Alice Porto
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Alice Porto
Alime News
(Algum lugar entre Bruxelas e) Porto Alegre 2020
Escrevo a partir de um deslocamento, desta primeira vez em que atravessei o Atlântico, para realizar parte de meus estudos de doutorado, na Bélgica. Através de relatos de viagem, nas redes sociais criei um espaço de contato com amigos, conhecidos e também com o português brasileiro. Tendo minha viagem bruscamente interrompida pelo impacto do vírus, daqui deste isolamento costuro pelo avesso os rastros de derivas do estranhamento de atravessar/habitar um lugar misterioso, ilegível. Para se perder profundamente, acredito que a Bélgica seja um destino ideal: dividido entre os idiomas francês e neerlandês – e até alemão, às vezes -, e entre as culturas flamenca, valônia e o multiculturalismo de Bruxelas, capital da União Europeia. Entre o ler e o adivinhar, se desenha uma paisagem.
Dedico à minha avó, Joaquina Porto, a quem vi pela última vez antes de partir nessa viagem e quem era, até poucos meses atrás, a maior debochada da família.
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ALIME NEWS OU A ESCRITA NAS REDES Daniela Kern
Confesso que fiquei bem tentada a deixar as redes sociais depois do contato com alguns dos argumentos poderosos que Jaron Lanier traça em seu Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. O monitoramento pelas redes de nossas preferências de toda a ordem, a duvidosa garantia de privacidade de nossos dados, a agressividade (por vezes desmedida) de alguns comentários, tudo isso desanima e pode nos fazer tender a concordar com Lanier quando ele afirma que “as redes sociais odeiam sua alma”. Mas nas redes, por trás da tela, ainda há pessoas, pessoas como Alice Porto, que é empática, atenta, de raciocínio rápido, curiosa, boa observadora de contradições e do que há de irônico nas situações mais inusitadas. Alice, para quem não sabe, além de artista visual é também escritora. Ela quebra monotonias de timeline, nos desperta da letargia dos anúncios pagos com suas palavras mordazes, comentários jocosos e afetuosos, por vezes cheios de saudade também. Alice nos faz viajar com ela. E se Alice, para quem a segue, compartilha na rede há anos e anos seu olhar inteligente sobre o mundo, agora generosamente faz com que esse olhar viaje à Bélgica e se apresente também como livro.
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Quanto à experiência que a leitura de Alime News lhe reserva, caro leitor, há de ser marcante, não tenho dúvida. Resta-me dizer, enfim, que também não vou deixar as redes enquanto souber que nelas posso encontrar, entre outras descobertas, uma escritora desafiadora como a Alice. E que ela continue escrevendo, porque há palavras das quais precisamos muito (ainda mais agora) e Alice tem tanto o dom de saber encontrá-las quanto a coragem de usá-las.
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Agosto de 2019 24 de agosto de 2019 • “Tu não fica lá só namorando e esquece de estudar, hein? Não vai ficar te agarrando nesses omi lá que eu nem sei se tomaram banho!” - AVÓ, minha
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26 de agosto de 2019 • Alime international news: O avião atrasou e perdi a conexão, o que na verdade foi sorte porque vou poder dar uma voltinha em Londres antes de ir à noite pra Bruxelas. Achei que quando aterrissasse ia finalmente acreditar em tudo isso, mas aparentemente não. O voo foi longo, a cadeira era apertada, mas em compensação a aeromoça parecia a Sidse Babett Knudsen (atriz dinamarquesa maravilhosa musa). Dava pra assistir filmes no voo e eles tinham uma meia dúzia de categorias, uma delas era filmes LGBT. Sair do cotidiano “todo dia o presidente sendo homofóbico de um jeito diferente” e dar de cara com a Cate Blanchett lésbica institucionalizada (afinal era a British airways) é algo que nem consigo articular Pqp estou mesmo em Londres? Vou tentar ver umas artes por aí uhuu
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Vocês sabiam?? Aqui em Londres é ditadura lesbigay Foto tirada no metrô
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••••• #AlimeNews 2: Londres tem tomadas esdrúxulas de três pinos que eles devem ter criado apenas pra não se misturar com o resto de nós, gentalha. Tava brabo carregar esse celular, daí parei pra beber meu voucher que ganhei por perder o avião (ou seja, ganhei um dia em Londres e cerveja grátis, que sorte), e um brother do Qatar me emprestou o carregador dele Uma das melhores coisas do dia foi o anúncio do motorista do trem na chegada da Estação Aeroporto. O cara praticamente fez um stand up sobre como ele tem inveja de nós que estamos partindo pra lugares maravilhosos por aí. Depois disse pra juntarmos todos os nossos pertences, tais como malas, passaportes e entes queridos. Me senti num sketch do Monty Python, todos no vagão riram em várias línguas Essa cerveja é forte e vou fazer menos sentido a cada minuto agora Achei um livro muito bom na lojinha do Tate da Hito Steyerl sobre arte política, mas agora as letras se embaralham. Vou ler no avião ou depois Todo mundo gentil, porém ninguém quer papo comigo. Obrigada a quem me acompanha por aqui Bjs ébrios
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27 de agosto de 2019 • Carluxo’s me assombrando
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••••• #AlimeNews 3: cheguei finalmente em Bruxelas, mas a minha mala ficou por aí, em algum lugar do mundo. Tudo bem, já rastrearam e nos reencontramos hoje à noite. Tenso que estou igual uma mendiga, apesar de ter tomado banho minhas roupas são as mesmas de anteontem - com um dia todo caminhando por Londres, com tudo. Nunca esqueçam de viajar com uma muda de roupa na bagagem de mão. Vim de ônibus (elétrico!) quase vazio na madrugada trocando ideia com o motorista flor de gentileza, que veio do Rwanda e até me ajudou a me encontrar no mapa (tenho zero senso de direção) No caminho do apê tinha um bar, onde tomei finalmente minha primeira cerveja belga (melhor pilsen que já provei) e encontrei uns árabes perdidos, sendo assim levei meu primeiro xaveco belga também (vou passar, mas a intenção foi boa) A cidade é muito linda, o dia tá ensolarado, finalmente dormi num colchão (inflável, couchsurfing é isso aí, gambiarra e solidariedade), vamo que vamo
••••• Meu ódio ao presidente chegou intacto aqui, nem um arranhão
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••••• O moço que tá me hospedando emprestou roupas dele que são exatamente do meu tamanho, enquanto não recupero a mala. Parece até o universo retribuindo os tênis de futebol que emprestei pro meu penúltimo couchsurfer (Abel). Infelizmente o universo é injusto e caga pra nós, mas às vezes dá pra se iludir. Eu sou tão grande que praticamente só troco roupas com homens (ou mulheres da minha própria família)
••••• Os caras do aeroporto foram entregar não sei o que na Antuérpia antes de trazerem minha mala pra Bruxelas e fiquei aqui esperando, pelo menos estou cada vez mais bêbada
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28 de agosto de 2019 • Nada das malas, mais um dia de cosplay de tailandesa ••••• #AlimeNews 4: aqui o patinete para adultos foi tão normalizado que aparece até nas sugestões do Google maps, nem em Pinheiros tem isso! Mas boto fé que chega lá em breve. Além disso, a companhia chama Lime, então A Lime vira um patinete aqui
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••••• Já vi que pra sobreviver aqui vou ter que evoluir o meu francês além de bonjour, merci e de rien Achei que ia usar muito “je ne comprend pas” mas na real vou tatuar na testa “sorry I don’t speak French” Petit croissant Madame
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••••• Não fui eu
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•••••• Desenhos de crianças, acho que são pedidos pra pararem de jogar lixo na rua (first world problems). “Sorria, você está sendo filmado”, e “por causa sua, cortei o meu pé” 29 de agosto de 2019 • #AlimeNews 5: Eu tava sem graça de dizer minha origem porque pensava que as pessoas fossem me julgar pelo Bolsonaro, pela Amazônia, ou sei lá, ter pena de mim, mas até agora a maior parte das pessoas fica empolgada com o Brasil! A resposta mais comum é “que legal, o Brasil é maravilhoso”. Lindo país, grande futebol, muito sol, nossos artistas são respeitados internacionalmente (que o diga a quantidade de artistas brasileiros no acervo do Tate Modern)... Que sirva também pra que eu não me esqueça que esse imbecil eleito não define nosso país
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•••••• #AlimeNews 6. Maior perigo que passei até agora foi quase ser atropelada por uma criança de patinete com tiara de gatinho. Sobre o trânsito: pedestres e ciclistas rainhos, os carros dirigem devagar e param não só na faixa de ciclistas, mas em qualquer lugar, a rua é deles por último. Fui desenhar hoje no metrô e uma moça puxou papo comigo porque curtiu os desenhos. Ela falava em francês e eu em inglês, calculo que entendemos basicamente uns 20% dos barulhos uma da outra, mas a mímica foi top. Lá pelas tantas sentou uma outra com a gente e se voluntariou como intérprete. A moça #1 então disse que desenha também, mas só na pele dos outros, nunca no papel, o que eu e a intérprete achamos bem louco, ainda mais pq ela não tinha nenhuma tatuagem visível. Fiquei tão entretida com a conversa que perdi minha parada e desci em outro lugar. Me resignei à aleatoriedade e saí caminhando por aí até perceber que fui parar por acaso no lugar onde irei morar a partir de domingo até o fim do estágio. Resolvi bater lá e abriu a porta um viado coisa mais querida, obrigada Jesus. Sincronicidade, etc etc. Uma coisa que percebi foi que não vi nenhum cachorro de rua. Todos são bem tratados e tem dono. É como se, proporcionalmente, os vira-latas de Porto Alegre tivessem se transformado em uma bicicleta ou um baseado. Que lugar é esse? Que loucura. Ainda não fiz amigos então vou continuar publicando meu diário aqui, assim me sinto menos brasileira expatriada. Tudo muito legal mas sinto falta dos parças. A cerveja da foto tem gosto de recheio de bubbaloo (quem lembra?), muito ruim, não bebam isso.
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••••• Motivos vintage pra ter vergonha de ser brasileira: Paulo Coelho. PS - encontrei esse livro numa pilha de lixo, o que demonstra o compromisso dos belgas com a reciclagem
30 de agosto de 2019 • #AlimeNews 7: O pessoal aqui é tão carente de sol que eles botam esse monte de cadeirinhas de praia ali no meio do concreto, apenas pra absorver uma vitamina D. Chocante. Tô começando a ter medo do inverno. Hoje encontrei na cidade homenagens aos grandiosos praia do Hermenegildo e Elevador Lacerda. Tem gente de todo canto. As línguas se misturam com uma naturalidade incrível. Hoje um senhor me perguntou “Where are you from?”, “Brazil”, “oh, Brésil, you speak Portuguese?”, “simm, falamos português!”, “obrigado”, “very nice!”
••••• “on my trip to England I noticed something obscene, people still actually give a shit about the queen” of Montreal - My British Tour Diary do album Satanic Panic in the Attic (2004) https://www.youtube.com/ watch?v=zSQ8_-h3iPQ&ab_ channel=OfMontreal-Topic
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31 de agosto de 2019 • #AlimeNews 8. Ontem conheci brasileiros morando aqui, que me levaram na Disney da cerveja (Delirium). O teor alcoólico se equipara ao dos vinhos, então não tem essa de ficar bebendo e mijando a noite inteira, com poucos goles o serumaninho já sai do corpo. Mesmo assim, na entrada do bar tem uma estátua de uma menininha fazendo xixi, achei simpático. Bruxelas tem 3 estátuas famosas que homenageiam o xixi. É basicamente a capital do golden shower. A religião local parece consistir em cerveja e batata frita, nada mal. As pessoas bebem a qualquer hora do dia, lembra um pouco Belo Horizonte nesse aspecto. Semana que vem já paro de palhaçada, me mudo pra onde vou morar, encontro a orientadora e começo a sério o que vim fazer aqui. Mas por enquanto sigo mapeando onde foi que vim parar. A escolha do destino teve uma boa dose de aleatoriedade envolvida.
••••• Quando eu pensei que o maracatu gaúcho fosse o ápice do deslocamento, sou apresentada ao conceito de maracatu belga. Estou num misto de “não pode ser” com “não posso perder isso”
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Setembro de 2019 2 de setembro de 2019 • #AlimeNews 9: Ouvi ontem de um nativo: “se até os belgas acham o bolsonaro um idiota, ele realmente tem que ser um imbecil”* *Existe um bullying dos franceses contra os belgas que tiram eles pra burros, do mesmo jeito que nós brasileiros fazemos piadas de português. Ouvi dizer que tem a ver com o uso da língua, mas eu não sei francês, então sei lá. De todo modo os franceses são chatos pra caralho (em geral) e acham que todo mundo é burro, menos eles. E hoje, conversando com outra belga, comentei que tem uma porrada de brasileiros aqui e ela respondeu sem um pingo de medo de me chocar “deve ser por causa do presidente de vocês” Cara, que alívio o biroliro não ser tabu, aqui parece senso comum que ele é insano (provavelmente pelo impacto mundial das notícias sobre a Amazônia), no Brasil é aquele medo constante de não saber quem é eleitor e quem não é (afinal alguém votou nessa merda e não foi pouca gente)
••••• O famoso Manneken Pis, um dos monumentos mais decepcionantes do mundo! Fiquei sabendo que ele simboliza o espírito belga de micro subversões cotidianas, apenas o melhor simbolismo e a certeza de que vim pro lugar certo
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••••• (barman) - de onde tu é? Deixa eu adivinhar: Grécia? (eu) - não, não, tá longe - deixa eu tentar de novo, qual teu nome? (cara que eu conheci ontem) - o nome dela é Alice Bolsonaro (barman)- brasileira?? PUTAQUEPARIO*, meu filho é casado com uma brasileira! *em português com sotaque belga
4 de setembro de 2019 • #AlimeNews. Vim num restaurante libanês aqui do bairro. O cozinheiro me recebe com um simpático “bonjour”, que eu respondo como de costume “do you speak English?”, ao que ele mexe a cabeça em negativa e responde “español?”, “puede ser” Quando achei que isso fosse o ápice da multiculturalidade, sentei pra esperar o pedido e começou a tocar nada menos que BUMBUM TANTAM no rádio. Pô! Agora sim. hahaha Outros dias pela cidade já ouvi também Tim Maia e Maria Bethânia, muito massa. Ela partiuuuu, partiuuu, e nunca mais voltouuu
5 de setembro de 2019 • Ontem veio uma jovem melhor vestida do que eu me pedir dinheiro na rua, putz, o tamanho da cara de pau! Respeita, que eu sou BR. Alguns mendigos Nutella daqui são de dar raiva.
