do outro lado da divisão, com quatro gárgulas penduradas em cada braço, enquanto outra se empoleirava nas suas costas batendo-lhe repetidamente na cabeça com um rolo da massa. Énio, em toda sua glória ensopada em sangue, tinha a gárgula dos brincos erguida acima da sua cabeça e estava prestes a arremessá-la para o outro lado da divisão. Só o arremesso podia matá-la, mas se isso não acontecesse, a aterrissagem sobre as facas seguradas por uma sorridente Pefredo a mataria. Respirei fundo e gritei, mais alto do que acreditava ser possível.


As gárgulas ignoraram-me, mas as três Gréias pararam e olharam para mim de modo inquiridor. Nenhuma delas parecia muito transtornada. A única expressão presente em alguém era o sorriso de esguelha no rosto de Pefredo. — Parem com isso — disse eu num tom ligeiramente mais normal. — Quando disse que precisava que lutassem, não me referia a eles. Pefredo deu uma gargalhada estridente e abanou o punho no ar. Énio olhou para mim com ar amargo, mas ainda assim pousou a gárgula, que lhe silvou e fugiu a cambalear, parecendo zonza. Dino conseguiu ir às guinadas até junto de Ênio, para lhe entregar o olho, mas a irmã sacudiu-a com pouca graciosidade. Pefredo foi arrancá-lo das mãos de Dino com um ar triunfante. De repente, percebi. — Vocês estavam a fazer apostas sobre mim? Ênio deixou-se cair sobre a mesa, derrubando uns globos oculares de rabanete e parecendo desalentada. Eu não sabia bem o porquê – era óbvio que ela conseguia ver sem o olho, ou coisa parecida –, mas parecia muito deprimida por ter perdido sua vez. As gárgulas pararam com o ataque, assim que o seu líder ficou a salvo, mas olhavam para as Gréias com uma apreensão compreensível. Várias das que estavam por perto começavam a verificar o estado dos seus camaradas caídos, com uma delas a puxar dali o Orelhas de Burro. Sua rede de cabelo tinha se soltado, mas pelo menos começava a voltar a si. Eu esperava que ele se recuperasse, mas a única coisa que podia fazer por ele era garantir que não haveria mais estragos. Estiquei-me para debaixo da mesa e puxei Casanova para fora pela sua gravata elegante. — Diz que nós vamos embora agora. — Não vamos! — Pritkin saiu a rastejar, com ar de louco por causa das roupas manchadas de sangue e do cabelo emaranhado. Franziu o cenho até localizar a gárgula fêmea que Ênio tinha libertado. — Não vamos a lugar nenhum até ela retirar o géis! — Miranda! — gritou Casanova numa voz estrangulada, fazendo-me perceber que podia estar a apertar a gravata um bocadinho demais. A gárgula aproximou-se, mas embora fosse difícil ler o rosto coberto de pelo, sua linguagem corporal não parecia cooperante. Se alguém consegue andar de modo soturno, ela conseguia. Cutucou Pritkin no estômago, talvez por não conseguir chegar-lhe ao peito. — Tu bem. Nós salva. Boa troca — ele tentou agarrá-la, mas ela esquivou-se das suas mãos com um movimento fluido que parecia impossível de fazer sem deslocar alguma coisa. Talvez tivesse deslocado, porque as orelhas chegaram-se para trás e ela silvou, exibindo uma língua bifurcada muito pouco felina. Cruzou os braços e adotou uma postura de pernas afastadas atrás de Casanova, com sua longa cauda a chicotear atrás de si.


— Não trato de assuntos dos Elementais — disse Pritkin de modo altivo, como se fosse superior a tal coisa. — Não me diz respeito o fato de estar aqui, legalmente ou não. Não tens nada a temer. Agora, tira-o! — O que se passa? — perguntei a Casanova, que endireitava a gravata. Ele lançou-me um olhar muito pouco amigável – que naquelas circunstâncias acho que era justo. — Em troca da sua cura, Miranda lançou um géis para que não revelasse a existência deles a ninguém. Se o Círculo descobre que eles aqui estão, serão deportados. — É só isso? — virei-me de olhos semicerrados para Pritkin, que não reparou porque toda sua atenção estava centrada em Miranda. Tendo em conta o intenso géis que eu tinha, não estava muito solidária com este pequenino. — Se não te intenção denunciá-los de qualquer maneira, que diferença é que faz? Vamos embora. Aqueles magos podem voltar a qualquer momento. — Não vou a lugar nenhum até ela o retirar — repetiu ele, com teimosia. O tom de voz fez-me querer chutá-lo. Ao invés, dei um pontapé em Casanova, que revirou os olhos. — Miranda... — começou ele, com uma voz sofredora, mas ela cerrou o maxilar. Não disse nada, mas também não era preciso. — Que diabo, Pritkin! — disse eu, zangada. — Não vou ficar aqui parada até o Círculo mandar outra pessoa qualquer atrás de nós. Queres falar, tudo bem. Vamos falar. Caso contrário, vou embora. — Que boa ideia — disse Casanova, alegremente. — Vou chamar um taxi. Billy Joe apareceu a fluir pela porta e foi golpeado por meia dúzia de gárgulas enquanto se dirigia a nós. Numa situação normal, teria ficado surpreendida por conseguirem vê-lo, mas depois do dia que eu tinha tido, nem sequer pestanejei. — Ele está comigo — disse eu a Miranda que, ainda assim, começou a silvar a Casanova na língua estranha que as gárgulas falavam. Era óbvio que já tivera visitas indesejadas suficientes para um dia. — Esquece o taxi — disse Billy, com um ar preocupado. — Há alguma saída que não passe pelas portas da frente, dos fundos ou laterais? É que estas estão todas vigiadas. — Por quem? O que é agora? — Oh, não sei — respondeu Billy com sarcasmo. — A quem pertenciam os magos a quem chutou as bundas? O Círculo sabe que está aqui e estão lá fora em força. Deve haver duas, três dúzias... Parei de contar. O trio que encontramos no bar era a equipe de batedores,


a maneira de te convidarem a ir com eles de bom grado. Mas, tendo em conta o modo como retribuiu, não me parece que continuem interessados em negociar. — Eles atacaram primeiro — disse eu em minha defesa, parando depois para pensar se seria mesmo verdade. Eu não tinha visto o que tinha acontecido no bar entre a hora que eu saí e a hora em que eu e Casanova nos juntamos para encontrar Énio a atirar-se aos magos. Se Pritkin não estivesse com eles, teriam se metido numa confusão que não lhes pertencia. Não me admira que não estivessem de bom humor quando voltaram a encontrar-nos. — Não interessa — disse Pritkin, quase como se tivesse estado a ler minha a mente. — Eles te querem morta. Facilitar a tarefa não vai mudar isso. Engoli em seco. Já suspeitava que o Círculo não iria chorar muito se eu sofresse um acidente, mas ouvir essa afirmação de modo tão direto era duro. Seria de pensar que, por esta altura, eu já estaria habituada a ter pessoas tentando me matar, mas por algum motivo a coisa não se tornava mais fácil. — Parece que tens razão. — E tenho. É também sobre isso que precisamos falar — olhou para Casanova, que suspirou. — Há várias saídas de emergência, mas nenhuma é uma boa opção — abanou a mão na minha direção. — Não pode fazer o que fiz há pouco, seja lá o que for e sair daqui? Com as defesas internas estão apontadas tanto para você como para ele, posso alegar que vieram aqui para me intimidar com pedidos de informação sobre o Antônio e que foram embora, depois de estraçalhar tudo — olhou de relance em volta. — Ah, espera. Isso até é verdade. — Por falar nisso, ia me dizer onde está o Tony? — Não. Se bem me lembro, eu estava me saindo bem ao não dizer — tentou entregarme um lenço, suponho que para limpar o bolo de creme que tinha sujado meu cabelo, mas eu o ignorei. — Eu te ajudo sair daqui, chica. E mentirei de boa vontade ao Círculo para despistá-los, mas em relação ao Antônio... — Esse vampiro! — Miranda cuspiu no chão. — Ele estar em Mundo das Fadas. Ele trazer nós aqui, depois trair. Nós trabalhar como escravos. Casanova parecia indisposto. Sorri para a gárgula que, na verdade, era bastante atraente – se nos concentrássemos nos seus olhos vermelhos fendidos. — Obrigada, Miranda! Diga mais — ela fez uma espécie de encolher de ombros felino. — Não haver muito a contar. Ele estar em Mundo das Fadas — olhou para Casanova. — Esse Círculo, eles vir aqui?


Ele passou a mão pelo cabelo ligeiramente desalinhado. De alguma maneira, tinha conseguido evitar toda a comida voadora. Os únicos estragos visíveis eram uns quantos vincos que eu lhe fizera na gravata. — É possível. Parece que é nosso dia de visitas indesejadas. — Não! — disse ela, espetando-lhe a perna com as garras distendidas. — Nós ter trabalho! Chega de confusões! Reparei que havia duas pequenas gárgulas valentes tentando empurrar um carrinho carregado – que de algum modo tinha sido poupado da carnificina – atravessando a desordem até à porta e, que havia outra a grunhir para um telefone e rabiscar um pedido num bloco. Eu estava prestes a concordar com Miranda em relação ao fato de termos de parar de lhe chatear a cabeça – ou os chifres – quando chegou mais uma visita. O golem de Pritkin atravessou as portas e o barulho lamuriento começou de novo, vindo de todos os lados. Gemi e enfiei os dedos nos meus ouvidos ofendidos. Pritkin fitou o golem com atenção por um minuto, como se estivesse ocorrendo algum tipo de comunicação não verbal e depois olhou de relance para mim. Fez um gesto e surgiu um bem-aventurado silêncio. Eu sabia que tinha de ser um feitiço qualquer, porque o pandemônio não diminuiu, mas a cacofonia aquietou-se num tênue ruído de fundo. — Eles estão chegando. Temos que ir. Assenti com a cabeça. — Tudo bem. Então obriga aqui o “sentimental” a dizer onde é o portal do Tony para o Mundo das Fadas. E não minta — disse eu a Casanova. — Eu sei que ele o tem. — Tem, mas eu não sei onde é — disse Casanova, de modo distraído. — Miranda! Pode acalmar tua gente, por favor? Ele não vai destruir nada! — olhou para Pritkin. — Ou vai? — Vai, se não nos disser a verdade — disse eu, num tom ameaçador. Olhou de esguelha para o golem, que olhou o mais profundo que os vagos entalhes a que chamava olhos permitiam. Não tinha presas, chifres, ou outra bizarrice. Era apenas uma estátua mal feita, como uma coisa que um oleiro tivesse começado a fazer e depois esquecido. Mas quando virava aqueles olhos vazios em mim, eu gostava tanto dele como Casanova. — Não sei onde fica o maldito portal! — insistiu Casanova. — Tony andava vendendo bruxas aos Elementais, mas tinha um grupo especial que tratava desse ramo do negócio e eu não fazia parte dele. Quando desapareceu, levou consigo a maioria deles e os outros partiram com a última expedição de carga há uma semana. Não estão aqui.


Olhei de relance para Miranda. — Você deve ter vindo pelo portal. Tens de saber onde encontrá-lo! Ela abanou a cabeça. — Do outro lado, nós ver, mas aqui, não — pendurou um pano da louça na cabeça de uma gárgula ali perto. — Assim — a gárgula cega correu para junto de Pritkin, ou melhor, das pernas dele, que era o máximo onde aquele ser minúsculo conseguia chegar. O mago retirou-lhe o pano e mandou-o de volta a Miranda com um leve empurrão. — Devem ter sido vendados antes da travessia — traduziu Casanova. — Calculo que Tony não quisesse que soubessem como funcionava o portal, não se fosse o caso de serem apanhados pelos magos. — E você? — perguntei a Pritkin. — O Círculo deve ter acesso ao portal. — Nós usamos o da MAGIC. Suspirei. Claro que sim. Fazia sentido que a MAGIC – abreviatura de Aliança Metafísica para Maior Colaboração entre Espécies – tivesse um. É uma espécie de Nações Unidas sobrenatural, com representantes dos magos, vampiros, metamorfos e Elementais. E tinha de haver maneira de os delegados do Mundo das Fadas lá chegarem. A parte boa é que ficava perto, no deserto às portas de Vegas. A parte má é que a MAGIC estava apinhada das mesmas pessoas que andavam à minha procura e não era para me desejarem um feliz aniversário. Ainda estava para ver se eu viveria o suficiente para comemorar os 24 anos, mas meter o pescoço na forca não me parecia a melhor maneira de assegurar isso. Infelizmente, os portais para o Mundo das Fadas não abundam propriamente e outros que houvesse também estariam, sem dúvida, bem guardados. Seguindo a teoria de que, ou vai, ou racha, decidi optar pela MAGIC. Pelo menos já tinha estado lá e conhecia um pouco da sua estrutura. — Sabe onde fica, exatamente? — perguntei. A MAGIC possuía um grande complexo. Seria simpático se ele delimitasse as coisas. Pritkin olhou para mim com incredulidade, mas seja o que for que ele pudesse ter dito foi abafado pelo som das sirenes. Era apenas uma buzina tênue e minúscula que atravessava a bolha do silêncio, mas Casanova praguejou sonoramente. — Os magos entraram em peso, é o alarme geral. — Tira os humanos daqui— ordenou Pritkin. Casanova assentiu com a cabeça, sem protestar pelo aperto do mago em seu braço.


— Já estão sendo tirados, sempre que há uma emergência, o protocolo habitual é alegar uma fuga de gás e evacuar todo mundo. E os magos devem evitar os truques de magia diante das pessoas normais, não é? — Regra geral, sim. Mas eles a querem muito — Pritkin sacolejou a cabeça na minha direção. Casanova encolheu os ombros. — Quaisquer possíveis exuberâncias serão entendidas como parte do espetáculo, desde que as pessoas normais não saiam feridas. Há uma razão para esta casa ter sido concebida com este aspecto, já fizemos besteira antes — Pelo franzir de testa de Pritkin, calculei que não tivessem sido reportadas. — Vou tirá-los daqui em segurança e depois concentrar-me no controle dos danos. — Onde é a saída de emergência mais próxima? — perguntei. — Graças a você, a maioria está apinhada de gente. A melhor saída é a que vai dar no porão de uma loja de bebidas na Spring Mountain — Casanova dirigiu-se ao telefone do serviço de quartos e arrancou-o das garras da gárgula que anotava os pedidos. Olhou de relance por cima do ombro. — Vou mandar um carro esperar por vocês nos fundos da loja, mas é o máximo que posso fazer. — Espera aí. Tens um cofre em casa, certo? — Por quê? — perguntou Pritkin, com desconfiança. — Droga — disse Billy. — Queres arriscar-te a levá-las conosco para o Mundo das Fadas? — perguntei. Billy gemeu e olhou para as Gréias, que comiam sanduíches de dedos. — Tendo em conta o que aconteceu da última vez? Nem pensar. Olhei para Casanova, no meio de uma conversa telefônica. — Estão contornando o sistema de segurança como se não existisse — informou-nos ele, transmitindo um relatório. — Um grupo de magos foi bloqueado no Cabeças de Cartaz, mas há mais duas equipas e... Merda! Alvejaram Elvis. Diz-me que não — pediu ele a alguém do outro lado da linha. — Alvejaram um humano? — eu estava surpreendida, para não dizer completamente chocada. A função dos magos era proteger os humanos, não usá-los como alvos de treino, embora eles parecessem esquecer-se disso no que a mim dizia respeito. Casanova abanou a cabeça.


— Não, o verdadeiro — tornou a desviar a atenção para o telefone. — Não, não! Os necromantes que se preocupem com o trabalho de remendo; para que é que lhes pagamos? E eles que ressuscitem o Hendrix outra vez. Vamos precisar de um substituto. Deixei de ouvir a conversa porque as portas basculantes da cozinha soltaram-se das dobradiças e vieram voando na minha direção. Pefredo, que eu nunca tinha visto mexer-se, apanhou-as e arremessou-as num rodopio pela cozinha contra o grupo de magos de guerra que se acumulavam à entrada. Énio tentou enfiar-me debaixo da mesa, mas eu agarrei-lhe no pulso. — Gostaria de se divertir um bocadinho? Deu-me um olhar devastador. Era óbvio que pensava que nossas ideias de diversão eram diferentes das dela. — Estou falando sério — fez sinal com a cabeça para os magos, que estavam a ser atacados por uma vaga de gárgulas sibilantes que aparentemente não tinham apreciado a destruição das portas. Os magos estavam praticamente enterrados debaixo de um mar de asas chicoteantes e garras arrasadoras, mas eu sabia que isso não iria durar. — Divirta-se, mas não mate ninguém. Um grande sorriso irrompeu no rosto de Énio, fazendo-a parecer uma garota na manhã de Natal e, quando dei por mim, ela já tinha pegado a enorme mesa e a arremessara para a lacuna deixada pelas portas em falta. Ela e as irmãs atravessaram a divisão a correr e saltaram por cima dela, dando gargalhadas ruidosas como os diabretes que eram à medida que partiam à ofensiva contra a segunda vaga de magos que tentava entrar. — Assim ganhamos algum tempo — disse eu a Pritkin, que parecia estar em conflito consigo mesmo. Ele podia estar tendo problemas com o Círculo, mas era óbvio que não lhe agradava a ideia de eles serem brinquedos para as Gréias. Uma vez que a ideia de justiça dos magos era arrastar-me para um tribunal fictício e uma morte rápida, eu não tinha esses problemas. — Anda! Pritkin ignorou-me e tirou um mago de debaixo de três gárgulas, que tinham estado a apresentar a cara do homem a um ralador de queijo. Aparentemente, os escudos não funcionavam assim muito bem contra os Elementais – a julgar pela sua expressão de agonia, era uma lição que o cara não deveria esquecer. Pritkin deu-lhe um golpe que o deixou inconsciente e depois agarrou Miranda. Ela tentou mordê-lo, mas ele prendeu-a pelo pescoço e afastou-a do seu rosto. Isso não evitou que o resto do seu corpo fosse fortemente esgatanhado, mas ele aguentou-se firmemente. Contudo, sua concentração deve ter vacilado, porque a bolha de silêncio arrebentou de repente. Ele disse qualquer coisa, mas eu não consegui ouvir por cima das buzinas, que até as gárgulas abafavam.


Não podia acreditar que Pritkin continuasse fixado naquela besteira do géis. A mim pareci inofensivo, sobretudo agora que o Círculo estava a descobrir sozinho tudo sobre as gárgulas. Mas eu o conhecia bem o suficiente para não me dar ao trabalho de discutir. — Miranda! — gritei, a plenos pulmões, literalmente. — Retira o géis! Casanova te esconde dos magos! — Isso lhe chamou a atenção a ponto de virar aqueles olhos de gata fendidos para mim. Não tirou as garras de cima de Pritkin, mas eu não me importei muito com isso. — Prometes? Nós não regressar? — perguntou ela, com a voz a rasgar o barulho. — Prometo — gritei, acotovelando Casanova, que atravessou a batalha para se juntar a nós. Parecia alarmado, mas eu não lhe dei chance de protestar. — Sabe que pode fazê-lo. Tony tem várias escapatórias por aqui. Ele revirou os olhos. — i Claro que sí! Vão embora! Miranda sorriu, com uma expressão muito estranha no rosto peludo, devido a ostentar muitas presas. — Lembro-me disto — disse ela e, de repente, Pritkin ficou a segurar numa bola de pelo cuspidora, sibilante e irrequieta. Um conjunto de arranhões profundos apareceu na cara e eu dei-lhe um soco no ombro. — Se a soltar, ela ajuda! Pritkin lá a deixou cair, por fim, e Miranda ficou em pé, amaciando o pelo e limpandoo por um momento. Depois abanou uma pata na direção dele com um gesto curiosamente gracioso. Não reparei em nenhuma mudança, mas suponho que ele a tenha sentido, porque me agarrou na mão e puxou-me para ir atrás de Casanova, com um ar tão irritado como se tivesse sido eu a atrasar as coisas. — Eu mostro o túnel, mas temos de nos apressar. Não posso ser visto com vocês — dizia o vampiro. Olhei em volta à procura de Billy Joe, mas ele já tinha desaparecido. Esperava que ele estivesse a trabalhar para mim e não lá fora interferindo num jogo de dados. Ele conseguia deslocar coisas pequenas, se estivesse bem concentrado e achava uma piada dos diabos adulterar os jogos de casino. O golem apareceu à nossa frente, com um cutelo de carne saindo do peito de barro, mas ele parecia nem reparar. Corremos para a sala refrigerada e Casanova desviou um grande balde de plástico com alfaces. Apontou para o que parecia ser uma parede sólida de cimento. — Por aqui. O carro já está a postos e o motorista vai esperar para entregar as chaves. Dá-me o que queres guardar no cofre e vai!


— Dou ao motorista. Olha, eu agradeço muito... — Casanova interrompeu-me com um gesto. — Assegura-te apenas de que eu não acabo de reconstruir esta casa para aquele merda — disse ele, com rigidez. — Combinado — disse eu. Só esperava conseguir cumprir minha parte do acordo. O homem que nos esperava ao fundo do túnel longo e abafado estava encostado de modo descontraído a um luxuoso BMW novo, de braços cruzados, claramente entediado. Ofeguei, com a minha mente de imediato inundada por imagens de noites quentes, lençóis amarrotados e sexo excelente. Não eram só os opulentos caracóis negros, tão reluzentes como o carro atrás de si, que imploravam a qualquer mulher abaixo dos oitenta anos que os percorressem com as mãos. Não era apenas o corpo esguio e musculoso, vestido com jeans justos e T-shirt e bronzeado com aquela bela cor lustrosa que só a pele morena consegue ter. Houve uma atração instantânea, um apelo daqueles fluidos olhos escuros, que eu sabia que não podia ser real. Posso admirar a aparência de um homem, mas não fico assim tão interessada até ter um pouco mais do que dez segundos para conhecê-lo. Um íncubo — pensei, com a boca a ficar seca. E, a julgar pelo nível de interesse que o meu corpo estava assumindo, um dos poderosos. Engoli em seco e desencantei um sorriso. Ele devolveu-me o sorriso de imediato, analisando minha roupa diminuta com um olho crítico. — Já ouviu falar do nosso desconto para funcionários, querida? Vinte por cento em todos os serviços. — Foi o Casanova que nos mandou — clarifiquei. — Ah, claro que sim. Sou o Chavez. Significa Realizador de Sonhos... Interrompi-o antes que ele se oferecesse para realizar todos os meus sonhos. — Nós, hã, temos mesmo que ir. Reparei que tinha trazido consigo um amigo, suponho que para levá-lo de volta depois de entregar as chaves. O loiro atraente usava um boné de basebol do Dante's e uma camisola de alças de malhinha que oferecia vislumbres tentadores de um tronco musculado. Lançoume um sorriso alegre e jovial a partir do lugar do condutor de um vistoso descapotável. A expressão conseguiu invocar mantas cobertas de areia, vento carregado de sal e noites tórridas e repletas de paixão. — Sou o Randolph — disse ele, com um sotaque aberto do Midwest, segurando com firmeza minha mão na sua, grande e bronzeada. — Mas pode chamar-me de Randy. É assim que todos me chamam.


— Aposto que sim. No final, antes que eles me ouvissem, tive de aceitar um cartão de Chavez, três brochuras e um folheto que anunciava duas noites pelo preço de uma. Convenci Randy a levar Pritkin a um estúdio de tatuagens onde ele dizia que um amigo o podia remendar. Achei aquela história bastante duvidosa, uma vez que a maior parte das suas feridas já tinham se fechado, mas talvez o amigo tivesse uma muda de roupa ou um chuveiro. Aquele sangue todo fazia dar um bocado nas vistas e nós precisávamos desesperadamente de passar despercebidos. — E aonde vai? — inquiriu Pritkin, com ar desconfiado. — Eu disse que íamos falar e vamos — assegurei-lhe, deslizando para o lado de Chavez no BMW. — Te encontro mais tarde. Mas não posso andar por aí vestida desta maneira. Billy tinha aparecido enquanto estávamos conversando e começara a passar pelo vidro traseiro, mas eu travei-o com um olhar. Eu não confiava no mago. Ao que parecia, Pritkin e o Círculo estavam em desordem, mas podia ser uma armadilha. Eu precisava ter um par de olhos em cima dele enquanto estava ocupada com outra coisa – e olhos de fantasma serviam bem. Billy fez uma careta, mas vagueou de volta a Pritkin depois de deixar cair uma coisa pequena e metálica na minha mão. — Não pode regressar ao teu hotel — disse Pritkin. O seu tom de voz fez com que parecesse mais uma ordem do que uma recomendação. — Acha que não? — empurrei-o para trás para conseguir fechar a porta. — Chavez pode levar-me ao centro comercial. Preciso de alguma coisa para vestir, esta roupa dá muito nas vistas, até em Vegas – para não falar no desconforto que causa. — Até trago almoço, se pedir com jeitinho — Pritkin franziu o cenho, mas ele nunca iria obrigar-me a ir com ele, tal como pareceu perceber. Depois de uma pausa momentânea, chegou-se para trás, para que Chavez não lhe atropelasse os dedos dos pés. Concluí que, para ele, era um sinal de bons modos, por isso iria buscar comida depois de fazer o que tinha de fazer. — Tenho que patinar no gelo — disse eu a Chavez, quando saímos disparados do estacionamento por trás da loja de bebidas, com salsa a estrondar do excelente sistema de som do carro. Ele lançou-me um olhar inquiridor, mas não insistiu. Suponho que, quando se trabalha para Casanova, aprende-se a aceitar as coisas sem objeções. Las Vegas tem um bom sistema de transportes públicos, mas não existem transportes públicos na estação da baixa, portanto eu teria de ser criativa para encontrar um esconderijo para certos artigos. Deixá-los no hotel não me parecera boa ideia, tendo em conta que os magos e os vampiros poderiam localizar meu quarto a qualquer instante. Andávamos trocando de hotel todos os dias e eu usava um nome falso, mas com os recursos da MAGIC, isso não queria dizer grande coisa. Eu tinha andado a sobressaltar-me com cada barulho que


ouvia e a olhar por cima do ombro durante toda a semana – se bem que isso se devera em parte à culpa que sentia em relação à minha recentemente descoberta profissão de batoteira de casino. Billy andou ajudando-me a juntar dinheiro para os gastos assegurando-se de que os dados e as bolas da roleta caíssem onde eu queria. Não me sentia bem com isso, mas não me atrevera a acessar minha conta, nem recorrer aos cartões de crédito, com medo de que alguém me localizasse. Agora que todo mundo e mais um pouco sabia que eu estava em Vegas, já podia passar por um caixa eletrônico, mas tinha mentido em relação à necessidade de ir às compras. Antes de ir para o Dante's, enfiara uma muda de roupa num saco de viagem, juntamente com a minha bolsa e o saque do Senado. O saco tinha ido para um armário na pista de gelo e a chave tinha sido guardada num canto escuro do átrio do Dante's. O fato de Billy não ter se queixado por ter ido buscá-la demonstrava que partilhava do meu entusiasmo por se ver livre de certos artigos. A pista de gelo é um local popular em dias quentes e, o período de patinagem livre tinha acabado de começar quando chegamos. Uma multidão de turistas em busca de uma atividade para toda a família e um pequeno grupo de residentes atravessaram as portas ao mesmo tempo em que nós, deixando sair um suspiro de alívio coletivo devido à alteração climática. A pista tinha uma lanchonete, por isso Chavez ofereceu-se para comprar um lanche enquanto eu ia buscar minha sacola. Ofereci-me para pagar a comida, mas ele riu e recusou. — Embora eu tenha todo o prazer em cobrar-te por outras coisas, querida — disse ele. Desatei a correr antes que me sentisse tentada a aceitar sua oferta. Acocorei-me no banheiro feminino e calcei o tênis, um par de calções caqui amarrotados e um top de alças vermelho-vivo. Não era a elegância em pessoa, mas era melhor que meu visual de pés descalços e lantejoulas. Até em Vegas isso me tinha valido alguns olhares de relance, apesar de o sangue de Pritkin ser praticamente invisível no cetim carmim. Quando voltei, Chavez namoriscava com a caixa, que aparentemente se esquecera de que a ideia era receber mais do que um sorriso em troca dos dois grandes sacos que havia entregado. Eu estava disposta a apostar que as despesas dele do dia-a-dia eram muito poucas. — Estou bem? — perguntei, indagando-me sobre se teria conseguido livrar-me da maior parte dos vestígios da luta de comida. — Claro que não — fez-me um sorriso lento enquanto os seus olhos absorviam a minha nova indumentária. — Está bonita! Há de dar sempre nas vistas. Uma vez que tinha o cabelo pegajoso por causa dos restos de bolo e a minha roupa estava amassada que nem um mendigo haveria de querê-la, interpretei aquele comentário como aquilo que era: uma resposta automática. É provável que Chavez fosse literalmente incapaz de insultar uma mulher, fosse qual fosse o seu aspecto. Seria mau para o negócio.


— Obrigada. Podemos... — parei, com o coração na garganta, e fitei um homem do outro lado da pista que começara a patinar no gelo. Por uma fração de segundo, pensei que fosse Tomas. Tinha a mesma constituição esguia e atlética, o mesmo cabelo negro pela cintura e a mesma pele da cor do mel sobre natas. Só quando uma menina tropeçou no gelo atrás dele e ele se virou para apanhá-la nos seus braços é que lhe vi a cara. Não era ele. Da última vez que eu o vira, ele estava a tentar equilibrar a cabeça num pescoço partido. — O que foi, querida? Parece que viu um fantasma. Podia ter dito que ver Tomas seria muito mais traumatizante para mim do que ver um fantasma, mas não disse. O meu antigo companheiro de casa não era meu assunto favorito. Ele dera a Rasputin as chaves das sentinelas que protegiam a MAGIC em troca de duas coisas: ajuda para matar seu mestre e controle sobre mim. Uma coisa implicava a outra, já que o motivo que ele tinha para querer ver-se livre do seu atual mestre era ficar livre para poder aniquilar o antigo. Tendo em conta que o vampiro em causa, Alejandro, era o chefe do Senado latino-americano, Tomas tinha decidido que iria precisar de ajuda. Talvez um dia eu venha a conhecer um cara que não pense logo em mim como uma arma. Ou, sabendo a sorte que tenho, talvez não. As coisas não tinham corrido bem como Tomas planejara. Eu partia do princípio de que ele tinha sobrevivido à batalha, uma vez que um mestre de primeiro nível não é fácil de matar, mas não sabia se tinha escapado à ira da MAGIC. Mas se tivesse conseguido libertarse, estaria a fugir para salvar a vida, não a desperdiçar uma tarde a patinar. — Não foi nada — disse eu. Chavez encostou-se ao corrimão ao meu lado. — Um homem atraente. Muy predido, um gato, como vocês, americanos, dizem. O olhei de relance. A expressão dele era elogiosa, até ligeiramente predatória, ao seguir a figura que patinava. — Você não é um íncubo? — tinha a sensação de que eles preferiam parceiras femininas. Certamente nunca tinha visto clientes masculinos pelo bar de Casanova. Chavez encolheu os ombros à maneira latina. — Íncubos, súcubos, é tudo a mesma coisa. Pestanejei. — Como é que é? — Nossa raça não tem um sexo inato, querida. De momento, resido num corpo masculino, mas também já possuí mulheres. Para mim é igual — os olhos dele cintilaram


quando se inclinou mais para mim, fazendo descer um dedo quente pela minha face. Foi um toque de leve, mas fez-me estremecer. — Afinal de contas, prazer é prazer. Com suas palavras senti um rápido ímpeto de pura luxúria. Não foi tão arrebatador como o toque de Casanova, nem chamou a atenção do géis como fez o dele, por breves instantes. Foi um simples convite, nada mais, nada menos – o reconhecimento de que qualquer avanço que eu decidisse fazer seria recebido com deleite e culminaria em prazer. Isso me deixou furiosa, mas não com ele. Fez-me chegar à conclusão de que tinha menos controle sobre minha vida amorosa do que uma freira. Mesmo que perdesse a cabeça e decidisse trocar uma vida de escravidão enquanto Pítia por uma breve aventura, não podia. Não podia, literalmente, a menos que quisesse arriscar-me e parecer maluca. Mircea assegurara-se disso. — Te choquei? — parecia mais divertido do que arrependido. Podia ter dito que, depois de crescer na casa de Tony, pouca coisa me chocava, mas contentei-me com um encolher de ombros. — Não seria a primeira vez — garantiu-me. — Meu amante é macho e é vampiro, por isso desenvolvi... Como é que se diz? Uma carapaça? — Pensei que os vampiros e os íncubos não tinham muito a ver uns com os outros. — E não temos. Eu sou considerado bastante perverso — disse ele, alegremente. Apesar de tudo, sorri. — Podemos ir? Chavez tentou levar a sacola de viagem, mas eu agarrei-me a ele com a desculpa de que ele já levava os sacos de comida. Se isso ofendeu sua sensibilidade de macho, não o deixou transparecer. Assim que nos encontramos de novo em segurança no carro, retirei o casaco roubado de dentro do saco, depois de embrulhá-lo em volta das restantes caixas pretas. Deixei a caixa vazia das Gréias. Tinha planos para ela. — Casanova disse que guardaria isso no cofre da casa e que não cobraria à garota que, hã, me emprestou a roupa — entreguei o monte a Chavez enquanto ele ligava o motor. — Eu trato disso, se bem que ele vai andar ocupado por algum tempo — lançou um olhar galanteador na minha direção. — Causaste uma grande impressão, querida. Acho que o Dante's nunca voltará a ser o mesmo — atirou despreocupadamente o monte para o banco de trás e eu refreei um estremecimento quanto ele saltou banco acolchoado. Pus-me a pensar, não pela primeira vez, se não deveria voltar a guardar as caixas nos armários e ligar à MAGIC para dizer a localização. Mas com o Senado a enfrentar a guerra, não estava segura de que eles não decidissem que precisavam de ajuda suplementar e não soltassem fosse o que fosse que elas continham. Casanova não haveria de querer mais visitas como as Gréias


andando por lá, portanto as caixas deveriam estar seguras com ele. Pelo menos até eu decidir o que fazer com elas. Chavez parou junto a um estúdio de tatuagens manhoso onde, presumivelmente, Pritkin estava se limpando. Pegou na minha mão enquanto eu saía do carro. — Não sei o que estás planejando querida, mas tenha cuidado. Nunca se deve confiar por completo nos magos, entendeu? Sobretudo neste. Quando lidares com ele, lembre-se: “Põe o ar de flor inocente, mas seja a serpente que se esconde nela” — fitei-o, surpreendida com a citação e ele riu. — O que pensou? Que eu só tinha uma boa aparência? — balbuciei uma negativa, embora ele tivesse acertado e ambos soubéssemos disso. — Tens meu cartão, certo? Liga se precisar de assistência — sorriu, com uns dentes espantosamente brancos na sua pele morena e macia. — Ou de outra coisa qualquer. Para você, Cassie, meus honorários são negociáveis — ri e ele partiu cantando pneu. Só depois de ir embora é que me ocorreu indagar-me como soubera meu nome. Eu nunca chegara de fato a apresentar-me. Devia ter sido Casanova a dizer-lhe.


í Entrei na loja arrastando minha bolsa de viagem e as sacolas de comida. Estava quase tão quente como lá fora, com um ar condicionado ameaçando dar sua última lufada a qualquer instante. O som desesperado combinava com o resto da decoração que consistia em placas manchadas no teto, um tapete castanho cor de cocô e um delapidado balcão laminado. Só as centenas de desenhos de tatuagens de cores vivas colados em quase toda a superfície lhe davam vida. O balcão separava a parte da frente das traseiras da loja – que eu não conseguia ver porque tinha uma cortina castanha bloqueando a visão. Como não vi nenhum empregado, toquei a campainha, franzindo a testa para um exemplar de Olhar de Cristal que estava completamente à vista em cima do balcão. O autoproclamado guardião da liberdade de expressão na comunidade sobrenatural tinha a sua habitual manchete chamativa: DRÁCULA AVISTADO EM VEGAS - O FLAGELO DA EUROPA ESTÁ VIVO! Pois, provavelmente estava sentado à beira da piscina na casa de César, comendo bolachas de chocolate recheadas na companhia de Elvis. Escondi-o debaixo do balcão, grata por ainda ninguém ter desencantado meu nome. Já tinha problemas suficientes - não precisava ter também os paparazzi. Passados alguns segundos, um homem careca magrinho com um bigode comprido e grisalho surgiu de detrás da cortina. Tirando as partes escondidas por uns jeans cortados, estava coberto de tatuagens desde o pescoço escanzelado à parte de cima dos pés calçados com chinelos de praia. O mais estranho é que as imagens de tinta se mexiam. A cobra enrolada à volta do seu pescoço parou para tremular a língua na minha direção, enquanto um


lagarto pintado subia pela testa antes de me ver e de se esconder às pressas atrás da sua orelha esquerda. A águia que tinha no peito adejava as asas esticadas de modo ocioso, olhando para mim através de um único olho negro. Parecia que eu tinha encontrado o lugar certo. O homem pintado lançou um olhar à minha expressão fascinada e riu. — As lojas que fazem borboletas e flores são do outro lado da cidade, meu amor — apesar de parecer um membro reformado dos Hells Angels, tinha um leve sotaque. Pensei que pudesse ser australiano. — E eu cancelei todas as marcações que tinha para hoje, apareceu um trabalho urgente. — Não estou aqui para fazer uma tatuagem — disse eu, tentando não olhar para o athame pintado no seu estômago, que a cada poucos segundos rolava um pingo vermelho da ponta que descia pela pele até o cós dos calções esfiapados. — Pritkin disse para encontrá-lo aqui. Trouxe almoço — levantei os sacos e a expressão do homem alegrou-se. — Nesse caso, deves ser Cassandra Palmer — disse ele, com um ar surpreendido. Fiz que sim com a cabeça, perguntando-me do que estaria ele à espera. Decidi não perguntar como é que Pritkin me tinha descrito. — Bem, por que não disse antes? Chamo-me Archie McAdam, mas meus amigos tratam-me por Mac. — Cassie — disse eu, apertando a mão estendida. A toda a volta das suas tatuagens maiores havia uma floresta de folhas e trepadeiras pintadas que restolhavam ligeiramente, como se devido a uma leve aragem. A partir das zonas escuras sob a folhagem, um par de olhos cor de laranja e semicerrados observava-me com malevolência. Mac segurou a cortina e eu encolhi-me para dar a volta ao balcão e entrar acocorada. A primeira coisa que vi na parte de trás foi Pritkin, deitado de barriga para baixo num banco comprido almofadado, sem camisa e com a cabeça virada para o outro lado. Dada a quantidade de problemas em que costumava meter-se, eu esperaria que as suas costas fossem uma coleção de cicatrizes antigas e recentes, mas não eram. Apenas um fino traçado de saliências esbranquiçadas lhe desfigurava uma clavícula, parecendo quase marcas de garras. Fora isso, uma pele sem defeitos cobria músculos melhores do que eu estava à espera, sem nenhuma mácula a não ser o ténue contorno arroxeado de uma tatuagem decalcada do lado esquerdo. O contorno estava preenchido em cerca de metade, embora ainda não lhe tivesse sido adicionada cor. Era uma espada estilizada, de traços muito finos, quase delicados. Achei que aquela era uma ocasião estranha para a arte corporal, mas a oportunidade era dele. Podia gastá-la como quisesse. Mac segurou um espelho para mostrar o desenho ao seu cliente e Pritkin franziu o cenho. — Continuo a dizer que é muito elaborado. Só preciso de uma espada simples. — O que está a dizer? — perguntou Mac, incrédulo. — Olha para as linhas, para o trabalho artístico. Eu esforcei-me!


Pritkin bufou e, de alguma maneira, senti-me solidária com ele. Um dia longo o esperava. A lâmina da espada percorria todo o flanco do seu tronco, acabando na parte de cima do quadril. Os jeans tinham sido puxados para baixo o suficiente para deixar à mostra a parte de cima de uma nádega destinada ao decalque. A maior parte das costas apresentava, tal como os braços e o rosto, uma leve cor dourada, como se ele passasse muito tempo ao sol, mas não se bronzeasse com facilidade. Mas o fundo das costas e os quadris tinham um tom cor de pêssego e depois creme, embora não existisse uma linha de bronzeado óbvia. Dei por mim a pensar se haveria uma diferença de textura entre as áreas e qual seria a reação ao toque dos meus dedos, antes de abruptamente esquecer o assunto. Desviei o olhar, horrorizada por estar a tirar as medidas de Pritkin. É óbvio que a proximidade com os íncubos provoca uns efeitos secundários esquisitos. — Faz uma pausa, John — disse Mac, alegremente. — Esta bela jovenzinha trouxe almoço! Pritkin sentou-se, franzindo o cenho e manteve-se de costas para nós enquanto corria o zíper do jeans. Ou ele tinha comprado uns novos, ou os tinha pedido emprestados a Mac, porque estes não tinham sangue. Sorri para disfarçar o constrangimento. — John? — É um nome inglês bom e honesto — retorquiu, zangado sem razão aparente. — Desculpa — estendi a sacola de comida de modo apaziguador. — Só não combina com você. — Qual das partes? — perguntou Billy Joe. Surgiu a flutuar da parte de trás da sala, perto do sítio onde o golem estava encostado à parede, tão silencioso como a estátua que não era. — A do bom, do honesto, ou do inglês? Ignorei-o e agarrei a metade de um sanduíche de almôndegas antes de entregar o resto da comida a Mac. O cheiro no carro recordara-me de que a única alimentação que fizera durante o dia todo tinha sido uma mão-cheia de amendoins no bar de Casanova. O sanduíche melhorou em muito o meu humor e, depois de algumas dentadas, fui até capaz de formar mais um sorriso para Pritkin, que se debatia com uma T-shirt verde. — Esqueceu que eu ia passar por aqui? — Não tinha certeza de que viesse — disse ele, bruscamente. Decidi que podia perder meu tempo entrando numa discussão acerca do valor da minha palavra, ou podia comer o resto do meu sanduíche. Escolhi a segunda opção. Um olhar de relance em volta revelou que a sala dos fundos não era mais interessante do que a da frente e que não ia proporcionar grande coisa em termos de entretenimento.


As paredes de tijolos despidas continham uma coisa de metal que parecia uma espécie de máquina de lavar roupa, mas que provavelmente não o era, um frigobar, uma cama desdobrável cheia de livros antigos até acima, um cesto de roupa a transbordar e o material de tatuagem. Engoli a última dentada e limpei o molho de tomate do queixo. — Tique-taque. Restam cinquenta minutos. Se quiser gastá-los comendo, ou sendo tatuado, força. Mas quando se acabar o tempo, eu vou embora daqui. — Para ir onde? — inquiriu Pritkin, espreitando seu sanduíche como se achasse que eu poderia ter enfiado qualquer coisa nojenta lá dentro. — Se tens a ideia ridícula de que consegue sobreviver a uma viagem ao Mundo das Fadas sozinha, permite-me que saliente um pequeno pormenor. Lá, o teu poder não irá funcionar ou, se funcionar, será muito imprevisível. Foi por isso que as Pítias ganharam o hábito de deixar os Elementais completamente sozinhos. Pode contrariar a tradição, mas sem poder confiar no teu poder e com a tua sentinela bloqueada, não irá durar um só dia. Sentou-se na cama desdobrável e começou a dissecar o sanduíche enquanto eu pensava nas coisas. Mac estava empoleirado num banco alto ao lado de um balcão, mastigando a outra metade do meu sanduíche e mantendo-se em silêncio. Billy flutuou até nós e inclinou o chapéu para trás com um dedo de aspecto nebuloso. — Ele tem razão — comentou. — Bem, obrigadinha. Billy içou o traseiro incorpóreo para a beira do banco e olhou para mim com ar sério. Era tão raro usar aquela expressão, que me prendeu a atenção. — Gosto tanto do cara quanto você, Cassie, mas se está decidida a fazer isso, um mago de guerra podia ser uma grande ajuda. Pensa nisso. Temos de entrar no Mundo das Fadas, o que já não é propriamente fácil e, será particularmente difícil, com toda a segurança devido à guerra. Depois, temos de evitar os Elementais que não gostam de invasores de propriedade, enquanto procuramos o gordo e aquela garota vidente. E, partindo do pressuposto de que consigamos fazer isso tudo, ainda teremos de lidar com eles. E, se os Elementais estiverem a escondê-los, não vai ser divertido. Uma ajuda vinha a calhar. — Ainda ninguém se ofereceu — lembrei-lhe. Mac parecia surpreendido com os meus comentários aparentemente aleatórios, mas Pritkin ignorou-os. Suponho que tenha aprendido que, estivesse eu onde estivesse, Billy não estava muito longe. — Se ele não fizesse menção de ajudar, podia ter se afastado e deixado que os magos te apanhassem no casino.


— Eu teria conseguido sozinha — disse eu, sucintamente. Até aos meus ouvidos aquilo pareceu estranho, o que não significava que não fosse verdade. Não precisava que Pritkin, ou outra pessoa qualquer viesse em meu auxílio. — Sei, mas eu pensei que estava tentando evitar usar o poder. A conversa começava irritar-me. — Vai ficar aí sentado a comer, ou o quê? — perguntei com irritação a Pritkin. Ele ergueu ligeiramente os olhos, com um ar de desagrado nas feições. Eu não sabia bem se era por minha causa, ou pelo sanduíche, por isso deixei passar. — Já trabalhamos juntos quando tínhamos uma causa em comum. Agora temos outra. Proponho que unamos forças durante o tempo necessário para tratarmos do nosso dilema mútuo. — Tens motivos de rancor contra o Tony? Desde quando? — era extremamente conveniente. — O Círculo emitiu um mandado contra ele, mas isso não é do meu interesse. Amassei o papel do meu sanduíche e joguei-o para o lixo. Falhei. — Então o que é? Pritkin deu um gole numa das Coca-Cola que Mac distribuíra e sorriu. — Quero que me ajude a recuperar a sibila chamada Myra — informou-me. — O quê? — fiquei a olhar para ele. Era desconcertante e mais do que um bocadinho suspeito que o primeiro nome na minha lista fosse também o que liderava a de Pritkin. — Nenhum dos nossos encantamentos de localização conseguiu alguma coisa. Assim sendo, o mais certo é que ela esteja escondida no Mundo das Fadas, onde a nossa magia não funciona. Em troca da tua ajuda, prometo que não te entrego ao Círculo e que te ajudo a lidar com o teu antigo senhor. Semicerrei os olhos. — Nem sei por onde começar. Primeiro, não vai me levar a lugar nenhum e depois, por que hei de te ajudar a trazer de volta minha rival? Para o teu Círculo poder matar-me e reempossá-la? Não sei por que isso não me atrai. — O Círculo não tem planos para colocá-la no teu lugar — disse ele, de modo inflexível. — Quanto ao resto, não subestime tuas capacidades, nem subestime as minhas. Se eu quisesse capturar-te, fazia-o. Mesmo que eu recue, alguém há de acabar por fazê-lo. O Círculo nunca irá parar de te perseguir e eles só precisam ter sorte uma vez. Por outro lado,


tu tens de te esquivar a todas as armadilhas deles, tens poucos conhecimentos do mundo mágico que te ajudem. Só com a minha ajuda poderá ter a esperança de evitar o destino que o Círculo planejou para ti... E para ela. — Ah, claro. Eles vão matar a única iniciada totalmente treinada que têm. Por que duvido disso? — o Círculo podia me querer morta, mas também tinha todas as razões para manter Myra viva. Havia uma guerra a decorrer e eles precisavam desesperadamente da ajuda que uma Pítia maleável podia dar. Olhou de relance para Mac, que estava com um ar austero. — Alguns de nós reparamos ultimamente numa tendência perturbadora na liderança do Círculo. A cada ano que passa, parecem estar mais preocupados com o poder do que com a nossa missão tradicional. O Círculo de Prata sempre esteve separado do Negro, não apenas na forma como obtemos o poder, mas também naquilo que fazemos com ele. Temo que o Conselho se tenha se esquecido disso. Mac assentiu com a cabeça. — E agora têm uma nova candidata a Pítia, uma das iniciadas mais dóceis. Se tanto você como Myra morrerem, eles acreditam que seja ela a herdeira — abanou a cabeça de modo agastado, fazendo uma libelinha que tinha no ombro direito adejar umas cintilantes asas verdes. — Eu sabia que havia algo podre no nosso seio, mas isto é pior do que qualquer um de nós calculava. É o poder que escolhe a Pítia. Há milhares de anos que é essa a máxima, já que ter a pessoa errada nessa posição é abrir os braços ao desastre. Os magos das trevas estão sempre a tentar arranjar uma maneira de se esgueirar pelo tempo, de refazer o mundo à sua maneira e, de quando em vez, há um que é bem-sucedido. Sem uma Pítia adequada no trono, toda nossa existência está em perigo! O Conselho tem de ser travado! — Hã-hã — olhei para o rosto despretensioso e sincero de Mac e tentei dar-lhe o benefício da dúvida. Mas era difícil. O mundo em que eu crescera baseava-se no princípio da cenoura à frente do pau: tudo era feito em troca de uma recompensa, ou para se evitar um castigo. E, quanto mais arriscada era a tarefa, mais alta tinha de ser a recompensa, ou maior o castigo. Tendo em conta o nível de risco de que Mac estava a falar, o pagamento tinha de ser uma coisa do outro mundo. Pritkin mantivera-se em silêncio durante o discurso inflamado do companheiro, contentando-se com um olhar ameaçador e distante. Estalei os dedos diante da cara dele. — Então, qual é a tua história? Também está metido nisso pelos bons sentimentos do teu coração? O seu perpétuo franzir de testa acentuou-se.


— Estou metido nisso, como você diz, porque não me agrada ser transformado em assassino. Foi-me dada a missão de localizar a Myra para levá-la a julgamento, muito embora no caso dela o veredito já seja previsível. Há outros à tua procura e eu não tenho dúvidas de que as instruções deles são as mesmas que as minhas. Se eu não achasse que ela podia ser capturada viva, era livre de usar medidas extremas para garantir que ela não continuasse a ameaçar os interesses do Círculo. Uma palavra no meio daquilo tudo me chamou atenção. — Julgamento? — custava acreditar que alguém fosse processar Myra por tentar matar-me. Parecia mais provável que o Círculo lhe desse uma medalha. — O que ela fez? — Foi implicada na morte da Pítia. Por um instante, pensei que, afinal, ele estava a falar de mim. Depois, fez-se luz. — Refere-se à Agnes. — Demonstra algum respeito! — disse Pritkin, com exaltação. — Usa o título adequado. — Ela está morta — realcei. — Duvido que se importe. — Mas não pode ter sido Myra! — interrompeu Mac. — O argumento do Conselho não faz sentido. O que ela ganhava com isso? Eu achava que era bastante óbvio. — É provável que ela pensasse que seria Pítia se Agnes morresse antes de conseguir transmitir-me o poder. — Mas a questão é mesmo essa, Cassie — insistiu Mac. — Tal como John referiu ao Conselho, o poder não passará para a assassina de uma Pítia nem para uma herdeira designada. É uma regra antiga, para impedir que as iniciadas se matem umas às outras por causa da posição. A minha cabeça parou de repente. — Diz isso outra vez! — Até hoje, o poder nunca passou para a assassina de uma Pítia nem da sua herdeira — repetiu Mac, devagar. — Não sabia disso? — inquiriu Pritkin. — Não — e não sabia bem se acreditava. Queria muito acreditar, porque isso significava que acabar comigo podia não fazer parte dos planos de Myra, afinal de contas.


Mas custava-me a crer que ela tencionasse seguir essa ideia. Não me parecia ser o estilo dela, sobretudo com duas facadas desferidas com a minha arma no seu tronco. Já para não dizer que, mesmo que ela decidisse seguir o caminho certo, eu não estava a ver Rasputine a deixála conceder a derrota. Para ter alguma chance de vencer, ou mesmo sobreviver à guerra, ele precisava que ela fosse Pítia. Aqui havia algo de errado. — Agnes não morreu de velhice? — perguntei a Mac, uma vez que ele parecia o mais acessível dos dois. — Foi o que pensamos inicialmente. Mas foram vistas escaras estranhas no corpo quando este estava a ser preparado para o enterro. Chamou-se um médico para observá-las e ele ficou desconfiado, por isso foi pedida uma autópsia. Ela não morreu por causa da idade, Cassie. Foi envenenada. E, tendo em conta a quantidade de precauções tomadas para salvaguardar a Pítia, não pode ter sido fácil. — Usaram arsênico, em vez de uma poção, ou maldição que teria sido detectada pelas sentinelas — acrescentou Pritkin, aparentemente chocado por Agnes ter sido morta por uma, coisa tão mundana. — Aí está. O que é que acha disso? Recuei rapidamente, mesmo antes de olhar bem para o que ele segurava. — Eu prometi conversar, mais nada — recordei-lhe. — Sem testemunhas, esta é a nossa melhor chance de encontrar o assassino! Fitei o pequeno amuleto que ele tinha na mão. Parecia bastante inocente, apenas um disco prateado redondo com uma figura gasta em relevo que balançava numa corrente. Eu não estava a receber dele nenhum sinal de advertência, como me acontecia com objetos capazes de desencadear uma visão, mas não tinha intenção de correr riscos. — Então? —Pritkin atirou-o, mas eu recuei rapidamente. — A tua melhor chance — corrigi, assegurando-me de que a pequena bugiganga não roçava em mim. — Esse problema não é meu. — Não tenha tanta certeza disso — disse ele, de modo críptico. Escondi-me atrás de Mac para me proteger e recusei-me a morder a isca. Olhei de relance para o meu relógio inexistente. — Ops! Olha a hora. Acho que tenho de ir embora agora. Não vamos repetir isso noutra ocasião, está bem? Antes que eu me pudesse mexer, Pritkin já lá estava, comprimindo o medalhão contra a pele do meu braço. — Ai! — olhou para mim com expectativa. Olhei-o furiosamente. — Isso dói!


— O que vê? — Uma grande marca vermelha — disse eu, com irritação, esfregando o que provavelmente se tornaria numa nódoa negra. — E deixa de me bater com essa coisa! — Se estiver mentindo... — Se eu tivesse uma visão, você saberia! — disse-lhe, com fúria. — Eu já não me limito a ver as cenas, tenho um lugar na primeira fila. E, ultimamente, levo comigo no passeio quem estiver mais por perto! Ou já te esqueceu? — Pritkin não respondeu; limitouse a continuar a segurar no amuleto, embora já não estivesse a tentar marcar-me com ele. Suspirei e peguei na maldita coisa. — Como é que funciona exatamente? — O problema é esse — disse Mac, com um tom que fazia parecer que estava a gostar do quebra-cabeça mental. — Não sabemos. Continha arsênico — abrimos ontem à noite. Mas estava selado pelo metal, sem maneira de tocar na pele. — A resposta tem de estar aí! — insistiu Pritkin. — Ela o tinha na mão quando morreu e isso continha o mesmo veneno que a matou. E de onde mais poderia ter vindo o veneno? Ninguém teria conseguido chegar a ela para lhe administrar, muito menos repetidamente! Examinei com cautela o objeto minúsculo. Tinha sido aberto de lado com um corte, como um medalhão. Fosse o que fosse que em tempos pudesse ter contido, agora estava vazio. O que provavelmente explicava a razão por que eu não conseguia ver nada a partir dele. O fato de ter sido forçado tinha destruído sua integridade física e, consequentemente, provocado a ruptura de qualquer marca psíquica que pudesse ter ficado gravada. Mas com Pritkin já com aspecto de ter a tensão arterial nos píncaros, decidi não falar nisso. — Repetidamente? — Ninguém desconfiou porque o veneno não foi todo administrado ao mesmo tempo — explicou Mac. — Foi espalhado durante seis meses, ou mais, administrado em doses pequenas que se acumularam no organismo dela até acabarem por arrasá-la. O seu estado de saúde deteriorado foi atribuído à idade e à tensão de perder a herdeira. — Seis meses? — o mesmo tempo durante o qual o Senado mandou Tomas tomar conta de mim. Não gostei da coincidência, mas não disse nada. Infelizmente, ou a minha cara me traiu ou o próprio Pritkin já tinha estabelecido a relação. — Myra não podia ter administrado o veneno — disse ele. — Ela desapareceu há meses, muito antes de Agnes adoecer e, ela não tem motivo. O Conselho quer afastá-la do caminho, por isso está a usar em proveito próprio a história do envolvimento dela. Há outras pessoas muito mais prováveis, mas o Conselho não pode dar-se ao luxo de desafiá-las.


Não, suponho que não. O Círculo era aliado do Senado na guerra; não podiam correr o risco de acusar seus companheiros de homicídio. Eu não gostava de pensar nisso, mas de fato não me surpreenderia se o Senado tivesse culpa no cartório. Era habitual no modo de atuação dos vampiros remover obstáculos da maneira mais definitiva possível. E teria valido a pena, mesmo que eles apenas pensassem que havia uma chance de o poder passar para mim. Acreditavam que eu iria ser a sua Pítia domesticada, a primeira em séculos a ser controlada por eles e não pelo Círculo. Por esse tipo de poder, fariam muito pior do que matar uma velhota. É claro que havia outro forte candidato. — Então, e o Círculo? Os olhos de Pritkin semicerraram-se. — O que tem? Encolhi os ombros. — Insinuaste que o Senado é culpado, mas não são eles que andam à caça das duas únicas candidatas que estão no caminho da herdeira escolhida pelo Círculo. Mac pareceu nauseado, mas Pritkin ignorou. — O Círculo não tinha razões para querer uma mudança de liderança. Lady Phemonoe era uma excelente Pítia. — Pois, aí é que está. O fato de Agnes ser boa no que fazia pode ter sido o problema, se o Conselho está mesmo a ficar malévolo. Talvez se tenha oposto a eles vezes demais e alguém tenha decidido que uma Pítia mais jovem e mais permissiva seria... Pritkin interrompeu-me com um gesto feroz. — Não sabe o que está dizendo! O Conselho nunca desceria tão baixo! Olhei-o fixamente, impressionada por já ter esquecido nossa manhã infernal. O seu precioso Círculo não pareceu ter problemas em aniquilar-me nem em mandá-lo atrás de Myra. Mas suponho que nós não contássemos. — Muito bem, então por que andas atrás dela? Por que acha que ela sabe alguma coisa? — Recusei-me a matá-la sem provas — disse Pritkin —, mas por esta altura, não tenho dúvidas de que o Círculo já destacou outro operacional. Se ele a encontrar primeiro, ela não terá oportunidade de contar a sua versão dos fatos. — Deve ter dado uma nega das grandes... Porque eles não parecem gostar muito de ti. — Descobri que um informante tinha te localizado no Dante's hoje de manhã. Tive de lutar contra a equipe do Círculo para chegar a ti primeiro e um deles reconheceu-me.


E, claro está, eles também o tinham visto no corredor comigo. Isso não deve ter feito bem nenhum à reputação dele. — Digamos que a encontrasse... E depois? — Foram feitas acusações que ela precisa responder — disse ele, de modo sucinto. — O destino dela irá depender das respostas que der. Baixei o olhar para ele não ver a descrença nos meus olhos. — Parece que tens um plano. Agora que já sabe onde está Myra, para quê precisa de mim? Tal como salientaste, eu não servirei muito no Mundo das Fadas, partindo do princípio de que conseguimos lá entrar. — Porque existe a possibilidade de ela fugir de mim viajando no tempo, se não houver alguém que a mantenha no local — disse-me Pritkin, com relutância. — Parte do teu poder permite-te restringir as capacidades de uma sibila. Regra geral, é usada para efeitos de treino, para permitir que uma Pítia vá recuperar uma sibila que está noutra época se ela se encontrar em dificuldades. Tu deves ser capaz de exercer o mesmo controle para garantir que Myra não consiga escapar. Beberiquei um pouco de refrigerante para esconder a minha expressão e Billy fundiu-se comigo para podermos falar em privado. “Ou estes dois são os conspiradores mais burros que já vi — disse ele com repulsa —, ou não têm grande consideração por ti.” “As duas coisas” — disse-lhe em pensamento. “Consegue vaguear através de algum dos dois, para tentar perceber o que estão de fato a tramar?” “Não. Tanto um como o outro têm sentinelas que nunca mais acabam. Mas não precisamos disso para saber que estão a mentir. Se o teu poder não funcionar no Mundo das Fadas...” “Eu não conseguirei segurar Myra, mesmo que soubesse como fazê-lo. Sim, até aí entendi. Então, para quê me querem?” “Isso também é óbvio, não?” “Acha que sim?” Billy riu e sua gargalhada ecoou no meu crânio. “Vou dar uma vista de olhos no Dante's, para ver que tipo de inferno é que o Círculo está a erguer, se achar que dá conta destes dois gênios sem mim...” Pensei numa ordinarice e recebi outra gargalhada antes de ele partir de repente. Fitei Pritkin e ele devolveu-me o olhar, sem nenhum tipo de expressão. Ele fazia uma boa cara de


pôquer, mas não tinha importância. Nem por um minuto acreditei na sua história inconsistente. Pritkin sabia muito bem que Myra tentara matar-me. Provavelmente estava à espera de que, mais cedo ou mais tarde, ela aparecesse de novo para uma nova tentativa. Basicamente, eu era a isca. Quanto à razão para ele e Mac quererem encontrá-la, também era óbvia. Localizá-la daria uma arma poderosa para usarem num golpe contra a liderança do Círculo. Talvez se vissem como revolucionários na reconstrução de um sistema corrupto, ou talvez fossem apenas oportunistas que achavam que ela era o bilhete deles para a obtenção do poder. Fosse como fosse, a mim não me interessava, mas importava-me o fato de ela nunca os ir ajudar por menos do que o título por completo. A única dúvida era se seria o próprio Pritkin a matar-me, depois de eu servir o meu propósito, ou se iria deixar que Myra o fizesse por ele. Claro está que eu sabia que eles estavam a enganarem-se a si próprios se pensavam que ela iria logo concordar com o esquema deles. Como Agnes dissera ao entregar-me o poder de modo relutante, a sua herdeira tinha se juntado a Rasputine por ser má ou por ser fraca, sendo que em qualquer dos casos daria uma péssima Pítia. O fato de Myra me ter atacado pouco depois disso deixou-me inclinada para a maldade. Eu podia não querer o lugar, mas aquela maluca também não ia ficar com ele. Pus-me a pensar. Billy estava certo, precisávamos de mais ajuda do que a que ele podia dar, e um par de magos de guerra era perfeito. Pritkin queria usar-me e depois trair-me? Tudo bem, mas as regras eram válidas para os dois lados. Eu iria deixá-lo ajudar-me a ultrapassar os obstáculos e, assim que encontrássemos Myra, eu iria abandoná-lo a ele e usar nela a armadilha que albergara as Gréias. Sorri para o mago. — Parece interessante. Talvez possamos chegar a um acordo, afinal. *** Aquela tarde foi bastante educativa. Apesar de eu ter sido criada na corte de um vampiro, meus conhecimentos de magia não eram os melhores. As clarividentes são vistas como a escória do mundo mágico, pessoas com muito pouco talento genuíno que ganham a vida a dizer às pessoas normais o que elas querem ouvir. Do gênero: “O nome da sua alma gêmea começa por M, ou S, ou R”, ou qualquer uma das letras mais comuns do alfabeto, mas a clarividente precisa de mais sessões para descobrir de quem se trata exatamente. Sessões dispendiosas. Eu nunca fiz isso, mesmo quando o dinheiro era mais do que justo. O desespero pode levar-me a fazer batota nos casinos, mas nunca fiz pouco caso do meu dom. Contudo, a maioria dos magos da corte de Tony atribuiu à coincidência todas as minhas visões que se tornaram verdadeiras e nunca quis ter muito que ver comigo.


É claro que os vampiros têm uma magia inata própria e não me refiro apenas ao poder que lhes confere a vida. A maior parte deles ganha capacidades úteis se sobreviver tempo suficiente e algumas delas podem ser muito espetaculares. Já vi vampiros a levitar e a fazerem os outros levitar, tirar a pele de um corpo do outro lado da sala e arrancar de um peito um coração a bater com pouco mais do que um pensamento. Mas o tipo de magia que os magos fazem ultrapassa-os e os utilizadores de magia perdem as suas capacidades se forem transformados, daí não existirem magos vampiros. Acho que aprendi mais naquela tarde sobre magia do que em dez anos na corte de Tony. Tudo começou quando Pritkin tornou a despir-se para deixar que Mac terminasse a tatuagem e eu lhe perguntei por que estava a preocupar-se com aquilo agora. A pergunta serviu, sobretudo, para eu concentrar minha atenção noutra coisa que não o corpo dele – que, de repente, se tornou muito mais atraente do que devia. Eu esperava sinceramente que os efeitos secundários do meu encontro com íncubos passassem depressa. — Tal como a tua, a minha magia não será de fiar no Mundo das Fadas — disse Pritkin. Pelo seu tom de voz, mais parecia que queria mandar-me para o inferno, mas uma vez que tínhamos acabado de concordar em ser aliados, teve de ser amável. Decidi usar a vantagem enquanto a tinha, coisa que suspeitava que não durasse muito tempo. — O que é que vais fazer? Ofuscar os Elementais com a tua tatuagem viril? Mac riu, mas embora Pritkin tivesse a cabeça virada para o outro lado, percebi que ele estava de testa franzida. Os seus ombros ficaram tensos, o que comprimiu as coisas mais em baixo de uma maneira interessante. Levantei-me para ir buscar outra Cola. — É uma tatuagem especial — disse-me Mac, alegremente, pegando numa coisa que parecia uma escova de dente elétrica sem cerdas. — Se eu fizer isto bem, ela ficará marcada tanto na aura dele, a sua pele mágica, como no corpo. Quando ele erguer os seus escudos, irá manifestar-se como uma arma. E, uma vez que aprendemos a técnica com os Elementais, deverá funcionar ainda melhor no Mundo das Fadas do que aqui — levou a ponta da coisa que parecia uma escova de dente ao topo da espada e começou a preenchê-la com tinta. Pritkin não se encolheu, mas os músculos dos seus braços incharam um pouco mais. Beberiquei a Coca-Cola e desisti de tentar não olhar para ele. — Não estou entendendo — disse eu, passado um minuto. — Se tens armas — um verdadeiro eufemismo —, por que não confia nelas? Mac respondeu, embora sua atenção permanecesse nas costas da sua vítima, onde parou para limpar o sangue. — As armas normais não servem de muito contra os Elementais. É preciso magia para conter o tipo de coisas que eles podem usar, mas como disse o John, nossa magia não funciona no Mundo das Fadas — voltou às tintas e, desta vez, Pritkin retraiu-se ligeiramente.


— Pelo menos a maior parte não funciona e nós não temos acesso ao tipo de coisas que funcionam. — Que tipo de coisas? — Oh, várias coisas — disse Mac, com a sua pequena ferramenta a zumbir enquanto rasgava a pele de Pritkin. Parou para consultar o grande manual de magia que tinha pousado no banco alto ao seu lado e depois murmurou qualquer coisa sobre a tatuagem parcialmente terminada. A imagem brilhou por um momento e depois tornou a esmorecer. Mac resmungou e voltou ao trabalho. — O que havia de ajudar mesmo eram umas bombas de nulos. Só que são difíceis de arranjar e usá-las sem autorização é uma sentença de morte. E, mesmo que estivéssemos dispostos a correr esse risco, por alguma razão o Mercado Negro não confia em nós, muitos anos a deixá-los sem negócio, suponho. — O que são bombas de nulos? — Coisas loucas, mas boas de se ter onde haja magia que não sabemos contornar. Ninguém sabe quem as inventou, mas existem há séculos. Os magos das trevas pegam um nulo, um mago que nasceu com a capacidade de desfazer a magia, e drenam a sua força vital para dentro da esfera. Isso mata o mago, mas aprisiona as capacidades de uma vida inteira num receptáculo extremamente potente. Se for explodido, mesmo no Mundo das Fadas, toda a magia cessa ou enlouquece por um bocado. O período de tempo depende da força do nulo e de quantos anos de vida lhe restavam quando foi drenado. — Interessante — senti-me vagamente indisposta. — Qual é a aparência delas? — tive o cuidado de não olhar de relance para minha bolsa de viagem, que estava pousada de modo inocente no chão ao lado da geladeira. Achei que tinha mantido a voz descontraída, mas Pritkin deve ter percebido algo no meu tom, porque virou a cara de repente para olhar para mim. — Por quê? — os olhos dele semicerraram-se, ou de dor ou de desconfiança, a ponto de apenas se ver uma linha verde estreita no meio das pestanas pálidas. Encolhi os ombros. — Estava só a pensar. O Tony costumava ter armas espalhadas por todo o lado. Talvez eu tivesse visto alguma. Mac abanou a cabeça, com o rosto atento às costas de Pritkin. — Não é provável, meu amor. Custam uma fortuna, porque os nulos suficientemente fortes para produzi-las são raros e estão bem protegidos. A maior parte das que andam por aqui ficaram de séculos passados. Os vampiros costumavam caçar nulos antes das tréguas, razão pela qual restam tão poucos. A maioria deles foi aniquilada, linhagens familiares inteiras foram destruídas para construir os arsenais dos vampiros.


