Mi 156 linda howard o preço de uma dívida

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(Heartbreaker) Momentos Íntimos 156 Michelle está perturbada. Rafferty, de maneira ostensiva, mede-a dos pés à cabeça, e em seguida detém o olhar nas curvas dos seios bem-feitos. Ela sente que enrubesce; jamais um homem a olhara de tal forma, como se a desnudasse. O medo e a revolta crescem dentro de Michelle. A proposta que acabara de ouvir dos lábios daquele homem é indecorosa, abjeta. “Chega!”, ela grita. “Você não pode me tratar assim! Jamais me tornarei sua amante para pagar as dívidas deixadas por meu pai!”

Digitação: Monica H. Okano Formatação: Márcia Goto

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Capítulo 1

Enquanto remexia nos guardados de seu pai, Michelle Cabot deparou com um papel. Da mesma forma como fizera com dezenas de outros, desdobrou-o para ver o que se tratava. Logo ao ler o primeiro parágrafo, no entanto, suas mãos começaram a tremer, e um arrepio percorreu-lhe a espinha. Aturdida, segurou melhor o documento e continuou a lê-lo. A cada nova frase, se espantava mais, mal acreditando no que estava escrito. Seu pai deixara uma dívida de cem mil dólares para com John Rafferty. Mais os juros, claro. Mas, a que taxa? — Tudo, menos isso! – ela disse horrorizada. Michelle não conseguiu ler mais nem uma palavra. Pondo o documento sobre a escrivaninha, deixou-se afundar na velha cadeira estofada de couro que pertencera a seu pai. Fechando os olhos, sentiu o estômago contrair-se e um peso incrível comprimir-lhe o peito. A morte do pai já a deixara numa situação penosa e, a cada novo documento que verificava, descobria uma surpresa mais desagradável. Porém, nada era mais desastroso do que essa dívida. Até então, ainda alimentava uma ponta de esperança quanto à sua recuperação financeira, mas agora era praticamente impossível. E por que a dívida tinha de ser exatamente para com John Rafferty? Por que não um banco qualquer com um gerente desconhecido? O resultado seria o mesmo, mas estaria livre da humilhação. Só de pensar em ter de enfrentá-lo, suas pernas já tremiam. Se Rafferty soubesse quanta insegurança havia oculta sob a fachada fria e indiferente atrás da qual se escondia... Aí sim, não haveria chance nenhuma de se reerguer de todo o desastre financeiro que seu pai lhe deixara como herança. Ficar nas mãos de John Rafferty era pior do que dever um milhão de dólares a vinte bancos do país. Com as mãos ainda trêmulas, apanhou novamente o documento e continuou a lê-lo para ficar a par dos detalhes da transação. John Rafferty havia concedido um empréstimo pessoal a se pai, Langley Cabot, a uma taxa de juros dois por cento mais baixas que a do mercado. E a nota promissória vencera quatro meses atrás. Ainda essa... Michelle sabia que o empréstimo, com toda a certeza, não havia sido pago, pois já tinha dado uma boa conferida na contabilidade de seu pai na tentativa de salvar alguma coisa do desastre financeiro em que ele se afundara quando morrera. Todas as propriedades haviam sido vendidas para pagar as dívidas, com exceção da fazenda, que fora o grande sonho do velho Langley e que agora servia de refúgio para ela. Há dez anos, quando seu pai vendera a belíssima casa que tinham em Connecticut, trocando a vida tranqüila que levavam lá pelo calor úmido da Flórida, fora um verdadeiro desastre para Michelle. Ela detestava a idéia de morar na fazenda de criação de gado. Mas isso fora há dez anos, e com o correr dos anos muita coisa havia mudado. Ela havia mudado. A propriedade não tinha para Michelle o mesmo significado que tivera para seu pai. Era, simplesmente, a única coisa que lhe restara. Estranho... Às vezes a vida lhe parecia tão complicada, tantas responsabilidades, tantas obrigações. Mas, em se tratando de sobrevivência... era tudo muito simples. Acostumada a ter tudo sob controle, era difícil para Michelle, nesse momento, precisar se curvar diante do inevitável. Desde o início soubera que ia ser quase impossível continuar a cuidar da fazenda e conseguir pagar os débitos, mas se propusera pelo menos tentar. Jamais se perdoaria se abrisse mão de tudo sem antes lutar. Agora, no entanto, não havia salvação: ia ter de se desfazer da propriedade. Ou, ao menos, do gado. Não existia outro modo de

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conseguir cem mil dólares. Era de se admirar que John Rafferty ainda não tivesse reclamado o pagamento. Mas, considerou, sem o gado, qual a utilidade da fazenda? Até agora vinha dependendo do gado para continuar rolando as dívidas, mas, sem essa pequena renda, precisaria vender a propriedade. Seria penoso desfazer-se da fazenda no momento em que já alimentava uma pequena esperança de poder conservá-la. Ela nunca quisera se iludir, sempre temendo elevar demais suas expectativas, mas, ainda assim, uma pontinha de otimismo nunca a abandonava. Falhara de novo, como em tudo o mais na vida: como filha, esposa e fazendeira. Mesmo que Rafferty lhe desse um prazo mais longo para o pagamento do empréstimo, o que dificilmente aconteceria, não haveria como conseguir cem mil dólares até o outro vencimento que ele lhe desse. A verdade era uma só: não havia outra saída a não ser vender a fazenda. Respirando fundo, decidiu que de nada adiantava protelar o inevitável. Se tinha mesmo de falar com Rafferty, iria imediatamente. Consultando o relógio, verificou que já passava das nove, mas Rafferty na certa ainda estaria acordado. Depois de procurar o número do telefone dele na agenda, pegou o aparelho. Tensa, sentiu o sangue correr-lhe mais rápido nas veias e apertou o gancho do telefone com força; as mãos estavam geladas e o estômago, enjoado. “Droga! Desse jeito não vou conseguir conversar com Rafferty! Tenho que me controlar!”, ela pensou. Finalmente, conseguiu discar. Quando atenderam a chamada, Michelle respirou fundo, procurando se acalmar. — Residência do Sr. Rafferty – disse a governanta. Bastante controlada, Michelle pediu pra falar com o dono da casa. — Sinto muito, mas ele não está. Quer deixar algum recado? “Tanto sofrimento por nada”, pensou, desolada, sabendo que teria de passar pelo mesmo nervosismo mais uma vez. — Peça-lhe que telefone para Michelle Cabot – afirmou, dando o número de seu telefone. – Será que ele volta logo para casa? A governanta hesitou por um instante e disse: — Não; acho que o Sr. Rafferty só volta de madrugada, mas darei seu recado logo pela manhã. — Está bem, obrigada. Até logo. Devia ter imaginado que ele dificilmente estaria em casa àquela hora. Rafferty era famoso e muito comentado por suas escapadas noturnas e pelos seus inúmeros casos amorosos. A idade só o tornara menos irreverente e irresponsável. Porque, de acordo com as fofocas que corriam soltas, sua libido continuava a mesma dos tempos de adolescente. Bastava apenas um olhar seu para que as mulheres suspirassem. Nenhuma lhe escapava. Mas Michelle não se deixara impressionar por seu charme. Desde a primeira vez em que se viram, há dez anos, alimentavam uma tremenda hostilidade mútua e, mesmo com o correr dos anos, o relacionamento entre ambos nunca chegou a ser amistoso. Seu pai sempre servira de anteparo, amenizando a hostilidade, mas agora que estava morto, Michelle já esperava pelo pior. Rafferty não era homem de meias medidas. Reconhecendo que nada mais poderia ser feito naquela noite com relação ao empréstimo, resolveu preparar-se para dormir. A chuveirada foi rápida; bem que gostaria de um banho de imersão mais demorado, mas Michelle estava num regime de contenção de despesas, principalmente de energia elétrica. A água da casa vinha de um poço e era trazida por uma bomba, portanto não podia dar-se ao luxo de banhos prolongados. Os pequenos prazeres tinham de dar lugar a coisas básicas, como a comida.

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Porém, mesmo exausta, Michelle não conseguiu dormir. A idéia de ter de falar com Rafferty assaltou-a de novo, fazendo o coração disparar em seu peito. Cansada, respirou bem fundo diversas vezes. Era sempre assim quando precisava avistar-se com ele. Se ao menos Rafferty não fosse tão alto, tão forte... Mas, do alto dos seus um metro e noventa, ele adorava lançar seu olhar de superioridade para diminuir ainda mais as pessoas. Toda vez que se aproximava de Rafferty, Michelle se sentia como que ameaçada. E o simples fato de pensar nele já lhe provocava, além de arrepios, sensações bastante desagradáveis. Nenhum outro homem lhe provocava tais reações, ninguém mais a deixava tão irritada, tão nervosa. Rafferty tinha o estranho poder de despertar emoções primitivas e assustadoras dentro dela. Aliás, fora assim desde o princípio, desde a primeira vez em que se viram. Michelle tinha então dezoito anos e não passava de uma adolescente mimada, como ele a acusava de ser. Naquela época, a fama de Rafferty já corria solta, e Michelle estava disposta a mostrar a ele que era imune ao seu charme e não se atiraria aos pés deles como as outras garotas. Como se Rafferty estivesse preocupado com uma simples adolescente... Como pudera ser tão tola?, indagou-se, rolando na cama. Tola, mimada, medrosa. Tudo por causa dele, que embora a ignorasse, conseguia amedrontá-la. Ou melhor, eram suas próprias reações diante dele que a amedrontavam. Rafferty tinha vinte e seis anos na época e era um homem maduro; muito diferente dos rapazinhos com que estava acostumada. Apesar de novo, já transformara a pequena propriedade da família numa fazenda muito próspera. Só com seu trabalho e determinação. Na primeira vez em que Michelle o vira, Rafferty conversava sobre gado com seu pai, Langley, e isto foi o bastante para deixá-la apavorada. Ainda agora, Michelle conseguia lembra-se nitidamente daquele momento: o coração disparado, a garganta seca... Ele e o pai estavam parados ao lado do cavalo de Rafferty, que tinha uma das mãos na sela e a outra pousada displicentemente sobre o quadril. Um metro e noventa de músculos bem desenvolvidos e puro charme, montando o animal com graça e habilidade. Mesmo antes de tê-lo conhecido, já ouvira falar a seu respeito. Uma garota podia contar com o beneplácito da dúvida caso saísse com ele uma vez, mas, na segunda, era tido e sabido que haviam dormido juntos. Naquela época, nem ocorrera a Michelle que tal reputação pudesse ser um pouco exagerada, mas hoje, que era mais velha, não duvidava da fama que ele tinha. Havia algo no olhar de Rafferty que a impelia a acreditar no que diziam sobre ele. Mas nem mesmo tal reputação fora suficiente para prepará-la para vir a defrontá-lo. Rafferty emanava um grande magnetismo. Era do tipo de pessoa que atrai as outras para si, parecendo ser dotado de um toque todo especial. Sempre tornava-se o centro das atenções, onde quer que estivesse, e gostava de dominar as pessoas com seu jeito arrogante e quase cruel. Ao vê-lo naquela manhã pela primeira vez, Michelle ficou encantada. Ele estava lindo: o sol batendo-lhe nos cabelos negros, os olhos escuros muito vivos sob as sombrancelhas franzidas, o bigode preto tão charmoso... Por trabalhar constantemente ao ar livre, Rafferty exibia um bronzeado perfeito, que o tornava ainda mais atraente. Enquanto ela o observava, viu uma gota de suor correr-lhe pela maçã do rosto até chegar ao maxilar quadrado. Manchas de suor molhavam-lhe a camisa azul sob os braços, no peito e nas costas. Mas nem o suor nem a poeira conseguiam diminuir-lhe o charme e a aura de pura magia que o envolviam. Até, pelo contrário, tornavam-no ainda mais fascinante. A mão pousada no quadril atraiu o olhar de Michelle para as coxas grossas e bem torneadas que o jeans apertado delineava com perfeição. Por um segundo, seu coração parou, recomeçando a bater novamente num ritmo acelerado, enquanto um calor intenso aquecia-lhe o corpo.

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Com apenas dezoito anos, Michelle era jovem demais para lidar com tais sensações. Tentando disfarçar a emoção que a invadia ao ser apresentada a ele, fez questão de demonstrar-se indiferente e distante. Desde aquele dia, o relacionamento entre ambos vinha sendo no mínimo desastroso. Mas Michelle sentia-se mais segura e protegida sabendo que Rafferty não nutria nenhuma simpatia por ela. Graças a essa política de má vizinhança, nunca fora alvo da índole conquistadora de Rafferty, que preferia exercer seu fascínio sobre outras presas. Deitada na cama no quarto escuro, depois de muito pensar, Michelle precisou admitir a se mesma uma verdade que a perturbava: nunca, nem por um segundo, fora de fato imune ao charme de John Rafferty. Sua fachada de indiferença era na realidade muito frágil e só a protegeria até o dia em que ele descobrisse o quanto a perturbava. Rafferty ia adorar tirar vantagem do poder que exercia sobre ela e fazê-la pagar por todos os comentários maldosos que fizera a seu respeito durante aqueles longos dez anos. A única forma que Michelle encontrara para se proteger era mantê-lo à distância e tratá-lo com hostilidade. Só que, agora, por ironia do destino, precisava contar com sua simpatia... Nestes últimos tempos, as agruras por que passava quase a fizeram esquecer o que era sorrir. Mas ali, na escuridão do quarto, Michelle sentiu seu lábios curvarem-se num sorriso tímido. Se sua sobrevivência dependia exclusivamente da boa vontade de Rafferty, o melhor a fazer seria começar a cavar a sua própria sepultura.

Pela manhã, Michelle andou pela casa à espera de que ele lhe telefonasse, mas o dever a chamava: precisava cuidar do gado. Rumou para a cocheira, preferindo preocupar-se com os mil e um problemas que a fazenda lhe apresentava. O feno precisava ser colhido e empacotado mas, para arrecadar dinheiro, ela se vira forçada a vender o trator e a empacotadeira. A única forma de cortá-lo seria oferecer parte da colheita como pagamento a quem lhe emprestasse o trator. Entrando de marcha à ré com a caminhonete no celeiro, contou quantos fardos de feno lhe restavam. O estoque estava acabando, e seria preciso agir rápido. Michelle não tinha força para erguê-los, mas logo desenvolveu uma técnica toda própria para lidar com eles: depois de estacionar a caminhonete sob a parte alta do celeiro, subiu e empurrou o fardo para a carroceria. O que não era fácil, mas ajudava bastante. Ao vê-la chegando, o gado solto no pasto se aproximou da caminhonete, que já lhes era familiar. Como Michelle não conseguia jogar os fardos para fora da carroceria, desmanchava-os ali mesmo, aos poucos, com um forcado que trazia consigo, espalhando o feno pelo chão. Ao final do trabalho, o corpo todo doía-lhe, como se tivesse levado uma surra. Se o número de cabeças de gado não tivesse diminuído tanto como nos últimos tempos, ela não conseguiria dar conta do serviço. Mas, por outro lado, se o rebanho fosse maior, lhe sobraria renda suficiente para contratar mais empregados. Quando Michelle pensava em todos os capatazes que fora forçada a despedir e na quantidade de empregados que precisaria para conservar a fazenda, uma onda de desconsolo a atingia. Era lógico que sozinha jamais conseguiria fazer o trabalho de tantos homens. Mas o que tinha a lógica a ver com a realidade? Sem nenhum outro empregado, cabia-lhe a responsabilidade de cuidar de tudo. Aliás, a vida lhe ensinara uma lição muito importante: contar apenas consigo mesma. Não havia ninguém em que pudesse confiar cegamente ou alguém de quem pudesse vir a depender. Tal certeza por vezes a fazia sentir-se extremamente só. Bem mais ainda depois da morte de seu pai. Mas, em seu íntimo, crescia também uma tranqüilidade quase perversa por saber que só poderia contar consigo mesma. Por não esperar nada de ninguém, nunca se desapontava com as atitudes das pessoas. Era apenas uma questão de aceitar a vida e os fatos exatamente do jeito que se apresentavam: sem fantasias, e seguir

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cumprindo com suas obrigações sem esperar nada dos outros. Esta maneira simples e realista de encarar a vida dotava-a de mais liberdade, e Michelle já não temia o amanhã. Sua maior preocupação era saldar as dívidas. Durante o dia, Michelle caminhava pela fazenda executando pequenos reparos, procurando manter a mente livre e o corpo relaxado. Ficava muito mais fácil assim. Era verdade que à noite seus músculos doíam em protesto contra os excessos do trabalho duro do campo, mas ao menos conseguia ficar em paz com sua consciência, sabendo que dera o melhor de si. Nenhum de seus amigos poderia sequer imaginar que a sofisticada Michelle Cabot seria capaz de executar serviços tão rudes. Era divertido imaginar de que modo reagiriam se soubessem o que estava acontecendo com ela. Os amigos haviam-na apelidado de “Madame” devido ao seu gosto refinado e à sofisticação. Jamais recusara um convite para um passeio de barco, uma festa ou uma esticada a St. Moritz para a temporada de esqui. Vivera freqüentando a alta sociedade, e suas fotos sempre apareciam nas colunas sociais dos grandes jornais. De preferência com uma taça de champanhe nas mãos. Pois bem, a “Madame” dos bons tempos tinha agora de alimentar o seu próprio gado, consertar as cercas e muito mais. Só não havia pensado ainda num modo de vacinar todo o rebanho sozinha. Além de que, precisava marcar o gado, castrar alguns bezerros... Toda vez que começava a pensar nas tarefas que ainda tinha por fazer, um desconsolo imenso a invadia e, por causa disso, nunca se permitia ficar muito tempo sem se ocupar. Seu lema era viver um dia de cada vez, dando o melhor de si, sem pensar demais no amanhã; uma questão de sobrevivência, e nisso ela se tornara campeã. Por volta das dez horas da noite, como Rafferty não tivesse telefonado, Michellle suspirou fundo e resolveu ligar para ele. Mais uma vez a governanta atendeu e Michelle revirou os olhos para o alto. “Será que esse sujeito nunca está em casa?”, indagou-se mentalmente. — Aqui é Michelle Cabot. Gostaria de falar com o Sr. Rafferty, ele está? — Sim, ele está na cocheira, vou transferir a ligação para lá. Então ele tinha uma extensão na cocheira... Por um momento, Michelle chegou a invejá-lo por tamanho luxo. E enquanto pensava no rancho de Rafferty, esquecia-se do nervosismo que se apoderava dela. — Rafferty falando. Sua voz grave e impaciente trouxe-a de volta à realidade. Sobressaltada, Michelle aprumou-se a apertar o telefone com mais força. — Aqui é Michelle Cabot – disse num tom o mais neutro possível. – Gostaria de falar com você, se dispuser de tempo. — Para ser sincero, estou atarefadíssimo no momento; uma das minhas éguas está parindo. Portanto, fale logo do que se trata. — O assunto é demorado e delicado; prefiro marcar uma hora para conversarmos. Poderia ir até aí amanhã pela manhã? Rafferty riu de modo irônico: — Ouça, benzinho, isto aqui é um local de trabalho, e não um ponto de encontro. Não tenho tempo para vê-la amanhã cedo, tenho outros compromissos. — Então, quando? Ele praguejou, impaciente: — Ouça, não posso conversar agora. Passo por aí amanhã à tarde, quando eu for para a cidade, por volta das seis horas. E desligou sem dar a Michelle tempo de concordar ou discordar. Mas, ao recolocar o fone no lugar, Michelle disse a si mesma que não havia do que discordar: estava devendo cem mil dólares a ele e precisava se submeter às exigências de Rafferty. Bem, pelo menos, havia se livrado do pesadelo de ter que marcar um encontro com ele. Amanhã, pararia de trabalhar mais cedo

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para ter tempo de lavar o cabelo e se maquiar com calma. Já pensando no que iria vestir, decidiu-se por uma calça de linho branca e camisa de seda da mesma cor. Desta forma, viria apenas confirmar a impressão que Rafferty já tinha a seu respeito ao taxá-la de fútil.

Já no final da tarde, o sol forte elevava a temperatura aos trinta graus, e o calor intenso tornava o gado extremamente inquieto. Rafferty estava cansado, suado e mal-humorado, assim como os homens que trabalhavam para ele. Haviam perdido muito tempo correndo atrás das cabeças desgarradas em vez de adiantar o serviço de marcação do gado, e agora o eco de um trovão ao longe prenunciava uma forte tempestade de verão. Todos trabalhavam depressa, procurando terminar a tarefa antes da chuva. O gado agitado mugia cada vez mais, e o cheiro forte de couro queimado impregnava o ar. Rafferty trabalhava tanto ou mais que qualquer um dos empregados, não rejeitando nenhuma tarefa. Afinal, a fazenda lhe pertencia, e ele, mais do que ninguém, queria vê-la progredir. O trabalho do campo e os afazeres de uma fazenda eram cansativos e exigiam esforço físico permanente, mas Rafferty conseguia fazer sua propriedade continuar prosperando, quando a maioria dos vizinhos via os negócios irem por água abaixo. E tudo graças à sua determinação e ao suor de seu rosto. Quando o gado era pouco e as terras bem menores, sua mãe, não suportando a vida que levava, decidira abandonar a família. E nada, nem os apelos de seu pai, haviam sido suficientes para fazê-la ficar. Mas Rafferty nunca chegara a odiá-la, preferindo simplesmente aceitar a sua mãe como era. Para ela, ser feliz era viver na cidade, cercada de luxo e gente bonita. Nev Luther marcou a última rês e endireitou a espinha, limpando o suor da testa com a manga da camisa. Olhando para o céu, observou a nuvem negra de chuva se aproximando e comentou: — Bem, felizmente terminamos. É melhor recolhermos tudo antes que a chuva comece a cair. – E voltando-se para Rafferty, disse: - Você não vai se encontrar com a filha do velho Cabot hoje? Nev estava na cocheira ao lado de Rafferty na noite anterior e ouvira parte da conversa. Depois de consultar o relógio, Rafferty praguejou em voz alta: tinha se esquecido completamente do encontro marcado. Que idéia mais infeliz tivera Nev ao tocar no assunto... Poucas pessoas no mundo o irritavam mais do que Michelle Cabot. — Diabos, acho melhor eu ir andando – disse, relutante. Ele já sabia do que se tratava e até se surpreendera com o telefonema. A princípio, logo depois da morte do Sr. Cabot, chegara a pensar que ela fosse continuar ignorando a dívida, tal qual o pai. Na certa, Michelle ia chorar as mágoas e dizer que estava absolutamente sem dinheiro e não tinha, portanto, como levantar os cem mil dólares que lhe devia. Só de pensar nela já lhe dava vontade de agarrá-la e dar-lhe uma boas palmadas. Michelle era tudo o que Rafferty mais detestava: uma parasita egoísta que jamais trabalhara duro para ganhar o próprio sustento. Seus luxos haviam levado o pai à falência total, pois o velho era incapaz de negar o que quer que fosse a sua filha única. Qualquer sacrifício por Michelle valia a pena, segundo ele. Pena que a doce Michelle não passasse de uma garota fútil e mimada. E irritante! Ela o tirara do sério desde a primeira vez em que a vira, num dia em que ele e o velho Cabot conversavam, e Michelle se aproximara com ares de desdém. — Ei, chefe, se não estiver com vontade de ir vê-la, pode deixar que eu vou – ofereceu-se Nev, sorrindo, fazendo-o voltar à realidade.

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— Bem que eu gostaria que fizesse isso, mas prefiro ir pessoalmente para ver o que ela está querendo – respondeu num tom amargo, consultando mais uma vez o relógio. Caso voltasse para casa para tomar um banho acabaria chegando atrasado à fazenda dos Cabot. Dali de onde estava, era bem mais fácil ir até lá, e Rafferty não sentia um pingo de vontade de se arrumar só para ir encontrar Michelle. Ela que o recebesse exatamente como estava: sujo, suado e cansado. Afinal, era ela quem lhe devia favores. Sentia-se tão mal-humorado que seria bem capaz de exigir o pagamento imediato da dívida. Até que não seria uma má idéia, mesmo sabendo que ela não poderia pagar. Rindo para si mesmo de modo sarcástico, imaginou se Michelle Cabot se ofereceria para saldar a dívida de alguma outra forma. Até que não seria má idéia... Ela, na certa, morreria de desgosto se soubesse que ele a desejava. Afinal, era um homem do campo, não era nem um pouco parecido com as pessoas com quem ela estava acostumada a conviver. Precisava trabalhar para viver... Enquanto caminhava até a caminhonete, não conseguia afastar uma imagem de sua mente: Michelle Cabot. Há anos que a observava e a desejava, embora a detestasse por tanto esnobismo e sofisticação. Para outras pessoas, ela fazia de tudo para se mostrar uma mulher pacata e muito simpática. Mas ele sabia, por experiência própria, do que Michelle era capaz para atrair um homem. Os fazendeiros da região eram todos amigos e gostavam de se reunir quase todos os fins de semana para uma festinha, um churrasco ou uma reunião informal. Nessas ocasiões, Michelle sempre encantava a todos com a sua delicadeza. Nessas reuniões havia sempre um conjunto de música country, e Michelle dançava com todos, exceto com Rafferty. De longe, ele a observava sorrir e se divertir. Seu corpo perfeito e delicado o deixava fascinado. Outros homens também a cobiçavam, incluindo Mike Webster. Rafferty jamais a perdoaria pelo que fizera com seu amigo, cujo casamento terminara por causa dos olhares provocantes e do charme de Michelle. O pobre homem havia se apaixonado perdidamente por ela e acabou sozinho pois, assim que ele se divorciou, Michelle já estava interessada em outros rapazes. Tendo de vender a fazenda para pagar as despesas com o divórcio e a pensão dos filhos, Mike acabara na ruína. Mas Mike Webster fora apenas mais um na imensa lista que Michelle arruinara com seu egoísmo. Mesmo já estando em dificuldades financeiras, Langley nunca deixaria de enviar dinheiro para a filha, que gastava tudo em viagens e compras. Apesar de saber da situação difícil do pai, ela continuou com o mesmo tipo de vida: passando férias em St. Moritz e comprando jóias nas lojas mais sofisticadas do país. Rafferty não tinha dúvida de que, para sustentar Michelle Cabot, um homem precisaria de muito dinheiro. Mas, em última análise, concluiu Rafferty, ele mesmo contribuíra para lhe sustentar os luxos quando começara a emprestar dinheiro ao velho Cabot. Portanto, tinha certos direitos sobre Michelle. Esta idéia não lhe saía da mente; Ela despertava nele um instinto forte, muito primitivo. Por mais irritado ou bravo que estivesse, não conseguia controlar as reações que Michelle lhe provocava. Toda vez que a via, tinha vontade de tê-la em seus braços e descobrir-lhe todos os segredos, tocá-la, beijá-la. Queria poder afundar o rosto nos seus cabelos loiros e aspirar-lhes o perfume, sentir-lhe a maciez da pele alva. Michelle Cabot não lhe saía da cabeça... precisava dominar-se para deter o rumo de seus pensamentos. Precisava lembrar-se de que ela era uma pessoa esnobe e que nem seu ex-marido nem Mike Webster souberam como mantê-la a seu lado. E ele a queria muito, queria tê-la só para si... Por enquanto, Michelle parecia estar querendo ainda cuidar dos negócios que o velho Cabot havia deixado, mas Rafferty tinha certeza de que ela não demoraria a arranjar um novo amante. E por que não ele? Estava farto de desejá-la e vê-la dar-lhe as costas como se fosse um ser desprezível. Franzindo os olhos, procurou concentrarse mais na estrada. A chuva que começava a cair agora batia forte contra o pára-brisa. Enquanto dirigia, deliciava-se com a idéia de tornar

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Michelle dependente dele para tudo. Seu lado mais machista o exortava a pensar com mais carinho sobre o assunto. Ele a usaria para satisfazer seu desejo, mais jamais lhe permitiria fazê-lo de bobo, como os outros. Rafferty jamais dera dinheiro a uma garota, nem jamais sustentara uma amante; mas faria qualquer coisa para ter Michelle. Ela o atraía mais que qualquer outra mulher. Os limpadores do pára-brisa não davam conta do grande volume de água trazido pelo vento forte que acompanhava a tempestade. A visibilidade era tão ruim que Rafferty quase passou do retorno que levava à fazenda dos Cabot, embora conhecesse aquelas estradas como a palma da mão. Mal-humorado, seguiu pela pequena estrada que levava à casa de Michelle irritado ao ver o estado calamitoso em que se encontrava a propriedade. O pasto estava cheio de mato, e os estábulos pareciam abandonados. Embora ele tivesse parado a caminhonete bem próximo da casa, até chegar à varanda a chuva forte o deixou ensopado. Tirando o chapéu de palha, bateu-o com força na calça para tirar o excesso de água. Antes mesmo que Rafferty tocasse a campainha, Michelle abriu a porta, recebendo-o com uma expressão fria em seus lindos olhos verdes. Por um momento, hesitou em deixá-lo entrar mas, por fim, abriu a porta de tela. — Entre. Limpando os pés, entrou na casa notando o modo como Michelle se afastou temendo encostar-se nele. Contrafeito, imaginou quando aquela situação mudaria. Pouco tempo. Esperava que em muito pouco tempo Michelle e ele estariam se entendendo. Ela podia dar-lhe as costas e empinar-lhe o nariz agora mas as coisas iam ser bem diferentes no futuro. Gostaria que ela sentisse a mesma atração que lhe despertava. Seu desejo de tocá-la agora era muito forte, temia demonstrar o quanto ela o abalava e vasculhou com o olhar a sala, procurando dominar-se. Se continuasse a olhá-la tão intensamente poderia pôr tudo a perder. Ter de ser gentil para com ele devia lhe custar muito, imaginou Rafferty. Mas desta vez Michelle mostrou-se mais gentil que em outras ocasiões: — Vamos para o escritório de papai – disse, conduzindo-o pelo corredor, deixando um rastro de perfume atrás de si. “Só para me provocar”, concluiu Rafferty com seus botões, observando-a caminhar com graça e elegância. Michelle parecia inatingível em seu traje todo branco e fluido que acentuava-lhe as curvas perfeitas. Os cabelos loiros brilhavam. A aparência impecável de Michelle contrastava com as roupas suadas e molhadas de Rafferty, que imaginava qual seria a reação dela se ele a tocasse, se a apertasse contra seu peito, sujando-lhe o traje imaculado. — Por favor, sente-se – pediu Michelle, apontando para uma das poltronas de couro. – Suponho que já saiba por que o chamei. — Sim, suponho que sim – ele respondeu, irônico. — Encontrei o documento que fala sobre o empréstimo anteontem à noite , enquanto mexia nuns papéis de papai. Não quero que pense que estou me recusando a pagar a dívida mas, no momento, não tenho o dinheiro e ... — Não me faça perder tempo, sim? – ele interrompeu, impaciente. Michelle ergueu o rosto e o encarou. Rafferty nem chegara a sentar-se e permanecia de pé, bem próximo a ela, olhando-a com superioridade. Seu olhar penetrante a fazia estremecer. — Não estou entendendo onde você quer chegar. — Não mesmo? Esta conversa já é velha,e já a conheço de cor. Sei o que está pretendendo me oferecer e estou disposto a aceitar. Há tempos que venho querendo acertar as contas com você, e não pense que sua conversa vai resolver alguma coisa. Afinal, você tem uma dívida comigo.

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Capítulo 2

O choque diante da resposta de Rafferty a paralisou, deixando-a absolutamente pálida. Michelle estava desorientada e custou a crer no que ouvira. Ele continuava de pé, bem próximo, e seu olhar de superioridade a fazia sentir-se insignificante. Era impossível negar o magnetismo que Rafferty emanava, mesmo vestindo aqueles trajes. Aos poucos, o choque inicial de Michelle foi substituído pelo pânico. — Você só pode estar brincando! – disse, sentindo que as palavras escaparam-lhe antes que pudesse detê-las. Era óbvio que ele não brincava, e aquele não era o melhor momento para insultá-lo Encontrava-se numa posição bastante delicada e precisava da cooperação dele caso quisesse conservar a fazenda em seu poder. Mas o orgulho e o hábito fizeram-na revidar sua resposta atrevida. Tensa, sentiu um nó formar-se em sua garganta enquanto erguia o queixo e o encarava, esperando pela reação de Rafferty às suas palavras. Não fora muito esperto de sua parte desafiá-lo, mas agora era tarde. Ele a observava conservando a fisionomia dura e impassível. Seus olhos, no entanto, brilhavam de modo intenso e ardente. Rafferty apelava para todo o seu autocontrole, pois sua vontade era agarrá-la ali mesmo e mostrar-lhe que não estava brincando absolutamente. — Por acaso tenho cara de quem está brincando? – perguntou num tom controlado e ameaçador. — Você sempre viveu à custa de algum coitado que a sustentava; agora chegou a minha vez de sustentá-la. Sou bem diferente dos outros e não me deixo enganar por este seu jeitinho inocente. E saiba que não está em posição de me recusar. — Seu... arrogante! – disse, muito pálida, se afastando. Quem era ele para insultá-la daquela forma? Porém, o que mais a amedrontava era saber que não tinha controle sobre as reações que ele lhe despertava. Seu autodomínio nunca fora suficiente para impedir que tremores lhe percorressem o corpo toda vez que o via. Não poderia de forma alguma aceitar a idéia de ser usada por ele. — Não fuja de mim – disse ele num tom de voz ainda mais grave. Era nesse tom que Rafferty devia falar a suas amantes na cama, pensou Michelle. Apagando as imagens que se formavam em sua mente, virou o rosto, temendo que seus olhos a denunciassem. John devia ser um amante e tanto, ardente, capaz de enlouquecer uma mulher de paixão. Tal gesto provocou o ódio de Rafferty. Não suportava vê-la desdenhá-lo como se ele fosse um ser repugnante. Com um longo passo, cobriu a distância que os separava e segurou-a pelos braços, puxando-a contra si. Mesmo tomado pelo ódio, percebeu que era a primeira vez que a tocava; nunca havia tido a oportunidade de sentir-lhe a maciez da pele. Apesar da fúria com que a segurava, sua vontade era poder acariciá-la, deslizar-lhe as mãos pelas costas até enlaçá-la pela cintura... O desejo a consumia, mais forte até do que o ódio que estava sentindo. — Não empine este seu lindo narizinho para mim, sua grã-fina – ordenou-lhe de modo rude. — Você está acostumada a ser tratada como uma princesinha, mas saiba que seu reinado foi por água abaixo, benzinho... Se é que ainda não percebeu. Seus amigos só se

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interessavam pelo seu dinheiro. Aposto como nenhum veio lhe oferecer ajuda, agora que já não pode freqüentar a sociedade. Michelle esmurrou-lhe o peito na tentativa de afastar-se, mas foi inútil. — Não pedi a ninguém que me ajudasse. Muito menos a você! – desabafou. — Por que não eu? – indagou, chacoalhando-a de leve, os olhos negros mais penetrantes que nunca. — Posso lhe dar todo o dinheiro de que precisa. — Fique sabendo que não estou à venda! Michelle tentou livrar-se das mãos dele, mas não adiantou; Rafferty era muito mais forte e recusava-se a soltá-la. — Não estou interessado em comprá-la – ele murmurou, aproximando o rosto do dela. — Só quero alugá-la por uns tempos. Michelle ainda tentou desviar o rosto, mas Rafferty simplesmente a segurou pelos cabelos, obrigando-a a erguê-lo novamente. Por um instante, Rafferty encarou-a, os olhos brilhantes de desejo e, então, cobriu-lhe os lábios num beijo cruel. Michelle estremeceu em seus braços qual presa assustada diante do caçador e, fechando os olhos, entregou-se àquele momento. Durante anos tentara imaginar que gosto teriam os lábios de Rafferty, como seria seu beijo: suave e apaixonado ou violento e ardente? Agora, finalmente , descobrira o sabor marcante e o calor sensual de sua boca, o modo audacioso como a língua experiente explorava a sua, o roçar suave do bigode contra sua pele macia. Num gesto inconsciente, lançou-lhe os braços ao redor do pescoço, abraçando-o com força, deliciando-se com a firmeza dos músculos escondidos sob o tecido fino da camisa. Finalmente, percebeu que caberia a ela se afastar-se. Mas Michelle não queria afastar-se. Seu maior desejo era ficar para sempre ali entre os braços de Rafferty para que ele a protegesse. Sabia que fatalmente aquilo aconteceria e viu que jamais deveria ter permitido que ele a beijasse, que se aproximasse tanto. Rafferty a amedrontava. Exigiria tanto dela que , quando se separassem, não lhe restaria mais nada, apenas destroços. Instintivamente sabia que ele não era homem de uma mulher só. Reunindo toda força interior, virou o rosto e empurrou-o pelos ombros. Observando-a de modo insistente, ele aguardava sua decisão. Um silêncio pesado caiu sobre eles enquanto Michelle tentava se recompor, sempre sob a vigilância de Rafferty. A situação fugia-lhe ao controle. Durante dez anos conseguira mantê-lo à distância, alimentando uma inimizade gratuita por medo de que ele descobrisse o poder que tinha sobre ela. Conhecera diversas de suas namoradas, só que logo ele as abandonava, deixando em todas um rastro de rancor e sofrimento. Agora, era para ela que Rafferty estava olhando com olhos de predador; exatamente como Michelle temia. Jamais quisera que a descobrisse como mulher, pois sabia que Rafferty a incluiria na longa lista de mulheres a quem seduzira. Já tinha problemas de sobra na vida e não precisava arrumar mais aborrecimentos. Mas ele não deixava de fitá-la, medindo-a dos pés à cabeça, deslizando o olhar por suas curvas como se quisesse decorar-lhe os contornos. Sem se importar se a constrangia ou não, Rafferty deteve o olhar na curva delicada de seus seios. Michelle sentiu que enrubescia; jamais um homem a olhara daquela forma, desnudando-a. Indiferente, Rafferty voltou a encarála. Poucas mulheres seriam capazes de sustentar seu olhar intenso e arrogante. O medo e a revolta cresciam dentro de Michelle, que sempre vivera numa verdadeira redoma. Primeiro fora o pai, que fizera de tudo para protegê-la e satisfazer-lhe os caprichos. Depois, seu ex-marido, Roger Beckman, com seu ciúme obsessivo. Pela primeira vez na vida se via só diante de uma situação difícil, sem ninguém com quem contar. Era assustador saber que, bem ou mal, tinha de agir e arcar com as conseqüências de sua atitude. Raciocinando, concluiu que Rafferty não a amava nem a respeitava, embora a desejasse. Caso aceitasse a proposta dele e se