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6 de setembro de 2019 • E esse cone de fritas fumando uma batata como se fosse uma pedra e fazendo cosplay de crackinho?? Que zoado
7 de setembro de 2019 • Veio um cara da WWF me pedir dinheiro pra salvar a Amazônia...
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••••• Fui numa feira maravilhosa de livros de artista e encontrei uns argentinos vendendo livros sobre fauna latino americana e cultura guarani. Nos reconhecemos no gauchismo. “Pelotas? Si, estuve ahi a camino de Florianópolis! Entonces eres gaucha ? Tambien tomas unos mates?”
8 de setembro de 2019 • #AlimeNews 10. Após quase duas semanas complicadas, recuperei a minha mala. A essas alturas já tinha roupas e um kit básico de sobrevivência pagos pelo seguro viagem, então o mais importante item recuperado foram as 2 garrafas de cachaça da boa (uma Salinas e outra do RN, esqueci a marca). Se eu pudesse voltar no tempo, teria deixado as roupas no Brasil e trazido tudo em cachaça, fica a dica pra quem vier. Fui numa festa-janta ontem com pessoas de várias nacionalidades morando em Bruxelas, em que cada um levava um prato típico. Tinha gente de todo lado, Irã, Croácia, Letônia, Espanha, Coréia, Vietnã, Paquistão, etc, e até uns belgas no meio também. Levei cachaça e limão (siciliano, é o mais barato aqui) pra fazer caipirinha mas chegando lá não tinha açúcar comum, então acabei usando açúcar de confeiteiro (“impalpável”, adoro esse nome), e também não achei gelo, acabei substituindo por pedaços congelados de manga que tinha na venda da esquina e água gelada com gás. Puristas poderão me acusar de ter deturpado completamente o drink, mas tava bem bom e foi disputado pela galera haha Ganhei a alcunha de “caipirinha girl”, agora só falta sambar.
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••••• Belgian Beer Weekend Aqui pra comprar ticket de cerveja eles só aceitam múltiplos de 5. O Brasil me obriga a beber mas na Bélgica simplesmente o alcoolismo é o estilo de vida ••• “Quer cerveja forte ou fraca? “, “Vamo na forte, né, pq não?” Três goles depois to parecendo um gongo de igreja Falei que o garçom parece o Roger waters, recebi um I LOVE YOU de resposta, todo mundo bêbado aqui Essa é ácida e sabor amora, amei Uma senhora do Zimbabwe deu em cima de mim. Auge! Brasil, vc não me valoriza
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9 de setembro de 2019 • Todo dia eu tenho que lidar com essa toalha que é A CARA do cachorro da Gracyanne Barbosa e ninguém aqui sabe quem é. Brazilian people’s problems
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em Avenue Louise 10 de setembro de 2019 • Aqui perto de casa tem esse maravilhoso grafite de uma mulher se masturbando coisas que fariam o brontossauro infartar
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11 de setembro de 2019 • Tudo muito fácil e confortável por aqui até agora (exceto a burocracia que é mil vezes mais chata que no Brasil), já sinto medo de quando eu voltar pra casa e largar sem querer um “porque na Europa é assim assado” os amigos vão me bater
••••• - em alemão a gente tem uma palavra que significa a saudade da sensação de estar em algum lugar desconhecido. - pô, super legal. Em português a gente tem um verbo específico pra arremessar uma pessoa pela janela!
12 de setembro de 2019 • Poucos sabem, mas aqui os cocôs de cachorro são alfabetizados. Coliformes de primeiro mundo, né? Em português brasileiro: “meu dono é um merda” #AlimeNews
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14 de setembro de 2019 • - que cogumelos incríveis! nunca vi assim na minha vida - na natureza eles vêm em todos os formatos e cores. Outro dia saiu uma notícia de que encontraram um incrível cogumelo em formato de polvo, é o que nós chamamos na Bélgica de “notícias pepino”, quando não interessa falar da política atual e inventam essas coisas nada a ver. - bah, no meu país as notícias estão tão horríveis que eu já nem sei se prefiro saber a realidade ou os pepinos... - de onde tu é ? - Brasil - nossa, sim, bolso... Como é o nome dele? Bolsonaro? Mas ele vai acabar se auto destruindo - tomara, é, vamos ver...
••••• Hoje consegui uma bicicleta emprestada, lindíssima da década de 70 que tava empoeirada pegando chuva nos fundos da casa, dei uma ajeitada nela e saí aleatória pela cidade pra testar. Claro que me empolguei e fui longe. Encontrei um parque bem bonito e resolvi ver no Google maps onde eu tava: uma abadia construída em 1201 (!) Daí fui ver os reviews e eram altos elogios sobre como é “um lugar muito tranquilo e ótimo pra beber cerveja” Aparentemente aqui os lugares se dividem entre “bons” e “nem tão bons assim pra tomar uma cerveja” Correta atitude dos belgas de beber nos santuários e vice versa
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Abbaye La Cambre
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••••• Tô apaixonada por essa bicicleta, quando eu voltar ela fica aqui, que seja eterno enquanto dure
15 de setembro de 2019 • Não sou de fazer piada com tamanho de anexo masculino porque francamente nem ligo, mas o nome dessa escultura (de 1897) é simplesmente “o pequeno carregador de relíquias” Estou vendo arte o dia todo, chega uma hora que começo a dar tilt, mas já que paguei pra entrar no museu só saio daqui depois de ver tudo. Não me xinguem, xinguem o George Minne (autor da homenagem à pequenez)
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16 de setembro de 2019 • Faixas de segurança arco íris e grafites de temática LGBT no centro de Bruxelas. Vcs querem ditadura gay?
••••• #AlimeNews hoje mostrei um pouco do meu trabalho pra orientadora daqui. No meio de fotos de pixos de Pelotas ela pegou uma e perguntou “and what is siririca?”, parecia um cover do famoso tuíte do presidente sobre uma farra carnavalesca, e daí eu tive que explicar, né. Ela ficou impressionada por a gente ter um termo tão específico, e eu nem sabia que era algo fora do comum, a gente fica aí se gabando de palavras como “saudade”, tem palavras mais brasileiras do que isso. Outra que fez sucesso foi o conceito de “gambiarra”, eu explicava sobre a diferença entre o ateliê onde me formei e o que eles tem aqui. Acharam lindo a nossa garra e agora querem escrever “gambiarra” na parede do ateliê pra incentivar as pessoas, esse é o charme brasileiro, um salve pros meus professores de gravura. Falando nisso, ontem vi uma galera batucando no centro, parecia uma espécie de Olodum belga (o BELGODUM, como diria a Landa*), uma galera branca com umas roupas inexplicáveis, mas o som tava valendo. Era bacana a batucada, mas as pessoas estranhamente ficavam paradas olhando, fui obrigada a ir embora rebolando enquanto empurrava a bicicleta. Tambor é tambor, não dá pra ficar parado. Tentei filmar e acabei fazendo só fotos por descuido, mas imaginem. Se alguém souber a lógica dessas roupas por favor me explique. “siririca Origem ETIM segundo Nascentes, do tupi sirï ‘rïka ‘o enrugado da superfície das águas’”
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*Minha amiga Landa Ciccone
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18 de setembro de 2019 • alguns de vocês disseram “imagina a Alime na Bélgica, o tipo dos malucos que vai encontrar” até agora nada, aparentemente a pessoa aleatória agora sou eu, parece que o jogo virou ou é isso, ou apenas eles não chegam até mim porque não consigo me comunicar em francês nem holandês trabalhamos apenas com malucos estrangeiros ou poliglotas, o que restringe um pouco o meu para-raio de doido
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••••• procurando couchsurfing, tava lendo um perfil super legal. a pessoa escreve bem, parece razoável e tem interesses em comum, até aí tudo bem. tava quase mandando um pedido de hospedagem quando li “tenha em mente que eu ronco, durmo pelado, e o sofá onde você vai dormir fica perto da minha cama” pelo menos foi sincero segue a busca, tem outros sofás haha
••••• Vocês discutindo se Capitu traiu ou não:
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••••• Daí a biblioteca é lindíssima, medieval, cinematográfica, climão perfeito pra estudar EXCETO pelo fato de que tem um parque de diversões em frente com música eletrônica a todo volume e pessoas berrando nos brinquedos hahahshshs Quem foi que projetou e permitiu essa balbúrdia?
20 de setembro de 2019 • Estava perdida e encontrei um africano, chef de cozinha, não consegui entender o nome da cidade dele, mas alguma colônia francesa. Fomos papeando pela rua e, apesar dele estar chegando de viagem, com malas e tudo, levou uns 20 minutos me ajudando a me localizar e só foi embora depois de ter certeza que eu ia conseguir chegar no lugar. Esse grau de gentileza eu só tinha visto no Uruguai, fico emocionada com essas coisas. Foi se despedir de mim, apertou minha mão com um sorrisão e disse “se comporta, hein?” Recém começou, mas acho que já ganhei o meu dia
••••• Aqui bolovo é scottish eggs, fala sério E a quantidade de zoadas que já levei com “so your hometown is called BALLS, is that really it?” Sim amigo, isso mesmo, bolas, o que é que eu vou fazer
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Do diário de viagem de papel, 20/09/2019: “(...) Mas tem sido bom ver tudo diferente, me faz pensar o desenho por dentro. Sinais de trânsito, arquiteturas, ônibus, bicicletas, roupas, cortes de cabelo, tudo desenhado por outras perspectivas, construções, imaginários. O inglês na Bélgica não é uma necessidade, mas sim um luxo. Sendo assim, é uma língua remendada e falha no cotidiano. Todos, ou quase todos, tem um vocabulário falho, e eu também. Criar uma ponte daqui até alguém é uma tarefa delicada: há de se adivinhar coincidências e pontos de apoio. Mímica é quase uma certeza. Google imagens, linguagem corporal, buracos improvisados com português, espanhol, árabe, italiano. Bruxelas é a torre de babel da vida real. O desenho (a imagem) da palavra não precisa tradução, mas sim contexto. Como são diferentes agora pra mim os quadros do Magritte: as construções misteriosas em tons de creme, as paredes estranhamente uniformes, não são um elemento aleatório, parte de um imaginário surrealista e exótico: são os cenários normais daqui, onde o absurdo cotidiano acontece. O silêncio dos quadros, a ausência do vento, é a experiência de caminhar aqui. Que estranho sentimento, o de que tudo que eu conheço e vivi aqui seja algo exótico e distante. Apesar disso, os belgas tem uma estranha fascinação por araras e papagaios, que eles provavelmente nunca viram. Eu doutoranda em artes visuais caminho pelas casinhas das pinturas do Magritte como um belga perdido na Amazônia. As reproduções de artes são de certo modo imagens publicitárias. Atestam o valor e multiplicam o desejo. Que o diga o Museu Magritte, com suas longas filas e ingressos caros, e multidões em torno dos quadros mais famosos.
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É o apelo da obsessão por poder dizer “eu vi, eu fui, eu estava lá” num evento de reconhecido e atestado valor cultural. Não vou dizer que isso não me afeta, claro que sim. Mas me foram mais reveladores os estudos, os quadros “lado B” que tornam mais visíveis os passos no escuro, os interesses, o senso de humor obscuro, o olhar sarcástico para o mundo - como na pintura “Grandes Expectativas”, com uma árvore de tronco fino e muito alta em primeiro plano, contra duas árvores frondosas e não tão altas de fundo. Qual a verdadeira expectativa, a altura ou a vasta folhagem? O quadro parece por em jogo por espelhamento, na natureza, a insatisfação humana na tentativa de se expandir de todas as formas. As árvores não ligam: possuem táticas distintas, geneticamente pré definidas, em direção à luz e aos minerais. Nós humanos por outro lado, parecemos constantemente insatisfeitos, entre a altura e as folhas. Grandes expectativas não se cumprem. É mais seguro e menos frustrante potencializar aquilo que somos, no qual falhamos (falho) sempre (...)”