— Então nunca viu uma bomba dessas? — Oh, já encontrei algumas no decorrer dos anos. O Círculo compra todas as que encontra, para mantê-las afastadas das mãos dos vampiros. A casa de leilões do Donovan adquiriu uma em Londres, em 1963. O Círculo não ficou contente quando eles recusaram a nossa oferta inicial e a levaram a leilão público, mas o velho Donovan disse-lhes que era perfeitamente legal. O objeto era antigo, eu examinei-o, e de certeza que datava pelo menos do século XII. E nessa época não havia obviamente leis contra a sua produção — parou para limpar novamente a tatuagem e fez uma careta quando viu a quantidade de sangue no seu tapete. — Quer fazer uma pausa? — perguntou a Pritkin. — Não. Acaba logo isso — Pritkin tinha o maxilar cerrado, mas seus olhos não me largavam. Não gostei da desconfiança que revelavam. — O que aconteceu no leilão? — perguntei, na esperança de que mais cedo ou mais tarde, o Mac acabasse por me fazer uma descrição. — Oh, arrematamos — disse ele, voltando ao trabalho. — Na verdade, não havia alternativa. Mas posso dizer-te que custou uma fortuna. Eu estava sempre a ligar para pedir autorização para licitar mais alto, até que o Conselho me disse que parasse de incomodá-los e comprasse aquela porcaria, fosse qual fosse o preço. No entanto, não me parece que eles planejassem gastar quatrocentos mil numa bolinha de prata, tendo em conta as queixas que ouvi quando regressei. Mas não podiam fazer nada, eu estava a cumprir ordens. A expressão “bolinha de prata” ficou a chocalhar-me na cabeça enquanto eu tentava manter a minha expressão vaga. Não devo ter me saído muito bem. — Já viste uma — acusou Pritkin. Eu queria dizer “Sim, tenho duas naquela bolsa de viagem que ali está”, mas não sabia o quanto podia confiar nos meus novos “aliados”. Pritkin precisava da minha ajuda, portanto eu duvidava que ele pegasse a bolsa e fugisse, mas e em relação a Mac? Quatrocentas mil libras em 1960 valeriam quanto hoje? Eu não sabia, mas a resposta poderia ser o suficiente para fazer vacilar a lealdade do bom velho Mac. O negócio dele não parecia propriamente ir de vento em popa e até os magos podiam sentir-se tentados a uma reforma antecipada. — Talvez. Já faz tempo. Olhei de relance para Mac, e Pritkin pareceu enojado. — Ele está a arriscar a vida nesta missão. Pode confiar tanto nele como em mim — disse ele, com impaciência — levantei uma sobrancelha e Pritkin explodiu. O seu rosto tinha vindo a ruborizar-se à medida que a tatuagem era preenchida com tinta a cada agonizante centímetro e acho que queria ter alguém com quem gritar. — Se não confiar em mim, isto


nunca irá resultar! Dentro de pouco tempo, haverá ocasiões em que as nossas vidas dependerão do fato de conseguirmos ou não trabalhar juntos! Se não consegues ter fé em mim, diz agora. Prefiro fazer isso sozinho que ser morto porque tu pensas que eu sou falso! Bebi Coca-Cola e permaneci calma. — Se não achasse que podia confiar em ti, até certo ponto, já teria ido embora. A tua hora já acabou há alguns minutos — olhei para ele e depois para Mac. — Digamos que, hipoteticamente, eu sei onde encontrar algumas armas. Eu descrevo-as e vocês dizem-me o que elas fazem. Se decidirmos que podem ser úteis, talvez eu diga onde localizá-las. Pritkin pareceu escandalizado, mas Mac encolheu os ombros. — Parece-me justo — fez uma pausa para mudar a cor da tinta, depois de ter terminado todas as áreas douradas da espada. — Força! — Está bem — não tinha de pensar muito, já que a única coisa que eu tirara do Senado além das armadilhas e das bombas de nulos, tinha sido um pequeno saco de veludo. Lá dentro estava uma mão-cheia de rodelas de osso amareladas gravadas com runas em bruto. Tinham buracos entalhados na parte de cima, por onde passavam cordéis, como se fossem mais habitualmente usados do que lançados. Descrevi-os a Mac, que parou de trabalhar para olhar para mim de boca aberta. — Isso é impossível — disse ele. Pritkin não disse nada, mas parecia que os seus olhos podiam abrir um buraco em mim a qualquer momento. — Não estou a chamar-te mentirosa, Cassie, mas se um bandido de meia tigela como esse Antônio tem as Runas de Langgarn, eu... — Não tem — Pritkin interrompeu-o. — Onde as viu? — Isso é hipotético. — Menina Palmer! — Pode tratar-me por Cassie — tendo em conta que era provável que ele tencionasse acabar por matar-me, a formalidade parecia um pouco estranha. — Responde a pergunta — esforçou-se por dizer Pritkin por entre os dentes cerrados. Uma vez que Mac não tinha retomado o escavacar das costas dele, presumi que fosse eu a causa. — Eu digo o que sei — interpôs Mac —, mas não é muito. Reza a lenda que foram encantadas por Egil Skallagrimsson no passado século X — ao ver o meu olhar vago, desenvolveu. — Era um poeta viking e um arruaceiro, em termos gerais, roubou a primeira vida aos seis anos de idade, quando matou outro garoto por causa do resultado de um jogo da bola, mas foi um dos melhores mestres de runas que alguma vez existiu. É claro que há


histórias que dizem que ele roubou as runas a Gunnhild, a rainha feiticeira de Eric Bloodaxe, rei da Noruega e do Norte de Inglaterra. E, como se dizia que Gunnhild tinha sangue de Elemental, é possível que as runas tenham sido encantadas muito antes no Mundo das Fadas, por outra pessoa qualquer completamente... — Mac — interrompeu Pritkin, quando lhe pareceu que o amigo estava prestes a desviar-se do tema. — Ah, sim. Bem, há muitas histórias acerca de Egil, a maioria das quais registadas na sua própria poesia. Ele descrevia-se a si próprio como uma figura fora do vulgar que fazia coisas impossíveis, fez frente a enormes quantidades de adversários e matou-os sem ajuda, incendiou celeiros com um olhar, dominou reis apenas com o poder das suas palavras e sobreviveu a inúmeros atentados contra a sua vida. Tornou Gunnhild sua inimiga, ou por lhe ter roubado as runas, ou por lhe ter matado o filho, as histórias diferem, mas viveu até aos oitenta anos numa época em que a maioria dos homens morria na casa dos quarenta. Um sujeito interessante, sempre achei. — Então, o que fazem as runas? — tentei não parecer impaciente, mas precisava de fatos úteis, não de uma aula de História. — Consta que, em tempos, existiu um conjunto completo delas, mas que foi desmantelado há séculos. Não tem importância, uma vez que são usadas em separado. A cada uma delas está associado um poder diferente e a sua única limitação é o fato de terem de ser recarregadas durante um mês depois de serem usadas. As que restam são armas altamente valorizadas. Diz-se que não existem sentinelas contra elas e que nem as bombas de nulos surtem grande efeito nelas. Lancei um olhar cético a Mac. Nunca tinha ouvido falar em nenhuma magia que não pudesse ser contornada. Casanova tinha tentado vender-me essa ideia em relação ao géis, mas até Pritkin admitira que quase de certeza haveria uma maneira de removê-lo. Eu só ainda não sabia qual era. Mac abanou a cabeça. — Parece fantasia, não é? Mas o Círculo tem duas runas do conjunto e eu estava presente há vinte anos quando usaram uma para testarem uma nova sentinela que tinham desenvolvido. Aquela coisa era brutal, nada a atravessava, nada mesmo. Vinte dos nossos melhores magos martelaram-na durante grande parte da manhã, bateram-lhe com tudo o que tinham, mas nem sequer vacilou. Então, o velho Marsden, era ele que liderava o Conselho, apareceu com as runas. Decidiu lançar a Thurisaz. Nunca hei de esquecer daquilo, enquanto for vivo. — O que aconteceu? — perguntei prontamente. — Se não conheceste o Marsden, é capaz de ter dificuldade em visualizar a coisa, mas imagina o homem mais velho, mais enfezado e menos ameaçador que já viste. Naquela época, a magia dele ainda era poderosa, ele só se retirou há uns anos, mas ele era velho. As


mãos tremiam-lhe e tinha quase sempre comida derramada na roupa porque não via um palmo à frente do nariz. Andava sempre a ir contra as coisas, mas não queria usar óculos nem utilizar encantamentos para melhorar a visão. Dizia que não precisava deles; mas depois tentava apertar a mão a cabides. Tinha o aspecto de quem devia estar num lar, a não ser que o irritassem. Nessa altura percebia-se porque é que estava à frente do Conselho há sete décadas. — Mac! — Certo, certo. Bem, Marsden lançou a lhurisaz sobre si mesmo e, quando demos por nós, ele tinha desaparecido e havia um enorme, e era mesmo enorme, ogro no seu lugar. Era tão alto que tinha de se curvar para caber na sala e a câmara do Conselho tem tetos com quase sete metros! Arrancou a mesa do Conselho, que era de carvalho antigo e pesava sabe Deus quanto, e arremessou-a ao comprimento da sala. Quando ressaltou da sentinela sem causar nenhum estrago, a coisa soltou um urro que me ensurdeceu por uns bons dez minutos e depois atacou. A sentinela tinha sido instalada para proteger uma pequena jarra e, até então, nem uma pétala de qualquer uma das rosas tinha sido perturbada. Passado menos de um minuto de a Thurisaz ser lançada, a sentinela foi vencida e a jarra feita em pó. — Que... Espantoso — eu tinha assaltado o Senado na esperança de encontrar armas; parecia que finalmente tivera a sorte de encontrar algumas. Sabendo como Tony gostava de surpresas desagradáveis, eu ia precisar delas. — Bem, sim, essa parte foi satisfatória, mas depois ficámos com um ogro em fúria nas mãos, não é verdade? E não podíamos matá-lo sem matarmos também o presidente do Conselho. Não que algum de nós estivesse desejoso de fazer frente àquela coisa. Atropelámo-nos uns aos outros ao sair pela porta e depois escondemo-nos como coelhos assustados. Reagrupámo-nos lá fora e discutimos durante quase uma hora sobre o que havíamos de fazer quando ele destruísse as sentinelas que guardavam a câmara e se soltasse. Foi então que o velho Marsden saiu despreocupadamente e acabou por referir que o feitiço dura apenas uma hora. — O que fazem as outras runas? — perguntei. — Há algum livro, ou coisa parecida? Olhou de relance para Pritkin. — Será que Nick tem alguma coisa? Eu não conheço os poderes individuais, só a lenda da origem. Pritkin ignorou-o. — Quantas tem? — perguntou-me. A pergunta foi em tom tranquilo, mas a sua têmpora latejava.


Hesitei, mas se queria descobrir o que faziam estas coisas, teria de ceder algumas informações. — Três. — Valha-me Deus! — Mac deixou cair o utensílio de tatuagem. Um pequeno tornado gravado no seu bíceps direito começou a rodopiar de modo ainda mais entusiasta. — Descreve-as — Pritkin tinha uma expressão bastante intensa, mas não estava estupefato como o amigo. — Já descrevi. — Os símbolos! — disse ele, com impaciência. — Que runas são? Mac interpôs-se. — Se as desenhar, eu posso... Interrompi-o com um franzir de cenho. Eles podiam achar que eu era uma loira burra, mas santa paciência. Eu era uma clarividente. Será que pensavam mesmo que eu não conhecia as minhas runas? — Hagalaz, Jera e Dagaz. — Vou já tratar disso — Mac levantou-se com um salto e foi para a sala ao lado, onde o ouvi pegar no telefone. Passou-me pela cabeça que podia estar a ligar a pedir reforços, mas não me parecia. Eles ainda não sabiam onde estavam as armas, e ninguém haveria de pensar que andaria com coisas daquelas na minha mala. Pensando bem, eu também não estava assim tão entusiasmada com a ideia. — Onde as arranjou? — inquiriu Pritkin. Não me lembrei de nenhuma razão para não lhe dizer. — No mesmo lugar em que arranjei as Gréias. No Senado. — Não as entregaram sem mais nem menos. — Não propriamente — decidi mudar de assunto. — Humm, por acaso não sabe como hei de voltar a guardar as senhoras na respectiva caixa, não? — tinha estado a pensar em como perceber o feitiço necessário para aprisionar Myra no lugar delas. Seria muito conveniente se Pritkin simplesmente me explicasse. — Fala-me das runas. Droga, que ele era obstinado!


— Se me falares das Gréias, eu penso nisso. — Elas são obrigadas a trabalhar para ti durante um ano e um dia depois de serem libertadas, ou até te salvarem a vida. Depois ficarão livres para tornar a aterrorizar a Humanidade. Olhei-o furiosamente. — Não foi isso que perguntei. E eu não as deixei sair de propósito! — Nem sequer devia ter conseguido fazê-lo! É um feitiço muito complexo. Como é que o aprendeu? Decidi não referir o fato de que a única coisa que fizera foi ter pegado na esfera. Pritkin já me considerava um perigo; não era preciso acentuar a ideia. E talvez isso não quisesse dizer nada. A caixa poderia ter defeito — não havia maneira de saber a quanto tempo elas lá estavam dentro. Claro está que, se não estivesse a funcionar corretamente, eu não podia usá-la em Myra. Pus-me a pensar se haveria alguma maneira de testá-la. — Então? — era óbvio que ele não era do tipo paciente. — Sabe o feitiço para pô-las de volta lá dentro ou não? — Sei — foi só isso, foi tudo o que consegui. — Então talvez possamos fazer uma troca. Se me explicares, talvez eu te diga onde estão as armas. — Vai dizer-me de qualquer maneira — contrapôs. — Sem mim, nem conseguirá aproximar-te do teu vampiro, portanto nunca terá oportunidade de usá-las. E até a minha ajuda poderá não ser suficiente. Precisamos ter tudo a nosso favor. Mac regressou antes de eu poder pensar numa boa réplica. — Nick está muito curioso em relação ao motivo de eu querer saber, mas acho que o despistei — consultou uma nota rabiscada na sua mão. — Ele diz que duas delas foram adquiridas num leilão ao Donovan em 1872. O Círculo foi ultrapassado por um licitador anônimo que pagou um horror por elas. Nunca mais ninguém ouviu falar delas — olhou para mim. — Gostaria muito de saber onde as encontrou. — Não as encontrou, roubou-as. Do Senado — disse Pritkin. Mac assobiou. — Quero ouvir essa história. — Talvez mais tarde — disse eu, na esperança de que ele avançasse.


— Tudo bem, mas vou obrigar-te a cumprir a promessa — tornou a consultar as suas notas. — Isto é, sobretudo, o disse que me disse, mas Nick tem um grande conhecimento de runas, pelo que deverá ser o melhor que conseguimos arranjar. A Hagalaz lançada na vertical provoca uma enorme tempestade de granizo que ataca tudo o que estiver nas proximidades, à exceção de quem a lança e de quem essa pessoa decidir proteger, dependendo de quem estiver dentro do perímetro dos seus escudos, se bem que Nick não tinha certeza. Lançada no sentido inverso, calma até a mais feroz das tempestades. Alegrei-me. Isso poderia vir a ser útil. Mac leu umas linhas em silêncio e clareou a garganta. Olhou de relance para mim. — Hã, Jera é... Bem, diz-se que é, ou seja... — É uma pedra da fertilidade — disse eu, esperando que isso o fizesse avançar. — Representa uma época de abundância e de boa colheita. — Sim, isso mesmo. Crê-se que provoca... Hã, que é para ajudar, ou melhor, há quem acredite que... Pritkin tirou-lhe o papel das mãos e leu o parágrafo que parecia estar a causar tantos problemas a Mac. — Foi publicitada como um auxílio à virilidade, uma espécie de versão mágica do Viagra — resumiu, lançando a Mac um olhar devastador. — É só isso? Não tem outras propriedades? Mac fez um ar acanhado. — Nick não sabia. Tudo o que ele tinha era a descrição do leiloeiro, e já se sabe que essa é redigida para dar às melhores licitações possíveis. Pode ter outras propriedades, mas se assim for, não foram enumeradas. Mas foi encantada numa época em que os tronos acompanhavam as linhagens familiares. Assegurar a sucessão seria visto como algo tão ou mais importante do que qualquer arma. E ter o poder de tirar a fertilidade aos oponentes seria uma grande valia, deixando as terras deles em tumulto e guerra civil de cada vez que um rei morria e oferecendo a possibilidade de invasão no meio do caos. Pritkin franziu o cenho. — Talvez, mas a nós serve-nos de pouco. E a última? Dagaz? — Um avanço — murmurei. — Um novo começo. Mac assentiu com a cabeça. — Tradicionalmente, sim, é esse o significado. Mas como é interpretado no caso de uma batalha com runas... — encolheu os ombros. — Nick não sabe.


— Então qual é o palpite dele? — Pritkin fez a pergunta antes que eu a conseguisse fazer. — Não tem nenhum — Mac deitou as mãos ao ar ao ver as nossas expressões. — Não matem o mensageiro! Não foi adquirida juntamente com as outras, na verdade, nunca ninguém ouviu dizer que alguma vez tivesse sido posta à venda. Portanto, não há muito com que trabalhar. Senti-me frustrada. Uma runa sem serventia para mim já era mau o suficiente, não precisava de duas. — Então e outras fontes? Mac abanou a cabeça. — Nick disse que ia verificar de novo, mas a mente daquele homem parece um computador, meu amor. Duvido que lhe tenha escapado alguma coisa, pelo menos em relação ao seu passatempo favorito. A runa é referida em várias fontes antigas, mas estas são omissas em relação ao que ela faz. — Há uma maneira de descobrir — disse Pritkin. Levantei uma sobrancelha. — Lançá-la. — Dormiste durante a história do ogro em fúria, ou quê? — Se tens medo, lanço-a eu — disse Pritkin, adotando um ar de escárnio. — Onde está ela? Suspirei e ponderei a ideia. Precisava mesmo saber o que aquela coisa fazia e, se Pritkin queria arriscar o pescoço para descobrir, quem era eu para impedi-lo? Além do mais, ele tinha razão: sem a sua ajuda, eu poderia nem sequer conseguir chegar a Tony, mas mesmo que conseguisse... E se a runa fosse outra como a Jera? Precisava saber antes de usá-la no gordo e ele acabasse por ficar apenas excitado. Estremeci ao imaginar a imagem e Mac lançou-me um olhar inquiridor. — Disseste que as runas tinham de recarregar depois de cada utilização — relembrei-o. — Se a lançarmos, só poderemos tornar a usá-la daqui a um mês. Pritkin deu a resposta antes que o amigo o pudesse fazer. — Talvez. Contudo, se não tiver sido usada durante séculos, pode ter uma carga acumulada que aguente muitos lançamentos. — Não sei se foi usada recentemente, ou não. — Ou o efeito cumulativo pode simplesmente tornar o lançamento muito forte — salientou Mac.


Pritkin pareceu irritado com o amigo, mas eu achei que o cara tinha razão. — Uma coisa é certa — disse Pritkin, de modo exasperado. Não podemos planejar o modo de usá-la se não soubermos o que faz. Tal como está, é inútil para nós. O fato de a lançarmos não a tornará mais inútil — quis refutar o que ele dizia, mas não consegui. — Onde é que está? — inquiriu. Suspirei. — Se prometer que me ensinas o feitiço para aprisionar as Gréias, eu digo. Ele nem hesitou. — Combinado. Encolhi os ombros. — Está ali naquela bolsa de viagem.


í Pensei que os dois magos iam partir alguma coisa ao tentarem chegar à bolsa. Mac ultrapassou o amigo, mas só porque estava mais perto e porque as calças desapertadas de Pritkin tentaram cair durante o percurso. Olhei para ele a fechar o zíper com alguma desilusão, depois dei uma tapa mental em mim mesma. À velocidade a que iam as coisas, eu ia precisar de terapia. Mac começou a colocar objetos na parte de cima da geladeira, um a um. Os seus atos eram reverentes, como se fosse alguém a manusear nitroglicerina. As duas bombas de nulos irradiavam um ténue brilho prateado sob as luzes do teto. Atrás delas estava a caixa de aspecto insignificante que albergara as Gréias durante sabe-se lá quantos séculos. Por fim, Mac retirou a bolsa de veludo e, com cuidado, colocou uma de cada vez, as runas em pedra à frente dos restantes objetos. Precisou de várias tentativas para encontrar a sua voz. — Que bela coleção — disse ele, sem fôlego. O totem em forma de lobo que tinha tatuado nas costas parou a meio de um uivo e espreitou por cima do ombro para ver que alarido era aquele. — Isso era tudo? — perguntou Pritkin. — Tiraste tudo o que o Senado tinha? — Claro que não! Eu sei que está ocorrendo uma guerra — estava lá quando começou, lembra? — O que mais eles têm? — inquiriu Pritkin, enquanto Mac babava para os objetos sobre sua geladeira. — Isso não te diz respeito.


Decidi deixá-lo pensar que eu tinha sido ousada o suficiente para perpetrar um assalto altamente perigoso ao Senado – soava melhor do que a verdade. Na realidade, eu tinha regressado de uma viagem ao passado com Mircea e encontrado a Cônsul à nossa espera. Ela esticara-se para mim, eu tinha me encolhido instintivamente e, graças ao meu imprevisível novo poder, tinha acabado três dias no passado. Viajava no tempo, mas não no espaço, portanto continuava no sacrário interior da seção de vampiros da MAGIC. Uma vez que o depósito de petiscos mágicos estava literalmente à frente dos meus olhos, decidira abastecer-me de alguns artigos antes de executar a minha fuga. Eu estava com pressa porque era quase certo que as sentinelas deles os tinham informado de que eu lá estava. Parei apenas tempo suficiente para tirar as coisas de uma prateleira e quase nem reparei no resto. Mas, uma vez que a unidade que albergava a arca do tesouro dos vampiros era mais alta do que eu, havia boas chances de eu não os ter deixado indefesos. — Vamos precisar de ajuda no Mundo das Fadas — salientou Pritkin, fazendo um esforço óbvio para não perder a compostura. — Se roubou estas coisas, pode conseguir outras. — Não vou tirar-lhes o resto das armas! Eles estão em guerra! — eu podia estar irritada com Mircea, mas deixá-lo à mercê de Rasputine e dos seus aliados não fazia parte dos meus planos. Para não dizer que o meu velho amigo Rafa estava com ele. Havia muitos vampiros maléficos por aí, mas não eram todos farinha do mesmo saco, independentemente do que Pritkin gostasse de pensar. — Seja como for, eu não conseguiria voltar lá sem usar o meu poder e estou tentando evitar isso. — Por quê? — parecia genuinamente intrigado. — É a melhor arma que tem. — E também a mais assustadora. Tal como salientou, não sei o que estou fazendo. E, se fizer asneira, posso provocar a morte de muita gente. — Foi por isso que não quis nos transportar do Dante's? — inquiriu. Quando assenti com a cabeça, a expressão que cruzou seu rosto conseguiu ser intrigada e irada ao mesmo tempo. — Isso não faz sentido. Antes disso nos levou para o século XIX, ao tentar fugir de mim! — Não levei nada! — Eu estava lá, se bem se lembra — retorquiu, zangado. — Seu amante quase me matou. A menos que se contasse com uma experiência fora do corpo, eu e Mircea não éramos amantes. E, graças ao géis, eu não podia correr o risco de alguma vez virmos a sê-lo. No entanto, eu não tinha intenção de explicar isso a Pritkin. Ele não tinha nada a ver com isso e eu estava farta de me sentir como se estivesse constantemente a ser julgada por ele enquanto era juiz, jurado e, possivelmente, carrasco.


— Não me interessa se acredita, ou não — disse eu, com o máximo de calma que consegui. — Mas eu não tive nada a ver com o fato de termos ido parar lá. O poder foi faiscante, não sei por que. A única coisa que fiz foi tirar-nos dali o mais depressa possível. — É a Pítia que controla o poder, não o contrário — disse Pritkin, chamando-me mentirosa. — Acredite no que quiser — disse eu, subitamente exausta. Discutir com ele era muito cansativo porque nunca parecia resolver nada. — Se o que disse há pouco sobre precisarmos ter tudo a nosso favor é verdade, tenho uma tarefa para Mac. Mac levantou os olhos, com um ar ainda aturdido. — O quê? — A minha sentinela — disse eu, puxando para baixo as costas do meu top para lhe mostrar a parte de cima do pentagrama. — Pritkin disse que o Círculo a tinha desativado. Consegue arrumá-la? — Eu não disse "desativar", isso seria impossível — corrigiu Pritkin, enquanto Mac vinha dar uma olhada. — À distância, o Círculo pode apenas bloqueá-la, coisa que quase com certeza fez, com medo de que a usasse contra eles. Não teriam quebrado a ligação de outra maneira, sempre que ela resplandecia, dava-lhes a sua localização aproximada e eles querem muito encontrar-te — Pritkin avançou subitamente até invadir o meu espaço pessoal. — Sua explicação das ações do poder não faz sentido — disse ele, com a voz áspera. — No caso de você ser mesmo a Pítia. Suponho que estivesse tentando me intimidar, mas a coisa não resultou bem assim. Ele tinha parado a um dedo de distância de mim, com o peito nu mesmo à frente da minha linha de visão. Era ligeiramente peludo por cima de músculos rígidos e lustrosos e o ar condicionado inadequado dera origem a gotas de suor que percorriam todo aquele pelo de um modo fascinante. Os únicos homens em que eu alguma vez tocara não tinham pelos, ou tinham poucos e eu sentia o louco desejo de passar as mãos por aqueles úmidos caracóis loiros para ver que desenhos conseguiria fazer com os dedos. Não sabia por que o mago, de quem eu não gostava nada, estava me afetando daquela maneira, mas sentia como alguém que estava em dieta há semanas e tinha acabado de ver um sorvete. Tinha as mãos transpiradas e a respiração acelerando, ao ponto de não demorar muito a ficar ofegante. Desviei os olhos do tronco dele antes que perdesse o controle, mas isso não serviu de muito, uma vez que se limitaram a divagar para mais abaixo, para o que estava escondido por aquela enfurecedora extensão de jeans justos. Engoli em seco e esforcei-me por me controlar antes que cedesse ao desejo ardente de lhe arrancar os jeans. Quase tinha conseguido convencer a mim mesma a recuar, ainda que isso significasse fazê-lo pensar que me tinha intimidado. Afinal de contas, seria melhor do que a verdade.


Mas depois cometi o erro de o olhar nos olhos. Percebi por fim porque ele sempre me parecera um pouco estranho: as suas pestanas e sobrancelhas aloiradas tinham uma cor tão próxima do seu tom de pele que, a uma certa distância, parecia que não as tinha. Assim tão perto, pude ver que as suas pestanas eram, na verdade, compridas e espessas e que serviam de moldura a uns olhos verdes-claros, daquele tipo raro sem vestígios de outra cor. Apesar das ordens explícitas em contrário, pus as mãos nele, delineando os músculos do peito. As pupilas dele expandiram-se, ao ponto de seus olhos ficarem quase pretos e um olhar chocado cruzou seu rosto, provavelmente mais expressivo do que se eu lhe tivesse dado uma tapa. Mas ele não se afastou. Senti um formigueiro estranho nas mãos quando lhe apertei os peitorais e a pele dele pareceu-me mais quente do que o péssimo ar condicionado da loja deveria permitir. Ou talvez fosse impressão minha. Não quis saber: havia muito pouca atividade mental na minha cabeça, a não ser em relação a como abrir aquele maldito zíper. Antes que eu pudesse prosseguir esse plano, Pritkin agarrou-me nos pulsos. Não sei bem se quereria me afastar com um empurrão, ou me puxar para mais perto de si e, a julgar pela expressão no seu rosto, não me parece que ele também o soubesse. Mas nenhum de nós teve a chance de descobrir. De repente, senti como se alguém me tivesse encharcado com gasolina e me tivesse atirado um fósforo. O que me assolou não foi dor; foi agonia e pareceu arpoar-me cada célula do corpo em simultâneo. Gritei e dei um salto para trás, dando um encontrão em Mac e atirando-nos aos dois para o chão. Pritkin seguiu-nos na queda porque continuava agarrado aos meus pulsos e eu ouvi vagamente Mac gritando qualquer coisa, mas não consegui me concentrar o suficiente para entender. Arqueei as costas e comecei a ter convulsões como um peixe fora de água, só que o que eu queria não era ar, mas sim alívio da dor lancinante. Tive uma percepção real do que se deveria sentir ao ser-se queimado vivo, com o fogo a rasgar-me pela coluna acima e cada terminação nervosa a explodir com uma agonia incandescente. Esqueci-me de onde estava, esqueci os meus problemas, que de repente me pareceram absurdamente triviais em comparação com a tortura pela qual estava a passar. Acho que se passassem mais uns segundos, teria esquecido meu nome, mas então, de modo tão abrupto como tinha surgido, a dor desapareceu. Dei por mim no chão de linóleo da sala de trabalho de Mac, tentando reaprender a respirar. Ergui os olhos e vi-o a prender os pulsos de Pritkin. Era óbvio que o tinha puxado para longe de mim e eu podia tê-lo beijado por isso, se não estivesse tremendo a ponto de nem conseguir sentar. Depois de ter resolvido o problema imediato, Mac largou as mãos de Pritkin e virou-se para mim. — Está bem? Cassie, consegue me ouvir? — assenti com a cabeça, incapaz de fazer mais alguma coisa naquele momento. — Certo — ele parecia estar pirado, sem a sua habitual atitude descontraída do "Tudo legal, cara." — Fica onde está que eu volto já. Faça o que fizer, mas nada de se tocarem!


Mac desapareceu por uma porta da sua sala de trabalho e eu ouvi água a correr. A dor tinha diminuído, mas a sua memória estava gravada no meu corpo como o reflexo de uma luz ofuscante que danifica a retina. As minhas terminações nervosas latejavam com uma nítida recordação e, embora eu já não tivesse convulsões, parecia que um ligeiro tremor tinha se instalado para sempre. Estava com pânico de me mexer, com medo de poder tornar a desencadear aquilo por acidente. Percebi vagamente de que a respiração ofegante que ouvia não era apenas minha e desviei os olhos para o lado sem mexer a cabeça. Tive um vislumbre de Pritkin, deitado de costas e fitando o teto com uns olhos dos quais só se via o branco. Tinha o rosto corado, os músculos tensos e a respiração tão fraca como a minha. Ocorreu-me que talvez eu não tivesse sido a única afetada. Mac regressou com uma toalha de rosto umedecida, que colocou sobre a minha testa. Eu estava prestes a dizer-lhe que precisava de algo mais do que isso, como uma injeção de codeína, ou uma garrafa de uísque, mas o pequeno gesto pareceu ajudar mesmo. Observei uma traça a circundar o lustre no teto e tentei recuperar o controle motor. Só a ideia de me sentar parecia uma loucura, por isso, enquanto Mac tratava de Pritkin, fiquei ali deitada pensando. Estava tendo aquilo que se podia chamar de, mesmo depois de algumas experiências memoráveis no passado, um dia de cão. Portanto, talvez fosse compreensível que eu demorasse assim tanto tempo para perceber o que quer que fosse. Tinha andado o dia todo a reagir de forma estranha aos homens. Regra geral, reparava tanto em caras atraentes como qualquer outra mulher, mas tivera anos para aprender a admirá-los com algum desprendimento e depois seguir em frente. Passar a vida fugindo significava que qualquer homem com quem eu me envolvesse tivesse direito ao bônus adicional de uma ameaça de morte. Como não queria que ninguém morresse, tinha me assegurado de que mantinha a distância e, como se costuma dizer, a prática leva à perfeição. Tivera dificuldade em me concentrar ao pé de Casanova e de Chavez, mas vá lá. Eram os dois lindos de morrer, para não dizer que estavam possuídos por íncubos. Eu tinha partido do princípio de que estava tendo a reação que qualquer fêmea heterossexual poderia esperar ao pé deles e sentira-me grata por não ter arrastado um deles, ou os dois, para o roupeiro mais próximo. Mas Pritkin era um caso diferente. Não só eu o considerava completamente insuportável desde o dia em que nos conhecemos, como, até hoje, nunca o tinha achado particularmente atraente. Tudo bem, estava disposta a admitir que tinha um corpo muito bom e que o rosto não era assim tão mau, quando não ostentava a habitual expressão de desdém. O cabelo era uma desgraça, parecia que tinha sido cortado com um aparador de grama, mas ninguém é perfeito. Mas Pritkin não fazia decididamente o meu estilo. Nunca me sentira atraída por loiros, sobretudo loiros homicidas que provavelmente têm o meu nome na sua lista de alvos a abater. Contudo, assim de repente, estava mesmo a sentir desejo por ele.


Sentei-me de modo abrupto, sentindo-me nauseada e mal consegui agarrar na toalha úmida antes que ela caísse no meu colo. E se Mircea andasse a remexer no géis, tentando obrigar-me a terminar o ritual? Eu sabia que ele podia fazê-lo, uma vez que já o tinha modificado uma vez para aceitar Tomas em vez dele. Talvez conseguisse alterá-lo para acomodar ainda mais parceiros – muitos mais, se o dia de hoje servisse de exemplo. Tapei os olhos com as palmas das mãos, com uma dor de outro tipo a lancetar-me. A ideia de que Mircea podia não se importar com quem eu completava o ritual, desde que me tornasse Pítia para sempre, era um balde de água fria. Passados alguns minutos, levantei-me do chão usando a mesa das tatuagens como alavanca. Surpreendentemente, o meu corpo não se queixou. — Poderia o Mircea ter alterado o géis? — perguntei. Senti-me orgulhosa por ter conseguido manter a voz estável. Pritkin também se tinha posto de pé e, como bônus adicional, voltara a vestir a camisa. Olhou-me de relance e depois desviou rapidamente o olhar. — É pouco provável. — Alguém me diz, por favor, o que diabo acabou de acontecer aqui? — pediu Mac. — Então por que é que, de repente, eu sinto desejo por todos os homens que vejo? Pritkin fitava atentamente a parede por detrás da geladeira e eu, depois de dar por mim a começar a pesar na parte da frente dos jeans dele, decidi fazer o mesmo. — A dor era o géis a defender-te contra um parceiro não autorizado — disse-me ele. — O géis não iria atrair-te para ninguém. Senti uma súbita onda de alívio, forte o suficiente para me deixar as pernas bambas. Agarrei à mesa com as duas mãos e me esforcei para não sorrir como uma idiota. Passados alguns segundos, consegui reprimi-lo. Talvez Mircea não tivesse armado para cima de mim – desta vez –, mas era óbvio que eu continuava a ter um problema. — Então, o que é que está acontecendo? — Eu... Não sei bem — Pritkin inspirou ruidosamente e fechou os olhos. Passado um momento, o rubor no seu rosto esmoreceu um pouco. — Correu alguma coisa mal durante o ritual? — Qual ritual? — Mac estava a tentar pôr-se a par, mas não estava a sair-se muito bem. Eu tinha sentido o mesmo durante todo o dia. — O ritual da transferência — expliquei. — O que é necessário para uma pessoa se tornar Pítia. Não sei que nome lhe dão. Agnes deu-lhe início, mas disse que eu tinha de... hã... — calei-me, por respeito à sensibilidade antiquada de Mac.


— Mas Mircea tratou disso — disse Pritkin. — Não propriamente — eu conseguia perceber a confusão dele. À exceção do interlúdio da peça, da última vez que ele tinha visto a mim e Mircea juntos, estávamos nus e transpirados. Bem, tecnicamente, eu estava enrolada num cobertor, mas a ideia era esta. — Fomos interrompidos, Rasputine atacou, lembra-se? — Nitidamente — Pritkin enrugou a testa como se estivesse a tentar contornar um conceito difícil com a mente. — Está dizendo que continua virgem? — perguntou com aspereza. A voz dele continha o mesmo grau de incredulidade que outra pessoa qualquer usaria se lhe dissessem que tinha aterrado uma nave espacial no gramado da Casa Branca. Como se fosse algo vagamente possível, mas altamente improvável. Deixei de olhar para a parede para lhe lançar um olhar furioso. — Não que isso seja da sua conta, mas sim! Abanou a cabeça, incrédulo. — Eu nunca teria suposto essa chance. Estava me preparando para ficar irritada quando dei por mim a admirar a maneira como os cabelos úmidos na base da sua nuca se enrolavam. Droga, droga, droga! — Tem alguma teoria ou não? — A explicação mais provável é que os Ritos Pitianos estejam a tentar completar-se. Por um momento, fitei-o com um olhar vago. Ele não reparou, de tão ocupado que estava a contar os tijolos da parede. — Deixa ver se entendi — disse eu, por fim, soando um pouco asfixiada, apesar dos meus melhores esforços. — Como Mircea não está aqui, o ritual incompleto está a começar a atrair-me para outros homens para se completar. Mas o géis não gosta disso e está a conhecer os seus sentimentos torturando a mim e a quem quer que se aproxime de mim. É assim? E, mais importante do que isso, vai continuar a acontecer? — Qual géis? Você está sob um géis? — perguntou Mac. — O vampiro mestre dela a pôs sob um dúthracht. Está a entrar em conflito com os Ritos Pitianos, que ainda têm de ser completados — disse Pritkin, de modo abreviado. — Oh, maldição — Mac sentou-se no banco alto, com um ar aturdido.


— Responde-me! — se eu me tivesse atrevido a tocar em Pritkin, teria lhe batido quase até à morte. — Não sei o suficiente sobre os ritos para dizer com certeza se, nesta altura, há alguma escapatória — disse ele, sem dar grande ajuda. — As cerimônias têm lugar no seio da corte da Pítia e existem poucos registos acerca de alguma coisa relacionada com o cargo. — E as testemunhas? — eu esperava não transparecer na voz o frenesim que sentia. — O ritual foi executado em tempos com a Agnes, certo? — Isso foi há mais de oitenta anos. E, mesmo que ainda houvesse testemunhas vivas, seriam de pouca serventia. A maior parte do ritual é executada em privado. As únicas pessoas que conhecem o procedimento completo são a Pítia e a sua herdeira designada. — A Myra — ótimo, estava de volta ao ponto de partida. — Então e o géis? — Já estás fazendo o que pode ao manter-se afastada de Mircea. Isso irá pelo menos atrasar o processo, não há outro remédio senão retirá-lo. — Então como é que eu faço isso? — Não faz. — Não me venha com essa conversa! Tem de haver uma maneira. — Se há, eu não sei qual é — disse-me ele, parecendo cansado. — Se soubesse, dizia. A menos que o ritual seja completado, ele irá continuar a te atrair para os homens, mas o géis irá opor-se a todos menos Mircea. E é provável que piore com o tempo. O dúthracht é malévolo se for contrariado. — Mas... Mas e o Chavez? — perguntei, desesperada. — Ele me tocou e não aconteceu nada. Não comecei a contorcer-me na pista de gelo! — Estiveste na pista de gelo? Por quê? — Pritkin estava de novo com um ar irritado. Não podia preocupar-me menos com isso. — Para ir buscar aquilo — Fiz sinal para a bolsa. — Não quis levá-lo para o Dante's. — Por isso deixaste-o sem vigilância num lugar público, onde qualquer pessoa podia pegar? — Estava num buraco — disse eu, de modo taciturno. — E podemos voltar ao que interessa? Senti alguma coisa começar a crescer quando Casanova me tocou. Não foi nada como o que tinha acabado de acontecer, mas tive a sensação de que, sei lá. De que poderia piorar rapidamente. Só que ele largou-me a mão antes que se desencadeasse. Mas o Chavez


não me afetou nada e foi mais demorado. Portanto, se estiver certo e a reação estiver fortalecendo, não deveria ter sido pior? Pritkin pareceu desconfortável. — Não sei. — A única razão que me ocorre — ponderou Mac — é a de que o géis determina o grau de ameaça pelo nível de interesse dos possíveis parceiros e reage em concordância. Provavelmente, o Casanova sentia se um pouco atraído por você e esse tal de Chavez não. Assim, o géis identificou o Casanova como o parceiro errado e um potencial problema e desencorajou-o. Mas o Chavez, apesar de também não ser o correto para completar a ligação, não estava interessado em você, portanto não foi considerado um perigo. Mac parecia satisfeito consigo mesmo, enquanto eu e Pritkin nos olhávamos fixamente num pânico crescente. Como se por acordo mútuo, nenhum de nós estabeleceu a ligação óbvia. Eu não queria ir por ali. Nunca. — Claro que — continuou Mac, abstraído —, quando existe uma atração mútua, a reação é mais forte porque a advertência vale para ambos os lados... — parou de falar, constrangido. — Muito bem — levei uma mão à cabeça, que tinha começado a latejar ao ritmo do meu pulso. A esta velocidade, eu iria ser a pessoa mais jovem do mundo a morrer de uma trombose provocada pelo estresse. — Como é que lido com esta coisa? — perguntei a Mac, já que Pritkin estava ocupado tentando não parecer horrorizado. Mac coçou o queixo coberto de barba rasa. — Regra geral, estas coisas têm uma escapatória embutida, principalmente o dúthracht. Tem o hábito de provocar o caos e não imagino ninguém a instalá-lo sem assegurar uma chance de fuga. Mas apenas duas pessoas deverão saber o que é a rede de segurança. — Mircea e quem lançou o feitiço. Assentiu com a cabeça. — E o mago era indubitavelmente um renegado sob a proteção do vampiro. Ele não vai arriscar perder isso para te ajudar, mesmo que conseguíssemos descobrir, entre centenas de magos farsantes, só estou falando dos que existem neste país e, aquele que Mircea usou. É claro que não há muitos com esse tipo de capacidade fora do Círculo Negro. Mas isso não nos ajuda muito. Mesmo que conseguíssemos reduzir as chances a algumas dezenas, ainda teríamos de encontrá-lo a ele ou a ela, o que, se fosse fácil, já teria sido feito há muito tempo. — Há alguma coisa que possa abrandar esta coisa, tornar a reação menos... Radical? — perguntei a Mac, mas foi Pritkin que respondeu.


— Assim que entrarmos no Mundo das Fadas, isso poderá deixar de ser um problema. Tal como o resto da nossa magia, lá o géis não deverá funcionar bem — aparentemente, ele ainda estava contemplando a parede vazia. — Eu, hã, acho que isto será mais fácil. Mac pode ver a sua sentinela quando acabar o trabalho comigo. Não discuti. Agarrei outra Coca-Cola, enfiei as minhas armas na bolsa e saí. Pritkin estava tão abalado que nem se opôs. Sentei num banco alto e bambo ao balcão e refleti sobre as coisas. Pouco podia fazer, a não ser evitar homens atraentes até conseguir entrar no Mundo das Fadas. Esperava que Pritkin tivesse razão e os efeitos fossem mais fracos lá, talvez o suficiente para eu ganhar tempo para encontrar Myra. Não era um grande plano, mas era o melhor que eu podia fazer. Bebi o meu refrigerante e olhei em volta em busca de algo, fosse o que fosse, que me desviasse a mente da imagem de um Pritkin praticamente despido e em cuja tensa pele dourada estava a ser gravada uma espada.

***

Estive sentada na parte da frente durante mais de uma hora, folheando um par de enormes dossiês pretos repletos de desenhos de tatuagens. Havia de tudo, desde símbolos vodus a desenhos tribais indonésios, mas na sua maioria eram símbolos mágicos tradicionais e totens índios. Pelas descrições sob as fotos, percebi bem depressa que todos os desenhos de Mac eram acompanhados de algum tipo de benefício sobrenatural. Não vi entre eles a espada que ele estava a fazer a Pritkin, mas podia ser uma encomenda especial. Os dois volumes estavam divididos em categorias e níveis. Primeiro, as pessoas escolhiam a ação principal que queriam que a tatuagem fizesse. Algumas eram para proteção, especializadas em cortes e esfoladelas, hemorragias, queimaduras, traumatismos cranianos, venenos e frieiras, entre outros. O tamanho da lista fez me pensar na razão por que alguém haveria de querer ser um mago de guerra. Também me deixou curiosa em relação ao fato de Pritkin, até hoje, nunca ter feito nenhuma tatuagem. Havia umas que aceleravam a cura, mas embora eu já o tivesse visto a sarar quase tão depressa como um vampiro, ele não as usava. A menos que estivessem num lugar em que eu não as visse. Afastei a mente dessa imagem e folheei rapidamente mais algumas páginas. Havia também imensos feitiços de ataque, com uma divisão entre coisas como melhor visão e audição melhorada e uma lista inteira de coisas desagradáveis para fazer aos nossos inimigos. Não me demorei nessa seção, pois não queria saber o que é que os magos de guerra do Círculo tinham em mente em relação a mim. Descobri também que nem todo mundo podia fazer qualquer tatuagem. O tipo e a quantidade de tatuagens que se podia ter dependiam do grau de capacidades mágicas que se tinha. As imagens iam buscar o poder em parte ao mundo natural, portanto, até certo ponto, funcionavam como talismãs, mas também


alimentavam a magia inata da pessoa. Era como uma espécie de carro híbrido que usava eletricidade para aumentar a quilometragem a gasolina. Na parte de trás dos livros havia um gráfico longo e complexo que atribuía à pessoa uma variedade de onde podia escolher. Não o compreendi totalmente porque nunca tinha sido testada para aquele tipo de coisa. As crianças mágicas costumam ser classificadas por capacidades mais cedo, de modo a poderem ser conduzidas a uma aprendizagem adequada, mas é claro que Tony já sabia o que tinha planeajdo para mim. Descobri que havia limites até para o que um mago poderoso conseguia aguentar. Uma pessoa com uma tatuagem de um leopardo das neves para ajudá-la a deslocar-se em silêncio e uma aranha para auxiliá-la em ilusões urdidas, por exemplo, tinha de subtrair um certo número de pontos à sua fonte de poder devido à energia usada por aqueles dois aperfeiçoamentos. A não ser que a pessoa fosse muito forte, provavelmente não seria capaz de aguentar outro grande melhoramento. Era tudo muito complicado, mesmo com o gráfico e eu acabei por perder o interesse. Nada disso me ajudava a perceber como ultrapassar o bloqueio que o Círculo colocara na minha sentinela, fosse ele qual fosse. Pritkin apareceu por fim, com um ar pálido e um pouco indisposto e eu tomei o seu lugar nas traseiras. Não me importava que Mac verificasse a minha problemática proteção. Ele e Pritkin precisavam de mim viva até recuperar Myra, portanto ele tinha um interesse acrescentado em consertá-la, se pudesse. Estava um bocadinho preocupada com a interferência do géis, mas aparentemente eu não fazia o gênero de Mac. Não senti nem uma pontada daquela coisa demoníaca, nem quando despi o top. Não estava usando sutiã, mas pus a camisola à frente, e as mãos de Mac eram tão impessoais como as de um médico. — Posso fazer uma pergunta? — estava a cutucar-me as costas com uma coisa que parecia um limpa-cachimbo. Não machucava, mas fazia comichão na minha aura. Sufoquei a vontade de me contorcer. — Claro. — Por que está fazendo isso? Parece... Não me parece ser particularmente vingativa. Olhei-o de relance por cima do ombro. — Acha que eu sou vingativa em relação a quê? Encolheu os ombros. — John disse que pretende matar o tal vampiro, o Antonio. Parto do princípio de que ele mereça, mas... — Não te pareço uma maluca homicida? Ele riu.


— Qualquer coisa do gênero. Se não se importa que pergunte, o que ele te fez? Pensei nisso enquanto ele trocava de utensílios. A resposta fácil era "tudo", mas eu não queria começar uma longa conversa sobre um assunto que, mesmo num dia bom, conseguia deixar-me deprimida. Mas evitá-lo por completo também poderia não ser inteligente. Não precisava que Pritkin percebesse que, naquele momento, Myra me interessava muito mais do que Tony. Decidi por uma verdade parcial. O que de fato é que eu tinha muitas queixas legítimas contra o gordo. — A vingança não é o meu objetivo principal. Acho que se pode dizer que quero recuperar alguns pertences pessoais — dei um salto quando uma faísca desferiu um arco sobre a minha pele. O novo utensílio de Mac fez a minha aura estalar, como se estivesse cheia de estática. Sentei muito quieta para evitar dar outro choque em mim própria. — Ele te roubou alguma coisa? Reprimi um suspiro. Ao que parecia, Mac não iria contentar-se com a versão curta. — Há vinte anos, Tony decidiu que queria uma vidente competente na sua corte, alguém em quem pudesse confiar. Mas as videntes fidedignas são escassas e as honestas não estão dispostas a trabalhar para um membro da máfia dos vampiros. Por fim, concluiu que o que precisava era encontrar uma que pudesse educar desde a infância para que lhe fosse leal. E, por sorte, um dos seus empregados humanos tinha uma filha pequena que parecia perfeita para o papel. Mas, embora o meu pai trabalhasse para Tony há anos, ele ignorou a ordem de me levar para a corte. — O seu pai era um farsante? — perguntou Mac. Parecia surpreendido. — Não sei o que ele era. Foi-me dito que ele conseguia se comunicar com fantasmas, portanto suponho que tivesse alguma capacidade de clarividência. Se era mago ou não... — encolhi os ombros. Um dia destes tinha intenções de lhe perguntar acerca disso e de muitas outras coisas. — Só sei que ele era um dos humanos preferidos do Tony. Até ele lhe dizer que não, claro. — De certo deveria saber qual seria a reação mais provável do vampiro. — Pretendia fugir com a minha mãe e comigo, mesmo sabendo que desobedecer ao Tony não é uma coisa saudável, mas nunca teve oportunidade para isso. E Tony achou que a traição, tal como a via, merecia mais do que um mero assassinato. Por isso pediu a um mago que construísse uma armadilha mágica, que usou para aprisionar o fantasma do meu pai depois de fazer explodir o carro dele. Desde então a usa como peso de papel. As mãos de Mac tinham ficado muito quietas nas minhas costas. Olhei para trás de relance e vi-o me fitar sem reação. — Não está falando sério, está?


Tornei a virar-me. — Estou. Pelo que sei, tem apenas o tamanho de uma bola de golfe, portanto pode estar em qualquer lugar. Tony tem três casas e mais de uma dúzia de negócios e esses são só aqueles de que eu tenho conhecimento. Não me apetece andar a procurar em todos, por isso decidi que iria deixá-lo dizer-me onde está — na verdade, supunha que estivesse com ele. Fazia o gênero de Tony andar com os troféus atrás, mesmo enquanto fugia para salvar a vida. Mac limitou-se a ficar ali parado, com as mãos nos meus ombros. Por alguma razão, parecia aturdido. — Nunca se sentiu tentada? — perguntou, por fim. — Tentada a fazer o quê? — Você é a Pítia. Podia voltar atrás, mudar o que aconteceu — mudou de posição para conseguir ver-me os olhos. — Podia salvar a tua família, Cassie. Suspirei. Claro que podia. — Você não conhece o Tony. Além do mais, pensava que a ideia era ajudar a guardar a linha temporal, não interferir nela. Podia acabar por mudar alguma coisa vital e possivelmente piorar ainda mais as coisas. Com a minha sorte, provavelmente. O olhar dele aguçou-se. — Mas tecnicamente, podias fazê-lo. — Sim, podia impedir os meus pais de entrarem no carro que o Tony fez explodir, mas se o fizesse, a minha vida teria sido completamente diferente, bem como a de sabe-se lá quantas mais pessoas. E, conhecendo Tony, ele teria arranjado uma maneira de matá-los de outra forma — sorri com rigidez. — Ele é persistente a esse ponto. Mac olhou para mim de modo inquiridor, a ponto de me deixar desconfortável. — A maioria das pessoas veria o poder como uma grande oportunidade para fazer progressos — disse ele, por fim. — Podia dar-te quase tudo o que quisesses. Riqueza, influência... Lancei um olhar exasperado. — A única coisa que quero é uma vida boa e sem complicações. Sem ninguém tentando me matar, manipular ou trair. E, que, se eu fizer asneira no trabalho, ninguém morra por minha causa. De alguma forma, não me parece que a coisa da Pítia me vá ajudar nisso! — estava cansada do interrogatório e queria vestir-me. — Já acabou?


— Ah, sim — Mac guardou os utensílios num pequeno estojo e desviou educadamente o olhar para que eu pudesse vestir-me. — Quer primeiro as boas notícias ou as más? — As boas — por que não experimentar uma coisa diferente, para variar? — Acho que consigo repará-la. Pestanejei de surpresa. Estava à espera de ouvir que não havia nada que ele pudesse fazer e que eu teria de ir para o Mundo das Fadas sem proteção. — Sério? Isso é ótimo! — Sabes alguma coisa a cerca do funcionamento da sua sentinela? Abanei a cabeça. — Não muito. Foi a minha mãe que de alguma maneira a transferiu para mim, mas nem sequer me lembro disso. Tinha apenas quatro anos quando ela morreu. Durante anos, pensei que era uma sentinela normal que o Tony tinha colocado em mim como salvaguarda adicional. Mac pareceu quase ofendido. — Sentinela normal! Não, garanto que nunca verá outra semelhante. Tem centenas de anos e é inestimável, um dos verdadeiros tesouros do Círculo. — É uma tatuagem, Mac, não é uma obra de arte. — Na verdade, é as duas coisas — esticou o braço direito e apontou para um pequeno falcão castanho e cor de laranja perto da curva do seu cotovelo. — Observe — murmurou qualquer coisa e depois pegou na pele flácida na dobra do braço e puxou. Passado um segundo, uma pequena ave metálica reluzia na palma da sua mão, com as asas esticadas em voo, como a que tinha no braço. Demorei um instante a perceber que era a que tinha no braço, ou melhor, aquela que lá tinha estado. Agora havia apenas um pedaço de pele vazia com a forma de uma ave. Peguei no pequeno objeto de metal. As penas e os pormenores tinham desaparecido. Ao olhar e ao tato parecia ouro maciço. Por um momento, suspeitei de prestidigitação, ou de outro truque qualquer, mas depois de ele me deixar examiná-la, colocou a ave de novo no lugar e eu vi-a a dissolver-se na pele dele. — O que é isso? — Um búteo-de-cauda-vermelha. Aumenta o poder de observação. Não ajuda a vista, mas se quiseres ver mais coisas no que te rodeia e reter a informação, não há melhor. Havia algo a incomodar-me.


— Os livros lá de fora diziam que existe um limite para a quantidade de tatuagens que qualquer pessoa consegue aguentar, mesmo que seja o mago mais forte, porque cada uma delas retira parte da nossa magia para se manter e ainda mais quando é usada — olhei-o de cima a baixo, quase zonza com a quantidade de imagens que se contorciam em todo o seu corpo. — Como é que consegue usar tantas? Sorriu. — Não sou um super-mago, Cassie, se é isso que está pensando. Há dois tipos de tatuagens, aquelas que eu gravo diretamente na aura de uma pessoa alimentam-se em parte da sua magia, portanto é claro que existe um limite para a quantidade que alguém consegue aguentar. Mas aquelas como o meu falcão, ou o teu pentagrama, vão buscar o poder a fontes externas, por isso não há limite para elas. Exceto, claro, o poder de compra para elas. O processo de encantamento pode demorar meses, até para uma pequena, estremeço só de pensar no que compõe a tua sentinela. — Então é um anúncio ao que está disponível? — pessoalmente, eu teria preferido obrigar as pessoas a folhear os livros lá fora a transformar-me num placar ambulante. — No meu caso, não é uma escolha. Para outras pessoas, isto são aperfeiçoamentos para compensar alguma parte da sua magia que não é tão forte como gostariam, ou para acrescentar poder a uma área usada com frequência. Mas para mim são uma necessidade, a menos que eu queira retirar-me por completo do nosso mundo — viu a minha confusão e fez um leve sorriso. — Há uns anos, tive uma disputa com um feitiço que me devorou os escudos e atacou a minha aura. As feridas físicas resultantes dessa briga sararam, mas as da minha pele metafísica foram permanentes. Foi por isso que só percebi que estava sob um géis quando me disseste. Com a minha própria aura tão danificada, tenho de concentrar-me para conseguir ler a dos outros. Olhei-o fixamente, horrorizada com o que ele tão casualmente revelara. Não foi só o que aconteceu a Mac que me deixou abalada, mas a ideia de que existiam feitiços que podiam de fato fazer uma coisa daquelas. Quanto mais aprendia acerca dos magos, mais assustadores se tornavam. — Mas com as sentinelas estás bem, certo? — mantive a atenção no rosto dele para não me concentrar na minha própria aura, para me assegurar de que estava intacta e incólume. Naquelas circunstâncias, teria sido brega. De qualquer maneira, Mac parecia perceber que rumo tomavam os meus pensamentos. Adejou uma mão no ar e as minhas chamas vermelho-vivo e cor de laranja faiscaram de repente no meio de nós como uma alegre fogueira numa noite fria. — As minhas sentinelas fazem a compensação até um certo ponto, Cassie, mas nunca mais serão assim, uma manta de proteção perfeita e sem costuras. A maioria das pessoas não conseguiria ultrapassar as minhas defesas, mas os magos de guerra não são a maioria das


pessoas. Mais cedo ou mais tarde, um dos mais negros iria encontrar as fissuras na minha armadura manufaturada, os lugares onde as sentinelas não se sobrepõem na perfeição. Fui retirado da ativa assim que alguém percebeu o que tinha acontecido e foi-me dito que não poderia tornar a entrar em batalha — viu a minha expressão e sorriu. — Nem tudo é mau. Hoje em dia corro muito menos perigo! Parecia descontraído, mas algo nos seus olhos me dizia que não estava sendo completamente verdadeiro. Eu não sabia o que costumava acontecer aos magos de guerra velhos, mas era óbvio que Mac, pelo menos, não se contentava em limitar-se a desaparecer. Ansiava pelo ímpeto da adrenalina da batalha, talvez até pelo perigo. Decidi mudar de assunto. — Então, a minha sentinela foi buscar o poder ao Círculo, até eles a bloquearem. Ele assentiu com a cabeça. — Certo. O que lhe deu a sua força, mas também criou uma conduta entre você e eles. Desconfio que John tem razão e que o Conselho ficou preocupado com a possibilidade de arranjares maneira de virar a magia deles contra eles, por isso fecharam a ligação. — Ou pensaram que eu era mais fácil de matar assim. Mac pareceu desconfortável. — Talvez. Mas a verdade é que não há nada de errado com a sua sentinela, tirando o fato de a sua mãe não ter experiência para fazer a transferência e daí ela ter ficado um pouco deformada. Posso resolver isso, mas o problema não é o seu aspecto. A razão por que não funciona é a mesma que leva um relógio a parar. Precisa de uma nova fonte de energia. — Que nova fonte? — estava a ter uma ideia acerca do que seriam as más notícias. — A única grande o suficiente para aguentar uma coisa destas, além do próprio Círculo — sorriu com amabilidade, como se compreendesse o meu dilema. — O poder do seu cargo: a energia que faz de você Pítia. — Não, nem pensar — fiz sinal para a cortina. — Faz-me uma dos livros lá da frente — havia uma lista de algumas bem assustadoras; de certo ele conseguiria encontrar algo que funcionasse. Mas Mac abanava a cabeça. — Não tenho uma maneira de saber quão forte é a sua magia nata. A sua aura está misturada com a energia da Pítia e eu não consigo separá-las. Não há maneira de saber se conseguirias aguentar sozinha uma das sentinelas de proteção maiores. Se não conseguir, qualquer tatuagem que eu te fizesse iria buscar energia à reserva que herdaste enquanto Pítia, que é exatamente o que quer evitar.


— Então faz uma menor, uma fácil! Mac olhou para mim com um ar sério. — Você vai entrar no Mundo das Fadas, um lugar onde a maioria dos magos não se aventuraria a ir. Nenhuma das coisas menores te serviria de nada lá. E nenhuma das sentinelas que tenho te protegeria tão bem como aquela. Hoje em dia, aquele trabalho de artesão é raro. — Talvez eu seja mais forte do que pensas — eu era uma clarividente; de certo conseguiria aguentar uma reles sentinela. Mac limitou-se a encolher os ombros, fazendo com que a sua tatuagem do lagarto fugisse de novo para se abrigar, desta vez debaixo das escamas da serpente. A serpente não gostou e golpeou a sentinela menor com a ponta da cauda. O lagarto deu um salto para fugir e correu pela face de Mac até ao cocuruto da sua cabeça. Ali ficou, espreitando por detrás de uma sobrancelha espessa, observando a serpente com uns olhos negros pouco amistosos. Voltei a desviar a atenção para o que Mac estava a dizer. — A magia é como um músculo, Cassie. Um músculo metafísico, mas que não deixa de ser um músculo. Quanto mais a trabalhar e a treinar, mais forte se torna. Seja qual for a magia que tenhas, é um talento bruto. E só isso não te levará muito longe. — Tony não permitiria que eu fosse treinada. — Ele prestou-te um pior serviço do que pensa. Um mágico poderoso sem treino nada mais é do que um alvo a abater. O poder pode esvair-se se a pessoa não souber proteger-se. O Círculo Negro não tem qualquer interesse em roubar a magia de quem conseguir. Como as coisas estão, você a combater um mago das trevas seria como um bebê a tentar fazer braço de ferro com um fisiculturista, a menos que uses o poder da sua posição. Precisa de treino, pelo menos de defesa — disse ele, em tom sério — e, quanto mais cedo, melhor. — Pois vou acrescentar isso à minha lista — disse eu, em tom amargo. Todo mundo estava sempre a dar-me novos tópicos para o que tinha de fazer, quando o que eu precisava era de ajuda para resolver alguns dos antigos. — Neste momento, tenho alguns outros problemas — virei-me, ao sentir Pritkin parado à soleira da porta, mesmo antes de o ver. — Tais como o modo como vamos entrar no Mundo das Fadas. — Vamos entrar — disse ele, com rigidez e eu reparei que ele tinha prendido a si o seu arsenal. Tinha o casaco comprido de couro que servia de ligeiro disfarce pendurado sobre o braço. — O problema vai ser sair. — Vamos agora? — Não — tentei não parecer aliviada com a resposta dele. — Esta noite.


— Esta noite? — segui-o até à sala exterior. — Mas a essa hora os vampiros hão de estar acordados — eu não sabia que Mircea estava na sua sala de segurança – os vampiros de primeiro nível não estão limitados pelo ciclo do sol e podem estar ativos a qualquer hora do dia. Mas a maioria continua a dormir durante o dia, já que a noite é muito mais favorável aos seus níveis de energia. Se Mircea estivesse acordado, é provável que estivesse um pouco lerdo. Mas esta noite não iria estar. — Não vamos tentar penetrar na zona dos vampiros — relembrou-me Pritkin. — E o portal é guardado por magos. — Não vejo como é que isso possa ajudar — protestei, gostando tanto da ideia de ir ao encontro de um bando de magos de guerra como da de lidar com os vampiros. Na verdade, é provável que fosse ainda menos inteligente — pelo menos o Senado não me queria morta. Provavelmente. — Esta noite estão de serviço alguns amigos meus — explicou Mac. — Acho que consigo fazer vocês passarem por eles. — Tenho de ir me abastecer de algumas coisas — acrescentou Pritkin, vestindo o casaco. Não o invejava, tendo em conta que deviam estar mais de trinta e dois graus lá fora, mas suponho que ele não tivesse grande alternativa. É provável que a polícia se opusesse a que ele andasse a passear-se com aspecto de ser um figurante do Platoon e, neste momento, andar por aí desarmado seria ainda menos saudável do que uma onda de calor. — Sugiro que fique aqui, longe da vista — disse ele, evitando os meus olhos. — Descansa, se conseguir. Pode não vir a ter outra chance tão cedo. E pede ao Mac que te reconstrua a sentinela — acrescentou, enquanto se encaminhava para a porta. — Vai precisar dela. Apressou-se a sair pela porta como se todos os mastins do Inferno andassem atrás dele. Mac olhou para mim e encolheu os ombros. — Você é que sabe, mas eu aconselho a pensar nisso, meu amor. O Mundo das Fadas é um lugar assustador, mesmo quando não está à beira da guerra. Neste momento, não consigo imaginar uma única alma que quisesse sequer aproximar-se daquele lugar. — Vou pensar nisso — prometi. Podia ter-lhe feito mais perguntas, mas a minha atenção foi desviada por Billy a flutuar pela parede. Estava a fazer-me caretas, portanto calculei que tivesse novidades. — Estou cansada — disse eu a Mac. Não era mentira – partilhar um quarto com as Gréias não é propriamente repousante –, mas queria sobretudo alguma privacidade. — Tenho uma cama desdobrável nos fundos — disse Mac. — Despachei as marcações que tinha para hoje depois de John ter chegado, por isso não vou precisar ir lá. Dorme um pouco, Cassie. A intenção dele era boa, por isso consegui não revirar os olhos. Pois, sim. Só havia umas cem razões para eu ter problemas em adormecer. Billy seguiu-me até aos fundos e eu


deixei-me cair na cama desdobrável depois de desviar para o lado cadernos cheios de esboços, pilhas de manuais de magia e pacotes antigos de batatas fritas. — O que é que se passa? Billy tirou o chapéu quase transparente e abanou-se. — Preciso de energia — disse ele, sem preâmbulo. — Bem, olá para você também. — Então? Tive um dia difícil, está bem? — E eu não? O que é que aconteceu no Dante's? Está tudo bem? — Claro que sim. Se por tudo bem te referes ao fato de o Círculo ter fechado aquilo enquanto o revistavam em busca de uma certa sibila farsante e dos alienígenas ilegais que a ajudaram a enganá-los. — Estão a revistar? Mas aquilo é propriedade dos vampiros! — a razão para eu ter mandado a Casanova o restante conteúdo da bolsa foi o tratado que existe há muito entre os magos e os vampiros. Este continha proibições estritas contra a entrada de qualquer um dos grupos na propriedade do outro sem autorização. — Estão malucos? — Não sei. Alguns agem como tal, isso é certo. Seja como for, Casanova estava fazendo uma cena das grandes quando eu saí e tinha mandado dois representantes à MAGIC para se queixar. Mas estamos numa época estranha, Cass. Tony é dono daquilo e ele é um reconhecido aliado de Rasputine, o cara a quem o Círculo e o Senado declararam guerra há uma semana. Não sei quais são as regras em tempo de guerra e não me parece que o Casanova as saiba. Neste momento, está jogando pelo seguro. Para não parecer que tinha ajudado, fingiu que você tinha aparecido e começado a destruir aquilo por estar chateada com Tony. Os magos aproveitaram o pretexto para dizerem que iriam assegurar-se de que já não estavas no casino e começaram a revista. — Ótimo, então agora eu sou uma lunática qualquer que anda por aí a desencadear brigas. — Não, agora é uma lunática qualquer que anda por aí a matar pessoas. — O quê? — Pois é. Apareceram logo dois magos a chamar-te assassina. Não apanhei os pormenores, mas calculo que estivessem falando dos dois magos que acabaram mortos. Senti-me indisposta. — Diz-me que as Gréias não...


— Não. Elas destruíram aquilo, mas parece que os magos foram mortos pelo grupo da Miranda. Algumas das gárgulas mais poderosas ficaram para trás para ganharem tempo para as outras fugirem e os magos começaram a abatê-las. Depois vieram as balas e voilà. Dois magos mortos. — Mas as gárgulas estavam a agir em legítima defesa! — Elas podiam safar-se com essa afirmação, não se desse o caso de nem sequer deverem lá estar. Casanova pegou no resto do pessoal da Miranda e escondeu-os e agora ele culpa Tony por receber trabalhadores clandestinos nas suas costas. Está a proteger muito bem o couro dele, mas está a deixar o seu à mão de semear. Deixei-me cair na cama desdobrável, sentindo-me entorpecida. Nada disto estava a acontecer. Tinha de ser alguma espécie de pesadelo no qual eu caíra e do qual iria acordar a qualquer instante. — Se o Círculo sabe que foram as gárgulas que mataram os homens deles, por que é que estão a me acusar? — Não sei — Billy parecia intrigado. — Vi os corpos e eles têm marcas de garras e dentes por toda a parte. Suponho que isso dê ao Círculo um pretexto para te classificar como uma lunática perigosa. — Merda. — Pois, isso resume tudo. Portanto, tal como já disse, estou exausto. Detesto ser chato... — Desde quando? — Tem muita graça, Cass. Passo metade do dia a arranjar informações de alta qualidade para você e... Eu estava demasiado cansada para suportar a nossa rotina habitual. — Tudo bem. Pode me drenar, mas depois volta para o Dante's. Preciso que entregue uma mensagem ao Casanova. — Ele pode não conseguir me ouvir — protestou Billy. — Há demônios que não conseguem, pelo menos num corpo humano. — Nesse caso, terá de ser criativo — dada a reação de Casanova à presença de Billy anteriormente, eu apostava que ele o ouvia com perfeição. Mas mesmo que isso não acontecesse, eu não ia deixar que Billy se furtasse a isto. Casanova tinha de guardar num lugar seguro as armadilhas que eu lhe enviara. Caso contrário, com aquilo cheio de magos, era certo que iriam encontrá-las e eu duvido que ele conseguisse safar-se disso com mentiras.


Mesmo que conseguisse, seria pondo a culpa em cima de mim, dando assim ao Círculo mais um prego para juntar ao meu caixão. Para não dizer uma arma dos diabos, dependendo do que havia no interior daquelas caixas. Suspirei. Parece que, afinal de contas, devia ter sido eu a guardá-las. Billy partiu depois de drenar aquilo que considerei ser uma quantidade desmedida e eu instalei-me para uma soneca muito necessária. Mas o que recebi foi a desorientação que antecede uma viagem no tempo. Tentei gritar, para avisar Mac de que estava prestes a fazer uma viagem, mas as trevas chegaram e tomaram.


í Os meus joelhos travaram conhecimento com outro chão duro, desta vez em mármore, e a minha cabeça bateu em qualquer coisa com um estalido audível. Um borrão verde surgiu diante do meu rosto e eu pestanejei lentamente para focá-lo. Afinal, era uma coluna de rocha mais alta do que eu, à qual se juntavam umas peças laterais com cabeça de Górgonas. Por um instante, limitei-me a ficar esparramada debaixo dela, fitando as caras feias enquanto a minha cabeça e joelhos competiam pelo título de região anatômica mais massacrada. Mas sentia o mármore frio nas minhas pernas despidas e não me pareceu que ficar ali deitada à vista de todos fosse muito inteligente. Sentei-me com impulso, usando o pedestal da coluna como alavanca e dei a primeira observada no local. Estava numa alcova ao lado de uma sala grande e redonda. O chão em mármore verdeescuro tinha veios dourados que se transformavam num padrão raiado mesmo debaixo de um enorme lustre. Três lustres iguaizinhos iluminavam uma imponente escadaria, com os seus cristais a lançarem alfinetadas de luz sobre a multidão em baixo. As pessoas passavam por mim num caudal sarapintado de luz de vela, cetim e sombras fluidas. Homens de casaco acompanhavam senhoras cheias de joias. Brocados sutis competiam por atenção com sedas vistosas. Havia leques e bainhas que dançavam num caleidoscópio de cor e movimento que em nada ajudava a minha cabeça latejante. A maioria das indumentárias assemelhava-se às que eu tinha visto no teatro, mas havia uns convidados vestidos de modo mais exótico, incluindo um chefe africano que ostentava ouro suficiente para comprar um país pequeno e um fulano com vestido com uma toga.


