31.
Os CAMINHOS DA INTOLERÂNCIA
Rafael Sabatini, no seu estudo Torquemada e a Inquisição espanhola, em tradução francesa da Payot, chama a atenção para esse aspecto - o de que a intolerância dos cristãos não era mais que um reflexo retardado da que eles haviam experimentado em sua própria carne, nos primeiros três séculos da sua igreja. A partir do ponto em que a nova religião se viu reconhecida e escorada, não apenas em direitos civis, mas ainda um poder efetivo — diz Sabatini - do momento em que os cristãos puderam levantar a cabeça e circular sem se esconderem e sem nada temerem, vemo-los entregarem-se a perseguições contra os fiéis de outros cultos, isto é, contra judeus, pagãos e heréticos. Foi Constantino um dos primeiros a colocar sua espada a serviço da ideia religiosa, já um tanto desvirtuada de suas origens. Tanto Voltaire como Sabatini mencionam o cronista Paramo, para o qual o primeiro inquisidor fora o próprio Deus, ao expulsar Adão e Eva do paraíso. Não apenas os pôs para fora naquele auto de fé, como também lhes confiscou os bens imóveis na pitoresca linguagem de Voltaire. Não conheço, senão por via indireta, o livro de Paramo. Sei, entretanto, que é massudo e se chama eruditamente De origine et progressu officii Sanctae Inquisitionis. Para Sabatini, foi o próprio Santo Agostinho, com o poder da sua prodigiosa inteligência, que “estabeleceu os princípios diretores da perseguição, até hoje citados, milênio e meio depois que os escreveu”.
É inegável que há justificativas filosóficas para qualquer barbaridade que se cometa em nome de uma ideia. Hitler também tinha hem à mão os seus filósofos da pureza racial. Poder-se-á dizer que Agostinho não mandou queimar ninguém por discordar dos dogmas que ele próprio ajudou a estabelecer. A questão é que certas doutrinas se tomam perigosas quando postas em prática depois de interpretadas à maneira daqueles que nelas têm interesses inconfessáveis. O caso da intolerância religiosa, por exemplo, se funda em argumentos aparentemente muito nobres e perfeitamente válidos. O problema é preservar a fé, o custo não importa. Para isso é necessário manter absoluta homogeneidade nas ideias que se transmite aos fiéis. E, como fora da prática dessas doutrinas não se admite salvação, é preciso eliminar do meio religioso todo e qualquer transviado, para que não contamine os demais. A má ovelha - diz o ditado 1 põe o rebanho a perder. Não há alternativa senão sacrificar a ovelha rebelde. A morte sempre pareceu o meio mais seguro e completo de fazê-lo. A simples exclusão dos sacramentos e da convivência religiosa é muito 1 8. Sobre a origem e o desenvolvimento do escritório da Santo Inquisição, a primeira história abrangente da Inquisição. O livro foi colocado no índice de livros proibidos, apesar de ter sido impresso com a aprovação da Igreja e teólogos por licença real. (N.E.) precária, porque o herético seguiria destilando toxinas prejudiciais à salvação alheia.
Aqui se coloca uma questão importante, ainda que meramente especulativa. Houve sempre sinceridade na execução de uma política de depuração? Será que essa prática não se deixou com frequência envolver-se por interesses puramente temporais? Os indícios são veementes da ocorrência mais ou menos frequente da segunda hipótese. As vezes era tudo uma simples manifestação individual, cobiça de bens materiais de propriedade do pretenso herético ou mera satisfação de vinganças. De outras, em religiosos mais dedicados à sua igreja, seria a exaltação de um zelo bem intencionado em favor do que lhes parecia a única forma de salvação. Nem por isso era menos lamentável. Em suma, a Igreja elaborou um código doutrinário rigidamente estratificado, diante do qual não havia alternativa que não a aceitação pura e simples. Nada de discussões, dúvidas ou heresias. Essa mentalidade propagou-se a todos os membros da Igreja e, como diz Sabatini, o slogan era este: “Seja meu irmão ou o mato!” Não se tratava de convencer ninguém à força de uma lógica irrecusável em si mesma e aceitável à razão. Era aceitar ou recusar o edifício teológico em bloco. A recusa em muitos casos acarretou os mais tremendos sacrifícios ao rebelde e frequentemente à sua própria vida terrena. Hoje estamos procurando fórmulas práticas para recuperar os criminosos em lugar de matálos. No passado da história religiosa, criminoso e herético eram sinônimos e o tratamento idêntico: castigo máximo. O problema, entretanto, é que como o espírito sobrevive à morte a privação do corpo não lhe resolvia nem resolverá jamais as suas aflições e perplexidades, senão as agrava consideravelmente. 32. A INQUISIÇÃO PROTESTANTE É PRECISO AINDA lembrar que se fala muito da Inquisição que adejou à sombra do catolicismo, mas o erro repetiu-se com o protestantismo. Sua gênese é a mesma, como idênticas suas finalidades e consequências. Enquanto a nova doutrina amadurecia na mente dos reformistas, sem ter ainda sensibilizado o homem da rua e principalmente os poderosos, a tolerância era obrigatória. Logo que o movimento adquiriu maior impulso e passou a contar com o apoio quase sempre servil do braço secular, também o protestantismo, pelos seus melhores homens, perseguiu e oprimiu. O próprio Philipp Melanchthon, o suave e erudito teólogo da Reforma, não se recusou a presidir grupos inquisitoriais protestantes. A verdadeira ditadura religiosa implantada por Calvino é dessa intolerância um dos exemplos mais dramáticos. Não faltou nem mesmo a crueldade da fogueira, na qual ardeu vivinho Miguel Servet, sob aplausos universais dos protestantes, inclusive de Melanchthon que, sem pertencer à corrente calvinista, sentiu-se na obrigação de levar sua solidariedade a Calvino pela bárbara execução. Mas, como dizia são Bernardo, "se fugimos à perseguição, culpa não é de quem foge e sim cie quem, persegue”.
