A rocha - Divagações

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A ROCHA (Contos #017)

Nós nascemos como pedra bruta em meio a tantos cascalhos. Feios, sem forma, nus. Enquanto o tempo passa, enquanto não temos domínio sobre nós mesmos, nos dão forma e função conforme a sociedade precisa e aceita. Pedras de jardim, enfeites de aquário, peso de papel, colar hippie. Às vezes enfiam-nos uma caricatura considerada nobre, ou culturalmente cultuada, e cravam-nos em praças importantes e entradas de prefeituras e bibliotecas. Mas, às vezes, simplesmente misturam-nos com a areia e o cimento para fazer concreto. Em todas as situações, há imensas dificuldades de sair, de escapar.

Liberdade, autonomia... Pessoa diria que há muita metafísica em se viver. Muitas de nós, pedras brutas, passam por essa vida sem nem ao menos se darem conta do que são e pelo que vieram aqui. Aceitam seu destino de peso de papel, porque acreditam que é o melhor que poderiam se tornar. Outras teimam em não compreenderem o roteiro, insistem em não aceitar o conforto de um aquário. Estão sempre dando um jeito de fugirem do mundo, dos vários mundos, porque é assim que enxergam a realidade. Então pulam na frente do menino com o estilingue, rodam ladeira abaixo para serem pisadas por carros de vários tamanhos e estilos, grudam nos sapatos das pessoas, enfiam-se nas pás, para que, com alguma esperança, os levem dali, lhes mostrem o que há depois do muro, além dos vidros, na outra casa. São momentos angustiantes, circunstâncias de perigo, que nem sempre acabam bem. Daí passam eras assim: pulando, jogando-se, sendo arremessadas. Às vezes, chegam a cogitar o conforto de um colar. Mas não lhes basta, pois já descobriram outros caminhos. Certo dia, já desgastadas, cansadas, e um tanto mais feias e brutas do que nasceram,


encontram o escultor. Aquele a quem você conta todos os seus sonhos de pedra, para quem você relata tudo o que já viu, já ouviu. E ele passa a saber tudo o que você sentiu e ouve todos os gritos que você já deu, mas que ninguém, ninguém ouviu. E vocês choram juntos. O escultor possui uma sensibilidade absurdamente desenvolvida, entendida não como compaixão, não como quem "pode dar um jeito". Ele valorizará cada marca em você, cada arranhão, cada lasca que lhe foi tirada. O escultor, assim como a pedra, cresceu errando e acertando e, num dado momento, descobrem que passaram todo esse tempo aprendendo para que esse dia chegasse. Esse dia em que vocês se encontrariam. E, nessa fúria apaixonada, há o encontro entre alma e sei lá o que, e surge a obra prima. Aquela que perpetuará. E independente de onde ela for colocada, pelas mãos de quem ela for tocada, ela continuará sendo a obra prima: a pedra bruta que o escultor transformou em diamante raro. Não há milhões que contem sua história. Não há palavras que saibam definir ou descrevê-la. O espectador da obra só pode sentir e só pode ver. Entre muitos finais, este é um final feliz. Mas já ouviu falar daquelas que nunca encontraram o escultor? Estas continuam seguindo, caminhando até o dia em que lhes restam apenas o pó. Com muita sorte ainda podem ser uma obra de arte, dentro de garrafas, imortalizadas com outros restos de pedras coloridas ou tingidas, numa redoma de vidro, na estante do escultor.


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