Parecia um baile de máscaras, mas eu sabia que não era. Puxei as pernas para cima e escondime o mais longe possível na alcova escura. Não era lá grande esconderijo, tendo em conta a natureza da maioria dos ocupantes da sala. Por um instante, fiquei a olhar em volta com espanto e aturdimento. Foi então que reparei numa imagem ainda mais estranha. Uma forma diáfana, suficientemente transparente para ser quase invisível, deslizava por uma parede. Confundiase de tal forma com as sombras lançadas pelos braços do lustre que, por um momento, duvidei dos meus instintos. Depois esta passou diante de um quadro tão escurecido pela idade que o tema era irreconhecível e eu vi-a com mais clareza – uma coluna amorfa de iridescência pastel. Primeiro pensei que fosse um fantasma, mas os únicos traços discerníveis na saliência que eu depreendi que fosse a cabeça, eram dois enormes olhos prateados. Fosse lá o que aquela coisa fosse, nunca tinha sido humana. Fiquei tão intrigada que, por um instante, quase me esqueci do apuros em que estava. Havia imensas coisas relacionadas a Pítias que eu não compreendia, mas os espíritos eu conhecia. Já tinha conhecido espíritos antigos, que andavam por aqui há séculos, espíritos recentes que, em certos casos, nem sequer sabiam que estavam mortos, espíritos amistosos, espíritos assustadores e algumas coisas que nem sequer eram fantasmas. Mas isto não se encaixava em nenhuma dessas categorias. Percebi-me, com choque, de que não sabia o que era. Deixei-me ir com a multidão na direção de um salão de baile do lado oposto das escadas. Não consegui ver grande coisa do interior – que estava mais iluminado para olhos de vampiro do que para os meus – e tive apenas uma vaga ideia de risos, rostos dourados iluminados pela luz de velas e tecidos sumptuosos. Mas o aroma forte e enjoativo da mistura de perfume e sangue que saía pelas portas convenceu-me de que não queria aproximar-me mais. Um jovem, provavelmente no final da adolescência, parou a poucos metros de mim. Parecia estranhamente deslocado no meio da multidão vestida de maneira formal, vestindo apenas um par de calças cor de ameixa de um tecido sedoso que lhe pendia dos quadris. Tinha o peito nu e os pés descalços e o cabelo comprido solto em redor dos ombros. Ondulava ligeiramente à medida que descia em cascata pelas suas costas, como seda negra contra a sua pele pálida. Eu queria mesmo sair dali, ir embora de um lugar onde o meu ritmo cardíaco era de certo audível na sala inteira, mas ele estava no caminho. E a última coisa de que eu precisava era responder a perguntas a cerca do meu direito de ali estar, quando nem sequer sabia onde era ali. Foi então que um dos convidados se aproximou – um vampiro de cabelo loiro claro vestido com o que parecia ser uma farda militar vermelha com galões dourados e botas pretas bem polidas. Parou mesmo à frente do jovem, percorrendo-o com os olhos em óbvia apreciação.


O rapaz estremeceu, com as costas tensas, as nádegas comprimidas. Baixou a cabeça com timidez, fazendo com que a luz e a sombra brincassem ao longo de ossos malares salientes e um queixo fendido. O seu rosto corou com um brilho saudável, fazendo-o assemelhar-se aos querubins que nos fitavam do alto de murais a lascar por cima de nós, dos quais só restavam os rostos cor-de-rosa. O vampiro descalçou uma das luvas brancas que acompanhavam a farda. A sua mão desceu pelo flanco do rapaz, com os dedos a brincarem com as suas costelas até pararem na seda fina pegada à sua bacia. O peito do jovem começou a subir e a descer com rapidez, mas à exceção da respiração mais pesada, ele não produziu nenhum som. Os meus olhos focaram-se nos pés descalços do rapaz, que ficaram mesmo no meu ângulo de visão quando tentei desaparecer pelo chão. Eram espantosamente brancos sobre o verde-escuro e pareciam estranhamente vulneráveis ao lado do calçado pesado do vampiro. O jovem retesou-se quando a cabeça loira se inclinou na sua direção, provavelmente pelo primeiro vislumbre das presas, mas uma mão abriu-se de modo possessivo nas suas costas trêmulas, mantendo-o imóvel. Fez um leve gemido quando o pescoço foi perfurado e foi percorrido por um visível estremecimento. Mas passados segundos, fez deslizar um braço à volta do pescoço do vampiro e começou a produzir sons graves na garganta, com uma avidez sincera e generosa. O vampiro afastou-se um minuto depois, com a boca tão vermelha como a sua farda. O rapaz sorriu-lhe e o vampiro afagou seu cabelo com afeto. Lançou a sua capa curta à volta dos ombros do rapaz e encaminharam juntos para o salão de baile. Com o estômago revolto, compreendi a razão de não ter visto empregados a passar com bandejas de bebidas e de não ter ouvido o tilintar de copos. Quando o coração para, a pressão sanguínea no corpo baixa para zero, as veias dão o máximo de si e o sangue começa a coagular. Não só o sangue sabe pior dessa maneira, como é mais difícil de extrair. Até os vampiros bebês aprendem depressa – alimentar-se apenas dos vivos. Nesta festa, os refrescos andavam por ali por sua conta. E, com os meus calções curtos e o top de alças, eu parecia muito mais parte do desfile de bebidas do que uma convidada. Quase como se tivesse ouvido o meu pensamento, um vampiro olhou de repente na minha direção. Tinha uma barbicha grisalha que condizia com o brocado prateado das suas vestes. Estas estavam forradas com o que parecia ser pelo de lobo e ele usava uma grande estola à volta dos ombros. Havia também qualquer coisa quase lupina na maneira como parou, com um pé no último degrau e o nariz inclinado, como se estivesse a farejar uma presa. Os seus olhos pretos inexpressivos pousaram em mim e um olhar de interesse feroz cruzou o seu antes indecifrável rosto. Pus-me de pé e cambaleei para o meio da multidão à deriva, com o pânico assolando. As únicas portas que existiam davam para o salão de baile, por isso lancei-me a elas como se a minha vida dependesse disso, coisa que poderia acontecer. De alguma maneira, consegui chegar antes dele, provavelmente por ele ser educado demais para acotovelar convidados amigos para saírem da frente. Mas um olhar de relance sobre o ombro assim que entrei no


espaço escuro e cavernoso, revelou que ele não estava muito atrás. A expectativa tinha iluminado aqueles olhos inexpressivos e eu senti um aperto no estômago. Havia vampiros que preferiam a comida assustada e inconformada; que sorte a minha ter encontrado um logo de primeira. Olhei rapidamente em volta do salão de baile, mas não havia saídas óbvias. É claro que devia ter percebido pelas escadas que fosse provável que estivéssemos no subterrâneo. Tentei concentrar-me, mas era difícil, com o poder a percorrer-me a pele como uma nuvem de insetos. Nenhum desse poder se dirigia a mim especificamente; simplesmente transbordava dos seres que me davam encontrões por todos os lados. Com um choque perturbador, apercebi-me de que não estava apenas a ver uma sala cheia de vampiros; era uma sala apinhada de vampiros mestres, centenas deles. Uma Convocatória — pensei, entorpecida, tinha de ser. Todos os Senados tinham uma reunião bianual onde os vampiros mestres se encontravam para discutir políticas. Eu nunca tinha estado em nenhuma, mas Tony passara dias a preparar-se para elas, mudando de ideias em relação à roupa e à companhia com tanta frequência como uma adolescente a caminho do baile de formatura. Toda a sua comitiva tinha sido concebida para impressionar, e com razão. O encontro de uma semana era a única ocasião em que ele e outros mestres de nível inferior podiam estar lado a lado com as celebridades – os membros do seu próprio Senado e os dignitários visitantes de outros senados de todo o mundo. Lambiam-se botas, firmavam acordos e decidiam-se alianças para os dois anos seguintes. Tony sempre tinha ido armado até aos dentes e rodeado de guarda-costas, uma vez que não era raro o entretenimento descontrolar-se um pouco. Por instinto, precipitei-me na direção da orquestra – os instrumentos dourados eram as coisas mais brilhantes da sala – e esperei não estar prestes a tornar-me noutra baixa da Convocatória. É claro que foi má ideia. Não havia portas de serviço, nem corredores, nem saídas à vista, apenas uma grande alcova rodeada de cortinas vermelho-escuro. Olhei para trás e vi o meu perseguidor quase ao alcance de um braço, e senti todo o ar a sair-me dos pulmões. Percebi com horror de que aquilo que eu pensara ser uma estola de lobo não era sequer de lobo. As patas penduradas sobre o peito dele eram suficientemente normais, se bem que demasiado grandes. Mas a cabeça que lhe pendia pelo meio das costas tinha a pele rosada e um tufo de cabelo castanho-claro. Não olhei bem para ela, só tive vislumbres de debaixo do seu braço enquanto ele se esticava para mim, mas foi mais do que suficiente. Os meus olhos disseram-me o que a minha mente não queria acreditar. Ele tinha esfolado um lobisomem no meio da transformação, de modo a que o pelo cinzento escurecesse a pele humana à volta dos ombros. Tentei transportar-me dali, mas me sentia muito aturdida para conseguir concentrarme. Mordi o interior da minha bochecha com força, para me impedir de desmaiar e tentei ir


para o fosso da orquestra. Tinha esperança de encontrar uma saída oculta, mas um clarinetista empurrou-me para fora dali com força suficiente para me deixar estatelada. Deslizei para cima de botas pretas polidas que brilhavam na pouca luz. Uma mão agarroume pelo cabelo, usando-o como pega para me endireitar. Fitei uns olhos pretos que dançavam num fogo negro e esqueci-me da dor no couro cabeludo. — Respira a magia — disse o vampiro, com a voz espessa e um sotaque que não consegui identificar. — Não pensei que os ingleses tivessem a coragem de nos doar tão raro petisco. Os meus olhos fixaram-se na cabeça sem crânio que embatia de leve contra o seu flanco. Estava agora a menos de meio metro de distância e tinha a garganta bloqueada de horror. Conseguia vê-la na perfeição – as feições caídas, o cabelo baço, os globos oculares vazios – e a coisa flácida e inanimada assustava-me mais do que o vampiro que a ostentava. Se roçasse em mim, havia a possibilidade de eu ver parte da vida da criatura e, conhecendo o meu dom como conheço, seria sem dúvida a última parte. Afastei-me daquilo o máximo que consegui, sem querer saber qual era a sensação de se ser esfolado vivo, e o vampiro largou-me o cabelo e agarrou-me pelo cotovelo. O seu polegar acariciou-me a pele na dobra do meu braço de leve, mas senti-me como se um metal líquido lhe saísse da mão para dentro das minhas veias. Dor era uma descrição muito pobre do choque que reverberava através de mim, trazendo-me lágrimas aos olhos e cegando-me em relação a tudo o que estivesse fora do meu corpo. Passou para o meu pulso, com um movimento delicado, mas que derramou uma linha de sangue ao longo do meu braço como se o seu toque fosse uma faca. — Eles costumam tremer só de pensarem em alimentar-se de utilizadores de magia, têm demasiado medo da retaliação dos magos — disse ele, com desdém. — Tenho de me lembrar de agradecer ao nosso anfitrião — o pânico inundou meu organismo de adrenalina, mas eu não tinha para onde ir. Recuei, mesmo sabendo que era um esforço em vão e ele sorriu. — Agora, vamos ver se é tão boa quanto cheira. Uma mão quente desceu sobre o meu ombro e o sorriso dele esmoreceu. — Esta já está reinvidicada, Dmitri. Não precisei de me virar para saber quem tinha falado. O tom de voz suave era inconfundível, tal como o prazer que me percorria o braço, amainando a dor e reduzindo-a a um leve latejo. Um clarão de raiva atravessou o rosto de Dmitri. — Nesse caso, devia tê-la mantido contigo, Basarab. Conheces as regras. Uma capa cor de vinho caiu sobre mim, de um vermelho tão escuro que era quase preto.


— Talvez não me tenha ouvido — disse Mircea, num tom agradável. — Não é de estranhar, já que está tão perto dessa orquestra medonha. — Não sinto o teu cheiro nela — disse Dmitri, com desconfiança aberta. — O nosso anfitrião pediu para me ver pouco depois de eu ter chegado. Não me pareceu que ele fosse apreciar se eu levasse comigo mais um par de ouvidos — a jovialidade tinha desaparecido da voz de Mircea. Dmitri pareceu não perceber o aviso. Com os olhos fixos na pulsação rápida do meu pescoço, riu com desdém, exibindo caninos alongados. — Ela não sobreviverá para falar de nada que possa ouvir. Apertou-me mais, com os dedos a fazerem pressão sobre a minha carne com força suficiente para deixar nódoa negra. O corte no meu braço alargou-se, derramando uma torrente de sangue sobre a minha pele. — Isso sou eu que decido — a voz de Mircea era suave, mas extremamente fria. Envolveu-me a cintura com o braço, puxando-me para perto do seu corpo. Com a outra mão, apanhou o pulso de Dmitri. Branco como a cal da parede, o vampiro engoliu em seco, com a mão a produzir espasmos debaixo do aperto de Mircea. O poder faiscou no meio deles, transformando o ar à nossa volta numa neblina em chamas que parecia que ia consumir a minha pele se eu ficasse ali tempo suficiente. Permaneci na curva do braço de Mircea, precisando de toda a minha força só para impedir que os meus joelhos cedessem. O poder de Mircea aumentou, fazendo uma onda quente de energia percorrer-me o corpo. Mas Dmitri não pareceu achar a sensação tão agradável. Retraiu-se visivelmente, mas aguentou-se com obstinação, apertando com tanta força que me deixou a mão dormente. Os dois vampiros fitaram-se durante um longo minuto e depois Dmitri recuou de modo abrupto, agarrado o braço e a arfar, com olhos assassinos. Mircea segurou meu braço ferido, endireitou-o com um puxão e pegou-me na pele raiada de sangue. Inclinou a cabeça, com os olhos fixos no outro vampiro enquanto punha a língua de fora, deslizando ao longo do meu braço com lambidas determinadas e desafiadoras. Observei-o a lamber-me o sangue com espanto, incapaz de desviar o olhar da imagem daquela cabeça orgulhosa curvada sobre o meu pulso, maravilhada com a umidade quente da língua que me amaciava. Passado um momento, Mircea ergueu a cabeça e eu fitei o meu braço com incredulidade. Onde deveria haver feridas, havia apenas pele pálida e imaculada. Os olhos de Mircea nunca deixaram Dmitri. — Se desejar continuar a contestar isto, estou ao seu dispor. A boca de Dmitri reagiu por um instante, mas os seus olhos desviaram-se.


— Não iria afrontar o nosso anfitrião ao violar a sua hospitalidade — disse ele, com rigidez. Deu um passo atrás, com raiva em cada ponto do seu corpo. — Mas o seu abuso das regras será lembrado, Mircea! Assim que ele se afastou, a névoa vermelha à nossa volta dissipou-se como nevoeiro à luz do sol. A adrenalina que me mantivera de pé desapareceu de modo abrupto, deixandome fria e trémula e, se não fosse o braço de Mircea, eu teria caído de novo no chão. Alguns convidados ali perto, que tinham estado a observar com óbvia expectativa, viraram costas, desiludidos. Mircea puxou-me para trás devagar, para as sombras que forravam a parede. Ali perto, um casal de vampiros, uma morena escultural e um loiro, alimentavam-se de uma jovem. A vampira estava sentada numa cadeira encostada à parede, com o corpo da garota deitado ao seu colo enquanto lhe bebia da jugular. A cabeça da jovem estava tombada para trás, com madeixas soltas de cabelo a pender-lhe dos ombros, contrastando com o cor-derosa vivo do vestido da morena. O vampiro estava ajoelhado diante delas, com a sua indumentária longa e cor de safira a espalhar-se à sua volta como uma queda de água. Era previsível que fosse à procura de outro alvo. Ele soltou a túnica sedosa cor de ameixa da garota das presilhas ornamentadas de joias que tinha nos ombros, deixando-a deslizar lentamente pelas suas mãos. As pregas cintilantes escorregaram-lhe pelo corpo abaixo até se juntarem à volta dos seus quadris. Ela gemeu com suavidade, não sei dizer se de aflição ou incentivo. Ele apalpou devagar os flancos e a barriga por um momento, depois percorreu com a ponta do dedo as inchadas veias azuis do seu seio. A mão dela se ergueu até repousar no ombro dele, num tímido gesto de aceitação. Ele embalou a orbe pálida com ternura, roçando o polegar pelo mamilo numa leve carícia. A garota tremia visivelmente com o seu toque, mas quando a cabeça dele seguiu o movimento da sua mão, ela inclinou-se para ela. Passado um momento, deu um violento sacolejo quando as presas afiadas lhe morderam profundamente a carne branca. A boca da vampira puxou a garota para trás, arqueando o corpo numa curva perfeita e depois o vampiro puxou-a de novo de encontro a ele com mãos, lábios e dentes. Cada movimento fluía com suavidade para o próximo, construindo um ritmo hipnótico. O corpo jovem dela não tardou a estremecer de modo impotente sob a dupla sucção. A sua respiração surgia em curtos arquejos, enquanto era embalada entre sensações até implorar incoerentemente por mais. Engoli em seco. Era óbvio que os vampiros europeus não seguiam o método aprovado pelo Senado de retirar moléculas de sangue através da pele ou do ar. Talvez fosse da época, ou talvez simplesmente se regessem por normas diferentes. Os vampiros de Tony tinham se alimentado em público vezes suficientes para eu pensar que isso não me incomodava, mas o desses era um ato muito mais básico, sem as implicações sensuais. Se me dessem a escolher, acho que preferia a brutalidade crua deles. Preferia saber que a morte estava a aproximar-se, vê-la como o inimigo que era, do que recebê-la como um amante.


O vampiro tinha feito deslizar uma mão para debaixo do monte de tecido cor de ameixa e, passados segundos, a garota gritava de prazer. Mas ele não estava a olhar para ela; os seus olhos estavam fixos nos da morena e o olhar partilhado entre eles era tão quente que queimava. A alimentação era um ato de intimidade para os vampiros e eles nunca partilhavam um corpo de ânimo leve. A garota parecia abstraída, ou então já tinha deixado de se importar. Os seus quadris projetavam-se para cima, um gesto acompanhado de um gemido sonoro o suficiente para ganhar alguns olhares divertidos de quem por ali estava. Com o choque a distrair-me ligeiramente do espanto, desviei o olhar. Pus-me a pensar se a garota tinha a noção de que era um mero conduto para a paixão de outros. Indaguei-me sobre se iria ter com a morte a sorrir, ou se drenar os refrescos até ficarem secos seria considerado mau gosto. Acima de tudo, indaguei-me sobre se seria assim que Mircea me via. Um mero conduto – no meu caso, para o poder. Uns lábios quentes encontraram o meu pescoço. — Esta noite, os únicos humanos que aqui estão são para entretenimento e alimento — murmurou, com um sussurro rouco na escuridão. — Qual deles é você? A respiração dele na minha nuca e nos meus ombros foi o suficiente para me acelerar a pulsação, para me enrijecer o corpo. Inalou o meu cheiro de maneira profunda e eu estremeci, apanhada entre o medo e o desejo. O géis não queria saber que este não era o Mircea que eu conhecia, que este era um vampiro mestre que não tinha nenhum motivo para me proteger. Não compreendia que ele estava apenas interessado em satisfazer a sua curiosidade em relação ao que acontecera no teatro. Não lhe interessava saber que ele poderia estar com fome. — Estou aqui para te avisar que corre perigo — até a mim aquilo me soou brega, mas havia tantas coisas que eu não podia contar, que isto era quase tudo o que me restava. — Sim, eu sei. Dmitri está atento. E ele não liberta uma presa com facilidade. Teremos de ser convincentes, não é verdade? Vi o clarão de calor nos seus olhos um segundo antes de uma mão deslizar atrás da minha cabeça e de uma boca quente descer sobre a minha. Eu estava à espera de paixão, mas não da vaga de alívio arrebatador que me preencheu e transbordou numa alegria estranha e tranquila. Senti-me como se tivesse estado prendendo a respiração durante muito tempo e agora me fosse finalmente permitido respirar. As minhas mãos enrolaram-se de modo reflexo no local onde repousavam no peito dele e, por um longo momento, fiquei imóvel, deixando-me ser beijada. Depois a minha mão deixou o seu ombro e desceu pelo flanco do seu tronco até à saliência quente e lisa do quadril de Mircea. Não pretendia ser uma carícia, mas de alguma forma acabou por ser. Uma ampla palma da mão contornou a minha cintura, uma língua quente deslizou entre os meus lábios e o géis acordou autenticamente. Era a diferença entre um fósforo isolado e uma grande fogueira.


Inalei um arquejo palpitante e empurrei-o para baixo. O fogo reuniu-se naquele beijo, congregado no meio dos nossos corpos e derramado sobre a nossa pele, lançando uma saraivada de faíscas através de mim. Foi melhor do que eu pensava que iria ser: resistente, forte, quente e feroz. As minhas mãos pareciam existir apenas para se emaranharem naquele cabelo negro e volumoso e a minha boca para saborear aquela língua macia. Uns braços poderosos puxaram-me para cima e ele encostou-me à parede; depois devorámo-nos mutuamente com uma fome tremente e desesperada. O braço dele apertoume a cintura, as pernas mudaram de posição para arranjar espaço para as minhas, atraindo a minha coxa para o meio das colunas quentes e musculosas da dele. Ansiei senti-lo dentro de mim e, tal como a garota, de repente deixei de me importar com o que me rodeava, ou com os ruídos desesperados que fazia. Eu desejava-o com uma ânsia que ameaçava devorar. O beijo foi por fim interrompido por eu ter ficado com falta de ar e comprimi o rosto contra o peito de Mircea, ofegando. Fui envolvida pelo aroma a pinho que sempre se desprendia dele – era quase como se conseguisse ver a floresta verdejante e profunda, espalhada debaixo de um céu de fim de tarde. Inalei contra o calor do corpo dele e senti-me fraca. A única coisa que me mantinha em pé era a sua força, que me escorava à parede, pressionando-me de perto contra ele. Mircea afastou-se passado um momento, parecendo ele próprio um pouco abalado e eu consegui, de alguma forma, sentir as pernas. — Parece ter uma série de talentos, bruxinha. Qualquer resposta que eu pudesse ter dado ficou-me presa na garganta quando reparei no que ele tinha vestido. A roupa que tinha no teatro já me parecera um pouco excêntrica, mas isto era de fato um exagero. As minhas mãos afundaram-se num casaco cor de vinho, volumoso o suficiente para fazer de capa. Era feito de uma lã rica e pesada com uma textura sedosa, orlado por uma faixa espessa bordada a ouro. Caía-lhe um pouco abaixo dos joelhos, roçando a parte de cima das botas castanho-escuro. A indumentária exterior abria-se para revelar uma fina veste interior castanha dourada, tão macia que só podia ser de caxemira. Era larga, mas leve o suficiente para se prender ao seu corpo, delineando os músculos bem definidos do seu peito, a cintura longa, os quadris estreitos e o peso volumoso do seu sexo. Depreendi que fosse um traje tradicional romeno para a nobreza e, por mais estranho que pareça, ficava-lhe bem. Mas duvidava que ele o tivesse escolhido por uma questão de moda. Mircea preferia as roupas simples que se evidenciavam pelo soberbo trabalho de alfaiataria. Nesta noite estava a assumir uma posição, sendo o traje um lembrete muito mais pujante da sua linhagem do que o fora a indumentária que tinha usado no teatro. Os dragões no colete eram quase invisíveis – embora eu supusesse que a visão vampírica os distinguisse com uma certa facilidade –, uma referência sutil ao símbolo da sua família. Se na altura sussurrou um lembrete do seu status, a atual indumentária bradava-o. Pusme a pensar a quem se destinaria a mensagem e por que razão precisaria tanto transmiti-la a ponto de andar por aí vestido como um chefe bárbaro. A impressão foi reforçada pela


espada que pendia de um cinturão ornamentado com joias que trazia à cintura. O ouro e os rubis reluziam de modo indistinto na luz ténue, pesados e obviamente antigos, como uma coisa saída do tesouro de um cruzado. O que talvez fosse. Eu nunca tinha visto Mircea com uma arma – quando se é vampiro mestre, é um bocadinho redundante – e isso deixou-me espantada. — Está armado. — Com esta companhia, certamente — movimentou-se atrás de mim, deixando o meu corpo à vista da sala e um braço deslizou em torno da minha cintura, puxando-me bem para si. Enquanto me beijava o ombro, um cabelo sedoso, mais comprido do que o meu, caía sobre a minha garganta, mas não era esse o seu destino. Ergueu-me o braço e pô-lo à volta do seu pescoço num abraço virado para trás e as alfinetadas das presas entalharam-me a pele. Estava mesmo sobre a artéria do meu braço, mas não estava a alimentar-se – eu teria sentido a drenagem da energia, mesmo que ele não me perfurasse a pele. Mas é provável que parecesse convincente. Isso também o deixou numa posição perfeita para sussurrar ao meu ouvido, com uma voz grave e perigosa. — O que me preocupa é que você afirma ser meramente humana, mas não o é. Ou é muito tola ou... É mais do que aparenta. Que assunto urgente te traz aqui esta noite? O géis estava gostando da respiração sedosa de Mircea contra a minha face. O meu corpo transbordava de uma doçura derretida a ponto de eu mal conseguir respirar, quanto mais falar. E que haveria eu de lhe dizer? Havia um problema, caso contrário eu não estaria aqui, mas não fazia ideia do que era. E, com esta companhia, era mais do que absurdo pensar que eu poderia ter algum efeito em alguma coisa. Começava a duvidar seriamente de que o meu poder soubesse o que estava a fazer. — Estragaste-me a peça — sussurrou Mircea. — Não consegui parar de pensar em ti. Só conseguia ver aquele corpo adorável aberto para mim... No meu camarote... Na minha carruagem... Na minha cama — puxou-me para me virar de frente para ele e a sua boca tornou a cobrir a minha, deixando-nos levar. O beijo foi mais rude e mais doce ao mesmo tempo, ameaçando arrebatar-me com a insensatez do prazer. Eu não seria mais capaz de me libertar do que de lutar contra a sala inteira e ganhar. Mircea acabou por afastar-se, de olhos reluzentes e faces ruborizadas. — Por que quero tanto tocar-te? — a voz tornou-se áspera. — O que me fez? Achei que aquela devia ser a minha deixa. — Estou aqui para ajudar — disse-lhe eu, trémula. — Corre perigo. Os dedos dele tocaram a curvatura do meu rosto, de modo lento, terno, como se estivesse a tocar algo muito mais íntimo. Passei a língua pelos lábios e os olhos de Mircea caíram para a minha boca.


— Eu vi isso! — Mircea! Estou falando sério! — Então já nos tratamos pelo nome próprio. Ainda bem, detesto formalidades — enquanto ele falava, o géis exercia sobre mim uma ânsia persistente e por cumprir. Senti o poder dos ombros dele sob as minhas mãos e a sua firmeza masculina no meu quadril. Foi preciso um controle incrível para não deixar que o meu corpo se arqueasse contra o dele, implorando em silêncio para ser possuído. — Já que sabe o meu, acha que posso saber o seu nome? Quase lhe disse; tal era o estado em que estava. Um pequeno rasgo de razão falou mais alto no último instante, bradando um aviso, e eu mordi a língua para bloquear as palavras. A dor trouxe-me de volta à sanidade, aos compassos de uma valsa e ao zumbido das conversas. Olhei em volta, mas tudo o que consegui ver para lá da orquestra foi uma escuridão tremeluzente ponteada pelas chamas das velas. O teto alto desaparecia na sombra, sendo os únicos pontos brilhantes alguns clarões no local onde a luz das velas se derramava sobre um lustroso lascado em murais batidos. Ali perto, os dois vampiros tinham terminado a refeição e, por incrível que pareça, a garota ainda estava viva. O vampiro estava a dar-lhe algo para beber de um cantil, que ela aceitou sem hesitação. Por esta altura, é provável que se atirasse de cabeça do telhado se ele lhe pedisse. Alguma coisa no meio disto tudo estava o problema para cuja resolução eu tinha sido enviada e eu tinha de concentrar-me, se queria ter alguma esperança de encontrá-lo. — Pode ser que o alvo seja a mulher, aquela que estava contigo no teatro — disse eu a Mircea. — Ela está aqui? — seria preferível tê-los aos dois juntos, embora eu não fizesse ideia do que deveria fazer se outro mestre os atacasse. Uma daquelas sobrancelhas escuras ergueu-se num gesto muito familiar. — Por que haveria de dizer-te? Sei o que você é. Tento ter uma mente aberta em relação a estas coisas, pelo menos quando a feiticeira é jovem, bonita e tem a gentileza de usar tão pouca roupa — percorreu-me a espinha com um único dedo, dançando de leve ao longo das vértebras. — E cada vez que nos encontramos, tem menos, aplaudo essa moda — as palavras dele eram ligeiras, mas os seus olhos estavam fixos no meu rosto de modo intenso. — Mas, por mais perturbadora que a Augusta possa ser por vezes, a sua morte seria muito mais. — Então me ajuda a impedi-la! — Mas estás aqui para impedi-la? Você salvou um homem que ia nos dar veneno... — Foi outra pessoa que o pôs lá! Ele estava tentando tirá-lo! — E nem sequer me diz o seu nome, mas pede a minha confiança.


— Se acha que eu sou o inimigo, por que me salvou? Por que não deixou Dmitri fazer o pior? A boca de Mircea curvou-se num sorriso predador. — Uma demonstração de força costuma ser útil nestas ocasiões e eu não me preocupo com o homem. Os gostos de Dmitri são bem conhecidos e eu considero-os... Desagradáveis. Privá-lo de um prêmio não custou nada — a mão dele amaciou o arco das minhas costas e a minha coluna derreteu. — Agora, bruxinha, vai dizer-me o que faz aqui e explicar-me algumas ocorrências muito curiosas no teatro há duas noites. Olhei-o fixamente, com a mente em branco. Era impossível contar a verdade, se eu tivesse alguma esperança de não interferir com a linha temporal mais do que já tinha feito, mas ele haveria de sentir o cheiro da mentira antes de eu acabar de proferir as palavras. Havia apenas uma possibilidade que podia dar resultado. — Leva-me até à Augusta e eu penso nisso — quando ele hesitou, dei uma gargalhada forçada. — O grande Mircea com medo de uma garota desarmada! Os seus lábios viraram-se para cima num lento sorriso de alegria. Passado um momento, a sua expressão transformou-se num verdadeiro sorriso, que o fez parecer anos mais novo. Levantou-me a mão e beijou-me a palma da mão. — Tens razão. O que é a vida sem o sabor do perigo? — aconchegou o meu braço debaixo do dele. — Anda, vamos lá ver que conclusões é que a Augusta tira de você. Apesar de o salão de baile estar lotado, Augusta não foi difícil de encontrar. Ela e outra vampira, uma morena baixinha, tinham requisitado um lugar do outro lado da sala e tinham aberto um espaço no chão. Uma multidão aglomerara-se à volta delas, rindo e dando gritos de incentivo, embora eu não conseguisse ver qual era a atração. As duas vampiras pareciam estar meramente paradas no meio do círculo. Paramos junto ao vampiro de toga. — Sua Augusta está tornando-se muito popular — observou ele. Mircea parecia em pânico. — Ela não é minha Augusta — murmurou, e o vampiro riu. Anteriormente, parecera um homem simples, com um cabelo castanho e revolto que parecia ser cortado no barbeiro de Pritkin. Mas a gargalhada alterou seu rosto por completo, acrescentando animação aos olhos cor de uísque e encanto à expressão. Quando ria, era atraente. — Não é isso que ela diz. — Como devia saber melhor do que ninguém, Cônsul, há mulheres que têm tendência para o exagero... E para os ataques de mau humor.


— As mais apaixonadas — concordou ele. — Embora muitas vezes valham o trabalho que dão. Por falar em víboras apaixonadas, como vai a sua, Cônsul? — Vai bem. Estava a estranhar que ainda não tivesse perguntado. — As suas notícias afastaram todo o resto da minha mente. Devo dizer-lhe isso? — deu outro riso abafado. — Só se desejar instigar uma guerra, meu amigo — o vampiro nem sequer tinha olhado de relance para mim, fato que eu depreendera dever-se ao meu estatuto de petisco de festa. Mas, de repente, os seus olhos deslizaram na minha direção. — E esta, quem é? Está a começar uma coleção de loiras refinadas, Mircea? O Cônsul sorriu, mas não abertamente. A mão de Mircea apertou-se por uma fração de segundo. — Não temos permissão para trazer convidados, Cônsul? — Convidados, sim. Desde que sejam um de nós, ou então humanos — inclinou-me o queixo para cima com um dedo. Algo mudou sob os seus olhos, um assassino à espreita por detrás da máscara jovial. — Muito bonita. E muito poderosa. Responderás pelos atos dela, claro. Mircea fez uma ligeira reverência e o Cônsul partiu para ir tratar da sala, tagarelando e conversando, de volta ao caráter encantador num abrir e fechar de olhos. Reprimi um tremor. — Parece que aqui não gostam de utilizadores de magia — disse eu, com debilidade. — Eles podem complicar as coisas. Os nossos precisam que sejam tomadas precauções diferentes. — Nesse caso, surpreende-me que ele me deixasse ficar. — Apanhaste-o de bom humor. Eu e a Augusta resolvemos-lhe um problema recentemente. — Não tenho intensão de causar problemas — assegurei-lhe com fervor. Mircea limitou-se a olhar para mim, com um trejeito irônico nos lábios. — Não tenho! — Por que haveria eu de duvidar de você? Só porque da primeira vez que nos encontramos quase fui envenenado e da segunda estive muito perto de um duelo? — o sorriso dele alargou-se. — Por sorte, os problemas não me incomodam. Se, como diz o Cônsul, a recompensa valer a pena.


Eu não sabia o que responder àquilo, por isso pusemo-nos a observar as mulheres por um momento. Continuava sem entender o que elas estavam a fazer, possivelmente por estarem de costas para nós. A morena estava vestida de azul-claro, com a cor gélida adornada com rendas em demasia, mas Augusta tinha um espetacular vestido de cetim cor de champanhe decotado nos ombros com uma cauda de brocado dourada e bege. Eu podia não gostar dela, mas não havia dúvidas de que sabia vestir-se. As saias rodadas bloquearamme a visão por um momento; depois, algo saiu de rompante do meio delas, dirigindo-se diretamente a mim. — Oh não! Ele soltou-se! — a voz de Augusta retiniu pela sala, trêmula de riso. Uma criatura nua de olhar tresloucado esgaravatava com as mãos e os joelhos em busca da beira do círculo, deixando um rastro de gotículas atrás de si. Contra o fundo verde-escuro, tinham um aspecto preto e oleoso. Mesmo antes de conseguir chegar a mim, algo lhe puxou a cabeça para trás, deixando-o a contorcer-se virado de lado. Augusta levava uma trela na mão enquanto se caminhava para ele e uma das pontas estava enlaçada à volta do seu pescoço. Ele ficou deitado de costas, a tremer de terror, quando ela se deteve por cima dele. — Levanta-te — disse ela, com impaciência, dando puxões na trela. Isso o obrigou a erguer o queixo dando-me um vislumbre do seu rosto no meio de um emaranhado de cabelo preto oleoso. A boca dele moveu-se de dor, depois se comprimiu num grito de raiva, deformando suas feições a ponto de deixá-las irreconhecíveis. Mas eu conhecia aqueles olhos negros de escaravelho. Já os tinha visto em mais do que uns poucos pesadelos. — Jack — sussurrei, e ele fitou-me sem pensar. — O que foi? — gritou a morena. — Pensei que gostasse de brincar com mulheres! — Acho que ele prefere as indefesas — disse Augusta, fazendo descer as unhas compridas pelo peito dele, com força suficiente para lhe deixar marcas vermelhas no meio dos pelos esparsos. — Chamam-te o Estripador, não é? — sussurrou ela. — Quando eu te largar, vais merecer o nome de verdade. O homem enrolou-se numa bola numa tentativa vã de se proteger daquelas unhas afiadas como punhais e eu ofeguei quando vi as costas dele. Tinham sido laceradas até a pele pender em tiras, o pouco que restava dela. Mircea também reparou. — Se não o deixar em paz em breve, Augusta, ele vai morrer e estragar-te a diversão — observou, num tom brando. Ela riu. — Oh, não me parece — disse ela, com um olhar recatado.


Mircea franziu o cenho e ajoelhou-se ao lado do homem. Ele só ergueu os olhos passado um momento. — Transformaste aquele louco num de nós? — perguntou ele, incrédulo. Augusta encolheu os ombros. — Me livre dele quando terminar, ou podes livrar-se você, se quiser, por todos os problemas que te causou. Mas terás de esperar — ela tocou ao de leve no rosto de Jack, num gesto quase terno e ele deu um grito desesperado e enfraquecido. Percebi com aversão e repulsa de que ela lhe tinha enfiado uma daquelas unhas compridas no globo ocular direito. — Eu gosto deste. Grita tão bem. Mircea sacudiu a mão de Jack, que lhe tinha agarrado na bainha das calças numa súplica silenciosa e Augusta arrastou-lhe as costas cativas de volta ao centro do espaço. O melhor era exibi-lo, supus. Mircea olhou de relance para mim enquanto eu me esforçava por não mostrar nenhuma emoção. — Como é que sabia quem ele era? Augusta só o revelou esta noite. — Ouvi um rumor — inventei, depois de engolir com força em seco. — Como é que o encontraram? — Ele nos encontrou. Andávamos à procura de outra pessoa — Jack gritou quando a morena lhe esmagou a virilha com o salto e eu não consegui deixar de estremecer. — Ela vai fartar-se dele num instante, assim que ele quebrar — disse Mircea. Não comentei. Em breve iriam descobrir que é difícil quebrar uma mente já fraturada. A minha atenção foi desviada de Jack pela visão de duas figuras espectrais. Tinham saído do meio dos espetadores reunidos e ido para o próprio círculo, invisíveis à multidão. Uma era a intrigante criatura que vi há pouco, ainda um borrão indistinto; a outra era Myra. Fiquei paralisada. À beira do círculo estava o principal incômodo da minha vida em toda a sua glória espiritual. Era fácil reconhecê-la, já que, da única vez que nós tínhamos encontrado, ela também estava sob a forma espiritual. Mal podia acreditar nos meus olhos, sobretudo porque ela parecia mais saudável do que antes de eu a esfaquear. O seu cabelo claro, que havia pendido em madeixas escorridas e mal lavadas da única outra vez que nos encontráramos, estava penteado e brilhante. Tinha o rosto pálido, mas parecia ter ganhado uns quilos muito necessários. Como diabo teria recuperado tão depressa? — O que faz aqui? — inquiri. Mircea pensou que eu estivesse a falar com ele. —Você queria ver Augusta. Aqui está ela, sã e salva.


— Venho endireitar um mal — a voz de Myra era aguda e doce, como a de uma criança. Não condizia com a sua expressão e se o olhar matasse, eu já não estaria no caminho dela. — Não foi para isso que fomos treinadas? — ficou perto da morena, não se aproximando mais. Eu não sabia bem se era porque Augusta também estava lá, ou porque o corpo da morena lhe oferecia proteção contra as minhas espadas. Soltei a mão da capa de Mircea, pelo sim, pelo não, mas ele pegou-me no pulso. — É um belo berloque esse que está usando, mas não te aconselho a lançar nada letal contra Augusta. Podes ver o que ela faz aos que são tolos o suficiente para a atacarem. Ignorei-o. — Qual mal? — Oh, esqueci-me — acrescentou Myra, com doçura. — Você não foi treinada, foi? Que pena. Aquela voz de lengalenga estava mesmo a começar a enervar-me. — Isso não é um jogo, Myra. — Não — concordou ela. — É um concurso, com prêmios muito altos. Os mais altos, pode-se dizer. — O que isso quer dizer? Mircea seguiu a linha do meu olhar, mas como é óbvio, não viu nada. — Com quem é que está falando? — Quer dizer que não serve para ser Pítia — olhou para mim com uns olhos de um azul tão pálido que era quase branco. Parti do princípio de que não eram assim tão claros quando ela estava no seu corpo, mas naquele momento eram arrepiantes. — Agnes estava velha e perigosamente instável quando te nomeou. Se a decisão dela tivesse passado pelo habitual processo de revisão, teria sido expulsa com gargalhadas. Mas ela saltou isso tudo, não foi? Agiu nas costas de todo mundo e enganou um sistema que já existe há milhares de anos. Eu estou aqui para corrigir isso. — Matando-me? — Nada assim tão grosseiro. Deixa-me que te dê uma pequena lição, a tua primeira e última ao mesmo tempo — disse ela, com prazer. — Qualquer ser que viaje num tempo linear é definido pelo seu passado. Se lhe tirarmos esse passado, ou o alterarmos, redefinimos esse ser — sorriu, mas com acidez. — Ou acabamos de vez com ele. — Eu sei que sim — o que eu não entendia era porque ela ali estava, naquela era. Se Augusta tinha acabado de transformar Jack, estávamos, ao que parece, em de 1880. Se Myra


queria alterar o meu passado, estava um bocadinho adiantada. — Pretendes chegar a algum lugar? — O que se passa? — inquiriu Mircea, olhando para frente e para trás, para vampiros e para mim, como se percebesse que lhe estava a escapar alguma coisa. — Se pretendo chegar a algum lugar? — repetiu Myra. — Credo, você é lerda. Conheço iniciadas no primeiro ano que percebem as coisas mais depressa! Olhou de relance para Mircea e eu fiquei tensa. A expressão dela não me agradou nada. — Se quer me matar, por que atacá-lo? — Ainda não percebe a relação causa efeito, hum? — a voz dela revelava um espanto genuíno. — Deixa-me que te explique. Mircea protegeu-te durante quase toda a sua vida. Por que acha que o Antônio nunca perdeu as estribeiras e te matou? Por que te recebeu de volta de braços abertos depois de teres fugido? Se Mircea desaparecer, a proteção dele desaparece. E isso significa que você morre muito antes de se tornar um problema para mim. A criatura espectral atrás de Myra sacolejou-se ligeiramente, como se lhe agradasse tanto como a mim esta informação. Moveu aqueles olhos enormes para frente e para trás entre nós duas, com a cor a mudar de um matiz prateado para um roxo escuro. Estranhas ondulações começaram à volta dos limites da sua forma diáfana e, sem aviso prévio, ela transformou-se. O rosto pálido e quase sem feições ganhou uma boca cheia de presas de aspecto mortífero e os olhos inundaram-se de um vermelho-escuro, como sangue ressequido. Fitei-a em choque, mas Myra pareceu nem dar por isso. Ou talvez pensasse que eu estava a fazer caretas. — E Agnes tornou-se um problema para você — inquiri. Estava a partir do princípio de que Myra era a mulher do teatro que envenenara o vinho de Mircea. Eu não sabia como é que ela tinha recuperado tão depressa, mas se estava ali, também podia ter estado lá. E a verdade é que não havia assim muitas outras candidatas. Eu não poderia saber se o veneno que ela usara era do mesmo tipo do que tinha matado Agnes, mas a semelhança de método era interessante. — Foi por isso que a matou? Myra riu como se eu tivesse dito algo genuinamente engraçado. — Isso é contra as regras, sabia? — perguntou. Depois adentrou o corpo da morena e desapareceu. Mircea agarrou-me nos braços. — Está doida? — A morena — ofeguei. Não disse mais nada, porque a vampira que Myra tinha possuído lançou-se de repente a Mircea. Ele agarrou-a pela garganta antes que eu tivesse


chance de pestanejar, segurando-a longe de si. Ela contorceu-se e lutou, mas não conseguiu esticar-se o suficiente. Não que isso tivesse feito alguma diferença. Ao que parece, para Myra, um vampiro era um vampiro. Não compreendia que a morena era uma criança em comparação com Mircea e que ele poderia acabar facilmente com ela. Mas ela aprendia depressa. Em menos de um minuto, Myra saiu disparada da mulher, desaparecendo no meio da multidão. A morena desfaleceu, aos soluços, apertando os pés de Mircea e implorandolhe perdão de modo quase incoerente. — Ela estava possuída, não sabia o que estava fazendo — disse eu. Ele pôs de pé a vampira histérica e olhou para mim por cima da cabeça dela, com o rosto escurecendo de raiva. — Os vampiros não podem ser possuídos! Pensei em Casanova, mas decidi não contra argumentar. — Pela maioria das coisas, não — concordei, com os olhos postos na multidão, que aumentara devido ao advento de violência. Eu já tinha invadido um vampiro, um mestre de primeiro nível. A diferença é que o tinha feito por acaso, sem conhecer essa faceta do meu poder e quase morri de susto. A ele também não lhe fizera grande bem. Mas era óbvio que Myra conseguia fazer aquilo quando queria e havia uma sala cheia de vampiros por onde escolher. — O que se passa aí? — Mircea empurrou a vampira aos soluços na direção de Augusta – a mestre dela, supus – e começou ele próprio a analisar a multidão, a observá-la com aqueles velozes olhos negros, sem dúvida a memorizar os rostos. Só é triste que esse tipo de coisa não ajude. Eu não precisei responder, porque uma mulher que podia ter saído diretamente de Versalhes, vestida com uma saia armada bege e um toucado de mais de meio metro, saiu disparada do meio da multidão. Não se dirigiu direito para Mircea, como eu esperava, mas cambaleou de modo embriagado pelo círculo, caindo de lado sobre Jack, que estava enrolado de lado, tentando desaparecer nas sombras. Tombaram numa massa emaranhada, despidos, com pernas imundas entrelaçadas em cetim bordado, até que Augusta puxou a trela dele e o afastou. A vampira não se levantou, ficando no meio do chão, com os membros sovados, a cabeça a girar, os olhos brancos. Parecia que estava a combater a possessão, tentando expulsar Myra. Se conseguisse, seria uma grande ajuda. As minhas facas tanto conseguiam rasgar carne como espírito, mas eu não podia correr o risco de atacar quando Myra estava encoberta no corpo de alguém. As suas marionetes podiam não merecer uma morte prematura, para não falar no que isso faria à linha temporal. Vários vampiros começaram a dirigir-se à mulher, com um ar preocupado e eu agarrei o braço de Mircea.


— Faça-os recuar! Eu consigo travar isto se tiver um bom ângulo de visão. — Não! Não vais matar a hospedeira só porque... — Nem vou tocar na hospedeira — disse eu, enquanto a mulher gritava. — Assim que o espírito perceber que não consegue controlá-la, sairá. E quando sair... Parei, mas tarde demais. Normalmente, Myra não teria conseguido ouvir um comentário sussurrado a metros de distância, mas num corpo de vampira, também ela tinha audição de vampira. A cabeça da mulher ergueu-se, deu-me um sorriso, fez uma careta e depois deixou-se cair. Uma das mulheres que tinham estado a tentar ajudá-la lançou-se de repente de volta ao seio da multidão, sem dúvida com uma passageira a bordo. Raios! Procurei pela nova hospedeira na multidão, mas quando finalmente a avistei, ela tinha desmaiado nos braços de um jovem vampiro. Myra estava brincando. — Vigia as mulheres — disse eu a Mircea, na esperança de que Myra ouvisse. Até então, só tinha estado em mulheres, possivelmente por não gostar mais do que eu de invadir um corpo masculino. E quem estava mais próximo de Mircea eram mulheres. Se Myra me ouvisse e mudasse para os homens, ele teria pelo menos um aviso de uma fração de segundo antes de ser atacado de novo. Continuei a perscrutar a multidão de vampiros, que sussurravam entre eles, mas não mostravam sinais de dispersar. Na verdade, a cada minuto se acercavam mais, vindos de todo o salão de baile, à medida que se apercebiam onde estava o entretenimento. E quantos mais se aglomeravam à nossa volta, mais difícil se tornava prever a partir de onde iria Myra atacar a seguir. O medo subiu-me pela espinha acima. Só conseguia ver aquele anel de rostos, que esperavam com sofreguidão ver alguém a sangrar, algo a morrer. Um vampiro, que usava um Albornoz verde-vivo, caiu no chão. Levantou-se num instante, olhando em volta com um ar ameaçador, as presas muito brancas sobre a pele escura. Foi então que vi movimento na direção do centro do círculo e captei um olhar de ódio no rosto de Augusta, que tinha os olhos azuis reduzidos a pepitas gélidas. O jovem tinha servido para desviar as atenções. Apertei o braço de Mircea e apontei. — Não é ele! Ela está na Augusta! Um murmúrio percorreu a multidão, todo mundo sabia que havia algo de errado, mas ninguém queria interferir. Estávamos na Europa e tanto Mircea como Augusta eram membros do Senado norte-americano. Se quisessem matar-se um ao outro, era lá com eles. Ninguém iria levantar um dedo para impedir ou ajudar. — Não podes matá-la — disse. — Limita-te a... Incapacitá-la, ou coisa parecida — era o suficiente para obrigar Myra a sair e confrontar-me. Augusta agarrou num enorme castiçal de ferro do tamanho de um cabide que estivera a iluminar a zona. Içou-o como se fosse feito


de papel e eu percebi uma falha no meu plano. Se ela era membro do Senado, tinha de ser mestre de primeiro nível. Tal como Mircea. Augusta dirigiu-se a nós, brandindo o castiçal ardente e Mircea tirou-me da frente com um rodopio. Passou disparada por nós, mas virou-se de repente e voltou para mais, dando golpes com o candelabro como se fosse uma espada muito comprida. Faíscas voaram por todo o lado e o inferno andou à solta pela multidão. Os vampiros têm um medo de morte do fogo e, da maneira como ela o balançava, este podia bater em alguém. Houve uma correria louca para a porta. Augusta desferiu outro golpe, Mircea esquivou-se e uma figura sombria separou-se da multidão, dirigindo-se a ele com uma mão esticada. Mircea não o tinha visto, mas sentiu-o quando a estaca o atingiu no flanco. Eu gritei e Dmitri ergueu os olhos por um instante, com um sorriso malicioso; depois a expressão gelou no rosto. Vi uma lâmina a sair-lhe do peito numa posição perfeita para lhe ter trespassado o coração e o punho da espada na mão de Mircea. Dmitri olhou para ela com um olhar incrédulo e deixou-se cair, com espasmos violentos no corpo. Mircea ajoelhou-se sobre um joelho, com a mão ao lado e eu percebi que a coisa era má. A lâmina de Mircea era de metal – o que significava que Dmitri acabaria por sarar. Mas a estaca que Mircea arrancou do seu flanco era de madeira. Quando a vi, o meu mundo obscureceu. Tentei convencer-me de que, mesmo que lhe tivesse atingido o coração, só isso não mataria um mestre de primeiro nível. Mas isso não me servia de grande consolo, com Augusta por perto para terminar o trabalho. Ela tinha parado com o ataque, com a surpresa gravada no rosto por Mircea ter tombado. Mas recuperou quase de imediato, correndo em frente para arrancar a lâmina ensanguentada do peito de Dmitri. Olhou para mim e riu. — Nem sequer vai tornar isto um desafio? Virou-se de novo para Mircea e eu nem sequer hesitei. Matar Augusta iria alterar o tempo de forma dramática, mas isso também aconteceria se deixasse Mircea morrer. Nunca me sentira tão assustada como quando vi o sangue a escorrer do flanco de Mircea, não tendo poder para travá-lo. Não iria ficar também a ver tirarem-lhe a cabeça. As minhas facas saltaram da pulseira e voaram na direção de Augusta. Com a agilidade de vampira, foi capaz de levantar o castiçal a tempo de se escudar, mas enquanto isso, deixou cair uma vela. Esta aterrou em seu ombro antes de ressaltar para o chão, fazendo com que uma faísca apanhasse o corpete do seu vestido e deflagrasse numa chama minúscula, menor do que a de um fósforo. Um humano teria apagado com os dedos sem problema, mas Augusta começou a gritar e a contorcer-se como uma vítima de afogamento a ir ao fundo pela última vez. Aparentemente, o terror ao fogo foi o suficiente para se sobrepor ao controle de Myra, porque Augusta logo se esqueceu por completo do ataque. Mircea tentou que ela ficasse quieta, para ele poder abafar as chamas com o seu lenço, mas ela não quis saber. Escorregou


numa poça de sangue de Jack e acabou de bunda elegante no chão e eu tive de sair dali com um salto para ela não vir a rebolar mesmo para cima de mim. — Augusta! Não se mexa! — bradou Mircea, mas Augusta não estava ouvindo. Em vez de apagar a chama, o fato de ter andado a rebolar tinha alimentado o oxigênio, fazendo uma fagulha saltar para um dos longos caracóis que lhe emolduravam o rosto. Os seus gritos tornaram-se guinchos e ela arrancou os elegantes caracóis e arremessou-os pelo ar. Assim se explicou o fato de a sua cabeça não se ter incendiado como um fogo ateado por gasolina, metade da cabeleira dourada era falsa e provavelmente feita de cabelo humano. Myra saiu dela, abandonando o barco agora que já não conseguia controlá-lo. Abanei os braços e gritei com frenesi às minhas facas, que tinham na mira a aterrorizada Augusta. — Não! Ela não! Apanhem Myra! — ou não me ouviram, ou estavam a divertir-se demais para obedecer. A criatura em espírito era mais obstinada. Mergulhou através de Myra, tão insubstancial como uma aragem de vento, mas cambaleou para trás, esgaravatando o peito aos gritos. Passado um segundo de espanto, percebi de que lhe tinha acontecido o equivalente espiritual a um assalto. O espírito emergiu das suas costas, de tal maneira transbordante de energia roubada que ofuscava de tão prateado, fazendo com que olhar para ele fosse como fitar um holofote. Pestanejei e, quando olhei de novo, o espírito tinha se desvanecido. Myra deixou-se cair de joelhos, quase transparente, sem a energia que deveria ter lhe permitido permanecer ali durante horas. Lançou-me um furioso olhar azul. — Não faz mal. Não podes guardá-lo a toda a hora. Ela transportou-se dali no exato momento em que Augusta se pôs de pé e se inclinou para cima de Mircea, gritando e esgaravatando como se culpasse a ele do perigo. Atirei-lhe a capa e ele embrulhou-a para abafar as chamas, no preciso instante em que eu senti o puxão do meu poder. — Conta, bruxinha — ofegou ele, segurando com óbvia dificuldade a vampira que se debatia. — O que acontece quando está tentando causar problemas? Uma onda de tontura e náusea invadiu-me e eu senti-me a cair. Estatelei-me de cabeça na cama desdobrável de Mac, onde Billy Joe estivera a jogar um jogo de paciências, com as cartas espalhadas por todo o lado. — Desisto — disse eu, com fraqueza, e desmaiei.


í Estive abraçando a porcelana no banheiro durante a meia hora que se seguiu. Assim que o poder recuou, fui aniquilada e fiquei com uma dor de cabeça tão intensa que senti náuseas. Com a minha sorte habitual, Mac decidiu ver como eu estava e deu comigo verde e a tremer depois de ter regressado. Saiu para ir buscar qualquer coisa para comer, ao que parece partindo do princípio de que o meu problema era falta de açúcar no sangue. Quem me dera. Billy chegou-se para lá para que eu pudesse esticar-me na cama desdobrável sem ter de me deitar através de parte do seu corpo. — Viste Casanova? — perguntei com voz rouca. Tinha requisitado uma das cervejas de Mac para ajudar a minha garganta seca e quase tinha conseguido ficar outra vez maldisposta quando o álcool me chegou ao estômago. Pousei-a num instante. — Sim, mas o Chavez desertou. Talvez esteja a tentar passar despercebido até os magos vagarem o Dante's, não sei. Mas Casanova disse que trancava as coisas assim que ele lá chegasse — assenti com a cabeça. Era o melhor que podia esperar. Se Chavez tinha sido esperto o suficiente para se esquivar à invasão do seu local de trabalho, os objetos que transportava deveriam estar a salvo. — Vai avançar? — perguntou Billy, embaralhando as cartas. Ele nunca faz levitar as coisas, a não ser que seja obrigado ou esteja a exibir-se, mas eu estava demasiado farta de ser impressionada. — Com o quê? — deitei-me de costas na cama desdobrável, tentando convencer o meu estômago de que já não restava mais nada para vomitar. Não conseguia perceber o que


se passava de errado comigo. Já tinha viajado no tempo e nunca me sentira assim ao regressar. — Com a reparação da sentinela. Pestanejei, olhando para ele de modo indistinto. Quase me tinha esquecido isso. O meu pentagrama teria dado muito jeito com o Dmitri e já provara ser capaz de viajar no tempo comigo. Infelizmente, não podia arriscar-me a repará-lo. — Sim, e assim ficava a dever um favor ao poder. — Se quer saber o que eu acho, parece que ele já te deve uns dois. Tem andado a fazer-lhe os recados. Não é que quisesse ir a algum lugar... — Mas eu não sei se ele vê as coisas assim. Billy expirou fumo de um cigarro incorpóreo, fazendo uma argola que flutuou quase até ao teto antes de desaparecer. Uma vez perguntei-lhe porque ele conseguia fumar cigarros espectrais e não conseguia beber álcool espectral, fato que me teria poupado alguns incidentes constrangedores e muitas das suas lamúrias. Tinha me dito que, na hora da morte, qualquer coisa que estivesse conosco, fosse em contato com o corpo ou a centímetros de distância, poderia materializar-se com a pessoa. Tudo fazia parte da nossa energia, portanto Billy estava basicamente a fumar a si mesmo, mas até certo ponto era aparentemente satisfatório. É pena ele não ter tido um cantil de uísque escondido quando foi fazer a sua aula de natação em serapilheira. — Por que estamos falando deste poder como se fosse uma pessoa? — perguntou ele, pensativo. — Quem te ouvir, parece que ele tem uma folha de registo onde aponta todos os favores para te pedir que os retribuas um destes dias. E se isso não for verdade? Talvez seja uma força da natureza, como a gravidade. Só que, em vez de mandar colar tudo, reage aos problemas da linha temporal mandando uma pessoa para repará-los. Abanei a cabeça. A teoria dele tinha uma lógica surpreendente, mas uma parte de mim sabia que aquilo com que eu estava a lidar, fosse lá o que fosse, era algo consciente, não uma força sem sentido. Aquilo sabia que eu não gostava de fazer parte da sua equipe de reparações. Só que não se preocupava. — Não me parece. — Muito bem, vamos ver se eu entendo isso — Billy deitou uma mão de cartas que consistia em dois ases pretos, um par de oitos pretos e o rei de espadas. No póquer, isso chama-se "a mão do homem morto", porque segundo a lenda, era o que Wild Bill Hickok tinha na mão quando foi baleado pelas costas. Hickok morreu em 1876, quase duas décadas depois do meu apostador, mas Billy tinha os seus conhecimentos de póquer – e sabia como torná-los odiosos. — Vais recusar-te a arranjar a sentinela mesmo tendo mais pessoas atrás


de você do que eu consigo contar e de ires para o Mundo das Fadas, onde os invasores costumam ser mortos assim que são avistados? Só para não ficar devendo um favor a um poder possivelmente inconsciente, que ele até pode nem se dar ao trabalho de cobrar? Eu estava muito cansada para o olhar com fúria. — Não sei. — Ah, bom, fico contente por, pelo menos, ter pensado nisso. — Por que está me chateando com isso? — Porque, minha querida, caso tenha esquecido, nós fizemos um acordo. Eu cumpri a minha parte e espero que cumpra a sua, coisa que não poderá fazer se estiveres morta. Pronto, tudo bem, não gosta de ser pau-mandado. Quem é que gosta? Mas deixa-me que te diga que estar morta é muito pior. Pede ao Mac que te repare a maldita sentinela. Se não precisar dela, ótimo, não fica devendo nada a ninguém. Mas se precisar, ela estará lá e, quando a poeira assentar, você também. — Hã-hã — disse eu, com impaciência, desistindo da ideia de dormir alguma coisa com Billy por perto. — E se chamejar quando não se tratar de uma situação de vida ou morte? Eu não tenho controle sobre o que o poder apreende como uma ameaça. Se ele estiver alimentando a sentinela, estará a exercer o controle e ele já tentou enganar-me... — parei de falar porque Billy não estivera presente quando ataquei Pritkin e eu não queria ser gozada por isso. Felizmente, ou ele não tinha reparado, ou tinha deixado passar. — Tudo bem, está correndo um risco, apostando umas quantas fichas em como esta coisa não será capaz de te enganar. Mas isso é muito melhor do que apostares a vida em como não precisa da sentinela e depois descobrir que estavas errada. Acredita em quem sabe, Cass, nunca faça uma aposta quando não pode se dar ao luxo de perder. Fomos interrompidos por Mac, que regressava carregado com os quatro grupos de comida – cheias de sal, gordura, açúcar e cafeína, sob a forma de batatas fritas, hambúrgueres e grandes copos de café açucarado. Obriguei-me a comer, já que era a maneira mais rápida de recuperar alguma energia, apesar de me sentir enjoada. No meio da refeição, disse a Mac que tinha decidido reativar a sentinela. Billy levantou-me os polegares e eu fizlhe uma careta. A única coisa mais irritante do que Billy quando está errado, é Billy quando diz uma coisa certa. Eu iria ouvir falar disto durante muito tempo. Quando Pritkin regressou, eu tinha acabado de me vestir depois do reajuste de Mac. A sentinela continuava de esguelha, porque a reparação da estética podia esperar. Mac disse que achava que a transferência de poder tinha corrido bem, mas eu estava cética. Não sentia nada, nem uma única faísca ou pontada. Claro que não costumava senti-las, a menos que houvesse uma ameaça, mas teria gostado de algum sinal de que tinha voltado a funcionar. Mas não me pareceu que fosse ter algum. Supus que teria de esperar até que alguém tentasse


matar-me para descobrir se Mac era assim tão habilidoso como apregoava. Da maneira como me corria a vida ultimamente, não deveria demorar muito. — Temos de ir — disse Pritkin, sem qualquer preâmbulo. Atirou algo sobre a minha cabeça, que se prendeu à minha orelha. Arranquei-o e percebi que tinha na mão um amuleto qualquer – na verdade, vários amuletos –, preso a um robusto cordel vermelho. A bolsinha de tecido continha, ou verbena ou uma meia de ginástica muito usada – o cheiro é mais ou menos o mesmo –, mas eu não estava segura a cerca do significado dos outros. — Cruz de madeira de sorveira-brava — identificou Billy —, decorada com âmbar e coral, todas as coisas que dizem servirem para impedir ataques dos Elementais. O pentagrama deve ser de ferro — acrescentou, semicerrando os olhos apesar de não ser possível que isso lhe auxiliasse a visão. — Parece que ele está levando a sério esta expedição maluca. Começo a achar que é tão doido quanto você. Pritkin tirou outro colar a condizer do pacote bojudo que tinha nas costas. Aquilo o teria feito parecer o Pai Noel, embora eu duvidasse que o alegre elfo velhote alguma vez tivesse aquele ar severo. Atirou-o a Mac e franziu a testa. — O Círculo está apertando. — Como se esperava — disse Mac, com ligeireza. Levantou-se e sacudiu umas migalhas. Tínhamos estado falando sobre sentinelas antes de Pritkin aparecer, sobretudo porque Mac quisera distrair-me do que ele estava a fazer à minha estrela. Sorriu-me e estendeu a perna direita. — Não tive tempo para te falar desta — disse ele, apontando para um pequeno retalho de pele vazia abaixo do joelho. — Não compreendo. Mac limitou-se a abrir ainda mais o sorriso e tirou do bolso uma folha de papel dobrada. Abriu-a sobre a cama desdobrável e eu identifiquei-a como sendo um mapa de Las Vegas e arredores. Era velho e amarelado, à exceção de pedaços coloridos a vermelho-vivo em áreas distintas. Fez-me lembrar dum mapa de metrô, mas Las Vegas não tem metrô, claro . — Aqui está — disse Pritkin, apontando para uma zona próxima do desfiladeiro da MAGIC. Mac assentiu com a cabeça. — Sem problemas — levantou-me uma sobrancelha. — Já viste O Magico de Oz? — Hã, sim. Por quê? — É melhor segurar-se em alguma coisa — foi a única resposta que obtive antes do que pareceu ser um terramoto gigante a atingir a loja. Agarrei-me à cama desdobrável, que


estava aferrolhada, enquanto Pritkin enlaçava um pé à volta da mesa e se agarrava a ela com as duas mãos. Só Mac parecia imperturbável, ignorando a sala que se inclinava, girava e sacolejava para contornar com o dedo uma linha no mapa que ia da cidade ao deserto. Segundos depois de terminar, o edifício teve um último estremecimento estertoroso e aquietou-se. Houve algumas folhas de papel a planar do lugar para onde tinham sido arremessadas perto do teto, mas fora isso, foi como se nada tivesse acontecido. — O que foi isso? — Veja você mesma — Mac fez sinal com a mão para a parte da frente da loja e, depois de recuperar as minhas pernas gelatinosas, me encaminhei para a sala da frente. Ao invés da rua e do restaurante de hambúrgueres sempre cheio que constituíra a vista da frente, havia apenas uma extensão vazia de deserto, sem um único cacto para quebrar a monotonia. — Acho que ela precisa de reforços — dizia Mac ao passar pela cortina. — Ela tem aquelas malditas facas. — Não são de confiança, vieram de um mago das trevas e a sua lealdade é questionável. Servem-na agora porque ela serve os seus propósitos, mas e depois? — Mac abanou a cabeça. — Não me agrada. Sem esquecer que nem sequer sabemos se vão funcionar ali. — Reativou a sentinela; isso deverá ser suficiente — respondeu Pritkin, arrastando a bolsa para fora da sala dos fundos e começando a despejá-la sobre o balcão. — Ela já tem força mais do que suficiente. Mac não disse nada, mas esticou silenciosamente a mão até ao ombro esquerdo e agarrou em algo que estivera oculto pelas folhas. Levou um dedo aos lábios e olhou de relance para Pritkin, que alinhava uma coleção de armas sobre o balcão. Se ele achava que íamos carregar aquilo tudo, eu esperava que tivesse trazido um carrinho de mão. Mac alcançou-me o braço e eu baixei o olhar para ver um reluzente amuleto de ouro em forma de gato encostado ao meu cotovelo. Assim que tocou na pele nua, metamorfoseou-se numa lustrosa pantera negra com olhos cor de laranja e semicerrados. Reconheci-os como sendo aqueles que me tinham espreitado anteriormente com ar maléfico e agora não me pareciam muito mais felizes. O bichano não pareceu satisfeito por ter perdido a generosa camuflagem de Mac e, depois de um breve relance em volta, subiu-me pelo braço e desapareceu debaixo da minha camisa. Conseguia senti-lo quase como se fosse um felino verdadeiro, com pelo quente e pequenas garras que me picavam a pele. Era estranho e fazia cócegas e eu não gostava nem um bocadinho. — O que...


— Anda, Cassie, tem que acabar de comer — disse Mac, empurrando-me à frente dele através da cortina. — O que diabo se passa? — silvei, assim que chegámos às traseiras. Mac mandou-me calar e fez um gesto esquisito no ar. — Escudo de silêncio — explicou. — John ouve melhor sem melhoramentos do que a maioria das pessoas com eles. — Mac, se não me explicar o que... — Acabei de te dar aquela outra sentinela. Sheba irá tomar conta de você, ela é topo de gama. A Menina Topo de Gama andava a rastejar pela minha barriga, parando de vez em quando para me lamber e estava a deixar-me assustada. — Mac! Tira-me esta coisa! Ele riu entre dentes. — Não posso. As desse tipo só podem ser transferidas uma vez por dia. Lamento. Não estava com ar de quem lamentava e eu não tinha como de saber se ele estava a dizer a verdade; duvidava seriamente. — Mac! — Pode precisar dela, Cassie — disse ele, com mais sobriedade. — Você me deixou reativar a sua sentinela, mas é como diz o John: o seu poder pode não funcionar no Mundo das Fadas, mas se isso acontecer, pode ser uma coisa esporádica. Se não houver energia a fluir para alimentá-la, a tua sentinela não irá funcionar. Sheba vai contigo para garantir que tens alguma proteção, mesmo que a tua sentinela principal falhe. Pensa nela como um reforço temperamental. Não há muitas sentinelas que funcionem no Mundo das Fadas, mas essa irá funcionar. Comprei-a aos Elementais que a encantaram. E não seria grande cavalheirismo da minha parte deixar-te partir indefesa, não é? — Mas eu não vou sozinha — Sheba já trepara em minhas costas e estava a fazer algo com as garras que não era nada agradável. Estiquei-me para fazê-la parar e, por causa disso, fui golpeada por uma pequena pata. Felizmente, logo a seguir ela enrolou-se numa bola quente ao fundo da minha coluna e adormeceu. Se me concentrasse, conseguia ouvi-la ronronar de contentamento. — Estás partindo do princípio de que todos nós iremos passar pelos guardas. Mas esta noite não será assim tão fácil entrar lá. — Disseste que os conhecia.