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23 de setembro de 2019 • “ah, eu sou lésbica, vim pros eventos feministas por que lá tinha um monte de mulher, daí acabei ficando né? Já faz mais de 30 anos” Lindo depoimento que ouvi depois da conferência feminista Unindo o útil ao agradável
••••• O mais legal do encontro feminista foi a paisagem: mulheres de todas as idades (umas beeem velhinhas, vovós da resistência) , das históricas às desconhecidas, cada uma com sua bagagem. Dá um senso de continuidade, de compromisso, que é muito bonito. Apesar das divergências, temos que honrar aquelas que abriram o caminho e apoiar as que chegam agora
27 de setembro de 2019 • Estou aprendendo francês, tá rústica a coisa, aquele sentimento de ser analfabeta de novo, mas ao mesmo tempo parece um tipo de espanhol com mais vogais. Porém hoje descobri que tem um ditado em francês equivalente ao nosso “panela velha é que faz comida boa”. Se diz: “ce sont des vieilles casseroles que l’on fait les meilleurs soupes” Estranhamente aprendi com um jovem me mandando essa como cantada. Sou muito nova pra isso, as pessoas estão completamente loucas Sou uma panela semi nova, tá só um pouquinho riscado o meu teflon
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29 de setembro de 2019 • Por aqui conheci vários portugueses, e até agora nenhum conhece Bruno Aleixo, incrível, acho que damos mais valor no Brasil. O que me faz pensar que talvez parte da graça seja a estranheza do sotaque e das expressões
30 de setembro de 2019 • Eu não tava entendendo o nível da comoção dos belgas com o sol, pra mim é só o sol, tá sempre ali. Ontem me informaram que agora ele foi embora e só volta em maio, pqp... Não sei como vou lidar, haja vitamina D em cápsulas e Jorge Ben pra substituir
•••• Um europeu aqui acabou de me dizer que não dá pra fazer serigrafia com pouco dinheiro... Rá Segura meu ateliê improvisado na lavanderia e o outro no banheiro (ambos minúsculos)
•••• Acho que essa dieta à base de batata frita e cerveja tá me fazendo bem
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Outubro de 2019 1 de outubro de 2019 • Quase todos os dias recebo notícias catastróficas do Brasil e isso ferra gradativamente meu psicológico. “Ahh mas então pq não finge que tá na Disney e olha pro lado?” Por vários motivos, mas hoje gostaria de enaltecer de novo os nomes das operações policiais BR:
••••• - tava bom o hambúrguer? - tava, mas o bife passou do ponto um pouco - e por que não pediu pra eu trocar? Faço outro em 4 minutos! - no Brasil, se a gente faz isso o garçom cospe na comida - lá na Turquia também! Mas aqui não. Na próxima, pede que eu troco! - e promete que não vai cuspir? - aqui na Bélgica a gente não cospe. aposto que no Brasil se tu pede pra trocar, leva um tiro! - é possível. Tá bem, na próxima eu peço, olha lá hein
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lembrança>>>>>>>>>>>>>>>>>> texto escrito em 2 de outubro de 2018 • Tô há dois dias rindo que uma italiana que apareceu do nada no rolê ficou indignada comigo pq falei que o Brasil é uma bagunça desde que chegaram as caravelas, ficou toda “opaaa deixa os portugas pra lá, nada a ver ficar olhando só pro passado, tem que juntar essa ginga linda e gambiarra brasileira pra construir um futuro” (futuro que surge assim no vácuo né, num passe de mágica) Daí a moça passou então a me explicar que ela trabalhava muito pra um futuro melhor em ONGs lindas compostas por pessoas de várias nações sem ficar nesse lance aí de tipo, obsessão com o passado, genocídio, escravidão, família real, essas besteiras e tal, porque ela trabalha com alemães, brasileiros, sírios, ursinhos carinhosos, etc Daí perdi a paciência e perguntei se eles se juntavam pra cantar “we are the world we are the children”, não sei pq ela mandou eu me foder ahhahaha Aqui é BR porraa
••••• Isso foi ano passado, imagina agora... Outro dia um simplório da WWF ficou me enchendo o saco com um discurso sobre salvar a Amazônia (puro bom mocismo sem tocar no problema concreto da exploração pelo capitalismo), continuou se palestrando apesar da minha cara de “ah tá” e no final me pediu dinheiro, falei que sou latina e não dôo pra organizações de primeiro mundo E essa semana estava tomando cerveja com um italiano que
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mora comigo e o amigo dele português, de algum jeito o assunto caiu na ditadura brasileira e falei que foi a segunda pior coisa que aconteceu na história do Brasil (a primeira foi a chegada de Portugal, claro). O mal estar deles chegou a tremer a mesa do bar, até aí tudo bem, mas daí o italiano teve a pachorra de dizer que se não fosse pelos portugueses a gente não teria “ganho” a língua portuguesa. Bicho, não é possível. A gente ia falar dezenas de línguas indígenas incríveis, português de Portugal é uma língua tão incompleta que precisamos importar do tupi guarani o conceito de “siririca” (estou apaixonada por essa informação e vou usar ela sempre que possível agora) Não é fácil ter paciência com mentalidade de colonizador, mas a gente foca nas cervejas extraordinárias e segue o baile. Estou muito feliz por essa oportunidade incrível de estar aqui e aprender de uma perspectiva radicalmente diferente e com recursos de país rico, mas tem sido também um processo de aprender a lidar com a raiva
••••• Toda hora eu passo por esse grafite de uma arara voando com um pato (?) e lembro que tô longe demais de casa. A arara aqui é um símbolo encontrado em várias vitrines e produtos, suponho que represente o exótico ensolarado paradisíaco
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5 de outubro de 2019 • Quinta um cara pediu meu telefone e eu não quis dar, perdi o celular na mesma noite. Praga? Premonição? Coincidência? De qualquer maneira, comunicação comigo por enquanto só por aqui ou no email. Que droga, mas o que seria das viagens sem as zicas não é mesmo? Pelo menos tava incrível o show do Acid Mothers Temple, nunca imaginei que veria eles ao vivo. Barulheira insana do Japão e ainda tinha uma vocalista que parecia saída de um anime, usava uma capa e tocava mandolim O lugar do show (Magasin 4) parecia uma versão com dinheiro dos bares caindo aos pedaços que frequentava na adolescência em Pelotas: público e estética meio punk gótico (“hippie punk rajneesh”), mas estranhamente com um ótimo som e espaço pra respirar (senti falta dos ventiladores amarrados nas paredes do Entre Nós, que eram horríveis mas ao mesmo tempo únicos) Também estranhei os shows rolarem na hora marcada, me distraí no ateliê de serigrafia e perdi a hora, acabei perdendo a banda de abertura que tinha um nome ótimo: VHS from Space (fita cassete espacial) Seguem os dias, me sinto um pouco menos turista mas não tanto A maioria das pessoas do meu convívio fala inglês, mas é geralmente um terreno intermediário entre falantes não nativos, o que acaba se tornando um dialeto todo esburacado e cheio de mímicas. Sinto falta de me comunicar na amplitude que consigo em casa, me pego explicando expressões brasileiras com frequência. Nessa casa não são incomuns diálogos multilíngues, passando pelo francês, holandês, português, italiano, inglês, às vezes em menos de 5 minutos, o que é muito interessante mas também confuso Por enquanto é isso. A quem interessar possa tô bem, foi só o celular furtado, vida que segue
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6 de outubro de 2019 • A ditadura gay em Bruxelas não para, aqui eles tem até o furgão GLS (quem lembra dessa nomenclatura anos 90? Eu fui) pra recolher os heteros na rua
7 de outubro de 2019 • Chicletes e pirulitos de maconha, o auge do capitalismo das drogas. Mas não se empolguem muito, é CBD medicinal, ouvi dizer que não dá barato, no máximo dá sono
••••• #Alimenews Ontem de manhã eu estava tentando chegar num lugar, me perdi, chovia pra caramba, não tinha Internet pra olhar o Google maps, desnorteada no mínimo. Um senhor me enxergou naquela situação e veio oferecer ajuda. O mesmo ritual de todos os dias: “sorry, I don’t speak French”, daí começa o bingo das linguagens “tu parle espagnol?” “si!” Daí ele estava me explicando como chegar, lá pelas tantas disse que eu descia numa estação X do metrô e ia até o “Buf” Não entendi, ele repetiu “desce nessa estação então vai até o buf” Levei um tempo pra entender que era o BÚS, o famoso ônibus, mas o cara falava igual um filme do Almodovar, certeza que era de algum lugar da Efpanha As pessoas falam que o sotaque britânico é cruel mas nem é pra tanto, já o búf me quebrou as pernas
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10 de outubro de 2019 • Uma professora daqui me convidou pra fazer uma fala sobre meu trabalho pros estudantes de fotografia do mestrado, mas também querem que eu fale de política e colonialismo pra chacoalhar os alunos Pediram pra pessoa certa ahaha Adoro uma carta branca e incentivo pra causar Financiada pelo ministério da educação ainda! Segura esse esquerdismo cultural, Weintraub
11 de outubro de 2019 • Acabei de presenciar um barraco na rua 100% em francês, não entendi quase nada, lamentável #MotivaçãoParaEstudar
12 de outubro de 2019 • Tá certo, o Brasil elegeu esse palhaço do inferno, mas pelo menos a gente não tem rei e rainha em 2019
••••• Cruzei a cidade de bicicleta pra ir no jardim botânico, tava fechado (não entendi pq, parece que fica no meio de uma propriedade do rei, sei lá) Até aí tudo bem, daí estou pedalando de volta e dou de cara com quem? Ele mesmo, Satanás:
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••••• Vi um pessoal carregando uns tambores meio afro, fui olhar de perto e pronto: bandeiras brasileiras nos tambores. Perguntei se a banda era brasileira ou só os tambores: “só tocamos como se fossemos brasileiros, mas na verdade somos belgas” Chegou a hora de ver a ginga belga hein, é hoje ou nunca hahaha Está na hora dessa gente desbronzeada mostrar seu valor
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••••• Encontrei uma professora da universidade daqui na rua, conversávamos sobre organizar uma palestra aqui e eu disse “então, é que sou nova aqui, não sei bem como vocês trabalham” E ela respondeu “ah, a gente não trabalha, só fica lá o dia todo tentando reanimar os estudantes deprimidos” Socorro
13 de outubro de 2019 • Vocês acharam que só tinha cerveja boa aqui, é? Acharam errado
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14 de outubro de 2019 • #AlimeNews Ontem eu descobri que atualmente passam reprise do Rei do Gado na Croácia! Não sei o que fazer com essa informação, mas ela é incrível
15 de outubro de 2019 • Estou até agora fazendo as burocracias do visto, acredite se puder. Essa semana tive que ir na prefeitura entregar mais papelzinho pra conseguir o meu RG belga de expatriada (é esse mesmo o termo que usam tecnicamente, “expat”), que é fundamental pra vida cotidiana aqui. Estava lá de sangue doce, fornecendo dados, fotos 3x4, documentos e etc. A moça perguntou “o lugar que tu nasceu, tá certo isso aqui? Pelotas?”, “sim, é isso mesmo”, “que nome esquisito ihihih”, “ah pois é né” “e em que cidade tu tirou esse passaporte?”, “Porto Alegre”, “como escreve isso?”, “Porto, como a cidade de Portugal, A, L, E, G, R, E”, “certo, e a última cidade que tu morou antes de se mudar pra cá?” “Porto Alegre também” Daí achei uma graça que ela respondeu “é tudo tão fácil contigo!”, ri muito por dentro porque fora de contexto essa frase pareceria um flerte, mas imagina a galera de tudo que é lugar do mundo que ela atende todos os dias, cidades difíceis de escrever com acentos muito loucos no meio, sotaques cabulosos, enfim. É uma burocracia eterna sem fundo, mas pelo menos as pessoas em geral são simpáticas. Um mês e meio já, passa voando
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17 de outubro de 2019 • #AlimeNews Hoje fui num show local, uma banda chamada Vito. Parecia um indie rock normal, mas na última música o guitarrista (que parecia demais um integrante do “Também Sou Hype”, quem não conhece essa maravilha por favor jogue no YouTube) tocou a guitarra COM UMA LONG NECK, tipo palheta, ao mesmo tempo em que bebia ela hahauauahah credo Acho que isso foi a coisa mais belga roots que eu vi na viagem inteira até agora Parabéns Em anexo um vídeo deles tocando normal, mas a presença de palco do cara é além
