O Fim do Desenho

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O FIM DO DESENHO





O Fim do Desenho


Capa Zé Santana Diagramação & Produção Editorial Alisson Nogueira Fotografia Sirlene Fernandes Revisão Edson Macalini


Alisson Nogueira Ariel Farfan Barbara Martins Carina Lacerda Edson Macalini Fredson Adjar JoĂŁo Pedro Rodrigues Sirlene Fernandes Tacylla Oliveira ZĂŠ Santana

PetrolinaJuazeiro - PEBA


Foto


SUMÁRIO

Apresentação. [SEM TÍTULOS]. Segredos de Artista.

Edson Macalini Alisson Nogueira Consuelo Schlichta

Cama Dágua. Sutis Violências. Dendimim. Devastação. Chão do Mar. Desenho e Paisagem .

Alisson Nogueira Ariel farfan Barbara Martins. Carina lacerda Edson Macalini Cláudia França

Medo do Outro. Fredson Adjar .Sem título . João Pedro Rodriguês Ruínas. Sirlene Fernandes Conectar os Pontos. Zé de Rocha Caatinguêlejos. Mácula. Um Segredo.

Tacylla Oliveira Zé Santana Vania Medeiros


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O desenho ocupa na história da arte o lugar de início, passagem e meio para a concretização das múltiplas expressões nas artes visuais. Seu papel, sempre esteve ligado à técnica da representação, e ainda, ao dar estrutura, esboço, suporte, para as produções da pintura, escultura, arquitetura, gravura, entre outras manifestações artísticas que agregavam maiores valores de mercado, comercialização e de representatividade no universo da arte. Percebe-se, nas artes visuais, que a necessidade do desenho está para treinar o gesto, introduzir técnicas de representações, obedecer aos cânones academicistas, a fim de preparar o artista para outras áreas. Mas tal afirmação não estaria imbuída de interpretações de uma história da arte que se pretende colonizada pelos ideais estéticos de uma perspectiva única? É possível, portanto, afirmar que o modo de ver, perceber e representar o mundo é igual em todos os povos e culturas? Qual seria, portanto, o olhar do indígena brasileiro? Do africano? Do europeu? Do asiático? Do oceânico? E dos tantos povos americanos? Se o olhar é diferente de acordo com a cultura, seu modo de representar não seria também a mesma coisa? Para o antropólogo Franz Boas “o olho que vê é o órgão da tradição”, nesse caso onde estaria a raiz do povo brasileiro? Se as missões artísticas da colônia portuguesa com seus olhares estrangeiros criaram a imagem de um país com percepções externas, é possível afirmar tal origem? A finalidade da representação do cenário local levou em consideração a produção imagética dos povos indígenas, a diversidade e mistura cultural? Sabemos que não. Mas essa história ilustra também o mesmo lugar que ocupa o desenho na história da arte, ele está ali e é necessário, mas é sempre esquecido, e assim sendo, onde o desenho começa e onde ele termina?


Desenho é a base que dá a estrutura, é o osso da forma, é a periferia da arte. Mas também é o lugar das grandes transformações e emancipações. E o desenho pode ainda, estar no índice, e ser somente o esboço, o começo, o rascunho, os croquis, sem necessitar de um fim, pois, são neles que se iniciam grandes ideias. E se desenho é projeto e é também pensamento, podemos então afirmar que existe várias maneiras de desenhar, seja usando os instrumentos, ferramentas e técnicas tradicionais ou não, ou representando a imagem ao seu modo, e assim teremos - Desenhos. A publicação “FATO ABERTO: O DESENHO NO ACERVO DA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO” é um conjunto de quatro exemplares que apresentam vários caminhos e que nos deram luzes há muitas leituras e interpretações dos lugares que o desenho ocupa no universo das artes visuais. Este trabalho nos motivou a buscar as mais diversas possibilidades de composição do desenho, na qual, as perspectivas contemporâneas e poéticas visuais resultaram no coletivo de produções artísticas que ocorreram entre 2018 e 2019 nas disciplinas de Desenho do Curso de Artes Visuais da Univasf. O Fim do Desenho é resultado de um percurso coletivo. Gerido e gestado no processo da formação artística de futuros docentes das artes visuais no laboratório de desenho do CARTES, no âmago do semiárido nordestino, cujo propósito primordial está em pensar o desenho em seu lugar de início, seus percursos e transitoriedades com outras áreas, linguagens e formas, para, por fim, reverberar em tudo que o rodeia. Nesse lugar de emancipação, o desenho, escapou da briga entre a pintura e a fotografia no final do século XIX, que deixaram a porta aberta, para se incidir nos mais distintos espaços, se reinventar e camuflar em outras formas, possibilidades e matérias. O desenho é como a água – silenciosamente expande-se inunda-se sem pedir permissão. Edson Macalini Professor , Pesquisador e Artista Visual Artes Visuais - - UNIVASF / CARTES - Juazeiro/BA