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tornasse sua amante, jamais conseguiria resgatar sua estima e seu amor-próprio. Com gestos lentos, afastou-se dele e, contornando a escrivaninha, sentou-se na cadeira que fora de seu pai, baixando o rosto para que ele não a encarasse. Mais uma vez, o orgulho veio socorrê-la, fazendo com que a voz soasse firme e controlada: — Como eu já lhe disse, não tenho dinheiro para lhe pagar agora e, pelo que li no documento, o prazo já venceu. A solução só depende de você e... — Eu já fiz a minha oferta – ele interrompeu bruscamente. Movendo-se com determinação, Rafferty sentou-se sobre a escrivaninha ao lado dela e apoiou o cotovelo sobre a coxa. Inclinando-se para a frente, aproximou-se ainda mais de Michelle, que engoliu em seco. — Tudo o que tem a fazer – ele prosseguiu – é aceitá-la em vez de ficar perdendo tempo fingindo que não gostou do meu beijo. Michelle ignorou-o. — Caso queira seu pagamento imediatamente, serei forçada a vender o gado para levantar esta quantia, e isto é algo que estou tentando evitar, pois pretendo continuar tocando a fazenda. O que pretendo é encontrar um comprador para uma parte das terras para poder lhe pagar, mas isto levará algum tempo. Uns seis meses, talvez... Prendendo o fôlego, esperou pela resposta dele. A única saída que lhe ocorrera fora a venda das terras, mas, para isso, precisava contar com a compreensão de Rafferty. Lentamente, ele se aprumou e, franzindo as sobrancelhas, olhou-a bem dentro dos olhos: — Espere um pouco, meu bem. O que você quer dizer com “continuar a tocar a fazenda”? Essa propriedade está praticamente abandonada. — Não está, não – negou com certo tom de teimosia. — Ainda me sobram muitas cabeças de gado. — Onde? – ele quis saber, incrédulo. — No pasto sul. A cerca do lado leste precisa de reparos e eu não... Vendo a fisionomia dele crispar-se de raiva, Michelle deixou a frase pairar inacabada, não compreendendo o motivo de tanta irritação. A propriedade de Rafferty e a dela faziam divisa ao norte; portanto, não havia perigo de o gado dele vir a se perder. — Só uma pergunta: quem está cuidando desse gado? Ah, então era isso. Ele estava duvidando de suas palavras pois sabia que não restava mais nenhum empregado na fazenda. — Eu – disse simplesmente, o queixo erguido com orgulho. Rafferty fez uma careta, deixando evidente que não a julgava nem capaz nem disposta a executar tal tipo de serviço. Ele a olhou dos pés à cabeça, as sobrancelhas erguidas, e Michelle sabia exatamente o que lhe ia pela mente. Afinal, fizera questão de criar a imagem que ele tinha dela, de grã-fina inútil, sempre com as unhas impecáveis e saltos altíssimos. Exatamente como estava agora, com seu traje elegantíssimo. — Você? Deixe-me ver suas mãos. Num gesto instintivo, Michelle fechou os punhos e o encarou: — Por quê? Rapidamente, Rafferty segurou-lhe as mãos. Ela ainda tentou resistir, mas Rafferty abriu-lhe os dedos, examinando-lhe as palmas. Primeiro, foi a esquerda; depois a direita, com a fisionomia sempre impassível. Então, esticando os próprios dedos, deslizou-os pelas calosidades que já se formavam devido ao trabalho pesado. Orgulhosa, Michelle recostou-se na cadeira, os lábios curvados num sorriso. Não se envergonhava dos calos que ostentava; a

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fazenda agora lhe pertencia e seria preciso lutar para conservá-la. Mas o que a perturbava era o modo como Rafferty os observava. Michelle não pretendia que ele soubesse de particularidades a seu respeito; preferia que a ignorasse ou conservasse aquela imagem frívola que ela gostava de ostentar. Não queria despertar pena em ninguém, muito menos em John Rafferty. Então, ele ergueu os olhos, estudando-lhe cuidadosamente o rosto, Michelle percebeu que já era tarde: Rafferty já descobrira um outro lado de sua personalidade. Fora um erro tê-lo recebido em sua casa. E por mais que tentasse manter o autocontrole, a cada instante que passava se tornava mais difícil. Na verdade, nunca conseguira tirá-lo do pensamento. Só encontrando refúgio para seus temores durante o breve tempo em que estivera casada, quando a distância e os diferentes estilos de vida os separavam. Mas indignava-se com o fato de ele querer tirar proveito da situação de fragilidade em que se encontrava. “Não deveria ter correspondido àquele beijo”, ela pensou. “Eu não podia!” — Você não precisava ter feito todo o serviço sozinha – ele comentou. Segurando-lhe as mãos, aproximou-se e ajudou-a a levantar-se. Michelle, então, percebeu que, mesmo tentando se encontrar, ele também estava muito nervoso. Apelando para seu lado irônico, procurou responder-lhe à altura, lançando-lhe um riso sarcástico: — Claro que precisava. Como você mesmo disse, nenhum de meus amigos veio me oferecer ajuda, não é? Rafferty sorriu satisfeito quando Michelle se referiu aos amigos. — Você podia ter me procurado. Novamente ela sorriu de modo irônico. — Mas não procurei. E não estou interessada na oferta que me fez. Prefiro qualquer outro tipo de serviço a me tornar sua amante. Acho que você realmente pensa que alguém poderia ao menos levar em conta tal proposta. Se pensa que vou aceitar está maluco...

Michelle calou-se, estremecendo sob o olhar que ele lhe dirigiu, arrependendo-se do tom de desafio que empregara em suas palavras. Rafferty devia estar fervendo de ódio com tudo o que acabara de dizer. Mas embora temesse que suas palavras o houvessem ofendido, não mudaria uma vírgula sequer do que dissera. Ao contrário do que supunha, Rafferty não se ofendeu com as palavras dela e não se descontrolou, apenas advertiu-a de modo contido: — Não me provoque, garota... Mas diga de uma vez como pretende continuar tocando a fazenda sozinha. Não tenho mais tempo a perder. Por um instante, Rafferty viu o desespero estampado nos olhos claros de Michelle, seus músculos enrijeceram. Mas logo ela voltou a sorrir-lhe com ironia. — A fazenda é problema meu – afirmou Michelle, deixando claro que dispensava qualquer tipo de ajuda por parte dele; o preço era alto demais. — Só quero saber como prefere receber o pagamento do empréstimo. — Cem mil dólares é uma quantia muito alta. Não foi nada fácil levantar esta soma para emprestar a seu pai. Neste ponto ele tinha razão. O dinheiro de todo fazendeiro, por mais rico que fosse, era todo aplicado em terras e na compra de mais gado. Dificilmente alguém dispunha de cem mil dólares em dinheiro. — Quando prefere que eu o pague? – tornou a insistir. — Agora ou daqui a alguns meses? Rafferty ergueu as sobrancelhas: — Na posição em que está, você deveria procurar ser mais gentil comigo em vez de me tratar com tanta arrogância. Por que não põe a propriedade e o gado à venda? Não vai conseguir dar conta do serviço sozinha, e esse dinheiro a ajudaria a viver enquanto não arranja

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outro homem que sustente você. — Eu vou dar conta do trabalho – ela revidou, pálida. Tinha de dar conta; a propriedade era tudo o que lhe restava. — Desista, benzinho. — E não me chame de benzinho! – explodiu, num acesso de raiva que assustou a si própria. Impaciente, ele segurou-lhe o queixo com suas mãos rudes e ergueu-lhe o rosto, obrigando-a a encará-lo. Insinuante, deslizou o polegar por seu lábio inferior: — Posso chamá-la do que eu quiser, benzinho,e você vai ficar de boca fechada porque me deve muito dinheiro e não pode me pagar. Vou pensar melhor no assunto e verei o que faremos com essa dívida... Michelle ainda tentou escapar mas Rafferty, segurando-lhe o queixo, beijou-lhe a boca com volúpia. Fechando os olhos, ela procurou ignorar a onda de desejo que a invadia ao sentir-lhe a língua quente e sensual insinuar-se sobre a sua. Desta vez era-lhe mais difícil resistir pois Rafferty a beijava, consciente do efeito que tinha sobre ela. Relutante, Michelle tentou afastar-se mas ele, como se pudesse adivinhar-lhe o pensamento, puxou-a pela cintura de encontro a si. Trêmula, ela apoiou as mãos em seu peito e, para sua surpresa, sentiu o coração de Rafferty bater disparado. Vagarosamente ele a fez apoiar a cabeça em seu ombro enquanto entrelaçava os dedos por entre os cabelos dela sem dar-lhe a mínima chance de escapar. Incapaz de resistir, Michelle acabou cedendo e retribuiu-lhe o beijo com o mesmo entusiasmo. Excitado com sua entrega, Rafferty beijou-a com mais intimidade. Seu cheiro, seu toque, seus carinhos inebriavam-na e a impediam de raciocinar com clareza. Michelle o desejava. Ele havia se tornado uma verdadeira obsessão para ela desde a primeira vez em que se viram e, desde então, ela vinha fazendo de tudo para fugir àquele estranho fascínio. No entanto, todos os seus esforços pareciam ter sido inúteis. Lentamente ele ergueu o rosto, a boca ainda molhada pelo beijo, e com os olhos semicerrados estudou-a com satisfação. Michelle estava totalmente entregue, o desejo estampado em seus olhos, os lábios rosados ligeiramente inchados. De modo gentil, ajudou-a a se aprumar e então desencostou-se da escrivaninha. Como toda vez em que ele a olhava com superioridade, Michelle deu um passo para trás tentando pensar em algo que pudesse dizer mas sua reação de há pouco dizia mais que mil palavras. Era inútil tentar explicar e o melhor a fazer era pôr um fim àquilo tudo. Muito pálida, segurou ambas as mãos com força e ergueu o rosto para encará-lo. — Quero que fique sabendo, de uma vez por todas, que não vou para a cama com você só para pagar minha dívida. Não importa o que decida. Por acaso você veio aqui na esperança de que eu me tornasse sua amante? Ele a olhou de modo penetrante: — E você ainda pergunta? Sentindo-se insultada, Michelle quase gritou: — Pois saiba que perdeu seu tempo. Não tenho intenção nenhuma de me transformar numa prostituta só porque você quer. — Fico feliz , porque já mudei de idéia – ele respondeu com desdém. — Ora, seu... imbecil! – explodiu, não conseguindo mais se conter. — Você vai para cama comigo mas não porque me deve dinheiro, mas porque vai me pedir. Sei que me deseja tanto quanto eu desejo você. O modo como ele a olhava a deixou enfurecida. Rafferty falava num tom seguro e irritante, que despertava-lhe o mais profundo ódio. Caso demonstrasse algum sinal de fraqueza, ele aproveitaria para tentar convencê-la da idéia de tornarem-se amantes. Precisava

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resistir e se controlar. — Isso jamais acontecerá; não quero ser mais uma na sua cama. Sua intenção era deixá-lo irritado, mas Rafferty segurou-lhe ambas as mãos e deslizou o polegar por seu pulso numa carícia provocante. — Tem certeza? — Tenho! Tenho certeza, sim! Vamos ver... Amanhã eu volto para dar uma olhada na fazenda e ver o que precisa ser feito... — Não! – ela disse, categórica, puxando as mãos. — Posso cuidar de tudo sozinha. — Benzinho, você não sabe nem controlar seu talão de cheques sozinha. Não se preocupe, eu tomo conta de tudo... Michelle teve vontade de esbofeteá-lo. — Não quero que tome conta de nada. — Você não sabe o que quer – ele replicou. — Até amanhã. E, sem mais uma palavra, Rafferty deu-lhe as costas e saiu do escritório. Michelle, atordoada, custou a cair na realidade e, segundos depois, chegou à porta da frente em tempo de vê-lo correr pela chuva até a caminhonete. Ele não a levava a sério. E deveria?, indagou-se com amargor. Sentindo as pernas fraquejarem, apoiou-se no batente da porta e o viu manobrar. E agora? Durante anos conseguira mantê-lo à distância com sua hostilidade, mas, de um momento para outro, todas as suas defesas estavam sendo derrubadas. Tal qual um predador, Rafferty descobrira toda a sua fraqueza e agora se mostrava disposto a atacá-la para valer. Com gestos vagarosos, Michelle fechou a porta, deixando lá fora o barulho da chuva, e o silêncio da casa a envolveu. Sentiu uma vontade imensa de chorar, mas resistiu. Não dispunha nem de tempo nem de energia para desperdiçar com lágrimas, e sua única salvação seria dedicar-se de corpo e alma ao trabalho, para pagar a dívida e manter John Rafferty a uma distância segura. Esta última tarefa, no entanto, seria a mais difícil. Na verdade, nunca quisera mantê-lo a distância mas, sim, aninhar-se entre seus braços e sentir-se protegida. — Mesmo contra a minha vontade, eu amo esse homem! – falou baixinho. A culpa pesou-lhe na consciência, e seus olhos encheram-se de lágrimas. Casara-se com outro quando seu coração pertencia somente a John Rafferty; estava obcecada por ele, amava-o desde a primeira vez que o vira. De alguma forma seu ex-marido intuíra o que se passava, e seu ciúme doentio transformara o casamento num pesadelo. Lembranças terríveis daqueles dias assaltaram-na e, para se distrair, Michelle foi até a cozinha preparar algo para jantar. Como estava sem fome, contentou-se com uma pequena tigela de leite com flocos de milho. Aliás, o mesmo menu do café da manhã mas, no estado de nervos em que se encontrava, não tinha a mínima disposição para cozinhar. Depois de sentar-se, comeu metade da refeição e, então, afastando a tigela para o lado, afundou o rosto entre as mãos. Durante toda a vida tinha sido tratada como uma princesa, filha única de um casal que já perdera a esperança de ter filhos. Quando ela nasceu, seus pais já estavam com quase quarenta anos. Sua mãe fora uma mulher inexperiente, que passara direto do domínio do pai para o do marido e achava que o papel de uma mulher era oferecer ao esposo um lar confortável e limpo em troca de que ele a sustentasse. Aliás, era o pensamento de toda uma geração, e Michelle não culpava a mãe por pensar assim. Langley Cabot tinha o maior prazer em mimar tanto a mulher quanto a filha, dando-lhes tudo que sonhassem possuir. Segundo

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ele, fazia parte de suas obrigações como chefe de família. Quando a mãe morreu, Michelle passou a ser o centro de toda a atenção do velho Cabot, que fazia questão de dar-lhe do bom e do melhor. Seu maior sonho era vê-la feliz, e se sentiria um fracassado como pai caso não conseguisse realizar-lhe todos os desejos. Naquela época, Michelle não se opunha aos presentes que o pai lhe dava. Sua vida fora um mar de rosas até o dia em que Langley resolvera vender a casa de Connecticut, onde moravam, mudando-se com ela para a fazenda no interior da Flórida, não longe da costa do golfo. Pela primeira vez ele não se deixou comover por seus apelos; a fazenda era a concretização de um antigo sonho que ele alimentava. Indiferente aos protestos da filha, Langley assegurava-lhe que, tão logo arranjasse umas amigas, ia adorar a vida no campo. E, em parte, ele tinha razão. Michelle aos poucos fizera novos amigos, se acostumando ao calor, logo passando a gostar de viver na fazenda. Para assegurarlhe todo o conforto, o pai reformara toda a casa antes de se mudarem para lá. Com o tempo, ambos ficaram contentíssimos com a mudança, e Michelle até envergonhava-se de um dia ter tentado convencê-lo a mudar de idéia. Foi então que conhecera John Rafferty. Mal podia acreditar que passara dez anos fugindo dele, mas era verdade. Amara-o e odiara-o a um só tempo com a obstinação cega de uma adolescente apaixonada, mas sempre tendo em mente o fato de que jamais o teria só para si. Jamais alimentara o sonho impossível de conseguir domá-lo. Michelle sabia que não era mulher suficiente para prendê-lo. Ele a detestava e a acusava de mimada e fútil. Como forma de se defender, ela sempre alimentara esta desavença com o propósito de mantê-lo o mais afastado possível. Depois de terminar o curso secundário, Michelle tinha ido cursar uma universidade na costa leste e, após a formatura, fora passar uns dias na casa de uma amiga, na Filadélfia. Durante esta estada, conhecera Roger Beckman, herdeiro de uma das mais ricas e tradicionais famílias da cidade. Ele era alto, moreno, e tinha até um bigode bem preto – tal e qual John Rafferty. As semelhanças entre os dois eram poucas, exceto no aspecto físico. Roger tinha um bom humor incrível, era descontraído e adorava uma caçada. Em sua companhia, Michelle conseguira divertir-se muito. Com o decorrer do namoro ela pensou que ao lado de Roger poderia ter uma vida feliz que a ajudaria a esquecer definitivamente John Rafferty. Convencida de que o melhor a fazer seria cuidar de sua própria vida e esquecer-se de John Rafferty, aceitou o pedido de casamento de Roger. Afinal, tinha dito a si mesma repetidas vezes, nunca existiria nada entre ela e Rafferty; apenas fantasias de uma adolescente apaixonada. Mas casar-se com Roger foi seu maior erro; um erro que quase lhe custara a própria vida. A princípio, tudo fora perfeito, até que, então, Roger começou a demonstrar sinais de ciúmes toda vez que a via conversar com outro homem. Teria percebido que ela não o amava o suficiente? Que lhe revelava apenas a parte mais superficial de seu ser? Até hoje o remorso e a culpa corroíam-lhe a alma, pois sabia que o ciúme de Roger tinha razão de ser. Como ele não conseguia detectar exatamente onde estava o perigo, ficava inseguro toda vez que ela sorria ou dançava com outro homem. As cenas de ciúmes foram ficando cada vez piores e, uma noite, durante uma discussão, ele chegara a esbofeteá-la só porque a vira conversando duas vezes com o mesmo homem durante uma festa. Absolutamente chocada, com o rosto em brasa, Michelle ergueu os olhos para encará-lo e entendera que o ciúme doentio o fizera perder o controle. Pela primeira vez sentiu medo de Roger. Arrependido, ele se jogara a seus pés, afundara o rosto em seu colo, implorando-lhe que o perdoasse. Roger jurara que por nada no mundo seria capaz de machucá-la outra vez. Atordoada, Michelle fizera o que milhares de mulheres fazem numa situação semelhante:

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acabara perdoando-o. Mas logo a cena havia se repetido. Só que de modo ainda mais grave. Humilhada, Michelle não tivera coragem de contar a ninguém mas, finalmente, reunira coragem para processá-lo. Para seu espanto, os pais dele, assim que souberam, compraram todos os envolvidos e destruíram todas as provas, deixando-a sem bases legais em que se apoiar. Os Beckman eram capazes de tudo para proteger o filho. Numa outra ocasião, Michelle decidira abandoná-lo mas, assim que chegou a Baltimore, ele a havia alcançado, possesso. Naquela ocasião lhe ficara mais evidente que Roger se tornara um home desequilibrado emocionalmente. Agarrando-a com violência pelo braço, ameaçara de morte Langley Cabot da próxima vez que ela tentasse fugir. Nem por um segundo Michelle duvidara das ameaças do marido: Roger estava mesmo doente e não hesitaria em cumprir a ameaça. E, caso isso acontecesse, os Beckman, com seu prestígio e dinheiro, na certa o livrariam da prisão. Eles tinham diversos parentes e amigos, influentes na Justiça. Achando por bem não arriscar a vida do pai, Michelle resolveu não tentar fugir novamente e ficou com Roger por mais dois longos anos. Mas, uma noite, depois de um espancamento, Michelle decidira que não ficaria nem mais um minuto ao lado dele. Conseguira chegar ao hospital mais próximo, onde seus ferimentos haviam sido tratados, e a ocorrência foi feita pela polícia. Finalmente obtivera provas contundentes para o divórcio. As cicatrizes, carregaria consigo por toda a vida.

Capítulo 3

De manhã bem cedo, Michelle saboreava a segunda xícara de café e se preparava para mais um dia de trabalho observando o sol surgir no horizonte, quando o telefone tocou. Olheiras profundas denunciavam a terrível noite de insônia em que rolara por horas a fio na cama, repassando mentalmente tudo o que John Rafferty havia lhe dito, todas as emoções desencontradas que seus beijos lhe provocaram. Não sabia ao certo como poderia fugir ao fascínio daquele homem. Esses pensamentos acabaram deixando-a desperta, lutando para encontrar uma saída para seu dilema. Michelle relutou em atender o telefone, mas sabia que nada demoveria John Rafferty de seus planos. Ele voltaria, sem dúvida. E, se fosse ele ao telefone, viria mesmo que ela não o atendesse. Como não quisesse protelar o inevitável, resolveu atender. — Michelle, meu amor... Pálida, ela apertou o fone com mais força. Não podia acreditar... Ele não ousaria... aquela voz fazia parte de um passado que fazia de tudo para manter enterrado. Não queria nem por um segundo viver de novo o pânico de se sentir absolutamente só e desamparada, sem ninguém com quem pudesse contar. — Roger... – Não havia dúvida. Era Roger Beckman, ninguém mais pronunciava seu nome daquela forma, com verdadeira adoração. — Eu preciso de você – ele disse num tom grave e rouco. — Volte para mim, meu amor. Eu lhe peço. Prometo nunca mais machucála; vou tratá-la como uma princesa... — Não – afirmou Michelle, categórica, puxando uma cadeira. Suas pernas tremiam incontrolavelmente. Como ele podia ter a audácia de lhe pedir que voltasse? O medo e a angústia aterrorizaram-na. — Não repita mais isso, por favor – ele retrucou. — Michelle, papai e mamãe morreram; preciso de você mais do que nunca.

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Pensei que viesse para o enterro deles na semana passada, mas você não apareceu. Não agüento mais. Se você voltar, juro que tudo vai ser diferente... — Estamos divorciados... – ela lembrou num fio de voz. O pavor fez o suor brotar-lhe na testa. — Mas podemos tornar a nos casar. Por favor, meu amor... — Não! Chega! – A idéia de voltarem a se casar causava-lhe tamanha repulsa que Michelle perdeu o controle. — Sinto muito pela morte dos seus pais, eu não sabia. Como foi que morreram? — Num desastre de avião – disse Roger num tom carregado de dor. — Eles estavam indo para o lago e uma tempestade os apanhou. — Sinto muito – ela repetiu. Mas, mesmo que tivesse sabido do ocorrido em tempo, jamais teria ido ao enterro. Não suportaria rever Roger. Por um momento ele permaneceu em silêncio, e Michelle quase pôde vê-lo esfregando os dedos na nuca, num gesto nervoso que ele repetia sempre. — Michelle, eu ainda te amo; nada me satisfaz se não tenho você aqui comigo. Juro que vai ser completamente diferente, nunca mais vou machucá-la. Eu morria de ciúmes e hoje sei que não havia motivo nenhum para isso. Ela estremeceu, ao lembrar-se das cenas terríveis que ele armava no auge do descontrole emocional. Tudo aquilo ainda estava bem vivo em sua memória para que pudesse ao menos tentar acreditar que Roger falava a verdade. Não, nunca mais queria ver o ex-marido, só de ouvir sua voz o terror já a dominava. — Por favor, Roger – murmurou. — Está tudo acabado; não vou voltar para você. Tudo o que quero no momento é trabalhar para conseguir me sustentar. Roger resmungou, impaciente: — Você não deveria estar trabalhando nessa fazendinha miserável, isso não é lugar para você. Ouça, posso lhe dar tudo o que quiser. Sei que está acostumada ao luxo. — Não, não quero. E agora, vou desligar. Adeus; não me telefone mais. Delicadamente, ela desligou o telefone e levou as mãos ao rosto. Sua mente raciocinava numa velocidade incrível sobre tudo o que ele acabara de lhe dizer. Os pais dele haviam morrido... Logo depois do divórcio, Michelle havia feito um trato com eles: caso Roger um dia a procurasse, entregaria para a imprensa as cópias do registro de ocorrência feita pela polícia e as fotos que serviram como prova. Fora um acordo feito entre Michelle e os Beckman, que não queriam, de jeito nenhum, ver o nome da família publicado em todos os jornais. Fora dessa maneira que conseguira manter o pai a salvo das ameaças de Roger. A vida passara a ser um verdadeiro tormento para ela, pois, no fundo, temia que o ex-marido contratasse alguém para assassinar Langley. Michelle sempre se dera bem com os sogros, até o dia em que eles destruíram todas as provas do processo que ela havia movido contra Roger. Daquele momento em diante passara a odiá-los; não havia ninguém a quem Michelle pudesse pedir ajuda, e se viu obrigada a esperar. Certo dia, o desespero fora tanto que ela resolvera contar tudo o que acontecia ao pai. Langley ficara muito aborrecido, mas logo se convenceu de que existia a possibilidade de ela estar exagerando um pouco a situação, que tudo não passara de uma briguinha normal entre casais. Michelle não se aborrecera com o pai na época; sabia que ele a amava, só que tinha uma imagem distorcida da filha, tratando-a

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como uma verdadeira boneca. E não como um ser humano. O velho Cabot jamais admitiria que uma tragédia pudesse estar acontecendo na vida de Michelle, sua única filha tão adorada. Ela precisava ser feliz, caso contrário teria falhado em sua missão de pai e provedor. Acreditar na felicidade dela era uma forma de Langley Cabot se autoproteger. Nada no mundo a faria voltar para Roger. O tempo fora seu grande aliado e, enterrando os pesadelos no passado, havia conseguido reconstituir a vida e seguido em frente, sem permitir que a amarga experiência a transformasse numa pessoa desesperançada. Mas bastava ouvir a voz de Roger ao telefone para que todas as lembranças voltassem a assolá-la, trazendo de volta a antiga sensação de desamparo e vulnerabilidade que a perseguira durante muito tempo. Saído do torpor em que se encontrava, apanhou a xícara e jogou fora o resto do café. O melhor a fazer seria ocupar-se para não ter chance de pensar em nada. Foi assim que havia conseguido encarar o divórcio e, com a ajuda do pai, que por fim se convencera de sua infelicidade, passara dois anos praticamente viajando sem parar. Mas dessa vez teria de se ocupar com o trabalho árduo da fazenda, que deixava seus músculos doloridos e o corpo exausto. Mas era muito compensador que qualquer coisa que já fizera na vida. Jamais se sentira tão útil.

John Rafferty amanheceu agitado. Desde que saíra da cama, seu mau-humor era patente. Sentia-se como um adolescente apaixonado. Não conseguira dormir a noite toda, lembrando-se do beijo que trocara com Michelle. Sabia que ela também o desejava; jamais se enganaria com relação a isso. Mas, atormentado pela longa espera de dez anos, se aproximara dela. Percebia agora ter agido como um tolo fazendo-lhe aquela proposta. Agira movido pelo desejo que sentia por Michelle e percebia o quanto deveria de tê-la ferido com tal proposta. Nunca deveria ter feito aquilo, mas como podia raciocinar com clareza quando se sentia tão atraído por aquela mulher? Franzindo as sobrancelhas, concluiu que, falida e sem nenhuma saída, talvez Michelle estivesse apavorada, sentindo-se desprotegida. Sua situação era, de fato, difícil. Inexperiente e sem dinheiro, não tinha ninguém com quem contar. Resoluto, resmungou baixinho e puxou as rédeas do cavalo, fazendo-o virar-se. — Volto mais tarde – disse a Nev, apertando o flanco do animal com as esporas. — Bom passeio – respondeu o empregado, observando-o afastar-se. Nev jamais o vira tão tenso e indagava-se a todo instante o que o teria deixado em tal estado. Era um alívio vê-lo ir dar uma volta. Columbus, um belíssimo cavalo, galopava ligeiro. O animal nascera e fora domesticado no próprio rancho e desde cedo demonstrara-se um tanto arredio. O domador, no entanto, logo o havia corrigido, e hoje era a montaria preferida de Rafferty. Columbus adorava uma boa corrida e respondia aos comandos do dono com precisão. A idéia de que Michelle tentava dar conta de todo o trabalho sozinha o aborrecia profundamente. Não era esta a imagem que sempre fizera dela, mas as marcas que vira em suas mãos tão frágeis não deixavam dúvidas. Rafferty nunca suportara pessoas passivas, dessas que esperam que os outros resolvam seus problemas, mas algo dentro dele se revoltava com a idéia de que Michelle fazia até os serviços mais rudimentares do rancho. Não entendia o porquê de ela não ter lhe pedido ajuda. Não podia nem pensar em permitir que aquela situação continuasse. Embora ela não tivesse pedido ajuda, iria procurar mudar o rumo das coisas. Só de pensar que ela pudesse sofrer algum acidente e não ter ninguém por perto para socorrê-la já ficava angustiado. E ele que sempre criticara Langley Cabot por ter mimado tanto a filha; e a criticara por ter aceitado tudo que o pai lhe dava...

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— Ela nunca vai conseguir dar conta de tudo aquilo... É muito serviço... – ele disse, e suas palavras se perderam no vento. Bem, quer ela gostasse, quer não, iria tomar conta da fazenda. Michelle na certa protestaria, mas acabaria se acostumando à idéia. Ela estava acostumada a ter alguém que a protegesse e, agora, chegara a vez dele de ocupar o posto deixado vago pela morte de Langley. O encontro do dia anterior havia mudado muita coisa. A descoberta de que ela também o desejava aumentava-lhe a determinação e a vontade de tê-la só para si. Mas Michelle fizera de tudo para disfarçar seus sentimentos tratando-o com insolência. Apenas o brilho inseguro do olhar a traíra. Raciocinando, concluiu que aquele seria o momento certo para conquistá-la; Michelle estava absolutamente vulnerável e, embora negasse, precisava de ajuda. Não havia ninguém em casa para atender a campainha, e Rafferty não viu a caminhonete dela. Apoiando as mãos nos quadris, franziu as sobrancelhas e olhou à volta. Com toda a certeza Michelle devia ter ido à cidade, embora fosse difícil acreditar que quisesse ser vista dirigindo uma caminhonete velha. Mas era o único veículo de que dispunha e, portanto, não tinha outra escolha. Talvez fosse melhor assim; sem Michelle por perto para aborrecê-lo com seus protestos, podia dar uma volta pela propriedade e verificar o que precisava ser feito. Ia, também, ao pasto sul ver o gado, contar quantas cabeças ainda restavam e verificar em que estado se encontravam. Michelle não podia estar tomando conta de um rebanho muito grande mas, se as reses estivessem bem tratadas, ela pegaria um bom preço pelo gado. Ele pretendia cuidar de tudo e arranjar um bom comprador para evitar que algum espertinho a enganasse. Montando novamente, rumou para o pasto leste, onde, segundo Michelle, parte da cerca havia caído. Muitos metros teriam de ser refeitos, e Rafferty calculou mentalmente quanto material seria necessário. Todo o rancho estava em péssimas condições de conservação, mas a cerca precisava ser arrumada logo. O pasto leste estava todo forrado de capim verdejante, pronto para receber o gado. Depois de uma cavalgada de duas horas, Rafferty chegou ao pasto sul, onde procurou uma colina de onde tivesse uma boa visão das terras. Puxou o chapéu para trás e correu os olhos pelo horizonte. O gado que viu espalhado não era muito, mas superava sua expectativa. O pasto estava em péssimas condições, mas os pequenos montes de feno aqui e ali testemunhavam o esforço de Michelle em alimentar os animais. Olhando com mais atenção, divisou-a a distância e sentiu o coração bater mais forte dentro do peito. A caminhonete fora estacionada sob umas árvores, por isso não a vira antes, e Michelle estava logo adiante, tentando consertar um trecho de cerca. Aquilo era tarefa para dois; uma pessoa sozinha não tinha condições de segurar o arame farpado, que podia se desenrolar. Que garota maluca! Se ela ficasse presa no arame não teria ninguém por perto para acudi-la. Era muito perigoso. Só de pensar no que poderia lhe acontecer, Rafferty ficou furioso. Depois de recuperar o autocontrole, fez Columbus descer a colina a passos lentos em direção a Michelle. Foi então que, erguendo o rosto, ela o viu e, apesar da distância, Rafferty percebeu seu desagrado. Ignorando-o, Michelle continuou a bater um prego na estaca. Sempre encarando-a, desmontou do cavalo e amarrou-o numa pequena árvore. Sem uma palavra, aproximou-se e puxou o rolo de arame até a outra estaca enquanto Michelle martelava o prego. Assim como ele, ela também usava luvas de couro, só que as dela eram velhas e vários números maiores que sua mão, o que lhe dificultava os movimentos. Por este motivo, tirara a luva esquerda, e o arame já havia machucado-lhe a pele em vários lugares.