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••••• #AlimeNews Uma vez eu tava em Montevideo, apaixonada pela cidade sempre, lugar mágico pra mim. Daí um europeu do hostel disse “que interessante, aqui parece a Europa só que pobre”. Na época fiquei indignada com o comentário que me pareceu insensível, porém estando aqui agora entendo melhor ele. É uma questão de referenciais mesmo. Eu olho pras coisas volta e meia e penso que são versões ricas de coisas que eu conheço. Claro que não, são outras coisas, mas é a maneira da memória assimilar o lugar e criar algum tipo de narrativa. Agora por exemplo estou em Lovaina, pequena cidade medieval próxima de Bruxelas, onde fica a sede da universidade KU Leuven. Enquanto almoço me deparo com uma paisagem que me lembra o Quadrado (lugar em Pelotas, bastante precário, no meio de uma vila, com vista para o poluído canal São Gonçalo, bastante frequentado por estudantes, artistas, etc). A rigor não tem quase nada a ver, mas é inevitável a aproximação entre as imagens, que parecem ter força e vontade próprias
Em M-Museumtuin. ••••• Lovaina • “A batalha entre o Carnaval e a Quaresma”, pintura a óleo, 1600. Isso sim que é festa, os carnavalescos tirando os crentes pra dançar por cima do pessoal vomitando no meio da rua. Espero encontrar uma dessas por aqui
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18 de outubro de 2019 • #AlimeNews Deu saudade e fiz um feijão bem temperado, pegado no tomilho (como aprendi com a minha mãe), o pessoal da casa foi à loucura, achei muito fofo a comoção Imagina o dia que eu fizer uma feijoada com tudo que tem direito, não sei se eles tem estrutura emocional pra isso
••••• Faz tempo que não escrevo aqui sobre a habilidade dos homens de estragar tudo que é bom, então vou contar como um cara aleatório sacaneou minha comemoração de aniversário. Como alguns sabem, eu amo Couchsurfing e conheci muita gente maravilhosa hospedando ou sendo hospedada, e quase sempre as experiências são especiais e lindas. Sei que existem grupos aqui no FB pra mulheres que só hospedam e querem ser hospedadas por mulheres (o Couchsurfing das Minas) e respeito, mas baseada nas minhas próprias experiências, no meu 1,73m, nas aulas de autodefesa e na confiança que tenho no sistema de resenhas, continuo hospedando e sendo hospedada por homens e mulheres sem distinção. Parto do pressuposto que se a pessoa abre a própria casa pra receber viajantes e possui testemunhos rastreáveis de ser boa gente, geralmente é uma pessoa mais aberta e generosa que a média. Estou aqui longe de casa e resolvi fazer algo pra comemorar o aniversário belga, então decidi viajar a uma cidade vizinha pra ver um show de uma banda de música folclórica romena que eu adoro e sempre quis poder dançar em algum lugar público, “Mahala Rai Banda” (sim, sou muito nerd de música e adoro conversar sobre o assunto e trocar referências, pergunte-me como). Consegui hospedagem por lá via CS, tudo ia bem, acabei perdendo o trem e consequentemente o show,
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mas fomos a outro que era legal também, tomamos cervejas sensacionais (não superei ainda a maravilhosidade e diversidade das cervejas daqui), o papo tava bom, alegria e gentileza. Existe uma regra de etiqueta (vamos dizer assim) em que a gente não dá em cima de hóspede do CS, para não deixar a pessoa constrangida, e obviamente que isso tem ainda mais peso quando o anfitrião é homem e a hóspede é mulher, levando em conta o que a gente sabe sobre violência e mundo como ele é. Já se o hóspede der mole é outra história, mas mesmo assim não é o mais comum. Beleza, lá pelas tantas no meio das cervejas comecei a sentir umas indiretas que eu só ia cortando e mudando de assunto. Começou indireto, quando ele brincou dizendo “cerveja: ajudando pessoas feias a transar há séculos”, e depois estranhei quando ele começou a se aproximar fisicamente de um jeito estranho e insistiu pra gente tomar mais uma, quando eu claramente já tava bem mais pra lá do que pra cá. Já não caio mais nessa, é uma das vantagens de ficar mais velha, a gente vai atrás de roubadas inovadoras, diferentonas. Como de costume, fingi demência e falei que tava com sono, que queria dormir. Daí no caminho ele perguntou o nome da minha cidade e como ele também fala espanhol disse “e tu sabe o que significa Pelotas em espanhol? me gustaria verte en Pelotas*” (em espanhol: “gostaria de te ver nua”), putz daí a coisa ficou bizarra e eu já nem sabia como desviar, começou a bater um pânico de dormir na casa dessa figura. Só respondi extremamente constrangida “haha.. não, não” e quis acreditar que ele ia se ligar e me deixar quieta. Mas não, chegando na casa ele resolveu me dar um “tour” dissimulado, mostrando todas as peças, daí quando mostrou onde eu ia dormir já pulei pra um “opa, legal! muito obrigada e boa noite” mas não, ele disse “quer conhecer o meu quarto?” e eu de novo me esquivei com “não, obrigada, acho que vou ficar por aqui” mas ele insistiu “só pra
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ter o tour completo da casa”. Vi que não tinha como evitar e fui. Chegando lá ele começou a discursar tipo “esse é o meu reinado blablabla e tal” e eu “legal hein, muito bacana, bom então é isso, boa noite, nos vemos de manhã né?” e ele disse “sim, nos vemos de manhã, senão seria muito estranho” Bom, fiquei completamente assustada, dormi vestida e demorei horrores pra conseguir relaxar. No outro dia tinha a moleza da ressaca mas principalmente pressa de ir embora. Passei o dia vagando pela cidade, fui em um museu de arte medieval, mas tava exausta de dormir mal, me arrastando. Voltei pra casa e dormi bem cedo, e esse foi o dia do meu aniversário, frustrante e um tanto apavorante. Me dei o direito de decretar que ontem não valeu e vou tentar de novo hoje me divertir sem homem bizarro estragando o rolê. Eu amo viajar e conhecer gente, mas dias como esse me fazem lembrar como faz falta ter a mesma liberdade de um homem (ou seja: poder viver sem o constante pânico de ser assediada e/ou agredida sexualmente).
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19 de outubro de 2019 • #AlimeNews Fui num show de uma das minhas bandas preferidas mais impossíveis de ver ao vivo do Brasil, de música folclórica balcânica cigana, da Romênia - tá tendo um festival na Bélgica em homenagem à cultura romena - daquelas que tocam em casamentos. Ia assistir eles em Leuven, mas perdi o trem, perdi o show na quinta feira e ainda dormi na casa daquele cara bizarro. Mas por sorte eles tocavam de novo ontem em Ghent, e como na Bélgica tudo é perto, me joguei e vim pra cá. Um show num lugar minúsculo, a banda absolutamente incrível ao vivo, o pessoal dançando freneticamente num transe musical coletivo tão forte que eu só tinha visto parecido num show do Cordel do Fogo Encantado, anos atrás. Se me dissessem que eu estaria aqui um dia, lá na época que eu pirateava esses mp3 no início do milênio, ia dar risada. A vida realmente é muito louca e absurda e hoje ainda sinto a reverberação da festa, violinos, flautas e metais (o que eram, trumpetes? Não sei bem) tocando ainda na memória. No meio do show o vocalista disse: “Eu viajei pelo mundo todo mas não esqueço de onde eu vim, do vilarejo de onde eu nasci, nem das pessoas” (meu francês tá melhorando). Daí eles dedicaram uma música pra uma amiga deles de cadeira de rodas, que dançava muito feliz da cintura pra cima, na primeira fileira. Vsf, que lindo. Feliz e sem acreditar direito no que tem acontecido ultimamente. Agradecida pelos que caminham junto lá de longe. Também não esqueço do meu vilarejo
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••••• #AlimeNews Não pensei que fosse acontecer tão rápido, mas tô até aprendendo uma que outra palavra em holandês e entendendo alguma coisa de francês na base do choque térmico e tapa na cara. Não é bem verdade que “todo mundo entende inglês na Europa”, tem que ter habilidade na mímica pra se comunicar. Google tradutor misturado com atenção e intuição, dá-se um remendo no buraco da linguagem
••••• Todo dia esses meninos leite com pera da WWF me pedindo dinheiro na rua. Hoje veio um saltitando sorrindo na minha direção. Tentei desviar mas ele insistiu. Falei “tá, pode parar, tu vai me pedir dinheiro né?” e ele “não, eu quero te convidar pra adotar um tigre!” Que saco esses discursos da Disney, nenhuma paciência. Tem que acabar esses adultos infantilizados com síndrome de excesso de fofura
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22 de outubro de 2019 • Em Porto Alegre, considero que estou num dia de sorte quando encontro ao acaso o Cara da Sunga. Aqui, o meu coelho branco é o furgão escrito GLS, que eu ainda não descobri o que é nem pra que serve, o famoso LGBT vintage da década de 90 (acabei de passar por ele)
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23 de outubro de 2019 • #AlimeNews Ontem falando sobre pixos feministas de Porto Alegre/Pelotas eu tive que explicar em inglês o conceito de barraqueira, quem foi Helio Oiticica, “seja marginal seja herói”, dentre outros Brazilian researchers problems, deu trabalho demais mas foi ótimo Me avisaram que os alunos eram tímidos pra falar mas todo mundo acabou participando do debate. Estudantes do mestrado que eram do Irã, Curdistão, França, Colômbia, Espanha, Taiwan, e também até da Bélgica. No fim um terço da turma queria saber dicas de como abordar política na sua poética porque sentiam falta disso no trabalho, alguns são até ativistas de algumas causas, só pude dizer pra terem calma e deixarem fluir naturalmente. Lembro desse sentimento, e no meu caso levou alguns anos pras coisas se interseccionarem no trabalho, sobreposição essa que de jeito nenhum é simples ou sem turbulências. Quando o pessoal ri, faz perguntas e sai meio desconcertado sinto que o encontro foi satisfatório, até agradeceram pela aula Feliz pela oportunidade de estar aqui e testar a amplitude das coisas tão longe do mapa que eu conheço Comecei o ano deprimida e derrotada por meses, que bom que a vida surpreende
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24 de outubro de 2019 • tem um museu aqui chamado “Bozar”, eu levei quase 2 meses pra entender que é um trocadilho com a sonoridade de “beaux arts” (“belas artes”, definição antiga de artes visuais) coisas de cidade com 2 línguas oficiais, é o caos mas tem lá seu charme
••••• #AlimeNews dicionário. Mitreilette: o próprio vandalismo em forma de comida, a larica mais comum e barata em Bruxelas depois dos waffles. Consiste em um pedação ogro de baguete recheado com alguma proteína frita (carne ou falafel), salada pra descargo de consciência, algum molho à base de maionese e uma montanha de batata frita. Comer é um desafio e requer estratégia. Gosto de ver esse singelo garfinho soterrado na batata com maionese, para sugerir a delicada degustação até que seja possível fechar e morder o sanduíche. A cidade não é barata, comer na rua é um assalto, mas pelo menos os fast food tem estilo (estilo monstro, mas ainda assim estilo) e salvam quando não dá tempo pra cozinhar em casa. Essa iguaria custa em torno de 3 euros
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Em Sint-Pieters-Woluwe, Brabant, Belgium. ••••• Me perdi no caminho do ateliê mas tudo bem, olha onde eu vim parar! Uma paisagem dessas no meio da cidade, benzadeus
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••••• Eu acho engraçado a palavra em francês pra solteiro ser “célibataire”... Esses dias me perguntaram se eu era casada e tive que dizer “non, je suis célibataire” e me senti uma monja, uma freira, uma incel
25 de outubro de 2019 • Hoje a Bélgica celebra o aniversário da princesa, ouvimos na rádio e minha colega de casa traduziu, a vergonha que eu sinto é inenarrável ahaha pqp
30 de outubro de 2019 • #AlimeNews quando me mudei pra cá, aluguei um quarto numa casa compartilhada quase que só por artistas - tirando um designer e uma jornalista, que mesmo assim estão ali nas áreas de atuação vizinhas. Foi realmente a melhor coisa que eu poderia ter feito, porque o pessoal é muito divertido, trocamos referências e discutimos sobre arte contemporânea durante as refeições, mas principalmente pelos acontecimentos aleatórios na casa. Agora por exemplo eu desci pra jantar e tinha um dos moradores montado de Jesus sexy drag queen, com uma coroa de espinhos dourada cintilante e um corpete que vi ele costurando essa semana na sala, e ensaiou a performance pra gente. Nunca tinha ousado sonhar com isso mas é a minha realidade agora: meu vizinho de quarto é uma drag queen. Mas o pessoal da casa também dança, escreve, toca piano, pesquisa, dá aula, canta, faz performances, sapateado e acrobacias circenses. E eu faço lá minhas coisas também.