Não podemos nos demorar muito nestes aspectos, mas ao leitor interessado não faltarão obras esclarecedoras. Algumas delas cito aqui mesmo neste livro. Outras aí estão pelas bibliotecas públicas as e particulares. Muitas são hoje raras, como o estudo de Henry Charles Lea sobre a inquisição. Estas listas só aparecem envergonhadamente num ou outro sebo, quando lhes morre o dono. I' que o relato dessas atrocidades jamais interessou às instituições que as praticaram, por motivos mais do que óbvios. 33.A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS IDEIAS Tudo começa no misticismo e termina em política. CHARLES PÉGUY Não se trata aqui de remexer velhas cicatrizes mal curadas, a despeito de que mesmo nos tempos modernos ainda há muita alma inquisitorial sob as mais conspícuas vestimentas clericais e leigas. Desejo deixar bem claro que não transfiro à instituição em si - católica ou protestante - essas deformações filosóficas levadas ao extremo da prática mais abominável. Cabe aos Homens que as dirigiram essa culpa. O que acontece com frequência é que tais instituições nascem puras e simples, vitalizadas pelo poder das ideias que as sustentam. Com o decorrer do tempo, monta-se à volta delas um mecanismo de poder temporal. Até certo ponto, esse mecanismo é necessário. Uma ideia especialmente quando surge cercada de uma auréola renovadora — deverá ser propagada. Ao menos que se ofereça ao maior número possível de pessoas a oportunidade de conhecê-la. Acresce que a própria instituição vai assumindo encargos e obrigações e para isso precisa organizar-se, defender-se, distribuir funções administrativas, manter aceso, enfim, o fogo sagrado do culto. A questão é que esse núcleo necessário de organização temporal, como tantas criações humanas, passa também a ser um objetivo em si mesmo. Então, luta-se pelo poder e se embriaga dele cada vez mais. A ele se subordinam até interesses espirituais, ponto de partida e razão de ser da própria instituição, afinal de contas. Assim, lentamente se vai perdendo de vista o objetivo principal, em favor do que fora um simples instrumento para alcançar aquele objetivo. A Igreja não escapou a essa mazela. A parcela de poder temporal que obteve pela primeira vez ao tempo de Constantino não deixou de crescer. Como a bola de neve, só aumenta à medida que se despenha morro abaixo, para espatifar-se lá na escuridão do vale... Tal como as ações humanas, essa busca inconsiderada do poder traz nela própria o germe da autocorreção, como um servo- mecanismo, inteiramente automático. E da lei universal e não há corno escapar de seus postulados. 34. O EXEMPLO DOS JUDEUS Exemplo típico encontra-se na história dos judeus na Espanha. Houve tempo em que conquistaram e consolidaram privilégios legítimos. O papa Honório III lhes garantiu a prática das suas cerimônias e prescreveu que nenhum judeu poderia ser forçado ao batismo cristão. Os que procurassem, entretanto, o catolicismo de modo próprio que fossem bem recebidos. Aos cristãos era vedado perseguir e apedrejar judeus.
A outorga dessas garantias realmente desanuviou o ambiente de tensão que sempre se criara entre judeus e católicos. Volvido o tempo, entretanto, os israelitas conquistaram proeminentes posições nos negócios, nas artes, nas ciências e até na administração pública. O rei Afonso VIII diz Sabatini - nomeou um ministro das finanças judeu e teve até uma judia por amante. Mas foi principalmente a riqueza, isto é, o poder que ela proporciona que acabou por perder os judeus. Não mais contentes com o serem opulentos, passaram a exibir acintosamente a sua opulência, esfregando-a, por assim dizer, na face dos católicos empobrecidos. Tornaram-se arrogantes e intratáveis, desprezando a comunidade cristã em massa, como uma sub-raça incompetente e desfibrada. Não demorou muito a surgir na história a sinistra figura de frei Hemando Martinez, que fez objetivo da sua vida a mais violenta pregação antissemita. Movida por sua palavra sanguinária, que nem papa nem rei puderam calar, multidões enfurecidas mataram judeus, depredaram suas propriedades e pilharam seus bens. Sob pressão desses acontecimentos lamentáveis, milhares de judeus acorreram à igreja, mais interessados em salvarem a pele e os bens do que as almas. Era assim que surgiam os conversos, cristãos novos, mas o gesto impensado de uma filiação espúria a um credo que eles próprios não respeitavam foi mais uma tragédia a juntar-se às muitas que, volta e meia, desabavam sobre eles. É que o batismo tomava-os cristãos e, se como judeus estavam a salvo das garras dos inquisidores, pelo menos em teoria, como cristãos subordinavam-se aos seus caprichos e arbitrariedades. Além do mais, o batismo não lhes infundia, de supetão, toda uma teologia que no íntimo desprezavam para superar a que lhes estava estratificada no espírito pela tradição milenar. Muitos praticavam o cristianismo - leia-se catolicismo - às escâncaras e o judaísmo à socapa. Esses eram réus do crime imperdoável de judaização, principalmente porque se acercavam dos sacramentos mais sérios sem as condições canônicas essenciais à sua validade, com o que cometiam, no mínimo, crime de sacrilégio.