[SEM TITULOS] O DESENHO NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO SEU FIM

QUANDO O DESENHO ACABA O RISCO CESSA? Pensar o desenho na contemporaneidade me leva a questionamentos sobre a própria relação de qual contemporaneidade estou inserida e como ela apresenta-se híbrida em seus conceitos, compreendendo os contextos sócio históricos culturais aplicados à mesma. Se uma linha traçada num mapa vira fronteira, o que essa linha se torna, quando transvista – me apropriando aqui de Manoel de Barros – aos olhos da Artista? Talvez no espaço entre, e nas negações que lhe foram impostas durante todo processo de construção e morte da história da arte é que more a resposta; talvez em lugar algum; talvez ela continue gazeando aula e nem pisando nas universidades. Talvez desinteressada dos cânones brancos do dito grande saber. Sinceramente, não tenho interesse em propor respostas aqui, mas é preciso reinventar o gesto. O conceito de gesto. E a corpa que é e foi permitida gesticular. NÃO VOU COMPACTUAR COM AS FERRAMENTAS QUE ME OPRIMEM Sinto uma dificuldade imensa de seguir uma linha de raciocínio sem querer borrar com ela. É NECESSÁRIO BORRAR GOMBRICH E AFINS, TALVEZ NUMA MANCHA APAREÇA AMÉRICA LATINA, BRASIL E NORDESTE. É, Desenhar é um ato de risco, principalmente quando se é uma corpa que não aparece nos livros de arte ou como centro de interesse dos grandes museus. Em qual parte desse latifúndio nada.contemporâneo cabe as existências de risco do sertão? NA MÃO DE QUEM É QUE APARECE O OBJETO RISCADOR?


Não trago aqui assuntos inéditos pra seu ninguém, mas no desejo de assuntar e trazer terra e boca pra esse debate. Foi observando as linhas aradas do chão que durante o processo de imersão, trocando junto, pude perceber que assim como nos mapas para o desenho as fronteiras também são fictícias nos proporcionando desdobramentos múltiplos dentro de uma linguagem transfigurativa. Essa compreensão e experimentação dentro dos nossos processos poéticos individuais, nos possibilitou desobediências sistêmicas e deu mote para a construção da Exposição Coletiva O Fim do Desenho. O DESENHO NÃO ACABA NO SEU FIM.

Alisson Nogueira Vermelhense e Artista Visual


SEGREDOS DE ARTISTA E CONSELHOS DE MÃE

Era uma vez um pequeno mundo habitado por Alisson Nogueira, Ariel Farfan, Barbara Martins, Carina Lacerda, Edson Macalini, Fredson Adjar, João Pedro Rodrigues, Sirlene Fernandes, Tacylla Oliveira, Zé Santana. Talvez não saibam, mas existe muito mais por trás de um nome, do que aparece a princípio, existem histórias de mulheres e homens que não têm medo de olhar com os dois olhos e o coração, nem de experimentar o novo. Artistas são viajantes em permanente movimento. Ajudam a abrir horizontes, habitam fronteiras. Lembrem de levar na bagagem apenas o que não envelhece.