— E conheço, mas eles também conhecem a mim. Antes de me retirar, eu era parceiro do John. Ele agora é um homem procurado, depois daquela exibição que vocês dois fizeram esta manhã, portanto, o fato de eu entrar ali sem mais nem menos e conversar, irá parecer estranho. A ideia é eu criar uma manobra de diversão e vocês os dois correrem para o portal enquanto os guardas estão ocupados comigo. Mas não há maneira de saber se vai resultar. Mesmo que resulte, você e o John vão ficar entregues à sua sorte depois de os guardas me apanharem. Contorci-me com desconforto, não só porque a cauda indolente e retorcida de Sheba me fazia cócegas, mas também por causa da despreocupação de Mac em desafiar o Círculo. — O que irá acontecer quando te apanharem? Encolheu os ombros. — Provavelmente, nada. Não passará de uma pressão e pronto! Depois volto para a rua. Mas eu sei um ou dois truques. Com um bocado de sorte, devo conseguir convencê-los de que John me pôs sob um feitiço de coação que me obrigou a ajudar. — E se não tiveres sorte? Mac sorriu e deu-me uma palmadinha no ombro. — É por isso que vamos hoje à noite. Os meus antigos companheiros podem não ficar satisfeitos por me ver, mas também não é provável que me matem. Já os safei de apuros uma ou duas vezes, estão em dívida para comigo. — Mas o Círculo... — Deixa o Círculo comigo — disse ele, enquanto Pritkin enfiava um rosto desconfiado pela cortina. — O que se passa? — vi-o fazer uma careta antes de Mac dissolver o escudo à nossa volta com um discreto menear de pulso. — Estamos acabando de entupir as artérias — disse Mac, alegremente. — Eu convidaria a juntar-se a nós, mas sei como é em relação às regras — piscou-me o olho. — Nunca deixe que John se encarregue da comida, Cassie. Ele envenena-te com erva de trigo e sumo de ameixa. — É melhor do que aquilo a que chama comida — disse Pritkin, mas desapareceu pela parte da frente como se estivesse satisfeito. Comi mais um pedaço do meu hambúrguer, mas a gordura começara a solidificar e, fosse como fosse, eu já tinha perdido o apetite. Estava cansada das pessoas saírem machucadas por minha causa e, cair nas mãos do Círculo incluía-se decididamente nessa categoria. Talvez as pessoas devessem mesmo alguns favores a Mac, mas seria isso


suficiente? E se o torturassem para descobrir o que sabia a meu respeito? Era algo a considerar, fossem eles velhos soldados ou não. Senti-me outra vez nauseada – uma combinação do tipo de comida que consumira, nervos e preocupação. Mac não parecia ter esse problema e acabou por ser ele a terminar o meu hambúrguer. Voltei à parte da frente e percebi que Pritkin estava pronto para a ação. O volume de armas tinha desaparecido, mas ele não parecia mais deprimido do que era habitual. Percebi o motivo quando o vi a prender uns amuletos muito invulgares a uma pulseira de elos. — Ferro — explicou, enquanto a apertava à volta do pulso. — Drena a energia dos Elementais, trespassa-lhes as defesas como a prata faz aos metamorfos. — Não pensei que fosses do tipo que usa joia — disse eu, embora já tivesse percebido o que ele tinha feito. Nem mesmo um mago homicida usa uma pulseira de amuletos da qual pendiam metralhadoras minúsculas, espingardas e o que desconfiei ser um lança-granadas. Este último era particularmente revelador, uma vez que ele já tinha tirado da sua bolsa um modelo em tamanho real. — Encolhi-os — disse, com impaciência. — É a única maneira de carregar tanto peso a certas distâncias. — Pensei que tinha dito que as nossas coisas não funcionavam lá. — Eu disse que a nossa magia podia não funcionar na perfeição, se é que funciona. Isso — Pritkin deu uma palmada na Colt que tinha no cinturão — não é magia. E está carregada com balas de ferro. Por falar nisso, toma — deu-me um casaco comprido quase igual ao dele. — Veste. Tirei-o da mão que tinha estendida e quase caí ao chão. Parecia que estava forrado a chumbo. Passado um minuto, percebi que era mesmo isso. O peso adicional provinha de caixas e caixas de balas de todos os calibres concebíveis, que tinham sido enfiadas nos muitos bolsos do casaco. — Só pode estar brincando — disse eu, deixando cair aquilo no chão. Aterrou com um baque audível. — Não vou ser capaz de correr com isso! Duvido que consiga andar! — Não vai correr — Pritkin pegou-o e tornou a enfiar-me nos braços. — Nunca conseguiríamos ultrapassar os Elementais no seu próprio terreno, por isso não vamos tentar. Se nos cruzarmos com alguns e eles forem hostis... — E vão ser — interrompeu Mac, emergindo de detrás da cortina. Tinha uma pequena mochila, dentro da qual colocou o conteúdo da minha bolsa viagem e, com um piscar de olho, duas cervejas.


— Nesse caso, firmamos a nossa posição e lutamos — terminou Pritkin. — Correr é um desperdício de tempo e faria um a favor a eles se nos separássemos. Por mais hedionda que pareça uma batalha, não podemos entrar em pânico. — Claro que não. Vou manter a minha posição enquanto dão cabo de mim — estava a debater-me no interior do casaco quente e a sentir-me rabugenta. Pritkin verificou a metralhadora e, pela primeira vez desde o nosso incidente, olhou-me nos olhos. — Se estiver comigo, não vai morrer — disse ele. Parecia tão seguro que, por uma fração de segundo, acreditei nele. Engoli em seco e quebrei o contato visual. — Por que não encolhe as minhas coisas também? — Porque não tenho absoluta certeza de que o feitiço reverso vá funcionar no Mundo das Fadas, por isso vou levar armas de reforço encolhidas e as originais no tamanho normal. As tuas munições são para as originais. Eu estava ocupada a desvendar as minhas emoções, que iam da irritação ao terror, portanto só quando saímos para a rua é que me lembrei da nossa viagem louca. Por mais berrante que tivesse sido, ficava na verdade muito abaixo da lista de coisas estranhas que me tinham acontecido ultimamente. — Como viemos parar aqui? — perguntei a Mac. — Apanhei um atalho — disse ele, puxando um chapéu de abas brancas para a sua careca. Virou-se e deu uma palmadinha no quadrado em branco que lhe decorava o joelho. Fitei a imagem deveras estranha de um estúdio de tatuagens totalmente isolado no meio do deserto, precisamente antes de ser agraciada com a imagem ainda mais estranha do mesmo a fechar-se sobre si e a desaparecer por completo. Mac resmungou e examinou a sua perna, onde tinha aparecido uma versão em miniatura da parte da frente da loja, juntamente com um letreiro brilhante em néon onde se lia MAG INK. Encaixava na perfeição no local vazio que eu vira antes. O pequeno letreiro na tatuagem piscava igual o verdadeiro. Passado um segundo, percebi de que era o verdadeiro. — Passamos a tarde inteira dentro de uma das suas sentinelas? — perguntei com incredulidade. — Exatamente — disse Mac. — A minha loja vai para onde eu for. — O que faz? Escolhe um terreno vago e depois, pum! Nova localização para o comércio? Ele sorriu. — Mais ou menos isso.


— E o planejamento do território? E as pessoas estão a passar e, de repente, aparece um edifício? E a polícia? — O que tem? As pessoas normais não conseguem vê-lo, Cassie, como não veem uma das tatuagens — pegou no meu braço com companheirismo. — Tem que entender que magia que viste toda a tua vida é apenas a ponta do iceberg. Aqueles desgraçados que os vampiros usam como sentinelas e coisas parecidas são as borras no fundo da xícara. Se tivessem algum talento autêntico, quaisquer que tivessem sido as questões que os tivessem levado a ser repudiados já teriam sido menosprezadas, senão eles teriam sido punidos e obrigados a trabalhar de novo. Ou se fosse uma coisa mesmo odiosa, teriam fugido e se juntado aos das Trevas; só que nem esses aceitam quem faz disparates. Aqueles que acabam a trabalhar para vampiros são os que apenas têm magia suficiente para se qualificarem como ameaças em relação a si mesmos e a todos os outros. Não conseguiriam fazer um feitiço complexo se as suas vidas dependessem disso. Se te mantiveres conosco, verás magia verdadeira. Pritkin parou e tirou qualquer coisa do bolso. — Boa ideia — comentou e, um segundo antes de fazê-lo, eu percebi o que ia acontecer. Não era uma Visão, era apenas a sorte que eu tinha. O idiota ia lançar a runa do mistério. Pisei a terra e tentei arrastar Mac para baixo comigo, mas os meus pés emaranharam-se na bainha do pesado casaco e eu tive de largá-lo para amortecer a queda. Esfolei a palma das mãos na terra dura como rocha e a dor – e a luta subsequente para me libertar do casaco – distraiu-me por uns segundos. Viu-se um clarão de luz e ouviu-se um ruído de estouro, como se fosse uma rolha de champanhe muito grande. Quando ergui de novo os olhos, Pritkin e Mac tinham desaparecido. Embora eu conseguisse ver a uma boa distância em todas as direções, não havia sequer um retalho de tecido nem uma pegada que demonstrasse que eles ali tinham estado. Pus os meus sentidos em funcionamento, mas não havia vibrações. Era quase tão estranho como o desaparecimento; um objeto mágico importante acabara de ser desencadeado, no entanto, não havia sequer uma onda metafísica em quilômetros. A única coisa que eu conseguia distinguir era o ligeiro zumbido das sentinelas da MAGIC a noroeste. Não entendia. Se a runa tivesse matado Pritkin e Mac – mesmo que lhes tivesse vaporizado os corpos –, eu deveria conseguir ver os seus espíritos. E até agora não tinha conseguido. Depois de ter percorrido um grande círculo ao redor do local onde os magos tinham desaparecido e de não ter encontrado nada, desviei a atenção para a minha própria posição. Não era boa. Estava a quilômetros de Las Vegas, sem comida, água ou transporte. Pior, a única fonte dessas coisas que havia por perto era a MAGIC, onde atualmente residia metade das pessoas que me perseguiam.


Forçar a entrada por mim mesma teria sido desencorajador, mesmo que Billy ali estivesse para ajudar. Mas ele, tal como os magos, estava ausente de momento. Isso me fez começar a pensar com preocupação que talvez a runa também conseguisse destruir fantasmas e que era por isso que eu não conseguia ver os espíritos de Pritkin ou de Mac. Abandonei rapidamente esse conceito quando comecei a tremer. Billy era uma grande dor na bunda, mas acompanhara-me em períodos bem loucos. Era difícil pensar na ideia de estar verdadeiramente sozinha, sem uma única pessoa que eu pudesse reivindicar como aliada – nem sequer uma pessoa morta. A única boa notícia era a de que eu tinha comigo munições suficientes para me envolver numa pequena guerra. Infelizmente, teria de afugentar os meus inimigos atirando-as contra eles, já que não tinha uma arma. Pritkin não se oferecera para partilhar e a minha Smith & Wesson estava na minha carteira, que Mac tinha enfiado na mochila – uma mochila que estava em sua posse. Olhava para um deslumbrante pôr-do-sol no deserto com um pânico crescente quando reparei numa coisa pequena e escura no céu. Era apenas uma mancha minúscula realçada pelos raios do sol que se punha, mas estava a aumentar rapidamente. Mal tive tempo suficiente para pensar que Mac tinha razão, que fazia mesmo lembrar Oz, antes de a coisa ficar tão enorme a ponto de obliterar o que restava do sol. Pisei o solo, aconchegando-me dentro do casaco grosso enquanto o meu cérebro me fazia vislumbrar uma imagem de mim deitada por baixo da fazenda de Dorothy, apenas com as minhas pernas mortas de fora. Era uma pena eu ter perdido os sapatos do Dante's; teriam sido perfeitos. O meu monólogo interior começou a tornar-se balbuciante quando uma coisa enorme embateu no solo ali perto com um baque arrepiante. Fui atingida por uma saraivada de pedras e terra e o meu cérebro perdeu as estribeiras. Com histeria, este insistia que ser esmagada até à morte não seria justo – eu era apenas uma clarividente ligeiramente rabugenta, não uma bruxa malvada –, até que a tempestade de terra terminou por fim. Espreitei pelo casaco, mas não havia Munchkins nem estradas de tijolo amarelo à vista. Mas havia uma casa. Os meus olhos cheios de poeira demoraram alguns segundos a aperceber-se de que a estrutura apoiada de modo tão incongruente na areia do deserto não era uma fazenda falsa do Kansas, mas sim um estúdio de tatuagens urbano, com o seu letreiro de néon a piscar com tanta alegria como o sorriso de Mac. Eu estava deitada na terra, a tremer, quando a porta se abriu de rompante e Pritkin e Mac saíram a correr. Estavam com um ar bastante ameaçador, mas Mac viu-me, deu um grito e acelerou para me pegar e andar comigo às voltas, em círculo, com o casaco forrado a chumbo e tudo. — Cassie! Estás bem? Deixaste-nos tão... — Onde diabo é que vocês os dois foram? — eu estava aos soluços e meio histérica, tão aliviada que me sentia fraca e, ao mesmo tempo, zangada como tudo. Bati-lhe no peito e, embora duvide que tenha doído muito, a águia dele guinchou e picou-me a mão com


violência. Estremeci e soltei-me, acabando de novo na terra. Tinha acabado de ser atacada pela pintura de uma ave que não era nem nunca tinha sido real. Apesar do meu curso intensivo durante a tarde acerca de sentinelas avançadas, não parecia possível, mas era difícil argumentar com uma evidência que doía tanto. Foi então que Sheba acordou e as coisas passaram de mal a pior. Senti a indesejável bola de pelo a esticar-se pelo fundo das minhas costas e, quando Mac se dobrou para me ajudar, ela fluiu pelo meu tronco e desceu-me pelo braço. Olhei com surpresa para a linha de vermelho-vivo que apareceu de repente no antebraço dele. Apesar do tamanho da pata, o golpe que provocou media mais de sete centímetros e era suficientemente profundo para precisar de pontos. E o pior é que eu não fazia ideia de como mandar Sheba parar. Pritkin afastou-me do seu amigo com um empurrão e deixou-me a cambalear, afrouxando rapidamente o aperto antes que Sheba conseguisse pôr as patas nele. Estava com os lábios estreitos de raiva. — Parem com isso os dois! Antes que ativem mesmo as sentinelas e se desfaçam um ao outro! Baixei os olhos para a minha mão, que agora exibia um doloroso golpe de cinco centímetros, e inalei ar suficiente para dizer: — Sério? Será que podia piorar muito? —não sei que outra coisa poderia eu ter dito, mas vislumbrei Billy sobre o ombro de Pritkin e esqueci tudo o resto temporariamente. Apontei-lhe um dedo trêmulo. — Onde estava? É quase noite e a MAGIC está bem ali! — Calma, Cass, não há problema. Está tudo bem, mas precisa se controlar, senão o seu novo animal de estimação vai fazer grandes estragos. — A minha sentinela não chamejou — olhei especada para Mac, que estava ocupado a sarar a sua ferida. Sorte a dele, eu ficaria com a minha por um bom bocado. Contudo, embora quem estivesse a sangrar fosse Mac, quem me fazia um olhar ameaçador era Pritkin. Era injusto a ponto de cortar a respiração, tendo em conta que tudo isto era culpa dele. — Isso não quer dizer nada, necessariamente — disse Mac. — É um bocado mais avançada do que as outras. Está concebida para pressentir a intenção e eu não queria fazer-te mal — ele tinha conseguido estancar a hemorragia, mas um alto vermelho em carne viva ficou para trás a marcar sua pele, deixando por entre as folhas uma fenda que conseguiam roçar, mas não atravessar. — Desculpa, Cass, não devia ter-te agarrado. Mas, quando desapareceste, nós... Bem, nós não sabíamos o que tinha acontecido. Então eles também pensavam que eu estava morta. A confissão de Mac de que pelo menos ele tinha ficado preocupado ajudou-me a acalmar – isso e o fato de que eu não iria enfrentar uma emboscada sozinha.


— Eu não saí daqui — disse-lhe eu, com a voz a tremer. — Vocês é que desapareceram. Onde foram? — Estavas ciente de que tínhamos ido embora? — perguntou Pritkin, de testa franzida. Olhou de relance para Mac. — Então estávamos enganados. — Não necessariamente — Mac olhou para mim de modo penetrante. — Talvez os deslocamentos temporais não a afetem da mesma maneira que a todos nós. Pode ser por isso que ela não fez a viagem, apesar de estar tão perto de ti como eu. — Foram a algum lugar no tempo? O quê? Ainda alguém conseguia fazer isso? — Achamos que essa coisa — Mac fez sinal para a runa que Pritkin mantinha no seu punho — é um remodelador. — Um o quê? — Leva a pessoa que o lança uns vinte minutos atrás no tempo. Portanto, se te vires num aperto, lança-a e tem chances de redimir um erro. Lancei a Pritkin um olhar de soslaio muito pouco amigável. — Uma coisa que poderá vir a ser muito útil. — Estou certo de que será — comentou ele, escondendo-a dentro do casaco. Eu o teria lembrado de que a runa era minha, mas tinha certeza que ele iria responder que eu apenas a roubara primeiro. Olhei de relance para Billy e acenei de leve com a cabeça em direção ao mago. Ele foi até lá a flutuar, ao mesmo tempo em que eu começava uma discussão para distrair Pritkin. — Bem, agora já não serve para nada, pelo menos durante um mês. — Não podíamos arriscar-nos a usá-la sem antes sabermos o que faz — insistiu Pritkin, com as sobrancelhas a unir-se na sua expressão habitual. — Se não é usada há tanto tempo como pensamos, deve ser possível lançá-la de novo em breve. — Mas não sabe isso — salientei, com raiva. — Pode deixar umas pilhas recarregáveis ligadas à corrente durante o tempo que quiseres, mas elas só aguentam uma carga. Talvez a runa funcione da mesma maneira. — Permite-me que pense que sei um pouquinho mais de artefatos mágicos do que você — respondeu Pritkin com desdém, enquanto Billy lhe metia uma mão de aspecto insubstancial dentro do bolso. Passados alguns segundos, a minha runa saiu de lá a flutuar como se levitasse. Veio na minha direção e eu guardei-a no bolso. — Tenho alguma certeza de que vai funcionar — acrescentou o mago. — Agora, se já acabaste com os histerismos, temos de ir andando.


Eu não disse nada, mas recuperei a mochila que Mac tinha e tirei de lá a minha arma. Estava totalmente carregada, mas eu verifiquei-a mesmo assim. Os lábios de Pritkin estreitaram-se ainda mais enquanto observava; antes disso acabar iria deixar de ter lábios. Era óbvio que não gostava da ideia de eu andar com uma arma – talvez tivesse medo de que eu o alvejasse pelas costas –, mas absteve-se de comentar. Pôs-se a caminho pelo deserto e eu fui atrás dele. Mac e Billy Joe seguiram-nos assim que o mago tornou a absorver o seu negócio móvel. Durante meia hora, não foi dita uma única palavra, até que o difuso contorno da MAGIC se estendeu à nossa frente. O complexo está concebido para se assemelhar a um rancho em funcionamento, para o caso de alguma pessoa normal com um pouco de talento passar por ali e conseguir ver através das sentinelas de perímetro. Mas fica centrado num desfiladeiro com encostas altas, distante de quaisquer infraestruturas turísticas, portanto, não é provável que isso aconteça. Para não dizer que existem todos os tipos de placas metafísicas a dizer NÃO SE APROXIME, que começam a cerca de um quilômetro e meio e que deixam as pessoas normais muito pouco à vontade. A luz das estrelas transformara a paisagem em algo parecido à superfície lunar – somente crateras escuras e misteriosas e intermináveis areais prateados. A MAGIC propriamente dita estava escura e sossegada, com todas as luzes exteriores desligadas e sem movimento entre os edifícios. Parecia que o que estava a acontecer nessa noite, fosse lá o que fosse, estava a ter lugar no subsolo. Deixei-me cair num pedaço de areia relativamente livre de pedras enquanto Mac e Pritkin discutiam abordagens. A travessia tinha sido dura. Eu cambaleara pela escuridão crescente, batendo com o dedo do pé a cada quatro passos e caindo duas vezes de cara no chão. O casaco estava sempre a enrolar-se nas minhas pernas e a fazer-me sentir que levava outra pessoa às costas. Ultimamente, andava demasiado ocupada para as visitas regulares a academia e isso se notava. Andar a fugir para salvar a vida não estava obviamente a ser exercício um suficiente. — Ele está lá dentro? — perguntou Billy, pairando uns palmos acima da areia. Aconcheguei-me no casaco, grata pela sua espessura, agora que o deserto tinha começado a arrefecer. — Não sei. — Quer que vá verificar? — Não — se Mircea ali estivesse, eu não queria saber. Com sorte, iríamos fugir para o Mundo das Fadas antes que ele percebesse que eu tinha sido louca o suficiente para aparecer por ali. — O seu fantasma está aqui? — Pritkin interrompeu para perguntar.


Surpreendeu-me que, por uma vez, estivesse a ser cauteloso – talvez a ideia de entrar pela MAGIC assustasse a ele também. Pediu a Mac que descrevesse os seus amigos guardas a Billy, que concordou em ir ver se alguém tinha alterado a escala de serviço de modo inesperado. Foi a flutuar pela areia, tornando-se rapidamente invisível no fundo noturno. Enquanto isso, nós esperávamos. Em tempos, quando eu era criança e lia contos de fadas, ansiava por ter as minhas próprias aventuras. Não que quisesse ser qualquer heroína brega a elanguescer numa torre, à espera de ser salva. Não, eu queria ser o cavaleiro, aventurar-me na batalha contra as probabilidades mais arrasadoras, ou então a corajosa garotinha do campo que é escolhida para ser aprendiz de um grande feiticeiro. À medida que fui crescendo, descobri da maneira mais difícil que as aventuras raramente são como os livros descrevem. Metade do tempo, estamos assustados de morte e a outra metade, estamos entediados e com os pés a doer. Começava a acreditar que talvez eu não fosse do tipo aventureiro. Meia hora depois, Billy regressou com novidades. Os guardas correspondiam às descrições que Mac lhe tinha dado e, para nossa sorte, havia um grande rebuliço na zona dos vampiros. — Parece um circo, Cass, está todo mundo lá. O resto do edifício está praticamente deserto. — Então? — Pritkin estava a ficar com um ar impaciente. — O que diz ele? — Está tudo bem, são os caras certos que estão de serviço — reparei que Billy estava demasiado satisfeito com qualquer coisa. Talvez fosse apenas alívio por nossa tarefa poder ser mais fácil do que tínhamos pensado, mas eu tinha dúvidas. Conhecia as expressões dele quase tão bem como as minhas e ele estava praticamente em êxtase. — Vai, desembucha. Billy sorriu e revirou o chapéu com o dedo indicador. Por algum motivo, naquele momento o dedo estava menos corpóreo do que o chapéu, pelo que parecia que era a própria cobertura de cabeça que estava a fazer um truque estonteante sozinha. — É muito perfeito — exultou, com o sorriso a ameaçar dividir-lhe a cara ao meio. — Isso é que é um bom presságio! — O que é que está dizendo? — Há algo de errado? — perguntou Pritkin. Eu e Billy o ignoramos. — Sei que o seu aniversário é só daqui a umas horas, Cass, mas vais receber o teu presente mais cedo. — Billy! Conta logo! Riu com prazer a ponto de por pouco não ser uma gargalhada estridente.


— É aquele cretino do Tomas. Foi capturado ontem de manhã cedo. Acho que estão tentando decidir qual será a maneira mais dolorosa de executá-lo. É por isso que está todo mundo na seção dos vampiros, querem assistir ao espetáculo — Billy atirou o chapéu ao ar com júbilo. — Eu próprio não me importaria de dar uma espreitadela, se tivéssemos tempo. A única coisa que me impediu de cair foi o fato de já estar sentada. Tomas estava prestes a ser executado e podia estar sob tortura? Fiquei sentada a piscar os olhos a Billy enquanto meu cérebro tentava compreender e, seja lá o que for que o meu rosto revelou, ele não gostou. O seu sorriso esmoreceu e ele começou a abanar a cabeça com violência. — Não! Nem pense que vai fazer uma coisa dessas! Ele merece isto, Cass, você sabe que sim. Ele te traiu... Que diabo, quase provocou a sua morte! Por uma vez na vida, o destino está tirando-te um problema das mãos sem cobrar nada. Vamos sorrir, agradecer e manter-nos bem afastados da coisa! Senti o rosto entorpecido. Indaguei-me vagamente sobre se seria por causa da brisa da noite ou do horror. Apostava no horror. — Não posso. — Pode, sim — com agitação, Billy tremelicou como uma chama de vela. — É fácil. Entramos pelas belas e sossegadas muralhas da MAGIC, encaminhamo-nos para o portal e atravessamos. É só isso, nada de especial. — Tudo de especial — levantei-me vacilando um pouco e Pritkin segurou-me pelo braço. Como sempre, não foi dócil, mas desta vez isso foi uma vantagem. Mesmo com o seu pulso de ferro, mal consegui manter o equilíbrio. — Muito especial. — O que está dizendo? O que há? — Pritkin estava a falar, mas eu mal conseguia ouvilo. Tudo o que ouvia era a voz de Tomas a elevar-se em agonia, tudo o que via era Tomas atado como um animal, à espera de Jack. Se fechasse os olhos, conseguia ver uma cena diferente. Era Tomas na cozinha do nosso apartamento em Atlanta, ao fogão com a testa franzida de perplexidade. O forno não tinha cozido os bolos de chocolate que ele tentara fazer para o meu café da manhã, possivelmente porque não sabia ligar aquilo. Tinha vestido um dos meus aventais, aquele que dizia NÃO COZINHA BEM COM COMPANHIA, por cima das calças de pijama com um risonho que eu tinha comprado para impedi-lo de dormir completamente nu. Tínhamos quartos separados, mas só a ideia de Tomas descendo o corredor apenas com a pele vestida deixava-me acordada durante noites seguidas. Tinha lhe explicado como funcionava o forno e, antes de eu sair para trabalhar, já tínhamos comido o tabuleiro inteiro de bolos de chocolate, o que resultou numa overdose de açúcar que durou a maior parte do dia. Foi a primeira vez que me permiti começar a ter esperança no fato de ele poder tornarse uma presença permanente na minha vida. Ele já tinha sido o meu melhor amigo durante


seis dos meses mais felizes que eu tivera. Contra todas as probabilidades, eu tinha mesmo começado a criar uma existência mais ou menos normal. Gostava do meu apartamento soalheiro, do meu emprego maravilhosamente previsível numa agência de viagens e do meu deslumbrante companheiro de casa. Tomas era um sonho tornado realidade: atraente, atencioso, forte, mas suficientemente vulnerável para me fazer querer tomar conta dele. Devia ter me lembrado do velho ditado sobre as coisas boas demais para serem verdade, andava muito ocupada desfrutando da dádiva que o destino me deixara cair no colo. O que se seguiu demonstrara que a dádiva tinha sido mais uma maldição e a vida normal uma miragem, apenas. Todos aqueles sonhos cor-de-rosa tinham se estatelado à volta da minha cabeça, deixando cicatrizes que nem crosta tinham formado, muito menos sarado. Com um sacolejo, percebi de que só tinham passado poucas semanas desde a situação dos bolos de chocolate. Parecia impossível; tinha de ter passado pelo menos uma década. Pritkin estava a sacudir-me, mas eu quase nem dei por isso. Abri os olhos, mas o que vi foi o rosto pálido e a expressão enlouquecida de Jack. O torturador preferido da Cônsul adorava o seu trabalho e fazia-o muito, muito bem. É provável que tivesse tido instruções diretas de Augusta. Eu tinha-o visto em ação numa ocasião muito memorável e nunca na vida poderia deixar Tomas nas mãos dele. Independentemente do que ele tivesse feito; por mais furiosa que eu estivesse com ele. Nunca na vida. Parecia que afinal eu é que teria de ser o cavaleiro no cavalo branco. Mas nem nos meus sonhos mais arrojados eu tinha pensado que a situação fosse tão ruim. Havia uma coisa chamada desafio heroico e depois havia o suicídio – e eu não tinha dúvidas de qual era a categoria em que isto se encaixava. Se a morte de Tomas ia ser transformada num espetáculo público, haveria de lá estar a maior parte da MAGIC: vampiros, magos, metamorfos, talvez até alguns Elementais. E, de alguma maneira, não só tínhamos de passar por eles e arrancá-lo de debaixo do nariz da Cônsul, como depois teríamos de abrir caminho a todo custo até ao portal. Era pior do que um pesadelo. — Temos um problema — disse eu a Pritkin, reprimindo um impulso absurdo de dar uma risada por causa do eufemismo. Os olhos dele semicerraram-se em fendas pálidas. — Qual problema? — uma vez que forçara as palavras a sair por entredentes cerrados, parecia que já tinha percebido que iria odiar isto. Isso era bom; poupava tempo. — Billy diz que os corredores estão quase vazios porque todos estão na zona dos vampiros. Vão executar alguém hoje à noite e isso atraiu uma grande multidão. — Quem é que vão executar? — os gélidos olhos verdes de Pritkin fitaram os meus e eu sorri ao de leve, lembrando-me da última vez que ele e Tomas se encontraram. Dizer que não eram amigos era pouco. Regra geral, as pessoas não tentam decapitar os amigos.


— Hum, bem... — suspirei. — É o Tomas — não consegui deixar de estremecer um pouco, mas Pritkin quase não reagiu, a não ser para se mostrar algo aliviado. — Ainda bem. Então isto deverá ser mais simples do que eu pensava — reparou na minha expressão e o franzir de cenho regressou. — Por que isso constitui um problema? Engoli em seco. Eu teria preferido um pouco mais de tempo para lá chegar, tipo um ano ou dois, mas não podia dar-me ao luxo de estar a empatar. Cada segundo que passava era perigoso para Tomas. Jack gostava de brincar com as suas vítimas antes de acabar com elas e ninguém se contentaria com um espetáculo curto. Mas há bem mais de uma hora que estava escuro. Jack podia causar muitos estragos durante esse período. Olhei para Pritkin e consegui fazer um sorriso. Não pareceu ajudar e eu desisti. — Porque nós, hum, temos de ir salvá-lo.


í Parecia que Pritkin estava tentando determinar se eu estava mesmo maluca, ou apenas temporariamente insana. — Está lembrada do que existe naquele lugar? — perguntou num tom baixo e grosseiro, gesticulando na direção dos contornos escuros da MAGIC. — Mesmo que tivéssemos todos os magos de guerra no grupo, não seria suficiente! Billy assentia violentamente por detrás da cabeça de Pritkin. — Ouve o mago, Cass, ele tem razão. Nem sequer tentei convencer Billy a fazer alguma coisa por Tomas. Ele nunca tinha gostado dele, mesmo antes da traição que, devido ao nosso acordo, ele via tanto como um ataque a si próprio, como a mim. Olhei de relance para Mac, mas não vi grande coisa em termos de incentivo. Parecia um cara bastante simpático, mas não deixava de ser amigo de Pritkin, para não dizer que não existia grande amor entre magos e vampiros. Toleravam-se uns aos outros, mas não arriscavam a pele uns pelos outros. Suspirei. — Se nenhum de vocês quer ajudar, esperem aqui. Eu consigo sem vocês — Tomas não iria morrer esta noite. — Ele tentou te matar! — aparentemente, Pritkin tinha decidido argumentar comigo.


— Na verdade, tentou matar você. Achava que estava ajudando-me; às vezes não é lá muito esperto. Pritkin mexeu-se, mas Mac apareceu de repente, com a mão no peito do amigo. — Deitá-la de costas não vai servir de muito, John — disse ele, com tranquilidade. — Não sei o que lhe é este vampiro, mas se o deixarmos morrer, acho que podemos dizer adeus à ajuda da Pítia. — Ela ainda não é a Pítia — disse Pritkin, com os dentes tão cerrados que nem sei como conseguiu proferir as palavras. — É uma criança tola que... Comecei a descer a ladeira, perguntando-me se teria mesmo ficado louca, mas numa questão de segundos, um corpo grande em forma de Pritkin apareceu à minha frente, bloqueando-me o caminho. — Por que está fazendo isso? — perguntou ele, com um ar genuinamente confuso. — Diz-me que não está apaixonada por ele, que não está prestes a arriscar as nossas vidas por causa das técnicas de sedução de um vampiro qualquer! Parei. Não sabia bem o que havia de chamar à mescla de emoções que Tomas inspirava, mas não me parecia que fosse amor. — Ele era meu amigo — disse eu, tentando explicar de modo que Pritkin entendesse – o que era difícil, uma vez que nem eu estava certa. — Ele traiu-me, mas na sua visão deturpada das coisas, pensava que estava a ajudar-me. Pôs a minha vida em perigo, mas também a salvou. Acho que estamos mais ou menos quites. — Então não lhe deve nada. — Não se trata do que devo — e não se tratava. Eu queria salvar Tomas, mas percebi com uma súbita clareza que também queria outra coisa. — Trata-se de marcar uma posição. Uma pessoa que todo mundo sabe que é importante para mim e que vai ser publicamente humilhada, torturada e morta. No entanto, ninguém, nem os magos, nem o Senado, nem um único indivíduo da comunidade sobrenatural, pensou sequer em pedir a minha autorização! — A sua autorização? — Pritkin estava pasmado. — E por que precisariam dela exatamente? Olhei para ele e abanei a cabeça. Que se dane. Se tinha de lidar com todas as desvantagens do cargo, estava na hora de aproveitar também algumas das vantagens. — Porque eu sou a Pítia — disse eu, com tranquilidade e desloquei-me no espaço.

***


Tinha partido do princípio de que o Senado iria usar a sua própria câmara para isto, e estava certa. A habitual vastidão ecoante já não estava vazia. A enorme laje de mogno que servia de mesa do Senado ainda lá estava, embora agora tivesse um novo propósito. As cadeiras que normalmente se alinhavam num dos lados tinham sido deslocadas, organizadas num semicírculo diante da mesa. Atrás delas estavam fileiras e fileiras de bancos, apinhados de metamorfos, magos e vampiros. Os únicos que não marcavam presença eram os Elementais, a menos que a parecença com os magos fosse tanta que eu não conseguisse distingui-los. Depois da minha experiência no Dante's, tinha algumas dúvidas sobre isso. Tinha aterrado no lugar exato que planejara, mesmo ao lado de Tomas. Não estava interessada na sutileza, embora não tivesse havido maneira de consegui-la, fosse como fosse; tinha de lhe tocar para conseguir transportar-nos dali para fora. Jack tinha recuado uns passos quando eu apareci de rompante e, para minha surpresa, não fez nenhum movimento para me agarrar. Os meus olhos perscrutaram as filas de modo automático, à procura de um rosto em particular. Encontrei-o com facilidade, sentado na ponta da fila da frente na posição mais próxima de mim. O elegante traje preto de Mircea era perfeito em termos de corte e assentava-lhe na perfeição e a camisa de colarinho cinzento-claro que usava por baixo era de seda. Os botões de punho em platina que cintilavam de modo ténue à luz do candeeiro constituíam as suas únicas joias. Parecia tão elegante e dominante como sempre, mas a sua aura flutuava de modo selvagem. Senti uma pontada quando ele me viu, mas ele não fez nenhum movimento para avançar. Atrás dele, muitos dos espetadores tinham virado as cadeiras ao contrário na pressa de se levantarem. A Cônsul estava levantada, com uma mão no ar, numa espécie de sinal para que se contivessem, supus. Cada zona de um grupo no interior da MAGIC era sacrossanta, da mesma maneira que uma embaixada no estrangeiro pertence ao seu governo nacional. Os metamorfos e os magos tinham de se comportar em território de vampiros, caso contrário violavam os tratados que os protegiam e davam início à época da caça. Senti Sheba acordar e a começar a lamber uma pata na minha omoplata esquerda. Estava pronta para a luta – só era pena ela ser só uma e os outros serem uns mil. — Cassandra, voltaste para nós — como sempre, a Cônsul parecia perfeitamente serena. O único movimento era o do seu traje, que consistia em pele nua coberta por uma série de serpentes a contorcer-se. Desta vez, eram pequenas, nenhuma delas maior do que um dedo e deslizavam sobre ela como uma segunda pele cintilante. — Estávamos preocupados contigo. De repente, algo me assolou, dando-me uma sensação estranha e de formigueiro na pele. Não doía, mas eu não sabia o que era e, naquelas circunstâncias, isso não era bom. Decidi não ficar por ali para descobrir.


— Aposto que sim. Quem me dera poder ficar aqui de conversa, mas fica para a próxima — agarrei no ombro de Tomas com mais força e tentei tirar-nos dali, mas nada aconteceu. Não senti o mínimo impulso do meu poder, embora este estivesse vivo e de boa saúde momentos antes. — Não consegue transportar-te, Cassandra — disse a Cônsul, com o seu habitual tom estável. Tinha uma boa voz, bem modulada e ligeiramente rouca. É provável que um homem a achasse sensual; eu estava a ter uma reação bem diferente. Tomas mexeu-se um pouco e eu baixei os olhos para olhar para ele. — É uma armadilha — disse baixinho e com fraqueza. — Eles disseram que viria me buscar. Não acreditei; não havia razão para isso. Por que voltou? — o grito angustiado pareceu drenar sua força e ele caiu inconsciente. Fitei a Cônsul, que respondeu ao meu olhar com calma, sem um indício de pedido de desculpas à vista naquele rosto belo. Tomas estava vivo, mas os seus ferimentos eram graves, muito graves. Estava deitado sobre a madeira escura como uma forma de arte bizarra – algo que Picasso poderia ter pintado se tivesse o hábito de passar os seus pesadelos para a tela. Podia ser uma armadilha, mas era óbvio que, se eu não tivesse aparecido, o Senado teria deixado que Jack o matasse. É provável que tinha a intenção de fazê-lo de qualquer modo agora que ele já servira o seu propósito. Olhei para a Cônsul com os olhos semicerrados, mas ela não teve reação. Já a tinha visto matar dois vampiros anciões com pouco mais do que um olhar, quando eles estavam mais longe dela do que eu estava agora. Mas não senti nenhuma picada da areia do deserto no meu rosto nem nenhum ímpeto de poder a advertir-me. De repente ocorreu-me que, numa sala cheia de criaturas mágicas, eu não sentia magia nenhuma. — Usaste uma bomba de nulo em mim, não foi? A Cônsul sorriu. Não era uma expressão agradável. — Escaparam algumas. Tendo em conta tudo, não me apetecia muito estar a pedir desculpa por ter levado as coisas dela. — Ora, maldição, vou tentar ser mais meticulosa para a próxima. — Não temos tempo para lutas de palavras — interrompeu um velho mago, olhandome furiosamente. — O efeito não vai durar muito mais tempo e sabes que não podemos dar-nos ao luxo de explodir outra... Um dos membros do Senado, uma morena de saia armada, pegou ele pelo pescoço, asfixiando a voz enquanto o içava no ar. Olhou de modo inquiridor para a Cônsul, mas a


líder do Senado abanou a cabeça. O estrago estava feito. Eu só precisava ganhar algum tempo até o feitiço se quebrar. Depois disso, o meu poder iria conseguir fazer-me sair dali a mim e a Tomas. Infelizmente, eu não fazia ideia de quanto tempo isso poderia demorar. — Escuta, tudo o que eu quero é o Tomas — disse-lhe eu. — Estava prestes a matálo, portanto presumo que não vá sentir a falta dele. A minha tentativa de iniciar um diálogo caiu por terra. — Achei que isso não fosse necessário, Cassandra — disse a Cônsul, de modo tranquilo. Olhou de relance para os vampiros à sua volta, alguns dos mais poderosos do planeta. — Levem-na — disse ela, simplesmente. Não tentei fugir. Não valia a pena. Noutras circunstâncias, quase teria sido engraçado. O que ela pensava que eu ia fazer que teria de ser impedido por meia dúzia de mestres de primeiro nível? Sem o meu poder e com a minha sentinela a funcionar mal, até o vampiro mais jovem dali poderia transformar-me em jantar sem qualquer tipo de problema. Foi então que percebi que não era comigo que ela estava preocupada. — Retira-o! — Mircea tinha parado a pouca distância da mesa e, embora o seu rosto estivesse impassível, tinha os punhos cerrados nos flancos. Não era bom sinal para alguém que costumava controlar-se tão bem. Os outros vampiros pareciam estar de acordo. Não olhavam para mim – todos os olhos estavam fixos nele. — Mircea — a Cônsul caminhou por detrás dele e pousou sobre o seu ombro uma mão macia, de pele cor de bronze. O objetivo do gesto parecia ser acalmá-lo, mas ele repeliu-o. O círculo de vampiros inspirou de modo coletivo e a beldade sulista chegou mesmo a arquejar. A mão da Cônsul transformou-se rapidamente num braço à volta da garganta dele, mas foi como se ele nem tivesse dado por isso. — Sugiro que prestes atenção — disse ela. Reparei que, apesar do aperto dela, Mircea avançava lentamente, nem que fossem centímetros. — O que espera ganhar ao permitir que isso continue? — Permitir que continue o quê? — olhei para ela e depois para Mircea, numa confusão crescente, mas apenas vi a calma fachada dele a decair um pouco mais. Não precisava que ela me dissesse que havia algo de errado. A cara dele estava branca como a cal da parede, mas os seus olhos ardiam como duas velas. — Isso já dura há tempo demais — concordou a Cônsul. — Se o libertar, discutiremos o assunto em termos amigáveis. Caso contrário... — Caso contrário o quê? — eu podia não perceber o que estava a acontecer, mas reconhecia uma ameaça quando a ouvia. — Vou soltá-lo — disse ela, de modo tranquilo. — Depois veremos se consegue lidar com as consequências da sua vingança — os olhos negros faiscaram e, de repente, percebi


como é que ela tinha dominado um império quando era apenas uma adolescente. — Preciso dele, Cassandra! Estamos em guerra. Não posso tê-lo assim, não agora. — Cassie... — de alguma maneira, Mircea tinha conseguido levantar o braço direito, apesar de ter pendurado nele um membro do Senado quase tão velho como a Cônsul. Anéis de sensações irradiavam da mão dele como fumaça de uma fogueira. Primeiro pensei que estivesse apenas a libertar energia, mas quando um punhado deles se roçou em mim, compreendi. A sensação era a mesma das minhas visões antigas, aquelas em que via vislumbres do futuro. Andavam ausentes desde o meu encontro com a Pítia e eu já me perguntara se teriam desaparecido de vez. Em parte, esperava que sim. Desde que lembrava que faziam parte de mim, mas nunca me tinham mostrado nada de bom. Isto não era exceção. Um fragmento de visão enrolou-se à volta do meu braço apesar do meu melhor esforço para me esquivar. Era tão quente que eu estava à espera de ver a minha pele a empolar. O que tive em vez disso foi pior – um mosaico de imagens, cada uma mais cruel do que a outra: um Mircea coberto de sangue a debater-se pela sua vida numa luta de espadachins quase demasiado rápida para se conseguir ver; uma Myra com ar triunfante a sair das sombras para lhe atirar com qualquer coisa; uma explosão que foi mais sentida do que ouvida, reverberando pelo solo e rasgando o ar; e depois, onde tinham estado dois lutadores elegantes, uma massa ensopada de carne e ossos que reluzia, lustrosa e vermelha à média luz, tão misturada que era impossível dizer onde começava um corpo e acabava o outro. Gritei e afastei-me de repente, provocando a dissolução da cena. Tropecei para trás, demasiado desesperada por fugir das imagens para me preocupar com a dignidade. Olhei em volta de modo frenético, mas a maioria dos vampiros continuava fixada em Mircea. Alguns deles concederam-me um relanceio intrigado, mas nenhum parecia ter visto nada de invulgar, muito menos a morte macabra de um dos seus membros mais antigos. Mas na minha mente não havia dúvidas quanto ao que tinha testemunhado. Algum lugar, numa qualquer era, Myra fora bem-sucedida. A sensação que eu tinha era de que alguém tinha deitado um balde de cubos de gelo dentro do meu estômago. As minhas visões concretizavam-se sempre – sempre. Já tinha tentado mudar o desenrolar das coisas antes, principalmente quando era mais nova. Tinha ido ter com Tony inúmeras vezes para lhe dar conta de desastres iminentes, acreditando nele quando jurava que iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedi-los. Mas está claro que a única coisa que ele alguma vez fizera tinha sido arranjar maneira de retirar lucros deles. E, no fim das contas, tudo tinha acontecido sempre tal e qual como eu previra. O mesmo aconteceu com uma visão que tive quando adulta, quando tentei avisar um amigo do seu assassinato iminente. Fiquei sem saber se ele recebeu a mensagem ou não, mas isso não teve importância. Ele morreu mesmo. Mas tudo isso aconteceu antes


de eu me tornar a Pítia, ou pelo menos, a sua herdeira. Desde então, eu já tinha mudado coisas, não tinha? E, se Myra tinha vencido, por que Mircea ainda ali estava? Por fim, concentrei-me na Cônsul. Precisava de respostas e Mircea não estava em condições de dar. — O que se passa? Isso é algum truque? — no momento em que o disse, percebi que não era. Já tinha tido visões suficientes para reconhecer o que era autêntico quando o sentia. Os olhos da Cônsul semicerraram-se em fendas. — Está brincando comigo? — perguntou ela, tão baixinho que quase não a ouvi. Baixei os olhos para Tomas e inspirei profundamente. Não era eu que estava a brincar. — Quero o Tomas — disse eu, com menos segurança do que gostaria. — É óbvio que também quer alguma coisa. Se me disser o que é, talvez possamos fazer uma troca. — Não sabe — finalmente vi uma emoção a cruzar aquele belo rosto. Foi de surpresa. Tomas fez um pequeno som e eu perdi as estribeiras. — Diz logo! — a visão tinha me dado cabo dos nervos e não me apetecia estar de conversinha enquanto Tomas se esvaía lentamente em sangue. A Cônsul respirou fundo – coisa de que não necessitava – e assentiu com a cabeça. — Muito bem! Retira o géis que colocaste no Lorde Mircea e eu entrego-te o traidor. Arregalei os olhos. — O quê? — em algum ligar pelo caminho, tinha me escapado qualquer coisa. — O único géis que aqui existe é o que ele colocou em mim! Tem sido um inferno. — Um inferno? — Mircea riu de modo abrupto, mas sem alegria. — O que conhece do inferno? — libertou-se das suas restrições de carne e osso e deixou-se cair no chão. Dois vampiros mergulharam debaixo da mesa para o apanharem, mas não cheguei a ver o quanto se aproximaram. Só sei que não foi o suficiente. De repente, fui esmagada contra um peito rijo. — Experimenta o meu — sussurrou ele, antes de me prender os lábios num beijo bruto. O ímpeto das emoções dele atravessou claramente o géis, atingindo-me como um soco no estômago. A mesma energia que arqueava entre nós sempre que nos encontrávamos reverberou em Mircea, mas tinha aumentado. Não se tratava de nenhum vago tremor de paixão. O anseio permanecera em combustão lenta, à espera do combustível adequado e agora ateara-se num fogo estrondoso. Era como afogar-me num rio de lava derretida. Por um instante, senti-o nas veias dele, um prazer tão pungente como a dor, antes de verter para as minhas numa vaga escaldante de desejo. Senti-me a debater, a cair no calor, a afastar-me do pensamento para um lugar de uma sensação abrangente e consumidora. Fogo. Doce


fogo. O beijo foi duro e brutal, como se ele quisesse comer-me viva. Não houve nada de terno nele, nada de romântico. E era mesmo o que eu queria. As minhas mãos fecharam-se de modo convulsivo nos ombros dele, com as minhas unhas a enterrarem-se no seu casaco. A sua boca não largava a minha, feroz e insistente e uma mão firme deslizou por detrás da minha cabeça para me segurar. Deu-me uma mordidela com uma das presas e eu provei o meu próprio sangue. Deu um grito abafado e recuou, com os olhos selvagens, o rosto belo e feroz. A língua dele projetou-se para provar o meu sangue nos seus lábios; depois os olhos fecharam-se e ele estremeceu. Rasguei o colarinho para abri-lo e a cabeça dele inclinou-se, quase às cegas, em direção ao teto, dandome um melhor acesso. As minhas mãos abriram-lhe a camisa, fazendo saltar botões, enquanto a minha língua e os meus lábios deslizavam pelas veias do seu pescoço. As palmas das minhas mãos delinearam os contornos do peito dele e percorreram as costelas, deleitando-se com o fato de a respiração dele acelerar com o meu toque. Beijei um trilho pela pele tensa e os músculos rijos até chegar a um mamilo e, quando o mordi, soltou aquilo que foi quase um grito Eu sabia como ele se sentia – a energia entre nós acompanhava o latejar da minha pulsação e eu estava ciente de que podia entrar em combustão a qualquer momento. Mircea empurrou-me contra a parede de arenito da câmara, mas eu fiquei lá parada – mais devido ao impacto físico daqueles olhos incendiados do que pelo corpo que fazia pressão sobre o meu. Enrolei uma perna à volta de uma das dele e fiz deslizar uma mão até à sua nuca, moldando-me a ele. As mãos dele desceram abaixo da minha cintura e ergueram-se, e eu arquejei quando a sua ereção se comprimiu totalmente contra mim. Era grande e aquilo sabia maravilhosamente, mas eu queria mais. Parecia que ele também queria, porque ofegava o meu nome por entre beijos selvagens, duros, passava a mão pelo meu cabelo e sobre o meu rosto, praguejava em romeno e esquecia-se com regularidade da dignidade. Eu própria não estava a sair-me melhor, fazendo exigências desarticuladas sempre que conseguia respirar. Dei por mim montada numa das suas pernas, com a coxa comprimida na sua virilha. Mesmo através da roupa, a sensação era inacreditável: uma combinação de prazer puro e duro e de desejo sôfrego. Foi então que ele se afastou de repente, abrindo uma distância abrupta de centímetros entre nós. A sua expressão era desesperada e ele parecia quase doente, como se angustiado pela mesma necessidade que me atormentava. Contudo, quando me cheguei a ele, sem compreender, ele retraiu-se como se o meu toque lhe causasse dor. O géis mostrou-nos de imediato o que era de fato a dor, chamejando num calor branco ardente. Fui assolada por uma dor além da imaginação, que me rasgou a garganta grito após grito, quase me desfazendo as cordas vocais. O sangue ardeu-me sob a pele até eu achar que iria morrer de desejo não satisfeito. Lágrimas quentes escorriam-me sobre as faces e caíam nas mãos de Mircea, enquanto ele me segurava o rosto, tentando acalmar-me. Mas nada ajudava; a dor era literalmente insuportável. Os meus joelhos cederam


quando os gritos pararam de me rasgar de baixo para cima e Mircea apanhou-me quando tombei contra ele. — Mircea! Por favor... — eu não sabia o que estava a pedir, só que ele fizesse aquilo parar, que o tornasse melhor. Fechei a pouca distância que havia entre nós e beijei-o com desespero. Tive uns segundos para me deliciar no calor familiar da sua boca e no aroma limpo da sua pele antes que ele se afastasse com um solavanco. — Cassie, não! — pareceu-me tenso, como se estivesse a obrigar a palavra a sair. Colocou as duas mãos sobre os meus braços, segurando-me afastada dele, mas as suas mãos tremiam e a coluna forte da sua garganta engoliu silenciosamente em seco. Estava a combater o géis, percebi por fim, mas eu não podia ajudá-lo. As mãos dele subiram para me aninhar a cabeça, afagando-me o cabelo. A combinação de dor e prazer era devastadora. O meu corpo estava arrasado pelas vagas alternadas de agonia e êxtase e a minha pulsação troava tão alto nos meus ouvidos que eu quase não conseguia ouvir. Mesmo quando eu pensava que estava prestes a cair na insanidade, a energia chamejou e transformou-se em algo completamente novo – uma luminosidade cintilante, como água sob o sol do deserto. Arrebentou sobre nós como uma onda de maré e a dor desapareceu, pura e simplesmente. No seu lugar surgiu uma arrebatadora sensação de alívio, seguida de um impulso de pura alegria. Vi o espanto nos olhos de Mircea quando também ele foi assolado. Percebi, de repente, que mais lágrimas me escorriam pelo rosto. Não era pela lembrança da dor, mas por me ter sentido tão bem, tão segura, perto dele. Eram todos os sonhos que já tivera juntos num só – casa, família, amor, aceitação – e algo tão empolgante que me cegou em relação a tudo o resto. Por um instante, esqueci-me de Tomas e de Myra, de Tony e de toda a minha lista interminável de problemas. Pareciam já não ter importância. Tremi com a percepção reveladora. Não era uma simples atração por Mircea. A atração não me fazia sentir assim, não destruía a minha capacidade de respirar, não me provocava dor, não me fazia sentir irremediável e desesperada com a ideia de estar separada dele. Agarrei-me a ele, sabendo que não havia maneira nenhuma de ele poder retribuir os meus sentimentos, a menos que um feitiço o obrigasse a isso, e não me importava. Não tinha importância se ele correspondia ao meu amor. Eu desejava-o como a uma droga, precisava dele para me sentir viva e completa. Muito mais disto e eu faria qualquer coisa, mas mesmo qualquer coisa, para nunca mais me separar dele. Senti uma emoção correspondente na firmeza do seu aperto e por fim compreendi. Parecia que a paixão era apenas uma das artimanhas no repertório do géis, e não era a mais devastadora. Nem de perto nem de longe. — Quando é que lançaste o feitiço? — inquiriu a Cônsul.


Fitei-a com um olhar vago, esquecida que estava da sua presença. Os meus pensamentos estavam densos e lentos, o próprio ar à minha volta estava pesado e eu tive de me esforçar para entender a pergunta. Pensei nas opções que tinha, que eram preocupantes. Não é provável que “não sei” caísse bem, mas realçar o fato óbvio de que a Cônsul estava enganada também não devia ser melhor. Não fazia ideia que resposta poderia satisfazê-la, nem de quanto tempo precisaria para empatar. E o fato de Mircea estar a espetar-me qualquer coisa na caixa torácica também não estava a ajudar. Baixei os olhos e vi que o objeto que estava a machucar-me, era um salto alto cor-derosa que ele devia ter escondido dentro de um bolso interior do casaco. Tinha um aspecto estranhamente frágil, com o delicado material de cetim a começar a escamar em certos locais e algumas lantejoulas de cor mais escura presas por fios. Se não fosse o feitio, pareceria uma antiguidade. Não me parecia que fizessem saltos agulha de oito centímetros nos bons velhos tempos. Passado um minuto, fez-se luz. Nessa manhã, eu andara a mancar pela cozinha do Dante's por ter perdido um sapato. Era vermelho vivo, não cor-de-rosa e tinha aspecto de novinho em folha, mas fora isso, era o gêmeo deste. Por sorte, o corpo de Mircea quase me tapou, porque duvido que tenha conseguido manter a expressão controlada. O teatro. Eu tinha perdido aquele sapato há mais de cem anos num teatro de Londres. — Cassandra? — a Cônsul não parecia agradada com o atraso, o que era irônico se tivéssemos em conta o seu hábito de esmorecer em momentos inoportunos. Não respondi, lembrando-me da faísca que pensava ter imaginado nessa outra época. O Mircea dessa era não estava sob o efeito do géis, mas eu estava. O feitiço devia tê-lo reconhecido como o elemento necessário à sua completude e fez a ligação por sua conta. A implicação atingiu-me como uma marreta. De modo inadvertido, eu tinha lançado sobre ele um feitiço que tivera mais de um século para crescer. — Há quanto tempo? — repetiu a Cônsul, com a voz de alguém que não estava habituada a ter de dizer nada duas vezes. — Não tenho certeza — disse eu, por fim. Estava com a voz áspera, mas parecia não conseguir aclarar a garganta. — Possivelmente... — consegui engolir. — Pode ter sido na década de 1880. Alguém proferiu uma blasfêmia, mas eu não vi quem foi. Foi o máximo que consegui fazer para manter parte da minha concentração na Cônsul. O calor do corpo de Mircea e o horror perante o que lhe tinha feito estavam a provocar o caos nas minhas emoções. A paixão e a culpa debatiam-se pelo domínio, mas o medo também estava a fazer uma forte aparição. O meu estômago contraiu-se violentamente. A Cônsul não parecia satisfeita. — O géis ficou dormente depois de saíres, incapaz de se completar sem você — ponderou ela. — E quando vocês os dois tornaram a encontrar-se, você não passava de uma criança, jovem demais para que se manifestasse. Mas quando se encontraram em adultos, tornou-se ativo e o seu poder começou a aumentar.


Consegui assentir com a cabeça. Mircea estivera a acariciar-me a mão para manter o contato entre nós, afagando-me os ossos do pulso e deslizando para baixo para me massajar a palma da mão com o polegar. Mas agora tinha progredido para subir e descer as mãos pelo meu braço, como se ansiasse por mais contato. E, onde quer que tocasse, deixava o que parecia ser um prazer líquido. Este penetrava na pele, deixando-me tão zonza como se o seu toque fosse intoxicante, e talvez fosse. Eu não sabia como funcionava o feitiço, só sabia que o seu efeito era bom demais. Só queria ficar ali para sempre, com o géis a fluir à nossa volta como uma cascata deslumbrante. Sabia que não era real, que era apenas um feitiço que tivera tempo demais para se estabelecer, mas era muito difícil importar-me com isso. Quando é que voltaria a sentir-me assim na vida? Já tivera vinte e quatro anos de realidade e nunca sequer me aproximei disso. Uma mentira assim tão boa não mereceria alguma coisa? A resposta do meu corpo era um estrondoso sim. Só que – sussurrava voz fininha – não era propriamente essa a questão, não? Não só merecia alguma coisa, como merecia tudo, porque era isso que o feitiço exigia. E que não podia ter. — A pessoa que inicia o feitiço é que o controla — dizia a Cônsul. — Mas você o abandonou à sua sorte durante mais de um século. — Não foi intencional! Ela arqueou a sobrancelha perfeita e repetiu o código não oficial dos vampiros. — Estamos a falar de consequências, não de intenções — os vampiros são extremamente práticos em relação a essas coisas. Os resultados de um ato são sempre mais importantes do que a existência ou não de intencionalidade de fazer mal. E o resultado do meu ato foi catastrófico. — Então, e o feitiço original? Aquele que Mircea lançou em mim? — perguntei, com desespero. — Se ele o remover, talvez os... Os efeitos enfraqueçam. E nos deem tempo para encontrar um mago que consiga levantar o duplicado. — Isso já foi tentado, Cassandra — informou-me a Cônsul de modo paciente. — O feitiço está a revelar-se espantosamente... Resistente. — Não quer quebrar? — tentei pensar bem nisso, mas Mircea estava a tornar impossível o raciocínio profundo. Tentei sair do seu abraço, apenas o tempo suficiente para arejar as ideias, mas ele emitiu um som inarticulado de protesto e puxou-me mais para si. — Não — disse a Cônsul, num tom ameno. Lancei um olhar que tencionava ser cauterizante, não pensando, naquele momento, em como isso era estúpido. Se ela queria ajudar Mircea, estava fazendo um péssimo trabalho. De


acordo com Casanova, o feitiço cresceria mais depressa com a proximidade entre mim e Mircea e nós não podíamos ficar muito mais perto do que já estávamos. Não tardaria a que nenhum de nós se importasse com mais nada. E isso significava que não haveria ninguém que detivesse Myra. Começava a perceber como é que a minha visão poderia facilmente tornar-se realidade. Por um momento, pensei em tentar explicar a situação à Cônsul, mas duvidava que ela acreditasse em mim. Não tinha nenhuma prova para apresentar e os vampiros não são propriamente conhecidos por ter fé nas coisas. Mexi-me um pouco para ficar momentaneamente escondida do olhar arguto dela e olhar Mircea nos olhos. Ele tinha pensado em trazer o sapato, o que significava que, em algum momento, devia ter percebido o que tinha acontecido. Eu só esperava que ele continuasse lúcido o suficiente para compreender o que eu precisava de lhe dizer. — A Myra — murmurei. Os magos estavam fora do alcance do som e sem magia não conseguiam usar a audição melhorada. Mas os vampiros conseguiriam ouvir qualquer conversa na perfeição. Mircea fitou-me por um longo momento e eu quase consegui vê-lo a juntar as peças. Não sabia quanto é que ele compreendia, mas ele estava comigo quando eu e Myra nos encontrámos pela primeira vez. Sabia que ela tentara matar-me e que tinha fugido. E ouvirame a chamá-la pelo nome em Londres, partindo do princípio de que ele se lembraria de um pormenor tão insignificante passado tanto tempo. Eu tinha sérias dúvidas. É provável que ele supusesse que ela tinha intenção de usar as mesmas artimanhas, mas não que ele fosse o seu novo alvo. E eu não tinha uma maneira melhor de lhe dizer. Não que ele pudesse fazer grande coisa, mesmo que soubesse. Mircea podia ser capaz de se defender no presente se fosse avisado com antecedência, mas Myra podia atacá-lo no passado. O fato de ele ainda ali estar era a prova de que ela ainda não tinha conseguido, mas se eu não me mantivesse sã o suficiente para a impedir, isso não seria verdade por muito tempo. A história iria rescrever-se, sem Mircea lá presente. E com Myra como Pítia. Depois do que me pareceu um ano, Mircea assentiu de leve com a cabeça. — Dois minutos — disse ele, baixinho. Fitei-o, confusa, até perceber o que ele queria dizer. Estava a dizer-me quando iria esgotar-se a bomba de nulos. Ele ia soltar-me. Fitei-o com incredulidade. — Então e você? — murmurei. Ele abanou a cabeça. Eu não sabia se isso significava que não podia dizer-me, tendo a comunicação assim tão limitada, ou se não queria que eu soubesse. Percebi que estava a agarrar-lhe os braços com força suficiente para lhe fazer uma nódoa negra, se ele fosse humano. Mas só quando o larguei é que um espasmo de dor lhe cruzou o rosto. Senti um eco disso em mim mesma, uma dor física devido ao enfraquecimento do contato e tive de obrigar-me a não o restabelecer.


— Tem de ir — disse ele, baixinho. Engoli em seco. O segundo géis era novo para mim, mas tivera um século para se apoderar de Mircea. Se eu me sentia assim e o feitiço só tinha tido um dia para me deitar as garras, o que estaria ele a experimentar? Mesmo que a Cônsul estivesse certa e o feitiço tivesse esmorecido depois de eu ter regressado à minha própria época, não deixava de lá ter estado, amadurecendo lentamente durante décadas. E, a julgar pela reação dele, quando o feitiço acordou, fê-lo de modo vingativo. A ideia de colocá-lo de novo naquele inferno era excruciante, mas que outra opção havia? Eu tinha de enfrentar Myra, caso contrário, morreríamos os dois e não podia levá-lo comigo e arriscar-me a uma exposição. Ergui o olhar para ele, deixando que o remorso fosse visível no meu rosto. — Eu sei. Fechou os olhos e os seus braços cerraram-se à minha volta por um longo momento. Puxei-o para mim, beijei-o e a dor diminuiu de imediato. Desde que mantivéssemos um contato próximo, o géis ficava satisfeito e eu sabia o porquê. Quase conseguia sentir a ligação entre nós a fortalecer-se, a energia a zumbir alegremente por onde quer que nos tocássemos. Agora estava contido, mas o que iria acontecer quando eu partisse? Eu tinha sentido a agonia em que ele se encontrava quando cheguei e duvidava que este breve encontro fosse aliviar o desejo durante muito tempo. Na verdade, poderia piorá-lo, como quando se oferece uma única dentada de pão a um homem a morrer à fome. Mircea abriu lentamente os braços e recuou. Eu já estava à espera, mas ainda assim, a dor quase me fez cair de joelhos. Consegui manter-me de pé, não sei bem como, mas só em parte reprimi um ruído agonizante. Violentos tremores de choque irradiaram do meu âmago, abanando-me com força e as minhas mãos ficaram frias como gelo. Arqueei os ombros contra o ardor de desejo que me abalava e envolvi-me com os meus próprios braços para impedir que estes o puxassem para mim. Casanova dera a entender que a ligação era um progresso lento, que se desenvolvia por fases durante um longo período de tempo. Mas o nosso não estava a funcionar assim. Talvez por não ser propriamente recente, pelo menos num dos lados, ou talvez por ter sido duplicado por acaso. Eu só sabia que era intenso. Mircea estava próximo o suficiente para dar a impressão de que continuava abraçado a mim. A dor tinha me arejado as ideias como sais de cheiro, permitindo-me perceber a razão. Embora ele pudesse estar disposto a libertar-me, a Cônsul não estava, certamente. Eu tinha me recusado a ser a marionete dela, tinha lhe roubado mercadoria valiosa e tinha colocado o seu principal negociador sob o efeito de um feitiço perigoso. O fato de o último, pelo menos, ter sido inadvertido era irrelevante na perspectiva dela. Pus-me a pensar no que teria ela planejado para mim se os seus magos não conseguissem quebrar o feitiço. Com base no ato de Mircea, eu quase conseguia adivinhar. São poucos os feitiços que sobrevivem à morte de quem os lança. E se eu não ia ser a sua Pítia de estimação, ela não tinha qualquer interesse em manter-me viva.


Cruzei o olhar com o de Mircea. — Hei de arranjar maneira de quebrar isso — disse-lhe eu. Desta vez, não me dei ao trabalho de sussurrar. — Prometo. Fez um sorriso ligeiro, mas tinha os olhos infinitamente tristes. — Lamento, dulceatã. A Cônsul disse qualquer coisa, mas eu não a ouvi. Primeiro, a câmara estava silenciosa o suficiente para se ouvir um alfinete a cair, mas quando dei por isso, um vento uivante e ártico tinha enchido a sala, chicoteando-me o cabelo em madeixas lancinantes contra o meu rosto. Parou por um instante, reunindo força perto do teto alto da câmara, antes de explodir na pior tempestade de gelo que eu alguma vez vira: Os ventos brutais e dilacerantes ignoraram a mim e a um pequeno espaço à minha volta e, por um minuto, pensei que a minha sentinela tinha finalmente decidido acordar, mas não houve nenhuma inundação de luz dourada, nenhuma forma distinta de um pentagrama. Havia qualquer outra coisa a proteger-me e, de momento, não me interessava saber o quê – desde que continuasse a fazê-lo. O caos espalhava-se por toda a parte fora daquela pequena ilha de calma. Mircea deu um passo para se afastar e eu arquejei de dor quando o géis percebeu que algo tinha corrido mal. Eu o teria agarrado de novo, apesar das consequências, mas não conseguia vê-lo no rodopiante vazio branco. — Mircea! — gritei, mas a minha voz perdeu-se nos ventos ensurdecedores. Sem saber o que mais fazer, inclinei-me para frente e lancei-me sobre Tomas. Felizmente, o ponto imaculado foi comigo. Não o cobriu por completo e os seus ferimentos eram demasiado extensos para que eu pudesse esticar-me por cima dele, mas as úlceras causadas pelo frio na parte de baixo das suas pernas eram a menor das minhas preocupações. Andei à procura das suas algemas, mas não consegui vê-las, não consegui ver nada perto do mundo violento e dilacerante de branco. Foi então que algo ressaltou sobre a mesa mesmo ao meu lado e eu percebi o que era o barulho estranho e estrondoso que se precipitava sobre nós. O vento transportava pedras de granizo do tamanho de bolas de boliche que, uma vez encurraladas entre as quatro paredes da câmara do Senado, não tinham outra maneira de gastar a sua fúria a não ser fazendo ricochete de todas as superfícies disponíveis. Era como ser apanhada no jogo de flippers do Inferno. Se eu não conseguisse libertar Tomas em breve, iriam esmagar seus pés e eu não teria como arrastá-lo para lado nenhum. Eu tinha de nos tirar dali e encontrar Myra, embora não fizesse ideia de como iria conseguir enfrentá-la no estado em que estava. Tudo o que eu queria era enrolar-me numa bolinha e esperar que Mircea me encontrasse – e, se ali ficasse,


sabia que ele o faria. Fosse qual fosse a força que lhe permitira recuar, o géis era mais forte. Já não faltava muito. Alguma coisa bateu na perna direita de Tomas, abanando o corpo todo. Estiquei-me, mas não consegui chegar longe o suficiente para lhe escudar os membros inferiores sem lhe deixar a cabeça desprotegida e não conseguia puxar as pernas para cima porque estavam amarradas para baixo. Tentei transportar-nos dali, mas embora desta vez tenha sentido algo como um ligeiro puxão, continuei a não conseguir ir a lado nenhum. Despacha-te — pensei com desespero. Finalmente percebi como se abriam as algemas nas mãos de Tomas e tinha acabado de lhes abrir o fecho quando a sala ficou de repente muito mais à pinha. Havia um estúdio de tatuagens mesmo no meio da sala, tão perto da mesa principal que estava quase em cima de nós. O rosto de Mac, semi-obscurecido pela neve, apesar de estar a poucos metros de distância, surgiu sob o clarão do letreiro da MAG INK. Passado um segundo, um braço coberto de desenhos enroscados esticou-se da porta da entrada e agarrou em Tomas pela perna, abrindo o fecho do tornozelo direito com uma facilidade advinda da prática. Assim que Mac içou Tomas para a porta, eu engatinhei pela mesa atrás deles. A loja tinha aterrado na impressionante fileira de degraus que ia dar ao estrado sobre o qual estava a mesa, estando, portanto, inclinada na minha direção. Se eu conseguisse avançar mais uns passos, o meu impulso deveria fazer o resto. Acabara de conseguir agarrar a mão que Pritkin estendeu quando alguém me agarrou no tornozelo. A minha sentinela – diabos a levem! – não chamejou, mas Sheba ficou subitamente agitada. Tinha ignorado Mircea, ou por causa do efeito da bomba de nulos ou porque não o entendia como uma ameaça. Mas em relação a quem me tinha agarrado a conversa já era outra. Senti-a a fluir pelo meu corpo abaixo e depois ouvi um som de um gato grande a assanhar-se e um gemido surpreendido de uma dignificante líder do Senado. Sheba lançou-se para fora do meu pé e, passado um segundo, a Cônsul largou-me a perna. — Agora! — Pritkin deu um puxão e eu quase voei pelo resto do trajeto sobre o lustroso tampo da mesa. Tombamos para dentro da porta da loja e, de repente, eu tornei a ver. Nem Mac nem Tomas estavam na parte da frente, mas eu não tive tempo para me preocupar com isso. Quando Pritkin gritou “Tudo desimpedido!”, o edifício inteiro começou a abanar. Logo a seguir estávamos a acelerar através de pura pedra, num louco trajeto em ziguezague no seio dos alicerces da MAGIC. Estávamos a fazer um tempo muito bom, parecia-me a mim, embora estivesse tão ocupada a agarrar-me a Pritkin, por sua vez agarrado ao balcão, que era difícil de dizer. No entanto, vi um borrão escuro a descer pelo túnel recentemente escavado e, passado um minuto, Kit Marlowe tombava para dentro da sala violentamente oscilante. Parecia severo e determinado e havia nele uma atmosfera de perigo


que eu não recordava do nosso breve encontro na infância. Nessa noite, ele tinha estado a desfrutar da melhor hospitalidade de Tony, não a sangrar de meia dúzia de ferimentos. — Oh, que porra! — ouvi Pritkin a murmurar. Empurrou-me para longe das suas costas, prendeu-me as mãos aos rebordos da mesa e gritou “Agarra-te”, alto o suficiente para ameaçar rebentar-me os tímpanos. Depois soltou-se e saiu disparado pela sala para ir ter com Marlowe. Agarraram-se um ao outro, mas sem magia, tudo se resumiu a uma luta à moda antiga e à força dos músculos – e eles pareciam mais ou menos equiparados. Marlowe gritava-me qualquer coisa, mas eu não conseguia ouvi-lo por cima da algazarra que os nossos esforços para passar o túnel produziriam. E estava demasiado consumida pelas ondas de dor que o géis fazia passar por mim para me importar com isso. Quanto mais me afastava de Mircea, piores se tornavam, a ponto de pouca consciência eu ter do que estava a acontecer. As lágrimas cegavam-me, os espasmos apertavam-me o estômago e cada vez me custava mais respirar. Lembrei-me de Casanova a dizer que as pessoas sob o efeito do géis tinham preferido cometer suicídio a suportar a dor da separação e, finalmente, percebi porquê. Marlowe prendeu a cabeça de Pritkin com um braço e os dois tombaram para cima da mesa, quase me fazendo perder a pouca aderência que eu tinha. Foi então que Pritkin espetou uma faca no peito do vampiro e eles se separaram. Mas o mago aturdido devido à falta de ar, não aproveitou a vantagem e, por algum motivo, Marlowe também não. Estava a retirar a faca de modo inflexível quando, sem qualquer aviso, a loja estremeceu e parou. Os meus joelhos embateram dolorosamente contra a parte lateral e eu mal consegui evitar deslizar sobre ela. Mas não podia estar menos preocupada com isso. O géis desapareceu de repente, interrompido como uma aparelhagem quando alguém desliga um interruptor. Arquejei e descobri que já conseguia respirar fundo outra vez. A minha cabeça balançava devido ao influxo de oxigênio e ao alívio. Mas apercebi-me de outra sensação quase de imediato: fome. Só na magnitude da sua ausência é que eu conseguia perceber a verdadeira força da ligação. Queria rir e chorar ao mesmo tempo. O alívio da dor tinha também posto fim ao prazer viciante e consumidor. E o desejo começou de imediato. Cambaleei em redor da mesa, sentindo-me estranhamente oca e vazia por dentro. Foi então que olhei pela janela da frente e tive uma reação de surpresa. O que vi foi suficiente para deixar de pensar até no géis. À nossa frente não estava outro corredor de arenito, nem sequer urna faixa vazia de deserto. Ao invés, vi um grande prado repleto de ervas compridas que se curvavam para a esquerda com a dócil brisa. Pela altura a que o sol estava, supus que fosse meio-dia, embora a luz difusa tornasse difícil ter a certeza. Ao longe se estendia uma cordilheira de montanhas azuis pontiagudas e cobertas de neve, mas a brisa que entrava pela porta da frente da loja era quente e tinha um cheiro ténue a flores selvagens. Era lindo.