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31 de outubro de 2019 • Se vocês soubessem quantas horas na fila e quantos papeizinhos precisei colecionar pra conseguir esse documento... No dia das bruxas me tornei oficialmente residente temporária em Bruxelas (lembro do poema da Angélica Freitas, “As bruxas de bruxelas”) Agora vai
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••••• #AlimeNews E ontem depois do show ainda fui levada num aniversário de uma pessoa que eu não conhecia, onde estavam fazendo um karaokê analógico cantando clássicos populares com acompanhamento de guitarra e harpa (sim, harpa). Daí não satisfeitos ainda fomos pra um bar, onde inevitavelmente acabei dormindo sentada. Quem me conhece sabe, sou dessas, quando tô com sono não tem o que me segure, não importa o lugar ou a situação. Ainda acordo e continuo na festa como se nada tivesse acontecido. Fomos mandados embora pela garçonete, que chegou pedindo desculpas mas que a gente tinha que sair. Tentei ser solidária e disse “não, imagina, a gente é que pede desculpas”, só que ela entendeu como “a gente é que sente muito” (ambiguidade de dizer “we’re sorry”) Me olhou bem séria e disse “isso foi bem condescendente, tu não acha? Só porque eu tenho esse emprego horrível?” E daí tive que explicar “nada disso, quis dizer que nós é que pedimos desculpas por estar no teu caminho atrapalhando, já tive vários empregos horríveis aliás” “Mas ruins tipo esse?” “Sim” “Ah bom, então tudo bem. E essa cerveja aqui vocês vão tomar?” “Não, pedi uma e vieram duas por engano, mas eu não aguento mais” “Beleza, então vou tomar na sequência” Aos poucos os acontecimentos aleatórios bruxelenses vão rolando, mas ainda preciso aprender francês pra ontem
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Novembro de 2019 4 de novembro de 2019 • Não acredito que viajei 11 mil km pra ver um show da Dona Onete A Bélgica tá mais perto do Pará que o Rio Grande do Sul... Ponto pra Bélgica
6 de novembro de 2019 • #AlimeNews Ontem fui num evento de arte aqui, uma oficina de publicação pra artistas e curiosos, até aí tudo bem. Muito legal a oficina, fizemos exercícios de escrita e desenho, umas 20 pessoas desenhando, rindo, tomando sua cervejinha. Fui sozinha e na saída estava conversando com o organizador. Ele disse “eu gosto desse tipo de evento porque dá pra socializar sem precisar ficar amigo das pessoas, acho que é um bom jeito de viver a cidade” Essa frase ficou ecoando desde ontem pra mim. Conviver sem fazer amizade, que ideal estranho de sociedade. Educação e impessoalidade. Tipo compartilhar um ônibus. Enquanto pessoa extrovertida fico meio murchinha às vezes com tamanho distanciamento afetivo, mas aos poucos me acostumo. E hoje ainda dei mole, demorei pra comprar ingresso pra Dona Onete e esgotou. Carimbó sucesso demais
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7 de novembro de 2019 • #AlimeNews Ontem certamente foi meu dia mais BR na viagem até agora, vou ser obrigada a relatar. Estava em casa chateada por não ter conseguido ingresso pra Dona Onete mas resolvi ir igual tentar meter o louco pra entrar (a mulher tá com 80 anos, não dá pra achar que vão ter muitas outras oportunidades). Chegando no lugar a primeira coisa que vi foi uma banca com a bandeira do Pará, pensei que a morena estaria vendendo discos, posters, camisetas da turnê, MAS NÃO, tava vendendo coxinha. Gênia do empreendedorismo. Ela não tinha ingressos mas me disse pra eu falar com o loiro de dreads no caixa, que era um espanhol. Joguei charme, hablei español, mas nada, só “lo siento, no puedo hacer nada”. Vi que tinham duas mulheres meio perdidas e pronto, também não tinham ingresso, eram belgas mas estavam encantadas pelo carimbó e queriam pq queriam entrar. Chegamos à conclusão que a Amazônia tá em chamas, dona Onete tá idosa, então o importante é dançar enquanto é possível. Uma era mais diplomática e disse que ia tentar passar uma conversa na organização, e a outra era mais terrorista e tava pilhando da gente simplesmente entrar correndo na maior. Eu já tinha chegado no maloqueirismo, com minha cerveja comprada no supermercado pra economizar, e depois ainda bebi uma outra que alguém abandonou quase cheia no balcão do bar - minha religião não permite ver cerveja boa ir fora. Importante lembrar que as cervejas daqui são muito fortes, cerca do dobro do teor alcoólico das nossas, o que facilita ímpetos e decisões improváveis. Conversava com a terrorista enquanto bebia meu drink encontrado, quando veio a diplomática e disse “poxa, mas vocês não entraram ainda? Passei mó tempão lá distraindo eles e vocês nem se mexeram”, daí a outra falou “ah, mas eu não vou, vai tu!” daí lembrei da minha máxima de viagem (“foda-se, ninguém
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me conhece aqui”) e discretamente me joguei pra trás das cortinas da entrada, subi as escadas correndo, sem saber onde era a entrada, sem nada. Ainda passei pelo loiro de dreads no caminho que simplesmente desistiu de tomar qualquer atitude. Deixa lá essa doida, azar. Abri a porta torcendo pra não ser a mesa de som/luz, mas por sorte era o camarote. Se eu fosse mais cara de pau, diria que a moral dessa história é “não desista dos seus sonhos”, mas na real é: ouçam essa mulher, ela é muito foda, ao vivo é maior ainda. Que elegância, que poder. E ela saiu do palco escorada em 2 membros da banda porque tem dificuldade pra caminhar, e ainda voltou pro bis mancando! Eu nem tive coragem de pedir bis, deixa a mulher descansar, mas que incrível ver a alegria dela em cantar e ser amada pela plateia. O corpo pedindo chega e ela dançando no ombrinho. Demais.
••••• Jantando com o pessoal, um dos caras que mora comigo disse pro outro “tu viu? Saiu uma notícia que a Bélgica é o país mais feliz da Europa” A crise de riso que eu tive, não conseguia parar. Imagina no resto da Europa? Eles são tão pouco efusivos aqui, escondem bem escondido essa felicidade
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9 de novembro de 2019 • Sabadou! Caipiruinia & coxhinas!
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13 de novembro de 2019 • #AlimeNews essa semana começou a esfriar de verdade, fazendo às vezes temperaturas perto do zero grau (e ainda é outono, coragem), até aí tudo bem, mas começaram a doer de frio minhas mãos pra pedalar no vento gelado, que é basicamente como me locomovo aqui. Ontem finalmente me entreguei pro frio e fui comprar luvas, daí na loja tinha tb uns capacetes pra ciclista, pensei até em criar juízo. Peguei um pra experimentar e na parte de dentro tinha uma padronagem escrito “eu amo meu cérebro”, achei pesado o marketing. Pior ainda foi ver o preço do capacete e chegar à conclusão que nem amo tanto assim meu cérebro, ele não vale 90 euros
14 de novembro de 2019 • #AlimeNews Já não tenho senso de direção nenhum, fato, mas isso combinado com não saber francês me leva a ápices jamais explorados de estar perdida. Vinha procurando o hostel, não tinha nada no lugar que o mapa dizia, só um prédio “Auberge de jeunesse” No caso a mesma coisa em francês, mas tive que dar a volta na quadra (na chuva!) e pedir informações apenas pra voltar no mesmo lugar, barbaridade... Ou, como diria uma querida amiga minha quando eu faço algo muito burro: “nossa, Alice, mas que ideia de doutoranda!”
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18 de novembro de 2019 • Meu trabalho no Extrapágina, exposição de cartazes com poesias visuais organizada pela Helene Sacco e o grupo de pesquisa Lugares Livro na Ufpel! Foto pela super maravilhosa Luana Alt Obrigada por me darem essa oportunidade de estar aí mesmo estando aqui! Desenhei uma ponte que propõe uma conversa entre imaginários, da estátua/fonte Jeanneke Pis em Bruxelas até algumas ações entre mulheres em Pelotas
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19 de novembro de 2019 • #AlimeNews Estou no aeroporto sentada esperando um voo que só parte daqui a 6 horas (porque já esperei 2), não tinha lugar pra sentar, o chão cheio de gente deitada, bem mais tenso que o aeroporto Guarulhos que vocês adoram reclamar. Vim pro bar beber até me teleportar no tempo, até aí tudo bem. Do nada sentam mulheres ao meu redor conversando entre si, meio gritando, numa língua que eu não faço ideia. Pergunto se alguma quer trocar de lugar comigo, pq estou no meio das conversas e não estou participando. Ela só me olha indiferente, não fala inglês. Español? Não, também nao, mas a outra pergunta se falam espanhol em Valencia, digo que sim, pq? Com mímica e línguaesquisitíssima-nhol ela explica que foi a Valencia uma vez, pergunta se eu fui tambem. Não, não fui a Valencia. Fracasso total na comunicação, me resta beber até esquecer os barulhos, o relógio, tudo
20 de novembro de 2019 • Apresentei minha pesquisa pela segunda vez hoje na universidade daqui e mddc como é difícil fazer isso numa língua não nativa. Meu inglês é bem decente pra me comunicar na vida cotidiana, ainda mais se pensar que aprendi na garra e na gambiarra, sem nunca até 2 meses atrás ter saído da América do Sul, e a maior parte sem professor. Mas vai lá explicar uma tese, outro nível de complexidade... Por outro lado é bom porque fica mais fácil de ver onde o discurso precisa ser melhor trabalhado, qualquer buraco na costura fica gigante. Estou exausta, que surra de linguagem. Vai ter que ficar mais fácil uma hora dessas, pelo amor de deus Alime News acadêmicas
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21 de novembro de 2019 • - desculpa dizer isso, mas eu tô aqui olhando pra tua pele e tu não parece ter muita ascendência indígena, se os portugueses não tivessem invadido o Brasil tu também não teria nascido né? - mas exatamente, e quem disse que nascer é uma coisa boa? até parece que ia fazer falta pro mundo
22 de novembro de 2019 • #AlimeNews Ouvi dizer que brasileiros morando fora do Brasil fazem loucuras por saudades de casa, até agora (2 meses e meio) eu já: - quase fiz uma feijoada pro pessoal da casa mas acabei desistindo porque ninguém se habilitou a me ajudar e é muito trabalho (nunca fiz feijoada completa no Brasil mas amo) - cantei Evidências na rua voltando pra casa - ataquei brasileiras no supermercado no dia que soltaram o Lula porque queria falar com alguém que entendesse o sentimento (e elas não me deram moral) - entrei de penetra no show de 80 anos da Dona Onete - rebolei involuntariamente em ambientes diversos ao som de batucadas e funk, pasma em constatar que a raba da população local não se move Mas hoje cheguei ao auge de sentir saudades até de Porto Alegre. Muito estranho viver em um local onde é mais fácil chover homens de chapéu de coco do que passar o Cara da Sunga* correndo. ~~~~~~~~~~~~~~Imagem: René Magritte, “Golconda”, 1953~~~~~~~~
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*Corredor folclórico de Porto Alegre que corre apenas de sunga e chapéu
A arquitetura presente nas pinturas do Magritte, que sempre me pareceu misteriosa e exótica, é a mais comum aqui em Bruxelas. Esse tom de bege predomina. Continuo pelas ruas, procurando paisagens antropomórficas, maçãs gigantes e enigmas
23 de novembro de 2019 • Comidas “exóticas”: feijão preto
25 de novembro de 2019 • Já ensinei 2 moradores daqui de casa a fazer pão de fermentação natural (somos 7), pra ter pão saudável, quentinho, delicioso e barato pra todos nós, sem sobrecarregar ninguém. Daqui a pouco isso vira uma cooperativa de padeiros haha Tô me sentindo contagiante, salvem a professorinha
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26 de novembro de 2019 • Há horas quero voltar a fazer exercícios pq passo a maior parte do dia sentada, e não quero ser um cérebro ansioso carregado por um corpinho maltratado. Tá começando a ficar frio de verdade e não é mais tão legal fazer minhas pedaladas de 20, 25km. Ontem fiz toda uma pesquisa procurando academias de artes marciais, acabei optando por uma de aikido, que acho uma das lutas mais elegantes, gosto dessas que focam nas alavancas e imobilizações mais do que em socos e pontapés. Liguei pra lá e atendeu um cara que disse “sorry, I don’t speak English”, daí usei o suprassumo do meu conhecimento pra dizer “pardon, je ne parle pas français”, e os já clássicos “merci” e “au revoir”, triste fim Esqueço que estou na Bélgica, a universidade fala inglês, o resto não. Parece que não vai ter mesmo escapatória pra aprender francês, é no laço mesmo. Estuda, desgraça. Ça va, croissant
28 de novembro de 2019 • No bonde duas crianças fofinhas brincando, acho que são irmãos. Brinco junto um pouco, sorrindo pra eles, que em troca se divertem com a audiência. Meu fone de ouvido cai e ouço eles conversando em francês. Me lembro que alguém uma vez contou que viajou pra não sei onde e achava graça das crianças pq pensava “que lindo, tão pequeninos e já são fluentes em inglês”. Que ideia besta, mas é inevitável pensar isso também quando microesqueço que eu é que não sou daqui. Entender errado de propósito, como nos passatempos sugeridos pelo Cortázar, anima meus dias. Talvez seja cacoete de míope. Não importa ter operado as vistas, se passei a maior parte da vida enxergando errado e entendendo com delay. Claro que perdi a parada escrevendo isso. Mais um dia perdida aqui
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29 de novembro de 2019 • Ontem eu descobri que pessoal bota hortelã na “caipirinha” daqui... Mojito, caipirinha, Brasil, México, tanto faz... América latina segundo o imaginário local é algo impressionante 2 de dezembro de 2019 • Semana passada quase matei um frances de rir porque falei que o Brasil tá numa treva de fake news tão profunda que nem certeza se o biroleibe foi esfaqueado de verdade nós temos. Ele ficou em choque, ria de olhos arregalados e repetia “não pode ser... não pode ser...” Difícil um país mais lóqui que o nosso atualmente
3 de dezembro de 2019 • Fui na farmácia e o atendente usava um botton “se vacine, se proteja”. Achei digno da parte do estabelecimento mas apavorante ser lembrada que viajei pro outro lado do mundo e pelo jeito o movimento anti vacina aqui deve ser enorme, a ponto de mobilizar uma campanha de conscientização dessas. Cada qual com sua mamadeira de piroca
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Dezembro de 2019 ••••• Não acredito que a minha orientadora me fez vir numa defesa de doutorado em holandês, só entendo as figurinhas Apreciem esse belíssimo slide com citação do Umberto Eco:
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9 de dezembro de 2019 • E o doutorado, como vai? Bem, estou traduzindo as letras da Banda de Garotas Instantâneas (Instant Band Grrrls - IBG.) e botando notas de rodapé explicando fenômenos como por exemplo o que é uma mulher fruta Basicamente vim aqui entreter os belgas, mesmo Vamo que vamo BR ps - ator pornô também
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12 de dezembro de 2019 • Eu ainda não superei ter ouvido a expressão ‘pessoas ilegais” pra justificar tratamento desumano ao vivo. E o serumaninho parecia boa gente até 5 minutos antes, a banalidade do fascismo é horripilante aqui também
14 de dezembro de 2019 • Estou aproveitando esses meses pra usar ao máximo o adjetivo “transatlântico”
••••• cá estou novamente procurando couchsurfing e tem um cara que, ao descrever a si mesmo, diz “oi, meu nome é fulano, sou um cara hétero gente boa, que gosta de pessoas, da vida, da música. Sou cabeça aberta e estou disponível pra praticamente tudo, me convide” impressionante como o cara começar dizendo que é um homem hétero deixa qualquer coisa sinistra a seguir, não é mesmo? nada contra, tenho até amigos que são
15 de dezembro de 2019 • a universidade aqui é tão legal que até um dos secretários se chama Brecht e ele manteve a simpatia mesmo quando eu perguntei se vinha do Bertold. Fiz igual ao pessoal que me pergunta do País das Maravilhas sem querer Perguntas óbvias que estamos destinados a ouvir por décadas até o dia de nossa morte
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••••• Um daqueles entregadores de bicicleta desceu a ladeira gritando “ííiiiirraaaaaa” que nem cowboy do Texas Isso que é disposição
16 de dezembro de 2019 • #AlimeNews Hoje veio um pessoal do brique buscar coisas aqui em casa pra reciclar, só tinha eu pra receber, metade do povo viajando pra visitar família no Natal. Foi um misto de linguagem de sinais e desespero, nenhum deles falava inglês, meu francês ainda não é real, o que é engraçado porque consigo entender um pouco mas não sei formar frases, de forma que quando um perguntou “que que ela disse?” e o outro respondeu “eu sei lá”, entendi mas não consegui fazer nada. O rapaz ainda teve a gentileza de me informar que as línguas oficiais de Bruxelas são francês e holandês, obrigada, eu não sabia De fracasso em fracasso vou aprendendo, esse é o método tapa na cara O atelier e a universidade são principalmente em holandês, então algumas palavras fundamentais como “imprimir”, “papel”, “arte”, “calcografia” e outras de sobrevivência estou aprendendo igualmente no laço. Mais um dia explorando a sensação de profunda ignorância e desconexão, mas até que tem lá seu charme. Sdds portunhol da fronteira. À bientôt
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••••• Mais um dia verificando perfis que possam me hospedar, ainda bem que essa mulher anunciou que esse cara não é confiável. Que desânimo ler coisas assim, mas ser mulher e viajar sozinha (também) é isso. Pelo mesmo motivo, a maioria dos perfis do CS são de homens, afinal eles tem menos motivos pra temer hospedar ou serem hospedados por estranhos (quando não são eles próprios predadores como o cara que me recebeu em Lovaina) Toda vez a sorte é lançada de novo, se eu fosse homem viajaria mil vezes mais, pegaria carona, etc O mundo pune as nossas tentativas de deslocamento
18 de dezembro de 2019 • Finalmente passei por um cara de chapéu de coco, igual às pinturas do Magritte. Tive um impulso de seguir ele, como um coelho branco, mas lembrei que não estou em um filme e isso seria ridículo. Pena, os dias que me permito ser ridícula são os mais felizes. Porém ele estava caminhando, e não chovendo, não era o surreal de verdade. Importante prestar atenção aos detalhes.