Edson Macalini leva na bagagem: pedras preciosas do mar, conselhos de mãe e segredos de artista. Entre os conselhos, pedir licença, mas como essas mulheres de sabedoria aconselham também: nunca deixar de entrar¹. Pedir licença aos grandes, como Adélia Prado o faz, é um segredo de grandeza que Edson também carrega na bagagem. Mas longe de ser apenas um gesto de gente educada, Adélia pede licença ao grande poeta Carlos Drummond de Andrade para se valer do seu Poema de Sete Faces, mas ela o faz na dose certa. Esse é o segredo, a ousadia de Adélia. Enquanto o anjo de Drummond é “torto”, vive nas “sombras e anuncia: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”, o de Adélia é esbelto, “desses que tocam trombeta” e chega anunciando: “Vai carregar bandeira”! Para Adélia, “ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou”, diz ela. Sem ficar preso a uma história traçada, com pedras Edson desenha um Chão do Mar e cultiva a rebeldia no Laboratório de Desenho. Lugar de acolhimento da pesquisa, quase todos os sábados, das 10h00 da manhã às 10h00 da noite, Edson está lá. Sou apenas um professor-artista, parece dizer. Mas ele é muito exigente em relação à consistência e longevidade das pesquisas e ao estado de permanente aprendizado sem pontas nem arestas que imprime às suas aulas, talvez influenciado pela concavidade da parede daquela sala no centro do Galpão. Esse é um segredo que divide com Zé Santana: não se guiar por um caminho previamente traçado para o desenho, libertar as próprias mãos da obrigação de tecer roupas para a coroa. Vender o casaco, mas nunca as mãos que o teceram. Em Mácula, mais do que revelar quem vestiu velhas roupas domingueiras, Zé Santana revela quem as guardou, quem não se desfaz delas, pois ninguém se desfaz da memória dos cheiros de corpos ausentes e das manchas que se confundem com as cores do lugar. As costuras bordadas nas beiradas das manchas (re)afirmam, para Zé Santana, que o novo desenho não é fruto da adição de referências, mas de novas conexões em permanente movimento que justapõem ou opõem referências cruzadas. Com agulhas Ariel Farfan perfura imagens de corpos impressos sobre papel, com linhas costura Violências Sutis, demarca limites impostos aos corpos, que os prendem em redes de obrigações. Ariel expõe os limites dos corpos, o meio, o fim do desenho, desnuda estruturas de funcionamento de ambos.

¹Caetano VELOSO. Tudo de Novo. (...) Minha mãe me deu ao mundo/ De maneira singular/ Me dizendo a sentença/ Pra eu sempre pedir licença/ Mas nunca deixar de entrar (...)