Mac meteu a cabeça por fora da cortina com cautela e depois deu um grito de pura alegria. — Boa! E diziam que não era possível! Diabos! — reparei que as suas sentinelas tinham parado de mexer, tendo-se imobilizado no local como tatuagens normais e que a luz tinha clareado. Mac, aquele sacana maluco, tinha conduzido o estúdio de tatuagens através do portal para o seio do Mundo das Fadas.


í Deixei Mac e Pritkin a tratar de Marlowe e fui correndo para os fundos. Tomas estava amarrado à marquesa que Mac usava para fazer tatuagens. Não parecia estar confortável, mas pelo menos não tinha sido arremessado pela sala. Eu ainda não tivera oportunidade de fazer mais do que olhar de relance para os ferimentos dele, mas agora contraía os lábios para evitar dizer algo extremamente grosseiro acerca de Jack. Depois decidi “que se dane” e disseo. Tomas resmungou e tentou sentar-se, mas as correias não permitiram que o fizesse. Dava na mesma, já que o mais provável era que alguma coisa caísse, se assim não fosse. Jack tinha o aberto ao meio, dos mamilos ao umbigo, como um espécime autopsiado ou um animal que estivesse prestes a esfolar. Fitei os despojos do que outrora tinha sido um corpo perfeito e gelei. Quem me dera que Augusta tivesse acabado com ele. Engoli em seco e desviei o olhar, por um lado porque, se não o fizesse, arriscava-me a ficar maldisposta, e por outro porque precisava encontrar alguma coisa que servisse de ligadura. Os vampiros tinham um poder de recuperação espantoso – por mais horrendas que fossem as suas feridas, é provável que Tomas conseguisse sará-las a tempo. Mas seria uma grande ajuda se os rebordos da ferida estivessem, de algum modo, unidos, e para isso eu precisava de tecido – muito tecido. Ia a caminho da cama desdobrável, que tinha um lençol decente e uma manta que poderia resultar, quando tropecei em qualquer coisa. Caí de joelhos ao lado de um homem de cabelo escuro com uma camisa vermelho-vivo. Fitei-o com surpresa – como é que tínhamos apanhado outro clandestino sem que eu tivesse dado por isso? Foi então que ele virou a cabeça e eu percebi que sempre ali tinha estado, só que não era bem com esta forma.


— Deixa-me que te diga — disse Billy, sentando-se e agarrando a cabeça com as duas mãos. — Já não me sentia tão mal desde que entrei naquele concurso de bebida com aqueles dois cretinos russos — resmungou e tornou a recostar-se. Estiquei-me com cautela e cutuquei-o com um dedo. Estava tão corpóreo como eu. Levantei-lhe o pulso e apalpei-o em busca de pulsação. Batia com força e firmeza sob os meus dedos. Larguei-lhe a mão e recuei alguns passos de modo atabalhoado, encontrando outra coisa impossível. Senti algo sólido contra as minhas costas, olhei para baixo e vi uma mão cor de laranja acastanhada no chão. Estava ligada a um braço com uma cor semelhante, que conduzia ao tronco nu daquilo que o meu cérebro finalmente identificou como sendo o golem de Pritkin. Só que, apesar da cor, já não era de argila. Não precisei verificar se tinha pulsação – era óbvio que estava respirando, já que o seu peito, que apesar da cor estranha, era perfeito e erguia-se e baixava com normalidade. Ou com o que teria sido normalidade para um humano. Uma vez que ele supostamente era uma grande pilha de argila animada por magia, no caso dele não era normal. Um olhar de relance que juro ter sido involuntário informou-me de que era também correto em termos anatômicos, coisa que certamente não teria sido antes, e que quem quer que tivesse operado a transformação tinha sido generoso. Passado um segundo, os olhos dele – desta vez autênticos – abriram-se de repente para olhar para mim com absoluta confusão. Eram castanhos, percebi de modo irrelevante, e ele não tinha sobrancelhas nem pestanas. Na verdade, parecia não ter nenhum tipo de pelo. Olhei para trás, para Billy. Estava pálido e precisava fazer a barba, coisa que andava a adiar há um século e meio, mas fora isso, parecia ótimo. Pura e simplesmente tinha o seu corpo de volta, o que era ridículo, visto ter se tornado há décadas comida para peixe. — Que diabo? — senti o chão a mexer e olhei em volta de modo desconcertado. Não precisava de outra das viagens malucas de Mac. Mas passado um minuto, percebi de que não parecíamos estar indo a lugar nenhum. Contudo, a sala estava decididamente a abanar e eu estava a gastar um segundo a indagar-me sobre se haveria tremores de terra no Mundo das Fadas quando Billy se sentou, com um olhar agitado e em pânico. Apalpou o peito, deixou sair um grito e começou a dar palmadas na cabeça, estômago e pernas, como se o seu corpo fosse um bicho desconhecido e horripilante. Deu um pulo e começou a dançar pela sala, largando a roupa e guinchando. As suas palhaçadas e as oscilações da sala transtornaram o golem, que trocara a confusão pelo medo. Os olhos dilataram-se e os lábios abriram-se para emitir um guincho agudo bem mais penoso para os ouvidos do que os gritos de Billy. Cambaleei pela sala, evitando aos dois e agarrei o lençol. Depois de rasgá-lo em tiras, liguei as feridas de Tomas o melhor que consegui, enquanto o golem e Billy andavam por ali a correr, chocando contra as coisas e entre eles e conseguindo apenas agitar-se ainda mais um ao outro.


Libertei Tomas antes que um deles pudesse cair sobre ele e arrastei-o por debaixo da marquesa. Engatinhei atrás dele e pus as mãos sobre os ouvidos, que parecia que iam começar a sangrar a qualquer segundo. Que outra pessoa qualquer lidasse com a crise, para variar, eu estava farta. Tornou-se óbvio que abdicar estava fora de questão quando metade da sala foi rasgada de modo abrupto. Por um instante, só se viu um pedaço de céu azul e um par de borboletas amarelas, dando a impressão de que os pequenos insetos eram responsáveis pelos estragos. Foi então que surgiu uma cabeça do tamanho de um carro pequeno. Era verde e estava coberta de escamas reluzentes e iridescentes, com um focinho grande o suficiente para comer uma pessoa sem precisar dar uma segunda dentada. Não lhe saía fumaça das narinas, mas eu não precisava disso para saber do que se tratava. Os seus olhos cor de laranja tinham pupilas estreitas e vermelhas que, ao ver-me, se dilataram como as de um gato que acabara de encontrar um novo tipo de rato. Jorrou do buraco no teto, com a cabeça suspensa de um pescoço impossivelmente longo e as enormes mandíbulas a estalar de modo a exibir dentes amarelos escuros e irregulares. Fiquei paralisada com o seu hálito quente e acre no meu rosto, tão próximo que me deixou os olhos a lacrimejar. Foi então que o golem se passou de vez, correndo por ali nu e guinchando diretamente sobre a linha de visão do dragão, fazendo com que os olhos cor de laranja passassem a concentrar-se nele. Lançou-se pela cortina e o dragão foi atrás dele, com o pescoço a passar por mim num rio de escamas e as garras a tentar rasgar um buraco no telhado que fosse grande o suficiente para o seu enorme corpo. Saí engatinhando de debaixo da mesa e plaquei Billy Joe, que tinha rasgado a camisa e arranhava o peito nu, deixando vergões vermelhos. — Billy! — agarrei-lhe no pulso para arrastá-lo comigo por debaixo da mesa, mas ele foi demasiado rápido. Correu para o fundo da sala, para a pequena porta ao lado da cama desdobrável que eu nunca tinha visto aberta. Não queria ver agora. Tinha a sensação de que era meramente decorativa, mas Billy não percebeu isso. Embateu contra ela e precipitou-se para a maçaneta, que finalmente conseguiu arrancar por completo. Fitei-o, confusa. Nunca o tinha visto assim e não estava certa de que houvesse alguma coisa que eu pudesse dizer para acalmá-lo. Depois havia a questão de, sob a forma humana, Billy medir mais de um metro e oitenta. Eu não tinha maneira de subjugá-lo sem uma arma e era provável que as únicas que tinha – o meu revólver e a pulseira – o matassem na sua nova forma. Houve muitos lamentos, palavrões e algumas explosões da parte da frente da loja, depois se ouviu um vento apressado e um som que parecia o de cem helicópteros a decolar. Olhei para cima e vi o dragão a erguer-se no ar com asas negras e curtidas, guinchando e esgatanhando a cara. Faltava-lhe metade do focinho, perdido num buraco e havia ranhos nas grandes asas que adejavam com a força de um pequeno furacão. Passado um segundo, a cria-


tura partiu, elevando-se bem alto sobre tranquilos campos verdes em direção a colinas distantes e cobertas de árvores. Billy chocou contra a porta, com as mãos na madeira cauterizada, os dedos numa massa ensanguentada. Chorava convulsivamente, com arquejos profundos e dilacerantes, mas pelo menos já não estava tresloucado. Eu estava prestes a tentar incutir-lhe algum bom senso quando Pritkin saiu pela cortina a correr, seguido de Mac e Marlowe. Reparei com uma raiva crescente que o vampiro não estava sob nenhum tipo de constrição. E a primeira coisa que fez foi encaminhar-se para Tomas. — Pritkin! Trava-o! — atravessei a sala a correr, enquanto o mago se limitou a ficar ali parado, olhando de modo incrédulo para a forma corpórea de Billy. Mergulhei para debaixo da mesa a partir do lado mais distante e agarrei no pulso de Marlowe antes que ele conseguisse arrastar Tomas para a luz. — Afaste-se dele! Pareceu surpreendido, e era caso para isso. O fato de uma humana pensar que conseguia impedir um vampiro mestre de fazer o que queria segurando-lhe a mão era risível. Lancei-me para trás, erguendo o pulso que tinha a pulseira na esperança de que fosse suficiente para o efeito pretendido. Nunca cheguei a descobrir, pois nada aconteceu. Abanei o braço e olhei furiosamente para a prata inerte. Qual era o problema agora? — A nossa magia não funciona aqui — disse-me Marlowe, com doçura. — Não vou fazer mal ao Tomas, Cassie. Quer acredite ou não, quero ajudar. Claro que sim, por isso é que tinha ficado sentado a vê-lo a ser esquartejado. Marlowe tinha uma reputação que tivera início na Inglaterra isabelina, época em que fora um dos espiões da rainha e desde então ela tinha aumentado em termos de infâmia. Se nem que uma ínfima parte das histórias sussurradas acerca dele fosse verdade, eu não o queria perto de Tomas. — Vai embora — repeti, indagando-me sobre o que iria fazer se ele dissesse que não. Mas, em vez de discutir, ele saiu deslizando de modo gracioso de debaixo da marquesa. Fui ver como estavam as feridas de Tomas, mas não pareciam estar pior. Tinha os olhos um pouquinho abertos e até conseguiu levantar a cabeça. — Não consigo ouvi-lo — disse ele, de modo obscuro, com uma expressão de felicidade pura a cruzar-lhe o rosto. Depois os olhos fecharam-se e a cabeça tombou para trás, unindo-se com dureza ao chão de mosaico. O meu coração quase parou e eu procurei de modo frenético pela pulsação que, como é óbvio, não encontrei. O fato de sequer ter tentado dizia algo a cerca do meu estado mental. Parecia que ele tinha desmaiado ou que estava em transe, mas eu não conseguia ter a certeza. Em tempos, Tony estivera envolvido numa disputa clandestina e altamente ilegal com outro mestre. Um dos nossos vampiros perdeu um braço e foi semi-esventrado na mini-guerra. Quando o trouxeram de volta, eu depreendera que ele estava morto, mas Eugenie disse que


ele estava num transe de cura. Manteve-se inerte e imóvel durante várias semanas, até que, certa noite, se sentou de repente e perguntou se tínhamos vencido. Eu tinha esperança de que Tomas estivesse apenas em transe, mas fosse como fosse, não podia fazer grande coisa por ele. Os vampiros ou se curavam sozinhos ou não se curavam – não havia muitos remédios médicos ou mágicos que funcionassem nos seus organismos. O problema era mantê-lo em segurança o tempo suficiente para que tivesse hipótese de recuperar. Olhei de relance para Pritkin. — Por que Marlowe não está amarrado ou coisa parecida? — Porque podemos precisar dele — foi a resposta direta. — Sabe quem ele é? — inquiri. — Melhor do que você — desviou rapidamente os olhos de Billy, que agora se balançava para frente e para trás, fitando a parede de modo vago, e concentrou toda a força do seu olhar em mim. Não estava zangado – pelo menos disso eu estaria à espera e não me teria preocupado. Mas isto era diferente. De alguma maneira, estava diminuído, com os olhos tão intensos que pareciam dois lasers. Era o rosto de um predador quando sentia a vida ameaçada; letal, sério e totalmente concentrado. — Deixa-me que te explique a situação — disse ele, e até as suas palavras estavam mais rápidas e abreviadas do que antes, como se todos os segundos contassem. — Chegamos ao Mundo das Fadas, mas não da maneira discreta que eu tinha planejado. Nossa magia não irá funcionar em grande parte, e temos uma quantidade finita de armas não mágicas. Um dos nossos companheiros está gravemente doente e dois dos outros são suspeitos em termos mentais. Para piorar as coisas, aquele dragão era o guardião do portal e, como não conseguiu derrotar-nos sozinho, foi em busca de reforços. Se os Elementais ainda não souberem que aqui estamos, irão saber em breve. E nós não podemos voltar atrás pelo portal, por razões óbvias. —O Senado virá atrás de nós? — perguntei, sem ter a certeza de querer ouvir a resposta. Pritkin deu uma breve gargalhada. Não parecia divertido. — Ah, não. Pelo menos até conseguirem pedir passes. Atravessar para o Mundo das Fadas sem eles é arriscar uma sentença de morte. Como nós fizemos. — Ele quer dizer que estamos todos juntos nisso — acrescentou Marlowe. — Também vim sem passe e os Elementais são conhecidos por não darem ouvidos a desculpas. Se for apanhado, posso ser morto — sorriu para mim. — Portanto, não vou ser apanhado e irei esforçar-me para que vocês também não sejam. Mac bufou.


— A verdade é que estamos todos mais seguros se estivermos juntos. Neste momento, sozinho ninguém duraria um dia no Mundo das Fadas. Marlowe encolheu os ombros. — Isso também é verdade. E, como primeiro gesto de camaradagem, posso sugerir que saiamos desta zona o mais depressa possível? Temos muito pouco tempo a perder. Pritkin tinha içado Billy pelos pulsos e agora dava uns estalos com força. — Ele tem razão. Se os Elementais nos encontrarem, ou nos matam assim que nos virem ou pedem um resgate por nós ao Círculo ou ao Senado — depois da segunda estalada, Billy tentou bater-lhe em resposta, mas Pritkin bloqueou-lhe o braço e depois o torceu de modo cruel atrás das costas, antes de o empurrar contra mim. — Controla o teu servo — disse ele, curto e grosso. - Eu trato dos meus. Depois partimos. Passei os minutos seguintes com Mac a verificar-me a sentinela enquanto eu tentava sossegar um Billy Joe muito transtornado. — Por que está tão perturbado? — perguntei, quando ele se acalmou o suficiente para ouvir. — Tem um corpo — belisquei-o ao de leve no braço e ele retraiu-se, o bebê grande. — Não foi o que sempre quis? — é verdade que ele parecia passar um bom bocado sempre que pedia o meu emprestado. Billy continuava com um ar aturdido, embora já lhe tivesse começado a regressar alguma cor à face. Sem aviso prévio, inclinou-se para frente e beijou-me com força nos lábios. Afastei-me com um safanão e dei-lhe uma tapa, sendo que o choque lhe imprimiu mais força do que eu tencionara, mas ele limitou-se a rir. Os seus olhos cor de avelã brilhavam de lágrimas por derramar enquanto ele apalpava a pungente maçã do rosto, mas a sua expressão era de euforia. — É verdade; é mesmo verdade — disse ele, com espanto. Depois, os seus olhos dilataram-se e ele começou a meter-se pela mochila de Mac. Saiu de lá com uma das cervejas, agarrado a ela como se tivesse encontrado um tesouro de ouro puro. Estava por abrir e ele escarafunchou nela, tentando retirar a tampa com as próprias mãos. — Você não entende, Cass — disse ele, com os olhos quase febris. — Sim, eu faço de babá ao teu corpo de tempos a tempos, mas nada é de fato autêntico, sabes? É como se houvesse uma película por cima de tudo, e era só isso que eu tocava, que eu provava. Deu um grito de frustração e tentou esmagar a garrafa na mesa, mas esta era estofada e o vidro ressaltou. Como é óbvio, ele não iria ser coerente até ter uma bebida. — Dá-me isso — disse eu, com impaciência, e ele entregou-me a garrafa castanhoescura, apesar de os seus olhos nunca a largarem. Abri-a na parte de baixo metálica da cama desdobrável e ele arrancou-ma da mão, bebendo metade do conteúdo de um só gole.


— Oh, meu Deus — disse ele, de modo reverente, deixando-se cair de joelhos. — Ai Jesus. Eu estava prestes a dizer-lhe que parasse com o melodrama quando Mac interrompeu com um relatório. — Não há nada de errado com a sua sentinela, portanto deve ser o géis. Têm tendência a complicar as coisas, sendo que os feitiços mais poderosos são os que provocam mais interferência. E o dúthracht é dos mais fortes que há. — Mas a minha sentinela estava funcionando e o feitiço foi lançado quando eu tinha onze anos — protestei. — Pode ter sido isso que te salvou, por seres nova demais para o géis ficar ativo. Esta sentinela em particular foi concebida para se encaixar na tua aura como uma luva numa mão, mas necessita de um campo estável para se fixar decentemente. Um géis ativo é interpretado como uma séria ameaça e as tuas defesas naturais entram num tumulto constante, tentando rejeitar o invasor. Mas ao fazer isso, fazem com que seja impossível que a tua proteção artificial cumpra a sua função. Fez-se luz. — Por isso é que Pritkin estava a passar-se com a Miranda. Sabia que se ela não retirasse o géis, ele não podia fazer aquela tatuagem. Arrependi-me logo de ter dito alguma coisa, uma vez que Mac pediu que lhe contasse a história toda e pareceu achar histericamente divertida a ideia de uma gárgula pequena e fêmea a levar a melhor sobre Pritkin. Consegui, por fim, trazê-lo de volta aos eixos, mas ele não me disse nada do que eu queria ouvir. — É como tentar calçar uma luva a uma criança pequena e a contorcer-se, Cassie, razão pela qual os pequenos costumam usar luvas sem dedos. Dá muito trabalho vesti-los de outra maneira — Mac parecia ter conhecimento de causa e eu pus-me a pensar por momentos se teria uma família. É possível que houvesse pessoas a chorá-lo se Pritkin provocasse a sua morte. — Então não consegue repará-la? — Lamento, Cassie. Se te livrares do géis, consigo pô-la a funcionar num ápice. Caso contrário... — Estou fodida. — Parece que sim.


Como se a comentar o modo como estava a correr-me o dia, Billy aproveitou o momento para despejar cerveja por todo o chão diante dos meus ténis. Puxei os pés para trás mesmo a tempo. — Billy! O que é que se passa contigo? Ele resmungou e sentou-se. — Cãibras no estômago — arquejou. Suspirei e fui buscar-lhe um copo com água. — Vai dando golinhos — adverti. — Tem um estômago novinho em folha. Ninguém dá cerveja a bebês, portanto parece-me que você também não vai beber nenhuma — peguei a garrafa e ele resmungou mais alto. — Tem dó, Cass! Levantei a garrafa e abanei-a, deixando que o líquido cor de âmbar se espalhasse pelas paredes laterais. — Se levantar a bunda e me ajudar com o Tomas, talvez eu te dê. — Há um bar na cidade para onde vamos — disse Marlowe, em tom ameno. — Como é que sabe para onde vamos? — perguntei com desconfiança. — Porque não temos muito por onde escolher — Billy olhava para o vampiro como se ele tivesse acabado de anunciar que ganhara a lotaria. — Cerveja, garotas gostosas e ótima música, tanto quanto me lembro. Billy deu um salto como se tivesse sido impulsionado por um canhão. — Então, onde é que está aquele pobre desgraçado, afinal? Devíamos deixar o rapaz num local seguro para ele poder descansar e sarar — acrescentou, de modo dedicado. — Qual cidade? — perguntei a Marlowe. — A população da aldeia e do castelo locais são Elementais das Trevas e alguns deles fizeram favores aos meus espiões no passado. Inicialmente, isso tomou a forma de reunião de partilha de informações secretas – eles espiam os Elementais da Luz e os meus contactos no seio da Luz espiam-nos a eles. Mas já houve ocasiões em que ajudaram agentes em dificuldades mediante pagamento. — Você espiava os Elementais? — perguntei, surpreendida. Marlowe sorriu. — Eu espio todo mundo. É o meu trabalho.


— Discutam isso depois — disse Pritkin, espetando a cabeça pela cortina. O golem estava ao lado dele com uma calma relativa, mas estremeceu quando a cortina lhe roçou no braço. — Se os Elementais das Trevas nos encontrarem antes de chegarmos a um acordo... — Bem visto — murmurou Marlowe. Juntos, ele e Billy tiraram Tomas de debaixo da mesa e colocaram-no sobre uma tipóia improvisada feita com a manta da cama desdobrável. Não acreditei em Marlowe quando jurou que os Elementais não faziam mal a vampiros, mas Mac deu-lhe razão. Uma vez que Tomas não desatou a arder quando caíram sobre ele os raios que penetravam o telhado arruinado, tive de partir do princípio de que eles estavam certos. Billy pegou numa ponta da tipóia e Marlowe na outra. A colaboração dele deixou-me apreensiva o suficiente para acompanhar os transportadores de modo a garantir que ele não fazia mal a Tomas quando não houvesse ninguém a olhar. Eu teria preferido outro ajudante, mas não havia muitas alternativas. Eu tinha dúvidas de que conseguisse transportar nem que fosse metade do peso de Tomas por qualquer distância, sobretudo carregada com quase vinte e três quilos de munições. Mac levantava a parte de trás e precisava ter as mãos livres para as armas. E Pritkin, como cabeça do nosso grupo heterogêneo, estava ocupado a impedir que o seu servo pirasse de novo. O pobre golem tremia e olhava em volta de modo tresloucado, dando um salto a cada rajada de vento, a cada cantar de pássaro ou com Billy a cantarolar “I'm a rover and seldom sober”, até Pritkin ameaçar transformá-lo de novo em fantasma se ele não parasse. Era como se o golem nunca tivesse visto nada daquilo – e suponho que não tivesse visto, pelo menos através de olhos humanos – e não soubesse bem o que era benigno e o que era ameaça. Não sei em que sentidos é que eles confiam, mas, a avaliar pelo grito dele quando uma nuvem de dentes-de-leão levados pelo vento lhe roçou no peito despido, não me parece que sejam os mesmos cinco que nós, humanos, usamos. Conseguimos chegar, por fim, à linha das árvores, mas até eu conseguiria seguir o rastro de ervas pisadas que deixamos. Qualquer um com experiência a seguir pistas nos seguiria com a maior das facilidades. Fitei os bosques sombrios à minha frente e desejei que alguém tivesse um plano. A hora seguinte foi um pesadelo, caminhando com dificuldade por uma floresta que, apesar de impressionante, era também intensamente sinistra. Para começar, fazia as árvores centenárias em redor da quinta de Tony parecerem árvores jovens. À entrada, passava por dois carvalhos gigantes, cada um deles com um tronco largo o suficiente para por lá passar um carro se o tronco fosse oco. Claro que, para isso, teria sido necessário construir-se uma rampa primeiro, já que os troncos começavam bem acima da minha cabeça, assentes num massivo sistema de raízes que era mais alto do que a maioria das casas. Estavam posicionadas como sentinelas no portão de um castelo, com os braços musgosos erguidos como se em saudação – ou advertência. As raízes emaranhadas das


árvores pareciam todas parar no mesmo ponto, formando um trilho irregular em direção a sabe-se lá o quê. Alguma coisa me roçou no ombro quando abrimos alas para entrar no mar de arbustos espinhosos e emaranhados de vegetação rasteira. Por momentos, achei que tinha visto uma mão nodosa com nós dos dedos bulbosos e dedos sobrenaturalmente compridos a esticar-se para mim. Dei um salto antes de me perceber de que a ameaça não passava de um galho pendente baixinho, cujo musgo era húmido e viscoso sobre a minha pele. Pior ainda era o cheiro daquele lugar. O prado era quente e fresco e floral, mas aqui não havia nenhum aroma verde agradável. A floresta era úmida e mofenta, mas, além disso, havia algo pior – azedo e ligeiramente apodrecido. Pensei nisso enquanto caminhávamos e finalmente percebi. Era como estar na presença de um doente terminal. Por muito boa que fosse a higiene, existe sempre um leve odor que se agarra a ele e que tem um cheiro característico. A floresta tresandava a morte – não o final rápido e imediato de um animal caçado, mas sim a doença longa e vagarosa de alguém a quem a morte acossa há muito tempo. Eu preferia muito mais o prado. Encostei-me mais a Tomas, que, felizmente, ainda estava inconsciente, e tentei não parecer tão assustada como me sentia. Mas havia algo de sobrenatural nestes bosques. Sentia-se na luz indistinta que se transformava de imediato em crepúsculo e na idade, que exercia uma pressão como se a gravidade tivesse de algum modo aumentado assim que saímos do campo. Nem sequer conseguia imaginar a idade de algumas das árvores, mas, de cada vez que eu achava que elas não podiam ficar maiores, elas conseguiam. E o meu cérebro cansado continuava a ver rostos nos padrões das cascas – rostos velhos e escarpados, com cabelo de cogumelo, barba de líquens e olhos ensombrados. Marlowe tentou encetar uma conversa várias vezes, mas eu ignorei-o até ele desistir. Tinha outras coisas em que pensar, tal como de que modo iria eu encontrar Myra e o que iria fazer com ela quando a encontrasse. Agora que aqui estava, percebia porque é que ela tinha decidido esconder-se no Mundo das Fadas. Era um campo de jogos inteiramente novo e a cerca do qual eu nada sabia. Aproximar-me o suficiente para lançar a armadilha ia ser difícil, se o meu poder não fosse fiável e eu não fazia ideia de quantos aliados ela tinha. Depois de ver o que tinha acontecido às sentinelas de Mac, já não tinha tanta confiança nas armas do Senado como antes. E se não funcionassem neste louco mundo novo? A minha disposição não estava a melhorar com considerações mais mundanas, como o peso do maldito casaco, a necessidade extrema que eu tinha de um banho e o quanto eu queria ver Mircea. O desejo não tinha diminuído e, embora fosse tolerável, não era divertido. Sentia-me como um fumante de três maços de tabaco diários no final de um voo de doze horas. Só que, para mim, não havia alívio à vista. Fizemos, finalmente, uma pausa para respirar. O vento fazia restolhar a copa das árvores, mas, aqui em baixo, ao nível do chão, não se sentia sequer uma aragem. Billy, que viera o caminho todo a queixar-se do peso de Tomas, jurava que já estávamos a andar a um


dia, mas o mais provável é que só tivesse passado uma hora ou assim. Despi o mecanismo de tortura forrado a chumbo a que Pritkin me prendera, o que me ajudou um pouco, mas nenhuma brisa chegou à minha roupa encharcada. Estava curvada, ofegante e exausta, com o suor a escorrer-me pela cara e a pingar no solo florestal cheio de folhas, quando a vi: a primeira prova que tive de que esta era de fato uma floresta encantada. Uma raiz de árvore, coberta por um líquen vermelho-vivo como um braço escamoso projetou-se do trilho e posicionou-se no solo debaixo do meu nariz. Recuei assustada, com um grito de surpresa, e depois a vi a drenar todas as folhas que continham parte do meu suor. — Q-Que é aquilo? — puxei a perna para trás quando a raiz se aproximou, vasculhando as folhas como um porco atrás de bolotas. Não conseguia ver-me, mas sabia que eu estava ali. — Um espião — o tom resignado de Marlowe veio de cima da minha cabeça. — Sabia que não conseguiríamos evitá-los, mas estava à espera que demorassem um bocadinho mais de tempo. — Um espião de quem? — Dos Elementais das Trevas — respondeu Pritkin, vindo para junto de nós. — Esta é a floresta deles. — É muito provável — concordou Marlowe. — Mas eu devia falar com os nossos aliados antes que... — Você não vai -— interrompeu Pritkin. — Dá-me um objeto representativo, que eu faço isso. — Vai aonde? — perguntei, mas ninguém estava a ouvir. — Eles não te conhecem — protestou Marlowe. — Mesmo com uma apresentação da minha parte, pode ficar em perigo. Pritkin sorriu com amargura. — Eu assumo o risco. Mac aclarou a garganta. — Talvez seja melhor ir eu — ofereceu-se. — Já tem trabalho suficiente a manter aquele na linha — fez sinal com a cabeça para o golem, que passava as mãos pelo tronco de uma árvore próxima, com uma expressão maravilhada nas feições — e aquela coisa não me conhece. Se alguma coisa o espoletar de novo, não posso garantir que consiga controlá-lo. — Ele vem comigo.


— Neste momento, não irá servir de muito numa luta — disse Mac, com dúvidas. — Ele não irá lutar — Pritkin olhou de relance para mim. — Suponho que queira ficar aqui a tratar dele? — não mencionou o nome de Tomas, mas ambos sabíamos a quem se referia. Olhei para Marlowe antes de responder. Estava a ajustar as ligaduras à volta dos caracóis como se o machucassem, e sorriu quando reparou no meu olhar. — A tempestade não me fez bem à cabeça — explicou, estremecendo um pouco quando a sua mão roçou num ponto sensível. — Primeiro, Rasputine racha-me o crânio e agora isto. Seria de pensar que alguém poderia apontar para outra parte da minha anatomia uma vez na vida, mas não. Não sorri em resposta. Marlowe poderia de fato estar com dores, ou poderia estar a tentar convencer-me de como era fraco. Se era esta última hipótese, estava a perder o seu tempo. Eu já tinha visto suficientes vampiros feridos para saber: se estivessem conscientes e se mexessem, eram letais. Eu não podia fazer grande coisa por Tomas, mas, pelo menos, iria assegurar-me de que Marlowe não lhe cortava a cabeça. Olhei para trás, para Pritkin, e assenti com a cabeça. — Nesse caso, vou precisar pedir o teu servo emprestado — Billy tinha tombado numa pilha de suor assim que parámos e estava agora a puxar uma das suas botas pretas e a praguejar. Suponho que tivesse pés de bebê macios a acompanhar o estômago novo. — Tem certeza? Ele não é lá grande lutador. — Só vai estar lá para o caso de alguma coisa correr mal. Para vir correndo avisar-te. — Deve ser capaz de tratar disso — acotovelei Billy. — É contigo — ele queixou-se, mas a cerveja acabou por levar a melhor sobre as bolhas e ele concordou em ir. Marlowe escreveu um curto bilhete num pedaço de papel que Mac tinha localizado no meio das nossas provisões. De algum modo parecia errado estar a usar papel de bloco de linhas e uma esferográfica para escrever uma apresentação para os Elementais, mas mais ninguém pareceu dar por isso. — Não estou certo de que os meus contatos ainda estejam lá — disse Marlowe, entregando o bilhete terminado. — O tempo não flui do mesmo modo aqui. Houve épocas em que os meus espiões entraram com meses de diferença e descobriram que tinham entrado no mesmo dia, ou noutras ocasiões, que tinham passado décadas. Nunca fomos capazes de determinar um padrão. — Eu já me arranjo — disse Pritkin, vasculhando o casaco que eu descartara em busca de munições. Tirou de lá três caixas grandes. Não perguntei para quê ele achava que precisava de tantas balas. Não queria saber.


Ele tinha trocado o casaco comprido de cabedal por uma capa escura com capuz que tirara da mochila de Mac e, depois de algum esforço, tinha conseguido que o golem aceitasse ser metido dentro do casaco. Não era lá grande disfarce, tendo em conta que o golem continuava cor de laranja, careca, com dois metros e dez de altura e descalço, mas era melhor do que a alternativa. — Não era aconselhável ele ficar aqui? — perguntei, com dúvidas. Pritkin não me respondeu, mas Marlowe sorriu ligeiramente. — Se o mago não levar uma oferenda, nunca ganhará audiência. Protocolo de Elementais. — Uma oferenda? — demorou uns segundos a perceber. — Está dizendo que... Mas isso é escravatura! — Ele não está propriamente vivo, Cassie — protestou Mac. Olhei para o ser acriançado que pestanejava lentamente para Pritkin enquanto era abotoado dentro do casaco comprido. Parecia achar os botões fascinantes e estava sempre a cutucá-los com um dedo cor de laranja, mas fora isso, tinha um aspecto muito humano. — A mim parece vivo — disse eu. — Vou buscá-lo depois; ele só vai servir para eu entrar! — disse Pritkin, irritado. — Ou preferia oferecer o seu servo, em vez dele? Billy lançou-me um olhar de pânico e eu suspirei. — Claro que não. — Então te abstém de dar conselhos acerca de assuntos que não compreendes — foime dito de forma breve antes de o trio desaparecer no meio da vegetação.

***

Nas horas que se seguiram, uma série de coisas conspiraram para me deixar os nervos em franja. Uma das mais irritantes foram as raízes andarilhas que me seguiam para todo o lado como cachorrinhos míopes. Eu estava exausta, mas poderia sentar-me por cinco minutos? Não, que diabo. Tinha de brincar às escondidas com a flora local enquanto era observada pela fauna. Pouco depois de Pritkin ter partido, parecia que todas as aves da floresta – águias-pesqueiras, águias, mochos e até alguns abutres – se tinham reunido nas árvores à nossa volta, juntamente com alguns pequenos mamíferos.


Não faziam barulho, a não ser um adejar de asas à medida que os madrugadores se deslocavam para abrir espaço para os recém-chegados. Passados alguns minutos, o peso coletivo começou a arquear alguns dos ramos menores que usavam como poleiros, mas nenhum se partiu. Pareciam-se sinistramente a espectadores a juntar-se para algum tipo de entretenimento. Uma vez que não estávamos a fazer nada de interessante, parti do princípio de que o espetáculo começava mais tarde, uma ideia que não me deixou mais bemhumorada. Nem a tensão de não ser capaz de fazer nada por Tomas, que estava deitado, imóvel, na sua manta. Não só eu não podia ajudá-lo a sarar – se, de fato, era isso que ele estava a fazer –, como não conseguia aproximar-me dele, com medo de levar atrás os meus admiradores cobertos de casca de árvore. Estes absorviam suor sabe-se lá que mais comeriam? Porém, o fator mais irritante de todos era de certo o subitamente renovado interesse de Marlowe na conversa. Esperou que Pritkin já não conseguisse ouvir e depois se virou para mim com um alegre sorriso. — Vamos conversar, Cassie. Tenho a certeza de que consigo acalmar os teus receios. Saltei por cima de uma raiz que tentava enrolar-se no meu tornozelo. — Por que duvido disso? — Porque nunca tiveste a chance de ouvir a nossa versão das coisas — disse ele, fazendo-me um sorriso caloroso e compreensivo que me deixou logo com os cabelos em pé. — Já podíamos ter tido esta conversa, mas quando regressaste da sua missão com Mircea, não nos deste oportunidade. — Tenho tendência a não encetar diálogos com pessoas que ameaçam matar-me. Marlowe parecia surpreendido. — Não imagino do que fala. Eu não te quero morta, isso é certo, nem mais ninguém no Senado. Na verdade, bem pelo contrário. — Disseste o mesmo à Agnes? As sobrancelhas de Marlowe uniram-se num pequeno franzir. — Não sei bem se estou entendendo. Retirei o pequeno amuleto que Pritkin me tinha dado. Nunca me pedira de volta, por isso eu tinha o enfiado num bolso. Agora o deixava balançar diante dos olhos de Marlowe como um pêndulo. — Reconhece isto? Pegou-o e deu-lhe uma olhada.


— Claro que sim. Olhei especada para ele. Não seria um choque se tivesse sido Marlowe a congeminar o assassinato – fazia jus à sua reputação –, mas não esperava que ele se limitasse a admiti-lo. Pensaria ele que eu ficava satisfeita por ele ter acabado com Agnes e aberto o meu caminho para ser bem-sucedida? — É um medalhão de São Sebastião — tirou-me dos dedos flácidos. Mac aproximarase, mas não dizia nada. Talvez também pensasse que estávamos prestes a ouvir uma confissão. Se assim era, ficou desiludido. — Há anos que não via um desses. É claro que não têm sido necessários. — Necessários para quê? — Mac tinha uma expressão no rosto que me fez lembrar Pritkin quando estava mais desconfiado. — Para a peste, mago — disse Marlowe, com impaciência. — Sebastião era o santo que se acreditava ser capaz de afugentar a doença. Ainda eram populares no continente no meu tempo, embora na sua maioria tivessem sido feitos no século XIV, durante a Peste Negra. Inclinei-me para ver melhor. — Então isto é o quê? Um amuleto de boa sorte? Marlowe sorriu. — Uma coisa do gênero. As pessoas queriam acreditar que estavam a fazer algo para se protegerem a elas e às suas famílias. — É um bocado irônico — disse eu. Mac assentiu com a cabeça, mas Marlowe pareceu confuso. — Isto foi usado para matar alguém há pouco tempo — expliquei. As sobrancelhas de Marlowe ergueram-se. Foi a primeira expressão que o vi usar que não parecia forçada. — A Pítia foi assassinada? Mac disse um dos palavrões de Pritkin. — E como haveria de saber isso se não foi você? -— perguntou ele, de modo acalorado. Marlowe encolheu os ombros. — De quem mais estamos falando? — virou o objeto nas mãos, franzindo o cenho. — Alguém o abriu com um corte.


— Fomos nós — disse Mac, arrancando-o das mãos. — Tinha arsênico lá dentro! — disse a última palavra como se esperasse que ela apunhalasse o vampiro, mas Marlowe não pareceu perturbado. — Ora, claro que tinha — ao ver a minha expressão, explicou-se. — Sapo em pó, arsênico, toda uma parafernália de substâncias que eram muitas vezes colocadas dentro destas coisas antes de serem soldadas. Pensava-se que afastavam a doença e acrescentavam valor ao medalhão e ao seu preço. — Quer dizer que era suposto haver veneno lá dentro? — olhei para Mac. — Tem certeza de que ela foi assassinada? — Cassie... — disse ele, à guisa de advertência. Era óbvio que não queria falar disso à frente de Marlowe, mas eu não percebia qual era o mal. Se Marlowe tinha organizado a morte da Pítia, ele já sabia disso; caso contrário, talvez pudesse ajudar com algumas pistas. — Foi encontrado um medalhão como este ao lado do corpo dela — contei a Marlowe. — Há alguma maneira de poder ter sido usado para matá-la? Pôs um ar pensativo. — Qualquer coisa que entre em contato com a pele pode ser um perigo. A rainha Isabel quase foi assassinada por veneno esfregado na parte mais alta da sua cela. E eu já matei um católico por lhe ter mergulhado o rosário numa solução de arsênico — acrescentou de modo despreocupado. Ele estava a arrepiar-me, mas pelo menos parecia que eu tinha recorrido ao homem certo. — Esse tipo de método demoraria muito tempo a matar alguém? — Uma hora ou assim. — Não. Tipo seis meses. Marlowe abanou a cabeça. — Mesmo partindo do princípio de que alguém lhe tinha mergulhado o colar numa solução fraca e ela tivesse o hábito de mexer no medalhão com os dedos, não teria resultado. O arsênico provoca vermelhidão e inchaço na pele com o passar do tempo, ela teria reparado. É por isso que o envenenamento gradual é geralmente feito com comida. Não tem sabor nem odor e, em doses pequenas, os sintomas são semelhantes aos da intoxicação alimentar. — A comida dela era preparada de propósito e testada com cuidado — disse Mac. — E Lady Phemonoe era extremamente... Cuidadosa em relação aos venenos. Quase se pode dizer que era, bem, não propriamente paranóica, mas...


— Não foi o que ouvi dizer — interrompeu Marlowe, alegremente. Parecia gostar de falar do ofício. — Dizem que ela se tinha tornado extremamente supersticiosa com a idade e que andava a comprar todos os tipos de remédios duvidosos. Uma faca que se acreditava ficar verde quando passava por comida que não era segura, uma antiguidade em vidro de Veneza que deveria explodir se fosse cheia com um líquido envenenado, um cálice com um bezoar no fundo... — Talvez ela tenha visto alguma coisa, Agnes também era vidente, e das poderosas — estremeci. Quão horrível seria ver a nossa própria morte e não ser capaz de fazer nada em relação a isso? — Talvez — Marlowe estava outra vez a sorrir para mim, o que não me agradava. — Mas, se assim for, parece que não lhe serviu de muito. O que prova bastante o argumento que estou a tentar demonstrar. Os magos não conseguem manter-se em segurança, tal como não conseguiram manter a sua antecessora. Nós seremos muito mais eficazes, garanto-te. Mac lançou um olhar pouco amigável ao vampiro. — Não lhe dê ouvidos, Cassie. Se não quer falar, não fale Comigo aqui, ele não pode obrigar-te. — Eu não estaria muito certo disso, mago. Conheço a sua reputação, mas grande parte da tua magia é inútil neste momento e a minha força está intocada. Não que eu sonhasse em obrigar a Cassandra a fazer alguma coisa contra a sua vontade. Apenas penso que ela deve saber quem é o seu recente aliado e o que é que ele quer. — Não se meta nos nossos assuntos — disse Mac, com um tom agoirento. — Ah, mas não são só seus, hum? — perguntou Marlowe. — Ela tem o direito de saber com quem se envolveu — virou-se para mim, com um ar inocente. — Ou já sabes que o Pritkin é o assassino principal do Círculo?


í Mac engasgou-se com o conteúdo do cantil de que estivera a bebericar e depois quase o confirmou. — Isso é irrelevante! — falou assim que recuperou o fôlego. Marlowe nem sequer olhou para ele; tinha os olhos fixos em mim. — Suponho que seja novidade? — perguntou. — Conta-me. — Cassie, não pode acreditar em nada do que eles te dizem. — Não passam de disparates... — começou Mac, mas eu interrompi-o. — Estou cansada demais para ter esta discussão, Mac — disse eu e o desgaste na minha voz era genuíno. Tudo o que eu queria era encontrar um pedaço suave de musgo, que não estivesse muito úmido e não exibisse partes de árvores móveis, e dormir durante umas doze horas. Em termos mentais e físicos, eu estava perto da exaustão e o meu estado emocional também não estava grande coisa. Mas Marlowe estava certo, eu precisava ouvir isto. Podia decidir mais tarde se acreditava ou não. Marlowe não precisava de mais incentivo.


— Pusemo-nos a pensar por que razão tinha sido nomeado um caçador de cabeças com a ligação do Círculo conosco. Há imensos especialistas em vampiros disponíveis e muitos deles são muito mais... Diplomáticos... Que o John Pritkin. O sentido de oportunidade também era duvidoso, tendo o Círculo substituído a sua antiga ligação por Pritkin apenas horas antes de teres sido trazida. Era como se eles soubessem que estava para chegar e quisessem que ele lá estivesse. — Tinha esperança de que ele me confundisse com um demônio e me matasse — disse eu. Isto já não era novidade, sendo que Mircea já o tinha percebido anteriormente. Quase tinha dado resultado. Pritkin não sabia muito de vampiros, mas era perito em demônios. E alguns dos meus poderes, principalmente a possessão, tinham-no deixado muito desconfiado. — Já ouvi essa teoria, mas pareceu-me estranho que o Círculo simplesmente partisse do princípio de que fizesse alguma coisa que alarmasse Pritkin o suficiente a ponto de te atacar. Se as coisas tivessem corrido como tínhamos planejado, e se não tivesses fugido e Tomas não nos tivesse traído, teria sido uma noite tranquila — impacientei-me com esta avaliação do meu primeiro encontro com o Senado que, desde o início, tinha sido tudo menos tranquilo, mas não interrompi. — Pensei que a história não ficava por ali — continuou — e dei início a um inquérito discreto. — Você não sabe nada — disse Mac com veemência. Marlowe ergueu uma sobrancelha, com uma expressão no rosto que poderia ter sido usada por um rei sobre um plebeu que tivesse deixado um rastro de lama pelo chão do castelo. — Pelo contrário, sei bastante. Por exemplo, sei que Pritkin é responsável por, pelo menos, um milhão de mortes, provavelmente mais. Sei que é o homem a quem o Círculo recorre quando quer ter certeza absoluta de que alguém acaba morto. Sei que é famoso por usar métodos pouco ortodoxos para aniquilar as suas presas — lançou-me um olhar arqueado —, tal como usar uma marca para ajudá-lo a localizar outra. Mac proferiu uma interjeição. — Não lhe dê ouvidos, Cassie — fez uma pausa para espezinhar uma raiz que estivera a tentar enrolar-se à volta do meu tornozelo. Esta partiu pela floresta, mas eu não tinha dúvidas de que iria voltar. Senti um forte anseio por um machado. — Pode não nos conhecer, mas conhece os vampiros. Mentem com todos os dentes que têm. John é um bom homem. Marlowe soltou uma gargalhada desdenhosa. — Diz isso às vítimas dele! — olhou de relance para mim como se tentasse avaliar minha reação às suas notícias, mas eu tinha atingido aquela sensação de cansaço que advém


de um esforço extenuante em muito pouco tempo. Não conseguia importar-me muito com o fato de Pritkin me querer morta. Não era propriamente uma ideia nova; eu tinha agido desde sempre partindo desse princípio. Comecei a vasculhar a mochila de Mac em busca de meias secas. Tinha um par na minha bolsa de viagem, mas Mac não devia ter se dado ao trabalho de guardar. Quando se tem cerveja, armas e cerca de uma tonelada de munições, mas nada de roupas limpas, isso é um indício de que não andamos com as companhias certas. Marlowe parecia ligeiramente irritado por sua revelação bombástica não estar a provocar o tumulto que ele esperara, mas ainda assim, prosseguiu. — Se confiou aos cuidados do Pritkin, mas não sabe quase nada acerca dele! É óbvio que o Círculo o enviou para te matar. — Este é um exemplo perfeito do que fazem os vampiros, Cassie! — estrondou Mac. — Juntam algumas “semi-verdades” que fazem com que eles pareçam imaculados e nós cobertos de merda! — Ele precisa da tua ajuda para encontrar a outra farsante — disse-me Marlowe com sinceridade, ignorando Mac. — Mas assim que ele a pegar, você estará morta. A não ser que nos deixe ajudar. O Senado só quer... — ...Controlar todos os teus movimentos! — interrompeu Mac. — Cassie, juro que John ficou escandalizado quando descobriu as intenções do Círculo. Eles ficaram completamente loucos! Mesmo que consigam o que querem e você e a Myra morram, não podem ter certeza de que a iniciada que escolheram vá se tornar Pítia. Há centenas, possivelmente milhares, de clarividentes destreinadas no mundo. E se o poder passasse para uma delas? E se o Círculo Negro a encontrasse primeiro? Sorri ligeiramente. — Venha o diabo e escolha, não é? — Mac parecia algo aturdido com o que deixara escapar, mas foi exatamente por ele não ter feito um vigoroso discurso a meu favor que a minha tendência foi acreditar nele. Olhei de relance para Marlowe. — Mac tem razão. O próprio Pritkin foi hoje considerado um farsante por me proteger e esse negócio quase fez com que o matassem. Parece-me um bocado radical para alguém que está apenas a tramando contra mim. — Ele é conhecido por essas táticas — disse Marlowe, não dando grande importância. Fitou-me atentamente com os olhos quase a irradiar sinceridade. — Cassie, não temos qualquer desejo de te manipular. O nosso propósito é oferecer-te uma alternativa ao


domínio por parte dos magos. Foi esse o destino das Pítias durante gerações, mas não tem de ser o teu. Nós podemos... Levantei uma mão, não só porque não queria ouvir, como também para impedir que Mac, cujo rosto se tornara perigosamente vermelho, pirasse. — Poupe-me, Marlowe. Eu sei a verdade e não tenho a intenção de ser dominada por ninguém. — Sabe o que te contaram — respondeu com rapidez. — E vai precisar de aliados, Cassie. Nenhum grande líder governou completamente sozinho. Isabel ficou para a História como uma rainha magnificente que de fato foi, mas um dos seus maiores talentos era escolher pessoas capazes de aconselhá-la. Em parte, foi espetacular porque estava rodeada de gente espetacular. Não pode continuar isolada. Não vai conseguir trabalhar assim. A longo prazo... — Neste momento não estou muito interessada num longo prazo, Marlowe — estava apenas a tentar viver o dia-a-dia. — Com o tempo, irá perceber que precisa de aliados e o Senado lá estará. Ao contrário dos magos, nós queremos trabalhar contigo, não controlar todas as tuas decisões. — Hã-hã. E foi por isso que Mircea me lançou o dúthracht? — havia muitas coisas que não eram claras para mim, mas essa era nítida como a água. O géis não estava habituado a aconselhar; estava habituado a controlar. A expressão no rosto de Marlowe revelava que ele sabia disso. — Vamos arranjar maneira de o quebrar — prometeu ele. — E, entretanto, o Senado oferece-te a sua proteção. Revirei os olhos e Mac bufou. — Pois sim — disse ele com desdém —, basta substituir “prisão” por “proteção” e... — Se calhar, é melhor ter em conta — disse Marlowe, em tom ameno — que, apesar do erro de julgamento do Lorde Mircea, o Senado já te protegeu no passado. Daí que só exista uma conclusão possível a retirar dos fatos: os magos querem a sua candidata no trono da Pítia e nada os impedirá de vê-la lá. Nem a tua morte. — Outra mentira! — Mac pôs-se de pé. Parecia suficientemente zangado para se atirar ao pescoço de Marlowe, mas não teve chance. Ouvi um restolhar e, num abrir e fechar de olhos, as raízes que tinham andado a chatear-me o dia inteiro, enrolaram-se e fixaram-se à volta de Mac. Ele tentou dizer qualquer coisa, mas eu não consegui entender. Numa questão de segundos, só os seus olhos ultrajados


se viam sobre uma espiral de raízes cordadas, algumas com o tamanho do meu braço. Debater-se parecia ser inútil, embora ele tentasse. Marlowe estava basicamente no mesmo martírio, mas sentado em silêncio, sem tentar resistir. Reparei que, embora Marlowe fosse o mais forte dos dois, estava a ser menos apertado do que Mac, com raízes a chegar-lhe apenas ao peito. Se calhar, quanto menos eram combatidas, menos era a força com que apertavam. Segui o exemplo dele, na esperança de que continuassem a ignorar-me. Depois percebi que elas não eram o único problema. — Não somos espiões — disse Marlowe em voz alta, aparentemente para o ar. — Vocês estão na nossa terra sem a nossa autorização — veio a resposta —, como tal, são aquilo que nós dissermos que são. Quem é você? — inquiriu uma voz autoritária. Uma criatura abonecada saiu disparada de detrás de Marlowe para vir pairar diante da minha cara. Tinha mais de meio metro, uma massa de cabelo ruivo flamejante e uma enorme envergadura de asas verdes e brilhantes. Demorei algum tempo a reconhecê-la como a duende que tinha visto uma semana antes no Dante's. Nessa altura só media cerca de vinte centímetros, mas não havia margem para dúvidas. Tinha sido o primeiro membro dos Elementais que eu alguma vez vira e essa imagem fica marcada. — Não lhe diga seu nome! — disse Marlowe, rapidamente. A duende franziu o cenho e uma grande raiz nodosa abriu caminho à força por entre os seus lábios. É bom que os vampiros não tenham necessidade de respirar, já que se seguiram mais raízes, enroscando-se de tal maneira à volta do seu rosto que só se conseguia ver um tufo de caracóis castanhos. Foi amordaçado com tanta eficácia que não me parecia que eu fosse ter mais ajuda. — Sou a Pítia — disse eu, decidindo que um título poderia ser melhor do que o meu nome. Tanto quanto eu sabia, esse não podia ser usado em encantamentos. — Já nos tínhamos encontrado, no Dante's, se... — Vou ser altamente recompensada por isso — disse ela, ignorando a minha tentativa de aproveitar o nosso breve conhecimento. — Apanhe-os! — um grande grupo de coisas felpudas saiu de rompante das árvores, com bastões e escudos enrolados em couro prontos a entrar em ação. Não sei por que se davam ao trabalho de usar armas, as ondas de fedor que emanavam deles eram suficientes para incapacitar qualquer pessoa. Um par de coisas de aspecto muito estranho convergiu em mim. Parecia que duas árvores horripilantes se tinham desenraizado e decidido ir dar um passeio. A mais próxima tinha uma forma mais ou menos humana, se os humanos costumassem ter um metro e vinte de altura e pelo menos a mesma largura. Mas o cabelo era da cor dos líquens que havia nas raízes, um vermelho-vivo e chamejante, apesar da terra incrustada, e os olhos tinham o mesmo amarelo cor de estrume que os seus dentes. Tinha a pele tão nodosa e áspera como a


casca velha, e a cor era exatamente a mesma do solo florestal margoso. Vestia apenas uma pequena tanga feita de folhas de carvalho, quase oculta pelas pregas da sua enorme barriga. O parceiro tinha mais uns trinta centímetros de altura, mas era muito menos largo. Um cabelo grisalho imundo descia-lhe até aos joelhos, com a aparência e consistência do musgo espanhol. Uns músculos fibrosos sobressaíam nuns braços extraordinariamente longos, cobertos por pele cinza-esverdeada. O corpo assemelhava-se mais a um tronco de árvore escarpado do que a um ser vivo, com extensões nodosas por toda a parte, como se fossem ramos raquíticos. Ao invés de roupa, tinha faixas compridas de musgo cinzento e sujo e alguns fetos que lhe pareciam brotar diretamente da carne. Apertei o nariz com uma mão e desejei que também não precisasse respirar. — O que é aquilo? — Elementais das Trevas — conseguiu dizer Marlowe. — Gigantes e homenscarvalho — as raízes tinham se retirado com a mesma rapidez com que tinham surgido, despindo-o até aos ombros. Apercebi-me do motivo quando um gigante de três metros começou a andar em frente e o atingiu na têmpora com um bastão do tamanho de uma árvore pequena. Marlowe suspirou. — É sempre na cabeça — murmurou ele, revirando depois os olhos e desmaiando. Recuei, erguendo as mãos para demonstrar que era inofensiva. Infelizmente, era verdade. A mochila onde estava minha arma estava fora do meu alcance e eu não tinha mais armas. O mais baixo riu e disse qualquer coisa numa linguagem gutural que eu não percebi. A julgar pela sua expressão, não era de grande importância. Dei um passo atrás quando eles avançaram, tentando manter um olho neles e nas raízes. Não resultou e eu acabei estatelada nas folhas espalhadas. Assim que caí no chão, as raízes enrolaram-se nos meus pulsos e encurralaram-me. Quando dei por mim, tinha a coisa mais alta em cima de mim e o seu hálito parecia um monte de adubo fresco na minha cara. — Cassie! — ouvi a voz de Mac e ergui os olhos a tempo de o ver deslizar pelo suporte enfraquecido das raízes e a apressar-se na minha direção. Tudo pareceu abrandar, como acontece quando vemos aquilo que está prestes a acontecer, mas não conseguimos impedi-lo. As raízes mergulharam atrás dele e, antes que eu ganhasse fôlego suficiente para gritar, uma já o tinha trespassado como uma lança viva. Tudo o que eu podia fazer era ficar ali deitada a vê-lo contorcer-se de dor, com um membro de madeira aguçado como uma faca a projetar-se da carne da parte de cima da sua coxa. Ele vacilou e tombou com estrondo, caindo de joelhos enquanto eu finalmente conseguia gritar. Senti uns dedos ásperos nas pernas; depois encontraram o fecho dos meus calções e partiram o zíper, com a pressa de os tirarem. Quase nem dei por isso, olhando com horror para Mac a contorcer-se no chão, tentando arrancar a massa de madeira que lhe trespassara a coxa. Conseguiu remover o espigão estreito com mãos estáveis, ignorando o banho de


sangue abrupto que lhe manchara a roupa, mas logo de imediato outra se enrolou em volta do seu pescoço, sufocando-o. — Não! Deixem-no em paz — estão a matá-lo! As raízes, ou não perceberam, ou não se importaram. A criatura que estava em cima de mim deu um puxão no tecido aberto, deixando-me à mostra a parte de cima das coxas, e depois, com um movimento rápido, puxaram-no para o meio das pernas. Dei-lhe um pontapé, mas foi como bater em madeira em vez de carne viva, e não me parece que ela sequer tenha reparado. Olhei em volta de modo descontrolado, em busca de ajuda, mas a figura flácida de Tomas estava a ser atirada com muito pouca suavidade para dentro de uma saco. E, embora Marlowe tivesse recuperado a consciência, estava a ser segurado por três gigantes enquanto outro tentava enfiar-lhe um saco pela cabeça. Mac tinha conseguido afrouxar a raiz e debatia-se com uma mão para desenrolá-la do pescoço. Tinha a outra mão sobre a ferida áspera da perna, que já tinha ensopado o chão por debaixo dele como se tivesse cortado uma artéria. Mas pelo menos as outras raízes tinham recuado. Se não estivesse a debater-se, não parecia ter interesse para elas. Eu só podia esperar que ele se mantivesse no chão, e talvez fingir-se de morto antes que isso acontecesse mesmo. Com uma descarga de adrenalina, apercebi-me de que estava por minha conta e de que nenhuma das minhas defesas habituais iria funcionar aqui. A minha pulseira não era mais do que uma peça decorativa e a minha sentinela era inútil. Sheba tinha desaparecido depois de atacar a Cônsul e o géis estava em silêncio. Ou o seu poder não funcionava no Mundo das Fadas, ou estas criaturas eram demasiado estranhas para que este as reconhecesse como ameaças. O meu amuleto poderia ter dado uma ajuda, mas estava preso debaixo da minha camisola e eu não conseguia chegar com os braços esticados por cima da cabeça. A criatura magricela rasgou o resto dos calções e arremessou-os para o lado, enquanto a gorda começava a dar-me patadas na parte de cima do corpo. O top de alças era de uma malha elástica que não rasgava, e os dedos desajeitados dele não pareciam conseguir arrancálo. Parou para me lamber a cara como se estivesse a provar-me, com um fio de saliva a pingar da boca em face. Gotejou lentamente pelo meu pescoço abaixo, fria e viscosa, completamente diferente do que os fluidos corporais devem ser. Tentei gritar, mas em vez de ar, só engoli uma golfada de cabelo fuliginoso e de sabor repugnante. Fiquei temporariamente cega em relação ao que estava a acontecer, encurralada debaixo da massa sufocante da cabeça dele, mas senti o puxão do tecido e o súbito choque de ar contra mim quando as minhas calcinhas foram rasgadas. Tentei transportar-me dali, sem me importar com as consequências naquele momento, mas embora tivesse sentido o impulso do poder, não foi suficiente. Não consegui segurar-me e este se manteve como uma corda salva-vidas a balançar fora do meu alcance.


Virei a cara para a parte mais distante do trilho que consegui, desesperada por encontrar algum ar, e foi então que a vi. Afinal ainda havia uma arma por perto, embora não propriamente ao meu alcance. A runa deve ter caído dos calções quando foram atirados para os arbustos, e era tão pequena que ninguém tinha reparado. Estava perto da minha cabeça, uma pálida lasca de osso meio enterrada em folhas húmidas. Mas embora estivesse apenas a centímetros de distância, eu não tinha como agarrá-la. Enquanto me esforçava por descobrir como haveria de atravessar aqueles poucos centímetros, duas raízes esguias e fortes enrolaram-se nos meus tornozelos e começaram a enroscar-se pelas minhas pernas acima. Quando me chegaram aos joelhos, começaram a exercer pressão para fora. As cordas vivas subiram em espiral pelas minhas coxas acima, mordendo-me a pele à medida que apertavam de tal modo as pernas que, por um instante, achei que queriam rasgar-me ao meio. Só pararam quando os meus quadris deixaram de ceder. Tentei lutar, mas nada fazia a mínima diferença e o meu pânico crescente quase me impossibilitava de pensar. Um galho com algumas folhas verdes brilhantes veio a cair do ar lá de cima e aterroume na cara, insinuando uma carícia, enquanto as coisas por cima de mim começavam a disputar quem iria violar-me primeiro. Foi uma briga curta. O magricela pegou seu companheiro e atirou-o contra uma árvore, cujos ramos o encurralaram num abraço de madeira, como uma jaula. Depois se virou e caiu-me em cima. Duas mãos grosseiras e nodosas agarraram-me nos ombros provocando-me dor e eu ergui o olhar para uns olhos cinzentos e inexpressivos que de humano nada tinham. Contorceu-se pelo meu corpo abaixo, com a sua pele áspera e irregular a raspar na minha, à exceção do lugar onde o top de alças me protegia. Ignorei a dor que os movimentos me causavam e agarrei o galho, minha única ferramenta que tinha na boca. Os meus olhos fixaram-se na tira que atravessava a parte de cima do disco em osso, apesar de ser castanha e de pouco se distinguir das folhas dispersas. Sabia que podia ter apenas uma chance e tinha de concentrar-me. Consegui enfiar a ponta do galho na pequena alça e comecei a tentar puxá-lo para mais perto. Se conseguisse que me tocasse na pele, ou até mesmo apenas a aura, poderia ser o suficiente. Foi então que ouvi um ruído de espezinhar e algo escorregadio e viscoso me tocou na barriga. Fiquei paralisada. Dava a sensação de ser uma coisa muito antiga que tinha sido deixada enterrada a apodrecer há muito tempo, esponjosa, úmida e intumescida. Mas movia-se de modo vagaroso, contraindo-se contra a minha barriga. Eu só conseguia ver o ombro do meu atacante e o pequeno retalho de trilho, mas o meu cérebro conjurava imagens de uma larva branca enorme, ou de uma lesma do tamanho de um punho. Quando a sua umidade arrepiante deslizou avidamente por entre as minhas pernas, juro que o meu coração parou. Estava tão paralisada de horror que me limitei a ficar ali deitada enquanto a coisa inumana se intumescia contra mim, como uma fruta podre prestes a rebentar.


O seu frio ensopado provocava-me pele de galinha no corpo todo, enquanto me sugava o calor, entorpecendo-me como se estivessem a esfregar-me um pincel em zonas sensíveis do corpo. Pela repulsa que me causava arrepios, percebi que a horrível movimentação gelatinosa estava nas formas mutáveis, tentando encontrar uma que fosse compatível com o meu corpo. Mas aquela que arranjou não tinha qualquer semelhança com a virilidade humana. De repente, cresceu e ficou mais firme, com a sua consistência viscosa a coagular-se numa forma gorda e rígida tão inflexível como uma estaca de madeira. Se a coisa me trespassasse, eu sabia que não iria sobreviver, que iria consumir o meu calor e substituí-lo pelo seu frio úmido. O homem verde recordou-se de uma parte do meu cérebro: os povos celtas antigos tinham sacrificado um dos seus à terra, para que se desenvolvesse rico e fértil a partir da sua carne. Só que parecia que esta floresta preferia uma mulher verde. Quando a imitação de órgão começou a desabrochar, com uma ação tão masculina, tão humana, a minha paralisia desfez-se. Gritei e sacolejei a cabeça num movimento negativo violento. Não o tinha planejado, quase me tinha esquecido do que estava a fazer, mas o ato fez com que uma coisa pequena e dura aterrasse sobre a minha face. Os meus olhos cruzados identificaram-na como sendo a runa em disco e o meu coração acelerou de novo. Não sabia bem como lançá-la, não estava convencida de que sequer fosse resultar. Mas gritei o nome no interior da minha cabeça porque a minha boca não parecia estar a funcionar. Não sei se era esse o procedimento correto, mas deu para o gasto. Mais ou menos. Sem aviso prévio, dei por mim não vinte minutos atrás no tempo, mas talvez dois. Os homens-carvalho dirigiam-se para mim e Mac dava um salto para interceptá-los, tão concentrado em salvar-me que nem viu as raízes a endireitar-se em lanças e no encalço dele. Desta vez não hesitei, gritei uma advertência e desci o trilho a correr em direção à mochila que tinha abandonado. Agora que podia respirar livremente de novo, chorava compulsivamente e tinha as mãos a tremer tanto que nem sabia bem se seria capaz de abrir a mochila. A criatura mais baixa apanhou-me quando eu tinha apenas uma fivela desapertada. Agarrou na parte da frente da minha camisola e puxou, e desta vez devia ter um melhor poder de alavanca nos pés, porque a camisola rasgou-se. O meu amuleto caiu e revelou-se, empurrando o colar de Billy para arranjar espaço entre os meus seios e o meu atacante soltou um guincho e deu um salto para trás. Aninhou a mão que roçara no amuleto como se tivesse sido queimada e apareceu-lhe uma marca preta na pele com a forma da cruz de madeira de sorveira-brava. Enfiei a mão na mochila semiaberta e consegui, por fim, arrebatar a arma. Não sou a melhor atiradora do mundo. Na verdade, não presto para nada. Mas nem eu costumo falhar quando tenho os alvos a menos de um metro de distância. Não me preocupei em fazer pontaria, limitei-me a disparar uma rajada de balas que lascaram a pele amadeirada dos homens-carvalho como se estivesse a disparar contra madeira verdadeira. O mais alto soltou um guincho e partiu trilha abaixo, enquanto o seu companheiro gordo se agachava no


chão, com as mãos sobre a cabeça musgosa. Como é óbvio, as balas de ferro provocaramlhes dor, mas embora estivessem a verter uma substância xaroposa de todas as feridas, ambos estavam vivos e a mexer-se quando o meu carregador se esvaziou. Fiquei a olhar para eles, incrédula; o que seria preciso para deter uma coisa daquelas? O casaco que Pritkin me tinha dado estava no chão ali perto, onde eu o largara ao lado da mochila quando parámos para descansar. Mas eu não tinha tempo para procurar as balas certas. O Elemental baixinho percebeu que eu tinha parado de disparar e agarrou-me. Encostei o amuleto de sorveira-brava à testa dele, comprimindo-o o máximo possível contra a sua pele. A carne em redor ficou logo negra e começou a fumegar, exalando um cheiro exatamente igual ao de uma fogueira a arder. Afastou-se de mim de repente, aos gritos e agarrado à cabeça. Não sei se teria tentado de novo, porque a duende apareceu subitamente e, apesar de ele estar de momento incapacitado, bateu-lhe com a parte romba da espada. O golpe deve ter sido desferido com mais força do que pareceu, porque ele saiu disparado pela floresta até um ramo pendente o fazer parar. Caiu no chão com estrondo, inconsciente ou pior do que isso. Não fiquei à espera para descobrir, pois o meu único pensamento era chegar até Mac. Umas mãos enormes desceram sobre mim ao mesmo tempo em que um grito reverberava pela floresta. Baixei os olhos para a trilha a tempo de ver uma raiz do tamanho de uma árvore pequena a brotar do solo gretado mesmo por baixo dos pés de Mac. O tempo pareceu parar – já nem sentia o meu coração a bater – e depois tudo acelerou de repente. A raiz projetou-se do solo, trespassando Mac pelo centro das costas. — Não — disse eu entre dentes, mas ninguém ouviu, ninguém ligou. O corpo de Mac torceu-se para cima até a sua coluna vertebral sair totalmente da erva, com os dedos a enterrar-se na terra compactada, e depois a raiz brotou para fora do seu dorso num grande jorro de sangue. A duende fez sinal com a cabeça aos guardas e eles soltaram-me. Desatei a correr pela trilha abaixo, mas Mac já estava flácido quando cheguei ao pé dele, com uns olhos cegos a olhar para cima sem reconhecer nada. — Mac — abanei suavemente o corpo sem reação. — Mac, por favor. Sem oferecer resistência, a cabeça dele caiu para o lado no exato momento em que uma rajada de ouro embateu no solo escuro. O meu sangue gelou quando percebi o que tinha acontecido. As sentinelas de Mac tinham solidificado e caído, deixando a pele entre as folhas inertes tão rosada e imaculada como a de um recém-nascido. Peguei numa das formas pequenas com uma mão trêmula. Era o lagarto pequenino, que tinha ficado parado a meio do salto. Ao lado do meu joelho estava uma serpente com o comprimento do meu braço, desenrolada do seu lugar habitual à volta do pescoço dele. E por baixo do seu peito arruinado jazia uma águia do tamanho da minha mão.