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19 de dezembro de 2019 • Deu tilt no aquecedor da casa, chacoalha e faz um barulho sinistro, parece que vai explodir. Chamaram um técnico que supostamente viria ontem às 10 da manhã, e só as 6 da tarde pediu desculpas (sem nenhum tipo de explicação nem nada) e disse que viria hoje 10 da manhã. Ok... daí hoje, pelas 11:30, mandou dizer que tava chegando em 15 mins, mas já passou mais de uma hora (e contando) e nem sinal do cidadão. Mas o que me surpreende de verdade é que tá todo mundo achando normal, isso no Brasil daria uma treta... E a gente sempre acha que nosso país é fodido e todos os serviços na Europa funcionam melhor, mas não é bem assim, hein. Por outro lado também não temos aquecimento, que dirá técnico pra consertar, só aquelas estufas mequetrefe e olhe lá, com o preço que tá a luz. Contei outro dia que na minha terra faz frio igual ao que tem feito aqui, só que nosso jeito de lidar é simplesmente fingir que não tem nada acontecendo até passar o inverno, se esquentar com sopa, chá, etc. As pessoas acham bizarro e inimaginável, mas são apenas todos os 33 invernos que passei antes desse, e isso que nem comentei que a primeira vez que morei no Cassino era tão frio na beira do mar que tinha dias que eu pedalava até suar pra voltar em casa e lavar a louça com a agua congelante da torneira. Aí a gente peleia demais, e aqui a vida é muito fácil. O contraste me choca toda hora. Não posso me acostumar
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20 de dezembro de 2019 • Ontem fui numa vernissage na universidade e estava lá conversando com a comunidade acadêmica quando fatalmente o assunto caiu no bozo. Aquela coisa, as pessoas ficam tristes e meio com pena do Brasil sem entender essa escolha deliberada pela destruição e decadência. Mas às vezes eu canso de ficar triste e desesperada com isso, e ontem eu quis radicalizar, pra aliviar a depressão geral que esse assunto traz em qualquer ser humano com o mínimo de bom senso. Sobre as fake news mandei um “mas isso não é nada, na época das eleições eles fizeram uma parcela da população acreditar em mamadeiras de piroca fabricadas e distribuídas pela esquerda pra deixar a população mais gay”, quase matei o vivente do coração “mas tu tem que estar brincando!!”, queria estar... Surrealismo distópico à brasileira, quase causa ataques cardíacos nos belgas. e olha que eles inventaram o surrealismo
••••• Hoje passei por um cara pedalando uma bicicleta com um carrinho de bebê acoplado, quase joguei um biscoito* mas segurei a mão no bolso. Patriarcado suave
21 de dezembro de 2019 • Fachadas incompreensíveis
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Jogar um biscoito: jargão feminista pra elogiar um homem por ser minimamente decente
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24 de dezembro de 2019 • Todo mundo foi viajar pra estar com suas famílias e fiquei só, me despeço do povo, subo pro quarto e encontro isso... Afff Uma cesta de cervejas Amei
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30 de dezembro de 2019 • #AlimeNews E hoje foi o dia de conhecer as sobrinhas (4 e 6 anos) de uma das moças que mora aqui na casa. Nada como tomar meu café enquanto uma delas brincava de contar histórias com o seu “filhote de pinguim unicórnio de pelúcia” usando meu cabelo como cenário. Poucos dias lamentei tanto não falar francês quanto hoje (entendo um pouco, falo uma miséria) E a moça explicava pra elas que eu vim de muuuito longe, e elas perguntaram “de onde? Da Itália? Da Espanha?” quando finalmente contei que mon pays c’est Brésil elas nem sabiam que lugar é esse Mas talvez o mais fofinho foi quando elas deram tchau em coro, aquelas vozinhas fininhas sincronizadas dizendo “au revoir éliss” Tão pequeninas e já falam francês não é mesmo
••••• #AlimeNews Dez pras 5 e já é quase noite. Depois de incontáveis dias cinzas, hoje fez uma tarde ensolarada, parecia uma alucinação. Até dei um mini passeio de bicicleta com sol no olho, meio cegueta mas comemorando. É muito estranho esse clima. Agora entendo pq tantas imagens de tucanos na publicidade, nas pinturas, nos desenhos. O devaneio tropical como paraíso distante, mas ainda possível. Eu que não sou gringa acompanho à distância os termômetros gaúchos (41 graus, sensação térmica de 50 em alguns lugares) e valorizo essa penumbra daqui, o verão de Porto Alegre dá vontade de morrer, não tem banho, picolé, cerveja gelada que resolva. Tudo é suor e barulho e mosquitos. Produzir é missão quase impossível. Aqui o frio e a falta do sol desanimam mas pelo menos fico em casa trabalhando/desenhando freneticamente
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Janeiro de 2020 1 de janeiro de 2020 • A neblina era tão espessa que engoliu os fogos de artifício, que bela metáfora da melancolia
4 janeiro de 2020 • Morar na Bélgica é esse incentivo constante ao alcoolismo. Aqui por exemplo, temos uma cerveja natalina com doze % de álcool, que te leva direto pra Antártica com direito a papai Noel, renas e tudo. Skol beats é brinquedo do lado disso aqui. E custa 2 euros, ou seja, uns 9 conto. Ainda por cima o gosto é bom. Tudo é caro nesse lugar menos a cerveja, um peligro
5 de janeiro de 2020 • Aqui na casa tem uma regra, qualquer comida em cima do fogão ou na mesa da cozinha não tem dono, é de quem quiser. Daí se demorar pra guardar a sobra do almoço, já era... Hoje fui esperar esfriar pra botar no tupperware e perdi. Pelo menos fico feliz que apreciam meus talentos culinários, tem uns rangos tristes que às vezes ficam 2 dias em cima do fogão e ninguém liga, isso sim me deixaria derrotada
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6 de janeiro de 2020 • A ingenuidade do Facebook me mostrando anúncios sobre parar de beber cerveja, como se de todos os momentos possíveis da vida eu fosse escolher justo esse. Preciso vingar todas aquelas “Colônia” e “Glacial” quentes, esse é o local e o momento
••••• 4 meses aqui e ainda de vez em quando acabo abraçando pessoas por engano, só lembro no meio do gesto que aqui não existe esse costume, e não tem como voltar atrás, para constrangimento de todos os envolvidos, o que é o contrário do objetivo do abraço. Quando eu voltar vou abraçar todo mundo, quero nem saber, se preparem
••••• O único homem hétero que morava com a gente, e também o único não artista (mas quase, ele é designer), nos abandonou e foi morar sozinho. No lugar dele veio uma mulher, então agora a casa é 100% mulheres e viados das artes, o auge. Parece a faculdade, só falta a “extensiva plantação de maconha” que o Weintraub* alucina quando não toma os tarjas pretas dele
8 de janeiro de 2020 • 3 e pouco da tarde e já praticamente noite
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* à época, ministro da educação
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13 de janeiro de 2020 • #AlimeNews Hoje fomos abordadas por um italiano aleatório que fez várias fotos nossas (cobrou depois, malandro) falando metade em italiano metade em inglês, num dialeto só dele, e ainda no final me lançou uma cantada, no maior se colar colou. O cara com três mil anos de idade e metade dos dentes faltando, auto estima masculina é realmente uma coisa incrível. Porém as fotos ficaram fofas
22 de janeiro de 2020 • #AlimeNews entramos eu e minha amiga numa lancheria pra dar uma enganada no estômago enquanto fazemos nossa peregrinação por galerias de arte. Quando vou pagar o almoço, a senhora que me atendeu (uma asiática com um inglês quase incompreensível) pergunta se eu não quero um café, diz pra eu voltar ali depois de almoçar. Volto e pergunto pra outra atendente pelo café grátis que supostamente acompanha o almoço e, antes que ela possa me responder, a senhorinha interrompe ela dizendo que vai me atender. Sem nenhum tipo de sorriso ou gesto de acolhimento que nós brasileiros faríamos, pergunta de qual café eu gosto, se café preto, com leite, cappuccino, que ela vai me dar um de presente porque eu deixo ela feliz (you make me happy). Eu definitivamente não entendo os europeus (e não latinos em geral), porém quase morro com a gentileza inesperada às vezes. Incrível como conseguimos conviver sem ter a menor ideia de como afetamos uns aos outros
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••••• #AlimeNews e ainda hoje passamos por uma exposição de uma artista brasileira. Entramos na galeria onde no centro há uma mulher de cabelos loiros vaporosos - como uma personagem do David Lynch, mas sem a parte do pesadelo. Como curiosidade, ela me olha. Retribuo o olhar. De algum lugar que não é visível, alguém toca piano, o que deixa tudo mais improvável e cinematográfico. Ela dá oi, retribuo o oi. Então pergunta “por acaso tu tá procurando por mim?”, nesse momento já estou entregue à irrealidade onírica e respondo que não sei (...?) Ela ainda me olha sorrindo misteriosamente e sem pressa. Pergunto se por acaso ela é a artista, ela diz que sim. O papo vai e vem, descubro que ela é amiga do meu professor de pintura da graduação. Tira uma foto nossa pra mandar pra ele. Acho que só faltava a Martha chegar aqui mesmo pra aleatoriedade me encontrar de novo.