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— Você não tem mesmo um pingo de juízo, não é? Não sabe que isto é serviço para duas pessoas? Muito séria, ela continuou a martelar. — O conserto precisa ser feito e, como estou sozinha, eu mesma o faço. — Fazia! – ele corrigiu. Ao ouvi-lo, Michelle se aprumou, segurando o martelo com mais força. — Não preciso de ajuda... – disse Michelle, desviando o olhar do rosto dele, visivelmente tensa. Sem lhe dar atenção, ele tomou-lhe o martelo das mãos e curvou-se para pegar o saco de pregos deixado no chão, indo guardálos na caminhonete. Em seguida, pôs o rolo de arame farpado na carroceria e afirmou: — Mandarei meus empregados virem terminar o conserto. Vamos! Ela fuzilou-o com o olhar, indignada com a ousadia que ele demonstrava. Vir assim ordenando-lhe coisas como se ela fosse sua propriedade. — Não quero que seus homens venham arrumar a minha cerca! Esta fazenda ainda me pertence e, quer você acredite ou não, vou pagar tudo o que lhe devo com o fruto do meu trabalho! — Não diga bobagem! Isso é serviço para dois homens e não para uma pessoa inexperiente como você! Rafferty segurou-a pelo pulso e, por mais que Michelle tentasse, não conseguiu livrar-se daqueles dedos longos e nodosos que a puxaram até a caminhonete, obrigando-a a entrar. Ele, então, soltou-a e fechou a porta com toda a força. — Dirija devagar, benzinho. Estarei bem atrás de você. Não era preciso ele lhe recomendar cuidado; o terreno acidentado do pasto não lhe permitiria desenvolver uma alta velocidade, mesmo que a velha caminhonete conseguisse andar a mais de sessenta quilômetros por hora. Mesmo sem olhar pelo retrovisor, Michelle sabia que Rafferty a seguia de perto, a cavalo. Concentrada na direção, preferia não vê-lo. Seu maior desejo depois de ter falado com Roger naquela manhã era poder ficar sozinha mas, infelizmente, Rafferty havia aparecido. Precisava muito de solidão para se recuperar do choque daquele telefonema. Michelle teve vontade de seguir pela estrada principal e tocar em frente. Não estava com a mínima disposição para parar e ter que se deparar com Rafferty mas, consultando o marcador de gasolina, foi obrigada a mudar de idéia. Caso quisesse fugir, teria que fazê-lo a pé ou então, roubar o cavalo de John. Depois de estacionar a caminhonete na cocheira, esperou por Rafferty, que vinha logo atrás. — Vou dar um pouco de água para o cavalo. Pode ir para casa; estarei lá em um minuto. Antes de ir para a casa, Michelle foi até a caixa do correio apanhar a correspondência. Houve um tempo em que todos os dias o carteiro entregava dezenas de cartas, revistas, jornais, catálogos. Hoje em dia eram só anúncios e contas. Incrível como até nisso a situação financeira de uma pessoa se refletia. Ninguém no mundo se interessava por uma pessoa falida. A não ser, era claro, os cobradores de contas vencidas. Um envelope familiar chamou-lhe a atenção: outro aviso dizendo que a conta de luz havia vencido. Seria preciso arranjar dinheiro logo, senão ficaria sem energia elétrica. Mesmo sabendo do que se tratava, abriu a correspondência e leu o conteúdo: tinha apenas mais dez dias para pagar a conta. Verificando o carimbo, notou que a carta passara três dias no correio, restando-lhe, portanto, apenas sete. Mas por que se preocupar com isso se a única solução possível seria se desfazer da fazenda? Exausta e desolada, Michelle entrou em casa e deliciou-se com o frescor da sala. O sol lá fora estava escaldante. Caminhando até a mesa de canto, colocou o segundo aviso da companhia de luz e o resto da correspondência na mesma gaveta

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onde guardara a conta e o primeiro aviso. Lá, pelo menos, eles ficavam fora de suas vistas. Enquanto tomava um copo d’água na cozinha, ouviu a porta de tela bater e, em seguida, o ruído das botas de Rafferty no assoalho do corredor. A cada passo, parecia que sua sentença de morte se aproximava mais e mais. Mentalmente, podia vê-lo caminhar pelo corredor. Ele tinha um andar de felino todo particular, as pernas longas e musculosas movendo-se com harmonia e determinação; um andar típico de um homem seguro de seu poder. Mesmo estando de costas para a porta, Michelle percebeu quando ele entrou na cozinha. De repente, o calor ali dentro pareceulhe sufocante. — Deixe-me ver suas mãos. Ele estava tão próximo de suas costas que seria impossível virar-se sem que seus corpos se tocassem; portanto, ela permaneceu onde estava, imóvel. Ele, sem nenhuma cerimônia, pegou-lhe a mão esquerda. — São só alguns arranhões – ela murmurou. Michelle tinha razão, mas nem assim a raiva dele diminuía. A mão frágil e pequena de Michelle pousada sobre a sua, grande e forte, mais parecia um pássaro acuado, incapaz de alçar vôo, cansado demais para abrir as asas. Era isso, ela estava cansada. Esticando o braço, ele abriu a torneira da pia e lavou-lhe os ferimentos com água e sabão. Temendo que o copo lhe caísse da outra mão, bastante trêmula, Michelle apressou-se em apoiá-lo sobre a pia. Depois permaneceu imóvel, cabeça baixa. O calor que desprendia do corpo de Rafferty aquecia-lhe as costas enquanto ele, com os braços ao seu redor, lavava-lhe os ferimentos com a mesma ternura que um pai cuidaria do filho. Tal ternura a comovia, e Michelle mantinha a cabeça baixa para não cair na tentação de curvá-la para trás e apoiá-la nos ombros fortes. Mesmo já tendo enxaguado os ferimentos, ele mantinha a mão sob o jato d’água, acariciando-a devagar. A água estava morna, mas as mãos de Raffferty quentes, e a pele áspera roçava na dela enquanto lhe friccionava os dedos. — Chega! – disse Michelle, tentando fugir àquela intimidade. Rafferty fechou a torneira com a mão direita e depois pousou-a sobre o ventre de Michelle, pressionando-a contra si. Prendendo a respiração, ela fechou os olhos, sentindo a umidade da mão forte ultrapassar o tecido de sua blusa, o calor daquele corpo viril contra suas costas... Tudo nele era um convite ao prazer. — Vire-se e me beije – pediu, ele, quase num desafio. Michelle fez que não com a cabeça e permaneceu imóvel. Ele bem poderia, mas não a forçou a nada. Apenas a conduziu ao banheiro onde, fazendo-a sentar-se num banquinho, secou-lhe os ferimentos e os tratou com mercurocromo. Michelle não reclamou do ardor. O sofrimento interior que sentia era muito maior. Estava para perder a fazenda, o único local no mundo que podia chamar de lar. Depois de ter sido prisioneira de Roger na sofisticada cobertura que tinham na Filadélfia, viver ali se tornara tão vital quanto respirar. Só a idéia de ter novamente de morar numa cidade já lhe dava um certo pânico e, caso perdesse mesmo a fazenda, esta seria a única solução possível. Rafferty observou-a com cuidado e percebeu que algo a preocupava; caso contrário Michelle não o deixaria cuidar dos ferimentos daquela forma. Daria tudo para adivinhar-lhe os pensamentos e saber por que ela insistia em tocar a fazenda sozinha quando, no fundo, sabia

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que se tratava de uma tarefa impossível. O que a faria agir assim? — Quando é que você quer o dinheiro? – ela perguntou-lhe, tristonha. Com os lábios crispados, ele a fez erguer-se do banquinho. — Dinheiro não me interessa – respondeu. Os olhos verdes de Michelle fuzilaram-no com ódio: — Sabe que não vou me transformar numa prostituta só para lhe pagar esta dívida. Acho que sua reputação subiu-lhe a cabeça! Rafferty sabia da fama que tinha de conquistador, mas aquelas palavras na boca de Michelle o agrediram. Detestava o ar de superioridade que ela insistia em manter e que tanto o enfurecia. Baixando o rosto, aproximou-o do de Michelle e olhou-a bem dentro dos olhos: — Quando estiver na cama comigo, benzinho, vai entender que mereço a minha reputação. — Eu não vou para a cama com você! – disse Michelle entredentes, enfatizando cada palavra. — Isso é o que você pensa. Só que não será por causa dessa maldita fazenda. – E, aprumando-se: — E vamos tratar desse negócio logo, assim você pára de tentar me agredir com esses ares de princesa! — Você tem exatamente o que merece – ela revidou ao voltarem para a cozinha. Rafferty pôs vários cubos de gelo num copo, encheu-o de água e sentou-se à mesa. — Eu cometi um erro – disse, pondo o copo vazio sobre a mesa. — Desde o momento em que começamos a conversar não conseguimos nos entender, só brigar. Acho que chegou o momento de acabar de vez com essa rixa. Quanto à dívida, encontrei uma solução: passe as terras que você pretende vender para o meu nome e a dívida está saldada. Por um lado, Michelle queria esmurrá-lo por ter tanta convicção de que a levaria para a cama, mas, por outro lado, sentia um imenso alívio por terem resolvido a questão da dívida com tanta facilidade. Ele poderia tê-la arruinado caso exigisse pagamento imediato em dinheiro, mas desistira. Na verdade, toda a terra que lhe pertencia era muito boa, o pedaço de terra que passaria para Rafferty valia bastante, e ele sabia que estava fazendo um bom negócio. Constrangida com o benefício que Rafferty lhe concedia, limitou-se a sentar-se e fitá-lo. Como Michelle não dissesse mais nada, ele recostou-se na cadeira e acrescentou: — Mas... sob uma condição. O alívio esvaiu-se numa fração de segundo, deixando-a novamente tensa: — Já posso até adivinhar – disse num tom amargo, pondo-se de pé. Ele não desistia mesmo... — Não, não pode, meu bem – disse Rafferty, sorrindo de modo irônico. — A condição é que você me deixe ajudá-la. De agora em diante meus homens irão cuidar da fazenda e, se algum dia eu a vir novamente consertando a cerca, prometo dar-lhe umas boas palmadas. — Mas, assim, vou continuar em dívida com você. — Prefiro não chamar isto de dívida mas, sim, de ajuda. — Este é apenas mais um de seus truques para me manter presa a você. — Chame do que quiser, mas é este o nosso trato. Ninguém no mundo pode fazer um trabalho desses sozinho. E você não tem dinheiro para contratar empregados. Pelo que vejo, não lhe resta opção, portanto pare de relutar. E, afinal, é tudo por culpa sua: se não gostasse tanto de esquiar não estaria hoje nesta situação. Michelle recuou, muito pálida, os olhos fixos nos dele: — Como assim? Rafferty pôs-se de pé e a observou, deixando evidente o quanto a desaprovava:

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— O que quero dizer é que seu pai me pediu esse dinheiro emprestado em parte para mandá-la a St. Moritz com seus amigos. Ele já estava até o pescoço de dívidas, mas você nem se importou, não é mesmo? Absolutamente chocada, Michelle arregalou os olhos e o fitou como se tivesse sido esbofeteada. Percebendo que a magoara, Rafferty contornou a mesa e aproximou-se, mas Michelle se retraiu, encolhendo-se tal qual um animal ferido. Que ironia do destino ter de pagar agora por uma viagem que nem mesmo queria fazer... Tudo o que pretendia na época era poder refugiar-se num lugar tranqüilo onde conseguisse se recuperar do trauma vivido com o ex-marido, mas seu pai a convencera de que uma viagem e algumas compras lhe fariam bem, e ela acabara concordando em ir só para deixá-lo feliz. — Eu nem queria ir... – confessou, desolada, sentindo os olhos rasos d’água. Michelle não queria chorar; a última vez em que o fizera fora por ocasião da morte do pai, e jamais se permitiria derramar uma lágrima sequer na presença de Rafferty. Mas, cansada e abalada pelo telefonema de Roger naquela manhã, não conseguiu impedir que as lágrimas lhe corressem pelo rosto. — Oh, por Deus, não chore – ele murmurou, aninhando-a entre seus braços. Rafferty comoveu-se ao vê-la naquela estado, pois, desde que a conhecera, sempre a julgara uma criatura fria e distante. Michelle, para ele, encarava a vida com um sorriso ou uma resposta afiada, mas nunca com lágrimas. Por um instante, Michelle deixou-se ficar ali entre os braços de Rafferty, o rosto recostado no peito forte, permitindo que ele a amparasse; naquele momento, o mundo parecia ter parado. No entanto, assustada com sua própria fraqueza, Michelle libertou-se daquele abraço e se recompôs, enxugando o rosto com o dorso das mãos. — Eu pensei que soubesse – disse ele em voz baixa. Antes de dar-lhe as costas, Michelle lançou-lhe um olhar incrédulo. Que conceito Rafferty tinha dela? — Mas eu não sabia! E quero saldar a minha dívida com você logo! — Amanhã nós iremos ao escritório de meu advogado e assinaremos a escritura; assim acabamos com essa maldita dívida. Estarei aqui às nove horas em ponto, fique pronta. Vou mandar uns empregados amanhã de manhã para consertar a cerca e levar o feno para o gado. Rafferty não ia mesmo ceder nesse ponto e tinha razão: era trabalho demais para ela. Michelle não podia cuidar de tudo sozinha, mas, assim que engordasse o gado de corte, venderia o rebanho, e com o dinheiro arrecadado poderia contratar uns empregados temporários. — Está bem – concordou. — Mas anote todas as despesas. Assim que eu conseguir reerguer a fazenda faço questão de lhe devolver cada centavo. Michelle mantinha o queixo erguido ao virar-se para encará-lo, os olhos verdes distantes e cheios de orgulho. A solução que ele lhe apresentava não era definitiva, mas pelo menos o gado estaria bem cuidado. Ainda teria de levantar dinheiro para pagar as contas, mas isso seria problema só dela. — Como quiser, benzinho – ele respondeu. — E agora... Michelle só teve tempo de prender a respiração e, em seguida, Rafferty beijou-lhe os lábios com volúpia e rudeza, como se a castigasse. Excitado, ele a puxou para junto de si e envolveu-a num abraço apertado, tornando o beijo mais íntimo, a língua quente e úmida descobrindo-lhe os segredos. Atordoada, Michelle sentiu todo o seu corpo reagir. Abandonou-se à carícia embora em algum lugar de seu cérebro uma voz lhe dissesse que isso era um erro fatal, um engano que poderia lhe custar muito caro. Mas logo esqueceu da prudência para concentrar-se no

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prazer daquele momento. Por fim, foi Rafferty quem ergueu o rosto e afastou-se. — Preciso voltar ao trabalho – murmurou ele, olhando-a com uma certa indiferença. — Esteja pronta amanhã cedo. — Estarei.

Capítulo 4

Logo pela manhã, chegaram à fazenda duas caminhonetes com cinco empregados de Rafferty e inúmeras ferramentas. Michelle ofereceu-lhes uma xícara de café, mas todos recusaram, e também a sua oferta de lhes mostrar a fazenda. Pelo jeito, deviam ter recebido ordens expressas do patrão para que não a deixassem fazer nada e cumpriam-na à risca; ela achou melhor não insistir. Há muito que Michelle não se via sem nada para fazer, o que a fez lembrar dos velhos tempos de garota mimada, quando preenchia o tempo vago fazendo compras. Agora que já se acostumara a trabalhar duro, achava horrível não ter uma ocupação. Bem antes da hora marcada, já pronta, Michelle sentou-se na sala à espera de Rafferty, que chegou um pouco antes das nove. Junto à porta, recebeu-o com um sorriso tímido nos lábios ante o olhar apreciativo que ele lhe dirigia. — Ótimo- murmurou ele num tom bem baixo. Ela usava um vestido de seda amarelo-claro, fechado apenas por dois botões brancos à altura da cintura. O enchimento discreto dos ombros realçava-lhe o corpo esguio. Como enfeite, um broche em forma de pavão preso à lapela. O sol forte da Flórida obrigava-a a usar óculos escuros. Bem próximo dela, Rafferty pôde sentir-lhe o perfume adocicado e tentador que logo fez disparar-lhe o coração. Michelle era puro requinte e elegância da cabeça aos pés, calçados numa sandália de tirinhas finas. Ele podia jurar que até suas roupas íntimas eram de seda. Sua vontade era despi-la e tê-la absolutamente nua em sua cama. Sim, era deste jeito que ela deveria se vestir sempre. Michelle pôs a carteira branca debaixo do braço e o acompanhou até o carro, feliz por ter colocado os óculos escuros. Rafferty era um rancheiro acostumado ao trabalho braçal mas, quando a ocasião exigia, sabia vestir-se tão bem quanto qualquer executivo de Nova York. Qualquer roupa lhe caía bem, mas o terno cinza-escuro que usava realçava-lhe os ombros largos e o corpo viril, tornando-o ainda mais atraente. Os cabelos, normalmente revoltos, estavam impecáveis. Em vez da caminhonete da fazenda, Rafferty estava com um lindo Mercedes cinza-prata de dois lugares, que a fez lembrar-se do Porsche que fora obrigada a vender para conseguir mais dinheiro. — Você disse que seus empregados vinham me ajudar – ela disse minutos mais tarde, quando já seguiam pela rodovia – e não que vinham tomar conta de tudo. Por causa do sol forte, ele também colocara óculos escuros, que disfarçavam o olhar perscrutador que lhe dirigiu: — Os rapazes vão fazer o serviço pesado. — Depois que a cerca for consertada e o gado transferido para o outro pasto posso me virar sozinha. — Ah, é? E o que me diz da castração, da marcação do gado e de todos os serviços que deveriam ter sido feitos na primavera? Não pode dar conta de tudo sozinha, sem um cavalo, sem empregados. E certamente não tem força para laçar um touro e arrastá-lo até aquela caminhonete velha caindo aos pedaços. Michelle apertou as mãos com força sobre o colo – ele tinha toda a razão.

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De fato, não podia executar todas aquelas tarefas, mas também não queria voltar a ser uma mulher inútil. — Sei que não posso fazer tudo mas quero ajudar. — Vou pensar nisso – respondeu ele casualmente, já sabendo de antemão que não a deixaria mais executar serviços pesados. — A fazenda me pertence – relembrou Michelle com frieza. — Ou eu ajudo, ou o trato está desfeito. Rafferty não disse uma palavra; não havia por que discutir. Não a deixaria trabalha, e era só. Saberia enfrentá-la na hora certa, mas sem brigas. Quando Michelle visse os animais sendo marcados, na certa desistiria de participar. Além do que, algo lhe dizia que Michelle no fundo detestava o trabalho na fazenda. Só que era orgulhosa demais para dar o braço a torcer. A viagem até Tampa era longa e, após meia hora de silêncio Michelle comentou: — Você costumava rir de meus carros esporte. Rafferty percebeu que ela se referia ao sofisticado Mercedes e resmungou baixinho. Pessoalmente, por ser um homem simples, ele preferia a caminhonete. — Os banqueiros são mesmo engraçados – disse tentando explicar-se. — Se acham que você não precisa tanto assim do dinheiro, não fazem questão de emprestá-lo. O carro ajuda a manter o status. — E aposto como as garotas do seu harém também o preferem, não? Não tem graça nenhuma chegar a um restaurante chique numa caminhonete. — Não sei, você já experimentou? – indagou e, mesmo através das lentes escuras dos óculos, Michelle pôde sentir o impacto do olhar que ele lhe dirigiu. — Eu, não, mas tenho certeza de que você já deve ter experimentado. — Na última vez em que fiz isso eu devia ter uns quinze anos – comentou, ignorando a frieza da resposta dela. —Na verdade, sair para passear numa caminhonete nunca fez o seu estilo, não é mesmo? — Não, nunca. Recostando a cabeça no assento, Michelle recordou-se dos namoradinhos da adolescência, todos com sofisticados carros esporte, e mesmo os do tempo da faculdade. Mas, na verdade, a marca do carro que tinham era o que menos lhe importava – nenhum conseguira ocupar o lugar de John Rafferty em seu coração. Talvez tudo tivesse sido diferente se o tivesse conhecido mais tarde. O que teria acontecido se nunca o tivesse tratado com a hostilidade daqueles anos todos, atrás da qual se protegia de uma atração irresistível que sentia por ele? E se o tivesse feito interessar-se por ela, em vez de afastá-lo? Nada, concluiu com amargura. John Rafferty não teria perdido seu tempo com uma adolescente de dezoito anos. Talvez mais tarde, depois da faculdade, a situação tivesse mudado, mas, em vez de voltar para casa após a formatura, tinha ido para a Filadélfia e... Por volta do meio-dia chegaram ao escritório do advogado para uma reunião bastante rápida. Primeiro, a terra seria metida a uma medição, e então a escritura seria redigida. A fazenda de Rafferty aumentaria em mais alguns hectares e a dela diminuiria, mas Michelle estava de acordo com a decisão. Pelo menos agora teria chance de tentar se recuperar financeiramente. Ao deixarem o escritório, Rafferty segurou-lhe o cotovelo e a conduziu de volta ao carro: — Vamos almoçar; estou com muita fome. Michelle, também faminta, logo concordou; o calor forte da manhã a deixava exausta. Rafferty abriu-lhe a porta do carro e observou, satisfeito, suas coxas bem torneadas expostas pela abertura do vestido. Ela imediatamente ajeitou o vestido e cruzou as pernas, olhando-o de modo interrogativo ao perceber que ele ainda a estudava,

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mantendo a porta aberta: — Algo errado? — Não, nada – respondeu e, fechando a porta, contornou o carro. “Esta garota sempre me deixou maluco”, disse a si mesmo ao sentir uma onda de desejo crescer em seu íntimo. A um gesto dela, brotava-lhe um desejo incontrolável. Michelle cruzava as pernas e ele queria descruzá-las; ela puxava o vestido e ele queria abri-lo. Quando a viu recostada no assento, os seios projetados para frente, teve vontade de rasgar-lhe o vestido e possuí-la ali mesmo. Diabos de vestido! Apesar de discreto, o modelo era incrivelmente provocante e a seda leve amoldava-lhe os quadris de modo insinuante. E pensar que era fechado apenas por dois botões... O restaurante escolhido por ele era o favorito dos executivos, mas Rafferty nem se incomodara em fazer reserva. O maitre já o conhecia e arranjou-lhes uma mesa à janela. Ao entrar, Michelle notou que diversas pessoas os observavam. — Bem, esta foi a primeira vez – disse num tom seco. — Como assim? – ele quis saber. — A primeira vez que sou vista em público em sua companhia. Dizem as más línguas que na segunda vez em que uma garota é vista a seu lado, ela é considerada sua amante. Meio aborrecido, Rafferty ensaiou um sorriso: — Normalmente, há muito exagero nos boatos. — Sim, normalmente há. — Será que neste caso também? – ele perguntou. — Só você é que pode dizer. Com os olhos fixos em Michelle, Rafferty pôs o cardápio de lado e comentou: — Apesar de tudo o que dizem por aí, você não tem que se preocupar, achando que será apenas uma a mais no meu harém. Enquanto estivermos juntos, será a única na minha cama. Sentindo as mãos trêmulas, Michelle apoiou o cardápio na mesa temendo que ele percebesse sua reação. — Você é muito ousado e pretensioso, não? — Não se trata de pretensão, e sim de planejamento... A voz dele soou segura, carregada de orgulhos. Rafferty tinha razões para ser tão convencido; afinal, quantas mulheres o teriam recusado? — Michelle, querida! Ouvindo a voz que a chamava com tanto entusiasmo, Michelle voltou-se para ver de quem se tratava. A interrupção viera em boa hora, quebrando a tensão que se instalara entre eles. Ao reconhecer Bitsy Summer, Michelle mal pôde disfarçar seu desprazer. O alívio deu lugar ao descontentamento ao vê-la aproximar-se da mesa: — Oi, como vai? – indagou sem a mínima vontade enquanto John se levantava. — Este é John Rafferty, meu vizinho. Rafferty, esta é Bitsy Summer, de Palm Beach. Fomos colegas de faculdade. Estendendo-lhe a mão, Bitsy cumprimentou-o, os olhos muito brilhantes: — Muito prazer, Sr. Rafferty. Michelle percebeu, mas Bitsy nem notou o brilho dos olhos dele ao apertar-lhe a mão cheia de anéis de brilhantes. Naturalmente

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devia estar lisonjeado com o olhar apreciativo que Bitsy lhe dirigiu. — Sra. Summer – cumprimentou, notando a aliança de brilhantes em sua mão esquerda. — Porque não se junta a nós? — Está bem, mas só por um minutinho – ela concordou, acomodando-se na cadeira que Rafferty lhe puxara. —Meu marido e eu viemos almoçar com alguns clientes e suas esposas. Ele acha que é sempre bom mantermos um contato social com os compradores; portanto, viemos de avião esta manhã. Mas, Michelle, há quanto tempo não nos vemos... — Tem razão. — O que faz por aqui? — Moro ao norte de Tampa. — Outro dia uma das meninas de nossa turma falou a seu respeito; estão todas com saudades suas. Demos uma festa maravilhosa na mansão Howard Cassa no mês passado; você devia ter aparecido. — Obrigada, mas tenho trabalhado muito – agradeceu com um sorriso forçado nos lábios. Era evidente que Bitsy não fizera a mínima questão da presença dela; caso contrário a teria convidado. Na certa, todas as colegas deviam estar curiosas para saber o motivo do seu afastamento. — Ora, que trabalho que nada – retrucou Bitsy dando de ombros. — Deixe a fazenda sob os cuidados de alguém por uns dias e saia um pouco; você precisa se distrair. Venha me visitar e traga o Sr. Rafferty. Aposto como ele vai gostar – acrescentou. — Estou certo que sim – ele afirmou. — Em que tipo de negócio o senhor trabalha? — Eu trabalho com gado; minha fazenda faz divisa com a de Michelle. — Ah... um fazendeiro! Pela fisionomia de Bitsy, Michelle podia jurar que ela estava com a cabeça cheia de fantasias românticas. As pessoas nem imaginavam como era árduo o trabalho numa fazenda. Temendo descontrolar-se, Michelle segurou as mãos sobre o colo. Afinal, Bitsy era uma mulher casada e não deveria flertá-lo da maneira como fazia. Felizmente, minutos depois a boa educação fez com que Bitsy voltasse para sua própria mesa. John observou-a afastar-se e voltou-se para Michelle com um brilho divertido nos olhos: — Não acha que Bitsy é um apelido em tanto estranho para uma mulher adulta? — O nome dela é Elizabeth – explicou, também sorrindo. — Portanto, o apelido ficou sendo Bitsy. Acho que as amigas a apelidaram assim por ser muito esnobe e metida nos tempos de escola. — Ah, pensei que fosse por causa da aparente falta de inteligência... – afirmou Rafferty de modo sarcástico. Nesse instante, o garçom se aproximou e Rafferty concentrou-se no cardápio. Michelle ficara satisfeita quando Bitsy resolvera se afastar. Ela era a pior fofoqueira da turma, e seria muito desagradável se tivesse começado a comentar a respeito das outras amigas ali na frente de Rafferty. As pessoas que Bitsy visitava eram muito sofisticadas, e todos os programas que faziam não agradavam Michelle que, na medida do possível, sempre recusara seus convites. Após o almoço, Rafferty perguntou-lhe se não faria questão de esperá-lo enquanto ele se reunia com alguns clientes. Michelle ia protestar, alegando ter muito o que fazer na fazenda, mas lembrou que os empregados dele estavam fazendo o serviço, e portanto poderia tirar o dia para descansar. Aquela era a primeira vez que passavam tanto tempo juntos e a tensão constante começava a cansar Michelle, que não via a hora do dia terminar. Não que estivessem discutindo mas, a convicção de John de que a levaria para a cama a irritava. Se não fosse por isso, o dia

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teria sido muito agradável. — Bem, não tenho hora para voltar – disse, deixando a cargo dele a escolha do horário. A noite já havia caído quando, finalmente, rumaram para a cidade. A reunião com os clientes demorara mais do que o esperado, mas Michelle não se aborrecera, pois ele não a deixara plantada na recepção. Rafferty levou-a consigo, e a reunião foi tão interessante que ela nem sentira o tempo passar. Ao deixarem o escritório, já passava das seis horas, e Rafferty estava de novo com fome. Entre jantar e pegar a estrada, passaram-se mais duas horas. Michelle, confortavelmente instalada no banco do carro, começava a ficar sonolenta, conseqüência dos dois copos de vinho que tomara na refeição. Ele, por ter de dirigir, se restringira a uma xícara de café. O carro estava muito escuro, iluminado apenas pelas luzes dos faróis dos automóveis com que cruzavam e, devido à hora, não havia quase trânsito. Michelle aconchegou-se no banco e limitou-se a responder às perguntas dele apenas com alguns monossílabos. Logo depois, a chuva começou a cair forte. O barulho e o movimento dos limpadores de pára-brisa contribuíram para deixá-la ainda mais sonolenta. Como os vidros começassem a embaçar, Rafferty foi obrigado a ligar o ar-condicionado no mais frio. Arrepiada, Michelle endireitou-se no banco e friccionou as mãos nos braços. O vestido de seda que usava não era suficiente para agasalhá-la. Ao vê-la toda encolhida, John estacionou no acostamento. — Por que paramos? — Porque você está com frio. – Tirando o paletó, colocou-o sobre ela, que deliciou-se com o calor e a fragrância da colônia masculina.— Ainda vamos levar umas duas horas para chegar em casa. Por que não dorme um pouquinho? O vinho deixou você sonolenta, não foi? —Um pouco... Ele tocou-lhe de leve as maçãs do rosto, observando-a fechar os olhos como se as pálpebras lhe pesassem. “É melhor que ela durma agora”, pensou. “E quando chegarmos em casa o efeito do vinho já terá passado.” O dia todo lutara contra o desejo que teimava em não o abandonar. Por mais difícil e mimada que Michelle fosse, ele a queria muito. E tinha certeza que ela também o desejava. Michelle normalmente não dormia bem; seu sono era sempre perturbado por sonhos agitados e pesadelos que a impediam de relaxar, mesmo quando seu pai se encontrava vivo e estava por perto. Há muito seu subconsciente vivia em alerta quando havia um homem nas proximidades. Roger, uma vez, a atacara durante a noite, enquanto ela dormia, e o trauma de ser acordada brutalmente a marcara para sempre. Agora, semi-acordada, percebia que a inquietude de sempre não a atormentava. Talvez estivesse aos poucos se recuperando do trauma, ou então era John Rafferty que lhe transmitia paz. Se paletó a agasalhava, aquecendo-a com um abraço carinhoso. Portanto, sentindo-se segura, Michelle conseguiu relaxar e dormir.

Michelle abriu os olhos e sorriu ao vê-lo abrir a porta do carro ao seu lado: — Chegamos, meu bem – disse Rafferty, acordando-a de mansinho. —Segure-se em mim. — Dormia a viagem toda, não foi?

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— Como um bebê. Curvando-se, Rafferty acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe delicadamente os lábios. Em seguida, pegou-a no colo. Michelle respirou fundo e passou-lhe os braços pelo pescoço. A chuva ainda era forte, mas o paletó dele a protegia; sem perda de tempo ele bateu a porta do carro com o pé. — Eu já acordei; não precisava me carregar – protestou, sentindo o coração bater acelerado. Rafferty a carregava com facilidade, correndo degraus acima como se tivesse uma criança nos braços. — Eu sei – afirmou, erguendo-a um pouco para que pudesse afundar o rosto na curva delicada de seu pescoço, aspirando-lhe o perfume suave.— Gosto do seu perfume... Como é? Já passou o efeito do vinho? Rafferty a acariciou de modo tão gentil que Michelle nem se deu conta do perigo e, em vez de se esquivar, aninhou-se ainda mais no colo dele, sentindo-se absolutamente segura e protegida. Rafferty moveu-se para o lado e abriu a porta da frente. — Só fiquei um pouco sonolenta... — Ótimo. Com agilidade, fechou a porta com o pé, isolando o barulho da chuva. O silêncio escuro da sala os envolveu, e então John a beijou de modo apaixonado e exigente, forçando-a a entreabrir os lábios para recebê-lo. Era como se o desejo que o consumia tivesse explodido de maneira incontrolável. Surpresa consigo mesma, Michelle segurou-se com mais força a ele e, puxando-o para si, retribuiu-lhe o beijo com a mesma paixão, a mesma urgência. O magnetismo que os atraía era mais forte que seu poder de autocontrole. Com o cotovelo, Rafferty acionou o interruptor que acendia a luz da escada. Curiosa, Michelle ergueu o rosto e o observou na semi-escuridão detectando o ar de satisfação da fisionomia dele. — Vou dormir aqui esta noite – murmurou, decidido, já subindo a escada. Michelle percebeu que nada o demoveria e preferiu não dar ouvidos à voz da consciência, pois todo o seu corpo clamava por ele. Que importância tinha afinal o fato de John Rafferty ser um conquistador? Naquele instante só o presente lhe interessava. Enquanto subia a escada, Rafferty beijou-a novamente, mordiscando-lhe o lábio inferior. Michelle aninhou-se melhor entre aqueles braços fortes que a sustentavam. Visita constante nos tempos de seu pai, ele sabia exatamente onde ficava o quarto de Michelle. Levou-a até a cama e, depois de acomodá-la, esticou um braço e acendeu a luz da cabeceira. Os olhos negros brilhavam de satisfação ao ver o desejo estampado no olhar dela. Michelle percebeu que, cansado de esperar, ele resolvera tudo premeditadamente, e por isso mesmo se demonstrara tão gentil e paciente o dia todo. — Agora você é minha – afirmou, a voz rouca de paixão. Apoiando-se num cotovelo, pôs-se a desabotoar-lhe o vestido com satisfação. Erguendo-se, abriu-o completamente, expondo lhe o corpo, e deitou-se. Michelle não estava de sutiã, sob o vestido só usava uma calcinha. A pele clara e acetinada contrastava com os bicos rosados, já eretos sob seu toque. Baixando o rosto, Rafferty sugou-os alternadamente, fazendo-a gemer de prazer enquanto acariciava-lhe os cabelos molhados pela chuva. Lentamente, Michelle começou a tirar-lhe a camisa de dentro da calça. Mas os lábios dele em seus seios a deixavam alucinada,

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impedindo-a de completar a tarefa. Então, Rafferty levantou-se e, depois de livrar-se das roupas, voltou para a cama, despindo-a completamente. Naquele instante, Michelle começou a sentir medo: há muito tempo não fazia amor, e sua vida sexual durante o casamento tinha sido desastrosa. Sabia estar absolutamente entregue, e não haveria maneira de fugir. Tal sensação de impotência quase a deixou em pânico. Espalmando as mãos sobre o peito forte pediu: — Por favor, não me machuque, sim? Ele, que estava prestes a possuí-la, deteve-se, chocado com tais palavras. Aquele fora um apelo dramático. Quem a teria machucado? Quem fora tão covarde? As chamas do ódio queimaram-lhe o peito, mas a urgência do desejo falava mais alto: — Não, meu bem – disse-lhe com ternura, fazendo o temor desaparecer dos olhos dela – eu não vou machucar você. Deslizando-lhe o braço pelas costas, trouxe-a para junto de si, comprimindo-lhe os seios contra seu peito macio. Ela prendeu a respiração e estremeceu em antecipação. Olhando-a bem dentro dos olhos, Rafferty penetrou-a com delicadeza. Michelle fechou os olhos e mergulhou num mundo puro de prazer. Num gesto instintivo, passou-lhe as pernas ao redor da cintura, trazendo-o para mais perto. Alucinada com o ritmo cada vez mais rápido dos movimentos de Rafferty, teve vontade de gritar, mas levou a mão à boca. — Não – ele murmurou. — Não se iniba, quero lhe dar todo o prazer do mundo... Novamente uma onda de pânico atingiu-a: — Pare! Por favor, não quero mais, não posso... — Pss... – disse ele beijando-lhe de leve os lábios, o rosto, as orelhas.— Está tudo bem, querida, eu não vou te machucar. Controlando-se, Rafferty procurou acalmá-la, refreando a urgência de seu desejo. Por nado do mundo queria machucá-la ou fazêla sofrer. Principalmente depois do pânico que vira estampado naqueles lindos olhos verdes. E viu que Michelle o desejava, mas não o bastante para entregar-se. Portanto, começou a acariciá-la com habilidade, tornando seus toques cada vez mais íntimos e provocantes. Contorcendo-se ela gemeu baixinho e mordiscou-lhe os ombros. Percebendo que ela estava pronta para atingir o clímax. Rafferty, incapaz de conter-se por mais tempo, voltou a mover-se num ritmo acelerado até que ambos chegaram ao orgasmo. — Eu não sabia que... – ela disse, mas um acesso de choro impediu-a de continuar. Rafferty, carinhoso, murmurou-lhe palavras ternas ao ouvido e deitou-se sobre ela, cobrindo-a com seu corpo. Minutos depois, ao senti-la mexer-se sob si, ele apoiou-se num cotovelo e ergueu-se para fitá-la. Michelle viu em seus olhos um misto de satisfação e arrogância que a deixou apreensiva, mas ele começou a acariciar-lhe os cabelos, afastando-os do rosto. Curvando-se, contornou-lhe o rosto delicado com os lábios. Então, curioso, ergueu-se e não pôde deixar de perguntar-lhe: — Você nunca havia atingido o orgasmo antes, não é? Sentindo-se enrubescer, Michelle respondeu: — E isso faz um bem imenso ao seu ego, não? Percebendo que ela se retraía, Rafferty preferiu não continuar com o assunto, mas trazia consigo ainda uma porção de perguntas, para as quais queria respostas. No momento, Michelle estava em seus braços, fraca e exausta de tanto prazer, e era assim que pretendia conservá-la até que se acostumasse com a idéia de lhe pertencer e não relutasse mais.

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Ela agora era sua. Toda sua. Satisfeito, prometeu a si mesmo cuidar de Michelle. O esforço que vinha fazendo para cuidar sozinha da fazenda, sujeitando-se a serviços pesados, era notável, mas não continuaria. Ele não tinha dinheiro para mandá-la a viagens pela Europa ou às montanhas, na temporada de esqui. Mas ganhava o suficiente para dar-lhe uma vida confortável e segura sem que ela precisasse trabalhar. Olhando-a bem dentro dos olhos imaginava-a já em sua casa morando juntos. Rafferty sentiu o desejo novamente crescer dentro de si e, sem uma palavra, recomeçou a acariciá-la.

Capítulo 5

Michelle acordou bem cedo, quando os primeiros raios de sol batiam na janela do quarto. Seu sono, ainda que breve, fora profundo e sem sonhos, o que não era comum, mas, acostumada a dormir sozinha, estranhou a presença de Rafferty em sua cama. Virando o rosto, observou-o dormir de bruços, tranqüilo, um braço dobrado sob o travesseiro, o outro estendido sobre seu corpo nu. Fora tão fácil para ele trazê-la para a cama... Esta certeza doía-lhe no peito, e Michelle resolveu levantar-se, com cuidado para não acordá-lo. De pé, sentiu as pernas tremerem-lhe, doloridas, fazendo-a lembrar-se dos momentos que vivera nos braços de Rafferty. Admirava-se com o modo que respondera aos seus carinhos, retribuindo-os sem inibições, numa entrega total, sem nenhum controle. Porém ele, mais experiente, controlou-se pelos dois. Ela agora sabia por experiência própria que todos os boatos a respeito dele nada tinham de exagerados: John era um mestre na arte de amar. Raciocinando, acabou por se conformar com a idéia de ter-se tornado a mais recente conquista dele, encabeçando a lista de mulheres que se deixaram seduzir por seu charme. O mais difícil era aceitar o fato de que logo o seu reinado teria fim e Rafferty trataria de substituí-la por outra. A ela só restaria o triste destino de continuar a amá-lo como antes. Procurando não fazer barulho, apanhou roupas íntimas numa gaveta da cômoda e o robe e foi tomar um banho. Precisava de uns minutos sozinha para poder se recompor antes de tornar a enfrentá-lo; ainda não sabia como agir ou que dizer-lhe. A água quente aliviou um pouco seus músculos doloridos deixando-a mais relaxada. Depois do banho, passou a escova pelos cabelos e foi à cozinha fazer café. Encostada na pia, vendo o café sendo passado na cafeteira elétrica, ouviu um barulho que chamou-lhe a atenção. Aproximando-se da janela, viu duas caminhonetes da fazenda de Rafferty pararem no pátio. Os mesmos empregados da véspera desceram batendo a porta do veículo. Um deles, ao notar o carro de Rafferty estacionado perto da casa, cutucou o outro. Mesmo a distância Michelle pôde ouvir-lhes o riso malicioso e logo adivinhou-lhes o pensamento. O patrão tinha conquistado mais uma; em menos de vinte e quatro horas a notícia se espalharia por toda a região. Os homens lhe pareceram orgulhosos e, ao mesmo tempo, invejosos, da audácia de John Rafferty. Pelo visto, não se cansariam de contar suas façanhas aos amigos em conversas à mesa de um bar.