Fitei-os com um olhar vago, sabendo o que significava o fato de as suas sentinelas o terem desertado, mas sem estar disposta a deixar que o meu cérebro compusesse a palavra. Uma zoeira ensurdecedora ergueu-se dos espetadores ali reunidos, mas eu nem sequer ergui os olhos para os guinchos e uivos. Até que as raízes regressaram. Se antes eu achava que havia muitas, fui de imediato recordada de quantas são necessárias para alimentar uma árvore, por menor que seja. De repente, estavam por toda a parte, brotando da floresta, emergindo do solo, enterrando-se a partir da vegetação rasteira. Algumas delas pararam para sugar o sangue de Mac da poça crescente que quase cobrira a trilha, mas na sua maioria, lançaram-se a ele como tubarões famintos. A massa agitada fustigava-me o corpo como se fossem chicotes cobertos de casca de árvore, enquanto a terra em redor de Mac fervilhava de atividade. Dezenas de raízes enrolaram-se à sua volta, prendendo-o, espessas como mortalhas. Foi então que um enorme espécime nodoso embateu contra o meu estômago, tirando-me o ar dos pulmões. Caí de joelhos, e, quando tornei a olhar, Mac tinha desaparecido. O único indício de que algo tinha acontecido eram as sentinelas douradas que, aqui e ali, se projetavam da terra remexida. A duende disse qualquer coisa ao gigante desajeitado que estava parado atrás de si. Era vinte vezes maior que ela, mas movimentou-se às suas ordens sem questionar. O seu corpo volumoso a dirigir-se a mim pelo trilho abaixo foi a última coisa que vi antes de o mundo enegrecer e de eu me perceber que estava enfiada num saco. Lembro-me de ser arremessada para as costas de alguém; depois o meu cérebro desligou-se por completo e eu caí na escuridão.

*** Acordei com calafrios, ofegante, com o coração a bater forte. Fitei a escuridão absoluta com a boca seca de terror. Tinha certeza de que alguma coisa estava prestes a agarrar-me e que iria começar tudo de novo. Mas passaram-se minutos e nada aconteceu, e a única respiração que eu conseguia ouvir era a minha, arquejante. Doía-me o peito como se tivesse corrido quilômetros e eu só queria enrolar-me à volta da dor até que ela desaparecesse, mas não podia dar-me esse luxo. Tinha de descobrir onde estava, tinha de saber o que tinha acontecido. Pelo toque descobri que estava numa cama desdobrável ruim numa cela em pedra, nua, com apenas um curto cobertor de lã áspera a tapar-me. Suponho que não tivesse valido a pena guardar o top de alças. Não conseguia raciocinar, tinha os olhos vermelhos e tremia com a recordação do que quase tinha acontecido. Examinei-me a mim própria, mas em vez de estar com nódoas negras, encardida e severamente abalada, parecia estar bem, embora os vergões que as raízes me tinham provocado latejassem como uma marca de garra da águia na minha mão, fazendo parecer que a minha pulsação rápida ecoava pelo corpo.


Acima de tudo, queria um banho. Pus-me às apalpadelas até encontrar um grande balde de água que tinha sido deixado ao pé da porta juntamente com uma esponja, uma barra de sabão caseiro e uma toalha. O chão estava vazio, à exceção de uma palhinha que se soltara de uma fissura no colchão, e havia um ralo no centro das pedras ligeiramente inclinadas. Desfiz-me do cobertor e esfreguei a pele até ficar esfolada em alguns lugares e já não sentir o cheiro de mais nada a não ser o forte odor do sabão. Despejei o resto da água por cima da cabeça, mas apesar de todos os meus esforços, não me senti limpa. Sequei-me com a toalha, tentando não pensar em Mac, mas era impossível. Os Elementais deviam ter reunido e trazido seus amuletos, porque estavam empilhados aos pés da cama desdobrável, reconhecíveis pelas suas formas, mas frios e inertes sob as minhas mãos. Pus-me a pensar se seria suposto ser algum tipo de mensagem – um lembrete de como a nossa magia ali era inútil. Se era essa a ideia, eu não precisava disso. Continuava a sentir-me desorientada e não conseguia acreditar bem no que acabara de ver. Mas tinha a imagem gravada nos meus olhos. Conseguia ouvir o último grito de Mac, ver os seus dedos a esgaravatar no solo, em busca de uma arma que não possuía porque me tinha dado a mim o seu único amuleto de Elementais. E eu tinha perdido. Tentei invocar novamente o meu poder, mas embora conseguisse senti-lo como uma grande onda a embater contra uma parede, este não conseguia chegar até mim. Talvez houvesse maneira de compensar o efeito de umidade, mas se havia, eu não conseguia descobri-lo. Agora que os meus olhos já se tinham adaptado, via uma luz tênue a contornar a porta da cela, tão difusa que, quando pestanejei, ela desapareceu. No que a uma fuga dizia respeito, não era grande ajuda, e não havia muita inspiração na cela vazia. Fora a cama desdobrável, não havia mobília e, à exceção da pesada porta trancada e de uma janela alta e gradeada, não havia saída. Enrolei o cobertor à minha volta para servir de roupa e arrastei a cama alguns passos, encolhendo-me com o ruído que esta produzia nas pedras. Quando subi, só consegui chegar ao peitoril, mas quando procurei com as pontas dos dedos, só encontrei poeira e aquilo que me pareceu ser uma aranha morta. Não se via a Lua nem estrelas, mas pelo toque, descobri que as grades eram de metal e tinham um diâmetro do tamanho do meu pulso. Tornei a sentar-me na cama desdobrável e envolvi-me com os braços para me impedir de tremer com o ar gelado da noite. Tomar banho e pensar em possibilidades de fuga tinham dado algo que fazer ao meu cérebro, mas agora este estava sempre a tentar regressar ao horror na floresta. Quanto mais eu tentava não pensar em Mac, mais as outras imagens me enchiam a mente. Conseguia sentir no meu rosto o cheiro do hálito horrível, ver a sofreguidão nas expressões deles e sentir aquela massa apodrecida a contorcer-se entre as minhas pernas, procurando, investindo, invadindo. Apesar dos meus esforços, continuava a tremer, de tal forma que os meus dentes começaram a bater. Usei a raiva para afastar o pânico, para me deixar respirar fundo, para me deixar pensar. Estava sozinha e indefesa, e detestava isso. O medo era um velho


companheiro, familiar à sua maneira, mas isso não era medo. O que eu estava a sentir ia além das palavras, um arrepio que se me metia nos ossos e uma certeza de que, mesmo que eu sobrevivesse, nunca mais iria sentir-me segura. Enrolei-me mais no cobertor, mas não surtiu grande efeito. O frio que penetrava em mim não vinha do exterior. De qualquer modo, percorri o confinamento da cela, tentando obrigar a circulação a fazer-se no meu âmago gelado. Não me aqueceu, mas aclarou-me a cabeça. Podia analisar os meus erros mais tarde. Podia chorar mais tarde. Neste momento, tinha de sair dali. E, de alguma maneira, tinha de garantir que nunca mais na vida iria ficar tão indefesa. Estava prestes a tentar ceder mais uma vez ao meu poder quando ouvi uma voz familiar e desafinada vinda de algum lugar ali perto. — Te levarei de novo para casa, Kathleen, através do oceano vasto e selvagem — trinava com melancolia. Era tênue e indistinta, mas inconfundível. — Billy! — quase gritei de alívio. A cantoria parou de modo abrupto. — Cassie, minha querida. Tenho uma para ti. Inventei-a quando estava no bar... Outrora um fantasma de seu nome Billy, Meteu-se numa enrascada bem idiota. Encontrou uma bela moçoila E meteu-se logo com ela, Esquecendo-se de que só tinha vinho para um. — Onde estamos? — gritei. — O que está acontecendo? — a única resposta que obtive foi um coro crescente de “A Beldade da Cidade de Belfast”. Só Billy para me fazer querer estrangulá-lo quando nem sequer estava na mesma sala. — Está bêbado! — Estou — concordou ele. — Mas estou consciente, que é mais do que se pode dizer deste meu amigo cor de laranja. Não aguenta o álcool, o desgraçado. — Billy! — Tudo bem, Cass. Aguenta aí os cavalos, que o bom do Billy conta-te a história. Fomos levados pelos Elementais das Trevas. Arrancaram-me de um bar muito agradável e atiraram-me para um buraco úmido, com a companhia apenas de mim mesmo, para servir os desejos do rei. Respirei de alívio. Pelo menos não íamos ser decapitados na manhã seguinte, ou outra coisa qualquer igualmente medieval. Isso daria aos outros algum tempo para nos encontrar, partindo do princípio de que ainda estavam livres.


— Onde está todo mundo? — esperava que estivessem melhor do que eu, senão estávamos metidos em maiores problemas. — Pritkin e Marlowe estão a tentar convencer o chefe da guarda, um duende maléfico, a soltar-nos, mas não sei como é que estão se saindo — fez uma pausa e depois perguntou, num tom diferente — Olha lá, Cass. O que acha que me aconteceria se me matassem aqui? Eles não têm fantasmas, já reparaste? Pensei em Mac, no seu rosto a afundar-se na morte, nos olhos vagos. Se tivesse havido sinais de um fantasma, uma centelha ou faísca ao redor dele, eu não tinha dado por isso. Fui assolada por uma nova vaga de arrepios. Meu Deus, que tínhamos feito? — E se eu não regressar? — dizia Billy. — E se fosse só assim, eu morria e desta vez não havia escapatória? E se... — Billy! — tentei manter a voz sem o tom histérico, mas não fui inteiramente bemsucedida. Engoli em seco e tentei de novo. — Não vais morrer, Billy. Vamos sair dessa — disse-o tanto para me reconfortar como para acalmá-lo, mas não me parece que tenha resultado para nenhum de nós. Ouvi um chocalhar de chaves do lado de fora da minha cela e a enorme porta abriu-se com o balanço das dobradiças ancestrais. Quase fiquei cega com a luz da lanterna que invadiu a sala, mas, pestanejando através dos dedos, consegui distinguir quem o guarda trazia. — Tomas! O guarda, com apenas cerca de um metro e meio, trazia às costas o vampiro de mais de um metro e oitenta como se não pesasse nada. Largou o fardo no beliche e virou-se para mim e, pela primeira vez, reparei nas presas de javali que se projetavam da sua grande boca. Ogro, bradou parte do meu cérebro quando ele me espetou um dedo rechonchudo no peito e grunhiu. A voz dele parecia gravetos a serem pisados por um tanque e, se supostamente devia conter palavras, eu não as compreendia. — Ele quer que o cure — disse uma voz vinda da soleira da porta. Por detrás do corpo volumoso do carcereiro estava uma morena esguia com um elaborado vestido verde coberto por bordados vermelhos. Demorei um segundo a reconhecê-la. — Françoise? — era bizarro. De cada vez que me virava, lá estava ela. Encontramonos pela primeira vez na França do século XVII, quando eu e Tomas a salvamos da Inquisição. Depois tornou a aparecer com a duende no Dante's, onde estava prestes a ser vendida aos Elementais. Eu libertei-a, mas parece que o Destino tinha andado tão no


encalço dela como no meu, porque cá estava ela outra vez. — O que faz aqui? — perguntei, perplexa. — Tu e le monsieur ajudar-me uma vez — respondeu rapidamente. — Eu vir, como se diz? Devolver o favor. — Então e os outros? — perguntei rapidamente. — Vim com um grupo... — Qui, je sais. O mago, ele fazer acordo com Radella. Ela ser comandante da guarda noturna, une grande baroudeuse, uma guerreira exímia. — Que tipo de acordo? — O mago ter uma runa de poder. Radella há muito procurar isso. Acima de tudo, ela querer uma criança, mas é inféconde, estéril. O mago dizer que a lançar para ela, se ela nos ajudar. — Jera — diabos me mordam se não acabou por se tornar útil. — C'est ça — olhou de relance para o ogro que olhava com desconfiança para nós. Fiquei com a impressão de que não falava inglês, pelo menos não bem o suficiente para seguir a conversa. — Eles não sabem por que é que le vampire não acordar. Eu dizer a eles que tu ser uma grande curandeira, que podes salvá-lo. — Ele está num transe de cura. Tenho esperanças de que se salve sozinho. — Não importa — disse ela, sorrindo e acenando com a cabeça ao ogro. — Eu só querer ter vocês os dois juntos, perto do portal. Eu regressar em breve, depois do render da guarda. — O portal? Mas... — Eu ir fazer o que puder — disse ela, enquanto o ogro passava por ela a arrastar-se, aparentemente decidindo que a conversa já tinha durado tempo suficiente. — Mas tu teres de prometer levar-me contigo. Por favor, eu estar aqui há tanto tempo... — Está aqui há uma semana — disse eu, confusa. Queria explicar-lhe que não precisava do portal. Precisava encontrar Myra, não regressar ao ponto de partida, sobretudo não com o géis em posição e o Senado e o Círculo atrás de mim. O pior de tudo era que, se agora voltássemos atrás, Mac teria morrido em vão. Mas o ogro, que tinha parado para pousar a lanterna no chão, estava agora a fechar a porta. Françoise fitou-me por cima do ombro dele com ar de pânico. — Está bem, prometo! — disse eu. Até mesmo uma semana devia parecer uma eternidade aqui e eu nunca deixaria ficar ninguém a enfrentar o que quase me tinha acontecido. Eu estava parada no meio do quarto, ouvindo os passos do ogro a ecoar pelo corredor abaixo à medida que ele se afastava. Queria ver como estava Tomas, mas tinha medo. E se


ele não estivesse melhor? E se, afinal de contas, ele nunca tivesse estado num transe de cura e nós tivéssemos andado a arrastar um cadáver? Passado um minuto, arranjei coragem e encaminhei-me para a cama desdobrável. Tomas estava deitado de barriga para cima, iluminado pela luz da lanterna, mas eu não conseguia ver seu peito nem o abdômen por causa de todas as ataduras que tinham sido enroladas à sua volta. Alguém tinha feito um trabalho melhor do que os meus esforços apressados – dos mamilos para baixo, até à parte de cima das coxas musculosas, ele parecia uma múmia. As ataduras eram a única coisa que o cobria, mas eu mal reparei nisso, porque captei um vislumbre de uns olhos escuros por detrás da ranhura das pálpebras. — Tomas! — dobrei-me sobre ele e senti o arrepio da sua pele. Isso não era bom. Não sei como começou o boato de que os vampiros são frios. A menos que estejam esfomeados, são tão quentes como um humano – afinal de contas, o que os alimenta é sangue humano. Tirei o cobertor de cima de mim e aconcheguei-o a ele, tentando tapar o máximo de pele despida que consegui. Ele sorriu e apertou-me a mão de modo débil, puxando-me para baixo, para o seu lado. Quase não havia espaço para nós os dois na cama estreita, mas ele insistiu. — Finalmente tenho-te nua e na cama e estou demasiado cansado para fazer o que quer que seja em relação a isso — brincou ele. Eu podia ter chorado de alívio. Afaguei seu rosto com o pulso, mas ele afastou-se. Sabia o que eu estava a oferecer-lhe e precisava desesperadamente disso. Encostei novamente o pulso à face dele e olhei-o com ar sério. — Alimenta-te. Não vais curar-te se não o fizer. — Precisa da tua força. — Então não tires muito, mas cura-te. Não sei quanto tempo temos — a porta da cela era pesada, mas se ele tivesse a sua força habitual, podia arrancá-la pelas dobradiças. Naquelas circunstâncias, eu me contentaria com o fato de ele conseguir correr, ou pelo menos andar assim que Françoise regressasse. Ao contrário do ogro, eu não conseguia leválo nas costas. Tomas estava com um ar teimoso, mas deve ter chegado à mesma conclusão do que eu, já que no minuto seguinte senti um breve puxão no meu poder. Quando o seu organismo sobrecarregado começou a recuperar, ele manteve uma drenagem estável e eu suspirei ligeiramente de prazer. O processo de alimentação pode ser sensual, mas este não era. Era quente e reconfortante, como quando nos enrolamos num cobertor velhinho e aconchegante numa noite fria. Mas também me dava uma sensação de familiaridade, fazendo-me relembrar, de repente, outra razão que eu tinha para estar zangada com Tomas.


Ele andara a alimentar-se de mim quando morávamos juntos, tirando-me sangue pela pele sem deixar marcas visíveis e de modo sugestivo o suficiente para me confundir a mente. Tinha dito que era porque precisava saber por onde eu andava – fazia parte das suas funções garantir a minha segurança e o fato de se alimentar de mim criava uma ligação –, mas eu continuava a encarar isso como uma violação. Tecnicamente, podia tê-lo acusado perante o Senado, embora isso parecesse um pouco redundante de momento. Eles o matariam de bom grado se lhes pusessem as mãos em cima, não precisavam de alegações adicionais. Observou-me, com a lanterna a iluminar as pestanas escuras e um langor caloroso disseminou-se pelas minhas veias. Cada vez me era mais difícil estar zangada. Depois de tudo o que tinha acontecido hoje, uma coisinha insignificante como uma pequena drenagem de poder parecia incrivelmente pouco importante – e a sensação de paz e familiaridade era bemvinda, independentemente do que a provocava. E a verdade é que não tínhamos alternativa; se o sangue dos Elementais tivesse algo que ver com os seus outros fluidos, eu tinha quase a certeza de que não serviria de alimento aos vampiros. Se assim fosse, Tomas já se teria alimentado, sem que ninguém soubesse. — Estás bem? — perguntei quando me soltou, cedo demais para se ter alimentado por completo. — Não sabia se estavas num transe de cura ou... — Estou longe de estar bem, mas graças a você vou me recuperar — já parecia mais forte, coisa que não me deveria ter surpreendido. Existiam apenas poucas centenas de mestres de primeiro nível no mundo e aquilo que conseguiam fazer parecia muitas vezes um milagre. — Há qualquer coisa neste lugar — disse ele, de modo pensativo. — É como se cada momento que passa fosse uma hora do nosso tempo. Nunca tinha sarado tão depressa. A resposta a um enigma que há dois dias me intrigava surgiu de repente. Não podia crer que não tinha pensado nisso antes. Se Myra não tivesse se escondido no Mundo das Fadas – terra da linha temporal radicalmente imprevisível – em vez de ter tido uma semana para se curar, poderia ter tido meses, até anos. Não admira que estivesse com bom aspecto! Tomas deu-me um beijo na cabeça, o único lugar a que conseguia chegar, e olhou para mim com ar sério. — Não devia ter voltado atrás por minha causa, foi um risco terrível. Tens de prometer que não tornará a fazer. — Não vai ser preciso — disse eu, tirando-lhe o cabelo dos olhos. Estava sempre tão bonito, comprido, negro e macio como o de uma criança. Retirei algumas folhas com uma mão um pouco trêmula. Estava tão contente por vê-lo vivo que até me sentia tonta. — Haveremos de arranjar uma maneira de te esconder do Senado. Ainda eu não tinha acabado de falar e já Tomas abanava a cabeça.


— Lindo, Cassie — murmurou. — Já há muito tempo que ninguém estava disposto a correr riscos por minha causa. Muito pouca gente o fez. Hei de lembrar-me do que tentaste fazer. — Já te disse que haveremos de arranjar um lugar para te esconder. O Senado não há de encontrar-te! Riu de modo ligeiro e depois parou de repente, como se sentisse dor. — Não percebes? Desta vez eles não me encontraram. Fui eu que voltei para eles, para ele. Pensei que conseguisse combater isso, mas estava enganado — não precisei perguntar a quem se referia. Louis César, emprestado à Cônsul pelo Senado Europeu, era o mestre de Tomas. Há um século, tinha derrotado o mestre original de Tomas, o odiado Alejandro, num duelo e reivindicara-o. Tomas era um mestre de primeiro nível, mas até eles variam em força e Louis César simplesmente subjugara-o. Ele nunca tinha conseguido quebrar a ligação entre eles. Tomas estremeceu de leve. Não consegui vê-lo, mas senti o ligeiro tremor contra mim. — Estava sempre a ouvi-lo, uma voz incessante nas profundezas da minha cabeça, que me deixava quase louco! Nunca consegui descontrair, nem por um instante. Sabia que, assim que isso acontecesse, o meu arbítrio iria ceder e eu iria voltar a rastejar como um cão que foi espancado. Disse a mim mesmo que a guerra não tardaria a distraí-lo e que ele haveria de me libertar. Mas esta noite acordei nas celas de detenção do Senado e fui informado por um guarda de que tinha entrado no complexo e me tinha rendido. Mas não me lembro de nada disso, Cassie! Nada! — tremeu de modo mais violento. — Atraiu-me até si como se fosse uma marionete. E voltará a fazê-lo. Eu estava confusa. — Quer dizer que ele está a chamar-te agora? Tomas sorriu de modo ditoso. — Não. Há qualquer coisa no Mundo das Fadas — não o ouço desde que chegamos. O fato de não ter de esquivar-me dele ajudou-me a sarar, agora que posso concentrar toda a minha força nisso. Com o apelo dele a drenar-me, eu não conseguiria reparar por completo ferimentos menos graves do que estes numa semana, mas neste breve período as minhas feridas fecharam. — Não o ouve aqui? — Pela primeira vez num século, estou livre dele — disse ele, com uma voz de espanto, como se quase não conseguisse acreditar. — Não tenho mestre — olhou para mim com uma alegria brutal no rosto. — Durante quatro séculos e meio, fui o escravo de alguém! A voz do meu mestre controlava-me por completo, até eu achar que nunca haveria de me libertar! — fitou a pequena cela úmida com admiração. — Mas aqui parece que nenhuma das nossas regras se aplica.


Senti os olhos começarem a arder. — Sim, já reparei — se a nossa magia funcionasse aqui, o Mac teria varrido o chão com os Elementais. — O que foi? Abanei a cabeça. Não queria pensar nisso, muito menos falar. Mas, de repente, tudo começou a brotar de mim na mesma. Demorei menos de meia hora a pô-lo a par do que acontecera desde o nosso último encontro. De alguma maneira, parecia-me errado o fato de tanto sofrimento poder ser resumido em tão poucas palavras. Não que Tomas parecesse compreender. — O MacAdam era um guerreiro. Conhecia os riscos. Todos vocês conheciam. Olhei para ele com frieza. — Sim, e por isso é que não era para ele ter vindo conosco. O plano nunca foi esse. Tomas encolheu os ombros. — Os planos mudam durante a batalha. Todos os guerreiros sabem disso. — Não o conheceste, senão não pareceria tão... Indiferente! — disse, bruscamente. Os olhos dele faiscaram. — Não sou indiferente, Cassie. O mago ajudou a trazer-me para cá, a fugir do Senado. Estou de tal modo em dívida para com ele e nunca conseguirei pagar-lhe. Mas pelo menos posso honrar o sacrifício que fez sem o menosprezar. — Eu não estou a menosprezá-lo! — Não está? — Tomas fixou os meus olhos sem os desviar. — Ele era um velho guerreiro. Tinha experiência e coragem e conhecia-se bem. E morreu por algo em que acreditava, por ti. Não o honra em nada ao pôr agora em causa o seu juízo de valor. — O seu juízo de valor matou-o! Ele devia ter se deixado ficar no chão — e eu devia ter ido sozinha à procura de Myra. Tinha dito que mais ninguém ia morrer por minha causa, mas aqui estava eu, acrescentando mais um número à minha contagem de corpos. — Ele não devia ter acreditado em mim. Ninguém devia. — E por que não? — Tomas parecia genuinamente confuso. Deixei sair uma gargalhada semi-amarga, semi-histérica. — Porque o fato de se aproximarem de mim é meio caminho andado para se meterem em problemas. Devia saber — Tomas provocara muitos dos seus próprios problemas, mas


eu não podia deixar de me perguntar se ele teria tomado essas mesmas más decisões se nunca me tivesse conhecido. Tomas abanou a cabeça. — Sobrecarregas-te demais, Cassie. Nem tudo é culpa tua, nem todas as crises são para você resolver. — Eu sei disso! — mas, por muito que eu gostasse de pensar o contrário, a culpa do que tinha acontecido a Mac era minha. Ele estava ali por minha causa, estava vulnerável por minha causa e, em última análise, tinha morrido por minha causa. — Sabe? — senti o braço de Tomas a deslizar à minha volta. — Então mudaste — uns lábios quentes tocaram-me ao de leve no cabelo. — Talvez eu veja as coisas com mais clareza porque fui guerreiro durante mais tempo. — Eu nem sequer sou guerreira. — Eu pensei o mesmo em tempos. Mas, quando os espanhóis chegaram à nossa aldeia, combati ao lado dos outros para salvar o trigo que haveria de nos alimentar durante o inverno. Perdi muitos amigos nessa época, Cassie. O homem que tinha sido como um pai para mim foi levado e, por não revelar onde tínhamos escondido a safra, deram-no de comer aos cães, aos pedaços. Depois levaram as mulheres e reduziram a aldeia a cinzas — fiquei muda a olhar para ele. Sorriu com tristeza. — Fique de luto por ele honrando aquilo por que lutou, mantendo o nosso pequeno grupo junto e livre. Parou e eu percebi o porquê. Era uma das poucas coisas que me tinha contado acerca da sua vida. Alejandro acabara por terminar aquilo que os conquistadores tinham começado, aniquilando a aldeia de Tomas numa espécie de jogo. Eu nunca tinha ouvido a história completa, apenas alguns pequenos fragmentos, mas não queria obrigá-lo a revivê-la. Decidi mudar de assunto. — Louis César disse que a tua mãe pertencia à nobreza. Como é que foste parar numa aldeia? — Depois da conquista, não havia nobres nem plebeus. Ou se era europeu, ou não se era nada. A minha mãe era sacerdotisa de Inti, o deus-sol, e tinha feito um voto de castidade para toda a vida, mas um conquistador levou-a como troféu depois da queda de Cuzco. Ela esperava ser tratada com honra, de acordo com as regras da guerra, mas ele não sabia nada dos nossos costumes e, mesmo que soubesse, não se teria importado. Não passava do filho de um agricultor da Estremadura que partira para fazer fortuna e que não se importava muito com a maneira como o faria. Ela odiava-o. — Como ela fugiu?


— Ninguém pensou que ela conseguiria subir num um muro com três metros de altura estando grávida de sete meses, e não a vigiaram de perto. Ela fugiu, mas não tinha dinheiro e a violação dos seus votos transformou-a numa proscrita em relação ao anterior chamamento. Não que isso tivesse importância. O templo tinha sido saqueado e a terra devastada pela doença e a guerra. Fugiu da capital, onde os espanhóis combatiam entre eles, mas não encontrou melhores condições no campo — Tomas sorriu com amargura. — Esqueceramse de que o ouro não se pode comer. A maioria dos agricultores que não tinha morrido, tinha fugido. A fome estava por toda a parte. Os cereais tornaram-se mais valiosos do que as riquezas que os conquistadores desejavam tanto. — Mas a tua mãe encontrou uma aldeia que a acolheu? — Escondeu-se numa cripta onde se deixava comida e oferendas aos antepassados mumificados e um dos servos do palácio encontrou-a. Há muito tempo que a amava, mas as sacerdotisas eram consideradas esposas de Inti. Dormir com uma delas era um crime terrível. O castigo era despirem a pessoa e acorrentá-la a uma parede, para ser deixada a morrer à fome. — Então ele a venerava de longe? Tomas sorriu. — De muito longe. Mas começou a procurar por ela assim que soube que ela tinha fugido. Convenceu-a de ir embora com ele para a aldeia da sua família. Ficava a quase oitenta quilômetros da capital e era tão pequena que eles tinham esperança de que os espanhóis não dessem por ela. Viveram juntos ali até eu fazer oito anos, época em que ela morreu de varíola, juntamente com metade da aldeia. — Lamento — parecia que, afinal de contas, não havia temas seguros. Toquei no amuleto da águia que tinha apanhado de maneira inconsciente. Não podia voluntariar-me a voltar atrás e ir salvar a mãe de Tomas do perigo antes de a doença a levar. Nem a minha própria mãe eu podia ajudar sem mudar o tempo de forma drástica. Para todo o poder que supostamente tinha, eu não parecia ser capaz de fazer grande coisa, afinal. Tomas curvou-se para me beijar ternamente. Tinha os lábios macios e quentes, e, antes que eu desse por isso, já estava a corresponder ao beijo. Há tanto tempo que eu queria fazer aquilo que me pareceu tão natural como respirar. O simples fato de o tocar afastou as recordações do ataque, lavando uma parte de mim a que a água do banho não tinha conseguido chegar. Tomas aprofundou o beijo até eu conseguir senti-lo nos dedos dos pés, como se gavinhas de luz do sol se enroscassem em mim. Ele parecia vinho, escuro, doce e ardente, e eu senti que poderia nunca ficar satisfeita. Mas, passado um momento, afastei-me. Não era fácil – o géis tinha reconhecido Tomas e o poder da Pítia concordou que ele serviria bem para completar o ritual. A necessidade dos dois sobrepôs-se à minha aversão a sequer pensar em intimidade naquele


momento. Queria encher a mente de pensamentos e sensações que não envolvessem horror e dor. Queria que ele me tocasse com aquelas mãos compridas e elegantes, queria ter a sua boca quente e exigente na minha. Só o olhar que tinha nos olhos já era uma carícia e um convite. Mas as consequências de alguns momentos de paixão seriam severas. Tomas soltoume, com uma expressão que eu não conseguia nomear a cruzar-lhe o rosto. — Desculpa, Cassie. Sei que não é a mim que queres. Que poderia saber Tomas acerca do que eu queria? Na maior parte do tempo, nem eu me conhecia a mim própria. — A questão não é o que eu quero — disse eu, tentando ignorar a maneira como a mão dele brincava pelo meu flanco desde o seio até ao quadril, num toque contínuo ocioso e sensual. Isso acelerou-me o coração e dificultou-me a respiração, como se alguém tivesse sugado todo o oxigênio do quarto. Ah, sim, o géis gostava bastante dele. — Como assim? — a mão de Tomas aquietou-se no meu quadril. Não foi uma grande ajuda para a minha pressão arterial. Apesar de eu ter recuado, estávamos a menos de meio metro de distância. Esforcei-me para não olhar para baixo, mas falhei redondamente. O cobertor tinha escorregado da metade dianteira do corpo de Tomas. Umas pernas compridas mexiam-se nas sombras e no meio delas havia uma ampla evidência do quão recuperado ele estava. — Não posso — disse eu, tentando lembrar-me exatamente do motivo. Os meus dedos percorreram uma linha desde a testa dele, passando pelas pálpebras ternas que tremelicavam fechadas sob o meu toque até ao nariz orgulhoso e aos lábios quentes e carnudos. Era um perfil perfeito, bronze polido à luz do candeeiro como a cara de uma moeda antiga, mas não tinha sido a aparência dele que me atraíra. Eu tinha adorado a sua meiguice, a sua força e – pensara eu naquela altura – a sua honestidade. Agora limitava-me a desejar um corpo quente e uma pele macia perto da minha, bem como um rosto que me era familiar e carinhoso. — Salvaste-me a vida, Cassie, embora em tempos eu tenha posto a tua em perigo. Deixa-me fazer alguma coisa por ti — a voz de Tomas estava no seu melhor, profunda como uísque e fumaça, como se uma bebida dourada se tivesse transformado em som como por magia. Sempre tinha sido uma das suas características mais atraentes, em parte porque, ao contrário das vestimentas cuidadosamente engendradas e das tentativas descaradas de sedução, era consciente. Era mais o Tomas autêntico, e tão atraente que eu me perguntava por que é que ele se preocupava com o resto. Mas é claro que sabia o porquê – porque Louis César lhe tinha dado essa ordem, depois de Mircea decidir que ele servia para cumprir o ritual. Calculo que se tenham preocupado com a possibilidade de eu reconhecer um dos lacaios de Mircea depois de tantos anos na casa de Tony, onde entravam e saíam com


regularidade. Mas não tinha sido justo para Tomas e, pela primeira vez, pus-me a pensar se ele se ressentiria por ter sido usado. — Não vejo o que possas fazer — disse eu —, a menos que consigas convencer o rei a libertar-nos, ou que faças meu poder funcionar aqui. Tomas sorriu. — Ou que levante o géis?


í O meu cérebro parou de repente. — Diz isso outra vez. — Foi-me dito que te colocaram um géis para proteger a sua virtude, tal como a sentinela te protegia a vida. Mas para precaver que alguma coisa corresse mal, foi acrescentada uma cláusula de escapatória. Se dormisses com o Mircea, ou com alguém escolhido por ele, o feitiço seria quebrado. A minha cabeça girou. Era só isso? Era esse o grande segredo? Parecia ridiculamente simples, para não dizer que minava a questão essencial. — Mas por que faria isso? Ele quer me controlar! Tomas sorriu com amargura. — Sem dúvida. Mas com um mecanismo tão desajeitado como um feitiço? — abanou a cabeça. — Iria ferir seu orgulho, Cassie. Para não dizer que controlar alguém tão poderoso como a Pítia com algo tão tosco seria extremamente perigoso. Por que é que pensas que os magos recebem iniciadas tão novas e lhes fazem uma lavagem ao cérebro durante a infância? Tenho a certeza de que haveriam de preferir usar um feitiço para mantê-las na linha, se tal coisa fosse possível. Mas o poder da Pítia poderia sobrepor-se e o controlador tornar-se o controlado. Não consigo imaginar o Mircea correndo esse risco! — Mas, então, por que colocar o géis em mim, se nunca pretendia usá-lo?


— Para proteger a sua chance de se tornar a Pítia. Um breve caso amoroso poderia arruinar tudo, para você e para ele. O géis parecia a maneira mais simples de assegurar que isso não aconteceria. E para te dar uma proteção suplementar na corte do Antônio. Não sabia disto? — Até ontem, nem sequer do géis eu sabia! — sentei-me de modo abrupto, com a mente acelerada devido às implicações. Podia quebrar o géis dormindo com Tomas. Era tão simples que se tornava absurdo – se é que ele estava dizendo a verdade. Mas Tomas não tinha necessidade de recorrer a mentiras para meter uma mulher na sua cama e a explicação dele fazia sentido. Desde sempre eu achara estranho que Mircea pensasse que precisava de ajuda mágica para manipular uma pessoa tão jovem e ingênua como eu, sobretudo quando eu já tinha uma paixonite por ele. Havia maneiras bem mais sutis de exercer controle e ele era mestre em todas elas. Claro está que, mesmo que Tomas tivesse razão, não havia maneira de saber se a escapatória de Mircea iria funcionar num feitiço duplo. E, mesmo que funcionasse, havia um senão. Dos grandes. Se eu quebrasse o géis, cumpriria os requisitos do ritual e ficaria presa à posição de Pítia de modo permanente. Isso poria fim a qualquer esperança de passar o poder a outra pessoa, ou de encontrar uma solução com o Círculo. As herdeiras podiam ser depostas, como Myra tinha descoberto, mas a Pítia mantinha o cargo durante toda a vida. Se eu completasse o ritual, os magos não teriam outra saída a não ser matar-me, se quisessem a sua candidata no trono. E o mesmo se podia dizer de Pritkin, se de fato favorecesse Myra. Infelizmente, as coisas não melhoravam se eu mantivesse o géis. Era quase certo que o Senado haveria de encontrar-me mais cedo ou mais tarde. Eles tinham demasiados recursos, incluindo a rede de serviços secretos de Marlowe, para que eu tivesse quaisquer ilusões em relação a isso. E mesmo que Tomas estivesse certo e Mircea não pudesse usar o feitiço para me controlar – um grande “se”, na minha opinião –, ele também não podia quebrá-lo. O dúthracht fizera jus à sua reputação e descontrolara-se, e não havia maneira de dizer o que iria acontecer se a ligação se completasse. Era para ficar sob o controle de um dos participantes, mas o que aconteceria se, como parecia ser o caso, nenhum de nós estivesse no lugar do condutor? Eu não sabia o que poderia fazer um géis controlado por si próprio, e não queria descobrir. Uma coisa era certa: se tornássemos a encontrar-nos, eu e Mircea iríamos decerto completar a ligação. Era constrangedor ter de admiti-lo, mas a única razão para ainda não o termos feito – e diante de cerca de um milhão de espectadores – tinha sido o autocontrole dele, não o meu. E isso iria completar o ritual, o que me levaria de volta à estaca zero. — Droga! — as duas opções eram inaceitáveis, mas não havia uma terceira. Não havia maneira de me livrar do géis e evitar completar o ritual. Ou, se havia, eu não como descobrir encurralada numa cela no Mundo das Fadas. Para onde quer que olhasse, batia numa parede de tijolo. Detestava não ter alternativas, ter alguém ou alguma coisa a decidir a minha vida


por mim. Tinha sido assim desde que eu me lembrava. Ou Tony, ou o Senado, ou os malditos Elementais estavam a fazer de mim uma vítima, tirando-me o direito de escolher. Eu nunca tivera o poder de retorquir, de moldar a minha própria vida ou simplesmente de assegurar a minha segurança e a daqueles de quem gostava. Nem sequer conseguia lidar com uma iniciada farsante! E percebi que, se as coisas continuassem assim, nunca haveria de conseguir. — O que foi? — a mão de Tomas afagava-me com delicadeza o fundo costas, tentando acalmar-me, consolar-me. Era consolador, admito, mas não era calmante. Nem o ritual nem o géis se importavam com o fato de ele estar ferido, nem com a minha incerteza em relação à ideia de fazer sexo numa masmorra úmida e gelada, onde era provável que Billy estivesse a ouvir. A vontade de me virar e aceitar a oferta que Tomas andava a fazer-me desde que eu o conhecera era tão forte que eu tive de cerrar os punhos no cobertor áspero debaixo de mim para mantê-los sossegados. Obriguei a minha mente a pensar de novo no problema. Eu andava a dizer a mim mesma que podia passar o poder a outra pessoa, mas a quem exatamente? Não parecia haver outras candidatas à função de quem se pudesse dizer que não fossem cair no jugo do Círculo, ou de Pritkin, e eu não confiava em nenhum deles. Havia uma guerra a decorrer, e só a ideia de ver o poder passar para as mãos de alguém como Myra me deixava gelada. Tomas envolveu-me com os seus braços, atraindo-me para o tórrido casulo do seu corpo. A minha mão mexeu-se por vontade própria para lhe acariciar a pele quente e dourada da parte lateral do joelho, no lugar exato onde começava a inclinação daquela coxa longa e forte. Seria tão fácil ceder, saciar a fome que há tanto tempo sentia. E será que fazia assim tanta diferença? O Círculo já andava a tentar matar-me. Poderia acreditar neles se me oferecessem um acordo? Não seria melhor, do ponto de vista deles, eliminar qualquer concorrência em relação às suas iniciadas do que deixar alguém como eu a andar por aí? Se eu ia ser perseguida de qualquer modo, preferia de longe estar na posição mais forte possível. E isso era duplamente verdade quando se lidava com Myra. — Tem certeza de que pensou bem nisso? — perguntei a Tomas, com ar sério. — Pode haver repercussões por me ajudar a completar o ritual. Os magos... Tomas provou a parte de dentro do meu pulso com a ponta da língua. — Tenho certeza. — Mas e então... Sorriu de esguelha. — Cassie, você sabe o que me atormenta. Acreditas mesmo que eu estou preocupado com o Círculo? — ele tinha razão. E, por mais que eu não quisesse admitir, eu ainda tinha sentimentos por ele – ou, para ser mais precisa, pela pessoa que achava que ele era. Tinha sérias dúvidas de que alguém com idade suficiente para se lembrar da queda do Império Inca


apresentasse grandes semelhanças com o “doce” que eu tinha conhecido. Eu não conhecia o verdadeiro Tomas, quem ele era quando o Senado não lhe estava a puxar as rédeas. Mas eles não estavam ali agora. Por uma vez, estávamos os dois livres deles, ainda que fosse apenas por estarmos prisioneiros num lugar qualquer. E, apesar disso, ele ainda parecia querer-me. — A escolha é sua, Cassie. Sabes o que sinto. Olhei para ele com ar inquiridor. — Sei? Louis César ordenou-te que viesses ter comigo. Naqueles meses todos, estavas a cumprir uma função. As mãos de Tomas aquietaram-se. — E ainda estou a cumprir essa função, Cassie? Será tudo isto um elaborado complô para te convencer a aceitar uma posição que você não quer? — Não — os vampiros podiam não ter a mesma reação à dor que os humanos, mas ninguém iria permitir que o retalhassem daquela maneira, não assim sem mais nem menos. Puxou-me para ele, com os olhos em fogo. — Acha que estou tentando recuperar as boas graças da Cônsul completando a minha missão original? É isso? Não respondi logo. Tomas já me traíra antes e, embora eu me tivesse convencido de que ele tinha agido mal pelas razões certas, e se não tivesse sido assim? Eu tinha provas de que ele era um bom ator – a maioria dos vampiros antigos era. Se não nascessem assim, adquiriam a técnica em séculos de prática. Mas não fazia sentido que ele estivesse a brincar comigo. Mesmo que o Senado estivesse disposto a apagar o passado e a aceita-lo de volta, não era isso que Tomas queria. O seu objetivo principal era ver-se livre do controle do seu mestre para poder matar Alejandro. Por mais que me quisessem de volta, o Senado não iria guerrear devido a outro corpo de vampiro soberano – sobretudo quando já tinham uma guerra nas mãos. Não podiam dar a Tomas o que ele realmente queria, e eu não acreditava que ele me denunciasse por menos do que isso. — Não — admiti, por fim. — Não é isso que penso. — Mas não confia em mim. Não era uma pergunta, logo não lhe respondi. Que podia eu dizer? Ele tinha razão. Tomas riu com um ar triste. — Como posso censurar-te? Em tempos depositaste confiança em mim e eu menti. Qualquer coisa que eu diga agora não passará de palavras. — Mesmo assim gostaria de ouvi-las — disse eu, de modo hesitante.


Tomas tinha me dado uma explicação para a traição, mas não dissera nada em relação a nós. Eu precisava ouvir que, no que se referia ao tempo que passáramos juntos, nem tudo tinha sido uma mentira. Beijou-me de leve, mesmo por baixo do recorte da minha garganta. — Toda a minha vida, só conheci pessoas que queriam alguma coisa de mim. Quando eu era novo, foi proteção e uma chance de vingança. Depois de o Alejandro me transformar, foi a destreza em batalha e um conhecimento da terra que ele não possuía. Para Louis César, eu era um troféu de carne e osso, uma prova do seu poder — acariciou-me o cabelo devagar, com reverência. — Você foi a única a gostar de mim como pessoa, sem querer nada em troca. Te amo, Cassie. Te quiero para siempre. Eu não falo espanhol, mas percebi a ideia. Em tempos, teria dado muito para ouvir aquelas palavras, fosse na língua que fosse, mas agora os meus sentimentos estavam demasiado confusos para sequer começar a pensar nisso. Não sabia o que sentia, quanto mais o que havia de dizer. — Tomas, eu... — Não diga nada. Quero recordar isto tal como é. Em breve terei de regressar e não quero levar mentiras comigo, por mais doces que me soem. O Senado funciona com mentiras. Isso — encostou a face ao meu peito —, isso é autêntico. — Não tem de regressar, Tomas! Já te disse que haveremos de arranjar maneira de te esconder. Ele riu, e desta vez pareceu mais genuíno. — A pequena Cassie, sempre tomando conta de todos. Eu é que devia estar a salvar-te, não sabia? Não é assim que dizem os contos de fadas? — a expressão dele ensombrou-se de repente. — Mas por que é que haveria de pensar assim? Até agora tive pouco préstimo! — Salvou-me dos facínoras do Tony, ou isso não conta? — Tony tinha mandado uma equipe à discoteca onde eu trabalhava para acabar comigo. Não foram bem-sucedidos, em parte porque o Senado tinha nomeado Tomas para me guardar. Apesar de tudo, eu não me esquecera de que ele me tinha salvado a vida. Mas, aparentemente, ele tinha se esquecido, porque o menosprezou com um gesto. — Você teria se safado. Safa-se sempre — a expressão dele tornou-se mais feroz. — Cassie, se duvidas dos meus sentimentos, deixa-me mostrar-te! Deixa-me fazer isso por você! Deixei a minha mão passar pela massa sedosa do cabelo dele. A posição da Pítia podia ser uma prisão, mas pelo menos seria uma prisão sobre a qual eu teria algo a dizer. Eu ficaria presa ao cargo, mas iria manter o controle sobre o resto da minha vida – algo que o géis haveria de me negar.


— Vai se machucar — protestei, quando a respiração de Tomas começou a acelerar. Um mestre de primeiro nível conseguia curar quase tudo, mas era impossível que Tomas já tivesse ultrapassado os seus ferimentos. Um ribombar de gargalhada ecoou-me no ouvido. — Magoou-me muito mais ver-te todos os dias, andar rodeado pelo teu cheiro durante meses e não me ser permitido tocar-te. Vivi contigo durante meio ano, mas nunca vi o teu corpo. Hei de lembrar disso — disse ele, de modo pensativo, com a mão a deslizar pelo meu flanco. — Não me arrisco a te machucar — insisti, tentando parecer mais forte do que me sentia. Tomas tornou a rir e deitou-me de costas na cama desdobrável. Curvou-se sobre mim, com o cabelo a formar uma tenda em redor dos nossos rostos de um modo íntimo em vez de sufocante. Apenas os seus olhos eram claramente visíveis, transbordando de humor. — Acho que podemos fazer isso — sussurrou — se prometer ser meiga. Não pude evitar rir e, quando dei por isso, ele já estava me beijando com uma intensidade que me deixou sem fôlego. Fiz deslizar os meus braços sob a pesada juba de cabelo e enganchei-os à volta do pescoço de Tomas. Ele apertava-me com força, mas com cuidado e, embora eu conseguisse sentir o seu peso na minha perna, quente, rijo e pronto, ele aguentou-se, à espera de que eu desse o primeiro passo. De repente, deixou de haver dúvidas. Não era só o géis a puxar-me. Não era apenas o fato de eu querer encontrar uma saída para a atual confusão. Eu queria a ele. — Avança — disse eu. — Rápido, enquanto temos tempo. — A rapidez não era o que eu tinha em mente — disse Tomas, franzindo o cenho. — Sobretudo na primeira vez. — Não temos tempo para mais nada — disse eu, com impaciência. Por uma vez, eu, o géis e o poder concordávamos em alguma coisa, e Tomas estava a fazer-se difícil. Envolvi-o com a minha mão e fui recompensada com um tremor profundo e uma sensação maravilhosa de carne doce e ardente na palma da minha mão. Queria desesperadamente ver aquela haste espessa a desaparecer dentro de mim. Sabia que iria levarme ao limite, que o encaixe seria apertado, a fricção enlouquecedora e isso me parecia perfeito. Queria senti-lo a abrir caminho dentro de mim, queria a pressão, ansiava pelo ardor. — Vai te machucar — protestou ele, com a voz rouca. Subi a coluna do pescoço dele com a língua. — Deixa.


Tomas tremia, mas estava obstinado em não ceder. Decidi esquecer a conversa e convencê-lo de outra maneira. Beijei-o, com uma boca faminta sobre a dele, e depois deslizei para cerrar os dentes com firmeza na junção do seu pescoço com o ombro. Era o lugar exato onde um vampiro morderia, mas, em vez disso, chupei parte daquela pele tensa com a minha boca, fazendo-lhe uma marca. Deixei que as minhas mãos deambulassem por onde queriam, memorizando os contornos do músculo e do tendão debaixo daquela pele quente de cetim. Foi então que, sem avisar, o mordi. A respiração de Tomas estivera a emitir roncos graves na sua garganta, mas, ao sentir os meus dentes a enterrar-se na carne, ele grunhiu. A julgar pela maneira como a rigidez que se contraía no meu quadril se expandiu num arco súbito, não foi em sinal de protesto. Os seus olhos semicerrados reluziram quando finalmente lhe soltei o pescoço. — Não joga limpo — queixou-se, com uma voz sombria e pesada. Respirou fundo, expirou e enfiou um dedo dentro de mim. Ofeguei devido à invasão inesperada e arqueeime, apertando-me com convulsões à volta dele. — Nada limpo mesmo — disse ele, com a voz rouca. Emaranhei as mãos no cabelo dele enquanto uma língua talentosa substituía o dedo. Ele atraiu a minha carne para a sua boca, com a sucção a puxar-me também os quadris, fazendo-me entrar num ritmo em relação ao qual não podia sequer pensar em resistir. Abriume mais as pernas para ter um melhor acesso, até que uma delas ficou a pender com pouca elegância do lado de fora da cama. Não me importei – a imagem dele a devorar o meu corpo fez com que a minha respiração acelerasse quase tanto como a sensação. O meu mundo ficou resumido àquela boca sedutora; àquele deslizar lento e molhado; àquelas mãos grandes e fortes. Umas palmas da mão quentes e ásperas alisaram várias vezes meu abdômen como se não conseguissem parar, para por fim deslizarem até ao meu quadril, massajando lentamente o músculo trêmulo que aí encontraram. Céus, uma garota podia perder-se de amores por aquelas mãos. A boca dele parecia uma chama líquida à medida que ele me explorava, encontrando lugares que provocavam ondas de choque de êxtase pelo meu corpo. Eu ofegava lentamente, maravilhada com o exame meigo e íntimo, o toque profundo e delicado. Voltei a cair sobre o colchão e deixei que aqueles toques molhados me levassem. Ímpetos de prazer encresparam-se pela minha coluna acima enquanto ele me acariciava por dentro e, de repente, o ângulo e a pressão tornaram-se perfeitos. Parecia que a sua boca estava por toda a parte, provando, chupando, tocando, preenchendo. Ele aprimorou o seu desempenho rapidamente, aproveitando as deixas do meu corpo, reparando no que me fazia gritar e repetindo-o até que clarões de prazer começassem a explodir por detrás dos meus olhos. Cada movimento dos seus lábios cauterizava-me os nervos até ameaçar arrebentar-me a cabeça.


— Tomas! Por favor! — antes que eu acabasse de falar, ele já tinha trocado de posição e estava suspenso sobre mim. Parou, esforçando-se por recuperar o controle e eu rosnei. Por fim avançou, afundando-se lentamente dentro de mim. E, meu Deus, foi bom – não, melhor do que bom, se as faíscas por detrás das minhas pálpebras demonstrassem alguma coisa. Só com as mãos e a língua ele me revelara uma dança de sensações, mas senti-lo a mexer-se dentro do meu corpo era ainda melhor, alongando, enchendo de um modo maravilhoso, refazendo-me a carne até que eu lhe servisse como uma luva. Era amplo o suficiente para ficar bem apertado, mas a sua carne firme era macia e flexível, moldando-se à minha com apenas uma ligeira dor quando passava pela pele irritada pela fricção do ataque. Mas ele mordeu o lábio, mantendo todo aquele poder com rédea curta, a respiração a surgir em arquejos ofegantes devido ao extremo cuidado que estava a ter. Foi deslizando para frente uma escassa meia polegada de cada vez, aquecendo-me aos poucos, enquanto que eu queria todo o seu comprimento cauterizante. Mas por fim chegou lá, completamente aninhado dentro de mim, irradiando calor até ao meu âmago. Tinha os olhos fechados, as pestanas compridas a varrer-lhe as faces coradas enquanto se mantinha imóvel por um longo momento. Deixou-me sem fôlego. A entrada não me tinha doído, mas estar à espera que ele se mexesse, que mudasse de posição, que fizesse alguma coisa antes que eu perdesse completamente a cabeça, doía. Quando começou a retirar-se de novo, com aquela mesma lentidão agonizante, perdi a paciência. Enrolei-me à volta dele quando se afastou e depois dei impulso para cima para me chegar a ele, enterrando-o de novo completamente dentro de mim num movimento único e indutor de gemidos. Tomas fez um ar ao mesmo tempo surpreendido e bastante aliviado, com a respiração a sair num silvo de prazer. Percebeu a ideia e começou a ganhar velocidade. Os meus quadris mexeram-se e começaram a rodar por vontade própria, enquanto Tomas se instalava num movimento circular, acariciando, dando prazer e alongando-se em simultâneo. Não tardei a perceber que não conseguia controlar os sons que emitia. Estava em brasa, vencida pela sensação, num choro compulsivo. Estava zonza, com a respiração a acelerar, os quadris a dar pinotes e a visão a ensombrar-se. Uma sensação brutal aumentava dentro de mim, e, antes mesmo de eu perceber o que estava a passar-se, o orgasmo assolou-me, com o corpo em espasmos involuntários sob o ritmo regular de Tomas. Um belo brilho amarelo espalhou-se de repente pelo quarto, uma cor tão pura, tão opulenta, que parecia que a felicidade tinha sido condensada e ganhado forma. Por um momento, pensei que tudo fazia parte das sensações que me percorriam, mas ela continuava a aumentar, esvaindo-se do candeeiro como se uma estrelinha tivesse explodido e ganhado vida à nossa volta. Filamentos altamente interligados de energia branca e dourada silvavam e enroscavam-se por toda a parte, aumentando de intensidade até que, como um relâmpago a cair no solo, me cegaram. Sem aviso prévio, o mundo esvaiu-se. Mergulhei numa confusão de imagens e sons e cores, tudo num rodopio demasiado rápido para ser seguido. Não conseguia apreender a


presença de Tomas, não conseguia vê-lo nem sequer senti-lo. Um vértice vinha ao meu encontro a uma velocidade espantosa, e eu estava impotente para fazer outra coisa que não fosse deixá-lo vir. Então, tão depressa como tinha começado, terminou. Quando o rescaldo das imagens esmoreceu o suficiente para eu conseguir voltar a ver, dei por mim numa colina, de olhos erguidos para um templo. Atrás deste, um oceano cintilava sob um sol quente e amarelo. Senti o roçar de lábios no pescoço e ouvi uma gargalhada forte e masculina ao meu ouvido. — Aprovo o meu avatar — disse uma voz. Percebi que vinha do homem atrás de mim, mas parecia ressoar de todas as direções ao mesmo tempo, como se o templo, o céu e o oceano também estivessem a falar. — O filho de mais uma das minhas sacerdotisas foi mesmo um toque de gênio. Abri e fechei os olhos, zonza e incrédula, mas a cena mantinha-se. — O teu o quê? — disse eu, por fim, com a voz rouca. — O homem escolhido para a cerimônia torna-se o meu avatar por uns tempos. A união dele com a herdeira consuma o nosso casamento e confirma-a no cargo. Engasguei-me. — Eu não sou sua mulher! A tal gargalhada tornou a borbulhar, forte e contagiosa. — Não tenha medo, Herophile. É uma união espiritual, não conseguirias tolerar-me na minha forma física. — Não estou com medo — disse eu, e era verdade. Comparada com as visões que eu costumava ter, esta não estava a custar nada. Por enquanto. — E o meu nome é Cassandra. — Já não é. Tentei virar-me, mas uns braços fortes seguraram-me com força. Eram da cor do pólen da primavera, um amarelo-vivo e genuíno que cintilava como se tivesse sido polvilhado com ouro. A luz dançou sobre a pele dele da mesma maneira que dança na água, tão ofuscante que me magoou os olhos. Deveria parecer extremamente estranha num corpo humano, mas, de alguma maneira, não parecia. De repente, o ambiente circundante começou a fazer mais sentido. — Você é...? — É a sua mente que escolhe a forma como aparento. — Quem é você? — inquiri.


— Alguém que esperou longas eras por alguém como você. Finalmente, as coisas vão começar a acontecer. — Que coisas? — Há de ver. Tenho uma grande fé em você. — Então é maluco — disse-lhe eu, sem rodeios. — Não sei como usar este poder a que me aprisionaste e Myra vai matar-me a qualquer momento. — Espero sinceramente que não. Em relação à outra, o poder vai para onde quer. Depois de tê-lo deixado em mãos humanas, perdi o controle sobre ele. — Mas a Myra... — Sim, por agora tem de lidar com a tua rival. Voltaremos a falar quando o tiver feito. — Mas a questão é mesmo essa! Não sei como fazê-lo... — não cheguei a terminar a frase. Houve uma emanação de calor e uma rajada de vento, e tudo à minha volta fez aumentar um poder terrível e ancestral que traçou pelo solo e lançou correntes fervilhantes por todo o meu corpo. Depois me vi de volta à cela, piscando os olhos à luz subitamente tênue, incerta do que tinha acabado de acontecer. Tomas deixara-se ir, e as sensações que estava a provocar prenderam-me o ar na garganta e afastaram as interrogações da minha mente. Puxou-me para mais perto do peito e eu ofeguei quando o volume dentro de mim mudou de posição. O seu cabelo úmido de suor caiu à minha volta e os seus dentes aferrolharam-se à minha garganta. Senti todo o meu corpo a contrair-se com a dentada e ouvi o grunhido de prazer de Tomas à medida que os meus músculos internos se apertavam em torno dele. Umas mãos grandes seguraram-me os quadris, impulsionando-o o mais possível para dentro de mim. Soltou-me a garganta sem se alimentar, com a língua a percorrer uma vez a abrasão; foi então que os seus quadris começaram a mover-se mais depressa, com o rosto flácido de desejo, e eu perdi toda e qualquer capacidade de raciocínio durante longos minutos. Chegou ao fim dentro de mim num ímpeto delicioso que deu uma sensação de escaldão junto dos demorados pedaços de gelo no meu âmago. Devorou aquele frio, consumiu-o, queimou os derradeiros vestígios e preencheu-me com um langor acalorado que se disseminou pelo meu corpo. O meu próprio prazer era agora menos avassalador, mas mais profundo, mais persistente e doce. Senti-me flácida, com Tomas a cobrir-me como o melhor dos aquecedores. Passado um longo momento, Tomas chegou-se para trás para contemplar os meus olhos meio fechados. Perscrutou a minha expressão, mas fosse o que fosse que procurava, não pareceu encontrá-lo. Ainda assim, beijou-me, e eu arqueei em direção ao calor sensual da sua boca, sentindo-me algo vazia quando ele terminou o contato cedo demais.


— Desculpe — disse ele com meiguice, com o polegar a contornar-me o lábio superior. Alisei uma das suas sobrancelhas finas e escuras com um dedo. — O que houve? Pôs-me o rosto entre as mãos e beijou-me suavemente a testa. — Está tudo bem, Cassie. Vai ficar tudo bem. — O que é que vai ficar bem? — minha sensação de prazer estava a desaparecer com rapidez. Tomas hesitou e depois exalou num suspiro. — Continuo a sentir o géis ao teu redor, como uma nuvem. Cerrou o maxilar. — Parece que o Mircea não deseja libertar o que reclamou para si — abanei a cabeça. — Houve uma complicação com o feitiço. O Mircea também não conseguiu removê-lo — eu já sabia que existia esta possibilidade, mas não deixava de ser uma esmagadora desilusão. Tomas começou a dizer outra coisa qualquer, mas a porta abriu-se com balanço e apareceu Françoise, de mãos nos quadris, com um ar impaciente. Atirou-me um monte de roupa. — Já não era sem tempo! A ideia é ser um ritual, não uma maratona. Engatinhei para me pôr de pé, tremendo com o ar frio em contato com a minha pele ruborizada. — O quê? — Vá lá! Veste-se! O rei quer uma audiência, e ele não gosta de esperar. Fica irritado e depois nenhum de nós consegue sair daqui. — Françoise? — eu estava a ficar com um mau pressentimento em relação àquilo. O sotaque na sua voz tinha desaparecido de repente e a expressão do seu rosto não me fazia lembrar muito o nervosismo habitual da garota francesa. Ela sorriu de maneira tensa. — A Françoise não está em casa de momento. Quer deixar recado? Antes que eu conseguisse arranjar resposta para aquilo, ela fez uma careta e agarrou-se à parede, com os dedos arqueados e brancos do esforço, como se estivessem a tentar escavar a pedra. — Droga! Agora não, garota! Quer ficar aqui para sempre?


Tomas olhava para uma e para outra, mas eu só conseguia abanar a cabeça. Não fazia ideia do que se passava com ela. — Hã... Françoise — disse eu, por fim, quando começou a vibrar como se tivesse o dedo preso numa tomada. — Há alguma coisa que possamos... Fazer por você? De repente, parou, imóvel e olhou para mim, com a impaciência a assolar as feições. — Sim! Podem vestir-se! Quantas vezes tenho de dizer? Sem o calor corporal de Tomas, sentia-me fria, por isso decidi fazer sua vontade. O vestido era grande demais e estava teso devido à quantidade de bordados, mas a lã vermelha escura era quente. Decidi que o melhor que tinha a fazer era concentrar-me num problema de cada vez, e os desarranjos mentais de Françoise nem sequer se aproximavam do topo da lista. — Françoise, tem amigos aqui? Pessoas que possam ajudar-te? Ela semicerrou os olhos. — Por quê? — É o Tomas... Se ele sair do Mundo das Fadas, vai ser morto. Não pode regressar, mas também não pode ficar neste aqui, à espera de ser executado. Conhece alguém que possa escondê-lo? — Cassie — Tomas tocou-me no cotovelo. — O que está fazendo? — Preciso saber que está a salvo. E se o rei ordena a nossa deportação para a MAGIC? Se regressar, eles te matam! — a Cônsul tinha me oferecido a vida dele, mas apenas em troca de informações que eu não tinha. Eu não tinha intenção de colocar o géis em Mircea, mas a verdade é que não conseguia removê-lo. — E se você comparecer diante do rei sem mim, ele pode culpar-te pela minha fuga. Não irei colocar-te em mais perigos — disse Tomas, sem rodeios. Eu teria argumentado, mas a posição do seu maxilar disse-me que seria uma perda de tempo. Além do mais, Françoise estava com um ar estranho. — Está preocupada com um vampiro... Logo agora? — abanou a cabeça. — Cassie, ele foi um meio para atingir um fim, nada mais. Serviu o seu propósito; ele que tome conta de si próprio. Eles têm muito jeito para isso, como sabe. Estava mais do que visto. O que se passava não era apenas Françoise a ter um ataque. — Quer me dizer agora quem é você? É que eu nunca disse o meu nome à Françoise. Já para não dizer que ela só falava francês.


— Não temos tempo para isso! Sentei-me no beliche e olhei para ela de modo recalcitrante. — Não vou a lugar nenhum até saber quem você é e o que se está acontecendo — já chegava de tentar a adivinhar. A última semana ensinara-me da maneira mais difícil que eu não tinha jeito nenhum para isso. Lançou as mãos ao ar com um gesto estranhamente familiar. Eu já tinha visto alguém a usar aquele movimento da mesma maneira, mas não sabia onde. — Em tempos, disse que haveria de ser, ou a melhor de nós, ou a pior. Quer apostar para qual das hipóteses me inclino? Demorei uns segundos a absorver a coisa, e, mesmo quando consegui, não acreditei. — Agnes? Mas que... Que diabo está fazendo aqui? — Estou existindo — disse ela, com amargura. — Que raio de vida no Além. — Mas... Mas... Nem sequer sabia que conseguia possuir alguém. Os magos disseram... — Pois. Como se nós lhes disséssemos tudo! — levou de novo as mãos aos quadris num outro gesto sinistramente familiar. — Quanto menos o Círculo souber sobre as nossas capacidades, melhor! Acreditava mesmo que você conseguia fazê-lo e eu não? — Mas você não tem o Billy Joe — protestei. Era uma coisa que me incomodava, tanto em relação a ela, como a Myra. — Como é que consegue deslocar-se no tempo sem ter um espírito que fique tomando conta do seu corpo enquanto está fora? Agnes limitou-se a fitar-me; depois abanou a cabeça. — Ora, aí está uma abordagem original, admito — murmurou. — Nós regressamos aos nossos corpos quase no mesmo momento em que os deixamos, Cassie. Os nossos corpos não morrem, porque, tanto quanto sabem, nós nunca partimos. — Mas... O teu corpo... — olhei para ela, pensando na forma de enunciar as coisas. Não parecia haver muitas opções. — Agnes, lamento, mas... Está morta. Olhou para mim como se eu tivesse perdido o juízo. — Claro que estou! O que pensa que estou fazendo aqui? — Não faço ideia — respondi com sinceridade. — Bem, esta não foi certamente a minha primeira escolha! — parecia irritada. — Esta era para ser a minha vida extra, o tempo de eu desfrutar, para variar. Deixei a intenção de


regressar ao meu corpo, para reunir forças para migrar para uma bela garota alemã. Ela deveria morrer num acidente numa caminhada e eu estava pronta para possuí-la... — Possuí-la? — não sei que aspecto tinha a minha cara, mas Agnes soltou uma gargalhada. — Ela ia morrer, Cassie! Vendo bem as coisas, acho que teria preferido partilhar uma vida comigo! Senti-me zonza. — Não entendo. De repente, Tomas falou, assustando-me. — Uma para servir, outra para viver — murmurou. Agnes lançou um olhar muito pouco afável. — Não sei onde ouviste isso, mas esquece. — Então é verdade — disse ele, aparentemente pasmado. — Tem havido rumores, mas ninguém acredita... — E é assim que vai continuar a ser — disse Agnes, de modo enfático. Era a minha vez de olhar para um e para o outro. — Alguém faz o favor de me dizer o que está acontecendo? — Existe um velho boato — disse Tomas, ignorando a testa franzida de Agnes — que diz que a Pítia é recompensada no final dos seus serviços com mais uma vida, uma espécie de compensação por aquela de que abdicou devido ao chamamento. Fechei a boca, que não parava de tentar abrir-se devido ao choque. Por um momento, limitei-me a olhar especada para Agnes. — É verdade? — consegui finalmente perguntar. — Quer sair daqui ou não? — inquiriu ela. — Me fale! Ela suspirou e tornou a lançar as mãos ao ar. Eu não sabia se aquilo era um hábito frequente, ou se simplesmente acontecia muito perto de mim. — Muito bem, resumindo: sim, é verdade. Encontramos alguém fadado a morrer jovem e fazemos um acordo com a pessoa. Possuímo-la e alimentamo-nos da sua energia e, em troca, ajudamo-la a evitar seja qual for a catástrofe que está prestes a acontecer. — Isso é horrível!


— Não, é prático. Uma vida partilhada é melhor do que não ter vida nenhuma. — Mas, se é capaz de fazer isso uma vez — disse Tomas, lentamente —, por que é que não pode continuar a fazê-lo vida após vida, século após século? — É por isso que eu odeio vampiros — disse Agnes para o quarto em geral. — São tão desconfiados! — Mas consegue? — perguntou Tomas. — Claro que não! — disse bruscamente. — Pensa bem! Assim que termina o nosso tempo de serviço, o poder migra para outra pessoa. Sem ele, não temos maneira de saber quem irá morrer e, como tal, não temos maneira de escolher outro corpo. É negócio para uma vez só. Tomas deu uma gargalhada curta. — Espera que acreditemos que nunca ninguém tentou driblar a morte? Viver muitos períodos de vida possuindo quem se quiser, estivesse condenado ou não? Agnes encolheu os ombros. — Esse é um dos muitos deveres da Pítia reinante; garantir que as coisas não acontecem assim. Abanei a cabeça. Estava tudo a acontecer demasiado depressa. O meu cérebro não conseguia acompanhar. — Mas por que Françoise? — Já te disse que não tive escolha! Comecei a regressar ao meu corpo, mas descobri que tinha gasto demasiada energia a ajudar-te. Não tinha planejado ter de parar o tempo, não é uma artimanha fácil, sobretudo depois de um salto de mais de trezentos anos! Descobri que não me sobrava energia suficiente para saltar séculos uma última vez. — Mas eu podia ter-te levado de volta comigo! — Agnes ajudara-me a defender-me de Myra. Sem a ajuda dela, é provável que eu já estivesse morta. — Se bem te lembras, Cassie, estava no meio de uma sala repleta de fantasmas famintos. Estavam prontos para devorar todos os espíritos que avistassem! Eu não podia arriscar. Assim que o tempo recomeçou a contar, tive de sair dali depressa. Por isso entrei na única pessoa que conhecia daquela época que estava perto da morte e podia estar disposta a fazer um acordo. — E ela fez? — Françoise não era apenas uma pessoa normal qualquer. Era uma bruxa e, a julgar por um truque muito memorável que a tinha visto executar, uma bruxa poderosa.


Quase como se tivesse ouvido os meus pensamentos, Agnes fez outra careta e agarrou-se ao estômago. — De certa maneira. — Como é que veio parar aqui? — perguntou Tomas, antes que eu pudesse perguntar algo um pouco menos nebuloso. - Eu tinha a intenção de ir ter com a Cassie antes de ela sair daquele século, assim que estivesse na posse de um corpo que mantivesse os espíritos afastados. Mas apareceram os malditos magos. — Raptaram-te para te vender aos Elementais — raciocinou ele. — E tem estado aqui desde então? Mas isso foi há séculos! — Anos, na verdade — corrigiu Agnes. — O tempo aqui passa de maneira diferente — recordei-lhe. Marlowe já o tinha dito, mas eu não me apercebera de que a diferença podia ser tão grande. — Está dizendo que tem estado aqui continuamente desde que saímos de França? Agnes assentiu com a cabeça e depois estendeu uma mão para me deter quando eu tentei dizer mais alguma coisa. — Se nos viste desde então, não me conte. A Françoise consegue ouvir-nos, e não precisa ser influenciada ao saber o que vai acontecer no seu futuro. O futuro dela — pensei, confusa, — mas o meu passado. Ela tinha matado um mago das trevas no Dante's há uma semana, ajudando-me a fugir. Ou então estava prestes a matar um deles... Começava-me a doer a cabeça. — Quer sair daqui ou não? — inquiriu Agnes. — Sim, mas depois vamos falar — disse eu. Talvez por essa altura já tenha entendido alguma coisa e consiga pensar com clareza. — Se houver um depois — disse ela, de modo agorento. — Não se esqueça das sentinelas, tive bastante trabalho para arranjar. Agarrou a lanterna e, num rodopio de saias, desapareceu pelo corredor abaixo. Eu e Tomas olhamos um para o outro e depois apressamo-nos a ir atrás dela, com Tomas ainda a vestir as roupas que ela tinha trazido e eu a enfiar sentinelas em todos os bolsos que conseguia encontrar. Viramos ao fundo do corredor para subir um longo lance de escadas que só de vez em quando era iluminado por chamas que ardiam devagar. No final havia outra porta de carvalho espessa, mas que se abriu com facilidade ao mais leve empurrão de Françoise. Pritkin, Billy e Marlowe estavam parados em torno de uma grande abertura redonda numa parede de rocha, para lá da qual uma massa de cor ia mudando num caleidoscópio de luz.