••••• #AlimeNews Entramos na galeria e, dentre outras coisas, tinha essa escultura em forma de exclamação peluda. Perguntei pra segurança se podia soprar a escultura. “o que tu quer fazer? comprar?”, “não, não, quero soprar, assim ó, ffffu”, e ela categórica: “não, não pode” Muito frustrada estou
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25 de janeiro de 2020 • em Oostende De neblina em neblina
26 de janeiro de 2020 • #AlimeNews então chegamos a Bruges, cidade que parece cenográfica com seus castelos medievais de iluminação dramática. Já é noite, por todo lado a neblina espessa, deixamos as mochilas e saímos pra caminhar. Não demoro a ser abordada por um senhor idoso, de bermuda e camiseta, a sensação térmica é de -1 grau. Ele vem falar comigo em holandês e preciso sinalizar algumas vezes que não entendo nada até ele trocar a chave da linguagem pro inglês. Na boca, apenas um dente, sobrevivente de sabe lá quais batalhas. Ele quer saber as horas, são 19:45, mas não adianta, quer que eu veja as horas no relógio DELE, deve ser o relógio mais confiável do mundo. Ele treme muito, não sei se de frio, de parkinson ou o que. Não consegue olhar o relógio de pulso. É daqueles complicados, analógicos com três ponteiros, e tremendo ainda. Se nem ele consegue entender, muito menos eu. Finalmente se conforma com horário do meu relógio mesmo, fazer o que. Agradece, manda um “Deus salve a rainha!” e vai embora fazendo cooper. Nada como a cidade dando boas vindas
••••• Pô, tem um karaokê de metal aqui (que conceito! Fica a dica pros pelotenses cidadãos do mal) que eu adoraria ter ido encher a cara e cantar Black Sabbath mas infelizmente minha amiga não topou e fomos pro hostel dormir. Talvez a imaginação seja melhor que a realidade, não saberei
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29 de janeiro de 2020 • Vejo fotos do pessoal no Brasil e penso “nossa, que loucura, quanto sol” Eu já não tenho muita cor, vou voltar daqui uma fantasma
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Fevereiro de 2020 3 de fevereiro de 2020 • #AlimeNews Até o ano passado eu nem tinha passaporte, não fazia sentido ter, só tinha cruzado algumas poucas (duas, pra ser exata) fronteiras dos meus vizinhos gaúchos do Mercosul (pra quem não sabe eu nasci e fui criada no fim do Brasil ou, como diriam os fasci-bozistas locais, no Sulito). Quando peguei o avião em direção à Bélgica parecia uma nave espacial indo pra lua. Por um tempo, essa era a comparação que eu fazia: a Europa era como a lua, um lugar que existe, mas que não parecia possível de pisar. A sensação de irrealidade era inabalável por dias, parecia tudo falso, as ruas sem assaltos, os ônibus elétricos, as caminhonetes de waffles, a estrutura da universidade, o euro. Volta e meia batia a vertigem quando eu pensava que estou aqui mesmo e é verdade. Aos poucos fui aterrizando e, principalmente depois de passar por alguns baques e tristezas, parece mais real. É muita coisa pra absorver desse choque cultural e provavelmente ainda vou levar anos pra entender o que vi (só a política interna desse país que tem menos de um décimo da área do RS já me confunde à beça) Não sei aonde eu queria chegar com essa reflexão, mas pelo menos já começo a perceber algumas diferenças entre a Europa (uma das quatro luas de Júpiter) e a nossa própria lua Esses alimenews tentam aliviar minimamente os 11 mil km
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••••• E hoje expliquei pro pessoal da casa quem é o chupacabra, com imagens e tudo. Eu vim pra disseminar a cultura popular brasileira
5 de fevereiro de 2020 • Como as pessoas vivem aqui sem panela de pressão?
7 de fevereiro de 2020 • #AlimeNews alguns comentários sobre o Brasil que ouvi por aqui: “eu adoro que os brasileiros estão sempre fazendo o gesto (de joinha) pra tudo, fico feliz, me dá a sensação de que tá tudo bem” “ahh tu é brasileira? Que legal, eu amo música brasileira!” (principalmente bossa nova, eles amam mesmo, e toca em tudo que é lugar) “ahhh que lindo, vocês falam português brasileiro, eu adoro escutar, a sonoridade me encanta!” (essa eu ouvi de uma francesa, segurem os complexos de viralata aí) “brasileiro tá sempre de calça jeans, acho que é obrigatório usar calça jeans lá” (essa foi uma belga que foi ao Brasil mas só visitou São Paulo, se for considerar só esse estado a regra confere) “as danças brasileiras são muito lascivas, alguns desses movimentos nós só fazemos entre quatro paredes” (se referindo ao funk, sdds do rebolado do meu povo) Muito divertido ser estrangeira e os belgas são receptivos e engraçados, do jeitinho reservado deles
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9 de fevereiro de 2020 • #AlimeNews Quando eu era criança e ouvia “Here Comes The Sun” dos Beatles, achava que o George Harrison cantava “minha querida, tem sido um inverno longo, gelado e solitário, parece até que ele está aqui há anos” como uma metáfora poética mas, estando aqui ao lado da Inglaterra, agora compreendo que era muito literal, o inverno daqui deixa qualquer um deprimido. Os dias ensolarados são raríssimos, o país entra numa penumbra que parece infinita. O frio não é muito diferente do RS (a mínima que peguei aqui foi -4, que também faz em Pelotas, embora cada vez menos comum com o aquecimento global), mas lá pelo menos comemos bergamota no sol toda hora e as pessoas se abraçam. Aqui por ser um país rico tem aquecimento por tudo, mas quando o sol vai embora leva a alegria das pessoas junto. Anteontem fez um dia lindíssimo e todo mundo saiu pra rua pra saudar o sol e o céu azul, pessoas sorrindo, confraternizando, parecia outro lugar. Mas agora já voltou ao normal, o céu cinza leitoso, e quando saem raios de sol geralmente dura uns 15 minutos. Até meus desenhos perderam as cores
13 de fevereiro de 2020 • E hoje uma moça que mora comigo perguntou o que é “troca troca”, que ela andou ouvindo um pessoal brasileiro falar... Ainda se usa essa gíria? Tão anos 90... Alime old Brazilian gay slang news As coisas brasileiras que eu explico na casa: chupa cabra, troca troca... Onde isso vai parar?
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15 de fevereiro de 2020 • Ontem tinha um feministo na festa e o cara disse que teve o AZAR de nascer homem, pro desgosto geral das mulheres na rodinha. obvio que era hetero Os caras se superam mesmo pra trovar mulher, fazia tempo que não via um desses ao vivo. Ele ficou revoltado comigo pq falei que homem não pode ser feminista e me interrompia sem parar pra explicar que pode sim, que ele é sim, eu é que não entendo disso, e que “essa segregação não leva a nada”. pq claro que o que falta no feminismo é dar mais espaço pra homem se sentir à vontade, daí sim vai rolar Grandes momentos do discurso: “mas o que é que eu vou fazer, cortar fora meu pau?”, sei lá meu filho, ninguém liga
18 de fevereiro de 2020 • #AlimeNews Tô muito empolgada pra conhecer o carnaval belga, tem tudo pra ser o ápice do choque cultural. Mas também pode ser que não seja tão grande, já que nos últimos anos presenciei o estranho carnaval porto-alegrense...
19 de fevereiro de 2020 • Monarquias... E não é em conto dos irmãos Grimm, é hoje, aqui. Bizarro demais •••••
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#AlimeNews O cozinheiro do restaurante universitário, que é espanhol/marroquino, hj me indagou: - e tu, vai ficar aqui ou vai voltar? - não tem escolha, preciso voltar, tenho um compromisso com o governo nacional, assinei papéis e tal - aquel gobierno de mierda?? Não posso negar, fiquei sem argumentos
••••• “Mesmo que a Internet seja hoje como uma enorme revista global editada por um louco, começamos a concebê-la como um espaço de eventos, um lugar onde coisas podem acontecer” John Reaves (1995)
21 de fevereiro de 2020 • Vcs tem noção que difícil eu estar aqui e não poder falar pra todo mundo na rua “bah, vocês viram que já tem até bloco de Carnaval com a retroescavadeira??” Mas não, preciso fingir normalidade Tá igual aquela vez que o Lula saiu da prisão e ninguém aqui se importa Fazer o que né, pelo menos fica mais fácil concentrar na escrita da tese
23 de fevereiro de 2020 • Consegui uma carona pro famoso Carnaval de Aalst (famoso na Bélgica, relevem) com uma brasileira e um cônsul cubano, acho que agora vai
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••••• #AlimeNews vou fazer um live blogging do carnabelga em Aalst aqui embaixo
O primeiro bloco era essa galera com roupas de sininhos jogando bergamotas na galera Pelo que eu pesquisei sobre o Carnaval dessa cidade é uma tradição que surgiu lá antigamente, quando os trabalhadores da cidade que não tinham grana mas queriam participar da festa começaram a vestir as roupas das mulheres deles, daí fica esse troço bizarro e precário, que depois virou uma estética. Era o que mais tinha, homens com sobreposições de roupas nada a ver com nada Agora passou um bloco de gente vestida de abelha chamado to bee or not to bee Passou um bloco vestido de astronauta e ganhei um drink!
25 de fevereiro de 2020 • Dançando com as velhinhas bêbadas no Carnaval da Valônia, daí sim
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••••• Carnaval maravilhoso, exceto pelo fato de que CHOVE GELO. Mais uma prova de que Deus odeia quem se diverte
27 de fevereiro de 2020 • Dizem que hoje neva aqui, seria o auge da minha alegria de caipira Ontem nevou mas eu não vi pq tava distraída em casa
••••• #AlimeNews Tô compilando aqui o AlimeNews e não é que eu escrevi um monte de diários de viagem desde que cheguei? tinha pensado em fazer uma versão bilíngue português/ inglês mas a maioria nem tem como traduzir, porque eu tava justamente aproveitando o canal do FB com vocês pra gastar o meu brasileirismo verbal ao máximo (gírias, expressões e especificidades pra todo lado, ia ser uma chuva de nota de rodapé) não sei ainda como vou resolver isso achei que ia ser uma zine minusculinha mas talvez não... como é bom poder falar a língua nativa da gente
29 fevereiro de 2020 • Passei na frente de uma loja de especiarias chamada BEAUTIFOOD, zoadaço
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Marççco de 2020 1 de março de 2020 • Morar em uma república só com artistas parece uma ideia que só tem como dar errado, mas na verdade é: do nada num domingo cinza a vizinha do quarto de cima começa a tocar violoncelo
2 de março de 2020 • Lendo uma citação do Cildo Meireles em inglês, não tem cabimento mas é o que temos para o momento haha Ao mesmo tempo que orgulho ver o Cildo todo traduzido e publicado pela editora do MIT Que legal viajar pro “primeiro mundo” e ver que a arte brasileira é extremamente presente e respeitada no panorama internacional Não sejam bolsonabos, antes de sair abanando o rabo pra qualquer gringo de meia tigela valorizem a excelente produção artística brasileira
4 de março de 2020 • Num supermercado aqui perto de casa fizeram uma promoção, comprando duas cervejas Corona leva uma Mort Subite de brinde
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••••• Tava na rua agora resolvendo umas coisas quando vi um cara vindo na minha direção com um sorriso falando umas coisas em francês, saquei na hora pela postura corporal que era desses de ONG vindo me pedir dinheiro. Preguiça instantânea do bom mocismo europeu, quis cortar o mais rápido possível a conversa com “não falo francês”, mas o moço era bem treinado e já mandou um “não tem problema, eu falo inglês” mostrando que ele não ia desistir de importunar. Percebi que ia ser difícil sair dali, mas tentei de novo: “Tu vai me pedir dinheiro, né? Eu não tenho”, “ah, mas não precisa pagar nada agora, só depois”, “não tenho dinheiro agora e não vou ter depois, principalmente se tu for europeu. Sou brasileira, eu que devia te pedir dinheiro. Geopolítica, coisa e tal, tá ligado? Tu gostaria de doar para a minha causa latino americana?” Mas o infeliz não conhece a famosa hora de parar e disse “ah, desculpa, é que tu não tem cara de trabalhadora. Veio aqui passear, trabalhar?” A essas horas eu deveria ter mandado o fdp à merda mas, pela horrível boa educação que tive, continuei falando com aquele estranho, como se eu devesse qualquer satisfação, “vim estudar” “e veio estudar o que?” “por que tu quer saber?” “por nada, fiquei curioso” Daí lancei a última cartada do desespero pra sair pela esquerda “tô ocupada, preciso ir” Esse pessoal ONG kumbaya adote um tigre salve a Amazônia me irrita de um jeito muito especial
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5 de março de 2020 • #AlimeNews Ontem uma mulher que trabalha na universidade me perguntou se eu tenho algum namorado ou namorada que deixei no Brasil. O tipo de pergunta que jamais fariam no BR porque já supõem que todo mundo é hetero, e que sequer imaginar o contrário pode ser ofensivo. Pode parecer pouca coisa, mas faz toda a diferença pra gente se sentir aceito e visível. Amo a porcaria do meu país e tenho saudades, principalmente vendo tantas fotos lindas de vocês purpurinados e bronzeados no Carnaval, mas em tantos sentidos a treva é tão profunda que vai ser estranho voltar, muitos sentimentos
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8 de março de 2020 • Indo pra marcha do 8 de março de Bruxelas e tô no mesmo ônibus de um feministo com um cartaz escrito “Merci Simone” e uma foto da Beauvoir Do lado dele uma moça com um cartaz que a foto é um macho fazendo aquela foto clássica de pegar o sol com os dedos mas o sol tá lá do outro lado. O moço está legendado “homens” e o sol “meu clitóris” Mais um dia tragicômico pronto pra começar E chove, São Pedro macho escroto
11 de março de 2020 • #AlimeNews Estão proibidos eventos fechados pra mais de mil pessoas na Bélgica, o pânico é real. Ontem fui no supermercado e achei meio vazias as prateleiras, mas pode já ser paranoia também, sei lá. Quem é corona vírus na lista de coisas fora de controle que causam pânico no brasileiro atualmente? First world problems tão literal que quase posso pegar com as mãos Não estou no Brasil fisicamente, nem aqui afetivamente, mas em algum lugar no meio. Em breve eu volto, tento engolir a biblioteca antes de partir, mas tenho que aceitar a velocidade metabólica intelectual que tem lá seus limites A chuva fina aqui é eterna, definitivamente não é um país tropical abençoado por deus
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12 de março de 2020 • Na universidade tem agora cartazes com medidas pra evitar o coronavirus, algumas impraticáveis como “evitar transporte público e museus”, mas a mais incrível é “evitar contato físico, abraço, toque, etc”, ué, mas já não estavam evitando?