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Cabisbaixa, Michelle voltou para a pia. O café já estava passado e ela, encheu uma caneca bem grande de louça que segurou com ambas as mãos, frias e trêmulas. Sempre em silêncio, subiu a escada e foi até o quarto ver se Rafferty ainda dormia. Ao espiar pelo vão da porta viu-o acordado. Ele se apoiou num cotovelo e passou os dedos pelos cabelos, franzindo as sobrancelhas ao encará-la. Michelle não disse uma palavra, limitando-se a observá-lo. Jamais o vira tão atraente, o torso nu revelando músculos rijos, típicos de quem trabalha no campo, a barba por fazer... Michelle não saberia dizer ao certo o que esperava ver refletido nos olhos dele – desejo, satisfação... carinho, talvez. Mas, fosse o que fosse, não encontrou. Contrariando suas expectativas, ele a encarava como sempre, a fisionomia séria e impassiva, fazendo-a sentir vontade de desaparecer dali. Mas percebeu que Rafferty esperava que ela tomasse a iniciativa de se aproximar ou dizer algo. A passos incertos, entrou no quarto segurando a caneca com mais força, temendo derrubá-la. Na voz, uma ponta de apreensão: — Meus parabéns! Quando chegar em casa vai poder anotar mais um nome na sua lista de conquistas. Rafferty franziu ainda mais as sobrancelhas e sentou-se na cama sem perceber que o lençol mal lhe cobria os quadris. Apanhando a caneca que Michelle lhe oferecia, tomou uns goles de café e a devolveu, olhando-a bem dentro dos olhos. — Sente-se. Michelle hesitou um pouco diante da ordem, e Rafferty, ao perceber, segurou-lhe o pulso com firmeza e a fez sentar-se na beirada da cama de frente para ele. — Não sei se você está interessada, mas acontece que não tenho nenhuma lista das minhas conquistas – afirmou, sério, acariciando-lhe a pele delicada do braço. — É por isso que está tão estranha comigo esta manhã? Evitando olhá-lo, Michelle baixou o rosto e simplesmente deu de ombros. Com a fisionomia severa e grave, Rafferty a observava; ela havia se retraído mais uma vez. Lembrando-se do temor que vira estampado nos olhos dela na noite anterior, indagou-se por que Michelle temia os homens. Precisava fazê-la confiar nele e contar-lhe o que acontecera. — Há muito tempo você não fazia amor, não é? Michelle deu de ombros, um tanto sem jeito. — Foi a primeira vez que teve prazer, não foi? – perguntou, olhando-a atentamente. Por fim, ela ergueu o rosto e o fitou de modo tímido: — E você parece muito satisfeito com isso, não? O que quer? Uma medalha? — Por que nunca sentiu prazer antes? — Talvez estivesse esperando por você – disse num tom sarcástico. — Ora, não fale assim – Rafferty revidou, chateado. — Me conte o que a fez ter medo de sexo. — Eu não tenho medo – negou, revoltada com o fato de Roger tê-la traumatizado. — É que... bem, fazia tanto tempo, e você tem uma fama que... – Sentindo enrubescer-se, baixou os olhos, deixando a frase inacabada. Muito atento, ele pensou muito bem no que aprendera sobre ela na noite anterior. E percebeu de repente que Michelle não poderia ter sido a responsável pelo divórcio de Mike Webster, conforme diziam. E alegrou-se por ter sido o único homem a satisfazê-la sexualmente.Seria mais uma arma para prendê-la a si. Não queria perdê-la, e para isso precisava valer-se de todos os artifícios. O único problema era que insistia em construir uma muralha ao seu redor para se proteger, tal qual uma princesa numa torre de marfim. Mas na noite anterior ela se entregara totalmente aos seus carinhos, transformando-se numa mulher ardente e apaixonada.

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Jamais desejara uma mulher com tanta paixão. Mas Michelle parecia achar que, para ele, os momentos de amor que haviam vivido tinham sido apenas uma aventura a mais, e que agora, ao amanhecer, o encanto e a magia tinham terminado. O que ela não sabia era que agora Rafferty jamais a deixaria partir. A vida o ensinara a lutar para atingir seus objetivos e conservar o que havia tão duramente conquistado. Um bom exemplo disso era o rancho que, apenas com seu trabalho e dedicação, havia se transformado numa das maiores fazendas de gado da Flórida. John sabia lutar pelo que era seu mas, esta obstinação pelo rancho não era nada se comparada ao sentimento que alimentava com relação a Michelle. Finalmente, Rafferty soltou-lhe o pulso, e Michelle levantou-se de imediato, afastando-se da cama. Saboreando os últimos goles de café, lançou um olhar perdido através da janela. — Seus empregados se divertiram a valer ao ver seu carro estacionado aí fora. Indiferente à própria nudez, Rafferty saiu da cama: — Eles vão terminar o conserto hoje e transferir o gado para o outro pasto amanhã. – E, após uma breve pausa: — Aborrece muito você o fato de eles saberem que dormi aqui? — O que me aborrece é servir de assunto numa mesa de bar. Sei que isto só vem dar mais crédito à sua imagem de conquistador. Serei apenas mais uma a cair pelo seu charme. — Bem, acho que as pessoas vão mudar de opinião quando a virem mudar-se para a minha casa, não acha? – indagou, arrogante, indo para o banheiro. — Quanto tempo você demora para arrumar as malas? Pasma, Michelle voltou-se para encará-lo, mas Rafferty já havia entrado no banheiro, e logo o ruído do chuveiro chegou-lhe aos ouvidos. “Mudar-se para a casa dele? Mas que sujeito mais petulante!”, ela pensou. Sentando-se na beirada da cama, ficou olhando para a porta do banheiro à espera de que saísse. A sensação que tinha era a de estar rolando por um precipício. Estava perdendo o controle sobre a própria vida, e pelo jeito não conseguiria lutar contra isso. O problema maior não era o fato de Rafferty ser autoritário e gostar de tudo sob seu controle mas, sim, a fraqueza que sentia em relação a ele. No fundo, tinha vontade de se aninhar em seus braços fortes e deixar que ele a protegesse e cuidasse de tudo. Sentia-se exausta, física e mentalmente, mas, se o deixasse tomar conta de tudo, o que lhe aconteceria no dia em que se cansasse dela? Tudo voltaria a ser como antes, só que, para completar, ainda traria consigo mais uma desilusão amorosa. A água do chuveiro parou de correr, e Michelle já podia até imaginá-lo saindo do banho, o corpo viril todo molhado. Ao relembrar os momentos que haviam vivido na noite anterior, um arrepio percorreu-lhe o corpo. As carícias que haviam trocado... Rafferty conseguira quebrar-lhe as barreiras e descobri-la por inteiro. Ele saiu do banheiro usando apenas uma toalha enrolada na cintura. O tecido aveludado verde-claro formava um belo contraste com a pele bronzeada. Os cabelos em desalinho e o bigode ainda brilhavam, molhados, e pequenas gotinhas de água cintilavam em seus ombros. Michelle sentiu a boca secar, e teve de resistir ao ímpeto de aproximar-se e tocá-lo, deslizando-lhe as mãos pelo torso magnífico. — Ainda não começou a fazer as malas? – perguntou ele lançando-lhe um olhar severo. — Eu não vou com você. A intenção de Michelle fora falar de modo seguro e positivo, mas sua voz soou trêmula e tímida. — Acho que vai ficar um pouco embaraçada se eu a carregar para minha casa vestida só com esse robe.

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— Mas eu... – Interrompendo-s, fez um gesto de recusa com as mãos – não quero me envolver com você. — É um pouco tarde para se preocupar com isso – ele lembrou. — Eu sei... Nunca deveríamos ter dormido juntos. — Ora, que conversa é essa? Isso já deveria ter acontecido há muito tempo. – Irritado, tirou a toalha da cintura e apanhou a cueca. — O melhor que tem a fazer é mudar-se para minha casa. Normalmente costumo trabalhar doze horas por dia, ou mais; às vezes nem tenho tempo para dormir. À noite, quando volto, ainda tenho que verificar as contas e os papéis, você sabe como é. Quantas vezes iríamos poder nos encontrar? Duas por semana? Não estou interessado em manter apenas um caso com você, quero-a comigo, morando em minha casa. — E quanto a minha fazenda? Quem vai cuidar dela enquanto fico à sua disposição para satisfazer-lhe o desejo sempre que tiver vontade de ir para a cama? Rafferty deu uma sonora gargalhada. —Se fôssemos para a cama toda vez que eu a desejasse, não sairíamos do quarto nos próximos doze meses. Sentindo um calor intenso subir-lhe ao rosto, Michelle baixou-o, desviando o olhar. — Tenho que cuidar da minha fazenda – afirmou como se aquelas palavras fossem mágicas e tivessem o poder de demovê-lo da idéia de levá-la para sua casa. — Eu tomarei conta das duas fazendas. – Nervoso e impaciente, vestiu a calça. — Encare a realidade, Michelle: você precisa de ajuda; não pode fazer tudo sozinha. — Talvez eu não possa, mas preciso tentar, será que não entende? – indagou, já desesperada. — Nunca trabalhei ou fiz qualquer coisa para me sustentar, mas estou aprendendo. Você está ocupando o lugar de meu pai, tomando tudo sob seu controle, mas o que acontecerá no dia que se cansar de mim? Ainda não terei aprendido a me sustentar! Rafferty a encarou. O que Michelle achava que ele iria fazer? Usá-la por uns tempos e depois abandoná-la? Caso um dia se separassem, a fazenda dela já estaria dando lucro. Isso, no entanto, na certa não aconteceria. O que sentia por ela era algo muito antigo. Sua intuição lhe dizia que tal paixão não se extinguiria com o tempo. — Eu tomarei conta de você – garantiu, controlando a raiva. — Claro – disse ela num riso irônico nos lábios. Michelle sabia por experiência própria que no mundo cada um cuida de si. Os pais de Roger protegeram-no sob pena de levá-la ao pânico só para preservar o bom nome da família Beckman. Ninguém havia pensado nela. Seu próprio pai, por mais carinhoso que fosse, ignorara-lhe o pedido de ajuda por não querer admitir a si mesmo que a filha era infeliz; fora mais cômodo para ele acreditar que estivesse exagerando. A queixa que ela movera contra Roger desaparecera só porque algum delegado achava melhor não criar inimizade com os Beckman. Michelle aprendera a duras penas a não esperar nada de ninguém: jamais confiaria sua vida a outra pessoa novamente. — Quer um acordo por escrito? – Rafferty indagou, apanhando a camisa do chão. Cansada, Michelle esfregou as têmporas. Ele não estava acostumado a alguém que se recusasse a obedecê-lo. Michelle deu-se conta de que, caso concordasse, apenas confirmaria a idéia que ele fizera a seu respeito no início, de que seu corpo poderia ser comprado. Talvez Rafferty estivesse querendo mantê-la sob seu domínio exatamente através de uma dependência econômica. — Não, não é isso que quero.

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— Então, o que é que você quer? “Só o seu amor”, pensou consigo. “ Poder viver o resto de meus dias ao seu lado. Mais nada.” Mas isso ela sabia que era querer demais. —Quero trabalhar aqui na fazenda e me sustentar sem a ajuda de ninguém. — Mas não pode – disse de modo terno e paciente. — Preciso ao menos tentar. Mesmo sendo evidente que Michelle não conseguiria, ele a respeitava por querer tentar. Mas como uma garota frágil e desacostumada ao trabalho árduo daria conta de um rancho? Faltava-lhe dinheiro e condições físicas para tanto. Seria uma iniciativa fadada ao fracasso: Michelle acabaria esgotada, talvez até doente. Mas se ela precisava tanto provar a si mesma que era capaz, deixaria que tentasse. Porém, de modo algum recuaria, permitindo que fingisse que nada de especial havia acontecido entre eles; Michelle agora lhe pertencia, e ele queria que isso ficasse bem claro antes de ir embora. E iria mostrar-lhe o quanto a desejava. Tirou a camisa e a calça, lançando a ela um olhar penetrante. Nervosa, Michelle enrubesceu. Rafferty sentiu o coração disparar no peito. Ao vê-lo aproximar-se, já despido, Michelle sussurrou seu nome baixinho. Quando Rafferty a puxou para si, ela curvou o pescoço para trás como se não pudesse sustentar o peso da cabeça; Ele aproveitou o momento para deslizar os lábios úmidos em sua nuca macia, fazendo-a estremecer em seus braços. Michelle ainda tentou resistir, mas viu-se respondendo-lhe automaticamente aos carinhos. Nada podia fazer; ela o desejava, muito. Quando a deitou na cama prendendo-a sob si, Michelle entregou-se.

Horas mais tarde, ainda naquela manhã, a conversa que haviam tido antes de Rafferty ir embora não lhe saía do pensamento: — Você toma pílula? – ele perguntara. — Não. Mas não se preocupe, não estou nos meus dias férteis. — Mesmo assim, acho melhor você ir ao médico e pedir uma receita. — Eu já tentei tomar pílula, mas não posso. Vomito o dia todo como se estivesse grávida. — Então, temos que pensar em outra coisa. Você cuida disso ou quer que eu cuide? Ficara evidente, pela conversa, que Rafferty encarava aquele relacionamento como algo duradouro e não passageiro. Ele tocara no assunto de modo tão casual que só agora, ao raciocinar melhor, percebia que, ao incumbir de evitar uma gravidez dera a ele, de certo modo, o direito de fazer-lhe amor. Incrível como não percebera o brilho de satisfação nos olhos dele ao se despedir. Tendo muito o que fazer no escritório, Michelle forçou-se a concentrar nos papéis, o que serviu apenas para aborrecê-la ainda mais. A pilha de contas vencidas aumentava a cada dia, e ela, não sabia por quanto tempo mais ia poder contar com a compreensão dos credores que, afinal, também precisavam do dinheiro. Era preciso engordar o gado antes de vendê-lo, mas não havia dinheiro bastante para comprar ração. Repetidas vezes Michelle refez os cálculos de quanto teria de gastar e de quanto apuraria com a venda do rebanho já gordo. Qualquer fazendeiro experiente saberia qual o custo, mas ela só podia se basear nos dados deixados por seu pai e na contabilidade dos anos anteriores. No entanto, não sabia até que ponto suas estimativas estariam corretas.

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Pensou em perguntar a Rafferty, mas ele aproveitaria a oportunidade para fazê-la ver mais uma vez que não daria conta de tudo sozinha. Naquele instante o telefone tocou e Michelle atendeu: — Michelle, querida. Ao reconhecer a voz, ela, em pânico, desligou o telefone. Suas mãos tremiam: por que ele não a deixava viver em paz? O telefone começou a tocar outra vez, o ruído estridente feria-lhe os ouvidos. Angustiada, contou quantas vezes ele tocava, imaginando quem cederia primeiro: ela ou Roger. Começou a suar frio, o terror a invadindo. Mesmo depois de dois anos aquele medo não diminuíra. O telefone continuava a tocar. E se Roger deixasse o telefone tocar com o intuito de atormentá-la? No décimo segundo toque ela atendeu. — Querida, não desligue outra vez, por favor – ele murmurou. — Eu te amo muito e preciso conversar com você, senão vou enlouquecer. Apesar do tom terno e suave em que ele falava, Michelle gelou. Roger já havia enlouquecido; quantas vezes lhe dissera palavras de carinho para logo em seguida ter um acesso de raiva, deixando-a aterrorizada? Passado o acesso, ele, arrependido, pedia-lhe perdão e repetia inúmeras vezes que não poderia viver sem ela. — Por favor, me deixe em paz. — Você sabe que eu te amo, ninguém te amou tanto quanto eu. — Sinto muito. — Por quê? — Roger, eu vou desligar. Não quero mais conversar com você. — Por quê? Há alguém aí do lado? Paralisada de medo, Michelle não conseguia afastar o fone do ouvido e recolocá-lo sobre o gancho. — Michelle, há alguém aí com você? – Roger insistiu. — Não, estou sozinha. — Mentira! É por isso que não quer mais conversar comigo. Seu amante deve estar aí do seu lado escutando tudo. Conhecendo-o bem, Michelle limitou-se a ouvi-lo, pois nada do que dissesse iria convencê-lo. Porém, respondeu simplesmente: — Posso lhe garantir que estou sozinha. Para sua surpresa, Roger calou-se, embora ainda pudesse ouvir-lhe a respiração ofegante do outro lado da linha. — Está bem, vou acreditar. — Pois pode acreditar. —Existe um outro homem na sua vida, não é? Eu sempre soube, mas nunca consegui pegá-la em flagrante. — Não, não existe. Moro sozinha aqui e cuido da fazenda. Michelle falava depressa, temendo contradizer-se. — Eu não suportaria vê-la amando outro – disse Roger com voz trêmula. — Não suportaria... Jure para mim que você está sozinha. — Mas eu já... — Jure! — Está bem, eu juro – concordou, já desesperada. — Estou absolutamente só. — Eu te amo. — E não se esqueça, o seu lugar é comigo, na Filadélfia – ele murmurou e desligou o telefone.

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Angustiada, correu para o banheiro, onde lavou o rosto deixando que a água fria lhe escorresse pelo pescoço. Aquilo não podia mais se repetir; o melhor a fazer seria trocar a número do telefone. Apoiando-se na pia, olhou-se no espelho: faltava-lhe o dinheiro para tal luxo. De repente Michelle teve um acesso de riso nervoso. Da maneira como a situação se encontrava em breve a companhia telefônica desligaria a linha por falta de pagamento. O que, na certa, resolveria o problema, pois Roger não conseguiria lhe telefonar. Talvez a ruína financeira até tivesse algumas vantagens... Michelle não saberia o que fazer se Roger aparecesse por lá e tentasse levá-la para a Filadélfia. Queria ficar ali na fazenda, onde era o seu lugar, e para isso lutaria com todas as suas forças. Talvez não pudesse mais ir aos concertos da orquestra sinfônica, ou às estações de esqui na Europa, mas hoje nada disso tinha mais importância. O principal era estar tranqüila interiormente. Roger era capaz de qualquer coisa, mas quem o conhecia superficialmente julgava-o um cavalheiro, educadíssimo, incapaz de uma grosseria. E, de fato, parte de sua personalidade era exatamente assim, só que a outra, perigosa, só se revelava quando estavam a sós. A última vez em que ele a agredira tinha sido a pior de todas. Os pais dele estavam na Europa, e Roger aceitara ir a um jantar com alguns clientes em lugar de seu pai. Michelle havia tomado o maior cuidado para não dizer ou fazer algo que desse ao marido a impressão de estar querendo flertar com um dos presentes, mas não fora o suficiente. No caminho de volta para casa, ainda no carro, ele havia começado a discutir com Michelle, acusando-a de traição forçando-a a admitir uma culpa que não tinha. Chegando em casa, Roger fora até a adega. Aliviada, Michelle fora direto para cama e, de tão cansada, dormira imediatamente. Então, de repente, as luzes do quarto haviam se acendido, e lá estava ele, o rosto transfigurado de ódio, gritando. Aterrorizada por ter sido acordada de modo tão bruto, Michelle tentara reagir quando Roger a puxou para fora da cama e começou a rasgar-lhe a camisola. Em seguida começara a surrá-la com o cinto, deixando-lhe cortes profundos na pele, feitos pela fivela. Quando finalmente ele a largou, Michelle estava toda machucada. Até hoje conseguia se lembrar da fisionomia dele, parado de pé perto da cama, olhando-a caída no chão. Em seguida, arrependido, se atirara a seus pés dizendo que a amava. Dois anos haviam se passado, mas desta vez não havia como fugir dele; não tinha outro lugar para onde pudesse ir. Erguendo o rosto, olhou-se mais uma vez no espelho do banheiro. A lei lhe facultava o direito de proibi-lo de lhe telefonar, mas Michelle só tomaria uma atitude drástica em última instância. Tinha muita vergonha de que todos ficassem sabendo que fora espancada pelo ex-marido. Era uma situação humilhante. Também não queria que as pessoas sentissem pena dela, comentassem a respeito e, muito menos, que Rafferty chegasse a saber. De repente,veio-lhe uma sensação estranha de sufoco e abafamento, como se estivesse presa naquele banheiro. Precisava sair dali e ocupar-se ou acabaria chorando, o que não queria que acontecesse. Reagindo, pegou as chaves da caminhonete e percorreu os pastos, verificando o conserto feito pelos empregados de Rafferty. Eles haviam terminado o serviço e voltado a seus afazeres. Na manhã seguinte transfeririam o gado de pasto, já com grama verdinha, onde acabaria engordando. Voltando para casa, notou que o mato estava muito crescido. Apanhando o cortador de grama, aparou-a toda por igual. Depois, com uma faca, removeu as ervas daninhas e replantou algumas mudas próximas à casa. O trabalho físico ajudou-a a se distrair e afastou um pouco o medo que a angustiava. Mas à noite, temia ir para a cama. Tinha

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medo de ficar rolando horas e horas insone, tendo de lutar com os fantasmas que povoavam-lhe a mente. Detestava saber que Roger ainda tinha o poder de intimidá-la, mas as lembranças daquela noite terrível em que fora surrada não lhe saíam da memória. Finalmente, quando tomou coragem para subir, deteve-se à porta do quarto, lembrando-se dos momentos que vivera na noite anterior. Ela mesma estranhou o fato de estar ainda pensando em Roger mas, as boas recordações que John lhe deixara eram mais fortes que a dor. As paredes do quarto ainda guardavam sua presença. Numa fração de segundo, relembrou-se do calor de suas mãos percorrendolhe o corpo, o olhar penetrante, o beijo... Sim precisava ser forte, com a ajuda de Rafferty sepultaria as lembranças dolorosas do passado. E concluiu que Rafferty lhe dera muito mais que simples prazer. Nos dois anos que se seguiram ao divórcio nunca saíra sozinha com um homem e, para iludir-se, freqüentava rodas de amigos onde houvesse vários rapazes. Tudo para ter a impressão de que o medo de um novo relacionamento não existia. Por estar em companhia de rapazes nas festas e nas viagens, sempre em grupo, convencia-se de que Roger não a havia traumatizado a ponto de fazê-la temer os homens. No entanto, conscientemente sabia que ninguém tinha culpa do que lhe acontecera a não ser, claro, seu marido. Embora nunca tivesse entrado em pânico, toda vez que um rapaz se aproximava e a tocava, Michelle retraía-se. Talvez isso também tivesse ocorrido com John, não fosse a obsessão que alimentara por ele durante dez anos. A espera fora tão longa que, por fim, o desejo vencera o medo. Naquela noite, os pesadelos com Roger não a assaltaram nem uma vez e, mesmo adormecida, Michelle tinha a impressão de estar abraçada a Rafferty. Seus sonhos, ao contrário das outras noites, foram todos povoados de belas imagens em que ela e Rafferty, juntos, viviam aventuras fantásticas, todas, invariavelmente, com final feliz.

Capítulo 6

Na manhã seguinte Michelle esperava ver Rafferty entre os homens que chegaram à fazenda para transferir o gado de pasto. No entanto, isso não aconteceu, desapontando-a profundamente. Mas então o entusiasmo superou o desapontamento, e ela foi encontrar os empregados. Nunca pudera acompanhar a operação da troca de pasto, onde os vaqueiros montados a cavalo iam tocando a boiada. Agora, no entanto, a fazenda era sua, e estava mais ansiosa que uma criança para acompanhá-los. — Quero ajudar – disse aos empregados, já montados, os olhos verdes brilhando de alegria. Nev Luther, magricela e lacônico, olhou-a com ares de consternação. O chefe havia sido bem explícito em suas ordens: Michelle não tinha permissão de trabalhar onde quer que fosse. O que, aliás, o havia surpreendido, pois nunca o vira proibir alguém de trabalhar. Mas ordens eram ordens, e qualquer um que prezasse o emprego precisava obedecê-las. Nev, no entanto, não esperava ter dificuldade em cumprir as especificações do patrão. Nunca podia imaginar que a bela e frágil Michelle Cabot quisesse trabalhar no campo; muito menos oferecer-se, animada, para acompanhá-los. E agora, o que fazer? Indeciso, pigarreou enquanto procurava pensar numa saída. Não queria vê-la chateada, tampouco queria contrariar o patrão. Finalmente veio-lhe uma idéia, e ele olhou à volta: — Você tem cavalo? Nev sabia que não e, portanto, ela não poderia acompanhá-los.

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A princípio Michelle ficou séria, mas logo reanimou-se: — Eu vou na caminhonete – disse, já correndo em direção ao veículo. Pasmo, ele assistiu-a ir buscar a caminhonete enquanto os rapazes o advertiam para as possíveis conseqüências de deixá-la seguilos. E agora? Não podia simplesmente tirá-la do veículo e obrigá-la a ficar. Michelle com certeza não acataria suas ordens e, pelo que percebera, o patrão vinha se tornando um tanto possessivo com relação a ela. Não, o melhor seria não se envolver com Michelle Cabot e correr o risco de ser despedido. Esta simples idéia o fez decidir-se numa fração de segundo. Não gostaria nem um pouco de travar uma discussão com Michelle. Rafferty poderia zangar-se com ele, mas decerto devia saber que aquela garota faria sempre o que bem entendesse, não se importando com a opinião de ninguém.

O brilho do sol, o azul do céu, tudo parecia mais bonito para Michelle. Era fascinante ver os vaqueiros conduzirem o gado com habilidade, impedindo que o rebanho se dispersasse. Com a caminhonete, que vencia com dificuldade os acidentes do terreno, pôde ajudar os rapazes, mantendo o rebanho na direção certa. O único problema era a poeira que diminuía a visibilidade. Ao vê-la em dificuldades, um dos vaqueiros ofereceu-se para dirigir o veículo. Michelle, satisfeita, trocou de lugar com o rapaz, seguindo em seu cavalo. Montar era uma de suas atividades preferidas e, a princípio, fora a única coisa no campo que ela gostava de fazer. No entanto, logo percebeu que montar por prazer, para passear, era bem diferente de montar um cavalo treinado para serviços pesados. O cavalo, muito bem ensinado, não esperava por seus comandos e, toda vez que um bezerro se desgarrava da boiada, ele o perseguia, fazendo com que Michelle tivesse de se firmar com mais força à sela. Mas em pouco tempo se acostumou e até já torcia para que algum animal se desgarrasse só para poder segui-lo. Ao ver o cavalo de Rafferty surgir no horizonte à sua frente Nev praguejou baixinho entre os dentes; agora sim, a situação se complicaria. Rafferty lançou um olhar faiscante de raiva em direção à caminhonete, mas percebeu que não era Michelle quem estava ao volante. Desconfiado, observou seus vaqueiros conduzirem o gado e, então, fixou os olhos na figura pequena e graciosa, cujos cabelos loiros agitavam-se sob um chapéu. Imediatamente, apertou as esporas no cavalo e aproximou-se de Nev: — Muito bem – disse-lhe, bastante sério. — E as ordens que eu lhe dei? Nev coçou o queixo e voltou-se para observar Michelle tirar o chapéu e agitá-lo: novamente uma rês que se desgarrava das demais. — Eu tentei – murmurou fitando o patrão. — Ora patrão, afinal a caminhonete é dela, a fazenda também. O que eu podia fazer? Amarrá-la numa cadeira? — Mas ela não está na caminhonete. — Bem, é que... Ah, chega! – Desistindo de explicar-se, puxou as rédeas do cavalo e voltou ao trabalho. Era inútil discutir com o patrão.

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Rafferty o deixou ir e tratou de seguir em direção a Michelle. Trataria de Nev mais tarde, embora a raiva já começasse a se dissipar. Afinal, ela não corria perigo nenhum no que fazia, admitiu. Vendo-o aproximar-se, Michelle dirigiu-lhe um sorriso largo, alegre, que o fez franzir as sobrancelhas. Era a primeira vez que a via sorrir daquela forma desde que voltara para a fazenda mas, até então, não havia se dado conta de que Michelle raramente sorria. Ela lhe pareceu extremamente feliz, e Rafferty concluiu que Nev fizera bem ao deixá-la acompanhá-los. — Está se divertindo? – perguntou-lhe, sarcástico. — Muito. Seu olhar o desafiava a contradizê-la, e ele mudou de assunto: — Recebi um telefonema do advogado esta manhã. — Ah, é? E o que ele disse? — Que os papéis estarão prontos para serem assinados depois de amanhã. — Ótimo. A fazenda perderia alguns hectares de terra, mas sua maior dívida estaria saldada. Por um instante, Rafferty limitou-se a observá-la em silêncio, os braços apoiados na sela. Depois, então, fez o convite: — Por que não vamos até sua casa? — O que você está pretendendo? – redargüiu, irônica, já meio irritada. Ele, impassivo, respondeu: — Tomar um pouco d’água. — Sei... você quer é dar mais motivos para seus empregados falarem de mim. Nervoso, ele respirou fundo. — Acho que você está se comportando de uma maneira infantil. —Pode ser... – ela concordou. Ela levantou o olhar e ficou com a respiração suspensa. Rafferty a fitava de modo intenso e íntimo como se a eloqüência de seu olhar pudesse de alguma forma tocá-la. O que havia expresso naquele olhar? Admiração? Desejo? Por um momento que mais pareceu uma eternidade eles permaneceram se fitando, perdidos num redemoinho de emoções. O cavalo de Rafferty agitou-se, inquieto, quebrando aquele momento mágico. — Bem, depois eu tomo água. Vim até aqui só para dar umas instruções a Nev e depois ia à sua casa. Vou para Miami esta tarde de avião e talvez fique por lá uns dois dias. Se eu ainda não tiver voltado, vá sozinha ao escritório e assine os papéis. Na volta eu passo por lá e assino. Michelle virou-se na sela para ver a velha caminhonete. Pelo barulho que começava a fazer devia estar com algum problema sério no motor, e não se arriscaria a pô-la na estrada numa viagem de horas. — Bem, acho que prefiro esperar até que você volte. — Use o Mercedes. É só telefonar e Nev mandará um dos rapazes trazê-lo. A oferta podia ser encarada como um gesto de camaradagem entre vizinhos ou mesmo de cortesia por parte de um amigo, mas Michelle notou que John pretendia que fosse muito mais. Caso aceitasse o empréstimo do carro, se sentiria ainda mais dependente dele. Porém, via-se praticamente obrigada a aceitar, pois não havia outra maneira de conseguir chegar a Tampa, e seu senso de responsabilidade insistia para que assinasse os papéis o quanto antes para pôr fim à divida.

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Rafferty esperava uma resposta, e ela não podia mais hesitar. — Está bem – concordou baixinho. Vendo-o relaxar os ombros, Michelle deu-se conta do quanto ele estava tenso. A idéia de que ela pudesse querer se arriscar a ir a Tampa com a velha caminhonete devia o estar preocupando desde que recebera o telefonema de Miami. Rafferty recebera um telefonema informando-lhe de um problema com sua mãe. Chegara a pensar em levar Michelle consigo só para ficarem juntos. Mas Miami ficava próxima a Palm Beach, onde vários dos ex-amigos dela mal viam a hora de reencontrá-la e transformá-la no assunto principal das rodas de fofoca. Rafferty temia, pois ainda não confiava em Michelle, que algum deles, milionário e interesseiro, viesse a lhe fazer uma proposta que ela não pudesse recusar. Michelle estava tentando manter a fazenda com seus próprios recursos, era inegável, mas não fora criada para aquele tipo de vida e talvez já estivesse cansada de trabalhar tanto só para pagar as dívidas. Se alguém se oferecesse para ajudá-la financeiramente, podia ser até que desse as costas para a fazenda e voltasse a levar a mesma vida de antes. Ainda que as chances de isso acontecer fossem pequenas, John preferia não correr nenhum risco; não conseguia imaginar a possibilidade de perdê-la. Pela primeira vez na vida sentia-se inseguro com relação a uma mulher. Ela o queria, sem dúvida, mas será que isso era suficiente para mantê-la a seu lado? Queria-a tanto que só teria sossego no dia em que a tivesse morando em sua casa, dormindo em sua cama, onde pudesse cuidar dele e mimá-la. Michelle insistia em resistir, e a impressão que tinha era a de que toda vez em que procurava aproximar-se, ela se retraía ainda mais. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto delicado. — Pense em mim – ele pediu. — Tentarei. — Você é uma mulher muito difícil. — Sou mesmo? — E me deixa inseguro. Michelle pendeu a cabeça para trás e deu uma sonora gargalhada: — Inseguro, você?! Só mesmo rindo. — Não se deixe levar pelas aparências. — Cuide-se – ela responder simplesmente, as palavras escapando-lhe antes que pudesse detê-las. Era costume de Michelle dizê-las às pessoas queridas que iam viajar como se com elas pudesse protegê-las durante sua ausência. John nem fazia idéia do quanto ela ia sentir saudades. Rafferty teve vontade de beijá-la, mas não podia se dar a intimidades na frente de seus empregados. Frustrado, limitou-se a um ligeiro aceno de cabeça e foi se juntar a Nev. Ele e o empregado cavalgaram lado a lado por algum tempo, e Michelle notou que Nev o ouvia com atenção. Logo em seguida, John afastou-se num galope rápido e em pouco tempo se perdeu na distância. Apesar do vazio que a dominou, Michelle procurou não pensar no que lhe aconteceria nos próximos dias, sem Rafferty por perto. Havia muito o que fazer na fazenda e, embora os empregados dele se encarregassem do serviço mais pesado, restariam ainda tarefas menores que a cabiam a ela.

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No primeiro dia de ausência de Rafferty, Michelle inventou uma porção de coisas com que se distrair: fez alguns reparos na pintura da varanda, uma estaca de madeira nova para a caixa de correspondência, e passou várias horas em companhia dos empregados dele. No segundo dia, Nev trouxe-lhe o Mercedes enquanto um outro empregado trazia um cavalo extra para levá-lo de volta. Constrangida, Michelle mal olhou-o nos olhos ao pegar as chaves, mas pela maneira de ele agir não devia ver nada de errado no fato de ela aceitar o empréstimo do carro. Depois de tanto tempo com a caminhonete, Michelle estranhou o Mercedes, possante e estável, e fez questão de não desenvolver uma velocidade muito alta. Ela nunca fora uma pessoa muito zelosa com relação aos diversos veículos que já tivera, lembrava-se da irresponsabilidade com que dirigia o carro esporte branco que o pai lhe dera como presente de dezoito anos. Não dava a mínima importância para o fato de o carro ter custado uma verdadeira fortuna. Mas tudo lhe parecia relativo. Naquela época, o preço do carro era perfeitamente razoável para a situação econômica de que gozavam. Se no momento tivesse todo aquele dinheiro, seria considerada uma pessoa rica. Chegando ao escritório do advogado, em Tampa, assinou os documentos e voltou imediatamente para a fazenda. Os dois dias de ausência previstos por Rafferty transformaram-se em cinco, e a todo instante Michelle via-se atormentada por pensamentos terríveis. Será que Rafferty estava com outra mulher? Embora ele tivesse ido a negócios, sabia como as mulheres se jogavam aos seus pés. Além do que, ele não ia trabalhar vinte e quatro horas por dia. Mas de repente lembrou-se de que não havia compromisso nenhum entre eles, e Rafferty era livre para sair com quem quisesse. Mas, por mais que tentasse, não conseguia aceitar aquela idéia. Rafferty não lhe telefonou e tampouco Roger, para sua felicidade. Por uns dias chegou a pensar que Rafferty voltaria a ligar repetidas vezes mas, enganara-se. Talvez algo mais importante o estivesse retendo. Com certeza, algum imprevisto. Mas, fosse o que fosse, não a deixava satisfeita. Estava sentindo uma solidão enorme. Os empregados não apareceram na sexta-feira de manhã. O serviço, no entanto, já estava todo pronto. Ao chegar a casa à tardinha para jantar, Michelle estava exausta. Ofegante, abriu a torneira da pia enquanto pegava um copo no armário, mas o jato d’água inicial logo se transformou num fiozinho, para parar de vez em seguida. Michelle fechou a torneira e tornou a abrir. Nada. Tentou a água quente. Nada. Praguejando, recostou-se na pia: era só o que faltava, ter quebrado a bomba d’água. Contudo, numa fração de segundo, relacionou a falta d’água com um outro detalhe. Hesitante, ligou o interruptor de luz da parede e... nada. A energia elétrica tinha sido cortada. Suspirando, afundou-se numa cadeira. De que adiantaria se lamentar? O jeito seria apelar para o senso prático: se a humanidade conseguira sobreviver tantos séculos sem energia elétrica, ela também sobreviveria. Cozinhar estava fora de cogitação – com suas parcas habilidades culinárias não saberia fazer nenhum prato em que não fosse usado o forno de microondas. O fogão, para completar, era elétrico. Mas sempre podia se restringir a uma salada. No entanto, abrindo a geladeira constatou que só lhe restava uma caixa de leite e algumas guloseimas. Apanhou a caixa de leite e encheu o copo, tornando a guardar o resto no refrigerador.