Os bordados e costuras tornam-se armaduras em Devastação. O desenho deixa de ser um meio subordinado a serviço da pintura e tem um fim em si mesmo. Carina Lacerda desenha em primeira pessoa, o que me leva a pedir uma licença poética ao grande Guimarães Rosa para dar nome à arte de Carina: arte-arquitetura-escultura. Ela faz arquitescultura. Os bordados são recorrentes em Cama Dágua. Nossa atenção dirige-se às figuras fragmentadas, ao interesse de Alisson Nogueira pelas narrativas bordadas sobre tecido. A fatura é delicada, porém, não é fácil inventar-se e ir além de si, tornar visível e inteligível uma nova conexão entre palavra, desenho e bordado. Barbara Martins tanto revitaliza imbricações como também questiona as subordinações do desenho esboço e da ilustração científica, o lugar do desenho por vezes hierarquicamente inferior na história da arte, sua autonomia. Em Dendimim ganha destaque a imagem do coração e sua inegável centralidade na existência humana. Bárbara reporta-nos ao coração como lugar privilegiado de nossas emoções, nossas dores, medos, mas também ao lugar dos antigos esboços de Leonardo da Vinci, por exemplo, realizados no século XV, na Itália. Ao desenhar sobre sólidos geométricos Fredson Adjar cria uma conexão entre o tri e o bidimensional. Em Medo do Outro recoloca a velha discussão do suporte no desenho e, não por acaso, da neutralidade do cubo branco. Seus desenhos exploram a indefinição própria do território da arte, o desajuste entre o espaço da exposição e a linguagem. A confluência de diversos campos do conhecimento permite a Tacylla Oliveira montar em Caatinguêlejo uma espécie de mapeamento da flora e da fauna de um lugar imaginário. São espécies inventadas, expostas a maneira dos gabinetes de curiosidades dos museus de história natural, nos fazendo pensar na abrangência do desenho, que extrapola a classificação arte e ciência. É difícil não ser presa fácil de João Pedro Rodrigues. Seu trabalho Sem título nos põe o desafio de decifrar os contrastes entre os fios pretos que bordam desenhos de pés em diferentes posições e a leveza do tule. O contraste entre os bastidores em madeira crua, que contornam os desenhos de pés que manipulam ora um pênis ereto ora uma língua em movimento entre os dedos e o tule em tom terroso, que contrasta com o azul do azulejo da parede de fundo. Por fim, exige que decifremos os sentidos do lugar que evoca a intimidade e a expõe. Sirlene Fernandes investiga as relações espaciais, os processos de construção do tridimensional. Em Ruínas debruça-se sobre ossaturas, submete-as a uma nova ordem, organizando-as em novos corpos escultóricos. Enfim, adoráveis jovens artistas, de ontem, hoje e amanhã, vou revelar um último segredo: pronunciem o próprio nome, pelo menos três vezes todos os dias, assim ele nunca se apagará na história. E tenham coragem para fundar nova tradição. Minha gratidão por acreditarem nessas histórias e pela nossa longa viagem juntos. A colecionadora de nomes e histórias, Consuelo Schlichta



CAMA D’ÁGUA ALISSON NOGUEIRA





SUTIS VIOLÊNCIAS

ARIEL FARFAN





DENDIMIM

BARBARA MARTINS





DEVASTAÇÕES CARINA LACERDA





CHÃO DO MAR

EDSON MACALINI




Desenho e Paisagem O Desenho é uma categoria de linguagem de singular complexidade, dentro do universo das Artes Visuais. Razão de seu encanto e, porque não, de seu estigma, sua multiplicidade funcional abarca relações com o conhecimento do mundo, a projetação, a memória, a imaginação, o autobiográfico, a expressão liberta de cânones. Pode-se mesmo pensar o Desenho em seu campo ampliado antes que Rosalind Krauss (1978) marcasse epistemologicamente o campo da escultura, ampliando a linguagem tridimensional com novas possibilidades e operações lógicas. Isso porque o Desenho é operador histórico a conectar linguagens diversas, em seu aspecto processual: seu duplo movimento de análise e síntese das formas é um modo peculiar de estudar o mundo objetivo, conectando-o ao imaginário particular e à capacidade de antecipação de realidades compossíveis. Isso o fez ser mediação importante nas práticas pictóricas, gráficas, escultóricas: uma das razões para o Desenho se situar, convencionalmente, no início de muitas propostas pedagógicas, ampliando o repertório conceitual e expressivo de outras manifestações. Pensando na história moderna do Desenho, há pelo menos dois pontos importantes nos elos daquela cadeia temporal: sua vinculação à mimese formal, particularmente a partir do fim do período medieval, com a concepção, desenvolvimento e consolidação da perspectiva artificialis como prática de mensuração e estudo racional da realidade. E ainda seu papel a partir do Romantismo, no clamor da expressão da subjetividade do artista (produção e reprodução do espírito e suas imperfeições). Esses dois pontos - norma objetiva e general com as singularidades do sujeito que desenha - parecem tecer um jogo de trama e urdidura que fundamenta a identidade do Desenho hoje, vinculado como método de ensino, por um lado (e aí as práticas representacionais); e por outro, sua autonomia, já no campo das experimentações poéticas. Não é meu intento discutir e questionar aqui novos papeis para o Desenho, hoje. Pretendo desenvolver, brevemente, as conexões que o Desenho pode estabelecer com a Paisagem e com a Presentidade. Tais foram alguns aspectos levantados a partir das imagens a mim enviadas pelo coletivo de docentes e alunos do Laboratório de Desenho, Curso de Artes Visuais do Centro de Artes, Universidade Federal do Vale do São Francisco. ***** Em seu livro “Sobre o Desenho”, John Berger nos coloca algumas ligações do Desenho com o Tempo. Em uma delas, lhe atribui três funções básicas: os desenhos de conhecimento do mundo (estudam e questionam o visível), os desenhos de criação (mostram e comunicam ideias) e os