••••• #AlimeNews Fui fazer um lanche no intervalo de trabalho num fast food libanês (melhores comidas baratas, salvam muito), tudo certo, daí no caixa o cara perguntou se eu sou italiana. Não né, pq? Daí começaram a rir e me liguei que era zoeira com o coronavirus. Perguntou de onde eu vim, ah blz, Brasil não tem problema, brasileiro pode vir. A essas alturas o deboche já era generalizado inclusive com os clientes participando no debate se brasileiro é contagioso ou não. Na saída fingi uma tosse só de sacanagem também, dei tchau e “não vai esquecer de lavar as mãos, hein?” (lá de onde eu venho tomamos muito mais banho, não ia deixar barato) Que bom não ser italiana nesse momento, tá tensa a situação, disso pra descambar pra xenofobia descarada é um passo, se é que já não tá rolando, principalmente com asiáticos e tal Como já disseram, tenho mais medo das reações das pessoas do que do vírus
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13 de março de 2020 • Fecharam escolas e bares na Bélgica até o início de abril, pelo menos tô com vários livros emprestados da biblioteca Seria uma pena se eu tivesse passado o dia no ateliê ontem gravando duas telas lindas pra imprimir uma serigrafia em duas cores no sábado... Supermercado em caos, prateleiras vazias, pessoas estocando pra se enfiar num bunker Espero que em compensação Bolsonaro e Trump estejam infectados com essa porcaria
••••• Fiquei horas ontem no ateliê fazendo minhas gravuras, com a ajuda do técnico super querido e eficiente, ninja da serigrafia. Fomos embora quase 10 da noite e pra nos despedir batemos os cotovelos um no outro, que é um jeito afetuoso de dar tchau, mas sem risco de coronavirus “nos vemos sábado pra imprimir as telas” Mal sabíamos que o governo ia fechar todas as instituições de ensino até abril no mínimo. Espero imprimir essa bagaça antes de voltar
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••••• Que irônico pensar que pra conseguir o visto até radiografia do pulmão eu tive que fazer, e agora tô aqui, no foco da peste
14 de março de 2020 • Depois dessa eu tinha que fazer uma camiseta tipo aquelas do Rock in Rio “coronavirus na Europa, eu fui”
15 de março de 2020 • Os belgas estocando cerveja pra quarentena hahahaha bom demais
16 de março de 2020 • Quando eu estudei inglês, lá no milênio passado, parecia impossível que fosse usar algum dia saudações como “best regards”, esse nível de formalidade que não faz parte do nosso cotidiano brasileiro, mas cá estamos aprendendo inclusive variações, que é pra não parecer que os e-mails foram escritos por robôs. No br até pra email de trabalho não é incomum a gente terminar com “bjs” ou “abçs”, no máximo aquele “atenciosamente” As diferenças culturais aqui vão do macro ao micro, incrível
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17 de março de 2020 • Coronavirus news: ontem compramos um saco de 5kg de farinha, tô me sentindo muito padeira do apocalipse. Além disso compramos legumes e vinagre e fiz uma porrada de picles (abobrinha, cebola, cenoura, gengibre, pepino) Na pior das hipóteses vamos ter torradas com picles pra chuchu Fiquem em casa, criaturas. Se minha avó pegar esse troço eu vou voltar pro BR só pra dar na cara de vocês Lavem as mãos e evitem contato com quem faz “protesto a favor”
18 de março de 2020 • Foi estourar o coronavirus que o clima ficou lindíssimo, essa sincronia entre pandemia e primavera é uma prova clara que Deus odeia os europeus. Estávamos a meses sem sol nesse lugar, até ontem
20 de março de 2020 • Na Bélgica estamos em lockdown, fechou tudo menos lojas de artigos de primeira necessidade: supermercados, farmácias, lojas com produtos pra animais e livrarias. Sim, sério. Livros no mesmo nível que alimentos e remédios
••••• minha orientadora daqui é uma figura, ela disse “agora com o coronavirus todo mundo trancado sozinho em casa vai poder saber qual o sentimento de escrever uma tese!” não mentiu
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Monumento em homenagem aos padeiros Lovaina, BĂŠlgica
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••••• Desde que ficamos confinados em casa por causa da neo-praga medieval sinto constantemente o cheiro de marofa, pq será... Saiu até no jornal, nossos vizinhos holandeses fizeram filas imensas nos coffeeshops pra estocar matinho pra quarentena Aliás acho muito divertido, por um lado, essa crise pra avaliar o que as pessoas priorizam estocar numa situação dessas. O que vocês escolheram estocar? Eu fui na onda nacional e estoquei cerveja, é a melhor coisa que tem nesse lugar mesmo, azar (e é muito barato também). Depois vou ter que voltar pra skol, é agora ou nunca Essa é a hora do pão líquido mostrar seu valor
21 de março de 2020 • Hoje finalmente cozinhei e comi pela primeira vez couve de bruxelas, em Bruxelas. Não podia ir embora antes de fazer isso
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23 de março de 2020 • Tô pessoalmente ofendida pelo coronavirus pq já estou há meses em confinamento emocional sem abraçar ninguém, logo eu esse animal gregário tive que podar violentamente minha natureza social, tinha planos de tirar o atraso no BR mas agora vou voltar pestilenta tal qual meus antepassados nas caravelas trazendo suas perebas europeias pros índios, confinada e maldita. Isso na hipótese otimista de eu conseguir voltar pra casa. Não me entendam mal, agora já tô quase achando normal a frieza afetiva daqui, não gosto mas meio que acostumei, vou encarar como um treinamento pra sobreviver a essa peste. Mas daonde que eu vou tirar euros se não tenho como arranjar emprego, o bolsonabo e seus asseclas só fazem tudo errado, o real vale menos que nunca e ainda cortam as bolsas de pesquisa? Tenho alguns planos de emergência mas não sei se seria o suficiente pra pagar as contas. No mais tudo bem, a casa é linda, pareço saudável, meus colegas de república são gente boa, estamos bem equipados pro coronalipse. Não saiam pra rua, não toquem em ninguém, sejam conscientes, nesse momento precisamos agir coletivamente, dependemos uns dos outros pra diminuir a catástrofe que se aproxima
25 de março de 2020 • E pensar que o título da Bienal de Veneza do ano passado foi “May you live in interesting times” (que você viva uma época interessante) Bem interessante pra quem curte o gênero do terror
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••••• Fazendo as malas e me preparando pra cruzar a pandemia e o oceano de volta. Tão dramático e absurdo que mal consigo processar. Olhando pra cada objeto e a história que ele carrega nessa aventura. Não tenho saído de casa há dias, aqui nessa casa estamos levando a situação muito a sério e seguindo à risca os cuidados dos cientistas e profissionais da saúde (informações fundamentadas). Temos medo porque estamos em contato com a realidade. Não ter medo agora (e sou infinitamente mais atlética que o biroleibe) é passar atestado de insanidade. Me despeço dessa casa que se tornou um lar, dessa cidade que me abriu tantas portas, dessa universidade que acolheu de maneira tão generosa minha arte e minha pesquisa. Do felino meu vizinho de janela. Volto mais firme e com a convicção de que existe mais espaço no mundo pra aquilo que construo do que poderia parecer em tantos momentos de dúvida ao longo dessa trajetória. Com novos referenciais, parcerias de trabalho, livros. Vou, mas parte das minhas serigrafias, desenhos e publicações ficam por aqui. É assustador fazer uma mudança intercontinental surpresa num momento como esse, mas também inevitável. Vejo vocês por este mesmo canal, pelo menos até passar esse caos. Ou vamos inventar outros jeitos, skype, email, ou outras tecnologias da distância Que o coronavirus ou qualquer coisa (facada, bala perdida, ataque cardíaco, guilhotina, tanto faz) elimine esse imbecil. Força, tranquilidade e coragem a todos nós, vamos precisar
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25 março de 2020 • Enquanto arrumo as malas a moça italiana que mora no quarto em cima do meu toca uma música triste no violoncelo. É um filme, um sonho?
26 de março de 2020 • Hoje o pessoal da casa combinou de fazer um faxinão e jogar um monte de tralhas fora. Coincidiu que é o dia que vou embora, eu acho muito engraçado mas pessoal achou horroroso eu fazer essa piada ontem na janta
••••• Fechando as malas e ponderando se vale mais levar roupas ou cervejas
••••• Vim na embaixada pegar um documento de repatriamento e tinha um goiano lá tão pistola quanto eu e disse “tomara que dessa vez alguém acerte uma facada” Unidos pelo ódio
••••• Aeroporto Zaventem, Bruxelas, na crise do coronavirus. Todos os voos da tarde foram cancelados menos o meu
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••••• Coronavirus interditou um piano no aeroporto (?) Tem piano no aeroporto daqui, que legal. E Smurfs também, pq não? Vcs sabiam? Os Smurfs são belgas
••••• #Embarcadah Próxima parada aeroporto Heathrow, Londres. Se tiver vazio lá como estava aqui vou ficar chocada. Na entrada do aeroporto de Bruxelas tinha 2 policiais barrando todo mundo que não tinha bilhete de embarque Faz sentido, mas é bizarro (como tem sido boa parte das coisas dos últimos dias) Por enquanto tudo bem Achei que eu fosse tomar a última cerveja belga no aeroporto mas tava tudo fechado, agora o corongavirus foi longe demais
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Aeroporto Zaventem (Bruxelas/BE)
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••••• Fui convidada a participar da publicação “Love in times of coronavirus”, a ser impressa em risografia em Bruxelas, pela galeria Grafik, uma página monocromática A5 por artista. Essa é a minha contribuição Vegetable love/ self love
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••••• Consegui embarcar no voo de Londres pra Guarulhos, um pequeno milagre com tantos voos cancelados e gente ficando presa. Como o voo de Bruxelas pra cá tava quase vazio, pensei que esse também fosse estar, mas não. A classe econômica tá atolada de gente, e as outras mais caras estão quase vazias. A recomendação da OMS é manter 1,5m de distância entre as pessoas, então não imaginei que uma companhia rica, podre de chique, como a British Airways fosse encher assim de brasileiros fugindo da pandemia como se nada tivesse acontecendo. Sentei e comecei a surtar com as pessoas se apertando, falando alto, os perdigotos voando. Certamente se eu trocar uma ideia com a aeromoça ela vai me dizer que tudo bem trocar de lugar, é o mínimo, pensei. Daí ela disse que não pode, porque tenho que ficar nessa sessão do avião (ou seja, se quer um lugar seguro, tinha que ter pensado nisso e comprado antes, primeiro o dinheiro depois o resto). Consegui achar um relativamente mais seguro na mesma sessão, mas puta que pariu, sabe. Se não tivesse lugar tudo bem, mas tem, e não deixam a gente usar. Ainda a aeromoça veio falar pra mim que a British airways vai falir com o coronavirus e não sei o que. É foda drama financeiro de gringo que nem sequer tem nada a ver com a questão que eu trouxe, que é a saúde pública. Coitada da aeromoça que é trabalhadora e tá se expondo ao risco também, mas quem paga o salário dela e tá em algum lugar seguro é o problema. Quando a merda bater no ventilador no Brasil vai ser punk de um jeito, não quero nem pensar. Vou ficar off, o avião vai decolar. Espero chegar saudável no BR
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Aeroporto Guarulhos
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27 de março de 2020 • Coronavirus no aeroporto Guarulhos: máscaras pra todo lado e gente literalmente acampada no terminal
••••• Boris Johnson com coronavirus, parece que alguns bonecos de vudu começaram a dar certo. vamos continuar, pessoal
••••• Um monte de gente no aeroporto Guarulhos com máscara pendurada no queixo igual um imbecil, nada como um presidente pra dar o exemplo
••••• Tô muito revoltada com o desrespeito total das companhias aéreas porém feliz de ver de novo essa gente bonita, morena e sensual e poder falar português com qualquer criatura na rua Tô só pelo meu chuveiro Acabou a saga ••••• Eu aqui no aeroporto Guarulhos to só o Cazuza ao contrário, o tempo não passa
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••••• Aqui no Bolsonaristão eu reconheço os gados pelas mascaras penduradas na orelha ou no queixo. Eu falo pra saírem de perto de mim, concordam mas não se mexem 1 cm. Não tretei com ninguém mas por sorte não sou X Men com olhos de raio laser, ia fritar uns mil
••••• Depois de quase dois dias de viagem sem dormir, chegando em POA, irritada pero sin perder la zuera jamás Consegui, cheguei! Que venha a quarentena! “Minha casa minha vida”, literalmente
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Esta publicação foi premiada pelo Concurso Edital Emergencial de Auxílio à Cultura - 001/2020, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S237a Santos, Alice Porto dos Alime News / Alice Porto. – Porto Alegre : MarcaVisual, 2020. 178 p. : il. color. ; 21 x 14,8 cm. ISBN 978-65-89263-01-2 1. Artes visuais. 2. Livro de artista. 3. Relatos de viagem. 4. Literatura. 5. Redes sociais. I. Título. CDU 7.039
Bibliotecária responsável Sheila Irribarem de Mello Bott CRB 10/2438
Marcavisual Editora e Projetos Culturais Ltda. Conselho Editorial Airton Cattani – Presidente UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Adriane Borda Almeida da Silva UFPel – Universidade Federal de Pelotas
Celso Carnos Scalestsky
UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Denise Barcellos Pinheiro Machado UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Marco Antônio Rotta Teixeira UEM – Universidade Estadual de Maringá
Maria de Lourdes Zuquim USP – Universidade de São Paulo
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