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Na despensa, encontrou o velho lampião a querosene e um bom estoque de velas que não a deixariam ficar no escuro. O maior problema seria a água, para beber e tomar banho. O gado podia beber no pequeno riacho que cruzava o pasto; portanto, faltava apenas o suficiente para o seu uso. Lembrou-se então de um antigo poço a uns duzentos metros atrás da casa, mas não sabia se havia secado ou se fora desativado após a abertura do outro. Porém, mesmo que ainda tivesse bom, como conseguiria tirar água? Havia uma corda na cocheira, mas antes precisaria de um balde; há muito vinha adiando a compra de um. Meditando, lembrou-se de que ainda lhe restavam dezessete dólares. Se o poço ainda estivesse bom, logo pela manhã pegaria a caminhonete e daria um pulo à casa de ferragens para comprar um balde. Munida da corda e de duas panelas, resolveu ir até o poço. Chegando lá, encontrou-o quase escondido pelo mato que crescera ao redor e, com cuidado, ela foi afastando-o, sempre atenta para ver se não havia nenhuma cobra. Empurrando a antiga tampa de madeira para o lado, amarrou uma panela na corda e atirou-a. Felizmente o poço não era fundo, e ela logo ouviu o barulho característico da panela batendo na água. Depressa, recolheu a corda aos poucos e, ao apanhar a panela, encontrou ainda um restinho de água em seu fundo, apesar de mais da metade ter caído na subida. Aliviada, respirou fundo enquanto limpava o suor da testa com as mãos. Agora só precisava arrumar o balde. Ao cair da tarde, Michelle estava plenamente convencida de que os pioneiros americanos deviam ser muito mais fortes que ela; todos os músculos lhe doíam muito. Tinha ido e voltado do poço para a cozinha umas vinte vezes, carregando a panela cheia. A energia fora cortada enquanto a máquina de lavar funcionava; portanto, precisou terminar de lavar as roupas à mão. Ainda conseguira armazenar água para o banho, para beber e para o banheiro. Mas o esforço teve ao menos uma recompensa: ficou tão cansada que mal via a hora de ir deitar-se e, portanto, não precisaria gastar as velas. No entanto, colocou uma num pires junto com uma caixa de fósforos e levou consigo para o quarto, caso quisesse levantar-se durante a noite. Mal pousou a cabeça no travesseiro e já caía no sono.

Na manhã seguinte, seu desjejum consistiu apenas de um sanduíche de pasta de amendoim. Depois de esvaziar a geladeira, limpou-a. A casa lhe parecia terrivelmente silenciosa, como se tivesse sido abandonada, e Michelle preferiu passar a maior parte do dia ao ar livre, meditando enquanto observava o gado pastar. Era uma pena, mas ia ter de vender o gado de corte logo, antes de esperá-lo engordar. Precisava de dinheiro com urgência. Tinha sido muita imprudência chegar ao ponto de cortarem a luz. Diversas vezes o orgulho a impedira de pedir ajuda ou algum conselho a Rafferty, mas agora não havia outra alternativa. Ele na certa arranjaria um bom comprador e transportaria o rebanho. Esse dinheiro iria ajudá-la nas despesas da fazenda e na engorda do gado restante até a primavera, quando já teria mais cabeças de corte prontas para serem vendidas. Insistir na situação desastrosa em que se encontrava seria burrice. Porém, se tudo isto tivesse acontecido há um mês não teria sequer pensado em pedir ajuda a Rafferty. Andava tão descrente das pessoas, tão desconfiada, que qualquer oferta de ajuda a faria retrair-se ainda mais.

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Mas John não a deixou retrair-se; veio à sua procura, tomou conta de tudo mesmo diante de seus protestos e sorrateiramente acabou seduzindo-a. Com isso, brotou em seu íntimo uma semente de confiança que aos poucos crescia embora a idéia de acreditar em alguém ainda a amedrontasse. Mesmo que fosse apenas para pedir um conselho. À noite o calor parecia ter aumentado. O ar estava parado, e a umidade excessiva chegava a incomodar. Para completar, havia ainda o calor das velas e do lampião e, embora Michelle tivesse tomado banho na água que fora pegar no poço, depois de ter encontrado um balde velho, logo ao sair do banheiro já sentia a pele pegajosa de suor. Como fosse muito cedo ainda para dormir, resolveu ficar um pouco na varanda, onde o calor parecia menos intenso. Acomodando-se numa das cadeiras de vime estofadas com almofadas coloridas, respirou fundo, aliviada, quando um ventinho leve soprou-lhe os cabelos. Os ruídos da noite, constantes e quase hipnóticos, foram aos poucos embalando-a e, em pouco tempo, Michelle sentiu as pálpebras pesarem. Michelle não chegou a dormir mas ficou ali, sentada, de olhos fechados, numa profunda tranqüilidade que não a deixou perceber o tempo passar. Uma hora e meia ou duas mais tarde, um ruído de motor e de pneus no cascalho da entrada a fez voltar à realidade. Um par de faróis fortíssimos iluminou-a no exato instante em que abria os olhos, obrigando-a a protegê-los com as mãos. Então, o motor e os faróis foram desligados. Vendo um homem descer do veículo, Michelle endireitou-se na cadeira já com o coração aos pulos. Mesmo ali na semi-escuridão da noite, ela o reconheceu. Apesar de usar botas, Rafferty se aproximava quase sem fazer barulho. — Por que não me telefonou? Fiquei esperando que você ligasse e... – Michelle perguntou indignada. — Não gosto de telefones – Rafferty respondeu, caminhando na direção dela. Mas essa era apenas parte da verdade. Falar com Michelle pelo telefone só serviria para fazê-lo desejá-la ainda mais. — Isto não é desculpa. — Mas é a única que tenho. O que está fazendo aqui fora? A casa está tão escura que cheguei a pensar que já estivesse dormindo. “O que não lhe impediria de vir me acordar”, ela pensou. — Está muito quente para ir para cama. Rafferty concordou e, curvando-se, pegou-a no colo. Surpresa, Michelle agarrou-se ao pescoço dele enquanto o via sentar-se no lugar que ocupava e a punha sobre os joelhos. Suspirando, sentiu um imenso alívio por tê-lo de volta ali ao seu lado. Durante aqueles dias todos de ausência nem percebera o quanto estava tensa. Aquele aconchego a inebriava, e ela ergueu o rosto para que ele a beijasse. O beijo foi longo e apaixonado. Era bom saber que ele sentira sua falta, Rafferty escorregou as mãos sob a camisola fina que Michelle usava e acariciou-lhe os seios rijos. — Você é muito corajosa para ficar vestida assim sozinha na varanda. — Não tem ninguém por perto para me espiar – argumentou, os lábios pressionados contra o pescoço dele, sentindo-lhe as pulsações aceleradas. O calor e o desejo os envolveram, e ambos se entregaram às carícias. Desde que o vira chegar, Michelle só pensava em fazer amor com ele, pondo fim a uma espera torturante que já durava dias. Virando-se em seu colo, tentou ficar de frente para Rafferty e protestou quando ele a impediu.

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— Esta cadeira não é confortável – disse ele ficando de pé com Michelle no colo. — É melhor irmos já para a cama, porque aqui não vamos poder fazer tudo que tenho em mente. Entrando, ligou o interruptor da parede para acender a luz da escada e se deteve ao ver que não funcionava: — A lâmpada deve ter queimado. — Acabou a energia. John sorriu: — Bem , por acaso tem uma lanterna? A última coisa que quero agora é cair da escada. —Tem um lampião em cima da mesa – afirmou e pediu-lhe que a pusesse no chão. Meio relutante, Rafferty atendeu-lhe o pedido; detestava ter de se afastar de Michelle nem que fosse por um minuto. Indo até a mesa, ela riscou um fósforo e acendeu o lampião, cuja chama iluminou parcialmente a sala. John pegou-o de sua mão e, abraçados, subiram a escada. — Você já ligou para a companhia para falar da falta de luz? Michelle não conteve um riso: — Eles já sabem. — E quanto tempo vai demorar para voltar a energia? Raciocinando, concluiu que seria inútil ocultar-lhe a verdade e, suspirando, admitiu: — A energia elétrica foi cortada por falta de pagamento. Rafferty parou no meio da escada, voltando-se para ela bastante alterado: — Não acredito! Quanto tempo faz que está sem luz? — Desde ontem de manhã. Furioso, ele correu os dedos pelo cabelo: — E ficou aqui sem água e sem luz desde ontem? Mas... sua teimosia é irritante! Por que não me deu a conta antes? — Porque não quero que fique pagando minhas contas! – revidou. — Você é mesmo impossível, não, garota? Michelle ainda tentou impedi-lo de tirar uma porção de cabides do guarda-roupa , mas ele simplesmente afastou-a para o lado e colocou as roupas em cima da cama. Em seguida, virou-se para apanhar outro tanto. — Você vai embora comigo – afirmou num tom frio que não admitia protestos. — Hoje ainda é sábado e só poderei cuidar da conta na segunda-feira. De maneira alguma vou deixar você aqui. Não acredito! Sem água e sem luz! – comentou balançando a cabeça. — Eu tenho água – disse Michelle, afastando uma mecha de cabelo dos olhos. — Tenho usado o poço antigo. John limitou-se a dirigir-se para a cômoda. Antes que ela pudesse protestar, tirou todas as roupas íntimas da gaveta e acrescentou-as à pilha sobre a cama. Michelle sabia que era tarde demais, nada que fizesse o demoveria mas, ainda assim, tentou: — Rafferty, não vou com você; sabe muito bem o que as pessoas vão dizer. Posso muito bem me virar por mais uns dois ou três... — Não me importo nem um pouco com o que vão dizer! – declarou. — E, já que não me entende, vou deixar bem claro: você vai comigo e não volta. Não se trata de uma visita de dois dias. Estou farto de me preocupar com você aqui sozinha; esta foi a gota d’água. É orgulhosa demais para vir me pedir ajuda quando precisa, portanto vou tomar conta de tudo sem lhe pedir permissão. Aliás, é o que eu já devia ter feito desde o início. Michelle o observou. De fato, temia servir de comentário para toda a região, mas esse não era o principal motivo de sua

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relutância: a convivência diária com Rafferty derrubaria as últimas barreiras que erguera para se proteger. Não queria de forma alguma que ele a dominasse completamente. Juntos a maior parte do tempo ficaria impossível manter uma distância como precaução contra um maior envolvimento emocional. Ir para a casa dele a tornaria totalmente dependente. — Tenho me virado muito bem sem sua ajuda – disse. —Chama isto de “se virar”? – ele gritou, esvaziando mais uma gaveta. — Anda se matando de trabalhar e teve muita sorte de não se ferir querendo fazer o trabalho de dois homens. Não tem dinheiro, não tem um carro decente para dirigir e, talvez, nem tenha o que comer. E agora, para completar, ficou sem luz. — Não precisa ficar me lembrando de tudo isso! — Pois bem, há mais uma coisa que não tem: opção! Vai comigo e pronto. Agora, vista-se. Michelle permaneceu de pé junto à parede do quarto, imóvel e ereta. Vendo que ela não se mexia, Rafferty olhou-a com ar de superioridade, mas algo na fisionomia dela o comoveu. Apesar de encará-lo de modo orgulhoso e desafiante, havia nos olhos de Michelle uma ponta de medo. Além de que, ela lhe pareceu tão frágil e desamparada que chegou a condoer-se. Cruzando o quarto a passos largos, aproximou-se e a envolveu num abraço apertado, como se não suportasse ficar nem mais um minuto sem tocá-la. Afundando o rosto em seus cabelos, teve vontade de erguê-la nos braços e jamais permitir que sentisse medo outra vez. — Michelle – murmurou num tom grave. — Sei que está fazendo de tudo para se afastar de mim, mas não vou permitir que isso aconteça. É tão importante para você a opinião dos outros a nosso respeito? Ou está com vergonha porque não pertenço à alta sociedade? Ela sorriu e acariciou-lhe as costas: — Claro que não. Como poderia me envergonhar de você? Rafferty ergueu-lhe o rosto beijando-a carinhosamente na testa: — Por quê, então? — Tenho medo de me envolver. — Eu também... – ele murmurou, afagando-lhe os cabelos. —Também tenho muito medo de me envolver. Só que não vou deixar você escapar. Michelle ergueu o rosto e Rafferty beijou-lhe os lábios com paixão. Na ponta dos pés, ela o abraçou e entregou-se totalmente aos seus carinhos. Rafferty poderia pensar que ela havia desistido de resistir para conseguir uma vida mais fácil. E seria melhor assim: dessa forma jamais saberia o quanto o amava. Desvencilhando-se do abraço, vestiu uma calça jeans e uma camiseta. Em seguida arrumou o quarto e começou a fazer as malas. Cada uma que fechava, Rafferty ia transportando para a caminhonete. — Voltaremos amanhã para levar mais alguma coisa que queira – disse ele, iluminando a escada com o lampião. Assim que Michelle chegou à sala, Rafferty apagou o lampião e o deixou sobre a mesa. Já na varanda, trancou a porta da casa e acompanhou Michelle até a caminhonete. — O que a governanta vai pensar? – ela perguntou, instalando-se no banco na frente, um tanto desolada. Não gostava de ter de abandonar a fazenda, que lhe servira de refúgio contra o mundo em momentos tão difíceis de sua vida. — Ela vai achar que eu deveria ter telefonado para avisar que dia voltaria de Miami – afirmou sorrindo ao imaginar a boa surpresa que daria a Edie. —Vim direto do aeroporto para cá; minhas malas estão bagageiro junto com as suas. Rafferty, feliz, mal podia esperar para chegar em casa e ver Michelle pendurar as roupas ao lado das suas no armário... Dormir ao lado dela todas as noites parecia um sonho, um sonho que demorara dez anos para se concretizar.

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Jamais desejara viver com uma mulher, mas com Michelle era diferente. Precisava de sua companhia, adoraria vê-la à sua espera em casa à tarde, quando voltasse cansado do trabalho. Agora que a tinha, faria de tudo para conservá-la feliz ao seu lado.

Capítulo 7

O sol já estava alto no horizonte na manhã seguinte quando Michelle despertou. Sozinha na cama, permaneceu um tempo deitada tentando se acostumar à mudança. Rafferty levantara horas antes, ainda bem cedo, e despedira-se beijando-lhe a testa, dizendo-lhe que aproveitasse para dormir até mais tarde. Espreguiçou-se. Tinha vontade de ficar entre as cobertas o resto do dia, deliciando-se com cheiro másculo de Rafferty. Que impregnava os lençóis. Inquieta, lembrou-se da noite maravilhosa que haviam tido. Ele praticamente não a deixara dormir, radiante por tê-la ao seu lado. Se ao menos ele a tivesse levado junto... Sentia-se pouco à vontade ao ter de encarar Edie, a governanta. Ao chegar à fazenda dele na noite anterior, vira-a apenas por uns instantes, pois Rafferty a puxara escada acima sem a menor discrição. Mas a impressão que Michelle teve da governanta fora a de uma pessoa séria, tranqüila e muito discreta. Edie, com certeza, não diria nada mesmo que não aprovasse sua presença ali. Finalmente, ainda que relutante, saiu da cama e tomou um delicioso banho de chuveiro. Mesmo estando ali meio contra a vontade, era inegável que desfrutaria de todo o conforto. Nas poucas vezes em que pensara naquela casa, sempre a imaginara fria e descuidada. Tal qual a sua que, mesmo depois da reforma que o pai havia feito antes de se mudarem, nunca chegou a adquirir a aparência de um lar. A casa de Rafferty era em estilo espanhol e fora construída há oito anos. Os assoalhos de lajota e o teto alto ajudavam a amenizar o calor, e o toque principal ficava por conta dos diversos vasos de folhagens espalhados estrategicamente pelos cantos. A casa, em formato de “U”, circundava uma piscina cujo projeto, muito bem planejado, a tornava praticamente parte da paisagem, fazendo-a parecer uma lagoa incrustada no meio do gramado. Todos os quartos davam vistas para o pátio e a piscina. O que mais a surpreendeu foi o luxo da construção. Rafferty não era um homem pobre, mas o dinheiro gasto na casa poderia ter sido reaplicado na fazenda. Por fim, encheu-se de coragem e resolveu descer. De que adiantava esconder-se no quarto? Cedo ou tarde teria de se avistar com Edie. Não foi difícil para Michelle encontrar a cozinha; o cheirinho do café a ajudou bastante. Ao entrar, Edie, de pé perto da pia, voltou-se para encará-la e, diante de sua fisionomia impassível, Michelle sentiu um aperto no coração. Então, a governanta pousou as mãos nos quadris e disse com calma: — Ainda bem... Estava cansada de dizer ao patrão que já era tempo de ele trazer uma companheira para morar nesta casa. Aliviada, Michelle soltou os ombros, tensos, e sorriu de modo amável. Por sorte Edie a recebera bem, pois na vida adulta, ao contrário dos tempos de juventude, quando era extremamente arrogante, se importava muito com a opinião dos outros. O tempo a ensinara a deixar a prepotência de lado. — Bem, ele nem se incomodou em nos apresentar na noite passada – afirmou, percebendo que enrubescia. — Sou Michelle Cabot.

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— Muito prazer, Edie Ward. Vai comer algo agora? — Não, obrigada, prefiro esperar o almoço. Rafferty costuma voltar para o almoço? — Só se estiver trabalhando por perto. Por que não toma uma xícara de café? — Eu me sirvo – respondeu depressa. — Onde ficam as xícaras? Edie abriu o armário à esquerda da pia e, tirando uma xícara, estendeu-a a Michelle: — Vai ser ótimo ter alguém para me fazer companhia durante o dia – ela afirmou. — Esses malditos vaqueiros não são de muita conversa. Edie era completamente diferente do que Michelle imaginara. Devia ter por volta de cinqüenta anos e, embora os cabelos ainda fossem pretos, algo nela a fazia aparentar mais idade. Alta e de ombros largos, tinha um jeito severo, mas os olhos continham um brilho vivo, perspicaz, de quem conhecia a vida. A governanta não era do tipo que julga as pessoas, e por este motivo Michelle sentia-se perfeitamente à vontade em sua companhia. Contudo, Edie negou veementemente a oferta de Michelle para os afazeres domésticos: — Não, o serviço da casa é meu. Não se preocupe com ele. Desapontada, Michelle começou a andar pela casa, procurando conhecê-la melhor. A todo instante indagava-se até quando ia agüentar ficar sem fazer nada. O trabalho que viera executando até então tinha sido árduo, mas ajudava a passar o tempo. E, por fim, acabara até gostando de bancar a fazendeira. Mas o papel de amante de John Rafferty a desagradava profundamente. No quarto, suspirando, abriu as portas do guarda-roupa e observou as roupas de Rafferty. As dela estavam no armário ao lado, mas nem assim Michelle se sentia como parte da vida dele. Tudo ao seu redor pertencia a John Rafferty: a casa, o quarto, o armário, a cama. Ela era apenas mais um item na sua coleção de pertences – um mero brinquedo que guardava para brincar à noite... — E eu que achava que fôssemos dividir todo o trabalho, os medos, as esperanças... – ela falou baixinho. — Mas eu amo tanto esse homem que vou ficar aqui até que ele não me queira mais... Sorrindo de amargo, admitiu que já era melhor que nada; apesar de todo seu orgulho, moraria ali até o dia em que John a quisesse. Mas Michelle tinha consciência de que para ser realmente feliz precisava do amor sincero de Rafferty e não apenas do desejo dele. — Quero ser esposa, amante e amiga de Rafferty... Só assim vou me sentir à vontade nessa casa... Michelle se assustou com suas próprias palavras. Nunca imaginara um segundo casamento; nem mesmo com John Rafferty. Sempre pensara que Roger havia conseguido destruir toda a sua capacidade de confiar nas pessoas e todo o seu otimismo. Mas pelo jeito sua confiança começava a ressurgir das cinzas. E, se hoje se recuperava de tudo que sofrera, era Rafferty o grande responsável. O amor que sempre sentira por ele lhe dera forças para vencer todos os obstáculos. Por fim, inquieta, resolveu ir dar uma volta. Tinha receio de incomodar os empregados e detestava ter que lhes fazer perguntas mas, ainda assim, achou por bem dar uma olhada ao redor da casa. A fazenda de Rafferty era completamente diferente da dela. Tudo ali era muito bem cuidado: as máquinas funcionavam, as cercas perfeitas, e os cavalos, soltos no pasto ou presos no curral, muito bem alimentados. Um dia a propriedade de Michelle fora parecida com essa, e ela prometera a si mesma que a reergueria. Quem estaria cuidando do seu gado? John não lhe contara nem lhe dera chance de perguntar. À noite, quando chegaram, ele a

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levou para a cama imediatamente e, pela manhã, deixou-a ainda dormindo. À noitinha, quando Rafferty voltou para a casa, Michelle o esperava. Assim que ele entrou na sala, vindo da cozinha, sorriu de satisfação ao vê-la. O dia todo lutara contra o ímpeto de voltar só para beijá-la. Há oito anos, quando construíra a casa, sua maior preocupação fora com Michelle. Queria que ela gostasse da construção, que se sentisse bem ali. Depois de pronta preocupara-se com os mínimos detalhes da decoração. Sabia que não chegava a ser uma mansão como aquelas de Palm Beach mas era, certamente, ampla e confortável. A felicidade de encontrá-la esperando-o era muito grande, — Venha, vamos subir – ele convidou, caminhando em direção à escada. Desapontada com a fria recepção, Michelle o seguiu a passos lentos. Será que ele se arrependera de tê-la trazido? Ao entrar no quarto, encontrou-o tirando a camisa, suja e suada, que jogou no chão sem a menor cerimônia. A simples visão daquele torso nu, foi suficiente para disparar-lhe o coração. Enrubescida, lembrou-se da deliciosa sensação de ter os seios pressionados contra aqueles pêlos macios. — O que fez o dia todo? – Rafferty quis saber ao entrar no banheiro. — Nada – Michelle respondeu com sinceridade quase cruel, afastando as fantasias que lhe povoavam a mente. Ele foi para o banheiro, e o barulho da água da pia chegou aos ouvidos de Michelle. Instantes depois, Rafferty voltava para o quarto. Os cabelos úmidos e revoltos caíam-lhe na testa, deixando-o ainda mais atraente. Ele a fitou muito sério enquanto tirava as botas para, em seguida, abrir o cinto da calça. O coração de Michelle disparou novamente: ele a levaria agora mesmo para a cama e aquela era a única chance que teria de falarlhe. Nervosa, apanhou as botas do chão para guardá-las no armário, sem saber como tocar no assunto: — Quero falar com você – afirmou, categórica. — Pode falar – disse, livrando-se da calça. — Achei terrível não ter nada para fazer o dia inteiro e... Aprumando-se, ele a fitou, parecendo assustado. Michelle estava certa: qualquer mulher se cansaria de ficar naquela casa imensa sem nada para fazer. — Está bem – concordou com naturalidade. — Vou lhe dar as chaves do carro e abrir uma conta no banco para você amanhã. Michelle empalideceu diante do que acabara de ouvir. O que ele estava pensando? A indignação era tanta que a fez perder o controle, e Michelle arremessou contra Rafferty as botas que apanhava do chão para guardar. Bastante ágil, ele pegou a primeira ainda no ar, mas a segunda atingiu-o em cheio no peito. — Mas... que diabos pensa que... — Não! – protestou com veemência, fuzilando-o com os olhos enquanto apoiava as mãos nos quadris: — Não quero seu carro nem seu maldito dinheiro! Quero cuidar da minha fazenda e do gado, e não ser deixada aqui o dia todo como uma... bonequinha de luxo esperando por você! Rafferty, tentando se controlar, falou: — Não é isso que eu penso de você. De onde tirou esta idéia? — De onde tirei essa idéia? Você chegou, veio direto para o quarto e começou a se despir! O que quer que eu pense disso tudo? Surpreso, ele ergueu as sobrancelhas: — Fiz isso porque minhas roupas estavam imundas, suadas, e eu não poderia nem beijá-la sem sujar seu vestido.

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— É só um vestido – afirmou, dando-lhe as costas. — Pode ser lavado. E eu bem que preferia ficar toda suja e suada do que ficar aqui o dia todo sem fazer nada. — Ouça. – Aproximando-se por trás, pousou-lhe as mãos nos ombros e escorregou-as pelos braços até segurar-lhe os pulsos: — Isso não é serviço para uma mulher, você não tem força e pode se machucar. Olhe como seus ossos são delicados, miúdos. Num gesto instintivo, Michelle recostou-se contra ele, apoiando a cabeça na curva do seu pescoço: —Do jeito como fala, me sinto uma inútil – desabafou, já desesperada. — Pelo menos deixe que eu o acompanhe, posso perseguir algum novilho desgarrado... Interrompendo-a, Rafferty ergueu-lhe o rosto e apertou-a contra o peito. — Meu bem, será que não vê que estou tentando protegê-la? Não quero que se sinta inútil, mas fico muito preocupado quando vejo você consertando cercas ou carregando aqueles fardos pesados de feno. Você pode se ferir e... — Você também. — Mas não com tanta facilidade. Tem que admitir que a força física é importante nesse tipo de trabalho. Não quero que corra nenhum risco. Era inútil tentar convencê-lo; nunca conseguiria fazê-lo mudar de idéia. Ele parecia mesmo acreditar que ela ia adorar poder voltar a ter uma vida totalmente inútil. Rafferty acariciou-lhe as costas e, aos poucos, mais tranqüila, Michelle enlaçou-lhe o pescoço. Ele sabia que precisaria lhe arranjar alguma ocupação, mas no momento não lhe ocorria nenhuma idéia. Era difícil raciocinar tendo Michelle tão perto, a fragrância suave amortecendo-lhe os sentidos. Pensara nela o dia todo, seu rosto delicado não lhe saíra um minuto sequer da mente. Seu desejo por Michelle parecia aumentar a cada minuto que passava. Relutante, ele a afastou: — O jantar estará pronto em dez minutos, e preciso tomar um banho. Como se não tivesse ouvido o que ele lhe dissera, Michelle encostou o rosto no peito másculo e beijou-o. Ele acariciou-lhe os cabelos e tomou-lhe os lábios com ardor, pondo fim a uma espera que o atormentara o dia todo. Incapaz de resistir, Michelle estava sempre pronta a corresponder-lhe os carinhos. Entreabrindo os lábios, introduziu a língua na boca de John provocando-lhe um gemido de prazer. Por ela, teriam ido direto para a cama ignorando o jantar mas ele resistiu à tentação: — Vou tomar um banho – murmurou depois de algum tempo, meio a contragosto. —Depois vamos descer, para jantar. Antes de dormir ainda preciso ver uns papéis no escritório. É coisa urgente, não pode esperar. Afastando-se, sorriu-lhe de modo meigo e disse: — Tudo bem, mas ande logo com esse banho.

Durante o jantar, Michelle sentiu-se muito mais à vontade. Todo o constrangimento que sentira durante o dia desaparecera e, de repente, tudo lhe pareceu muito natural. Edie jantava com ele à mesa, e Michelle gostava dessa informalidade. A governanta era bastante falante, o que lhe dava chance de ficar calada, pensando nos comentários que ouvia. Após o café, Rafferty deu um beijo na testa de Michelle e uma pancadinha no ombro: — Vou dar uma olhada nos papéis; prometo voltar logo. Acha que consegue se distrair enquanto isso?

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— Vou com você – ela respondeu, ligeiramente irritada. Ele suspirou, visivelmente contrariado: — Meu bem, não vou conseguir trabalhar se você estiver lá comigo. Foi a gota d’água: — John Rafferty, você é o maior chovinista que já conheci. E agora, nós dois vamos ao escritório e você vai me mostrar seus livros, porque, de amanhã em diante, quem vai tomar conta da contabilidade sou eu! Pego de surpresa, ele ficou um tanto apreensivo: — Não sou chovinista. “Nem quero que cuide da minha contabilidade”, acrescentou mentalmente. Mas Michelle adivinhou-lhe o pensamento e foi logo avisando: — Ou você me deixa fazer alguma coisa, ou vou embora de volta para a minha casa. E, erguendo o queixo, pousou as mãos nos quadris. — O que você entende de contabilidade? — Sou formada em Administração. Como, pelo visto, ele não a levaria mesmo ao escritório, Michelle resolveu ir sozinha e seguiu pelo corredor. — Michelle! – ele chamou, irritado, indo ao seu encalço. — O que há de errado em eu fazer a contabilidade? – ela quis saber, já sentando-se à enorme mesa do escritório. — Eu não trouxe você aqui para trabalhar. — Será que também corro o risco de me machucar aqui dentro? – indagou, irônica. — Será que não tenho força nem para segurar um lápis? Rafferty lançou-lhe um olhar mal-humorado, morrendo de vontade de arrancá-la da cadeira. Mas Michelle o fitava com olhos muito brilhantes, o queixo erguido como a dizer-lhe que estava pronta para lutar, e Rafferty teve medo de que realmente voltasse para a fazenda dela caso a contrariasse. É claro que poderia mantê-la em sua casa à força, mas jamais o faria. Queria-a ali de boa vontade, satisfeita por conviverem mais tempo, e não contrariada, sentindo-se prisioneira. “Bem”, ponderou, “isto pelo menos não é tão perigoso quanto trabalhar com gado.” À noite, quando chegasse em casa, verificaria os livros, só por precaução. — Está bem – concordou. — Ótimo – disse Michelle sorrindo-lhe de modo divertido. — Pelo jeito você gostou da minha decisão. — Foi uma decisão sábia. Caso contrário eu voltaria mesmo para a minha casa. Rafferty, depois de sentar-se, apanhou a pilha de documentos sobre a mesa e disse apenas: — Preste bastante atenção e veja se não faz bagunça por aqui. Isto já é bastante complicado, e não preciso de uma contadora principiante para vir dificultar ainda mais a minha situação. — Pois saiba que venho cuidando da contabilidade desde que papai morreu. — Se eu fosse você, não contava isso a ninguém. Pasma, Michelle tomou-lhe os papéis da mão e começou a separá-los por data. Recostando-se na cadeira, Rafferty, mal-humorado, observou-a anotar os números no livro e conferir as contas duas vezes na

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calculadora para não haver erro. Terminado o serviço, ela entregou-lhe o livro: — É melhor você verificar – disse, petulante. Verificando cada página, ele não encontrou um erro sequer. — Ficou bom. — Como assim? É só o que tem a dizer? Com este seu jeito de pensar, não me admira que nunca tenha casado. Para você toda mulher é burra. — Eu já fui casado. A notícia surpreendeu-a, pois jamais ouvira mencionarem algo a respeito de seu casamento. Além do que, John Rafferty nunca lhe pareceu do tipo que gostasse de se casar; era independente demais para querer prender-se a uma esposa. De repente, a idéia de vê-lo ao lado de outra mulher, tocando-a, fazendo-lhe amor, deixou-a muito enciumada. — Com quem? Quando? — Faz muito tempo, eu tinha acabado de completar dezenove anos e não tinha um pingo de juízo. Só Deus sabe por que ela me quis. Depois de quatro meses ela chegou à conclusão de que não fora criada para morar numa fazenda: queria dinheiro para gastar nas butiques da cidade e um marido que não trabalhasse vinte e quatro horas por dia. – A voz dele soara fria, e havia falado com ares de desdém. — Por que nunca ninguém falou sobre isso? – murmurou. — Eu o conheço há dez anos e não sabia que já tinha se casado. — Quando você mudou para cá já fazia muitos anos que estava divorciado – explicou, dando de ombros. — Portanto, ninguém mais falava no assunto. E depois, o casamento durou tão pouco que muita gente nem chegou a conhecê-la: eu trabalhava demais e não tinha tempo para sair e fazer visitas. Acho que minha ex-mulher se casou comigo na ilusão de que as esposas dos fazendeiros viviam no maior luxo. — Para onde ela foi? – Michelle quis saber. — Não sei; não me importa. Ouvi dizer que ela se casou com um milionário logo depois do nosso divórcio. Nunca me preocupei com isso. Era inacreditável para Michelle que alguma mulher o trocasse por outro, por mais rico que fosse. Só agora começava a entender por que Rafferty sempre detestara as pessoas da alta sociedade. Era por este motivo que tantas vezes a acusara no passado de permitir que outros a sustentassem enquanto viajava pelo mundo gastando dinheiro de modo inconseqüente. Estranho que tivesse mudado de idéia e, agora, preferisse vê-la absolutamente desocupada e totalmente dependente. Observando-a, Rafferty imaginava em que estaria pensando. Ela ficara chocada ao saber de seu casamento, mas isso fora há tanto tempo... Jamais teria tocado no assunto se o comentário dela a respeito das mulheres não o tivesse provocado. Na verdade, nem gostava de pensar naqueles dias, quando não passava de um garoto de dezenove anos e dedicava-se inteiramente ao trabalho. Por vezes, chegava a esquecer-se do nome da ex-esposa e já não se recordava mais do seu rosto. Se a encontrasse tinha quase certeza de que não a reconheceria. Um fato, no entanto, era bastante estranho: apesar de não ter visto Michelle durante os anos em que estivera casada, nunca se esquecera de seu rosto, do modo como caminhava, os cabelos loiros... Incrível como na cama Michelle se soltava, transformando-se numa mulher carinhosa. Lembrando-se dos momentos que passaram juntos na cama, John moveu-se na cadeira, inquieto. Preferindo não tocar mais no assunto, Michelle voltara a se dedicar aos papéis. Não queria saber mais nada a respeito da exesposa dele, muito menos dar-lhe a chance de lhe perguntar sobre seu casamento com Roger.

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— Preciso de um conselho seu – disse, quebrando o silêncio: eu pretendia engordar o gado para vendê-lo este ano, mas preciso de capital; portanto acho que deveria vendê-lo já. Com quem devo entrar em contato? E o transporte, como fica? Naquele momento Rafferty não queria pensar no rebanho. Michelle havia cruzado as pernas e o vestido revelava boa parte de suas coxas bem torneadas. Mas, contrariado, forçou-se a responder: — É preferível engordar o gado e conseguir um preço muito melhor pelas cabeças. Até lá, deixe tudo por minha conta. – Depois de uma pausa, levantou-se e perguntou num sussurro: — Vamos subir? O fato de ele a desejar tanto chegava por vezes a amedrontá-la. Contudo, parecia impossível resistir. De pé, trêmula, abraçou-o pela cintura, e juntos subiram a escada. Quando caminhavam lado a lado, Rafferty dava a impressão à Michelle de ser ainda mais alto e mais forte. Depois de trancar a porta do quarto, Rafferty aproximou-se por trás dela e começou a descer-lhe o zíper do vestido. Ela estremeceu. — Tudo bem com você, Michelle? — Estou um pouco apreensiva... — Por quê? – Rafferty perguntou, acariciando-lhe os seios. Ofegante, Michelle fechou os olhos apoiando-se contra seu peito. Rafferty deixava-a alucinada com aquelas carícias. — É que não consigo resistir a você, e isso me assusta. — Não se assuste... É maravilhoso isso tudo que acontece conosco. Michelle sentiu as pernas fraquejarem e apoiou-se ainda mais em Rafferty, sussurrando-lhe o nome baixinho. Em resposta, ele mordiscou-lhe a orelha e disse: — Você é tão linda... Esse vestido estava me deixando louco, minha vontade era de puxá-lo assim... – Deslizando-lhe as mãos pelos quadris, ergueu-lhe a saia até o alto das coxas, prosseguindo lentamente até a cintura – ... e despi-la. Ele manteve o vestido erguido até a cintura e tirou-lhe a calcinha. Seminua, Michelle sentiu-se ainda mais vulnerável. Em seguida, Rafferty acariciou-lhe o abdômem de modo insinuante. — Você é tão macia – murmurou enquanto tocava-lhe o sexo. Michelle gemia, o rosto transfigurado pelo prazer. A cada vez que faziam amor, sentia-se mais segura, mais mulher. Rafferty a ajudava a descobrir-se, e aos poucos sentia-se mais segura. Por fim, percebendo que não poderia mais esperar, virou-se de frente para ele e começou a despi-lo, fitando-o intensamente. Nu, deitou-a na cama e possuiu-a com um só movimento lento e decisivo.

Radiante, Michelle levantou-se antes de Rafferty na manhã seguinte. — Não precisa levantar tão cedo. Por que não dorme até mais tarde? – ele sugeriu. Na verdade, adorava vê-la sozinha em sua cama, nua, exausta depois de uma noite de amor. — Hoje vou com você – ela afirmou, tirando uma mecha de cabelo dos olhos enquanto entrava no banheiro. Minutos mais tarde, Rafferty juntou-se a ela no chuveiro. Sua fisionomia fechada não passou despercebida a Michelle; na certa não queria que o acompanhasse.

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Mas ele a surpreendeu dizendo simplesmente: —Tudo bem... Ontem foi domingo e precisei trabalhar... Se é mesmo o que quer, pode me acompanhar...