— Estão aqui todos? — inquiriu a duende, mal se dando ao trabalho de olhar de relance para nós. — O ciclo está quase completo. Billy parecia nervoso. — Cass, acha que vou ficar com este corpo quando regressarmos? — Vamos regressar? — Assim que o ciclo daquela coisa passe a azul. Mas só vamos ter cerca de trinta segundos para atravessar para o destino certo. Vamos sair no Dante's, mas o que se segue na rotação é o Senado, por isso temos de saltar depressa, antes que fique vermelho. Tive dificuldade em acompanhar. — Por que é que vamos embora? — Porque você vai buscar uma coisa. Uma voz profunda e barítona ecoou das paredes. Fui me apercebendo de que aquilo que pensava ser um pilar envolto em tecido era, na verdade, a maior perna que eu alguma vez vira. Olhei para cima e sustive o olhar durante um período de tempo ridiculamente longo. Uma cara do tamanho de um holofote irradiava na minha direção a partir da vastidão sombria do corredor. O teto tinha uns nove metros, mas ele estava ligeiramente curvado como se este o restringisse. Demorei algum tempo a reagir e depois me limitei a olhar. A enorme cabeça baixou-se para olhar melhor para mim. Um cabelo castanho frisado obscurecia grande parte dela, deixando visível um nariz bulboso e uns olhos azuis do tamanho de bolas de basebol. — Com que então, é esta a nova Pítia. — Tivemos de negociar com o rei — explicou Billy em voz baixa. — As nossas runas estão gastas até ao próximo mês. Pritkin tentou lançar a Hagalaz, mas não funcionou, apenas arrefeceu um pouco e nós acabamos numa poça de lodo. As bombas de nulos são ótimas, mas só contra a magia, e nós estamos numa séria inferioridade numérica. Os Elementais não precisam de truques de abracadabra para nos atacarem forte e feio. Precisamos de mais armas e de alguns aliados, senão a única coisa que vamos fazer aqui é morrer. Marlowe concordou em entregar as armas do depósito do Senado quando lá voltarmos. — Que generosidade da parte dele. Qual é a contrapartida? Por uma vez, Marlowe não tinha uma resposta pronta. Ao invés, limitou-se a ficar ali a fitar-me, com um ar perplexo. Depois se deixou cair devagar sobre um joelho. — O Senado está sempre encantado por ajudar a Pítia — disse, por fim, depois de várias tentativas.


— Ela não é a Pítia — realçou Pritkin, virando-se finalmente para dar conta da minha presença. Depois ficou imóvel, coma boca a funcionar sem que nenhum som saísse dela. Uma mão permanecia erguida a meio de um movimento, como se simplesmente se tivesse esquecido de baixar. — Minha senhora, o que havemos de lhe chamar? — perguntou Marlowe, com reverência. — Não! — Pritkin saiu do seu transe e fitou-me a mim e ao vampiro ajoelhado. — É um truque, tem de ser! Olhei de relance para Tomas, aturdida. — O que é que se passa? Ele sorriu ligeiramente. — A sua aura mudou. Tentei ver por mim própria, mas não consegui concentrar-me devidamente e acabei com os olhos trocados. — Que aspecto é que tem? Marlowe respondeu por ele. — De poder — sussurrou, parecendo deslumbrado. — Tem de proclamar um título de regente, Cassie — disse Tomas. — O seu governo só começa oficialmente depois disso. O nome da Lady Phemonoe veio da primeira da linhagem. Pode ficar com o mesmo título, se desejar, ou escolher outro. Pritkin voltara à vida e dava passos largos pela sala, com um ar ultrajado. — Herophile — disse eu rapidamente, com o nome da minha visão a surgir de modo automático. Olhei com nervosismo para Tomas. — Pode ser? — a mão de Pritkin, que tinha estado a tentar alcançar-me, parou e deixou-se cair no seu banco. — Onde está o golem? — perguntei a Billy, mantendo um olho no mago. Estava com a expressão de um ateu que acabara de receber uma visita de Deus: perplexo, incrédulo e algo indisposto. — Não vai querer saber — respondeu Billy, fitando fixamente o portal, com a garganta a remexer-se com nervosismo. — Como assim?


O rei respondeu por ele. Custava a crer que, por um instante, eu me tivesse esquecido de alguém tão grande. — Foi oferecido ao meu assistente. Ele emprestou-o muito generosamente. — Soltaram-no há umas horas — disse Billy. — Vão dar-lhe mais uma hora e, depois, vão atrás dele. Qualquer coisa relacionada com treinar cães. — O quê? — eu estava horrorizada. — Mas podem matá-lo! — Em termos técnicos, ele não está vivo — realçou Billy —, portanto não pode morrer. — Dantes podia não estar vivo, mas agora está! — olhei em volta em busca de apoio, mas não encontrei nenhum. Marlowe tinha se mudado para o lado de Pritkin, com um ar preocupado. Billy fitava os redemoinhos de cor no interior do portal e mordia o lábio, e eu tinha dúvidas de que o destino do golem fosse o que mais o preocupava. — Não podemos abandoná-lo! — É claro que — murmurou o rei, com um som mais sonoro do que os berros de todos os outros — podia salvá-lo, se quisesse. Tive um pressentimento muito mau em relação àquilo. — Como é que eu faria isso? O rei sorriu, exibindo dentes do tamanho de bolas de golfe. — Fazendo uma troca. — Cuidado, Cass — murmurou Billy. — Ele quer alguma coisa de você, mas não nos diz o que é. — Calado, sobejo! — estrondeou o rei. — Guarda a língua atrás dos dentes, senão alguém ainda te corta! — então, mais depressa do que um raio, a disposição dele mudou e ele sorriu de modo angelical. — É apenas um livro, minha senhora, uma ninharia. — O próximo destino é o deles — advertiu a duende. Pritkin voltou de súbito à vida. — Onde está Mac? Fitei-o com um olhar vago e foi então que percebi. Oh, meu Deus. Ninguém tinha dito. A duende respondeu antes que eu pudesse sequer pensar numa resposta. — A floresta exigiu um sacrifício antes de nos deixar passar. Foi atrás da garota, mas o mago ofereceu-se no lugar dela.


Transferi o meu olhar fixo para ela. Ela deve ter visto Mac a fazer alguma coisa deliberadamente para chamar a atenção sobre si mesmo. Ele tinha percebido – a floresta não iria soltar, não iria parar de nos atacar até ter um sacrifício. Como tal, ele deu-lhe um. Tomas apertou-me o ombro numa solidariedade silenciosa, mas eu quase nem senti. Não havia sangue no chão quando partimos. A terra tinha absorvido o sangue, tinha absorvido a ele. De repente, as sentinelas que eu enfiara no bolso pesavam como tijolos. Pritkin parecera confuso com o comentário da duende, mas o que ele viu no meu rosto, fosse lá o que fosse, serviu-lhe de explicação. O entendimento assolou seus olhos. — Você planejou isto — disse ele, com uma voz estranhamente morta. — Levaste-nos a ir salvar aquela... Coisa, para poder completar o ritual. O géis impossibilitou qualquer outro candidato. — Não planejei nada — disse eu. Queria dizer-lhe o quão terrivelmente lamentava, dizer qualquer coisa digna de Mac, mas o meu cérebro não parecia estar a funcionar. — Sobre o livro — ressoou o rei. Ergui os olhos para ele, confusa. — Qual livro? O seu rosto contorceu-se ligeiramente e eu percebi que ele estava a tentar pôr um ar inocente. Não parecia ser uma expressão que usasse muito, a julgar pelo resultado. — O Codex Merlini. — O quê? — o nome não me dizia nada, mas Pritkin sacolejou de modo violento. Marlowe parecia intrigado. — Mas pode ir buscar um em qualquer livraria mágica. O rei emitiu um som que pareciam pedregulhos a roçar uns nos outros. Acabei por perceber que estava rindo. — Não é esse. O volume perdido — baixou o olhar para mim com uns olhos famintos. — Se me trouxer o segundo volume do Codex, pode ficar com a criatura. Dou-te a minha palavra. — Não! — Pritkin lançou-se de repente para cima de mim, com um rosto ameaçador, mas passado um segundo escorregava pelo chão por causa do empurrão brutal que Tomas lhe deu. Embateu na parede, mas deu uma reviravolta acrobática com os pés e lançou-se de novo na nossa direção. Estava com os olhos gelados e prometia infligir dor em alguém. — Mago, se tornar a interromper, como-te o fígado no jantar — avisou o rei. A voz não deixava dúvidas de que estava a falar a sério. Pritkin parou de deslizar.


Olhei de relance para o rosto furioso de Pritkin e depois para o rosto interessado de Marlowe. — O que está esquecendo? — O Codex é... O livro primordial, se assim quiser, o texto no qual se baseia toda a magia moderna — informou-me Marlowe. — Foi Merlin que o compôs, não só a partir do seu próprio trabalho como da sua pesquisa dos textos mágicos disponíveis no seu tempo, muitos dos quais estão agora perdidos para nós. Ele tinha receio de que o conhecimento se perdesse se ninguém o catalogasse para gerações futuras. Mas diz a lenda que só temos metade do seu trabalho, que originalmente existia um segundo volume — olhou de relance para o rei. — Mesmo que ainda exista, de que lhe serviria? A magia humana não funciona aqui. — Alguma funciona — respondeu o rei, de modo evasivo. Tentava fazer parecer que a conversa pouco lhe interessava, mas estava a sair-se muito mal. Os seus olhos enormes quase dançavam de entusiasmo e as maçãs do rosto sobre a barba encaracolada estavam ruborizadas. — Por uma questão de segurança, Merlin dividiu os seus feitiços em duas partes. Os feitiços propriamente ditos estavam no volume um, os antídotos no volume dois. Na sua maioria, os antídotos foram descobertos por tentativa e erro no decurso dos anos, à exceção dos mais estranhos, como esse teu géis. Eu quero... O meu cérebro parou ao ouvir a palavra mágica. — Espere aí. Está a dizer que o Codex contém um feitiço que remove o géis? — Diz-se que contém os antídotos para todos os feitiços do Merlin. Foi ele que inventou o dúthracht, portanto deve lá estar — olhou para mim com astúcia. — É um incentivo extra, vidente? Pus a minha cara de póquer e esperei que fosse melhor do que a dele. — Um pouco. Mas não estou a ver como poderei ajudá-lo. Se o livro se perdeu... — É a Pítia ou não é? — berrou, abanando as vigas. — Volta atrás no tempo e descobre-o, antes da época em que desapareceu! Percebi a avidez gravada na sua cara enorme e tomei uma decisão célebre. — Eu podia tentar — concordei. — Mas o preço que oferece é muito baixo. Que mais me dá? Pritkin soltou uma maldição e saltou para cima de mim. Tinha o rosto vermelho como uma beterraba e estava com aspecto de ia arrebentar uma veia. Tomas deu um passo em frente, mas foi Marlowe, deslocando-se num borrão, que lhe prendeu a garganta, asfixiandoo. Olhei de modo indefeso para o fito verde e furioso. Iria falar com Pritkin mais tarde,


tentar explicar-lhe tudo, mas esta não era a hora certa. O rei estava com ar de quem pensava adicionar Pritkin ao cardápio da noite, mas eu interrompi. — Estávamos a negociar, Sua Majestade, e não temos muito tempo — fiz sinal para o portal, que emitia um brilho azul-vivo, com redemoinhos de azul-pavão, azul-esverdeado, azul-escuro e azul-forte a deslocar-se em ociosos padrões sobre a superfície. — O que quer? — perguntou ele com celeridade. Depois de anos a observar Tony a manipular as pessoas, isto era quase demasiado fácil. — Preciso encontrar um vampiro — disse-lhe eu. — O nome dele é Antônio, embora possa estar a usar um pseudônimo. Dizem que está no Mundo das Fadas. Além do golem, quero a localização do Antônio e auxílio suficiente da sua parte para ir buscá-lo — e a quem quer que esteja com ele, acrescentei em silêncio. — E um refúgio para o Tomas, aqui na sua corte, durante o tempo que ele precisar. — A vida do golem e o refúgio são coisas simples — disse o rei —, mas o outro... — deteve-se com um ar pensativo. — Sei quem é o vampiro de que fala — admitiu por fim. — Mas chegar a ele será difícil e perigoso. — Tal como encontrar o seu livro — realcei. Ele hesitou, mas a cor da aresta da espiral começava a transformar-se em roxo. Ele estava a ficar sem tempo e eu era a única pessoa que poderia ir buscar o livro que ele tanto queria. — Combinado. Traz-me o livro e terá o seu vampiro. Assenti com a cabeça e comecei a andar em frente, mas choquei contra Billy, que estava recuando. — Pre-preciso repensar isso — balbuciou. — Vou apanhar o próximo ônibus. — O que se passa contigo? — inquiri. Ele tinha a cara branca e as mãos esboçavam desenhos agitados no ar. — E se eu perder o meu corpo quando regressarmos? Ainda agora o recuperei, Cass! — Há bocadinho estavas preocupado com o que poderia acontecer se ficasses! — E agora estou preocupado com o que vai acontecer se for — parecia genuinamente aterrorizado. — Não percebe o que pode estar por ali! — Billy! Não temos tempo para isto! Já passaste por um portal quando viemos para cá! — Pois é, e olha o que me aconteceu! Pensa bem, Cass!


Eu não fazia ideia do que ele estava a falar, e não me deram chance de descobrir. — Mete-te no portal, despojo — disse a duende. — Não precisamos de gente da sua laia aqui. — Não se meta nisso, boneca — avisou Billy, varrendo-a com o seu chapéu. De repente, um borrão surgiu à nossa frente, na direção do portal, e eu mal tive tempo de reconhecer Françoise antes que uma luz brilhante irradiasse e ela desaparecesse. O rei soltou um berro enfurecido. — Tragam-na de volta! — ordenou. A duende desembainhou a sua espada minúscula. Eu já tinha visto o que aquela coisa podia fazer, mas Billy não, e ele nem sequer se deu ao trabalho de se esquivar. A parte lateral da espada apanhou-o no estômago, levantando-lhe os pés do chão e arremessando-o para trás. Tive oportunidade de ver os olhos arregalados de choque e depois ele desapareceu. A duende foi a voar direto ao portal atrás dele, sendo que os seus clarões se aproximaram tanto que eles quase pareceram um só. Virei-me e vi que Pritkin tinha caído de joelhos e Marlowe de costas. Seguia em frente para intervir quando, de repente, ele atingiu o vampiro na têmpora e, ao mesmo tempo, puxou o outro cotovelo para trás para lhe desferir um golpe selvagem nas costelas. Marlowe soltou-o e cambaleou para trás. Pritkin deixou-se ficar no chão por um segundo, com uma mão na garganta machucada, tentando recuperar o fôlego. Pela respiração arquejante, parecia que o estrafego de Marlowe se aproximara mais de um estrangulamento. — Cassie, tem de ir — disse Tomas, apressando-me. Fez uma pausa, com uma expressão que era um estranho misto de ternura e sofrimento. — Tenta não se deixar matar. — Você também — teria preferido ter tempo para me despedir, mas não o tinha. Beijei-o rapidamente, dei uma corrida e lancei-me para o rodopio de cor. No último instante, Pritkin mergulhou ao meu lado. Houve um clarão de luz, seguiu-se outro e depois apenas escuridão.


í Voltei a mim porque tinha um estrondo a reverberar-me na cabeça. Apercebi-me de três coisas em simultâneo: estava de volta ao Dante's, o estrondo provinha de umas grandes colunas disfarçadas de cabeças gigantes e Elvis estava com um aspecto muito gasto – até para um cara morto. Pestanejei e Kit Marlowe enfiou-me uma bebida na mão. — Tenta fazer um ar normal — murmurou ele, quando Elvis deu início ao coro de “Jailhouse Rock”. Olhei em volta com estupefação, mas tive dificuldade em concentrar-me em alguma coisa que não fosse o homem enorme de lantejoulas brancas, que se mexia de um modo que calculei que pretendesse ser atraente. A bala que recentemente o escalpelizara era de alto calibre e não me parecia que o capachinho de emergência estivesse a aguentar-se bem. As senhoras, que atiravam de tudo para o palco, desde chaves do quarto até roupa íntima, não pareciam reparar nisso. Acho que o amor é mesmo cego. Queria perguntar o que estava acontecendo, mas meu cérebro não parecia ligado à minha boca. Sentei-me, balançando-me um pouco na cadeira. Metade da audiência estava a fazer o mesmo, mas os movimentos deles eram uma imitação inconsciente da atuação e não se deviam a uma ideia pouco clara em relação à de que lado estava a parte de cima. O que se passava comigo? Mal tinha pensado nisso quando me lembrei: o portal. Ao contrário do que acontecera na transição que passou despercebida na MAGIC, este tinha dado um coice. Pechincha é com o Tony, a julgar pela maneira como eu sentia a cabeça, tinha escolhido a versão em saldos, uma vez que ele próprio nunca teve intenção de usá-lo. Espero que lhe tenha dado uma enxaqueca.


Marlowe tirou uma tanga de renda azul da orelha, uma das oferendas ao deus do rock n' roll que não tinha conseguido chegar ao palco, e atirou-a por cima do ombro. — Estamos em apuros — disse ele, desnecessariamente. Ergui a sobrancelha. Qual era a novidade? Marlowe usou o pauzinho com que mexeu a sua bebida de rum para cutucar a cabeça mirrada do tamanho de um punho que fazia de centro de mesa. O fato de aquela coisa feia estar sentada num bonito ninho com frondosas palmeiras verde-escuras e aves do paraíso cor de laranja, não ajudava nada. Um olho enrugado e mirrado abriu-se com relutância e rodou na direção dele. — Não pode esperar? Esta é a minha canção preferida. — Preciso reabastecer — disse Marlowe, de modo conciso. — Um do mesmo — a cabeça fechou os olhos, mas a boca continuou a mexer. — O que... — parei para engolir porque sentia a minha língua com o dobro do tamanho habitual, depois tentei de novo. — O que isso está fazendo? — Comunicando-se com o bar — respondeu Marlowe, olhando de relance em volta. — Agora vou desmaiar — informei-o. Marlowe lançou-me um olhar reprovador. — Não vai fazer tal coisa. O Círculo tem-nos cercados. Dois dos operacionais deles viram-nos chegar de rompante e agora estão aqui todos que eles deixaram no casino. Estão muito atentos às defesas internas e às suas capacidades para tentarem alguma coisa sem reforços, por isso temos alguns instantes, mas não mais do que isso. Tem de estar pronta para ir. — Ir para onde? Disseste que estamos cercados. — Casanova vai inventar uma manobra de diversão, mas, de momento, tudo o que podemos fazer é ficar aqui sentadinhos. E tomar uma bebida — acrescentou, enquanto eu tentava destemidamente impedir que os meus olhos se trocassem. — O álcool costuma ajudar nestes casos. Assenti com a cabeça, mas as palavras dele causaram menos impressão no meu cérebro frito do que a pequena cabeça no centro da mesa. Esta tinha acabado de falar com o bar e acompanhava agora a música cantarolando, o que era uma artimanha impressionante para um pedaço de plástico. Suponho que os turistas normais pensassem que havia alguma espécie de microfone escondido dentro das coisas que entregavam os seus pedidos, mas eu sabia que não. Já tinha visto uma coisa destas antes. Estávamos no bar de zumbis do Dante's – o que era conhecido como Cabeças de Cartaz por causa das decorações macabras e dos artistas de primeira linha, embora


infelizmente falecidos. Por experiência passada, eu sabia que as cabeças que serviam de centros de mesa eram falsas, mas não da maneira como os turistas pensavam. Eram cópias encantadas concebidas para terem o mesmo aspecto da única autêntica que ali existia, cujos despojos dissecados estavam suspensos por entre duas máscaras de madeira entalhadas atrás do bar. Corria o rumor de que tinha pertencido a um apostador que, de modo inadvertido, não pagara uma aposta. Ouvi-o a avisar um cara de que, naquele casino, o dinheiro das apostas que não se tinha não era uma dor de cabeça. Era uma “pequena cabeça”. A mulher que tinha atirado a tanga, uma loira roliça a quem faltavam cerca de dois quilos para que fosse necessário outro adjetivo, apanhou os seus pertences do chão e lançou um olhar maléfico a Marlowe. Ficou ao lado do palco e oscilou o pedacinho de renda como se fosse um lenço, mas os olhos de Elvis estavam demasiado vidrados para reparar. Tinha o rosto da cor de argamassa bolorenta e o seu capachinho negro tinha descaído para a direita, deixando à mostra uma linha de pele branca esverdeada por cima da orelha esquerda. Felizmente, prosseguiu com "Love me Tender", que não obrigava a tantas rotações. Talvez o capachinho durasse a noite toda, afinal. A cabeça parou de cantarolar quando a canção terminou e revirou os olhos à minha volta. — Ouviu falar do comediante que foi atuar numa festa de lobisomens? — perguntou, fazendo conversa. Eu e Marlowe ignorámo-la. — Os pôs a uivar nas coxias! Um empregado zumbi vestido com uma camisa havaiana que berrava com a sua pele cinzenta e uns calções pelos joelhos que lhe revelavam as pernas murchas abria caminho pelas mesas na nossa direção. Observei-o a aproximar-se e apercebi-me de que, sem saber, tinha terminado o martini que Marlowe me dera. O álcool parecia ter ajudado a minha cabeça, mas não a minha disposição, que estava cada vez mais sombria. Eu tinha uma boa razão: Tomas estava certo; o géis continuava. Aquela desgraçada pressão constante estava de volta. Conseguia senti-la, um cordão cintilante que se estendia a partir de mim e atravessava o deserto até à MAGIC. Tentei fortalecer os meus escudos, mas os feixes tremeluzentes irradiavam diretamente através deles. Mas pelo menos, desta vez não havia uma dor esmagadora. Talvez o fato de me ter tornado Pítia me tivesse valido de alguma coisa afinal, ou talvez o géis só precisasse de tempo para compensar o meu novo nível de poder. Fosse como fosse, estava grata pelo alívio. — Onde estão os outros? — perguntei. Billy podia servir de grande ajuda ao informarnos da direção de onde vinham os reforços do Círculo. — Não vi a duende nem a garota. Mas O mago atravessou o portal contigo — disse Marlowe, mantendo um olho nas seis figuras que se tinham desdobrado em cada um dos lados da entrada. Todos eles faziam balançar casacos compridos que, de certo os deixavam


abafados, mesmo com ar condicionado. Casacos que pareciam cópias dos de Pritkin. Havia muitos outros, reparava agora, que se encontravam numa posição semelhante perto da saída secundária. — O deixei inconsciente e tranquei-o na sala dos fundos. — Isso não irá contê-lo por muito tempo. — Cassie, se ficarmos aqui muito mais tempo, Pritkin será o menor dos nossos problemas — o empregado colocou um jarro de martinis e um prato de azeitonas na mesa. Marlowe apropriou-se do jarro, deixando-me apenas um coco entalhado de modo a assemelhar-se a uma das cabeças mirradas. Possivelmente, a dada altura já teriam agitado uma garrafa de rum por cima da pina colada que havia no interior, mas nenhum tinha lá entrado. Suspirei e bebi a mesma. — Muito bem. E que tal uma adivinhação? — gorgolejou a cabeça. — Qual é o melhor caminho para o coração de um vampiro? — fez uma pausa de alguns batimentos. — Pela caixa torácica! A loira grande, que cada vez estava mais estridente nas suas tentativas de ganhar a atenção do Rei, decidiu finalmente apostar tudo e subir no palco. Apesar de estar com saltos agulha, conseguiu chegar a pouca distância dele antes que os seguranças do bar, vestidos discretamente, a agarrassem. Casanova, que estava de pé ao lado do palco, aliviou o potencial desastre enviando um latino atraente. O homem indubitavelmente possuído por um íncubo conduziu a mulher até ao balcão com um sorriso que prometia fazê-la esquecer de todas as estrelas de rock famosas. — Se aquela era a ideia de manobra de diversão de Casanova, a reputação dele deixa muito a desejar. — Não era — Marlowe parecia seguro de si. — Como é que sabe? — Porque, a menos que o meu palpite esteja errado, chegou a cavalaria. Segui o seu olhar até o local onde um trio de gregos muito velhos tinha acabado de surgir, com oferendas na mão. Não vieram pela entrada principal, onde os magos se tinham nitidamente entesado quando os viram, mas sim pela porta secundária perto do balcão. Os guardas dessa porta tinham desaparecido. Um dos empregados de balcão, um cara lindíssimo que vestia apenas um chapéu de explorador e uns calções cáqui minúsculos, avistou o trio e despejou metade de uma garrafa de Chivas no balcão antes de dar por isso. — Público difícil, hã? — perguntou a cabeça. — Tudo bem. Mas já sabem aquela do cara que não conseguia pagar ao exorcista? Foi repossuído. Ha! Agora, vá, digam lá que não tem graça! — Não tem graça — disse Marlowe, desdobrando o guardanapo.


— Ei, espera! Tenho milhares delas! Então e aquela... — felizmente, as pesadas pregas de algodão do guardanapo interromperam aquela coisa antes que eu lhe desse um pontapé que a fizesse voar pela sala. Dino aproximou-se da nossa mesa com um sorriso desdentado. — Aniversário! — disse ela, abrindo-me um sorriso. Fiquei surpreendida: eram as primeiras palavras em inglês que a ouvia usar, e era óbvio que estava orgulhosa de si própria. Eu podia tê-la admirado mais se, depois do seu cumprimento, ela não tivesse largado sobre a mesa um balde de entranhas ensanguentadas mesmo debaixo do meu nariz. Olhei para Marlowe com receio. — Por favor, diga-me que isso não é... — Não é humano — disse ele, enrugando o nariz. — É de vaca, penso eu. Pefredo deixou cair um jornal cheio de fichas de casino em cima da mesa, ao lado da oferenda da irmã. Não havia das vermelhas e azuis que eu uso: na sua maioria eram pretas, com algumas roxas de quinhentos dólares espalhadas por aqui e ali. Num só relance, contei mais de quatro mil dólares. Fechei os olhos em desespero – era só o que me faltava, ter também a polícia humana atrás de mim. Para não ficar para trás, Énio colocou um grande bolo com três andares ao lado das outras duas oferendas. Estava coberto por algo verde e viscoso, que eu supus ser cobertura de açúcar. Decidi não perguntar por que razão cheirava a tempero. Dino despejou o que restava da pina colada na minha casca de coco e encheu-a com uma medida generosa de sangue e tripas. Enfiou-a debaixo do nariz e abriu um largo sorriso. — Ani-vezário! Consegui não vomitar. — Por que elas estão fazendo isso? — perguntei a Marlowe, que estava com um ar quase tão enojado como eu me sentia. Os vampiros não bebem sangue animal. Não lhes faz nada e muitos o consideram repugnante. — Quer um palpite? Estão a fazer uma oferenda. No mundo antigo, os sacrifícios de sangue eram comuns. Se eu fosse você, estaria grato por não estarem a fatiar uma virgem em cima da mesa. Se calhar, não conseguiram encontrar nenhuma em Vegas. — Ah-ha. O que eu haveria de fazer com... — não fui mais longe. Se não estivesse tão enojada, teria reparado mais cedo que Elvis zumbi parou de cantar no meio de uma interpretação enfadonha de ''All Shook Up" e tentava agora descer do palco. Marlowe estava levantado. — Temos de livrar-nos do balde!


Olhei em volta para as mesas à pinha cheias de turistas. — Como? Elvis mandou dispersar a mão cheia de seguranças que se tinham aproximado rapidamente e cambaleou em direção à nossa mesa. Os olhos já não estavam vagos, mas sim cheios de uma fome intensa à medida que se concentravam no balde ensanguentado. Foi então que um dos guardas com mais músculo do que juízo o agarrou pelo ombro e tentou dar-lhe meia volta. A única coisa que conseguiu foi arrancar o resto do capachinho, revelando o cocuruto de um cérebro à mostra. Calculei que os caras do vodu que Casanova mantinha no pessoal tinham tido excesso de trabalho depois do recente ataque e haviam descuidado a tarefa de reparação. Provavelmente não tinha sido uma boa decisão de negócio. A visão de um zumbi de cara cinzenta e maxilar descaído com um olhar furioso por debaixo de um cérebro pulsante e ensanguentado arruinou a noite das pessoas nas mesas circundantes. Muitas delas soltaram gritos e, todas ao mesmo tempo, deixaram cair cadeiras e derrubaram-se umas às outras na debandada. Outros clientes, que estavam demasiado afastados para perceberem o efeito total, começaram a bater palmas, partindo do princípio de que aquilo fazia parte do entretenimento da noite. Pus-me a pensar se iriam continuar a pensar assim depois de Elvis abocanhar o aperitivo e começar a procurar um prato principal. — Cassie! — de modo difuso, como o eco de um eco, ouvi a voz de Billy. Olhei em volta, mas não consegui vê-lo em lado nenhum do pandemônio. Marlowe deu-me um encontrão por trás, mas o meu equilíbrio ainda não tinha voltado e eu perdi o pé. Segurei-me na mesa, tentando estabilizar-me, enquanto Elvis se agarrava ao balde. Dino guinchou e pegou sua oferenda, dando início a um furioso jogo da corda. Derramou sangue por todo o tampo da mesa, que não passava de um círculo de vidro empoleirado em cima de uma sorridente cabeça tiki. Poças de sangue coagulado mancharam o belo vestido de Françoise e, de modo instintivo, agarrei num guardanapo para limpá-las, mas fui travada por um vampiro zangado. — Esquece isso! — Marlowe deu-me um ligeiro abanão. — Temos de sair daqui! Fiz sinal para a quantidade de magos que tinham começado a brotar da porta. A nossa não era a única cavalaria a atacar sobre a colina. — Como? — gritei. — Não consegue transportar-se? Percebi de súbito de que já não havia razão para não usar o meu poder. Gostasse ou não, eu era a Pítia. Assenti com a cabeça, mas antes que conseguisse obter uma imagem da rua do lado de fora do casino, ouvi de novo a voz de Billy, que parecia desesperado. — Billy! Anda aqui!


— O que foi? — perguntou Marlowe. — Está quieto! — já era difícil ouvir sem ele estar aos berros nos meus ouvidos. Billy tinha dito mais qualquer coisa, mas eu não entendi. — Billy! Não consigo ouvir-te! — Não se transporte! Estou preso. — Ele diz que está preso — disse eu a Marlowe, no exato momento em que a loira se libertou do seu guardião e foi a correr para ficar mais perto do seu ídolo. Foi interceptada por um guarda, e, ao debater-se para se soltar, chocou-se contra mim. Desequilibrei-me e caí, no momento em que uma bola de fogo de um dos magos silvou por cima da minha cabeça, não me acertando por pouco e deitando fogo ao gibão de Marlowe, enquanto se encaminhava para destruir o balcão. Ele despiu a vestimenta num abrir e fechar de olhos e depois olhou em volta de modo frenético, em busca de um lugar para se livrar dele em segurança. O fogo mágico arde como o fósforo, portanto as opções eram limitadas. Resolveu o problema atirando-o para o local de onde viera, ficando a crepitar contra os escudos dos magos. Marlowe não parecia estar ferido, mas tinha as presas de fora e os olhos enfurecidos. — Daqui a pouco, por aqui vai aquecer muito, Cassie. Não me ocorre melhor hora para a nossa saída. O fantasma pode ir conosco mais tarde. Billy deve ter ouvido, porque começou a balbuciar como um maluco. Não consegui compreender a maior parte do que estava a dizer, mas entendi a ideia. — Billy diz para não nos transportamos. Marlowe estava com um ar incrédulo, mas minha expressão deve tê-lo advertido para que não contrapusesse. — Fica aqui. Hei de arranjar qualquer coisa — disse ele, de modo abrupto, antes de desaparecer num borrão de cor. Fui deixada no aconchego da parte de baixo da mesa para escapar à multidão em debandada. Através do tampo transparente, consegui ver que a fã tinha conseguido finalmente abrir caminho à força até ao seu ídolo, com uma expressão de devoção nas feições. Só podia depreender que ela estivesse bêbeda ou completamente cega, já que o objeto do seu afeto estava com um aspecto muito assustador. Contudo, ela não pareceu dar-se conta dos olhos reluzentes, cérebro pulsante e boca salivante e atirou-se a ele no momento exato em que Dino lhe arrancava o balde das mãos com um forte puxão. A força do movimento fez com que o conteúdo salpicasse a mulher por completo, ensopando-a da cabeça aos pés e deixando-lhe o que parecia ser um pedaço de fígado encaixado no seu decote. Ela gritou, o que foi a pior reação possível, uma vez que chamou a atenção do zumbi. Este ignorou Dino, que gritava numa língua desconhecida e lhe


batia repetidamente na cabeça com o balde vazio. Preferiu ele lançar-se à garota ensanguentada. Casanova tentava evacuar a sala e afastar a luta das restantes pessoas normais. — Vão buscar os malditos caras do vodu! — ouvi-o berrar, assim que três seguranças se atiraram para cima de Elvis. Ele caiu no chão escorregadio de sangue a menos de um metro de mim, com a mulher por baixo dele. Onde quer que estivessem os funcionários do vodu que costumavam controlar as atuações, não me parecia que fossem rápidos o suficiente para impedi-la de se transformar num petisco da ceia do Rei. — Ajudem-na! — gritei às Gréias. Não precisei repetir. Num abrir e fechar de olhos, Énio mudou do seu modo de senhora idosa para o seu álter ego, coberta pelo seu próprio manto de sangue. Supostamente, este contém despojos de todos os inimigos que ela já chacinou e, ou pela variedade ou pela grande quantidade, captou a atenção do zumbi. Ele arrastou-se para se colocar de pé, apesar de ter três guardas pendurados nele. Não largou a mulher, mas enfiou-a debaixo do braço e foi aos tropeções atrás da nova presa. Com um olhar frenético dirigido a mim, Pefredo apanhou a garota e empurrou-a para Dino, antes de saltar para as costas do zumbi. Ele emitiu um silvo muito pouco musical quando ela começou a escavar seu crânio aberto, retirando mãos-cheias de cérebro ensanguentado. Énio mantinha-se fora de alcance, conduzindo a trôpega criatura num percurso em ziguezague por entre as mesas, enquanto a irmã continuava a lobotomia improvisada. Marlowe apareceu ao lado do meu cotovelo, com o cabelo revolto e as calças chamuscadas, mas livre de ferimentos. Agarrei-lhe na camisa com as duas mãos. — Diga-me que tem um plano! — Há um alçapão por baixo do palco. Só temos de nos assegurar de que nenhum dos magos nos veja passar por ele. Não me parecia que isso fosse um problema. Os zumbis não tinham grandes técnicas de luta, mas compensavam esse fato com a resiliência. Enquanto Marlowe falava, um mago enfiou completamente o braço pelo abdómen do nosso empregado, mas apesar de o seu pulso ter saído pelo outro lado, nem sequer abrandou o zumbi. Elvis, por seu turno, ou estava exausto ou tinha perdido capacidade cognitiva suficiente para se esquecer do que estava a fazer, pois tinha parado a três ou quatro mesas de distância. Énio e Pefredo abandonaram-no em troca dos magos, deixando o pessoal da segurança que tinha acabado de chegar para tratar do Rei. Casanova chegou à dianteira da esquadra.


— O que vocês os dois estão esperando? — guinchou, com uma voz muito pouco sensual. — Vão! — Vou verificar a saída e garantir que não há surpresas — disse Marlowe, misturandose com a multidão. Comecei a segui-lo até ser detida por uma imagem muito pouco acolhedora. Um Pritkin de aspecto lívido estava parado ao lado dos restos carbonizados do balcão, perscrutando a sala. As calças de Marlowe devem ter lhe chamado atenção, porque se fixou nele e, passado um segundo, em mim. Oh-oh. Casanova seguiu a direção do meu olhar e disse algo um pouco mais forte. Lançou-me um olhar de pânico. — Mircea ordenou-me que ajudasse você, mas há limites! Trancar o mago num gabinete enquanto ele se recuperava era uma coisa, mas eu não posso machucar ninguém. Mesmo que me espetem uma estaca por causa disso! Fitei-o. — O que está para dizer? — não obtive resposta, porque vários magos tinham irrompido pelo alinhamento dos mortos-vivos e encaminhavam-se para nós. Fez sinal aos seus seguranças, metade dos quais eram vampiros, para que os interceptassem e fossem atrás deles, mas eu agarrei-lhe no braço. — Quando falou com Mircea? — Ele telefonou há algumas horas, depois de ter feito aquela pequena proeza na MAGIC. Perguntou se eu tinha falado contigo e qual tinha sido o assunto. Eu disse-lhe — viu a minha expressão e a dele tornou-se mais irritável. — Estavas mesmo à espera que eu mentisse? Posso servir a dois mestres, Cassie, mas tento fazê-lo bem. Com aquele comentário crítico, desapareceu, deixando-me sozinha a lidar com Pritkin. Calculei a distância até ao palco e percebi que não ia conseguir. As mesas que não estavam a arder estavam de pernas para o ar e algumas delas tinham começado a liquefazer-se sob a enxurrada de feitiços, lançando rios de vidro derretido em todas as direções. Não havia mais nada a fazer; apesar do aviso de Billy, eu ia ter de me transportar. Invoquei o meu poder, mas estava demorado. Não sabia bem se tinha a ver com o fato de o portal estar a interferir com o meu cérebro, ou com a imagem do rosto de Pritkin enquanto ele se debatia para atravessar o caos. De uma maneira ou de outra, se não conseguisse concentrar-me melhor, estava ferrada. Senti uma palmadinha no ombro e dei meia-volta para encontrar Dino com um ar satisfeito. As irmãs estavam ocupadas a combater magos de guerra com um regozijo descarado, mas ela colara-se a mim como uma apara. Ainda estava agarrada à fã chorosa e meio enlouquecida, que arremessou para mim.


— Ani-vezário! — disse ela, com alegria, contente por ter encontrado uma substituta para sua prenda estragada. Abanei a cabeça com violência. Um sacrifício humano não estava na minha lista de desejos. — Sabe por que as múmias não saem de férias? — perguntou uma voz abafada por debaixo do guardanapo de Marlowe. — Têm medo de descontrair e se soltar. A garota, que estava caída no chão a tremer, teve a presença de espírito para começar a engatinhar dali para fora. Dino viu sua oferenda a escapulir com uma expressão exasperada e, essa perda de concentração momentânea, bastou para que Pritkin saltasse para cima dela e a atirasse de cabeça contra o aglomerado de colunas. Por um instante, me teve diretamente na sua mira, mas estava demasiado ocupado a lançar uma bola de fogo contra as cabeças empilhadas. Estas explodiram numa saraivada de madeira em chamas e partes mecânicas esvoaçantes que se espalharam pelo palco, manchando a superfície envernizada com horríveis queimaduras. As chamas contornaram a zona em redor das colunas numa fogueira saltitante que depressa alastrou ao piano ali perto. Antes que eu pudesse gritar, o cabelo grisalho de Dino brotou da massa a arder. Ela não parecia estar sequer chamuscada, mas estava com um ar bastante irritado. Passado um segundo, tive a oportunidade de ver qual era o talento especial mais tresloucado das Gréias. Dino não mudou de forma nem obrigou Pritkin a dar um tiro em si próprio como eu quase estava à espera. Limitou-se a virar para ele aqueles olhos sem visão e ele ficou imóvel, como se tivesse embatido contra uma parede invisível. Deixou cair a arma que sacara, suponho que por minha causa, e ficou a fitar toda a sala com um olhar vago. Não parecia estar machucado; simplesmente era como se não soubesse onde estava, nem sequer quem era. O topo do piano ardendo caiu atrás dele com um estrondo musical, mas ele nem sequer estremeceu. Dino deu um pontapé nas estátuas a arder para tirá-las do caminho e veio ter comigo. Um mago lançou uma bola de fogo a partir da seção mais próxima da luta e virou-a contra ele com um gesto grosseiro. Deu uma palmadinha no ombro a Pritkin e, quando se virou, derrubou-o. Desta curta distância, pude ver que aquelas pregas de pele ocas não estavam tão vazias como eu pensava. Continham uma névoa escura e turbulenta que não se assemelhava nada a olhos, mas que, de algum modo, dava a impressão de uma vista. — Isso deve funcionar muito bem em batalha — disse eu, maravilhada. Haveria de ser difícil lançar um feitiço se não conseguíssemos lembrar-nos dele, ou sequer da razão por que estávamos a combater. Dino sentiu-se orgulhosa. — Esgota-se? Ela encolheu os ombros de modo evasivo, deu-me um beijo no rosto e murmurou "Ani-vezário" ao meu ouvido antes de sair dali para ir ter com as irmãs. Os magos tinham estraçalhado os zumbis, cujas partes corporais em contorção enchiam o chão ao redor da porta e estavam a sair-se bem contra os vampiros. Mas eu tinha a sensação de que isso estava prestes a mudar. Eu tinha intenção de seguir o exemplo de Marlowe, mas Pritkin regressou


de súbito à vida. Olhei para os seus gélidos olhos verdes e depois para a arma que ele tinha recuperado. — O meu sangue tem uma vantagem — silvou ele. — Os jogos mentais não funcionam. Decidi não me dar ao trabalho de tentar encetar um diálogo. Dei um golpe com o pé e apanhei-o em cheio no joelho. Em circunstâncias normais, é provável que isso não fizesse mais do que irritá-lo, mas a surpresa do ato, juntamente com o rio de sangue e entranhas escorregadias no chão, fê-lo estatelar-se. Escorregou para cima das mesas empilhadas, fazendo-as tombar como uma bola de boliche a embater num monte de pinos. Os pesados tampos de vidro tombaram por toda a parte, sendo que alguns rebolaram para os lados, mas outros caíram em cima dele. Os feitiços cor de laranja em chamas voavam agora com rapidez e de modo compacto, com o último deles a embater contra a parte de cima do palco, incendiando o baldaquino pendente de folhas de seda. Foi a última gota para a estrutura de bambu do palco, que desmoronou. Só evitei ser esmagada porque me agachei para me proteger debaixo de uma das últimas mesas que permaneciam de pé. Estava com medo de que o tampo de vidro não aguentasse, mas nenhuma das colunas maiores o atingiu, e as outras apenas chocalharam. Quando tornei a erguer o olhar, Pritkin tinha desaparecido. Pensei ter visto os brilhantes olhos verdes de Françoise por um instante, junto da entrada principal, mas depois perdi a imagem na fumaça negra que se espalhava pela discoteca destruída. No entanto, tive o vislumbre de outra cara conhecida. — Billy! A forma quase transparente de um cowboy tinha aparecido junto das portas principais. Ele viu-me quase no mesmo momento e uma expressão de alívio profundo assolou suas feições. Veio direito a mim. Eu estava prestes a perguntar-lhe onde tinha estado, mas ele enfiou-se por dentro da minha pele sem sequer dizer olá. Tudo o que obtive foi uma algaraviada histérica. Depois vislumbrei a luta principal e esqueci-me dele. Casanova atirou o mago que tinha estado a estrangular para cima de outros dois e depois me viu e gritou. Eu não conseguia ouvi-lo por cima do barulho, mas na verdade não era necessário – era óbvio qual era o problema. As Gréias tinham ido embora. Fiz um rápido levantamento mental e percebi de que, até a poucos minutos, Dino tinha sido a única que não me tinha salvado a vida. Énio tinha empatado os magos no bar de Casanova, Pefredo ajudara-me posteriormente na cozinha e Dino acabara de completar o trio. Tinham pagado as suas dívidas e agora eu estava por minha conta e risco. Casanova estava outra vez a gritar qualquer coisa, enquanto tentava segurar três magos ao mesmo tempo. Eu continuava a não conseguir ouvi-lo, mas li com facilidade a palavra nos lábios dele.


— Vai! Assenti com a cabeça. As Gréias eram responsabilidade minha, mas teriam de esperar pela vez delas. Eu não sabia bem se já podia transportar-me ou não, e não conseguia tirar nada de Billy. Comecei a engatinhar para sair dali, mas fui impedida por um pulso de ferro no meu pé. Pritkin abria caminho pelas mesas com uma mão e agarrava-se a mim com a outra. Droga! — Cassie! — virei-me de repente ao ouvir a voz conhecida e vi a melena encaracolada de Marlowe a projetar-se de debaixo dos despojos do palco. Não fazia ideia do que ainda estava ali a fazer. Havia fogo por todo o lado, e os vampiros têm aproximadamente o mesmo ponto de combustão de um líquido mais leve. Fez-me sinal para sair da frente e eu deitei-me no chão sem perguntar o porquê. Olhei para trás a tempo de ver Pritkin ser levantado do chão por uma mão invisível e ser atirado por cima de uma massa de mesas viradas ao contrário, perto do combate principal. Marlowe acenou-me para que fosse ter com ele, mas não havia como. Pedaços de seda verde a arder choviam em toda a volta do palco, criando um campo minado de fogo mágico. Era tão perigoso para mim como o fogo normal era para um vampiro; eu não podia correr esse risco. Olhei rapidamente em volta, mas não havia outras opções. O combate que decorria atrás de mim colocava a entrada principal fora de questão, a sala dos fundos era um beco sem saída e a saída lateral era um lençol de chamas, desde o local onde uma bola de fogo atingira a cortina de bambu, incendiando a cortina e metade da parede. Sem alternativa, fiz a única coisa que podia e tentei alcançar o meu poder. Desta vez veio prontamente, brotando das pontas dos meus dedos como se alguém tivesse aberto uma comporta. Quase zonza de alívio, tentei pensar no melhor lugar para ir. Foi então que Pritkin se lançou por cima da pilha de mesas, de mãos esticadas, e eu assusteime e transportei-me sem ter nenhum destino em mente. Só pensava em encontrar Myra. Fosse onde fosse que isso levava, era de certo melhor do que ficar por ali enquanto o Dante fazia jus ao seu nome.

***

Desta vez não houve uma aterrissagem dolorosa – apenas um obscurecimento gradual da cena ardente até desaparecer por completo, para ser lentamente substituída por uma rua muito escura. Passado um minuto, os meus olhos adaptaram-se o suficiente para distinguir um grande edifício com uma tabuleta que o anunciava como sendo o Lyceum Theatre. Não


sabia que horas eram – a rua estava deserta, mas tanto podia ser meia-noite como estar quase para amanhecer. — Achei que iria aparecer — disse Myra, atrás de mim. Virei-me, com a minha mão a sacolejar de modo automático ao ouvir aquela voz convencida e acriançada. Dois punhais saíram disparados na sua direção, mas ela limitou-se a ficar ali parada no meio da rua, despreocupada. Passada uma fração de segundo, percebi a razão, quando as minhas próprias armas vieram disparadas contra mim. Não me feriram, mas atingiram-me com força suficiente para me derrubarem e me fazerem deslizar pela rua imunda. Myra levantou a mão. Uma pulseira reluzente muito parecida com a minha balançava no seu pulso magro. Só que, onde a minha tinha punhais, esta tinha escudos minúsculos interligados. — Uma prenda de uns amigos novos. Para estarmos em igualdade de circunstâncias. Pus-me de pé com a ajuda das mãos. — Desde quando é que acredita em igualdade de circunstâncias? Ela sorriu. — Bem visto — depois o seu rosto mudou, quando olhou bem para mim. — Com que então, conseguiste completar o ritual. Parabéns. Infelizmente, o seu reinado está destinado a ser o mais curto da história. Eu também olhei bem para ela. Pela primeira vez, estava corpórea. Fazia sentido, tendo em conta que da última vez tinha sido atacada na forma de espírito. Não lhe fazia os olhos menos arrepiantes, concluí. — Responde-me uma coisa — disse eu, cansada. — Por que sempre Londres? Por que 1889? Começa a tornar-se entediante. — Este ano a convocatória vai ser em Londres — respondeu Myra, com doçura e simpatia. — É o encontro bianual do Senado Europeu. — Eu sei disso! — Ah, claro. Esqueço-me sempre de que foste criada na corte de um vampiro, não é verdade? Bem, nesse caso, talvez também já saiba disso. Regra geral, o Senado reúne-se em Paris, mas este ano viajarão para Londres para ajustar umas contas antigas. Estão com a impressão de que os crimes relatados nos jornais como sendo obra do Jack, o Estripador, foram na realidade cometidos por Drácula. Ele fugiu da versão deles de um manicômio pouco antes de terem começado, por isso parecia razoável. — O que isso tem a ver comigo ou com Mircea? — Myra pareceu muito satisfeita consigo mesma.


— Tudo. Mircea e aquela vampira que o Senado norte-americano enviou para ajudálo... — Augusta. — Sim. Eles provaram que os crimes eram obra de um humano ao capturarem o homem que se autointitulada de Jack. — E Jack foi castigado — eu tinha visto parte do castigo, em primeira mão. — Sim, mas parece que Jack começou a chacina como uma tentativa de impressionar Drácula, na esperança de ganhar um lugar no seu novo grupo. Por isso o Senado culpa Drácula pelo que aconteceu. — E querem vê-lo morto. — Até que enfim começa a entender! — Myra bateu palmas de modo aprovador. — Mircea conseguiu convencer o Cônsul europeu a conceder-lhe alguns dias para encontrar e encurralar o irmão antes que fossem tomadas medidas drásticas, mas nem todos concordaram com essa decisão. Parece que Drácula fez alguns inimigos no decurso dos anos. Tinha um pressentimento muito mau de que já tinha ouvido esta história. E não acabava bem para Drácula. Uns senadores de grande memória tinham-no linchado numa noite de nevoeiro em Londres. Esta noite. — Pretendem matá-lo — Myra riu. — Eles matam-no mesmo, faz parte daquela linha temporal que te preocupas tanto em proteger, Cassie. Só que desta vez, com uma ajudinha da minha parte, Mircea encontrou-o antes deles. E alguma coisa me diz que não vão hesitar em aniquilar também o seu vampiro, se ele se meter entre eles e a sua vingança. E ele assim faria. Mircea passara anos a organizar tudo para que eu me tornasse Pítia, de modo a salvar um dos irmãos. Não estava a vê-lo ficando de fora enquanto o outro era assassinado. — É simples, Cassie — disse Myra, de modo alegre. — Quer o cargo? Não há problema. Só tem de ser melhor do que eu. Ela desapareceu de repente e, no mesmo momento, fui atacada por trás. Embati de novo na estrada, desta vez de cara no chão. Mas não foi por isso que gritei. Decididamente, o géis continuava ali e não tinha mudado de ideias em relação a John Pritkin. Com base na picada de dor que saltou do meu corpo para o dele, eu apostava que o géis estava confundindo raiva com paixão. O mago era macho demais para gritar como uma menina, mas soltou-me muito rapidamente.


Virei-me e dei com ele deitado na calçada, com um ar aturdido. Não fez nenhuma tentativa para vir logo atrás de mim, mas isso não me deu grande confiança. Provavelmente estava apenas à espera de recuperar-se. Quando me transportei, ele devia estar próximo o suficiente para apanhar carona. Ótimo. — Não vou deixar que o faça — ofegou ele. — Seja qual for o preço a pagar! De repente senti-me grata pelo géis, porque ele estava com um ar verdadeiramente homicida. Mas por ele não poder tocar-me, não significava que eu estivesse a salvo. Ele ainda podia dar-me um tiro e não sentir rigorosamente nada. Decidi sair dali antes que isso lhe ocorresse. Estilhacei uma das janelas do teatro e contorci-me para entrar, ganhando, enquanto isso, um renovado respeito pelos ladrões. Fiz um corte na mão, rasguei o vestido e quase desloquei o ombro, mas consegui entrar antes que Pritkin pudesse vir atrás de mim. Infelizmente, não consegui fazê-lo em silêncio. — O que temos aqui? — a voz de Augusta soou no meu ouvido um segundo antes de eu ser arrebatada e estatelada contra a parede. Uma mãozinha de veias azuis segurou-me sem esforço. Compôs as suas saias azuis de lã em pregas perfeitas com uns poucos trejeitos do pulso. Tinham um desenho elaborado num entrançado preto a toda a volta da bainha, que condizia com os alamares e o broche negro na parte da frente do vestido. — Belo vestido — disse eu, com a voz enrouquecida. — Obrigada, o seu também — olhou-me de cima a baixo. — É dos Elementais, mas você... — apertou-me um pouco e a minha visão começou a ensombrar-se — Você não é. Não passei muito tempo discutindo alternativas. Augusta podia arrancar-me o pescoço com menos esforço do que eu preciso para partir um galho. Eu não podia combatê-la, mas podia usá-la. Pritkin seria um problema muito menor se a força de Augusta estivesse do meu lado. Eu não gostava de possessões; ficava a sentir-me esquisita e um bocadinho suja. O que não era surpreendente, visto que, por mais que eu pudesse justificá-las, eram uma violação. Tinha intenção de evitá-las no futuro, se fosse possível, mas não a troco da minha vida. A única dúvida era: poderia eu fazê-la? Já tinha possuído um mago das trevas, embora tivesse sido expulsa do seu corpo passados alguns minutos. E isso com Billy Joe a ajudar-me. Nunca tinha trazido Billy numa viagem, mas tinha a esperança tola de que ele pudesse ser um aliado útil. Contudo, de momento não me soava de grande utilidade. Ainda estava numa lástima atabalhoada e eu nem a atenção dele conseguia captar, quanto mais pedir ajuda. Mas se Myra conseguia, eu também conseguia. Por sorte, o conhecimento que Augusta tinha das sentinelas era de amadora: se ela conseguia proteger-se com mais do que um elemento, nunca vi sinais disso. Os seus escudos eram impressionantes – lajes altíssimas de aço rebitadas como o casco de um navio de guerra –, mas uma observação mais atenta revelava pontos tão enfraquecidos pela ferrugem que


eram quase transparentes. É o que se ganha quando não se mantém os escudos com uma pequena meditação diária. Se a proteção de Augusta fosse tão forte como parecia, ela poderia ter sido capaz de me expulsar antes de eu a possuir. Assim como foi, o meu fogo fez um buraco no metal dela com uma facilidade surpreendente. De repente, tudo ficou mais brilhante, mais nítido e mais próximo do que antes, e eu dei por mim a fitar os meus próprios olhos assustados. Pus uma mão na boca antes que Billy Joe pudesse fazer alarido, mas parece que foi a jogada errada, porque ele ficou doido. Finalmente arranjei coragem e dei uma palmada a mim própria. Tentei fazê-lo com pouca força, mas acho que calculei mal, porque os olhos de Billy Joe reviraram-se e, por um segundo, achei que ele ia desmaiar. — Sou eu — disse baixinho. Ele assentiu lentamente com a cabeça. Passado um momento, conseguiu pôr a funcionar os lábios emprestados. — Preciso de uma bebida — disse-me ele, num tom de voz baixo e trêmulo. — Preciso de uma maldita bebida de malte. — Está bem? — não parecia estar. Tinha o rosto branco baço e a voz a tremer. — Se vai ficar maldisposto, diz logo. Billy riu com um perturbador tom histérico. — Maldisposto? Sim, acho que se pode dizer que eu estava maldisposto. Fantasma, humano, fantasma, humano; ei, é tudo bom. Fitei-o com preocupação. — Não entendo... — O que há para entender? Eu morri, pronto! — Billy — fui dizendo, devagarinho —, já morreu há muito tempo. — Já morri há muito tempo — repetiu Billy, de modo trocista. — Eu morri hoje, Cass, caso não tenhas dado por isso! Um espetáculo em repetição, cortesia do Mundo das Fadas! Oh, Deus. O rosto enrugou-se e ele deixou-se cair no chão, a tremer. Abracei-o, percebendo finalmente porque é que Billy estava a pirar. Quando atravessámos o portal, o seu novo corpo rasgou-se. Eu sabia que era provável que isso acontecesse, mas não tinha pensado nas consequências. Ele estava sempre a possuir pessoas, inclusive a mim, e nunca pareceu


importar-se quando tinha de ir embora. Mas suponho que com o seu próprio corpo fosse diferente. Ele não tinha sido possuído; tinha estado vivo. E, quando atravessou o portal, na verdade, morreu de novo. Abracei-o com mais força, esquecendo-me a quem pertencia a força que eu tinha agora, mas soltei-o quando gemeu em protesto. — Dessa vez, quase não regressava, Cass — disse ele, com fraqueza. — Não é automático, sabe? — O quê? — A passagem para fantasma. Ninguém contabiliza, ou então, se o fazem, não me dizem, mas é raro como o diabo! E eu quase... Eu perdi-me... Não estava aqui, não estava ali e não conseguia ver nada. Só sentia um puxão a tentar levar-me dali e a única coisa que me segurava era o som da tua voz. E depois começaste a falar em ir embora, e foi então que descobri... — parou com um arquejo sufocado. — Billy... Lamento — parecia bastante inadequado, mas o que se diz a alguém que acabou de morrer pela segunda vez? Até a educação de Eugenie foi insuficiente. Agarrou-se a mim e eu não sabia que os meus braços eram assim tão fortes. — Nunca. Parta. Outra vez. Assenti com a cabeça, mas, no fundo, estava a passar por uma crise pouco menos intensa do que a de Billy Joe. Não podia largar Augusta, a menos que quisesse uma vampira mestre muito irritada a apontar-me uma arma, mas não podia estar toda a noite a fazer de babá a um Billy traumatizado enquanto Myra andava por ali à solta. Alguma coisa tinha de ceder. Começava a levantar-me, içando Billy comigo, quando alguém me agarrou pelos cabelos e me levou uma faca à garganta. Fiquei mesmo irritada. Os ouvidos de Augusta conseguiam detectar o som de ratazanas a correr pelas paredes do teatro, o fato de haver uma fuga no telhado e a discussão que um taxista estava a ter várias ruas acima com um cliente bêbedo. Então, por que não tinha ouvido ninguém a esgueirar-se para cima de mim? — Se tentar alguma coisa, te mato — disse Pritkin. Revirei os olhos. Claro! — O que vos ensinam na escola dos magos? — inquiri. — Para matares uma vampira mestra, tem de espetar-lhe uma estaca de madeira, não de metal, decepá-la, reduzir-lhe o corpo a cinzas e espalhá-las sobre um ribeiro de água corrente. Cortar a garganta só a deixaria irritada. Pritkin ignorou-me. — Esta noite vai ter de procurar outro lugar para se alimentar.


A garota vai comigo. — Qual garota? Billy estava sentado de costas para a bilheteira, de joelhos levantados, com um vestido vermelho tão grande que quase o engolia. Ergueu o olhar para mim e fez um ligeiro trejeito com a boca. — Ele refere-se a mim, Cass. Foi então que percebi. — Não sei se o géis funciona ou não quando estou nesta forma — disse eu a Pritkin. — Mas preferia que me largasse antes que descobríssemos da maneira mais difícil. Soltou-me tão depressa que eu tropecei. — Não vou permitir que o faça — disse ele, apontando-me uma caçadeira. — Isso também não me mata — informei-o, antes de lhe tirar a arma das mãos e de parti-la em duas. — Mas pode fazer-me um buraco feio — Billy franziu o cenho ao ver a arma destruída, e eu quase consegui vê-lo a reavaliar a situação. Decidi dar-lhe uma ajuda. — Escuta, agora eu sou a Pítia, quer algum de nós goste ou não. E, para sua informação, por mais defeitos que tenha, pelo menos não sou maluca. Que é muito mais do que se pode dizer da sua preciosa Myra. Pritkin parecia confuso e eu tinha de admitir que parecia mesmo. — Do que está falando? Eu não podia crer que ele estava a tentar fazer aquilo. — Você a querer como Pítia. Eu sempre soube dos seus planos, portanto pode tirar o ar incrédulo. — Eu preferiria não ver nenhuma das duas no cargo. Lady Phemonoe só podia estar maluca quando se meteu com você. — Então Marlowe estava certo! Você está mesmo trabalhando para o Círculo! Afinal de contas, aquela cena toda no Dante's tinha sido um subterfúgio — abanei a cabeça olhando para ele, em parte por incredulidade, em parte por admiração. — Sabe, é preciso ser mesmo muito maluco para se arriscar a esvair-se em sangue só para eu acreditar em você. Pritkin passou as mãos pelo cabelo com o ar de um homem que está a tentar não enroscá-las em volta do meu pescoço. — Não estou trabalhando para o Círculo — disse ele, devagar, como se estivesse a falar com uma criança de quatro anos. — E só tenho um plano, como você diz.


Olhei-o com desconfiança. — E qual é? — Que quem ocupar o cargo seja alguém com inteligência, capacidade e experiência! — respondeu com rispidez. — Myra é obviamente louca e, com base no que vi no Mundo das Fadas, tenho algumas dúvidas em relação a você. — E o que é que pensa que viu exatamente? Franziu o cenho. — Fizeste um acordo com o rei dos Elementais para ir buscar o Codex. — E depois? Você mesmo o disse: a maioria dos antídotos já foi descoberta. — Mas nem todos. — O que foi? Há algum feitiço misterioso que não quer que descubra? — só obtive um silêncio pétreo. Suspirei. — Deixa-me adivinhar. Não vais dizer-me. — Não precisas saber. Não vai dar aquele livro ao Rei. Haveremos de arranjar outra maneira de chegar ao seu vampiro. — Claro, porque nos saímos tão bem da última vez — nossa breve visita tinha deixado uma coisa bem clara: eu nunca haveria de sobreviver ao belo inferno conhecido como Mundo das Fadas o tempo suficiente para encontrar Tony sem a ajuda dos Elementais. E só havia uma maneira de obtê-la. Decidi tentar seguir o raciocínio daquele maluco, já que a única alternativa era a força – coisa que, com o vigor de Augusta, me assustava. — Não te parece que tentar me matar para me afastar de um livro foi um bocado radical? Pritkin parecia enojado. — Se eu quisesse ver-te morta, já estaria morta — disse ele, de modo incisivo. — Só quero meter juízo nessa tua cabeça. Aquele livro é perigoso. Não pode ser encontrado! — Vai ser encontrado; não tenho alternativa — os olhos de Pritkin, geralmente de um verde pálido e gélido, quase se tornaram esmeralda com a fúria. — Mas se me ajudar — apressei-me a acrescentar —, deixo-te ser o primeiro a espreitar. Retira aquilo que acha que é assim tão perigoso, dá-me o antídoto para o géis e depois entregamos o resto ao rei. Olhou para mim como se eu estivesse a falar com um marciano. — Não entende o que fez? Deste sua palavra aos Elementais, eles vão obrigar-te a cumpri-la. — Eu disse que daria o livro. Não fiz nenhuma promessa em relação ao conteúdo.


— E acha que esse argumento vai funcionar? — Sim — indagava-me mesmo em que mundo é que Pritkin andava a viver, porque de certo não era no sobrenatural. — Qualquer coisa que não seja referida de modo específico num contrato está aberta a interpretações. Se o rei não queria que rasgasse o livro, devia ter me dito. Pritkin olhou para mim com demora. — Uma das funções dos magos de guerra é proteger a Pítia a todo o custo — disse, por fim. — Mac acreditou em você, de outra forma não teria morrido por você. Mas você foi criada por um vampiro, por uma criatura sem qualquer espécie de limites morais e não tiveste nenhuma formação. Por que eu haveria de lutar por você? Que tipo de Pítia será? Era a grande questão, a mesma que eu colocava a mim mesma. Eu assumira o poder na esperança de quebrar o géis ou, pelo menos, de ganhar vantagem sobre Myra. Até agora, não tinha conseguido nem uma coisa nem outra. A verdade é que eu não sabia que tipo de Pítia iria ser. Mas de uma coisa eu não tinha dúvidas. — Melhor do que a Myra. — Então está me dando a escolha do mal menor? — Talvez não esteja se esforçar-me muito — disse eu, com franqueza. Precisava de Pritkin. Quase não sabia nada a cerca de magia em grande escala e nem sequer fazia ideia de por onde começar a procura do livro. Mas não me parecia que pudesse suportar outro Mac na minha consciência. — Se for esperto, mantém a discrição até isso terminar. Deixa-me travar as minhas próprias batalhas. Pode ter a sorte de eu e Myra nos matarmos uma à outra. — E por que não hei de ser eu a matar as duas na esperança de que a que vem a seguir seja melhor? Os olhos de Billy dilataram e eu apercebi-me de que, enquanto eu estava relativamente segurança no corpo de Augusta, ele continuava vulnerável no meu. — Não vem nenhuma a seguir — disse eu a Pritkin, de modo incisivo. — Se houvesse outra pretendente que conseguisse fazer um trabalho decente, eu já lhe teria dado a porcaria do poder! Mas as iniciadas estão todas sob o jugo do teu Círculo, no qual confio tanto como no Negro. Não vou entregar um poder capaz de destruir o mundo a alguém que possa ser manipulada, controlada ou corrompida! Pritkin olhou para mim com atenção. — Espera que eu acredite que iria abdicar do poder, assim sem mais nem menos, se existisse um receptáculo em condições para recebê-lo? Você nos arrastou para o Mundo das Fadas para completar o ritual. É claro que o quer.


— Para encontrar a farsante! — respirei fundo. Augusta não precisava disso, mas eu sim. — Fui para o Mundo das Fadas para apanhar Myra antes que ela me apanhasse a mim. Apanhar Tomas pelo caminho foi um acaso e completar o ritual foi uma tentativa de me manter viva. — Disse ao Mac que ia atrás do seu pai. — Disse. É o Tony que o tem, ou aquilo que resta dele, e eu quero-o de volta. Mas o objetivo principal foi sempre Myra. Tinha motivos para acreditar que ela estava com o Tony. Na época parecera-me que ia matar dois coelhos de uma cajadada só, mas devia ter pensado melhor. Quando é que a minha vida foi assim tão simples? Mas agora ela está aqui, a tentar matar Mircea. Se conseguir, ele não estará por perto para me proteger enquanto eu cresço e duvido que eu viva o suficiente para te chatear, a ti ou a outra pessoa qualquer. Se quer se ver livre de mim, esta é a sua grande oportunidade. — Por que está me dizendo isso? Eu podia ajudar Myra a destruir a você e ao seu vampiro. — Eu sei — e, para ser sincera, isso não me surpreenderia. Eu estava a apostar muito na confiança que Mac tinha no seu companheiro, uma confiança que podia muito bem ter sido confundida. Mas será mesmo uma aposta quando não se tem escolha? Eu tinha Myra e metade do Senado Europeu contra mim. E o único que estava do meu lado era um fantasma muito tenso num corpo demasiado vulnerável. Que diferença fazia mais um inimigo? Pritkin lançava-me mais um dos seus olhares furiosos patenteados. — O que acha que consegue fazer sozinha contra Myra e o Senado? Então ele tinha ouvido às escondidas a minha pequena conversa com Myra. Encolhi os ombros. — Possivelmente nada. Nesse caso, o seu problema está resolvido — baixei os olhos para Billy. — Fica bem um pouco sozinho? Ele encolheu os ombros. — Claro. Que diabo, se morrer mais algumas vezes, posso até começar a habituar-me. — Vou contigo — anunciou Pritkin. — Então está fazendo o quê? A optar pelo mal menor, afinal? — Por agora. Não era propriamente um apoio sonante, mas era o suficiente. — Está contratado.


í A rua ainda estava escura, até para os olhos de Augusta, mas eu descobri outras maneiras de ver. Por toda a estrada havia pessoas escondidas na noite – nas habitações, apressando-se pela rua ou reunidas em bares. Muitas delas eram amorfas, formas vestidas de escuro com a noite em pano de fundo, mas todas tinham corações que batiam e foram esses milhares de órgãos vivos e ritmados que me invocaram como o canto de uma sereia. Para lá da massa humana havia pontos mais escuros, poucas ruas atrás, mas senti um formigueiro na pele ao aperceber-me do seu poder. Vampiros. Recuei para não ver as feições de Augusta refletidas no vidro escuro. — Há imensos vampiros na zona — disse eu a Pritkin. — Talvez umas duas dúzias — tinha conseguido terminar a frase sem que a minha voz cedesse, mas as palmas das minhas mãos começavam a transpirar. Mesmo no corpo de Augusta, não havia maneira de eu contrariar esse fato e, apesar de ter todos aqueles brinquedos, não era provável que Pritkin se saísse muito melhor. — Quanto tempo demoram a chegar aqui? — foi demasiado direto para os meus nervos em franja. — Que diferença faz? — fiz um esforço para não lhe responder aos gritos. — Precisamos encontrar Mircea e esconder-nos... Depressa. É o único plano sensato. Pritkin saiu pela porta dos bastidores e desceu os degraus. Segui-o até à parte da frente do edifício, onde ele parou, olhando para cima e para baixo da estrada coberta de gelo.


— Faz-me a vontade — disse ele. — Caso tenha esquecido, o Senado não é o único problema — disse-lhe eu, baixinho o suficiente para ter esperança de que nenhum dos vampiros em trânsito se apercebesse. — Não posso deixar Myra por aí à solta... — Então não deixe. Enfrenta a farsante. Eu trato disto. — Você trata disso? — tinha pousado a mão num poste e só quando tentei retirá-la é que percebi que tinha enterrado os dedos quase por completo no ferro fundido. Retirei-os com cuidado e inclinei o poste contra um edifício para não cair. Enraivecer-me no corpo de uma vampira não era obviamente boa ideia. — Um cadáver não é lá grande aliado! — disse a Pritkin, com franqueza. — Alguns destes são membros do Senado. Duvido que consiga fazê-los sequer abrandar. Precisamos nos esconder. — Eles podiam encontrar-nos só pelo cheiro. Escondermo-nos não é solução. — E o suicídio é? Eu teria prosseguido, mas alguém me agarrou por trás. Outra vez. Por uma fração de segundo, pensei que fosse um vampiro, mas depois senti o bater do coração nas minhas costas e senti o cheiro de homem porco e a cerveja morta. Tentei soltar-me, mas o homem veio comigo. Dei o que pensei ter sido um leve puxão, quase não despendendo qualquer energia, e ele foi a voar pela rua e estatelou-se na pesada porta de vidro de um bar. Consegui ver o choque estampado no rosto, a meia dúzia de estilhaços de vidro que lhe trespassavam a pele, até mesmo seguir o rastro do arco de sangue no ar. O amigo dele, em quem eu nem sequer tinha reparado, deu um grito de raiva e correu para mim, de punho puxado atrás. Baixei-me e consegui subjugá-lo envolvendo seu pescoço com um braço, tirando-lhe o ar. Foi absurdamente fácil – os ossos do seu pescoço musculoso de operário pareciam quebradiços, como os de uma cria de ave e em vez da dificuldade de estar segurando-o, o desafio residia em não lhe partir nada por acidente. Nunca tinha pensado muito a cerca do caráter delicado dos humanos, sobretudo em relação ao homens que, na sua maioria, são muito mais altos do que eu. De repente, tornou-se bastante evidente o quão cautelosos os vampiros tinham de ser para não deixarem um rastro de corpos atrás deles. O homem estava fazendo o que provavelmente pensava ser uma tentativa violenta para se libertar, mas, para mim, era como segurar numa borboleta frágil pelas asas e tentar não a rasgar. Só um bocadinho de pressão para lhe tirar o ar, mas com cautela, com suavidade, senão a traqueia poderia ceder e esta criatura musculosa iria esfarelar-se como papel em minhas mãos. Por fim, ele ficou flácido e eu deitei-o no chão para ver se tinha pulso. Percebi que sim e dei um suspiro de alívio.