Nas três semanas seguintes, Michelle começou a sentir uma alegria imensa: tornara-se responsável pela contabilidade da fazenda, trabalho que lhe ocupava três dias por semana, possibilitando que Rafferty tivesse as noites livres. Como nunca encontrasse em erro nos livros, ele parou de verificar o serviço, deixando definitivamente todo o trabalho burocrático a cargo dela. Nos dias livres, Michelle o acompanhava a cavalo pela fazenda e nesses momentos ambos divertiam-se muito. Boa companheira, Michelle nunca reclamava do calor ou da poeira. Rafferty estranhava um pouco o comportamento dela. A Michelle que conhecera era sorridente, refinada e adorava as festas grã-finas. Agora, ela raramente sorria e quando o fazia cada sorriso tinha o poder de emocioná-lo. Era tão maravilhoso tê-la só pra si que Rafferty nem gostava de pensar em dividir a atenção dela com outras pessoas. Ali na fazenda, viviam inteiramente um para o outro. À noite, a paixão era cada vez mais intensa, e a camaradagem entre os dois aumentava a cada dia. Uma manhã, Edie havia saído para umas compras e Michelle trabalhava sozinha no escritório quando o telefone começou a tocar. A princípio, pensou em não atendê-lo, mas o barulho irritante da campainha não a deixava concentrar-se nos cálculos e ela acabou atendendo. — Residência do Sr. John Rafferty. Embora ninguém respondesse, Michelle ouviu uma respiração ofegante do outro lado da linha. — Alô? Quem está falando? Então, a pessoa que havia ligado desligou o telefone. Naquele instante veio-lhe uma intuição muito forte. Não havia dúvidas: era ele. Ainda assim tentou dizer a si mesma que tudo não passava de excesso de imaginação. Talvez fosse apenas um trote comum, desses que as pessoas desocupadas gostam de passar, mas era inútil iludir-se: tinha certeza de que a chamada fora feita por Roger. Pela primeira vez desde que se mudara para a casa de Rafferty, Michelle se sentiu só e desamparada. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, fazendo-a estremecer, e Michelle achou melhor sair da casa. Precisava se encontrar com Rafferty; estar ao lado dele já lhe bastaria.

Dois dias mais tarde o telefonema se repetiu e, por acaso, foi ela mesma quem atendeu: — Alô? Residência do Sr. John Rafferty. Nada foi dito. Intuindo se tratar da mesma pessoa, Michelle imediatamente desligou. Suas mãos tremiam incontrolavelmente e, indo até a pia, levou-as à testa num gesto de desespero. Sem saber o porquê, sentiu uma náusea profunda que obrigou-a a subir a escada correndo. Trancada no quarto, jogou-se na cama e respirou fundo. Seria mesmo Roger ao telefone? Por que estaria insistindo em se comunicar com ela?

Capítulo 8

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Nervosa, Michelle andava de um lado para o outro do quarto qual fera enjaulada: — Não estou com vontade de ir – insistiu. — Por que não me consultou antes de confirmar com Addie? — Porque você ia inventar um milhão de desculpas para não ir, como agora – explicou Rafferty com calma. Já estavam morando juntos há mais de um mês, e Michelle só saía da fazenda para ir ver sua propriedade quando abria a casa para arejar os cômodos. Nem as chaves do carro ela pegou uma vez sequer. Tampouco foi fazer compras, embora ele lhe desse dinheiro. Desde que a trouxera, nunca mais juntou-se aos amigos para os churrascos dos sábados. A princípio Rafferty chegara a pensar que tivesse vergonha de aparecer em público com ele; afinal não era um homem sofisticado, mas depois percebeu que não era verdade. Tendo tido oportunidade de conhecê-la bem, sabia que Michelle não se envergonhava dele. E qualquer dúvida que tivesse a esse respeito era logo desfeita quando a tinha em seus braços na cama, apaixonada e ardente. Durante esse tempo em que estavam convivendo, diversos de seus conceitos a respeito de Michelle tiveram de ser revistos. Ao contrário do que imaginara, ela nunca se furtava ao trabalho. Sua insistência em ajudá-lo chegava a ser irritante. Precisava estar sempre de olho nela para impedi-la de acompanhar os rapazes no campo e correr o risco de se machucar. Raciocinando, concluiu que deveria deixá-la livre para ser exatamente como era, não poderia incorrer no mesmo erra de Langley Cabot, que a superprotegera. Talvez, ainda, ela estivesse meio sem jeito por estarem morando juntos. Ali na zona rural o pessoal continuava a seguir padrões antiquados de comportamento, ao contrário das grandes cidades onde um homem e uma mulher morando sob o mesmo teto era fato corriqueiro. Seguro de si, Rafferty não se importava com a opinião dos outros, considerava Michelle sua mulher, independente de serem casados ou não. O importante eram os sentimentos e a amizade que compartilhavam. Mas, qualquer que fosse a razão, já não podiam continuar se escondendo. Não queria que Michelle continuasse a se esquivar das pessoas só por causa do relacionamento entre os dois, ela tinha que ir se acostumando com a idéia de que agora pertencia a ele. Não que Michelle impusesse uma distância física entre os dois, mas insistia em se retrair. Por vezes, passava dias muito calada e o brilho apaixonado desaparecia de seus olhos. Ao vê-la assim, John sempre lhe perguntava o que havia de errado, sem obter resposta. Queria-a para si por inteiro, corpo e espírito, e estava determinado a destruir qualquer obstáculo que a afastasse de si. Adorava vê-la sorrir, irritar-se quando era provocada, responder-lhe com arrogância. Aquela era a Michelle por quem se apaixonara. Sentando-se na cama, ela o fitou: — Não quero ir. — Pensei que gostasse de Addie – comentou Rafferty, tirando as botas. — Eu gosto. — Então, por que não quer ir à festa dela? Você não a vê desde que voltou para cá. — Eu sei, mas papai tinha acabado de morrer, e eu não tinha a mínima vontade de sair para fazer visitas. Depois, havia tanto trabalho para ser feito na minha fazenda... — Agora não pode usar isso como desculpa. — Desde que tinha meus dezoito anos sempre considerei você um crápula e até hoje não consegui mudar meu conceito! Rafferty não pôde deixar de rir enquanto tirava o jeans. Michelle ficava ainda mais encantadora quando se zangava.

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Sentando-se na cama ao lado dela, acariciou-lhe as costas e procurou acalmá-la: — Calma. Você conhece todos os convidados, e as festas de Addie são sempre muito informais. Sei que sempre gostou deste tipo de reunião. Por que, então, não quer ir? Ele a puxou para junto de si e a fez recostar a cabeça em seu ombro. Michelle temia que Rafferty a achasse ridícula se lhe contasse a verdade: não se sentia bem fora da fazenda. Rafferty iria querer saber o porquê desta insegurança e o que lhe diria? Que recebera dois telefonemas estranhos e que a pessoa do outro lado da linha simplesmente havia desligado sem dizer nada? Isto era a coisa mais comum do mundo, podia ser um trote ou apenas um engano. Porém, por mais que tentasse não conseguia livrar-se da idéia de que algo ameaçador a esperava logo além das cercas da fazenda. Virando o rosto, afundou-o na curva do pescoço dele. Talvez estivesse exagerando em seus temores. Na certa, tudo não passava de resquícios dos traumas deixados por seu casamento desastroso. — Está bem – concordou – , eu vou. A que horas devemos chegar lá? — Ainda temos uma duas horas. Rafferty beijou-a com carinho, procurando fazê-la relaxar, mas Michelle continuava a se retrair, distraída, como se estivesse pensando em outra coisa. Frustrado, reconheceu que não havia como comprovar suas suspeitas, mas tinha certeza de que havia algo errado acontecendo com ela.

Levantando-se, Michelle balançou a cabeça: — Só duas horas? Mal vou ter tempo de me arrumar. — Por que não economizamos tempo e tomamos um banho juntos? – ele sugeriu, terminando de despir-se. — Não me incomodo de chegar atrasado à festa. Michelle engoliu em seco: — Não, obrigada, pode ir tomar banho; eu vou depois. O convite a deixara nervosa e, além da tensão causada pelos telefonemas anônimos, preocupava-se em saber o que as pessoas diriam ao vê-los juntos. Detestaria ser alvo de comentários maldosos sobre seu relacionamento com Rafferty. Por outro lado, as pessoas que estariam na festa, todas conhecidas, eram muito agradáveis, e Michelle gostava muito de Addie e seu marido, Steve. Às recepções do casal compareciam desde crianças até pessoas de mais idade, como Frank e Yetta Campbell, já por volta dos setenta anos. Alguns convidados aproveitavam para nadar, outros simplesmente batiam um papo enquanto saboreavam o delicioso churrasco preparado pelos homens e, normalmente, por volta das dez e meia da noite, todos já estavam de saída. Logo depois que Rafferty saiu do banheiro, Michelle entrou, e após o banho optou por uma roupa descontraída: camiseta e calça de algodão brancas e sandálias baixas do mesmo tom. O cabelo molhado foi preso num rabicho na nuca. Em outra pessoa a roupa talvez parecesse desleixada, mas o porte e a silhueta de Michelle o tornavam muito adequado. — Não se esqueça do maiô – lembrou ele, pois sabia que Michelle gostava de nadar. Disfarçando, fingiu procurar algo na bolsa: — Não vou nadar. — Por que não?

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— Não estou com vontade. A voz de Michelle soou-lhe fria. Sempre que se retraía, apelava para esse tom de voz. Desconfiado, olhou-a com atenção: nunca a vira “não ter vontade” de nadar. Seu pai chegara mesmo a construir uma piscina na fazenda só por causa dela. Quando Michelle se casara, o velho Langley acabara esvaziando-a, pois ninguém mais a utilizava. Deu-se conta do que nesse tempo em que moravam juntos nunca a vira nadando: Rafferty mesmo não encontrava tempo para nadar ou ficar tomando sol, mas insistira com o arquiteto da casa para que a incluísse no projeto só por causa de Michelle.Tudo ali fora feito para ela. A casa, espaçosa e confortável, a cozinha moderna e bem equipada, a maldita Mercedes. Na época, nunca admitiu a verdade para a si mesmo, mas ao cuidar de todos os detalhes do rancho só pensara em Michelle. Então, por que ela não usava a piscina? Michelle notou que Rafferty a observava, desconfiado, ao saírem do quarto mas, para seu alívio, ele não disse nada, e pelo visto não ia insistir no assunto. Talvez tivesse mesmo acreditado que não estivesse com vontade de nadar. Se Rafferty soubesse o quanto desejava poder entrar na água um pouco... Mas mesmo ali na piscina dele, embora não houvesse ninguém por perto, preferia não se arriscar a pôr um maiô. Sabia que as cicatrizes deixadas pela surra que levara de Roger já haviam se tornado quase invisíveis, nem Rafferty, enquanto faziam amor, as havia percebido. Mesmo assim preferia não se expor demais. Vez por outra, olhava-se no espelho e percebia que as marcas, de fato, eram mínimas mas, ainda assim, hesitava. Escondê-las tornara-se um hábito, uma obsessão. Tinha sempre o máximo cuidado para não se despir na presença de John e, caso não pudesse evitar, fazia-o de frente para ele. Incrível como ele ainda não houvesse percebido esta sua atitude até um tanto contraditória. À noite, na cama, não havia perigo. Mesmo que as luzes estivessem acesas, a iluminação era fraca e John sempre tinha outras coisas em mente. Ainda assim insistia em dormir de camisola, mesmo que fosse por poucas horas mas, ao sair da cama, estava vestida. Sabia que cedo ou tarde ele as veria e, só de pensar em ter de explicar-lhe o que houve, um arrepio percorria-lhe a espinha.

A festa foi exatamente como Michelle imaginara: descontraída, alegre, muita bebida e muita comida. Addie fora uma de suas melhores amigas quando solteira e continuava a ser a mesma moça simpática e falante de antes. Apesar de ter engordado um pouco, conservava o rosto bonito e jovial. Steve, seu marido, mal tinha chance de opinar na conversa, mas encarava com bom humor e personalidade falante da esposa. Ambos formavam um casal invejável. — Quando éramos namorados – confessara Addie a Michelle enquanto arrumava o prato de seus filhos – Steve costumava tapar minha boca quando eu falava demais só como pretexto para me beijar. Ambas riram a valer. — Mas, Michelle, você está ótima, fiquei feliz em vê-la tão bem. Aposto que nosso amigo ali – e meneou a cabeça em direção a Rafferty – tem parte nesse milagre. Lembra-se de como eu costumava suar e tremer quando ele se aproximava para conversar? — Puxa, se lembro – afirmou Michelle, já chorando de tanto rir em companhia da amiga. Do outro lado da piscina Rafferty, ao ouvir os risos, voltou-se e viu Michelle alegre, rindo descontraída, mais atraente que nunca. Mas logo um dos colegas da roda de amigos fez-lhe uma pergunta qualquer sobre gado, e ele precisou desviar a atenção. Por que ela não sorria daquela forma mais vezes? Apesar dos receios que tivera, Michelle se divertiu muito na festa, tão diferente dos coquetéis sofisticados que costumava

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freqüentar antes de seu pai falecer. Adorava aquela descontração. Assim que as crianças se acalmaram, parando de pular na piscina, os adultos acomodaram-se ao redor da mesa para um batepapo. Ao sentar-se ao lado de Michelle, Rafferty tocou-lhe de leve o braço num gesto carinhoso que a deixou muito contente. Controlandose, procurou não fitá-lo. Sentia-se como uma adolescente apaixonada. Enrubescendo, ergueu o rosto e arriscou olhá-lo de esguelha. Ele a fitava de modo fixo e intenso. Depois de algum tempo Rafferty sugeriu a Michelle: — Vamos para a casa? — Mas... já? – protestou Addie no exato momento em que um trovão ecoava ao longe. Todos olharam para o céu em busca de algum sinal de chuva que viesse aliviar o calor, ainda que por pouco tempo, e também os regatos. A oeste, sobre o golfo, diversos raios riscavam um bloco de nuvens negras. Frank Campbell foi o primeiro a se manifestar: — Um pouco de chuva até que não nos faria mal. Não chove faz tempo. Havia chovido no primeiro dia em que Rafferty fora conversar com ela na fazenda, ela pensou. Depois, na noite em que voltavam de Tampa, quando fizeram amor pela primeira vez. Olhando de modo sorrateiro para ele, viu-o fitá-la de modo significativo e chegou à conclusão de que tinham os mesmos pensamentos. Naquele instante, uma rajada forte soprou trazendo consigo o cheiro de chuva. Imediatamente, todos se mobilizaram, pondo as crianças dentro de casa e limpando o pátio antes que a tempestade desabasse. Depois de arrumar tudo, os convidados se despediram de seus anfitriões e seguiram para os seus carros. — Gostou de ter vindo? – perguntou Rafferty ao entrarem na rodovia. Michelle, distraída, observava os desenhos exóticos que os raios formavam no céu: — Sim, foi ótimo – disse, e deslizou no banco para perto dele. Concentrado na estrada, Rafferty procurava manter a caminhonete estável, pois estavam sendo atingidos por rajadas de vento vindas em sentido contrário. Os seios de Michelle roçavam-lhe o braço a cada movimento que fazia. Apesar do vento, Rafferty sentiu o desejo invadi-lo: o ritmo de sua respiração alterou-se. — O que foi? Algo errado? – Michelle indagou, sonolenta. Como resposta, ele segurou-lhe uma das mãos e a fez tocá-lo, deixando evidente o quanto a queria. Michelle acariciando-o aninhou-se contra ele, e Rafferty, de repente, saiu da estrada parando no acostamento. Tornara-se impossível continuar prestando atenção na estrada. — Por que parou? Sem uma palavra, ele desligou o motor e as luzes da caminhonete e cobriu-lhe os lábios num beijo apaixonado. — Rafferty – Michelle protestou, virando o rosto. — Estamos na estrada, alguém pode nos ver. — Está escuro e chovendo – argumentou, já despindo-lhe a calça de algodão branco. — Ninguém vai nos ver. A chuva forte batia no vidro, e aos sons dos trovões juntava-se o assobio do vento. Michelle, consumida pela paixão, mal ouvia as palavras de amor que ele murmurava enquanto a fazia sentar-se em seu colo para depois penetrá-la com urgência. Nada mais lhe importava a não ser estar ali com Rafferty, trancados naquele mundo todo particular.

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Quando chegaram em casa, Michelle permitiu que Rafferty a carregasse para dentro de casa até a cama, onde se deitaram absolutamente entregues. Michelle sentia ainda todo o corpo vibrar de prazer. Rafferty beijou e acariciou-lhe o ventre com carinho. — Quer que eu tire sua roupa? – ele perguntou. — Não – Michelle protestou beijando-lhe o pescoço. — Eu mesma tiro daqui a pouco. Por enquanto só quero ficar aqui quietinha. Está tão bom... Lentamente, ele deslizou a mão mais para baixo: — Nós não usamos nenhum contraceptivo. Será que você vai engravidar? — Não, acredito que não. — Sinto muito, meu bem, mas eu estava tão excitado que mais parecia um adolescente. Não consegui me controlar. — Está tudo bem, fique tranqüilo... Michelle o amava demais, tornava-se cada vez mais difícil resistir ao ímpeto de revelar-lhe seus sentimentos. Sabia que, cedo ou tarde, aquele relacionamento ia terminar, mas seu intuito era fazê-lo durar o máximo possível.

Dias depois Michelle ainda estremecia ao pensar na volta da festa, quando haviam feito amor dentro da caminhonete. Por sorte, seus medos foram infundados e nada de mal lhes acontecera. Os telefonemas anônimos também não voltaram a se repetir, e ela aos poucos foi relaxando, convicta de que não haviam passado de um trote. Embora continuasse preferindo ficar na fazenda, começara a pegar o carro para ir à cidade ou visitar as amigas nos dias em que não trabalhava por insistência de Rafferty. Numa tarde de segunda-feira, após fazer umas compras para ele, na volta passou pela sua fazenda só para dar uma olhada na casa. Percorrendo os cômodos, verificou se tudo estava em ordem. Aquele local se tornara frio e sem vida. Como já fosse tarde, fechou a porta da frente com cuidado e resolveu ir embora. No entanto, antes de entrar no carro, teve uma sensação estranha. Olhando à sua volta, não notou nada anormal: os pássaros ainda cantavam nas árvores, e os insetos noturnos começavam a incomodar. Mesmo assim, a sensação persistia. A lógica lhe dizia que tudo não passava de uma bobagem mas, por precaução, trancou as portas ao entrar no carro. Ao dar a partida, sorriu para si mesma. Era preciso se controlar, caso contrário acabaria neurótica: primeiro os telefonemas que a haviam deixado em pânico, agora essa sensação esquisita, sem motivo algum. Na estrada secundária que ligava as duas fazendas, olhando pelo retrovisor, Michelle viu um Chevrolet azul muito próximo ao seu. Numa fração de segundo, o motorista desviou para a esquerda para poder ultrapassá-la. Como a estrada era estreita, Michelle chegouse mais para a direita. Mas o outro motorista deu-lhe uma fechada perigosa. — Cuidado! – gritou, jogando a direção para a direita. Tarde demais. O carro encostou na lateral da Mercedes, que foi jogado para fora da estrada. Sentindo os pneus derraparem no cascalho do

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acostamento, Michelle manobrou, impedindo que o carro se desgovernasse. Atônita, não conseguiu nem mesmo xingar o motorista imprudente, que seguiu em frente a toda velocidade. Recuperando-se do susto, voltou para a estrada, mas instantes depois, percebendo que ainda continuava tremendo, parou no acostamento, a cabeça apoiada no volante. Pela posição em que se encontrava não viu que o carro que a jogara para fora da estrada voltava. Quando abriu os olhos e levantou a cabeça já era tarde demais: só teve tempo de ver que o mesmo veículo azul, dirigido por um homem de óculos escuros, se arremetia contra o Mercedes, que rodopiou diversas vezes, indo bater contra um pinheiro. O pavor que sentia a impedia de gritar, e por uns instantes permaneceu imóvel, a cabeça pendendo para fora da janela lateral quebrada. Mas logo o terror a fez reagir, levando-a a tentar abrir a porta, sem sucesso. O pinheiro a bloqueava. Refletindo com rapidez, deslizou pelo banco para alcançar a outra parte quando notou que ainda se encontrava presa pelo cinto de segurança. Com gestos nervosos, olhando à volta para ver se enxergava o seu agressor, desatou a fivela e finalmente conseguiu sair do Mercedes. Ainda muito abalada, respirou fundo e levou a mão ao peito. Cautelosa, olhou por sobre o carro mas não viu absolutamente nada na estrada. Revendo mentalmente os momentos que acabara de passar mal podia crer no que lhe acontecera. Se tivesse batido de frente no pinheiro, poderia ter morrido! Que coisa mais estranha... Depois de quase cinco minutos, um carro surgiu pela estrada e, por ser azul, Michelle chegou a pensar que fosse o mesmo Chevrolet que quase a matara. Mas, deixando-o aproximar-se, verificou que este era de outra marca e bem mais velho que o outro. Pondo-se no meio da pista, ergueu os braços e gesticulou, fazendo-o parar. O que mais queria era ter Rafferty ali ao seu lado. Sua vontade naquele instante era poder aninhar-se em seus braços e chorar. — Por favor – disse, numa voz trêmula, ao rapaz que dirigia – chame John Rafferty, ele mora na fazenda logo adiante, na estrada a esquerda. Diga-lhe que... que sofri um acidente mas que estou bem. — Claro, claro. Qual o seu nome? — Michelle. O rapaz olhou para o Mercedes e comentou: — Vai precisar de um guincho também. Tem certeza de que está bem? — Sim, tenho. Depressa, por favor. — Certo, já estou indo. Pouco depois, Rafferty e um carro da polícia com que ele cruzara na estrada chegaram. A tarde caíra depressa, e o céu já havia escurecido. Rafferty brecou a caminhonete e desceu do veículo numa fração de segundo. Michelle tremia tanto que não conseguia se mover. Enquanto caminhava ao seu encontro, Rafferty mediu-a dos pés à cabeça, e só depois de certificar-se de que nada lhe acontecera foi que abraçou-a com força. — Você está bem? – perguntou. Michelle enlaçou-o pela cintura, feliz por tê-lo consigo. — Sim, eu estava usando o cinto de segurança – comentou sem conter as lágrimas que corriam-lhe pelo rosto. — Quando fui avisado eu quase... Não havia como explicar o que sentira ao receber a notícia, apesar de o rapaz haver lhe garantido que ela estava bem. Queria

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apenas vê-la com seus próprios olhos, apertá-la em seus braços. Só agora começava a se acalmar. O policial se aproximou com um bloco de anotações nas mãos e perguntou: — Incomoda-se em responder algumas perguntas, senhorita? Rafferty soltou-a mas permaneceu ao lado dela enquanto Michelle respondia às questões de praxe tais como nome, idade, número de identidade. Porém, quando o policial perguntou-lhe o que havia acontecido, Michelle recomeçou a tremer. — Um... um carro me jogou para fora da estrada. — Era um Chevrolet azul. Vendo que a resposta fugia ao comum, o guarda ergueu os olhos do papel: — Jogou-a para fora da estrada? Como? — Bateu no meu carro – respondeu, segurando as mãos com força. — Será que ele apenas não se aproximou demais e você, assustada, acabou saindo da pista? – Rafferty perguntou. — Não! Ele me deu uma fechada. Depois voltou e bateu no meu carro propositalmente. — Voltou? A senhorita anotou o número da chapa dele? — Não, não consegui ver. Rafferty fez um sinal para o guarda, e ambos foram até o carro verificar os estragos. Os dois conversaram em voz baixa e, embora não conseguisse entender o que diziam, Michelle não se aproximou. Tudo lhe parecia absolutamente irreal... Rafferty e o policial voltaram para onde ela havia ficado, Michelle estava trêmula. — Tudo bem – disse Rafferty tentando acalmá-la ao levá-la até a caminhonete. — O seguro cobre as despesas. O principal é que você não se machucou. Fique tranqüila. Vou levá-la para casa assim que o guarda terminar de registrar a ocorrência e o guincho chegar. Desesperada, agarrou-se ao braço dele: — Mas, eu... John beijou-a e acariciou-lhe o ombro com carinho. — Já disse que está tudo bem, não se preocupe querida! Sem saber o que fazer, Michelle observou-o se dirigir ao policial, que se afastara um pouco. Michelle percebeu que nenhum dos dois estava acreditando no que lhe acontecera e sentiu-se mal, tremendamente confusa com tal constatação. O guincho chegou, levando o carro avariado. Ela estava acreditando que Rafferty achava que criara aquela história toda só para livrar-se da culpa pelo acidente. “Por causa da escuridão não dá para os dois verem marcas azuis no Mercedes”, ela pensou. “Na certa estão lá.” Durante o percurso de volta, Michelle não disse uma palavra sequer. Chegando à fazenda, desceu da caminhonete e deparou com Edie, muito nervosa, à sua espera: — Você está bem? O patrão saiu daqui feito uma bala e só nos disse que tinha havido um acidente. — Felizmente estou bem, só preciso de um banho quente. Estou gelada. Rafferty estranhou e constatou que a pele dela estava realmente fria, o que atribuiu ao susto: — Faça um café para a gente – ele pediu a Edie... Vou ajudar Michelle no banho. Michelle, no entanto, esquivou-se: — Não se preocupe. Preciso ficar um pouco sozinha. Depois de um banho rápido, Michelle foi para a cozinha mas só aceitou uma xícara de café. Naquela noite, na cama, pela primeira vez não conseguiu corresponder aos carinhos de Rafferty. Percebendo que não o desejava,

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ele não insistiu e aconchegou-se em seus braços até que dormisse. Rafferty, porém, permaneceu acordado durante horas; não se conformava por quase tê-la perdido.

Capítulo 9

Rafferty, ao telefone, ouvia impaciente; os olhos negros brilhando, a fisionomia fechada. Finalmente, disse: — Mas, faz pouco tempo que estive aí para resolver seus problemas. Como foi que conseguiu se meter noutra encrenca tão depressa? Curiosa para saber quem falava com ele, Michelle que trabalhava na contabilidade, ergueu o rosto para observá-lo. Nunca o vira tão nervoso antes. — Tudo bem, amanhã estou aí – disse ele. — Mas se você tiver saído com as amigas como da última vez, viro as costas e volto imediatamente. Não tenho tempo a perder. E, sem mais uma palavra, desligou. — Quem era? — Minha mãe. — Sua mãe? Primeiro ele a olhou muito sério, e então sorriu de modo irônico: — É... minha mãezinha... — Mas você nunca me falou... Bem, pensei que ela tivesse morrido, como seu pai. — Não, simplesmente nos abandonou, pois não suportava viver longe das lojas. — Que idade você tinha? — Não sei... seis ou sete. Engraçado, não me lembro de ter ficado triste ou sentido saudade. Só me lembro de vê-la reclamando que a casa era velha e pequena e que o dinheiro era pouco. Sempre me dei melhor com o meu pai. Michelle ficou um pouco chateada. Rafferty tinha o péssimo costume de ir contando-lhe aos poucos sobre sua vida, omitindo as passagens mais importantes como se não o tivessem afetado em nada. E talvez fosse verdade. Porém, Michelle achava impossível uma criança não ter sido afetada pela partida da mãe. E no episódio do casamento dele? Como era possível um rapaz ainda jovem não ter ficado traumatizado com o abandono da esposa? — Da outra vez que você foi pra Miami foi por causa dela? — Sim. Mamãe vive se metendo em confusão e, de vez em quando, recorre a mim para dar um jeito nas finanças dela. — E você vai. Ele deu de ombros e respondeu lacônico: — Vou. — Veja se me telefona dessa vez – disse Michelle, olhando-o de modo significativo. Ele murmurou algo incompreensível; depois deu-lhe uma piscada marota enquanto discava o número da companhia aérea. Então, enquanto conversava com a telefonista, pediu-lhe que esperasse um minuto: — Quer ir comigo? – perguntou a Michelle.

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Ansiosa, ela recusou, balançando a cabeça. — Não, obrigada, preciso cuidar de uns papéis com urgência. John percebeu tratar-se de uma desculpa mas não insistiu. Voltou a falar ao telefone: — Apenas uma passagem de ida e volta, sem data para voltar. Sim, obrigado. Ao desligar, anotou o número do vôo num bloco e recostou-se na cadeira. Desde o acidente, Michelle nunca mais saíra da fazenda. Há três dias que o carro chegara da oficina e continuava na garagem. De fato, algumas pessoas ficavam abaladas nesses casos, mas Rafferty tinha certeza de que algo mais a preocupava. Observando-a cuidar dos papéis, muito séria, concluiu que fora ótimo deixá-la cuidando da contabilidade: seu serviço era impecável, e sobrava-lhe mais tempo para fazer-lhe companhia à noite. Rafferty sentia-se um tanto contrariado por ter de se afastar de Michelle por uns dias. Adorava tê-la ao seu lado, e desde que ela voltara nenhuma mulher o interessava. Tudo nela o agradava, até a maneira como esbravejava quando a provocava. De repente Rafferty deu-se conta de que a relutância que estava sentindo em viajar não era só por não poderem fazer amor mas, sim, porque algo a preocupava. Tentara fazê-la dizer qual o problema que a atormentava, mas fora inútil. Algumas vezes surpreendeu-a olhando a janela quase apavorada, temerosa. Por mais que raciocinasse não entendia do que Michelle tinha tanto medo. Rafferty acreditava que tudo havia começado com o acidente e, por mais que tentasse fazê-la entender que nada se modificara, Michelle continuava a se retrair, tornando-se cada dia mais distante, fechada em si mesma. O humor de Michelle também mudava muito rapidamente, indo do riso tímido a uma fisionomia muito séria em questão de minutos. Na cama, no entanto, exceto na noite do acidente. Continuavam a se dar muito bem. Esticando o braço Rafferty tocou-lhe os lábios. Michelle ergueu o rosto e beijou-lhe os dedos, seus olhos se cruzaram cheios de desejo. Sem uma palavra, ela fechou o livro da contabilidade e levantou-se, saindo do escritório. Rafferty seguiu-a escada acima, de novo a teria nos braços, de novo amaria a mulher com quem sempre sonhara.

Às vezes, quando o dia amanhecia claro e ensolarado, Michelle chegava a pensar que tudo não passara de um pesadelo. Os telefonemas não haviam passado de um trote inconseqüente, e o pânico que sentia era infundado. Assim como o homem de óculos do Chevrolet azul não havia tentado matá-la. Talvez estivesse bêbado ou drogado. A realidade era o dia-a-dia da fazenda: Edie cantarolando na cozinha, os cavalos sendo marcados, o gado pastando tranqüilo. E, principalmente, os telefonemas diários de Rafferty dizendo-se impaciente para voltar para casa. Mas sabia que tudo aquilo acontecera de fato, embora ele não acreditasse. Ali na fazenda, Michelle, sob o sol quente, se sentia segura, protegida. No entanto, à noite, sozinha na cama, uma certa insegurança a envolvia perturbando-lhe o sono. Durante o dia, tal e qual nos tempos em que morava em sua fazenda, procurava ocupar-se ao máximo na esperança de, exausta, conseguir dormir melhor. Nev Luther recebera as mesmas instruções e mais uma vez via-se em dificuldades para cumpri-las. Como impedi-la de fazer algo? Telefonando para o patrão em Miami? Tinha certeza de que ele ficaria com muita raiva se a visse trabalhando tanto, mas Michelle não pedia permissão; simplesmente fazia o que bem entendia. Mas Nev Luther também percebeu que ela estava diferente, preocupada, parecendo fazer questão de se ocupar para não pensar em algo. Talvez fosse saudades de John Rafferty, pensava. A idéia o fez sorrir: gostava de tê-la morando ali com o patrão e ficaria muito satisfeito se fosse para sempre.

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Após quatro dias de muito trabalho, Michelle sentia-se tão exausta que achou que na certa conseguiria dormir bem mas, mesmo assim, resolveu se distrair um pouco antes de subir para o quarto, temendo estar enganada e ser atormentada pela insônia. E foi ao escritório cuidar de uns papéis. Não tinha nada urgente para fazer, mas queria que tudo estivesse em ordem quando Rafferty chegasse. Só de pensar na volta dele um sorriso iluminou-lhe o rosto. Rafferty estaria de volta no dia seguinte. Seu telefonema da tarde a deixara muito mais tranqüila. Só mais uma noite de solidão e, depois já não precisaria mais dormir sozinha. Por volta das dez horas, já terminado o trabalho, Michelle subiu para o quarto e vestiu uma das camisolas de algodão bem fresquinhas que usava para dormir. O calor estava insuportável, e ela não gostava de dormir com o ar-condicionado ligado. Assim que se deitou, dormiu profundamente. Por volta das duas horas da manhã, Rafferty entrou em casa. Seu plano inicial era pegar o vôo das oito da manhã, mas, depois de falar com Michelle à tarde, a saudade havia aumentado e foi impossível esperar. Não teria mais sossego enquanto não a apertasse nos braços, certificando-se de que estava bem. Não suportando a espera, ligara para o aeroporto trocando a passagem por outra no último vôo da noite. Depois de despedir-se da mãe, advertindo-a para que cuidasse das finanças, beijou-lhe a testa com carinho e já estava para sair quando ela havia lhe dito: — Você não me contou nada, mas andei ouvindo uns rumores. É verdade que você e a filha do velho Langley Cabot estão morando juntos? John, francamente, ela perdeu tudo... — Mãe, por favor... — Então, é verdade? — É? A mãe de Rafferty, curiosa, lançou-lhe um olhar penetrante. Ele já se relacionara com muitas mulheres, porém jamais as levara para morar na fazenda. Conhecendo bem o filho, sabia que Michelle Cabot devia ser muito especial para ele. — Seja feliz... – ela havia dito assim que o vira afastar-se. Ao subir a escada, Rafferty sentiu o coração bater forte dentro do peito, em antecipação. Faria o possível para não acordá-la, mas mal via a hora de deitar-se ao seu lado, sentindo-lhe o corpo quente e macio de encontro ao seu. Cansado, concluiu que talvez fosse melhor dormir bem à noite para, de manhã, poderem fazer amor. Procurando não fazer barulho, entrou no quarto e fechou a porta. Michelle dormia toda encolhida, absolutamente imóvel. Deixando as malas no chão, abriu um vão na porta do banheiro e acendeu a luz da pia para poder enxergar o quarto ao se despir. Olhando de novo para a cama, sentiu o desejo inundá-lo. Michelle estava descoberta, apenas com uma camisola fina, que lhe subira até a cintura, expondo o corpo de curvas perfeitas. A respiração dela, lenta e profunda, contrastava com a de Rafferty rápida e ofegante. Despindo-se, deixou as roupas no banheiro e foi para a cama, fazendo-a rolar delicadamente para o lado. Michelle mexeu-se, passando a mão sobre o peito de Rafferty. — Eu te amo – murmurou, ainda meio adormecida. Suas palavras atingiram-no com a força de um raio. Michelle teria consciência do que acabara de confessar? Só havia uma maneira de acabar com a dúvida. Chamou-a baixinho: — Michelle... Curvando-se, beijou-lhe o pescoço delicado, fazendo-a despertar. Abrindo os olhos, Michelle sorriu-lhe e beijou-lhe os lábios com volúpia. A saudade era tanta que seria inútil traduzi-la em

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palavras. Ali, naquele instante, só os sentimentos contavam. — Faça amor comigo, Rafferty – pediu. Abraçando-a com força, ele a penetrou. Instintivamente, Michelle enlaçou-lhe a cintura com as pernas, e febris chegaram ao orgasmo. Por uns minutos Rafferty permaneceu deitado sobre ela, refazendo-se. Mas, logo depois, recomeçou a acariciá-la. Michelle gemeu baixinho e pronunciou seu nome com a voz rouca de paixão. De novo seus corpos ansiosos atingiram o êxtase. O dia quase amanhecia quando ela aninhou-se contra ele, que rolara para o lado trazendo-a consigo. — Você chegou antes do que pensei – disse ela depois de algum tempo. — Não pude suportar mais uma noite longe de você. E estava sendo sincero. Teria sido um inferno passar mais uma noite em Miami.

Na manhã seguinte, ninguém ousou acordá-los, permitindo que dormissem até mais tarde. Nev Luther, ao ver a caminhonete estacionada no local de costume, foi procurar Rafferty, mas Edie fez com que fosse embora.

Os raios fortes do sol do princípio de tarde despertaram Rafferty, que, consultando o relógio, constatou já haver passado de uma da tarde. O calor dentro do quarto era escaldante, e gotas de suor molhavam-lhe as têmporas e o bigode. Tomando cuidado para não acordar Michelle, saiu da cama e foi direto para o chuveiro. Durante o sono, sonhara diversas vezes que a tinha nos braços dizendo-lhe que o amava. A noite passada, não fora possível desfazer a dúvida que ainda o atormentava: será que Michelle tinha consciência do que falara ou estava apenas sonhando? Ela nunca lhe dissera tais palavras antes, nem as tornara a repetir depois de haver despertado. Sexualmente era inegável que o relacionamento entre eles se tornava cada vez mais perfeito. Porém, na maior parte do tempo em que estavam juntos, continuava a existir uma distância que o exasperava, mas que Michelle insistia em impor, escondendo uma parte de si. Será que ela amava outro homem? Talvez fosse um dos antigos amigos milionários que a abandonara, agora que perdera o status. A idéia o inquietava, pois Rafferty sabia ser perfeitamente possível continuar a amar alguém mesmo a distância. Fora assim que a amara durante anos. Fechando a torneira de água fria, enxugou o rosto com a toalha, que apanhara com um movimento brusco, quase violento. Ele a amava há anos mas vinha tentando enganar a si mesmo, ora tratando-a com hostilidade, ora convencendo-se de que seus sentimentos para com Michelle não passavam de atração física e desejo. Tido como conquistador, gostava de trocar de mulher, usando-as e abandonando-as. Mas o que ninguém sabia era que nenhuma delas conseguira aplacar-lhe o desejo, nenhuma fizera esquecê-la. Ao friccionar a toalha pelo corpo molhado, sentiu as mãos trêmulas e frias e jurou a si mesmo que faria de tudo para apagar da mente de Michelle qualquer outro homem em que ela ainda pensasse. “O que ela vai fazer quando souber que a amo? Fugir? Me rejeitar?”, pensou. E lembrou-se então de quanto ele mesmo detestava quando uma de suas namoradas tentava prendê-lo alegando que o amava, implorando-lhe que não a deixasse.

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Jamais se sentira tão inseguro com relação a outra mulher e achava terrível saber que suas emoções, e as de Michelle, fugiamlhe ao controle. Sempre ouvira dizer que o amor enfraquecia as pessoas, mas só agora entendia o real sentido de tais palavras; estava absolutamente apavorado diante dessa nova experiência. Voltou para o quarto e se vestiu. Como que atraído por um ímã, não conseguia tirar os olhos de Michelle. Ela era tão linda... Os cabelos dourados e lisos espalhados pelo travesseiro, a pele alva, o corpo delicado. Deitada de bruços, com um braço sob o travesseiro, mais parecia um sonho. Admirando-lhe as pernas bem-torneadas e a curva perfeita dos quadris, sentiu que suas pulsações aceleravam. Cruzando o quarto, sentou-se na cama ao lado dela e tocou-lhe de leve o ombro nu: — Acorde, dorminhoca, já são quase duas da tarde. Michelle bocejou e ajeitou melhor o travesseiro. — E daí? – indagou com um riso maroto nos lábios, recusando-se a abrir os olhos. — Vamos, levante... não consigo sair do quarto vendo você dormir assim, quase nua. Fico lutando comigo e... Interrompendo o que dizia, franziu as sobrancelhas e procurou observar melhor a pequena cicatriz que tocara por acaso. Se não fosse o sol forte que inundava o quarto, nem a teria notado. Em seguida, viu mais uma cicatriz e tocou-a com cuidado. Correndo os olhos pelas suas costas delicadas, viu diversas outras, quase imperceptíveis, mas reais. Elas desciam-lhe pelas costas, chegando até o alto das coxas. Michelle, tensa sob seu toque, prendeu a respiração. Atônito, Rafferty começou a imaginar a possível causa daquelas marcas, todas mais ou menos do mesmo tamanho numa distância regular. Um acidente não poderia ter sido, jamais deixaria tais cicatrizes. Curioso, chegou à conclusão de que não as vira antes por serem pequenas demais. Continuando a estudá-las, concluiu que tais marcas só poderiam ter sido deixadas deliberadamente, jamais por acidente. Então, suspirando, praguejou revoltado, dizendo palavras de ódio que pronunciava, com vagar, tornando-as ainda mais significativas. Obrigando-a a deitar-se de costas, segurou-a pelos ombros com firmeza e perguntou simplesmente: — Quem lhe fez isto? Vendo-o tão transtornado, Michelle encolheu-se toda de medo. Nunca o vira com tanto ódio. Pálida, limitou-se a encará-lo qual presa acuada diante do caçador, absolutamente indefesa. O silêncio de Michelle no entanto, irritou-o ainda mais. Erguendo-a pelos ombros, aproximou seu rosto do dela e repetiu a pergunta pausadamente, enfatizando cada palavra. Trêmula, Michelle tentou falar, mas só conseguiu balbuciar algumas sílabas. — Quem fez isto? – Rafferty gritou desesperado. Envergonhada, Michelle fechou os olhos e deixou que as lágrimas rolassem livremente pelo rosto. Seus lábios tremiam tanto que era quase impossível falar. — Por favor, não faça perguntas... — Quem? Virando o rosto, resolveu dizer-lhe a verdade: — Meu ex-marido, Roger. Rafferty tornou a praguejar. Michelle ainda tentou protestar, mas ele a fez sair da cama e, sentando-se numa cadeira, seguroua em seu colo. O simples fato de ter pronunciado o nome de Roger dava-lhe a impressão de haver se contaminado. A vontade de Michelle era

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poder tomar um banho naquele instante, como se com isso conseguisse apagar as marcas que ele lhe deixara. Rafferty, no entanto, continuava a ampará-la com carinho em seu colo, procurando acalmá-la. Apesar do calor, Michelle tremia, e ele, esticando o braço, arrancou o lençol da cama para cobri-la. Com um braço em torno de seus ombros e o outro ao redor da cintura, acariciava-lhe as costas, pensativo. Michelle havia sido espancada pelo marido... Quanta covardia de um homem surrar uma mulher. Se ao menos pudesse pôr as mãos naquele infeliz... Mentalmente, viu-a encolhida a um canto, o rosto coberto com as mãos, as costas sangrando. Incrível que ela ainda conseguisse se entregar a um homem depois de tudo pelo que havia passado. Afundando o rosto em seus cabelos sedosos, permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer. Então, apertou-a ainda mais contra si e começou a sussurrar-lhe palavras de carinho junto ao ouvido. Sua ternura imensa ajudou-a a acalmar-se, e Michelle parou de tremer. Finalmente, ela fez menção de sair de seu colo. Rafferty, relutante, não a impediu. Sem uma palavra, Michelle entrou no banheiro e fechou a porta atrás de si. Ele, preocupado, já ia ao seu encalço quando percebeu que seria melhor deixá-la sozinha por uns minutos. Em seguida, ouviu barulho do chuveiro e esperou. Dali a instantes, Michelle voltava para o quarto vestida num robe atoalhado. — Você está bem? – ele quis saber. — Sim, estou... — Temos que conversar sobre isso. — Uma outra hora... Agora não... — Tudo bem, mais tarde falaremos sobre esse assunto...

A conversa aconteceu naquela noite mesmo. Depois de fazerem amor, ambos descansavam abraçados, mergulhados na escuridão do quarto. Michelle não queria tocar no assunto, não queria falar sobre seu casamento, mas Rafferty não ia desistir enquanto não soubesse de tudo, e ali, no escuro, seria mais fácil para ela falar. — Ele morria de ciúmes – começou. — As mínimas coisas despertavam-lhe o ódio. No começo, só gritava, me acusando de enganálo, e, por mais que eu negasse, insistia em saber quem era, até que eu não agüentasse mais. Depois começou a me espancar... Controlando o ódio que o consumia, Rafferty permaneceu quieto, os músculos tensos, ouvindo o relato de Michelle. — Uma vez o processei, mas a família dele acabou sumindo com os papéis na Justiça e deixou claro que eu não devia mais repetir aquilo. Então, resolvi abandoná-lo... mas ele ameaçou matar meu pai... — E você acreditou? – perguntou, interrompendo-a pela primeira vez. — Claro. – E, sorrindo de modo amargo: — Ainda acredito. Ele tem tanto dinheiro que nada lhe aconteceria caso suas ameaças chegassem a se concretizar. — Mas você o deixou mesmo assim. — Não sem antes arranjar um modo de chantageá-lo. — Como? — As... cicatrizes das minhas costas. Na noite em que ele me deu a surra de cinta, consegui provas incontestáveis e obtive meu divórcio, e disse aos pais dele que o mantivessem longe de mim, caso contrário eu os desmoralizaria em toda a imprensa.

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— Fez muito bem. — Só que agora eles faleceram e meu pai também. Na opinião de Rafferty pessoas como os Beckman não faziam falta à humanidade. Michelle, então, calou-se, e ele percebeu que, caso não a pressionasse, ela não entraria em mais detalhes. No entanto, queria saber tudo o que lhe acontecera, ainda que sofresse ao ouvir seu relato. Era a única forma de cobrir a distância que os separava. O que teria lhe acontecido depois de ter conseguido o divórcio? Carinhosamente, deslizou-lhe uma das mãos pelas costas: — É por isso que não quer nadar? — É – disse, ajeitando-se melhor. — Sei que as cicatrizes já quase não aparecem mas, para mim, ainda são bastante visíveis. Tenho medo que me perguntem o que aconteceu. — Agora entendo por que insiste em vestir de novo a camisola depois que fazemos amor. — Sim, é por causa das marcas. — Por que não queria que eu também soubesse? Afinal, não sou um estranho, Michelle... Claro que não; era o homem a quem amara em silêncio por dez anos, a pessoa mais importante do mundo para ela. Detestaria que Rafferty soubesse desse pesadelo por que passara. Só que fora impossível esconder a verdade por mais tempo. — Eu... tinha vergonha. — Michelle! – ele exclamou, indignado, apoiando-se num cotovelo para fitá-la. — Por quê? Não foi culpa sua. Ele é que não passa de um canalha. — Sei disso, mas às vezes saber não basta. Curvando-se, beijou-a com ternura. Michelle ergueu os braços e passou-os ao redor do seu pescoço, acariciando-lhe a nuca. Então, ele voltou a deitar-se e puxou-a para junto de si, Michelle havia insistido em colocar a camisola mas ele a impedira. Não havia mais segredos entre eles. Sentindo-o tenso, procurou acalmá-lo: — Sossegue, felizmente está tudo acabado... — Você disse que os pais dele morreram. Roger voltou a incomodar você? Lembrando-se dos telefonemas, Michelle arrepiou-se: — Ele me telefonou, não apareceu. Espero nunca mais vê-lo – confessou. — Telefonou para a sua casa? — Para cá também. — Ah, eu daria tudo para poder encontrá-lo... — Pois espero que isso nunca aconteça. Ele... Ele é um homem desequilibrado. Deitada ali no escuro do quarto ao lado de Rafferty, Michelle começou a sentir-se sonolenta. Mas ele tornou a tocar-lhe as costas, ainda indignado, e perguntou: — O que ele usou para lhe bater? Michelle procurou afastar-se mas ele a impediu. — Isto não vem ao caso. — Diga. — Mas...

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— Quero saber. — Você já deve ter percebido – afirmou, os olhos rasos d’água. — Um cinto? – ele insistiu. — Hum-hum. Ele enrolou a ponta do couro na mão e me bateu com a fivela. John mal podia suportar a idéia de Michelle ser espancada, aquele patife devia ir para a cadeia. — Por favor, vamos dormir – ela pediu. Mas, havia mais uma pergunta que o intrigava: — Por que não contou a seu pai? Ele poderia tê-la ajudado. — Eu contei – revelou, rindo de maneira amarga – , mas ele não deu muita importância... Continuaram a conversar durante algum tempo, e Michelle só não lhe contou que nunca havia amado o marido e que Roger, de uma maneira ou outra, descobrira que seu amor pertencia a outro homem. Michelle temia que, caso mencionasse algo, Rafferty descobriria a paixão que sempre nutrira por ele. Jamais se permitiria correr o risco de perdê-lo, logo agora que se sentia tão vulnerável depois de ter-lhe revelado tantos segredos. Por mais que o conhecesse, não conseguia imaginar de que modo Rafferty reagiria ao saber que o amava. Qual seria sua reação? Ficaria feliz? Ela atormentava-se imaginando que ele pudesse se cansar dela, que não a amasse. Que a queria apenas por um capricho. As indagações surgiam em sua mente e iam sucedendo-se umas após outras, todas sem respostas... Sabia apenas que, se tivesse que deixar Rafferty iria sofrer muito. Este pensamento amedrontava-a. Só o transcorrer dos dias traria alguma resposta para seus tormentos.

Capítulo 10

— Michelle, telefone! – Edie gritou da cozinha. Michelle, que acabara de entrar em casa, já ia subir para tomar um banho, mas foi até o escritório atender o telefonema. Radiante, só pensava no gado, que vira l há pouco no pasto de sua fazenda em excelente condição. Rafferty cuidara do rebanho e também tinha arranjado um comprador. O dinheiro da venda de parte das reses, a ajudaria a saldar mais umas contas atrasadas. — Alô – disse, distraída. Ninguém respondeu. A sensação estranha, misto de pavor e de apreensão, já tão familiar, deixou-a arrepiada. — Alô! – repetiu quase num grito, apertando o fone com força. — Michelle... Seu nome foi pronunciado quase num murmúrio, mas ela logo reconheceu a voz. — Não – pediu, engolindo em seco. — Não me telefone nunca mais. — Como pôde fazer isso comigo? — Deixe-me em paz! – gritou, batendo o telefone em seguida. Sentindo as pernas trêmulas, apoiou-se contra a escrivaninha e levou a mão à testa, respirando fundo. Estava apavorada.

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Rafferty seria capaz de uma loucura se soubesse que Roger insistia em importuná-la, ainda mais agora que conhecia toda a verdade. O silêncio inicial era o mesmo dos outros telefonemas e Michelle teve suas suspeitas confirmadas: todos tinham sido feitos por Roger. Com certeza, desesperado, tinha vindo para a Flórida só para vigiá-la. De que outra forma saberia que estava morando na casa de John? Só de pensar no que poderia acontecer, Michelle sentiu-se em pânico. Roger seria capaz de qualquer coisa para tê-la de volta, e era isso o que mais a preocupava. Já haviam se passado dois anos desde que obtivera o divórcio e até agora não conseguira livrar-se dele. Ocorreu-lhe, então, pedir proteção contra esse tipo de telefonema, mas Rafferty ia ter de saber, pois o telefone pertencia a ele, e Michelle não queria vê-lo envolvido nessa história. Detestaria ver o caso terminar em tragédia. Porém, seu dilema logo chegou ao fim. Rafferty entrou no escritório naquele instante e a olhou, intrigado. Edie devia ter lhe contado que ela recebera um telefonema, e fora o bastante para deixá-lo desconfiado. Pega de surpresa, Michelle nem teve tempo de se recompor do susto. Vendo-a tão pálida, Rafferty lançou um olhar significativo para o telefone e voltou a fitá-la. “ Por que você teve que chegar agora? Por quê?”, ela pensou desesperada. — Era ele, não era? – indagou Rafferty. Michelle levou uma das mãos ao pescoço sem dizer uma palavra. Seu silêncio foi suficiente para confirmar as suspeitas de Rafferty, que cruzou o escritório e segurou-a pelos ombros: — O que foi que ele disse? Fez alguma ameaça? Michelle balançou a cabeça negativamente. — Não, ele não me ameaçou. Fiquei nervosa porque não suporto ouvi-lo... – Temendo perder o autocontrole, deixou a frase suspensa no ar e virou o rosto para o lado. Rafferty abraçou-a com força, e com uma das mãos apanhou o telefone: — Qual é o número dele? Desesperada, Michelle tentou fazê-lo largar o aparelho: — Não, não; isso não vai adiantar nada. Aparentemente calmo, Rafferty segurou-lhe os braços imobilizando-a: — Esse covarde sente prazer em deixar você em pânico, mas precisa saber que estou aqui para protegê-la. Ainda se lembra do telefone dele ou não? Posso obtê-lo de outra forma, mas vai demorar um pouco. — O número não está na lista... — Tenho outros meios de consegui-lo – afirmou, deixando evidente que nada o demoveria. Michelle, temendo pelo pior, acabou se rendendo e disse-lhe o número. Conhecia-o suficiente para saber que moveria céus e terras para conseguir o que queria. Imediatamente Rafferty discou, e Michelle, bem próxima a ele, ouviu alguém atender do outro lado da linha. — Quero falar com Roger Beckman – disse naquele tom autoritário que ninguém ousava desobedecer. A resposta do interlocutor devia tê-lo desagradado, pois Michelle viu-o franzir as sobrancelhas: — Obrigado – disse e desligou. – Pensativo, voltou-se para ela: — A empregada me informou que ele viajou para o sul da França e não sabe quando volta. — Mentira! Acabei de falar com Roger e sei que não estava no exterior!

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John soltou-a e, contornando a mesa, sentou-se numa das cadeiras: — Suba e tome seu banho. Irei logo em seguida. Gelada, Michelle retraiu-se. Será que Rafferty não acreditava nela? Tinha certeza de que o telefonema era local. Claro que Rafferty não a levava a sério... Da mesma forma como não acreditara em sua versão do acidente provocado pelo Chevrolet azul. Cabisbaixa, foi tomar um banho.

Sozinho no escritório, Rafferty começou a raciocinar, e diversas cenas desagradáveis vieram-lhe à mente. Viu Michelle pálida e trêmula perto do telefone, os olhos muito arregalados; viu as cicatrizes deixadas em seu corpo; a relutância com que falava no ex-marido. Tinha certeza absoluta de que fora Roger quem lhe telefonara há pouco. Precisava encontrá-lo antes que tivesse chance de se aproximar de Michelle... O primeiro passo seria obter algumas informações. Lembrou-se, então, de chamar os dois rapazes encarregados de desvendar um assassinato havido na região no verão anterior. Porém, ambos haviam sido transferidos. Mas Andy Phelps, que também trabalhara no caso, ainda se encontrava a serviço da polícia da região. Depois de consultar a agenda, discou o número sem perda de tempo. O próprio policial atendeu. — Andy, aqui é John Rafferty. Poderia me ajudar numa investigação sigilosa? Andy tinha acesso a determinadas fontes de informação da polícia e tinha condição de ajudá-lo. — O que houve? Rafferty fez-lhe um breve relato do ocorrido, e Andy começou a pensar nas possibilidades: — Bem, Michelle diz que o sujeito voltou a telefonar mas a empregada dele garante que está na Europa, certo? — Isso mesmo. — Ela tem certeza que foi mesmo o ex-marido quem telefonou? — Tem, e diz que ele não estava no exterior. — Seria preciso provar que é ele mesmo o autor do telefonema para podermos acionar a polícia e, pelo visto, o sujeito tem um álibi. — Daria para você investigar se Roger foi mesmo para o exterior? Eu, em particular, não acredito que tenha ido, mas acho que ele inventou a tal viagem só para despistar seu paradeiro. — Você daria um excelente policial, Rafferty. — Pois é... Vi as marcas que deixou em Michelle e não quero vê-lo aproximar-se dela. A voz de Andy mudou depois de ouvir o que Rafferty dissera: — Ele é desses canalhas que gostam de bater em mulher, é? Acha que pode estar aqui na região? – perguntou, indignado. — Tenho quase certeza. Roger voltou a incomodar Michelle e, certamente, não foi para a França. — Está bem, vou começar a investigar. Sugiro que instale um gravador no telefone para que tenha uma prova, caso ele torne a ligar. — Ouça, há mais uma coisa – disse Rafferty, esfregando a mão na testa: — Michelle sofreu um acidente há algumas semanas e garante que o motorista de um Chevrolet azul jogou-a para fora da estrada. Não acreditei nela, nem o guarda e, na oficina, não encontraram nenhum vestígio de tinta azul na pintura; portanto, acreditei que ela tivesse mesmo se apavorado e acabou saindo da pista ao levar uma

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fechada. Mas agora... ela ainda afirma que o sujeito deu a volta e tornou a bater no nosso carro. — Pelo visto – disse Andy – , não foi tão simples quanto pensa. Ela disse mais alguma coisa? — Não, agora Michelle se recusa a tocar no assunto. — Você acha que pode ter sido o ex-marido? — Não sei... Talvez o acidente não tenha nada a ver com os telefonemas, mas não quero me arriscar. — Tudo bem, Rafferty. Deixe por minha conta. Não perca Michelle de vista e instale um gravador no telefone. Rafferty desligou e, perdido em pensamentos, praguejou. Ficar de olho nela não ia ser difícil; desde o acidente, Michelle nunca mais pôs os pés para fora do rancho; nem para ir ver sua casa. Só agora ele tinha entendido por quê. Se ao menos tivesse prestado mais atenção no local do acidente poderia ter seguido a pista do Chevrolet. Agora era tarde demais. Rafferty sentia-se impotente por saber que só lhe restava sentar e esperar que Andy surgisse com informações. Mesmo assim, não havia garantia nenhuma de que chegassem a descobrir algo. Mas, se Roger Beckman estava mesmo na região, faria de tudo para encontrá-lo e dar-lhe uma lição.

Michelle, de súbito, sentou-se na cama, o rosto pálido, os olhos arregalados. Ao seu lado, Rafferty mexeu-se e esticou o braço sem despertar. Tornando a deitar, aproximou-se dele em busca de calor, o coração disparado no peito. “Claro! Como não pensei nisso antes? Tinha medo de encarar a verdade... Foi ele... Foi Roger quem tentou me matar com aquele Chevrolet azul. A viagem para a França não passou de uma farsa: ele veio para a Flórida para me vigiar.” Lembrou-se da sensação estranha que sentira antes de sair da fazenda naquele dia; a mesma que sentia quando recebia os telefonemas anônimos. Por que não pensara nisso antes? Sabia até de que forma Roger tomara conhecimento de seu paradeiro e do relacionamento entre ela e Rafferty. Bitsy Summer, sua colega de faculdade, que haviam encontrado em Tampa, devia ter espalhado a notícia, que não tardara a chegar aos ouvidos dele. Roger com certeza devia ter planos de fazê-la voltar para ele e, ao ouvir a notícia, havia ficado furioso, o que o levara a fazer os telefonemas. Era terrível saber que Roger devia estar lá fora, à espreita, esperando para pegá-la de surpresa quando estivesse só. Raciocinando, percebeu que nada teria a fazer, não poderia chamar a polícia sem antes ter uma prova. Todas as conclusões a que chegara eram basicamente intuitivas, o que não constituía motivo para prender uma pessoa. Além do que, não tinha muita confiança na Justiça – os pais dele já o haviam livrado uma vez, e Roger agora herdara toda a fortuna. Com tanto dinheiro não seria difícil subornar as pessoas. Talvez tivesse até contratado alguém para segui-la, o que tornava a situação mais difícil, pois precisaria se precaver contra um desconhecido. Cansada de tanto pensar, acabou pegando no sono, mas a certeza de que Roger estava por perto impediu-a de dormir bem por vários dias, roubando-lhe até o apetite. E, apesar de estar sempre rodeada de gente, sentia-se incrivelmente só. A vontade de Michelle era conversar francamente com Rafferty, mas não se atrevia. Ele havia instalado um gravador no telefone mas não comentara nada a respeito. Ela, por sua vez, não lhe fizera perguntas. O relacionamento entre os dois andava um tanto abalado desde a última vez em que Roger telefonara, e agora Michelle sentia-se constrangida, sem coragem de aproximar-se. Só na cama as coisas continuavam bem. Às vezes, temia que John se cansasse dela mas ele ainda a desejava com a mesma paixão

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das primeiras vezes. Numa manhã ensolarada, Michelle não agüentou mais. Bastava de viver sob tensão; até um animal acuado reagiria numa situação como aquela. Não podia se acovardar. Maldito Roger! O que seria preciso fazer para que ele a esquecesse? Tinha de haver um jeito; não podia viver o resto de seus dias temendo todo e qualquer desconhecido, isolando-se na fazenda. Estava farta de viver como prisioneira, e a partir daquele dia tudo iria mudar. Ainda guardava consigo a ocorrência que lhe valera o divórcio; talvez ainda lhe servisse para algo. Era uma prova de que Roger a agredira. Caso ele tornasse a telefonar, a chamada seria gravada. A ocorrência e a gravação juntas formavam um bom material do qual poderia se valer em caso de necessidade. Mas os documentos do divórcio estavam guardados num cofre em sua fazenda, e Michelle queria-os ali perto, mais à mão. Mesmo a casa estando fechada, não seria seguro deixá-los lá. Se Roger por acaso chegasse a tomar posse daqueles papéis, não lhe restaria prova nenhuma das agressões de que fora vítima. Resoluta, disse a Edie que ia dar uma volta a cavalo e correu para o estábulo. O passeio através do pasto até sua propriedade sempre lhe fora muito agradável, mas dessa vez Michelle nem teve vontade de admirar a paisagem, de tão nervosa que estava. Roger a havia visto da última vez em que fora ver a casa e Michelle não conseguia esquecer o pânico que sentiu ao ver o Chevrolet azul abalroá-la na estrada. Enquanto descia do cavalo em frente à porta dos fundos, correu o olhar à sua volta, apreensiva, mas não notou nada de anormal. Sem perda de tempo, verificou todas as portas e janelas mas não encontrou nenhum sinal de que tivessem sido forçadas. Só então entrou, rumando direto para o cofre do escritório. Abrindo-o, apanhou o envelope pardo e, aliviada, constatou que todos os papéis e fotos estavam intactos. Escondendo-o dentro da camisa, tornou a trancar o cofre. A casa, que ficara fechada por muito tempo, tinha um cheiro característico de bolor, o que lhe provocou náuseas e uma tontura muito forte. Michelle correu para a porta dos fundos e, apoiando-se na parede, respirou um pouco de ar fresco, até que se sentiu melhor. Seus nervos estavam à flor da pele; não sabia quanto tempo ainda iria agüentar viver acuada. Mas sabia que cedo ou tarde Roger tornaria a telefonar e aí, sim, seu inferno terminaria. Até que isso acontecesse só lhe restava esperar. Um pouco mais calma, trancou a porta e cavalgou de volta para casa. Quando ela se aproximou do estábulo da fazenda de Rafferty, os vaqueiros todos a receberam aliviados: — Graças a Deus a senhorita voltou! – disse Nev Luther. — O patrão está quase maluco. Já fez a gente percorrer cada canto dessa fazenda para encontrá-la. — Mas por que tanta preocupação? – Michelle quis saber. Afinal, havia dito a Edie que sairia para uma volta a cavalo. — Não sei, senhorita – respondeu o empregado. Desmontando, Michelle foi direto para casa. — Por que Rafferty está tão nervoso? – perguntou a Edie na cozinha. — Nem me atrevi a perguntar... – a governanta comentou. — Não disse a ele que eu saí para um passeio? — Disse; e foi aí que ele ficou nervoso. Ocorreu-lhe, então, que Rafferty pudesse ter precisado de um papel do escritório e, não o encontrando, havia ficado furioso.

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Mas, verificando a mesa, constatou que tudo continuava exatamente como havia deixado. Tirando o envelope de dentro da camisa, guardou-o no cofre de Rafferty e só aí começou a respirar mais aliviada. Agora sim, sentia-se mais segura. Minutos depois, ouviu a caminhonete aproximando-se da casa em alta velocidade. Mais curiosa do que alarmada, foi ao encontro de Rafferty, que estacionou o veículo. Ele desceu com o rifle em punho. — Onde diabos você esteve? – esbravejou. — Fui dar uma volta a cavalo – respondeu, com os olhos fixos no rifle. Sem se deter, ele pegou-a pelo braço e levou-a consigo para dentro de casa. — Uma volta onde? Coloquei todos os meus empregados procurando você, vasculhamos toda essa fazenda. — Fui ver minha casa. – As maneiras de Rafferty começavam a enervá-la. Erguendo o rosto, olhou-o de modo arrogante. — Eu não sabia que precisava de sua permissão para ir à minha casa. — Pois saiba, benzinho, que precisa, sim – ele revidou, guardando a arma no armário. — Não quero que vá a parte alguma sem me pedir primeiro. — Não acredito! Quer dizer que sou prisioneira aqui? — Prisioneira coisa nenhuma! – gritou, lembrando-se do estado de pânico em que ficara quando não conseguira encontrá-la. Até que soubesse onde estava Roger Beckman e o que pretendia, a vontade de Rafferty era mantê-la fechada no quarto para que não corresse perigo. No entanto, vendo-a tão indignada, reconheceu ter agido mal. — Pensei que tivesse lhe acontecido algo de mal – disse num tom mais contido. — E por isso saiu vasculhando tudo à procura de algo em que atirar? – perguntou, incrédula. — Não. Vasculhei tudo procurando você! E levei o rifle para o caso de estar em perigo. Michelle, enfurecida, fechou os punhos. Rafferty não acreditara em sua versão do acidente quando realmente correra perigo. Mas agora, no entanto, temia que tivesse caído do cavalo e se machucado. — Que tipo de perigo eu poderia estar correndo? Garanto que nenhuma cobra nessa fazenda ousaria me morder sem antes pedir sua permissão! Arrependido, Rafferty ergueu uma das mãos e tocou-lhe os cabelos com carinho, colocando uma mecha atrás da orelha. Ela, entretanto, continuava a encará-lo indignada. Ele gostava muito mais de vê-la assim, alterada, do que quando insistia em manter-se apática, distante, como vinha ocorrendo ultimamente. — Você fica linda quando está brava – comentou. Por um instante, Michelle o fitou como se estivesse prestes a agredi-lo. Então, murmurou: — Ora, seu... tolo! – E começou a rir. Rafferty também não conteve um largo sorriso; nunca fora insultado com tanto charme, tanta graça. Antes que parasse de sorrir, puxou-a pela cintura e cobriu-lhe os lábios num beijo. — Fiquei quase maluco quando soube que você tinha saído. — Ficou tão apreensivo assim? — Não estou brincando: quero que me conte exatamente onde vai toda vez que sair daqui; e nunca mais vá sozinha à sua casa. Ela está vazia há uns tempos,e algum vagabundo pode estar rondando por lá. — O que é que um vagabundo faria aqui neste fim de mundo?

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— O mesmo que fazem em qualquer lugar. Os crimes não ocorrem só nas cidades. Por favor, sim? Pelo meu próprio sossego... Era tão raro vê-lo pedir algo que Michelle ficou pasma, fitando-o. Mas ficara evidente que, mesmo tendo pedido por favor, ele não desejava ser contrariado. Michelle, porém, dava-lhe razão: não custava nada redobrar o cuidado. Só que não suportava vê-lo falar de modo tão autoritário, ordenando-lhe que pedisse permissão para sair. Enfim, sem ter como argumentar, acabou concordando.

Michelle acreditava que a tontura e a náusea que sentira deviam ser sintomas de alguma virose, pois haviam se repetido na manhã seguinte. Por causa disso passava quase o tempo todo na cama, enjoada demais para se preocupar com alguma coisa. Cada vez que levantava a cabeça, era acometida de ânsias terríveis. No dia seguinte parecia melhor e até conseguia comer alimentos leves. Rafferty, com muito carinho, havia lhe dito: — Se amanhã você já não estiver boa para cavalgar comigo, vou levá-la a um médico. — Foi só uma virose, mas já passou. O médico não vai descobrir nada. — Por que não toma algum remédio para acabar com o enjôo? — Não gosto de remédios e já estou melhor. E se você pegar a doença? — Aí você cuida de mim... Michelle, no outro dia, estava quase boa e, apesar de não ter disposição para sair a cavalo, passou a manhã toda no escritório, cuidando da contabilidade. Seu trabalho ficaria muito mais fácil se tivessem um programa de contabilidade para o micro mas Michelle esquecera-se de perguntar a John sobre isso. Roger ainda não tornara a ligar. — Droga! Sei que ele está por perto, mas o que fazer para que apareça? Jamais vou voltar a viver em paz enquanto tiver medo de sair da fazenda sozinha – ela disse para si. — E não penso ficar aqui para sempre! Talvez ali estivesse a resposta para sua pergunta. Roger devia estar vigiando o rancho; o incidente com o Chevrolet azul não podia ser apenas um acaso, como pensara a princípio julgando que o motorista estivesse bêbado. Tinha que haver um modo de arrancá-lo do esconderijo... Quando Rafferty chegou para o almoço, encontrou-a maquilada, com uma excelente aparência, pronta para sair. — Pensei em ir à cidade fazer uma comprinhas – disse casualmente. — Você precisa de alguma coisa? Ele estranhou. Desde o acidente Michelle não se importava em sair da fazenda. — Que comprinhas? – quis saber. Receava vê-la ir à cidade sozinha. — Onde pretende ir exatamente? — Preciso de xampu, condicionador, perfumarias em geral. — Está bem – concordou, impaciente. — A que horas pretende voltar? — Você devia ter sido guarda de prisão – ela comentou, irônica. — Diga, por favor... — Bem, vou só a farmácia. O mais breve possível, tomo um lanche por lá. Rafferty lançou-lhe um olhar sério. Depois, num gesto nervoso, correu os dedos pelos cabelos e disse apenas:

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— Tome cuidado. — Não se preocupe – brincou Michelle. — Se eu amassar o carro, pago o conserto com o dinheiro da venda do gado. Vendo-a sair, ele se perguntou baixinho: — O que eu faço agora? Sigo ou não sigo Michelle? Trancando-se no escritório, telefonou para Andy Phelps em busca de alguma novidade. A única descoberta do policial fora que ninguém com o nome de Roger Beckman havia viajado direto para a França no último mês mas, talvez, ele poderia ter pegado um vôo indireto. Verificar as companhias levava tempo. — Vou fazer o que posso, Rafferty. — Obrigado, me ligue assim que tiver novidade. — Claro, não se preocupe. A necessidade de fazer algo o atormentava. Pensou em contar a Michelle sobre suas suspeitas e o porquê de não querer que ela saísse sozinha, mas resolveu esperar mais um pouco; não queria deixá-la mais apreensiva sem motivos.

Chegando à cidade, Michelle fez logo algumas compras, sempre tomando cuidado quando um carro se aproximava demais. Mas nada de anormal aconteceu: nem sinal do Chevrolet azul. A todo instante dizia a si mesma que não era paranóica e que tudo ocorrera de fato, e não apenas na sua imaginação. Roger estava por perto, só precisava encontrá-lo. Mas faltava-lhe coragem e, ao chegar de volta à fazenda, nervosa, sentia náuseas terríveis, e teve tempo apenas de subir a escada e trancar-se no banheiro. Nos dois dias seguintes, saiu novamente. Nada aconteceu. Suas saídas só serviam para deixar Rafferty quase maluco. Depois de muito raciocinar sobre tudo o que estava acontecendo, uma idéia lhe ocorreu: será que Roger vigiava a estradinha que levava à fazenda dela, a mesma em que ocorrera o acidente? “No dia em que fui pegar os documentos lá ele poderia ainda não ter chegado... Bem, para ter certeza preciso verificar...”