— Parece estar a sair-te bastante bem por sua conta — comentou Pritkin. — Contra humanos! Não são os humanos que andam a nos caçar. — Não, mas o princípio é o mesmo. Quando olharam para você, os dois homens só viram uma mulher fraca, quando deveriam ter visto uma predadora — fez-me um sorriso breve e melancólico. — Eu tenho muitas vezes essa mesma vantagem. — Não pode ganhar de todos, sejam predadores ou não! — O princípio é o mesmo — repetiu ele, arrancando do chão o pesado poste que eu tinha destruído, para depois o atirar com força de volta ao buraco. A conduta de gás debaixo da rua rompeu-se e incendiou-se com um som sibilante, lançando um jato brilhante em direção ao céu. Dei um salto para trás, com o terror instintivo de Augusta a percorrer-me. Mas um vampiro em quem eu nem sequer tinha reparado pegou fogo e foi a correr aos gritos ter com outro. Pritkin sorriu de modo perverso. — Nunca seja o que eles esperam. Desceu a rua a correr atrás dos vampiros em fuga, fazendo algazarra e produzindo a maior quantidade de ruído possível e os sombrios poços de poder na minha visão começaram a ficar da mesma maneira. Os vampiros não sabiam o que estava a passar-se, mas andavam à procura de uma luta e Pritkin parecia pronto a dá-la. E chamava-me de maluca. Voltei a correr para o teatro e encontrei Billy encolhido atrás da bilheteira. Acenei com a cabeça em sinal de aprovação. De momento não havia nenhum lugar seguro, mas era melhor do que estar comigo, ou com o maluco lá fora. Dediquei a minha atenção a encontrar Myra. Havia três pessoas no edifício e só uma era humana. Conseguia ouvir o bater do coração forte e regular, conseguia senti-lo no fundo da minha garganta como uma coisa densa e doce. Os vampiros não se preocupavam com trivialidades como ter ou não pulso, mas eu sentia o cheiro. E até a esta distância o nariz apurado de Augusta conseguia distinguir o cheiro fresco do pinheiro. Segui a fome de Augusta pelos bastidores, tentando concentrar-me na localização exata de Myra, mas aquilo parecia um covil de coelhos, com salas minúsculas e corredores sem saída, com adereços espetados por ali de modo aleatório. Saí às apalpadelas de uma floresta de árvores pintadas e dei por mim nas alas do palco. O teatro era escuro, o suficiente para que pouco fosse visível aos olhos de um humano. Consegui distinguir alguns adereços – uma cômoda, um par de bandeiras e algumas lanças rombas – que aguardavam o próximo espetáculo. No entanto, não havia sinal de atividade e o bater do coração humano continuava a ser uma boa saída. Finalmente reconheci o meu alvo numa sala nos bastidores, ao fundo de uma escadaria cheia de poeira e armaduras antigas. Mantive um olho atento aos cavaleiros danificados enquanto descia, mas nenhum deles se mexeu sequer. A primeira sala onde entrei estava organizada como uma sala de jantar, com uma grande mesa de madeira lustrosa que praticamente tresandava a cera de abelha. Era de


carvalho, para condizer com os painéis nas paredes e com as vigas no teto. Havia uma série de retratos espalhados por ali e uma grande lareira em pedra. Tinha um toque gótico que teria dado um bom pano de fundo para um casal de vampiros, só que lá não havia nenhum. As brasas ainda ardentes na lareira e o aparador com dois copos sujos revelaram-me que não tinham saído há muito tempo. Espreitei para a sala ao lado, atraída por um cheiro estranho e encontrei o humano. Não era Myra. Um cara alto e corpulento de cabelo escuro e, por mais estranho que pareça, barba ruiva, estava parado ao balcão com a camisa aberta sobre uma barriga branca e peluda. Tinha uma vela na mão e eu identifiquei o odor: carne humana cozinhada. Parecia estar a tentar derreter a pele do peito e do estômago, retalhos da qual estavam já vermelho lagosta flamejante. Partes que tinham recebido atenção suplementar começavam a borbulhar. Chorava em silêncio, com as lágrimas a escorrer pelas face e a encharcar a barba, mas não parou. Corri em frente e derrubei a vela, que rebolou pelo chão e se apagou, e ele olhou para ela com uma expressão vaga. Depois alcançou a prateleira atrás de si, tirou de lá outra e começava a acendê-la quando lhe dei outro safanão. Olhei-o nos olhos, mas não havia lá ninguém. Alguém o tinha sugestionado fortemente. Dei-lhe uma estalada, mas não pareceu servir de nada. Tentei prender os seus olhos nos meus, mas era difícil obrigá-lo a concentrar-se o suficiente para manter o olhar. Os vampiros têm uma grande dificuldade em influenciar pessoas que estão muito bêbedas, pedradas ou doidas, porque as suas cabeças não funcionam bem. Aparentemente, isso também vale para as que foram anteriormente sugestionadas. Por fim, consegui a atenção dele atirando-lhe as velas e os fósforos para um balde do lixo e recusando-me a permitir que os fosse buscar. Acordou o suficiente para reparar que eu estava ali e, ao reconhecer-me, estremeceu de dor. As coisas iriam piorar muito à medida que o cérebro dele desanuviasse, mas, de momento, sentia-se apenas desconfortável. — Onde está Myra? — perguntei. Fitou-me como se estivesse a ter dificuldades em recordar-se da língua inglesa. — Viste uma garota, mais baixa do que eu, com uns olhos estranhos... — O meu senhor e lorde Mircea estão num duelo — disse ele, com tristeza. Tentei repetir a pergunta, mas ele limitou-se a fitar-me. Só tinha um pensamento na cabeça e não era relativo Myra. — Onde é esse duelo? — não precisava encontrar Myra, se localizasse Mircea ela haveria de me encontrar. — No palco. — Acabei de vir de lá, não tem ninguém.


— Foram à sala do Lorde Drácula buscar armas — fez uma careta de dor, mas penso que foi mais pelo perigo que corria o seu mestre do que pelos seus ferimentos. Eu nunca tinha conhecido o infame irmão mais novo de Mircea e a ideia não me entusiasmava. Mas o que me preocupava mesmo era a luta. Metade do Senado andava atrás deles e eles tinham tempo para um duelo? — Por que vão lutar? — Se o meu amo vencer, sai em liberdade, o irmão jurou. Mas se lorde Mircea vencer, terá de regressar ao cativeiro, possivelmente para sempre! — o homenzarrão começou a chorar compulsivamente como se o coração se fosse partir. Suspirei. Já devia saber. É claro que Drácula não iria querer voltar para a prisão ou para o manicômio que o Senado tinha arranjado para os vampiros malucos, fosse ele qual fosse. Mas enquanto ele e Mircea digladiavam, Myra e os seus novos amigos iriam pôr fim à disputa matando-os aos dois. Virei a cara do homem volumoso para mim. — Por que estava se queimando? — Foi lorde Drácula que mandou, por eu não ter conseguido impedir Lorde Mircea de descobrir o seu paradeiro. Veio até aqui há uma hora e eu não tinha intenção de lhe dizer nada, mas depois comecei a contar tudo o que sabia. — Mircea consegue ser muito persuasivo. — Meu amo foi muito generoso em não acabar com a minha vida por causa de tal incompetência. Os seus olhos continham a luz de um verdadeiro crente. Nem sequer tentei convencêlo de que o seu deus era na verdade um monstro. — Como se chama? — Abraham Stoker, minha senhora. Tomo conta do teatro. Demorei a reagir. Muito bem, isso explicava muita coisa. — Já deve ser tarde. Vai para casa e procura ajuda médica para as suas queimaduras. Se alguém perguntar, estava verificando um molho aqui na cozinha e se queimou. Ele assentiu com a cabeça, mas parecia destroçado, por isso amplifiquei a sugestão de Augusta. Isso consumiu imensa energia e eu tive de resistir ao impulso de o puxar para mim para lhe dar uma dentada rápida. Estar no corpo de uma vampira tinha as suas desvantagens. Stoker já estava de saída, mas sacolejou de modo violento a meio caminho da porta e parou. Sua cabeça deu meia-volta para se virar para mim, apesar de o seu corpo permanecer voltado para frente. Mais um centímetro e partia o pescoço.


— Diga-me, se puder, que espécie de espírito é, para possuir com tanta facilidade uma vampira mestre? — Já te disse para ir para casa! — olhei-o com cautela. A voz dele soara estranha, mais grave e mais controlada. — E eu disse a ele para ficar. Parece que já sabemos quem é mais forte aqui, não é verdade? Estava a ter uma sensação muito má no âmago do meu estômago. — Quem é você? — Sou aquele a que viu golpes e murros do mundo e que exasperaram tanto que não me importa o que faço para irritar o mundo. Pestanejei. — O quê? — ele riu com um som sonoro e sensual, um som que eu estava bastante segura de que o tipo que eu vira a chorar por causa das velas nunca produziria. — Esqueceuse de mim assim tão depressa? Quando ainda ontem à noite nos conhecemos? — Ontem à noite? — demorei um segundo, mas fez-se luz. — É aquele espírito do baile! — Íncubo, por favor, minha senhora — estremeci de surpresa. Então era isso que ele era. Eu já tinha visto muitos íncubos, mas nunca fora de um hospedeiro. — Posso atrever-me a perguntar-lhe o que faz aqui? — Primeiro você — ele suspirou. — Preferiria não usar este corpo mais tempo do que o necessário. Está a sofrer um grande desconforto. Confia que o amo vá arruinar os meus planos mesmo sem saber quais são. — Quais planos? — só de olhar para ele, já me doía o pescoço. Desloquei-me, para que a cabeça de Stoker deixasse de estar naquele ângulo maluco. — Mas é sobre isso que temos de falar. — Escuta, eu não tenho mesmo tempo para conversa! — tentei passar por ele, mas o corpo volumoso estava a bloquear a porta. — Sai da frente — eu podia deslocá-lo, mesmo sem ter “me” alimentado recentemente, Augusta era mais forte do que um humano, mas não queria machucar Stoker. Já lhe chegava por uma noite.


— Não, não me parece. Se bem me lembro, fiz-lhe um grande favor no nosso último encontro. Espero que o retribua. — Retribuir como? — não me agradava o rumo que a conversa estava a tomar. — Necessito de um corpo para esta noite e este já se tornou inútil. Vou desabar a qualquer momento. Preciso de um corpo forte e o seu serve perfeitamente. Dei um passo atrás. — Não pode invadir vampiros. — Não, mas consegue ver-me mesmo sem corpo, como demonstrou no nosso primeiro encontro. Muito bem. Eu dar-lhe-ei indicações e você as seguirá e assim deixaremos este pobre cara regressar à sua cama fofa e à sua mulher rabugenta. — Não tenho tempo para te ajudar. Tenho a minha própria missão a cumprir. Sorriu com meiguice. — Sim. Deseja ajudar Lorde Mircea a aprisionar o seu infame irmão e a salvar mais uma vez a Europa dos seus métodos diabólicos, não é assim? — riu ao ver a minha expressão e de novo com aquele som arrepiante. — Vi-a com o Mircea no baile. Vejo a marca dele em você agora. Parou porque ambos o ouvimos ao mesmo tempo o aço a chocar em aço em algum lugar ali perto. Era só o que me faltava, que Drácula matasse Mircea antes que Myra tivesse chance! Empurrei-o, mas ele agarrou meu braço. — Diga-me: estou certo? É por isso que aqui está? Para lhe salvar a vida? Atirei-me a ele com violência, sem me importar no momento com o fato de a mão do pobre Stoker ter dado uma pancada na parede capaz de esmagar ossos. — Sim! Agora sai da frente! Passei por ele a correr, quase a voar em direção ao palco, e cheguei às alas em tempo recorde. Em cima do palco, duas figuras estavam envolvidas num combate de espadas como eu nunca tinha visto. O poder chiava e crepitava em redor deles, mais brilhante do que as faíscas que lhes saíam das espadas. Concentrei-me em Mircea, mas, se ele estava ferido, não dava aparentava. Vestia uma camisa branca aberta no pescoço, e não havia manchas de sangue à vista. O cabelo tinha se soltado do gancho habitual e seguia seus movimentos, chicoteando em torno da sua forma esguia à medida que ele fazia fluir movimentos complexos com uma graciosidade implacável. Pestanejei e desviei o olhar, obrigando-me a concentrar. Quando tornei a olhar, tive o primeiro vislumbre do seu lendário irmão.


Regra geral, sinto um arrepio na espinha quando vejo um vampiro, mas desta vez não senti nada. Não sabia bem se era por estar no corpo de Augusta ou por meu cérebro estar demasiado ocupado a bradar por concentração. Do vampiro emanava uma forte sensação de iniquidade, como eu nunca tinha sentido. Era como se o perigo na sala se tivesse unido numa neblina vermelha, como se houvesse sangue no ar. Condizia com o seu rosto branco de morto e os ardentes olhos verdes, da cor de esmeraldas a arder. Não condizia com os instintos de Augusta, que praticamente me imploravam para fugir. Os dois vampiros faziam fluir os movimentos do combate como se fosse poesia silenciosa, implacável. Mesmo com os sentidos de Augusta, sentia dificuldade em segui-los, tal era a rapidez dos golpes das lâminas. O barulho do choque do metal ecoava pelo teatro como disparos de metralhadora e cada vez que eu pestanejava eles se tinham afastado metros do lugar onde estavam. Agarrei-me às cortinas, observando com o estômago na garganta Mircea a atirar-se para o chão, mal conseguindo esquivar-se de um golpe selvático da espada do irmão. Deu uma rasteira com o seu sabre nos tornozelos do adversário, mas Drácula deu um salto, afastando-se com facilidade da lâmina. Quando aterrou no chão, Mircea estava novamente de pé e eles recomeçaram a luta. — “'Apaga-te, apaga-te breve vela! A vida não é mais do que uma sombra ambulante, um pobre ator, que se pavoneia e gesticula na sua hora em cima do palco para depois não mais ser ouvido” — eu estava tão atenta ao combate que só dei pela chegada de Stoker quando ele começou a fazer citações. — O que quer? — Já lhe expliquei, cara senhora... Sua ajuda. — Estou ocupada — disse, bruscamente. Drácula deu um golpe sobre a cabeça do irmão, com a espada a rasgar em sentido descendente e, se Mircea não se tivesse mexido mais depressa do que o olhar de Augusta, a luta teria terminado ali. — Pretende ficar a olhar enquanto eles se matam um ao outro? — a lâmina de Drácula tinha arranhado o braço esquerdo de Mircea, salpicando-lhe o ombro e o peito de vermelho, e não me parecia que fosse pela última vez. Mircea tinha fama de ser um duelista acima da média, mas a mim parecia-me que o seu irmão mais novo era o mais rápido dos dois. A diferença era mínima, uma fração de fração de segundo, talvez provocada pelo ferimento que Dimitri lhe infligira na noite anterior. Mas, mais cedo ou mais tarde, seria o suficiente. E, se Mircea perdesse, eu tinha certas dúvidas de que o destino de Vlad fosse a prisão. — Quem haveria de pensar — murmurou o íncubo devagar, um murmúrio sedoso ao meu ouvido — que o velhote tinha assim tanto sangue? As sombras deles tremelicavam no cenário, elevando-se contra o pano de fundo numa dança letal. Enquanto os observava, algo despertou em mim. Já tinha visto isto. Era a mesma


cena da minha visão – aquela que terminava com a morte horripilante de Mircea. Engoli em seco e virei-me para o íncubo. — Qual é o seu plano? — apontou para uma caixa com um aspecto que me era muito familiar por detrás das cortinas. Agarrei nela com uma sensação de profundo alívio. Andava a pensar no que haveria de fazer com Myra desde que deixara a minha caixa numa mochila no Mundo das Fadas. Ela podia estar a jogar a última cartada, mas a mim não me entusiasmava ter mais uma morte nas mãos. Mesmo que fosse a dela. — Qual é o seu interesse nisso? — perguntei, quando regressei com a armadilha. — O mesmo que o seu. Penso que temos muito em comum. Ambos adoramos criaturas perigosas. — É amante do Drácula? — parecia que Stoker tinha acertado numa coisa, afinal. Só que tinha colocado súcubos no romance. Um aceno de cabeça à moralidade do século XIX, supus. — Esperei muitos anos pela libertação do meu amo — disse o espírito —, mas nenhum de nós tirará proveito disso se ele for morto pouco depois. O Senado sabe que ele está por perto, passei a maior parte da noite a deixar pistas falsas, mas não resultarão por muito tempo. Eles estão a chegar. O meu amo não acredita que a prisão seja melhor do que a morte, mas eu não penso assim. De repente, as coisas começaram a fazer mais sentido. — Foi por isso que me ajudaste no baile. Querias Mircea vivo para que pudesse encurralar Drácula. O espírito piscou-me os olhos de Stoker. — Daqui a um ano ou daqui a uma década, arranjarei uma maneira de tornar a libertálo. Enquanto ele estiver vivo, há esperança. — Então quer encurralá-lo para o salvar? Ele não irá agradecer-te. — Talvez sim, talvez não. O que lhe interessa a si? Ele tinha alguma razão. E, com Drácula escondido em segurança, Mircea não teria razões para andar nesta armadilha mortífera. Estendi a caixa. — Muito bem. Então diz-me como funciona esta coisa. Passados dois minutos, eu andava por detrás do cenário, com a caixa no bolso e a dúvida na mente. Se o íncubo estivesse a brincar comigo, eu estava metida numa enrascada; caso contrário, continuava metida numa enrascada, mas pelo menos teria um problema resolvido. É claro que eu já deveria saber – nunca resolvo uma confusão antes de me surgir uma nova. Desta vez não foi exceção. Myra apareceu tão perto da luta que podia ter sido


trespassada se os dois adversários não se tivessem separado naquele preciso momento, recuando num impasse. Drácula fez qualquer coisa que obrigou Mircea a dar um passo em falso – foi tão rápido que eu nem vi – e virou-se de repente para enfrentar a nova ameaça. Mas antes que ele conseguisse espetar-lhe a espada, uma forma escura precipitou-se das vigas lá no alto e teria aterrado em cima dele como uma bigorna se os seus reflexos não fossem tão apurados. — Pritkin! — ele me viu. — Eles estão chegando! — Oh, merda. Olhei em volta, mas não vi hordas de vampiros. Mas Pritkin estava com todo o seu arsenal de fora e os escudos erguidos, coisa que não fazia de ânimo leve. Finalmente tinha a oportunidade de ver o trabalho de Mac em ação. A espada que golpeava e dançava em redor da cabeça do mago tinha a mesma forma da que eu tinha visto Mac a entalhar arduamente na pele de Pritkin. Mas era maior – facilmente teria o meu tamanho – e era tão robusta e brilhante como uma arma verdadeira. E parecia dar um bom golpe. Um ataque a Drácula projetou-o quase três metros para trás e, se ele não se tivesse desviado da lâmina, esta tê-lo-ia rachado ao meio. De repente, Drácula e Mircea estavam a lutar lado a lado, esquecidos da sua própria contenda à luz da nova ameaça. Por sorte, os dois irmãos estavam tão ocupados em concentrar-se no mago e no seu arsenal de armas voadoras que nem repararam em mim. Infelizmente, também se esqueceram de Myra, que se desviara da luta e estava com as mãos cerradas, como se estivesse a segurar em alguma coisa. Alcancei-a no momento em que lançou a esfera que tinha na mão esquerda e senti o efeito a repercutir-se em mim como uma onda de maré. Oh, que alegria. A pequena Myra tinha arranjado uma bomba de nulos. Caímos no emaranhado das saias volumosas de Augusta, com Myra aos gritos e eu a dizer palavrões. Afinal, o objeto que ela tinha na outra mão era mais uma esfera, de um preto baço e do tamanho de uma bola de basebol. Não a reconheci, mas se era mágica, não funcionava naquele momento, pelo que a ignorei. Myra cravou-me as unhas pela cara abaixo, o que quase resultou no facto de Augusta atravessar a eternidade com uma pala no olho um pouco fora de moda. Virei a cabeça no último instante, evitando o pior, mas os arranhões não deixavam de doer muito. — Minha amiga — disse-lhe eu, piscando os olhos para tirar o sangue da vista — você não vai querer meter-se comigo hoje. Os olhos dela dilataram e a sua expressão tornou-se assassina. — Você! — Myra pareceu não gostar da ideia de eu ter conseguido apropriar-me de um corpo mais forte, já que se lançou à minha garganta com as mãos estendidas e enroladas


em garras. Consegui lutar para evitar as mãos dela com um mínimo de danos para as duas, mas tudo o que recebi em troca foi um grunhido e um pontapé que me apanhou no queixo. Dei-lhe uma estalada com força suficiente para sua cabeça ressaltar para trás e os seus olhos perderem a focagem por breves instantes, fazendo-me ganhar uns segundos para ver como estava a luta. A espada mágica tinha desaparecido e algumas das facas de Pritkin estavam no chão, depois de perderem a animação devido ao efeito dos nulos. Os vampiros tinham lidado com as outras permitindo-lhes simplesmente que se cravassem tão fundo na sua carne a ponto de não conseguirem tornar a sair. Os dois estavam muito ensanguentados, mas haveriam de sobreviver. Eu tinha menos certeza em relação a Pritkin. Tinha o revólver de fora, mas as balas de aço não iriam fazer grande coisa contra vampiros ao nível de mestre, mesmo partindo do princípio de que estavam ligados. Billy retirou-se do palco, dentro do meu corpo mas com o seu habitual ar de superioridade. Estava a olhar para cima, tal como Myra e ela estava a rir. Depois de um olhar de relance, percebi porquê – de repente, as vigas ficaram repletas de vampiros. Brotavam do telhado, das janelas, das portas... Meu Deus, deviam ser uns cem. Fitei-os pasmada e estupefata. A voz de Augusta na minha cabeça dizia-me o que eu já sabia. Estávamos ferrados. Um vampiro deixou-se cair à minha frente, descendo os três pisos desde as vigas sem sequer pôr um pé em falso ao aterrar. Antes que eu conseguisse olhar bem para ele, Billy levou a mão ao bolso e arremessou-nos algo. Vi um vislumbre dourado quando uma forma minúscula arqueou no ar e depois se transformou. A águia de Mac precipitou-se num belo mergulho, com as penas cinzentas a formarem um borrão no teatro escuro, mas com os olhos reluzentes tão brilhantes como sempre e, de repente, o vampiro desapareceu. Um grito, um baque e ele aterrou de novo à minha frente, desta vez faltando-lhe um bom bocado da garganta. Era mestre – tinha sobrevivido –, mas não ia envolver-se em nenhuma luta nos próximos minutos. Os vampiros atacaram em enxame, invadindo o palco e Billy lançou as sentinelas restantes ao ar num arco reluzente. Os vampiros foram atacados por uma vaga de animais salivantes, sibilantes e uivantes. Um tornado em miniatura aniquilou meia dúzia, destruindo uma viga, atirando com corpos para toda a parte antes de se desvanecer. Uma serpente do tamanho de uma anaconda deixou-se cair em torno do pescoço de outro vampiro, enrolando os anéis à volta dos olhos, fazendo-o cambalear às cegas para fora do palco e para dentro do poço da orquestra. Um lobo enorme saltou para cima de um deles, rosnando e arrancando-lhe enormes pedaços do tronco, enquanto uma aranha do tamanho de um Volkswagen enrolava outro em fio de seda, pendurando-o nas vigas com um ar concentrado e satisfeito. Myra chamou-me a atenção de volta à terra quando tentou espetar-me uma estaca. Por sorte, Augusta gostava dos ossos de baleia – e muitos – no corpete. Acabei com uma costela machucada e Myra com uma estaca quebrada. Arranquei-a de sua mão. — Eu já sou a Pítia! Não há como mudar isso! — Myra riu.


— Já matei uma Pítia — disse ela, de modo maléfico. — O que é uma mais? — Matou Agnes? — com a surpresa, quase a larguei. Não que me surpreendesse que ela fosse capaz disso, mas e a proibição? — Então por que anda atrás de mim? Mesmo que eu morra, nunca será a Pítia! — Se for esperta, há meios de contornar quase todos os problemas — olhou de relance para os oponentes. — Veremos o que não pode ser mudado! A outra bola ficara presa nas minhas saias, mas um pontapé dela fê-la começar a rebolar lentamente pelo chão em direção à luta. Consegui por fim segurá-la ao agarrar-lhe uma mão cheia de cabelo, mas embora devesse ter doído, ela sorria, com os olhos a seguirem a orbe preta como se esta contivesse o segredo para todos os seus sonhos. Tendo em conta que os sonhos dela envolviam caos e morte, e que provavelmente teria sido o seu bom amigo Rasputine a arranjar-lhe aquela coisa, concluí que seria muito mau se a bola conseguisse atravessar o palco. Era tal e qual a minha visão: Mircea coberto de sangue, a lutar pela vida e alguém a lançar uma arma a partir das sombras. Eu sabia o que se seguia, mas com Myra a combater-me constantemente, não conseguia alcançar a bola a tempo de a travar. Deixei cair Myra no chão e fui a correr atrás da sua pequena engenhoca. Ainda não tinha dado dois passos quando ela me placou, e foi como tentar escapulir de um polvo enfurecido, para onde quer que eu me virasse, ela parecia estar lá primeiro. Numa situação normal, Augusta teria sido capaz de a meter debaixo de um braço e fugir levando-a consigo, ou simplesmente de a deixar inconsciente. Mas a primeira ideia iria atrasar-me e a segunda estava fora de questão, porque eu não conhecia a força de Augusta suficientemente bem para correr esse risco. Meio a andar, meio a engatinhar, fui me deslocando lentamente em direção à bola, mas estava demorando tempo demais. Tive um vislumbre de um clarão de azul pelo canto do olho e não hesitei. — Ela vai destruir o teatro! — gritei, apontando para Myra. Myra olhou para mim como se eu fosse louca, mas os fantasmas do teatro ouviram-me na perfeição. O rosto da mulher já se tinha contorcido num esgar maléfico, ao observar a confusão que estava a ser feita no seu amado palco e agora já tinha alguém a quem culpar. Arremessou a cabeça decepada, que de repente aparentava estar muito menos alegre, diretamente contra Myra. Quando se fundiram, Myra deu um guincho e começou com convulsões. Dei-lhe um encontrão para a afastar de mim no momento em que a mulher se juntou à sua companheira minúscula. Começou a levantar-se um redemoinho que me impossibilitou de ver mais do que um tornado lancinante de branco e azul. Isto não era um mero assalto – os fantasmas tinham obviamente lançado todos os avisos que queriam e tinham colocado mãos à obra. Uma pessoa viva deveria ser mais forte do que eles, mas eram dois contra um e eles estavam num terreno que contivera gerações de corpos dos seus antepassados. Para um fantasma, isso é como um pacote de energia


adicional, algo que Myra deveria ter percebido. Ela gritou quando se lançaram de novo contra ela, meio assustada e meio enraivecida, e desapareceu. Lancei-me para a bola, mas um vampiro meteu-se à minha frente. Atirei-lhe com a estaca de Myra, mais como manobra de diversão do que outra coisa, sendo esse o meu objetivo. Aparentemente, o de Augusta era melhor, porque estabeleceu uma ligação. Um Stoker muito pálido e de aspecto abalado saiu vacilante das alas, cambaleando em direção à bola com a rapidez que as suas pernas trêmulas lhe permitiam. Não foi rapidez suficiente. A pequena esfera tinha alcançado a luta e rolava por debaixo dos pés dos dois oponentes, que agora combatiam contra um círculo de membros do Senado. Estava a ser empurrada por ali à medida que eles se deslocavam e tentavam arranjar posição, indo primeiro numa direção e depois na outra. A expressão de terror abjeto no rosto de Stoker foi suficiente para me fazer correr a toda a velocidade atrás dela. Cheguei mesmo a tempo de ser atingida na cara por um saco de areia numa corda que tinha caído das vigas. Era um de quatro que estavam a balançar, dos quais a maioria dos vampiros se esquivava com facilidade, exceto aquela que não tinha estado a prestar atenção. Devia pesar mais de vinte quilos e ganhara muito impulso ao desferir um arco. Quando dei por isso, não havia tempo para fazer mais nada senão levar com ele. Fui derrubada e deslizei vários metros de costas. — Deslocador! — Stoker deixara-se cair sobre o palco, e, infelizmente, tinha sido de barriga para baixo. Gritou, mas sempre a mesma palavra estranha. Tornei a pôr-me de pé quando os duelistas fizeram uma pausa, baixando os olhos para a pequena esfera aos seus pés. Toda a gente ficou paralisada por uma fração de segundo. Foi então que os senadores se desvaneceram, fluindo para fora do teatro tão depressa como tinham entrado, Mircea agarrou em Billy e saltou diretamente para as vigas e Drácula correu na nossa direção depois de pegar Stoker. Pritkin pôs-me um braço à volta da cintura e deu um salto para fora do palco. Aterramos no poço da orquestra e, por nos ter feito rebolar no último instante, foi ele que absorveu a maior parte do impacto. Ficou desmaiado e eu fiquei a bater os dentes, e, logo a seguir, uma onda de poder disparou sobre as nossas cabeças, vinda do nível do palco. A bomba deve ter encontrado algo a que se ligar, talvez alguns dos vampiros caídos. Se assim foi, não me parecia que voltassem a levantar-se. O impacto não me pareceu ser o de uma bomba de nulos. Foi mais sombrio e quase gordurento, e nunca poderia ser confundido com uma arma de defesa. Levantei a cabeça e descobri que estava quase cara a cara com Drácula. Parecia estranhamente agradado por me ver; depois, pus-me a fitar o cabo da faca que se projetava do meu peito, mesmo entre a terceira e a quarta costela. Doía, mas não como seria de esperar. Não havia uma grande dor cauterizante, e o sangue era muito pouco. Podia ser porque Augusta não se tinha alimentado recentemente ou porque o sacana tinha falhado o coração dela por uma coisa mínima. Vlad preparava-se para lhe cortar a cabeça, e eu não


podia imaginar porquê. Talvez por ela estar a ajudar Mircea? Talvez por ele ser doido? Quem é que sabia? Mas ele estava a demorar o seu tempo a desembainhar a faca comprida que tinha no flanco. A que tinha usado contra mim era de Pritkin – devia tê-la retirado da sua própria carne –, mas esta parecia uma arma antiga de família, com um cabo pesado e entalhado e um gume delicado e polido. Era uma pena não vir a ter chance de a usar. — Billy, vai ter companhia! — meu grito ecoou das paredes do teatro. — Anda aqui para baixo. — Causaste-me muitos problemas — dizia-me Drácula enquanto o meu corpo se dirigia a nós atravessando o palco. — Vou gostar disto. — Duvido — disse eu e transportei-me. Passada uma fração de segundo muito confusa, acabei quase a correr para fora do palco. Billy gritou na minha cabeça e eu parei, equilibrando-me à beirinha. Fiquei com uma vista privilegiada sobre Drácula a travar conhecimento com a membro do Senado Augusta. Devia tê-la decapitado sem tanto alarido quando teve oportunidade. Assim, ela teve o maior prazer em fazer-lhe uma demonstração de como exatamente tinha entrado para o Senado. O que lhe faltava em técnicas de combate era compensado em implacabilidade e grande sentido prático. Arrancou a faca de Pritkin do peito, ignorando o som agudo e carnudo que produziu, e espetou-a em Drácula enquanto ele ainda exultava com a sua matança. Ao contrário dele, ela não falhou. Vi o choque no rosto dele quando o coração foi trespassado e ouvi o som de metal a rachar madeira quando a faca embateu no chão. Cravou-a fundo o suficiente para o encurralar como um inseto num alfinete, depois arrancou o braço de uma das cadeiras da primeira fila ali perto, usando a relíquia dele para entalhar a aresta numa bela ponta denticulada. A arma de metal não o mataria, embora não parecesse estar a fazer-lhe bem nenhum, mas a estaca sim. Augusta olhou para cima de relance, como se estivesse à espera que eu interviesse, mas eu limitei-me a olhar para ela. Já tinha salvado um dos irmãos de Mircea; não lhe devia dois. O braço de Augusta desferiu um golpe para baixo, quase demasiado rápido para se ver. Mas a estaca improvisada apenas atingiu o soalho do teatro, estabelecendo uma ligação num safanão entorpecedor que ecoou com sonoridade no espaço vazio. Drácula simplesmente já não estava ali. Nem eu nem Augusta compreendemos, mas depois vi Stoker agarrado a uma caixinha preta. Fez-me um ligeiro sorriso, depois escorregou para o lado e desfaleceu. O íncubo ergueu-se do seu peito, com o ar mais arrogante que um espírito sem feições pode ter. Augusta agarrou a caixa, mas hesitou quando viu o modo como o rosto do espírito se alterou. Olhou de relance para a cara demoníaca e depois para mim, mais uma vez demonstrando grande sentido prático. Deixou-a cair e fugiu. Olhei em volta mas não havia vampiros à vista. Por mais estranho que pareça, à parte o braço da cadeira e algumas manchas de sangue no palco, parecia que nada tinha acontecido no teatro. Ainda assim, faltava qualquer coisa.


— Onde estão as sentinelas? — perguntei a Billy. Ele saiu de mim lentamente, como se estivesse relutante em deixar o abrigo do meu corpo. Espreitou em volta, mas não havia sinal dos fantasmas do teatro. Provavelmente estavam a recuperar da drenagem de energia do que tinham feito a Myra, fosse lá o que fosse. — Destruídos, o deslocador acabou com eles. — Foram-se? Todos? — De qualquer maneira, não teriam durado muito, Cass. Não eram sentinelas ofensivas. Foram concebidas para atuarem num corpo de modo defensivo, como proteção, não como algum tipo de arma. O que viu foi sua autodestruição — pensei na águia a fazer um último mergulho e senti um aperto na garganta. — Cassie! — a voz de Billy foi como uma estalada. — Não faça isso, agora não! Não temos sentinelas e os vampiros vão voltar a qualquer momento. Temos de ir embora. Procurei por Myra, mas sem os sentidos de Augusta, era difícil. Nunca acreditei que os fantasmas a tivessem matado. Por um lado, seria preciso muito mais do que um fantasma, ou até um e meio, para drenar um humano saudável. Por outro lado, não tenho essa sorte. Por instantes, pus a hipótese de tentar voltar atrás no tempo, para a apanhar antes de ela fazer sua saída grandiosa, mas a presença daquela outra bomba fez-me hesitar. Na minha visão, já tinha visto o que um deslocador podia fazer; não queria viver a experiência em primeira mão. Deslizei para fora do palco com menos graciosidade que a de um morto-vivo de Augusta e peguei a caixa preta. Não pesava mais do que antes. Abanei-a com dúvidas, mas o espírito limitou-se a sorrir. Parecia muito estranho com olhos raiados de sangue e presas. — Ele está lá dentro, garanto-lhe. — E agora? — perguntei, quando as suas feições regressaram a uma expressão vaga e benevolente. — Eu espero — disse ele, com muito mais serenidade do que eu sentiria se estivesse na sua posição. Ainda assim, se fosse imortal, acho que a perspectiva de um atraso de umas décadas não me perturbaria muito. As pestanas de Pritkin adejavam. — Myra se foi — disse eu, antes que ele perguntasse. Assentiu com a cabeça mas não disse nada. Olhei para trás, para o meu aliado nebuloso. — Viu Mircea? — partia do princípio de que ele tinha sobrevivido, já que a sequência de eventos da visão tinha sido interrompida, mas tinha de ter certeza. — Acredito que nos acompanhe — começou a esmorecer e eu estendi a mão para o travar.


— Obrigada pela ajuda. Sei que não o fizeste por mim, mas... Bem, seja como for — de repente, apercebi-me de uma coisa. — Nem sequer sei teu nome. Eu sou Cassie Palmer. Flutuou para uma luz cor-de-rosa. — São tão poucas as pessoas que se dão ao trabalho de perguntar — disse ele, com uma voz contente. — Já usei muitos nomes no decorrer dos séculos. Varia, dependendo do sexo e cultura do corpo que estou a habitar. Em tempos fui Aisling, na Irlanda, Sapna, na Índia, Amets, na França. Chama-me o que quiser, Cassie — corou com um tom mais escuro, quase rosa, o que suponho que fosse bom sinal porque ele começou a citar Shakespeare de novo. — “Quando haveremos de nos encontrar de novo os três, em trovões, relâmpagos ou chuva? Quando o tumulto terminar, quando a batalha for perdida e ganha” — começou outra vez a desvanecer-se, e desta vez deixei que o fizesse. Pritkin agarrou-se à parte lateral do poço da orquestra e içou-se para o palco. Espreitou para o lado, estendendo uma mão, mas eu ignorei-o. Tinha algo a preocupar-me. Tinha a sensação de que me tinham dado a peça de um quebra-cabeça; só que eu não sabia o que era nem onde encaixava. — Está ferida? — a voz de Pritkin fluiu até mim. — Não — acabei por lhe pegar a mão e gatinhei de volta ao palco. Quase no momento em que o fiz, uns guinchos histéricos brotaram do poço atrás de mim. Stoker acordara e, sem íncubo para o contrariar, os seus ferimentos atingiram-no em pleno todos ao mesmo tempo. As queimaduras são dolorosas, e queimaduras tão graves como as dele eram de certo lancinantes. Pritkin saltou de volta para o buraco, mas os gritos comoventes não pararam. Estava prestes a segui-lo quando uma caixa preta que balançava à frente do meu rosto me preencheu subitamente a visão. Uma voz grave e cheia ronronou no meu ouvido. — Boa noite, docinho.


í Não respondi, aturdida pela imensa onda de alívio que me percorreu ao ouvir aquela voz viva e de saúde. Controlei as minhas expressões, à espera que o géis desse sinal, mas nada aconteceu. Houve um caloroso ímpeto de prazer, um alegre entusiasmo a zunir-me pela pele só por estar perto dele, mas nada extremo. Tinha me esquecido – nesta época, a coisa odiosa ainda era novinha em folha. Ainda não tinha tempo de lhe crescerem dentes. Mas haviam de crescer. Dos grandes. Apanhei a caixa. Era igualzinha a minha. — O que é isso? Uns olhos escuros encontraram os meus, brilhando com malícia. — Proponho uma troca. Stoker, enlouquecido pela dor, saiu de repente do poço com esforço e encaminhou-se para a coxia central. Pritkin foi atrás dele, não posso imaginar porquê. Talvez fosse para que Mircea lhe apagasse a memória, embora isso parecesse desnecessário. Quando ele escreveu uma versão confusa de tudo anos mais tarde, vendeu-a como se fosse ficção. — Despacha-te — gritei, e Pritkin acenou com um braço antes de desaparecer pelas portas que iam dar ao átrio. Mircea sorriu, num dos seus melhores esforços, apesar de estar coberto de sangue. — Não está interessada em prosseguir com a contenda com a Maria-rapaz que aqui estava antes?


— O quê? — fitei a caixa por um momento, sem perceber. Depois interiorizei o que ele tinha dito. Não. De maneira nenhuma. Tinha me esforçado tanto para encontrar Myra e agora ela estava a ser posta no meu colo? Ou, para ser mais exata, debaixo do meu nariz? Era bizarro. — A armadilha era para o meu irmão — disse Mircea. — Mas quando vi que ele já tinha sido capturado, decidi usá-la para outros propósitos. A jovem mulher... Cometeu o erro de correr para a varanda para observar os efeitos do seu mecanismo. Foi lá que a encontrei. Colocou a caixa de Myra sobre o palco e pousou uma mão sobre a de Drácula. — Os senadores hão de voltar — disse eu, incapaz de desviar os olhos do pequeno recipiente preto que aprisionava minha rival. Por algum motivo, tinha os ouvidos a tinir. — Vão matá-lo. — Matar quem? — Mircea estava curioso. — Não pode estar se referindo ao meu irmão. Ele teve uma morte trágica na explosão. — Vão sentir o cheiro dele. — Não aqui dentro — Mircea falava como se soubesse. E a verdade é que não iriam procurá-lo dentro da caixa. Poderiam arriscar-se à guerra por causa do próprio Drácula, mas por causa de uma suspeita? Não me parecia. — Por que chora? — perguntou de repente, com a mão na minha face. Com o polegar, limpou uma lágrima que eu não me lembrava de ter derramado. Por mais ténue que tivesse sido o contato, acordou o géis. Prendi a respiração e os olhos de Mircea dilataram-se. Cheguei-me para trás. — Por favor... Não — ao contrário do que acontecia no meu próprio tempo, não houve dor física devido ao afastamento. Mas o preço emocional continuava lá, e era alto. Mircea esperou, mas eu não lhe dei explicações. Para minha surpresa, deixou-se ficar. — A menos que eu esteja enganado, você venceu — foi o seu único comentário. — A vitória costuma ser motivo para sorrisos, não para lágrimas. — A vitória teve um preço muito elevado. Demasiado elevado. — Acontece muitas vezes — algo se mexeu no meu braço e eu dei um salto. Olhei para baixo e vi um pequeno lagarto verde no meu antebraço, a tremer de medo. Por um segundo, fitou-me através de uns grandes olhos pretos, e depois foi a correr esconder-se atrás do meu cotovelo. Mircea riu. — De onde é que isso apareceu? — era um dos de Mac; reconheci-o. — Deve ter se escondido, Cass — murmurou Billy. — Suponho que se tenha atracado a mim quando lancei os outros. Parece que afinal sempre salvamos alguma coisa — a cauda


fez-me cócegas enquanto me subia pela parte de dentro do braço, mas eu deixei-o em paz. Há muito tempo que tinha aprendido que uma coisa, por muito pequena que fosse, era melhor do que nada. Pritkin abriu com estrondo as portas do teatro, arrastando para dentro a estrutura de mais de um metro e oitenta de Stoker e eu agarrei a caixa de Myra. Mircea pegou aquela que continha o seu irmão e eu não reclamei. Tanto quanto eu sabia, tinha sido assim que tudo acontecera. Talvez Mircea tivesse levado o irmão para casa em segredo, deixando todos a acreditar que o linchamento tinha decorrido como planejado. Fosse como fosse, eu não teria vencido uma batalha e Pritkin estava demasiado perto para correr esse risco. Ele tinha dito que não queria Myra como Pítia – e, depois do que ela tinha acabado de aprontar, depreendi que estivesse a falar a sério, mesmo que antes não estivesse. Mas mesmo assim não confiava nele. Havia demasiadas perguntas por responder acerca do Mago Pritkin. Enfiei Myra num bolso das saias volumosas de Françoise, bem longe da vista. Mircea viu, mas não disse nada. Foi até à beira do palco e tirou o corpo flácido de Stoker de Pritkin, içando-o do poço como se não pesasse nada. — Mais uma coisa — disse ele, depois de deitar Stoker sobre o palco. Tirou uma coisa do casaco e fê-la deslizar pelo meu pé. — Meu sapato — brilhou com toda a glória que um saldo de 14,99 dólares poderia esperar alcançar. — Deixaste-o cair no nosso primeiro encontro, na pressa de ir embora. Alguma coisa me disse que poderia vir a ter a chance de devolvê-lo — os olhos dele encontraram os meus e o sorriso abriu-se perigosamente. — Esse é um belo vestido, mas devo dizer que preferia a sua outra indumentária. Ou a falta dela. Fiz um sorriso forçado e descalcei o sapato. Com a minha vida, precisava de botas de combate, não de saltos. Além disso, esta Cinderela tinha de lidar com o Círculo, o Senado e os Elementais das Trevas. Não iria viver feliz para sempre nos tempos mais próximos. Entreguei-lhe, com o cuidado de evitar o contato físico. — Fica com ele. Olhou para mim de modo inquiridor. — Que faria eu com tal coisa? Encolhi os ombros. — Nunca se sabe. Mircea analisou-me o rosto por um momento, depois se mexeu como se fosse pegarme na mão. Repeli-a, fazendo-o formar uma linha enrugada na testa.


— Posso depreender que vamos voltar a encontrar-nos? Hesitei. Ele iria encontrar-me e cometer o erro que haveria de nos conduzir a isto. Se eu iria vê-lo ou não no meu futuro, isso já era outra conversa. Se eu não quebrasse o géis, nunca poderia correr esse risco, e essa ideia contorcia-me as entranhas num nó apertado. Estava tão tentada a avisá-lo para não lançar o géis que tive de morder a bochecha para ficar calada. Mas, por mais que eu a detestasse, a maldita coisa tinha tido um papel importante no meu percurso. Tinha me protegido de avanços indesejáveis na adolescência, ajudado Mircea a encontrar-me antes de Tony na idade adulta, e convencera-o a libertar-me na câmara do Senado. Se eu mudasse essa única coisa, como iria ser a minha vida? Eu não sabia. Por fim, decidi-me por uma interpretação literal. — Acho que é seguro dizê-lo. Mircea assentiu com a cabeça, pegou em Stoker e fez uma vénia. De alguma maneira conseguiu torná-la graciosa, apesar de ter um homem de cento e treze quilos pendurado num ombro. — Estou desejoso, bruxinha. — Não sou bruxa. Sorriu com ligeireza. — Eu sei — saiu do palco sem dizer mais nenhuma palavra. Cerrei os dentes e deixei-o ir. — Consegue uns aliados interessantes — comentou Pritkin, saltando para cima do palco. — Como é que convenceu aquela criatura a te ajudar? Costumam ser extremamente egocêntricos — pensei que se referia a Mircea, e estava prestes a explicar-lhe como era disparatado referir-se a qualquer vampiro, sobretudo um mestre, por aquele termo. Ele viu a minha expressão e desenvolveu. — O íncubo, o que se chama Sonho. O meu cérebro parou. — O quê? — Não sabia o que era? — perguntou Pritkin, incrédulo. — Tem o hábito de aceitar ajuda de espíritos estranhos? Billy riu. — Não — disse eu, ignorando-o. — O nome: o que chamaste ao homem? — À coisa — corrigiu Pritkin. — Mas o nome...


— Apropriado — concordou —, um íncubo chamado Sonho — arregalei os olhos e ele franziu o cenho. — É o que significam os nomes que ele te deu. São variações da mesma palavra. Por que pergunta? Fiquei sentada e paralisada, aturdida pela tomada de consciência, a ouvir um forte sotaque espanhol a dizer-me que se chamava Chavez, e o que significava exatamente o nome. Rebolei para me deitar de costas, fitando o teto alto sem o ver. Tinha entregado três caixas da prisão do Senado nas mãos arranjadas de Chavez à porta do ringue de gelo. Claro está que seria demais esperar que nenhuma delas fosse a de Drácula. Por momentos pus-me a pensar se o íncubo teria andado a brincar comigo aquele tempo todo, ou se teria sido por sorte que tinha acabado como meu motorista. Não que isso tivesse importância – fosse como fosse, eu estava ferrada. Era impossível aquelas caixas terem chegado a Casanova. O que significava que, na minha época, Drácula andava outra vez à solta. E a culpa era minha. — Até que enfim! — disse alguém atrás de mim. Por um instante, mal percebi. Estava a acrescentar Drácula à minha lista de afazeres e a tentar não pensar no tamanho que essa lista estava a ganhar. Mas havia algo de muito familiar naquela voz. — Estava a ver que aquele vampiro nunca mais ia embora! Agora terminamos isso. Virei-me devagar e vi o contorno espectral de uma jovem morena a pairar um pouco acima do palco. Lembrava-me daqueles grandes olhos azuis e do vestido branco comprido da última vez que tinha visto este espírito em particular. Tinha me informado de que preferia aparecer como era quando viajava sob a forma de espírito, em vez de duplicar a sua verdadeira aparência. Em resultado disso, ela continuava a aparentar ter cerca de quinze anos. — Agnes — por algum motivo, eu nem sequer estava surpreendida. Ou talvez os meus nervos estivessem demasiado desgastados para grandes reações. — Como veio parar aqui? — Apanhou a baleia — Billy parecia atormentado. — Ela não me deixava dizer-te, mas já estava no colar quando me esforcei para voltar a entrar no seu corpo. Deve ter estado escondida no Cabeças de Cartaz e saltou da Françoise para ti. — Por quê? Ele encolheu os ombros. — Não falamos muito. Mas eu apostaria numa vingança em algum lugar. — No topo da lista — concordou Agnes. Olhou para mim. — Liberta-a — era uma ordem, proferida num tom de quem estava habituada a ser imediatamente obedecida. Nem sequer tentei fingir que não estava a percebê-la.


— Também andas atrás da Myra. Agnes cruzou uns braços quase transparentes e fez-me cara feia. — O fato de ser assassinada tem tendência a irritar-me. Abanei a cabeça. — Ouvi-a a confessar, mas continuo sem perceber como o fez. — Ela deu-me uma runa de solstício pouco tempo antes de desaparecer. Para ajudar a manter-me em segurança — disse ela, os lábios de Agnes contorceram-se de modo sardônico. — O medalhão de São Sebastião, eu sei. Continha arsênico, os magos encontraram-no e abriram-no. Mas continuo sem entender como poderia ser perigoso. O veneno estava soldado no interior! — Ela abriu um buraquinho na parte de cima antes de me dar. Conhecia os meus hábitos, sabia que eu mergulhava sempre qualquer amuleto ou um talismã nas minhas bebidas antes de beber. Era um hábito que me foi transmitido pela minha antecessora, que jurou que a minha vida iria terminar com veneno, se eu não tivesse cuidado! Claro está que — disse Agnes, deambulando para mais perto — também me disse para comprar ações em 1929. A Herophile era doida. — Herophile? — Sim, batizada em honra da segunda Pítia de Delfos. Ao que se sabe, ela também era um bocado maluca. Recebi o nome em honra de uma doida. Por que isso não me surpreendia? — Mas continuo sem perceber porque é que a Myra queria matar-te. Se o poder não pode passar para a assassina de uma Pítia... — Tecnicamente, ela não me matou. — Deu-te um medalhão envenenado sabendo o que iria fazer com ele! — a mim parecia assassinato. — Mas não me obrigou a usá-lo — salientou Agnes. Levantou uma mão quando comecei a protestar. — Sim, eu sei. Qualquer tribunal moderno a condenaria, mas o poder advém de uma época anterior às provas circunstanciais e à dúvida razoável. Ela não me atacou com uma espada nem me deu uma tacada na cabeça. Nem sequer envenenou o meu vinho, fui eu que o fiz. Deste ponto de vista, ela não pode ter culpa.


— Então e agora? — não sabia ao que Agnes se referia quando falava em terminar isto, mas parecia algo pressagioso. — Eu disse que o poder considera que a Myra não tem culpa. Não que eu pense o mesmo — disse ela com malícia. — Aquela desgraçada assassinou-me. Por que acha que aqui estou? — E pretende fazer o quê? — agora que era um espírito sem corpo, as suas opções pareciam bastante limitadas. — Soltá-la e descobrir. De repente ocorreu-me que Agnes tivesse de fato um plano de fuga. Se conseguisse possuir Myra, poderia usar o poder dela para voltar atrás e tentar mudar as coisas. Eu tinha esperança de que o plano não fosse esse, porque, se fosse, não fazia ideia de como haveria de impedi-la. Já me tinha custado muito lidar com a sua herdeira; não havia dúvida de que Agnes me podia comer as papas na cabeça, se lhe apetecesse. — Não pode estar pensando em interferir na linha temporal — disse eu, devagar —, não depois de passar uma vida inteira a protegê-la! — Não me dê sermões sobre a linha temporal! — disse ela, de repente. — Com quem está falando? — inquiriu Pritkin. Suspirei. Por um momento, tinha-me esquecido. Agnes era um espírito, portanto ele não conseguia vê-la nem ouvi-la, tal como acontecia com Billy. — Não iria acreditar se te dissesse. — Experimenta — limpou o sangue que vertia de um corte por cima da sua sobrancelha direita. Suponho que a ideia era tirar o sangue dos olhos, mas só conseguiu manchar a sobrancelha. De repente, ficou a parecer que estava a usar pinturas de guerra. Decidi não contrapor. — Tudo bem. Agnes está aqui sob a forma de espírito e pretende vingar o seu assassinato. Ok? — Sim — deixou-se cair imediatamente sobre um joelho. — Lady Phemonoe, é uma honra, como sempre — fiz-lhe cara feia. Bela maneira de demonstrar o meu valor. Agnes mal olhou de relance para ele. Lançou-me um sorriso, mas não foi muito simpático. — Myra tirou-me a vida. Em minha opinião está a dever-me uma. Finalmente alguma coisa fazia sentido.


— Foi esse o acordo que firmaste com a Françoise? Fazer-te chegar a este ponto para poderes assumir o corpo da Myra em vez do dela? — semicerrei os olhos. — Ou não foi isso? Ela estava disposta ou não? — Ela nunca teria escapado aos Elementais da Luz sem a minha ajuda — respondeu Agnes, evitando a pergunta. — Provavelmente nem teria sobrevivido! Foi a minha experiência que nos manteve vivas. Acho que me devia uns anos por isso! — A decisão não era sua! — E, por falar em dívidas, quem é que acha que mandou aquelas sentinelas há pouco para te salvar? O seu fantasma não sabia como funcionavam. Fui eu que te salvei. Outra vez — olhou para mim com intenção. — Portanto, deixa-a sair! Agarrei a caixa ao meu lado. Sentia uma pequena pulsação a latejar ao fundo da garganta. — E se não conseguir controlá-la? A ideia era passar para uma pessoa normal, não para alguém como ela. A Françoise até te dificultou as coisas por vezes. O que pensa que faria uma Vidente com o poder da Myra? — O problema é meu. — Não se ela escapar! — saquei da caixa e abanei-a na sua direção. — Faz ideia do que eu passei para conseguir isso? Myra estava tentando matar Mircea para ele não poder ajudarme. E, para isso, quase interrompeu toda a linha temporal! Quase me matou! E você me diz que o problema não é meu? — eu estava aos gritos, mas não me importava. — Liberta-a, Cassie — advertiu Agnes. — Senão? Fazes-me o mesmo que fizeste à Françoise? — Não sejas ridícula. Não conseguiria controlar-te. — Mas consegue controlar Myra? — abanei a cabeça. — Não me parece. Ela é perigosa, Agnes. Pu-la aqui mais por sorte do que por outra coisa qualquer. Não vou soltá-la de maneira nenhuma. Agnes suspirou. — Não compreende... — parou de falar quando Pritkin de repente me arrancou a caixa da mão. — Pritkin, não! — tentei agarrá-la, mas antes que conseguisse deitar-lhe um dedo que fosse, vi um clarão que me era familiar e ali surgiu Myra.


Agnes não perdeu tempo. Assim que a sua antiga aprendiza apareceu, passou a flutuar por mim à pressa e embateu diretamente nos escudos de Myra. Estes faiscaram e crepitaram enquanto as duas lutavam – Myra para mantê-la de fora, Agnes para encontrar uma maneira de entrar. — Sabe o que fez? — perguntei a Pritkin, entorpecida. — Ela não vai controlá-la. Não para sempre. — Não precisará fazê-lo — respondeu ele, observando a luta de modo inflexível. Antes que eu pudesse perguntar o que queria ele dizer com isso, Myra gritou e Agnes desapareceu, afundando-se numa qualquer fissura que encontrara na armadura da garota. O corpo franzino estremeceu uma vez, com força, e depois olhou para cima com calma. De repente, percebi que não fora a cor do cabelo e diferenças insignificantes nas feições, as duas mulheres podiam ser gêmeas. Tinham a mesma estrutura franzina e a delicada estrutura óssea, o mesmo aspecto acriançado. Mas os olhos que haviam parecido frios e opacos com a mente de Myra por detrás irradiavam agora vida. — Consegui! — anunciou Agnes, como se fosse coisa para comemorar. Sorriu. Não sorri em resposta. Todo aquele trabalho, todo aquele sacrifício não tinha valido de nada. Agnes podia ser poderosa, mas aquele não era o seu corpo. Mais cedo ou mais tarde, haveria de perder o controle, ainda que fosse apenas por um instante. E isso seria o suficiente. — É louca — disse eu. Pritkin encaminhou-se para ela, mas Agnes ergueu uma mão. — Não tem esse direito — disse, simplesmente. Os olhos dele penetraram-me e semicerraram-se. — Ela não vai fazer isso. — Tem de ser — disse Agnes, com calma. — Fez um juramento. Pritkin avançou e ajoelhou-se a meu lado. Senti uma coisa fria a tocar-me a pele, olhei para baixo e vi-o a comprimir umas das suas facas na minha mão. — Faça depressa — disse ele, num tom rígido. — Um só corte, que seja limpo e atravesse a jugular. Olhei-o espantada. — O quê? Fechou minha mão ao redor do cabo.


— Myra condenou-se a si própria pelos seus próprios lábios. Você ouviu-a. Por todas as leis, a humana, a dos magos ou a dos vampiros, ela merece a morte. Finalmente todas as peças encaixavam. Não me interessava muito a imagem que formavam. — Foi por causa disto que sempre quiseste que eu viesse, não foi? Não tentou negar. — Fiz um juramento para proteger a Pítia e a sua herdeira, com a minha vida, se necessário. O Círculo acreditava que iria ignorá-lo por ordem deles, que iria matar Myra sem provas da sua culpa. Mas quando dou a minha palavra, cumpro-a — seus lábios curvaram-se num sorriso amargo. — Razão pela qual não a dou muitas vezes. — Não me trouxeste contigo para impedir a Myra de se transportar — acusei. — Estava esperando que eu a matasse! A expressão dele não se alterou. Podíamos estar a falar do que quer que fosse – do tempo, de um jogo de futebol. Era surreal. — Se eu pudesse fazê-lo por você, faria — disse-me, com calma. — Mas Agnes está certa. Só a Pítia pode disciplinar uma iniciada. — Não estamos falando de disciplina! Não estamos mandando a Myra para a cama sem jantar — olhei para Agnes, na esperança de encontrar apoio. — Isso é uma questão de vida ou morte! Ela encolheu os ombros esguios de Myra, com uma expressão vaga. Treinou-a durante anos e em tempos elas devem ter sido chegadas, mas não havia sinal de remorsos no seu rosto. — Você mesma o disse. Eu não consigo controlá-la. Não por muito tempo. — Se é isto que o cargo faz a uma pessoa — disse-lhe eu, sem rodeios —, não o quero... Uns olhos azuis encontraram os meus e, de repente, ficaram algo tristes. — Mas já o tem. Senti a lâmina da faca a cortar-me a mão, no lugar onde me escorregara do cabo, e a dor pareceu tornar tudo subitamente mais claro. Abanei a cabeça com violência. — Não. Haveremos de arranjar outra maneira. Agnes olhou para mim com ternura. Era extremamente estranho ver aquela expressão no rosto de Myra.


— Não há nenhuma. O que é que pretendia fazer? Mantê-la guardada dentro da manga? Levá-la contigo para todo o lado? Mais cedo ou mais tarde, ela haveria de libertar-se. Ensinei-lhe coisas demais para duvidar disso — sua expressão tornou-se mais austera. — E lidar com farsantes faz parte do seu trabalho. É essa a regra. — Não é a minha regra — disse eu, com voz rouca. — Alguém tem de fazê-lo — disse Agnes, de modo implacável. — Alguém tem de assumir a responsabilidade. E, gostes ou não, esse alguém és tu. Engoli em seco. As lágrimas que não derramara antes escorriam-me agora pelo rosto, mas não me importei. Mais uma morte, desta vez não apenas por minha culpa mas pela minha mão? Não era esse o plano. Na verdade, isso era o exato oposto do plano. Eu queria vencer, mas não assim. Estava farta de mortes, sobretudo de mortes que eu ajudara a provocar. Um sabor amargo invadiu-me a boca. — Não consigo. Agnes curvou-se e colocou uma mão em cálice por baixo do meu rosto. — Ainda nem faz ideia do que é capaz de fazer. Mas há de fazer — afastou-se de mim com um sorriso discreto e triste na cara. — Gostaria de ter te treinado, Cassie — olhou para Pritkin. — Ela vai precisar de ajuda — disse ela, simplesmente. Pritkin estava novamente de joelhos, com o rosto pálido. — Eu sei. Agnes assentiu com a cabeça e olhou para mim. Por um instante, um espasmo cruzoulhe o rosto, mas ela recuperou o controlo. — Nunca te ensinarei a maioria das lições de que vai precisar — prosseguiu —, mas penso que tenho tempo para uma. Só me apercebi de que a faca já lá não estava quando a vi na sua mão pequenina. — Agnes, não! — pus-me de pé, mas foi tarde demais. Ela não hesitou nem um segundo. Quando cheguei perto dela, já estava caída de joelhos, com o imaculado vestido branco de Myra encharcado de sangue. Imobilizou-se no chão de modo quase gracioso, com o corpo a produzir uma mancha pálida no meio de toda aquela vivacidade de cor. Olhei em volta de modo frenético, mas não havia sinal do seu espírito. Nem do dela nem do de Myra. Virei-me de rompante para Pritkin, que continuava de joelhos a observar o sangue a ser derramado pelo soalho numa mancha crescente. Por um segundo, pareceu-me perdido, como uma criança desorientada. Depois a expressão desapareceu tão depressa que eu deixei de ter a certeza de alguma vez ter existido.


— Onde ela está? — perguntei, com a voz estridente de medo. — Não consigo vê-la! — ele ergueu o olhar para mim, mas foi quase como se os seus olhos estivessem por instantes sem focar. Olhei para trás, para a forma enrugada de Myra e a minha visão turvouse ao ponto de ser difícil distinguir onde terminava o sangue e começava o tecido vermelho do vestido. — Pritkin! — Ela se foi. Comecei a atacá-lo, perplexa e incrédula. — Como assim, foi-se? Foi-se para onde? Para outra hospedeira? — Não — levantou-se e aproximou-se do corpo dela e, com um murmúrio, a zona em redor dela foi engolida por chamas carmim. Estas lançavam um brilho avermelhado no soalho antigo e faziam soltar faíscas brilhantes da estrutura dourada do palco, mas não era um fogo normal. A figura esguia no centro das chamas transformou-se em chamas em segundos, deixando para trás apenas tábuas de soalho chamuscadas. Pritkin virou-se para mim com os olhos cheios de dor. Foi aquele olhar, mais do que as suas palavras, que passou a mensagem. — Foi-se e pronto. Abanei a cabeça, cegamente. — Não! Podíamos ter arranjado um lugar seguro para a Myra. Agnes podia ter encontrado outra hospedeira. Eu teria ajudado. Não era preciso acabar assim! Agarrou-me nos braços provocando-me dor. — Ainda não percebeu? — Perceber o quê? Ela morreu em vão! — eu estava a chorar, mas era o pânico que me turvava a visão, fazendo com que o mundo corresse em fluxos de cor. Agnes não podia ter morrido. Eu já tinha acreditado que estava por minha conta antes, mas não tinha entendido verdadeiramente o que jogava contra mim. Agora entendia, e sabia que não chegaria para o gasto. — Eu volto atrás, eu salvo-a... — comecei, mas ele abanou-me com tanta força que me fez bater os dentes. — Lady Phemonoe morreu a cumprir o seu dever. Era uma das melhores da sua linhagem. Você não irá desonrá-la! — Desonrá-la? Estou a falar em salvá-la! — Há coisas que nem a Pítia pode mudar — disse ele, com a expressão endurecida a atenuar-se. — Myra tinha de morrer e alguém tinha de garantir que ela não poderia usar o seu poder para saltar para outro corpo antes que o seu espírito fosse puxado. E a única maneira de o fazer... Finalmente fez-se luz.


— Era se alguém fosse com ela — murmurei. Fitei as tábuas de soalho chamuscadas, incrédula. Tudo tinha acontecido tão depressa. Talvez uma Pítia completamente treinada não fosse atormentada por dúvidas ou preocupações, não pusesse em causa as suas decisões nem se perguntasse que direito tinha sobre o poder que detinha. Mas eu não tinha sido treinada e não sabia o que fazer. O pânico tomou-me a garganta, paralisou-me o cérebro. Estava por minha conta e estava aterrorizada. — Suponho que vá atrás do Codex independentemente do que eu decidir? — perguntou Pritkin. O meu cérebro demorou um instante a acompanhar os meus ouvidos. E nem assim eu percebi. Por que ele estava perguntando isto agora? Tinha centenas de problemas a exercer pressão sobre mim, a empurrar-me em diferentes direções, a ponto de já não conseguir pensar em nenhum deles com clareza. Só sabia que Agnes tinha morrido. E que agora tudo dependia de mim. — O quê? — perguntei, lenta de raciocínio. — O Codex — disse ele, de modo paciente. — Está decidida a ir procurá-lo? — Não tenho escolha — disse eu, confusa. — O géis não abranda — e eu não consigo funcionar se piorar muito. De momento, não tinha a certeza se conseguia funcionar de qualquer forma. Ele acenou uma vez com a cabeça, para cima e para baixo. — Então eu ajudo. Sentia as lágrimas a secarem-me no rosto, mas não podia dar-me ao trabalho de limpálas. — Sempre me perguntei se teria uma atração pelo abismo. Parece que agora já sei. — Prometi à Lady Phemonoe que iria ajudar. Afastei-me dele com um safanão, subitamente furiosa. — Agnes morreu! E eu não quero outro cadáver em minhas mãos. Já estão suficientemente ensanguentadas! — tentei chegar-me para trás, afastar-me daquelas tábuas de soalho queimadas, mas o meu pé prendeu-se na bainha do vestido e eu acabei de quatro no chão. — Não estava a pedir autorização — informou-me ele com ligeireza. Ergui os olhos para ele através de uma cortina de cabelo emaranhado. — Nunca serei a Pítia que ela era — adverti. — Posso não prestar para nada.


Pela primeira vez na vida, vi o que me pareceu ser um sorriso genuíno a cruzar o rosto de Pritkin. — Bem, isso é encorajador — puxou-me para me pôr de pé. — Nunca se deve permitir a alguém que queira poder que o possa manipular. — Nesse caso, vou ser ótima — disse eu, com amargura — porque não pode haver ninguém que o queira menos do que eu. Pritkin não respondeu. Ao invés, para meu espanto, deixou-se cair sobre um joelho à minha frente. Tinha a roupa rasgada e ensanguentada, o rosto manchado de fuligem, mas ainda havia nele algo de impressionante. — Não me lembro das palavras exatas — disse ele. — E deveria haver testemunhas... — O que eu sou? — perguntou Billy, indignado, voltando a flutuar de regresso ao meu colar. Pritkin ignorou-o. — Mas creio que era mais ou menos assim: juro defender-te e à sucessora que nomeares contra todos os malfeitores atuais e vindouros, na paz e na guerra, enquanto eu for vivo e você se mantiver fiel aos ideais do teu cargo. Olhei-o fixamente e, de repente, parece que um peso se levantou dos meus ombros. Por mais exasperante, irritante e autêntico jumento que Pritkin pudesse ser por vezes, era um bom homem para ter numa luta. E eu tinha a sensação de que iria ter muito disso pela frente. — Portanto, suponho que a partir de agora me vá chamar Lady Herophile Segunda? — Sétima — ele estava de joelhos, mas eu recebi o mesmo olhar arrogante daqueles olhos verdes. — E não conte com isso. A porta principal abriu-se de rompante e uma vaga de vampiros invadiu a sala com a morte nos olhos. Agarrei-me ao ombro de Pritkin e fiz-lhe um sorriso cansado. — Consigo viver com isso — disse eu, transportando-me em seguida. Sentia as lágrimas a secarem-me no rosto, mas não podia dar-me ao trabalho de limpá-las. — Sempre me perguntei se teria uma atração pelo abismo. Parece que agora já sei. — Prometi à Lady Phemonoe que iria ajudar. Afastei-me dele com um safanão, subitamente furiosa. — Agnes morreu! E eu não quero outro cadáver em minhas mãos. Já estão suficientemente ensanguentadas! — tentei chegar-me para trás, afastar-me daquelas tábuas


de soalho queimadas, mas o meu pé prendeu-se na bainha do vestido e eu acabei de quatro no chão. — Não estava a pedir autorização — informou-me ele com ligeireza. Ergui os olhos para ele através de uma cortina de cabelo emaranhado. — Nunca serei a Pítia que ela era — adverti. — Posso não prestar para nada. Pela primeira vez na vida, vi o que me pareceu ser um sorriso genuíno a cruzar o rosto de Pritkin. — Bem, isso é encorajador — puxou-me para me pôr de pé. — Nunca se deve permitir a alguém que queira poder que o possa manipular. — Nesse caso, vou ser ótima — disse eu, com amargura — porque não pode haver ninguém que o queira menos do que eu. Pritkin não respondeu. Ao invés, para meu espanto, deixou-se cair sobre um joelho à minha frente. Tinha a roupa rasgada e ensanguentada, o rosto manchado de fuligem, mas ainda havia nele algo de impressionante. — Não me lembro das palavras exatas — disse ele. — E deveria haver testemunhas... — O que eu sou? — perguntou Billy, indignado, voltando a flutuar de regresso ao meu colar. Pritkin ignorou-o. — Mas creio que era mais ou menos assim: juro defender-te e à sucessora que nomeares contra todos os malfeitores atuais e vindouros, na paz e na guerra, enquanto eu for vivo e você se mantiver fiel aos ideais do teu cargo. Olhei-o fixamente e, de repente, parece que um peso se levantou dos meus ombros. Por mais exasperante, irritante e autêntico jumento que Pritkin pudesse ser por vezes, era um bom homem para ter numa luta. E eu tinha a sensação de que iria ter muito disso pela frente. — Portanto, suponho que a partir de agora me vá chamar Lady Herophile Segunda? — Sétima — ele estava de joelhos, mas eu recebi o mesmo olhar arrogante daqueles olhos verdes. — E não conte com isso. A porta principal abriu-se de rompante e uma vaga de vampiros invadiu a sala com a morte nos olhos. Agarrei-me ao ombro de Pritkin e fiz-lhe um sorriso cansado. — Consigo viver com isso — disse eu, transportando-me em seguida.


www.karenchance.com Karen Chance é a autora de duas séries best-seller do New York Times, além de várias novelas e contos, todos no universo de Cassandra Palmer. Uma escritora em tempo integral desde 2008, ela foi anteriormente uma professora de história da universidade, o que vem a calhar quando se escreve as aventuras loucas de viagens no tempo de Cassie. Ela adora Las Vegas, o palco principal para os seus livros, mas atualmente vive na Flórida perto de sua casa de família.



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