Capítulo 11

A última coisa que Michelle desejava era ver Roger. No entanto, lá estava ela tentando encontrá-lo, mesmo desconfiando que o ex-marido estivesse querendo matá-la. Mas era exatamente por isso que o procurava. Não queria morrer mas estava farta de viver atormentada. Precisava pôr um fim a tudo aquilo. Sua maior vontade era voltar a levar uma vida normal ao lado de Rafferty, mas nunca se permitiu pensar que aquele relacionamento seria duradouro. Principalmente de uns tempos para cá quando ele parecia mais nervoso que nunca e nada do que dissesse o agradava. A não ser, claro, na cama, onde nada os atingia. Na manhã em que planejava ir ao rancho, estava tão nervosa que nem consegui comer. Andou de um lado para o outro à espera de

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que John pegasse a caminhonete e saísse para o pasto. Não queria de modo algum que ele soubesse de sua ida à casa; John fazia perguntas demais, às quais era difícil escapar. Além do que, só pretendia ficar meia hora, o suficiente para servir de isca e voltar para o rancho. Procurando acalmar-se,ligou o rádio do carro e admirou-se ao ouvir que o terceiro furacão daquele verão se formava perto de Cuba. Na verdade, nem percebera que a entrada do outono já ocorrera pois o tempo continuava quente e úmido. Embora olhasse com cuidado para ver se não encontrava algum carro escondido na estrada, não conseguiu notar nada de anormal. A manhã estava clara e tranqüila, e não havia ninguém à vista. Frustrada, começou a voltar para a fazenda, pois não pretendia nada mais do que servir de isca para o ex-marido; caso o visse fugiria imediatamente. De repente, sentiu náuseas muito fortes, que obrigaram-na a parar o carro e abrir a porta. Assim que os espasmos passaram, apoiou a cabeça no volante, fraca e transpirando. Aquilo não podia ser uma virose. Trêmula, continuou ali por algum tempo, sem se importar com nada. Uma brisa fresca soprou-lhe os cabelos, e foi então que veiolhe a certeza: estava grávida. Erguendo a cabeça, recostou-se no banco do carro e sorriu. Um filho de Rafferty crescia dentro de si e, apesar de sentir-se mal, ficou imensamente feliz, acariciando o ventre com carinho. Sabia quantos problemas ia ter de enfrentar por causa da gravidez, mas aquele instante nada perturbaria a felicidade que sentia. — Um bebê – murmurou, já imaginando-o rechonchudo, com olhos e cabelos negros como os do pai. No entanto, voltando à realidade, percebeu que não poderia continuar parada ali. Nem chegara a encostar direito no acostamento. Na esperança de que o enjôo não voltasse, ligou o motor e continuou se dirigindo para a fazenda com o máximo de cuidado. Lá chegando, melhorou bastante após beber um chá. Só então os problemas começaram a preocupá-la. O primeiro, e maior de todos, era dar a notícia a Rafferty. Não sabia como reagiria, mas devia se preparar para o pior, pois poderia não ficar tão feliz quanto ela. Temia que ele já estivesse meio cansado dela e, nesse caso, veria o bebê como uma artimanha feita apenas para prendê-lo. Deitada na cama, tentava pôr os pensamentos e as emoções em ordem. Rafferty tinha o direito de saber sobre o filho e, quer gostasse ou não, também era responsável pelo bebê. Por outro lado, não poderia usar a gravidez para prendê-lo, caso ele não a quisesse mais. Só de pensar em tornar a viver sem Rafferty, sentiu-se em pânico. Desde o primeiro dia em que ficaram juntos, vinha se preparando psicologicamente para o dia em que se separassem. Mas e se ele achasse que deviam se casar por causa da criança? Ele era um homem responsável e seria capaz de fazer este tipo de sacrifício pelo bem do filho. Nesse caso, caberia a ela contentar-se ou não com a vida que ele lhe ofereceria. Michelle acabou chorando. Não conseguia chegar a uma conclusão: suas emoções estavam descontroladas, indo da alegria à depressão em questão se minutos. Temia pelo que estava por acontecer e sabia que seria inútil fazer planos. Aquele era um assunto para ser discutido a dois. Naquele instante, ouviu alguém aproximar-se da casa a cavalo, seguindo-se o ruído de vozes alteradas, mas não se incomodou. Os vaqueiros iam e vinham o dia todo. Mas, segundos depois, Edie a procurava no quarto:

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— Michelle? Alguém se machucou, os rapazes estão trazendo e... Meus Deus, é o patrão! Desesperada, Michelle pulou da cama e desceu a escada correndo. Mais tarde, só se lembraria de ter se juntado a Edie na porta da casa enquanto Nev e outro rapaz ajudavam Rafferty a descer do cavalo. Ele cobria o rosto com uma toalha e estava com um dos braços todo ensangüentado. Michelle levou as mãos à boca e abafou um grito de horror. Aproximou-se de Rafferty, que a abraçou com o braço sadio, apertando-a contra si. — Não se preocupe, eu estou bem – disse. — Não foi nada grave. — Seria melhor procurar um médico, patrão – advertiu Nev. — Às vezes estes cortes precisam de pontos. — Pode deixar. Volte para junto dos rapazes e tome conta de tudo. Dito isso, lançou um olhar direto e significativo para Nev por sobre os ombros de Michelle e, embora um de seus olhos estivesse coberto pela toalha, o empregado logo entendeu a mensagem. Depois de olhar rapidamente para Michelle, assentiu com a cabeça e afastou-se. — O que aconteceu? – ela quis saber, ajudando-o a entrar na cozinha. O braço dele pesava sobre seus ombros, o que deixava evidente que o machucado era grave. — Perdi o controle da caminhonete – explicou, soltando o corpo numa das cadeiras. — E entrei numa árvore. Bati o rosto no volante. Michelle segurou a tolha e sentiu-o estremecer de dor mesmo sob seu toque delicado. Erguendo-a, viu estilhaços de vidro brilhando entre os cabelos pretos. — Quero dar uma olhada... Mordendo o lábio para não se descontrolar, Michelle constatou que o olho esquerdo já havia inchado bastante, e havia um corte bem profundo perto da boca. O nariz e parte do rosto estavam já arroxeados. Um outro corte na testa sangrava bastante, e diversos outros menores cobriam-lhe o pescoço. Respirando fundo, procurou falar do modo mais natural possível: — Edie, ponha um pouco de gelo sobre o olho dele; talvez isso ajude a conter o inchaço. Vou apanhar minha bolsa e as chaves do carro. — Espere – ele pediu. — Quero me limpar um pouco. — Não, acho melhor... — Não estou tão ferido assim – interrompeu. — Me ajude a tirar a camisa. Michelle atendeu-lhe o pedido. Aí viu o enorme vergão à altura das costelas. Dali a algumas horas, o inchaço o impediria de mover-se. Rafferty foi até a pia e lavou o sangue que lhe cobria os braços e as mãos enquanto Michelle, com um pano úmido, limpava-lhe o peito e o pescoço. Michelle subiu para pegar uma camisa. Edie embrulhou bastante gelo numa toalha limpa e cuidou-lhe do olho. Depois que ele se vestiu, Michelle, bastante tensa, levou-o ao pronto-socorro, onde o médico cuidou dos ferimentos e deu pontos nos cortes maiores. Os outros, menores, receberam apenas curativos. Em seguida, o médico passou um bom tempo examinando o inchaço do olho esquerdo. — Acho melhor você ir para um hospital em Tampa. Lá um especialista dará uma olhada nisso. — Não tenho muito tempo a perder – Rafferty resmungou sentando-se na maca.

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— É a sua vista – advertiu o médico. — A pancada foi forte demais. — Ele vai ao hospital, doutor – garantiu Michelle. Rafferty ficou fascinado com tanta determinação. Mesmo após a tensão pela qual passara, Michelle lhe pareceu muito segura. — Está bem – ele disse, aceitando o conselho do médico. Rafferty viu que a viagem a Tampa era bastante providencial. Poderia insistir para que ela ficasse no hospital com ele, o que a manteria fora de perigo até que Andy Phelps descobrisse quem havia atirado no pára-brisa da caminhonete. O que a princípio não passava de suspeita agora era a realidade: as ameaças de Beckman haviam ido muito além de simples telefonema. Por sorte Michelle não se encontrava com ele, como de costume. No começo, pensara que a bala fosse mesmo dirigida a ele, mas agora já não tinha tanta certeza. O tiro atingira o pára-brisa muito para a direita. “Droga!”, Rafferty pensou. “Se ao menos não tivesse perdido o controle do carro quando o vidro estilhaçou...” Com o susto, ele havia virado o volante instintivamente, e o veículo tinha ido bater contra uma árvore. O impacto fora tão forte que o deixara desacordado por alguns instantes. Ao recuperar a consciência, constatara ser tarde demais para mandar os rapazes à procura do agressor. Mas Andy Phelps cuidaria de tudo. — Vou providenciar uma ambulância – disse o médico já saindo da sala. — Não, nada de ambulância. Michelle pode me levar até lá. — Mas, Sr. Rafferty, o senhor precisa ir deitado, sofreu uma contusão muito forte. E, no caso de sua vista ter sido atingida, não poderá se curvar, virar a cabeça nem fazer esforço. Raciocinando depressa, Rafferty insistiu: — Só se Michelle for junto comigo. — Eu vou seguindo bem atrás da ambulância – ela disse. — Ou melhor, primeiro volto para casa e apanho umas roupas para nós. — Nada disso. Doutor, me dê uma hora, sim? Pedirei que me mandem algumas roupas e levem o carro de volta para a fazenda. – E voltando-se para Michelle: — Ou você me acompanha ou eu não vou. Intrigada, Michelle o observou. Rafferty havia concordado em ir ao hospital com muita facilidade. E de repente impunha condições. Era claro que pretendia ir com ele. Porém Rafferty não deu a Michelle tempo para conjeturas. Sem esperar pela resposta, começou a instruí-la sobre o que seria preciso fazer. Queria que Nev trouxesse umas roupas e alguns objetos que precisaria e viesse com mais alguém que pudesse dirigir o carro de volta. Sem discutir, Michelle acatou as instruções e saiu para telefonar. Só então Rafferty dirigiu-se ao médico: — Doutor, há um outro telefone que eu possa usar? — Aqui, não, e o senhor não deve ficar andando por aí. Se é tão urgente, deixe que sua esposa faça isso. — Não quero que ela saiba do telefonema – explicou sem se importar em dizer-lhe que não eram casados. — Por favor, ligue para a delegacia. Diga a Andy Phelps onde estou e que preciso falar com ele. Não fale com ninguém mais a não ser Phelps. O médico observou-o, pasmo. Qualquer um depois de acidente tão grave teria ficado afetado, mas John Rafferty continuava alerta de dono da situação. — Tudo bem, mas deite-se; está se arriscando a perder uma vista. Vou fazer o que me pediu. Perder uma vista não era nada se comparado a perder Michelle.

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— Neste caso, já será tarde, doutor. O ferimento já foi feito. — Não necessariamente. O exame é apenas uma precaução por causa da batida muito forte. Impaciente, Rafferty obedeceu-o. Sentia uma dor de cabeça muito forte; o medo de perder Michelle o estava apavorando. Deitado, reviu mentalmente cada detalhe do acidente. Será que segundos antes da bala quebrar o vidro ele tinha visto algo reluzir a distância? Será que Beckman estava à pé? Não, a fazenda era grande demais. A cavalo também seria improvável. Na certa viera num carro, que poderia ter sido alugado. Caso fosse ele mesmo, que direção teria tomado? Por que não o vira aproximar-se? Andy Phelps chegou minutos antes de Nev. Dissimulando, o policial fez diversos comentários engraçados sobre o acidente, dizendo que Rafferty tinha estragado seu rosto tão lindo, e muitas outras brincadeiras. Depois, esperou até que Rafferty desse algumas ordens a Nev, que fez poucas perguntas. — Por que não vai dar uma olhada nas coisas que Nev trouxe? – Rafferty sugeriu a Michelle. — Se quiser algo mais, ele pode levar para Tampa. Desconfiada, Michelle olhou para o policial e depois para Rafferty, saindo da sala em seguida junto com Nev. Era evidente que ele não a queria por perto enquanto falava com Andy Phelps. Muito estranho... Primeiro, aceitara rápido demais a idéia de ir para Tampa e, em seguida, fizera questão de que o acompanhasse na ambulância. Ele nunca agia assim. Tinha certeza de que Andy Phelps não viera apenas para fazer-lhe uma visita. Muita coisa não fazia sentido. O próprio acidente era uma delas. Desde garoto Rafferty costumava dirigir por terrenos acidentados, além do que, era excelente motorista, sempre atento e de reflexos muito rápidos. Era estranho que tivesse perdido o controle do carro e batido numa árvore... Roger! Como fora tola! Nunca o considerara perigoso para Rafferty, mas devia ter imaginado que desviaria seu ódio para o homem que julgava tê-la roubado de si. Enquanto tentara localizá-lo e atraí-lo, ele atacara Rafferty. Michelle fechou os punhos. Covarde como era, o ex-marido não se arriscaria a enfrentá-lo numa luta. Portanto, partira para um atentado. Olhando para as maletas que Nev havia trazido, levou uma das mãos à testa e disse: — Estou um pouco enjoada, Nev. Perdão, mas preciso ir ao banheiro. Preocupado, ele olhou à volta: — Quer que eu chame uma enfermeira? A senhorita me parece pálida. — Não, não, tudo bem – mentiu, sorrindo com timidez. — Não consigo ver sangue. E, dando uns tapinhas no ombro de Nev, dirigiu-se ao banheiro, mas não entrou. Esperou até que Nev se sentasse e se distraísse e voltou depressa ao local onde deixara Rafferty com o policial. Entreabriu a porta para poder escutar a conversa: — ... acho que a bala veio de uma pequena elevação à minha esquerda – dizia Rafferty. — Nev leva você ao local para examiná-lo. — Você acha que existe chance de a encontrarmos no estofamento? — Não sei... — Bem, mas talvez possa encontrar o cartucho. Não consegui novidade nenhuma junto às linhas aéreas, mas há uma outra pista que quero checar. Se ele chegou de avião, só pode ter descido em Tampa, e alugado o carro no aeroporto. Se houver alguém parecido com a descrição que temos dele, que esteja usando um nome falso, pegaremos a chapa do carro. — Bem, sabemos que é um Chevrolet azul, acho que isso já ajuda. — Você não imagina quantos Chevrolet azuis existem nesse Estado. Foi ótima idéia Michelle já estar aqui. Terei mais uns dias

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para localizar o tal sujeito. Se quiser, posso destacar um amigo para vigiar o hospital. — Acho que não é preciso. Só quero que explique a situação ao médico que me atendeu e peça a ele para esconder minha ficha. — Pode deixar, eu cuido disso... Michelle não precisou ouvir mais nada. Em silêncio, afastou-se da porta e voltou a juntar-se a Nev que lia uma revista. — Está se sentindo melhor? – ele perguntou, gentil. — Sim, estou melhor... – E sentando-se ao lado de Nev, muito tensa, começou a raciocinar sobre tudo o que ouvira. Rafferty tinha pedido à polícia que procurasse o Chevrolet azul. E checava os aeroportos... Isso explicava a insistência dele em querer saber exatamente onde ia e a que horas iria retornar. Rafferty estava fazendo de tudo para protegê-la. “ E eu tentando servir de isca para aquele maníaco...”, lamentou-se em pensamentos. Só agora dava-se conta de que Rafferty fora à fazenda para falar com ela, tomara para si o dever de realmente ajudá-la: encarregara-se de cuidar de sua propriedade até que voltasse a dar lucro, lhe dera carinho, conforto e se preocupava de fato com seu bemestar. Andy Phelps se aproximou de onde Michelle estava sentada. Depois de alguns minutos de uma conversa descontraída percebeu que o policial queria ficar a sós com Nev. Michelle levantou-se e foi ficar com Rafferty. A ambulância estava pronta para partir. Quando a porta da sala se abriu, ele virou a cabeça até que pudesse vê-la só com o olho direito: — Tudo bem? Edie mandou as coisas certas? Michelle precisou se conter ao vê-lo tão pálido e machucado. Naquele instante teve vontade de destruir Roger a qualquer custo. Sempre se dominando, caminhou até a maca e segurou-lhe uma das mãos: — O importante é que você esteja bem; o resto passa. — Não se preocupe, tudo vai acabar bem. Rafferty parecia bastante confiante. Michelle o beijou de leve nos lábios, enquanto num gesto que nem ela percebeu, acariciou o próprio ventre.

Sentada ao lado dele na ambulância, iniciavam a viagem a Tampa. Rafferty sonolento, permaneceu calado durante a viagem. Só ao chegarem ao hospital foi que ele abriu novamente os olhos. Preocupava-se com o cansaço e o sofrimento de Michelle e maldisse a hora que se machucara no acidente. Devia tê-la mandado para um lugar mais seguro tão logo percebera que Roger Beckman a estava ameaçando. Mas numa atitude egoísta, resolvera mantê-la por perto. Agora, no entanto, fazia-a sofrer ao vê-lo ferido. “ Quando tudo estiver resolvido vou me casar com ela”, prometeu a si mesmo, em silêncio. Assim que a ambulância estacionou, diversas enfermeiras transportaram a maca para o centro médico, e Michelle não o viu mais. Ansiosa, perambulou pelos corredores do hospital até que uma fraqueza muito intensa a obrigou a ir à lanchonete, onde pediu uma torradas. Depois de comê-las, sentiu-se melhor. Rafferty ainda ficaria internado uns dias. Como conseguiria esconder a gravidez quando passariam juntos o tempo todo? Muito atento e perspicaz, nenhum detalhe lhe escapava, não demoraria a desconfiar da misteriosa virose e relacionar os fatos.

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Caso lhe desse a notícia, qual seria sua reação? Sentindo o coração batendo acelerado, fechou os olhos e concluiu que, como pai, Rafferty tinha o direito de saber. Mas temia que ele se precipitasse e tivesse algum gesto extremo quando soubesse que, além dela, seu filho também fora ameaçado. Respirando fundo, forçou-se a raciocinar com calma. Estariam a salvo ali no hospital, e portanto ele não ia querer voltar para a fazenda tão cedo, dando chance a Phelps de descobrir mais algum dado importante. “ E se o policial não tiver encontrado Roger quando chegar a hora de deixarmos o hospital?” Michelle não suportava mais viver fugindo. Rafferty a fizera renascer, protegendo-a, desejando-a, fazendo-a sentir-se mulher. E Roger poderia matá-lo! Só havia uma forma de livrar-se de todos os pesadelos e medos que a atormentavam: enfrentar o ex-marido.

Precisava conquistar sua felicidade a qualquer preço, pelo bebê, por Rafferty e por si mesma. Jamais se sentira tão realizada como agora e não ia permitir que Roger Beckman a intimidasse. Finalmente, pagou a conta da lanchonete e foi para o quarto esperar por Rafferty, que só foi trazido de volta dos exames trinta minutos depois. Assim que as enfermeiras saíram, ele disse a Michelle: — Se mais alguém cruzar aquela porta para vir me fazer algo, prometo atirá-lo pela janela. Então, ajeitou-se melhor na cama, apoiando-se nos travesseiros. — Você foi examinado pelo especialista? – ela perguntou, ignorando-lhe o mau humor. — Por três! Venha cá. A maneira como falou e o tom rouco da voz eram-lhe bastante significativos. — John Patrick Rafferty, isso não é hora para... — Para quê? — Não devia se movimentar. — Não vou me movimentar, quero apenas um beijo – disse sorrindo, apesar da dor que sentia no rosto. — O espírito quer, mas o corpo está fraco... Curvando-se, Michelle beijou-o com carinho e, quando quis erguer-se, ele segurou-lhe os cabelos e retribuiu-lhe o beijo com paixão,contornando-lhe os lábios macios com a língua. Então, suspirando, deixou-a erguer-se mas a manteve junto de si, abraçando-lhe a cintura: — O que ficou fazendo enquanto me viravam do avesso? — Ah, uma porção de coisas – disse num tom brincalhão. — Fiquei andando por aí e depois fui à lanchonete comer algumas torradas. Incrível como Michelle podia ser a um só tempo tão simples e tão sofisticada. Puxando pela memória, John não lembrou-se de têla visto reclamar de dirigir a velha caminhonete ao invés do Porsche e, agora, parecia satisfeita com a refeição simples da lanchonete. — É melhor pedirmos uma cama extra para você, não acha? A menos que queria vir dormir aqui comigo. — Não creio que as enfermeiras iriam deixar. — A porta tem trinco? Michelle não conteve um riso divertido: — Não. Não adianta, você está sem sorte. — Precisamos conversar – ele falou, já bastante sério. — Você... iria ficar chateada se eu perdesse essa vista?

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— Chateada? Claro que sim... – E acariciando-lhe os cabelos com cuidado, continuou: — muito. Não suportaria ver o homem que eu amo sofrendo... Ali estava a confissão. Não tinha a intenção de dizer-lhe sobre seus sentimentos, mas as palavras escaparam-lhe antes que pudesse detê-las. Rafferty encarou-a, absolutamente impassivo. Michelle fitou-o com um riso tímido nos lábios, sem saber o que dizer. — Repita. Respirando fundo, ela atendeu-lhe o pedido: — Eu te amo. E não estou dizendo isto apenas para forçá-lo a ficar comigo, não tenho intenção nenhuma de... Rafferty interrompeu-a, pousando-lhe os dedos sobre os lábios e confessou: — Puxa, já era tempo de você me amar... Capítulo 12 — Teve muita sorte, Sr. Rafferty – disse o Dr. Norris, olhando por sobre os óculos. — Apesar da pancada, não vai perder a vista. Aliviada, Michelle apertou a mão dele com carinho. — Quer dizer que passei quatro dias aqui só porque estava com um olho roxo? – brincou Rafferty. — Considere-os como férias forçadas – disse o médico. — Pois bem, as férias acabaram e vou logo pedir minha contas. — Aconselho-o a não se exceder nos primeiros dias. Lembre-se de que ainda está com alguns pontos, teve uma fratura no rosto e sofreu uma grave concussão. Faça repouso. — Pode deixar – avisou Michelle, olhando de modo significativo para ele, que na certa iria querer cavalgar quando chegasse à fazenda. — Eu cuido dele. Assim que ficaram a sós, Rafferty levou as mãos à nuca e observou Michelle. O inchaço do rosto havia diminuído bastante, permitindo-lhe abrir um pouco o olho esquerdo: — Foram quatro dias longos – comentou. — Assim que chegamos em casa, vou levá-la direto para a cama. — Isso é o que você pensa, mocinho... Você ouviu o médico: repouso! A cada dia, sentia-se mais atraída por ele. E agora, com a gravidez, sua sensibilidade aumentara bastante tornando-a ainda mais vulnerável. Seus mamilos se enrijeceram clamando pelo toque dos lábios e das mãos de John. Depois de muito pensar, resolvera não lhe contar sobre o bebê por enquanto. Pelo menos não enquanto ele não se recuperasse. Nos últimos dias, fez de tudo para disfarçar seus enjôos. Para sua felicidade, John ficara absolutamente encantado ao saber que o amava mas, por sua vez, não comentou o que sentia por ela. Depois da revelação, John beijou-a com mais paixão do que nunca, pondo fim a qualquer dúvida que ainda lhe restasse.

Naquela noite, a última que passariam no hospital, no escuro do quarto ele a chamou: — Michelle? A voz soara baixa, e Rafferty não se mexera. Apreensiva, ela se apoiou num cotovelo para fitá-lo. Como já se fosse tarde, ambos já estavam deitados. — Sim?

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— Eu te amo. O corpo dela estremeceu, e seus olhos se encheram de lágrimas. Lágrimas de felicidade: — E só agora me diz isso? – Michelle perguntou sorrindo. — Antes tarde do que nunca... – E num fio de voz, pois haviam lhe dado um sedativo, concluiu: — Te amo muito... Na manhã seguinte, Michelle telefonou para Nev e pediu-lhe que fosse buscá-los. — Por acaso já soube se Phelps já encontrou alguma pista de Roger? – ela perguntou. Rafferty, que se vestia, ao ouvi-la voltou-se para encará-la, bastante intrigado. Depois de abotoar a calça, contornou a cama e aproximou-se, encarando-a à espera de uma explicação. — Escutei a conversa por acaso – ela afirmou. — Eu já tinha relacionado os telefonemas com o acidente que sofri, mas como foi que você pensou no mesmo? — Intuição. Depois do último telefonema, quis saber onde Roger estava. Havia muitas pistas, mas não levavam a nada. Quanto mais difícil era encontrá-lo, mais eu suspeitava. — Mas no começo você não acreditou em minha versão do acidente com o Chevrolet. — Não, sinto muito. Era difícil para mim aceitar o fato de que estavam tentando machucá-la. Infelizmente demorei para perceber que você sentia medo... — Medo, não: pavor! – confessou olhando pela janela. — Phelps já deu notícias? — Não; ele só me telefonaria se tivesse encontrado Beckman. — Michelle estremeceu: — Ele tentou matá-lo. Eu sabia, devia ter feito alguma coisa. — O quê, por exemplo? – Rafferty indagou. — Se você estivesse comigo naquele dia, a bala teria acertado você em vez de só estilhaçar o pára-brisa. — O ciúme o deixou desequilibrado. Deve ter ficado possesso quando soube que me mudei para sua casa. Nos dois primeiros telefonemas ele não disse nada e, com certeza, queria apenas certificar-se. Roger nunca suportou que eu olhasse para outro homem e, ao saber que nós... Um acesso de choro impediu-a de continuar, e Rafferty abraçou-a: — Não consigo entender como foi que ele soube – comentou, curioso. — Aposto que foi por Bitsy Summer. — Ele deve estar tão alucinado que pensa ter encontrado “o outro” que sempre a acusara de amar. — Encontrou – ela confirmou sorrindo. — Como assim? Nervosa, Michelle afastou o cabelo do rosto e deu alguns passos em direção à janela: — Eu... sempre te amei em silêncio. E Roger percebia. Rafferty aproximou-se dela, ergueu-lhe o queixo e forçou-a a encará-lo: — Não posso acreditar no que estou ouvindo! Então, por que agia como se me odiasse? — Eu tinha que me proteger de você – confessou. — Havia dezenas de garotas aos seus pés, mais bonitas e experientes. Eu tinha apenas dezoito anos, e você me assustava; acreditava que jamais se interessaria por mim. — Mas eu me interessei. Só que você sempre demonstrou não querer nada comigo Michelle. Nunca desejei outra garota como a você. Construí a minha casa na fazenda por sua causa, construí a piscina pensando em você. Quando se casou com outro quase enlouqueci.

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— Me casei com Roger porque pensava que você jamais seria meu. — Pois se enganou, meu bem. E, curvando-se, beijou-a bem devagar. — Seu rosto... – ela murmurou. — Está doendo um pouco, mas eu agüento. Diz de novo que me ama – pediu. — Eu te amo. Te amo, te amo... Tomado pelo desejo, John puxou-a contra si, deixando evidente o quanto a queria mas, o temor de ser surpreendido por uma das enfermeiras o fez controlar-se. — Acho bom que Nev não demore a chegar. Já na fazenda, na manhã seguinte, Michelle saiu do quarto com as roupas na mão. Preferia vestir-se fora para não correr o risco de acordá-lo, embora Rafferty houvesse dormido bem a noite toda. Tinha que encontrar Roger antes que Rafferty, teimoso, resolvesse desobedecer as ordens do médico e começasse com suas atividades. Era muito arriscado, não havia tempo a perder. Na noite anterior ele falara com Phelps ao telefone, mas a única novidade descoberta tinha siso que um Chevrolet azul fora alugado por um homem que correspondia à descrição de Roger, sob o nome de Edward Walsh. Michelle arrepiou-se ao ouvir o nome e contou-lhe que Walsh era o primeiro sobrenome de Roger. Andy ficou pasmo; era uma pista importante. Michelle não daria a Roger mais nenhuma oportunidade de machucar Rafferty. Durante a noite, deitada no escuro, idealizara um plano infalível. Não sabendo onde encontrar Roger tudo o que precisava era jogar a isca e atraí-lo para sua armadilha. O único problema é que também estaria na mesma armadilha com ele. Depois de pronta tomou um lanche leve e deixou um bilhete para Rafferty sobre a mesa da cozinha. O Mercedes pegou na primeira partida e, acelerando o mínimo necessário, Michelle seguiu pela passagem sem acender os faróis, para não acordar os empregados. Chegando em sua fazenda, encontrou a casa mais abandonada que nunca. Destrancando a porta da frente, entrou na sala apurando os ouvidos para detectar qualquer barulho. Dali a meia hora, o dia começaria a clarear; restava-lhe pouco tempo para atrair Roger à sua armadilha antes que Edie acordasse e visse o bilhete. Trêmula, acendeu as luzes da sala e em seguida todas da parte de baixo da casa. Na cozinha, aproximando-se do vitrô, puxou bem as cortinas para que as luzes pudessem ser vistas do lado de fora, de acordo com o que planejara. Depois, fez o mesmo na pequena lavanderia e, subindo, chegou ao seu quarto, onde acendeu o abajur. Com a casa toda iluminada, sentou-se no último degrau da escada e aguardou. Os segundos passavam depressa, transformando-se em minutos e, no exato instante em que os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, a porta abriu-se. Michelle não ouvira nenhum ruído de carro. Mas, mesmo sabendo que ele era perigoso, continuou absolutamente calma, torcendo para que seu plano terminasse bem. — Oi, Roger – disse, bastante tranqüila.

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Michelle achou-o um pouco mais gordo e mais calvo do que na última vez em que o vira mas, fora isso, continuava o mesmo. Nem o brilho estranho dos olhos havia mudado. Ele portava uma arma na mão direita mas a carregava displicentemente, o braço esticado ao longo da perna: — Michelle... – disse um pouco confuso com o modo como ela o recebera, como se ele fosse uma visita. — Você está linda. — Obrigada. Quer tomar um café? Michelle não tinha certeza de ainda haver algum resto de café em casa e, mesmo se houvesse, na certa já estaria velho. No entanto, quanto mais conseguisse mantê-lo desconcertado e surpreso, melhor. Se Edie houvesse acordado, em pouco iria chamar Rafferty, e seu plano era que ele telefonasse a Andy, mas talvez não tivesse tempo. Segundo seus cálculos, Rafferty chegaria dentro de quinze minutos, durante os quais ela precisaria de tudo para entreter Roger. A casa iluminada despertaria a desconfiança de Rafferty que, na certa, tomaria todo o cuidado. Roger a olhava com um brilho febril e inquieto nos olhos, como se não acreditasse no que via. A pergunta que Michelle fizera mais uma vez o surpreendeu: — Café? — Sim, eu ia mesmo tomar uma xícara; vamos? Só de pensar em café, Michelle sentiu o estômago revirar, mas o importante era ganhar tempo. — Claro, seria ótimo. Obrigado. – Ele agradeceu, perplexo. Sorrindo, ela levantou-se. — Por que não conversamos enquanto passo o café? Há tempos que estou por fora das últimas fofocas. Só espero não ter esquecido de comprar pó. Faz tanto calor por esses lados que me acostumei a tomar só chá gelado. — De fato, é muito quente – ele concordou, seguindo-a até a cozinha. — Até pensei em ir passar uns dias no chalé do Colorado, o tempo é muito agradável por lá nessa época.

Por sorte, Michelle encontrou café e, sempre mantendo a calma e a naturalidade, pôs um pouco na cafeteira. — Por favor, sente-se – pediu, indicando-lhe uma das cadeiras em torno da mesa. Vagarosamente, Roger instalou-se numa cadeira, colocando a arma sobre a mesa. Forçando-se a não olhar para o revólver, Michelle virou-se para apanhar duas xícaras no armário. Depois, sentou-se e comeu uma bolacha do pacote que tinha trazido consigo e que já havia deixado na cozinha. — Aceita uma? – ela perguntou, estendendo-lhe o pacote. Roger a observava num misto de tristeza e desejo. — Eu te amo – murmurou, não se importando com as bolachas. — Como pôde me deixar quando preciso tanto de você? Queria que voltasse para mim, tudo ia ser diferente desta vez, eu prometo. Por que teve que ir morar com aquele homem? – De repente, bastante alterado gritou: Por que me enganou desse jeito? Michelle pulou de susto diante da explosão de Roger, cujo rosto plácido se transformara numa máscara de ódio. Seu coração batia tão acelerado que Michelle temia se descontrolar. Porém pensando em Rafferty e no bebê, reuniu forças para manter a calma: — Mas, Roger, a eletricidade da minha casa tinha sido cortada – alegou com incrível presença de espírito. — Não esperava que eu

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continuasse a morar aqui sem luz e sem água, não é? Por uma fração de segundo a súbita mudança de assunto de novo o surpreendeu mas, em seguida, Roger balançou a cabeça: — Não adianta mais mentir para mim, querida. Sei que vive com ele. Não consigo entender, eu lhe dei muito mais: luxo, jóias, viagens, mas ainda assim você preferiu aquele fazendeiro imundo. Michelle não suportava ouvi-lo chamá-la de querida. Engolindo em seco, forçou-se a ignorar o pânico que crescia em seu íntimo. “Meu plano fracassou”, começou a pensar. — Eu não tinha certeza de que você me queria de volta – conseguiu dizer a muito custo. Roger balançou a cabeça: — Não acredito nisso. Você não quis voltar para mim. Gosta do que aquele vaqueiro imundo pode lhe dar, e no entanto podia viver como uma princesa ao meu lado. Michelle, querida, não devia deixar aquele brutamontes tocá-la mas, pelo visto, isto lhe agrada muito... Conhecendo-o bem, Michelle percebeu que Roger aos poucos ia sendo consumido pelo ódio e pelo ciúme até que, de repente, tivesse uma de suas explosões violentas. — Eu telefonei para sua casa – mentiu na tentativa de fazê-lo se acalmar. — Mas a empregada disse que você estava na França. Me dei conta que precisava de você e queria que viesse me buscar; queria voltar para você. Roger olhou-a absolutamente pasmo, o ódio desaparecendo de seu rosto como que por encanto: — Você... você me queria? Michelle fez um gesto afirmativo com a cabeça, percebendo que Roger esquecera da arma. — Eu estava com saudades. Nós nos divertíamos tanto juntos, lembra-se? Era triste relembrar mas, de fato, nos primeiros tempos de casados os dois haviam se divertido muito. — Lembro. Sempre achei que você era a garota mais bonita que já conheci – disse ele, sorrindo. — Seu cabelo dourado tão brilhante, os olhos verdes... Eu seria capaz de tudo por sua causa. Até matar. E, dizendo isso, moveu a mão em direção ao revólver, conservando o sorriso. Pelo jeito como ele pronunciara as duas últimas palavras, Michelle viu como a doença se agravara. Ele era capaz de tudo. Talvez nem os médicos fossem capaz de salvá-lo. — Éramos tão jovens – ela comentou, chegando a desejar que o relacionamento de ambos tivesse sido melhor. Então, começou a recordar os velhos tempos: — Lembra-se de June Bailey, a ruivinha que caiu do barco de Wes Conlan? Todos nós nos atiramos na água para salvá-la... Ninguém imaginava que ela não soubesse nadar. Roger limitou-se a sorrir, satisfeito por relembrar aqueles dias tão felizes. — Acho que o café está pronto – ela afirmou. Levantando-se com cuidado, encheu as duas xícaras e voltou para a mesa. — Espero que dê para beber, não sou muito boa na cozinha. Foi a melhor desculpa que encontrou. Roger sorria, mas em seus olhos surgiu um brilho tristonho. Então, uma lágrima rolou-lhe pela face e ele apanhou a arma. — Eu te amo demais... Você não devia ter permitido que aquele sujeito tocasse em você... Vagarosamente, ele virou o cano da arma na direção dela.

De repente, a porta dos fundos foi violentamente aberta por um pontapé.

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Roger, assustado, virou-se e disparou. Michelle empurrou a mesa contra o ex-marido, que caiu, e jogou a arma no chão. Rafferty agarrou Roger pela nuca . De repente, outro tiro foi disparado e Michelle começou a gritar. Rafferty, rolava no chão em luta corporal com Roger. Horrorizada, Michelle afastou uma cadeira que tinha à frente e foi em direção aos dois. Naquele instante, Andy Phelps entrou em companhia de mais outro policial e ambos tiraram Rafferty de cima de Roger, desarmando a seguir o ex-marido de Michelle. Aos soluços, ela se aproximou de Rafferty por trás e lançou-lhe os braços em torno do pescoço, recostando-se em suas costas largas e musculosas. — Não, querido, chega! Por favor! – conseguiu pedir ao ver que Rafferty estava para atacar Roger de novo. — Ele está muito doente. Roger sangrava no nariz mas ele continuava a olhá-los, pasmo, ausente. Os policiais algemaram-lhe as mãos e guardaram a arma num saquinho plástico, imediatamente selado. Rafferty aninhou-a nos braços. A coragem dela era inacreditável: sentara-se com um desequilibrado à mesa para tomar café, sabendo que corria risco de vida... Porém, nada mais importava. Michelle estava sã e salva em seus braços. Seu coração pertencia só a ele e, juntos, viveriam uma vida de sonho. Daquele dia em diante, jamais permitiria que Michelle tornasse a correr tamanho risco. — Envelheci vinte anos quando li aquele bilhete – murmurou afundando o rosto entre seus cabelos. — Você chegou antes do que eu imaginava. Edie deve ter acordado cedo. — Fui eu que acordei cedo. Não vi você na cama e comecei a procurá-la. Por sorte cheguei a tempo. Andy Phelps suspirou e deu uma olhada na cozinha, toda desarrumada. Então, apanhou uma xícara no armário e serviu-se do café. — Isto está horrível – disse fazendo uma careta. — Bem, preciso que vocês vão à delegacia prestar depoimento, mas não creio que o caso chegue a julgamento. Pelo visto, ele está mesmo desequilibrado. — Temos que ir agora? – Rafferty quis saber. — Eu queria que Michelle passasse em casa antes. Andy olhou para os dois. Michelle estava trêmula e pálida, enquanto Rafferty devia estar sofrendo dores terríveis. — Tudo bem, podem ir à tarde. Rafferty agradeceu e encaminhou Michelle para a caminhonete. Alguém viria buscar o carro mais tarde. O pequeno percurso foi feito em silêncio e, ao chegar em casa, ele a fez descer do veículo e, sem uma palavra, conduziu-a direto ao quarto, sob os olhares curiosos de Edie. Depois de fechar a porta, fez com que ela se sentasse na cama e agarrou-a pelos braços: — Nunca mais faça isso! Consciente de que Rafferty apenas estava nervoso, Michelle livrou-se das mãos que a seguravam com força. — Vamos nos casar ainda esta semana – ele afirmou. — Eu te amo demais. — Mas... – ela titubeou. Casar? Rafferty queria casar com ela? Michelle o fez deitar-se na cama e sorriu-lhe. — Não tem mais nem menos: nós vamos nos casar. Está certo que não posso lhe dar uma vida a que você estava acostumada, mas mesmo assim sinto que seremos muito felizes juntos. — Seremos felizes? Mas há muito que estou feliz. E você me deu algo tão precioso que nenhum dinheiro do mundo pode comprar. Querido, eu estou grávida. — Grávida? Tem certeza? – Rafferty perguntou, surpreso. — Absoluta...

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— Meu amor... – ele acariciou-lhe a barriga. — Sempre quis ter um filho seu... – disse, erguendo os braços para puxá-lo mais para perto de si. — Eu só quero que você me ame. Não preciso de luxo nem de dinheiro para ser feliz. Só preciso tê-lo ao meu lado.

O dia do casamento amanheceu claro e ensolarado, e seria realizado ali mesmo na fazenda. Juntos, no quarto, os dois tinham acabado de se vestir, contrariando a superstição de que o noivo não deve ver a noiva antes do casamento. Feliz, Michelle sorriu satisfeita para a própria imagem refletida no espelho. O vestido, amarelo bem claro, realçava-lhe os olhos verdes e o brilho dourado do cabelo. John também estava mais elegante que nunca num terno azul-marinho bem talhado que lhe realçava os ombros largos e os cabelos negros muito brilhantes. — Está pronto? — Sim, vamos. Todos os amigos na região já aguardavam no hall ao pé da escada onde seria realizada a cerimônia. Até a mãe de Rafferty viera de Miami para assistir ao casamento do filho. Parados no alto da escada, olharam comovidos para os convidados. Antes de descerem, ele a beijou e murmurou baixinho: — Eu te amo muito. — Eu também te amo. E, juntos, deram o primeiro passo em direção a uma nova vida.

FIM

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