desenhos de memória. Para cada tipo, Berger vincula um tempo específico: presente, futuro e passado, respectivamente. Atento-me aqui para os desenhos de observação, pois neles, o presente afirma-se no fazer. O desenhador se instala diante de seu objeto: quer descobrir o que percebe, ativa seu olhar incisivo, dissecando-o (análise) e o reconfigurando em um esforço tradutivo (síntese). O suporte físico torna-se o campo de expressão desta dialética, o embate entre a primeira linha e as subsequentes. Desse modo, o desenho resultante da observação minuciosa e do embate entre gestos e linhas, revelará o objeto representado e o esforço em fazê-lo. O Desenho revela o objeto e desvela o sujeito naquela presentidade. Outra colocação de Berger, acerca dos desenhos de observação, aponta para um abarcamento do Tempo. Diferente da Fotografia, que congela o Tempo no aproveitamento do instante do ato, o Desenho nos força a que entremos no momento dele: como ele foi feito. O Desenho abarca o tempo, pois, na medida em que ativa e potencializa o olhar, examinando a estrutura interna das formas aparentes, nos requer a contemplação (um tipo de tempo) e também a perscrutação (outro tipo de tempo). Sendo assim, a temporalidade do Desenho de observação é formada pela simultaneidade de diversos instantes, o que lhe dá o anelo de ser totalidade e não fragmento. Sendo então pura presentidade e soma de instantes, o Desenho pode ser percebido, paradoxalmente, como atemporal. Se nos atentamos ao seu materialismo, é possível perceber sua diacronia – como ele respondeu aos diversos momentos da história. Mas se o pensarmos em sua “alma” - a capacidade de mirar - o Desenho é uma operação que permite o encontro do sujeito com o seu entorno. Diz Berger (2014, p.35-6): “o ato de mirar com concentração, de questionar a aparência do objeto, isso variou muito pouco ao largo dos milênios. Os antigos egípcios miravam os peixes de uma forma parecida a como faziam os bizantinos do Bósforo ou Henri Matisse no Mediterrâneo.” Afora as representações da transcendência nas alegorias, os desenhos cotidianos e suas minúcias conseguem dizer dessa atemporalidade do complexo ato de ver, somada à presentidade da ação de marcar o suporte com alguma inscrição. Paul Valéry contribui para o meu pensamento, ao admitir uma diferença de nossa postura por meio da presença ou ausência do lápis no ato de observar uma coisa. Se antes, sem o lápis, a observação visual poderia ser desinteressada, com o instrumento em mãos, acontece o desejo, a deliberação continuada de conhecer o objeto a ser representado. Eu complemento com uma situação em que apontamos com o dedo para o objeto, e depois o deslizamos, acompanhando sua extensão e contorno. O dedo índice aponta para a existência da coisa; o gesto seguinte como que mimetiza o lápis e isso já é o início de um desenho como situação virtual, que transformará bastante o que se supunha conhecer, no antes. Desse modo, desenhar, de observação, é sustentar a força do olhar no conhecimento do objeto, mas com a consciência ou deliberação de sustentar uma tradução possível daquela presentidade, por meios que garantam sua visualidade, compartilhável.


Pensemos agora em Paisagem. Se pensarmos no que a constitui, a partir de quem a faz e mesmo antes, de quem a contempla - perceberemos que no desejo de compreender aquela configuração espacial que mescla natureza e cultura, somos capturados por nossos sentidos, nossa memória, nossa capacidade perscrutadora, a escuta de nós mesmos naquela vastidão. Não é sem sentido o fato de que a Paisagem se tornou um gênero de excelência no Romantismo, pelo desejo de fundirse no entorno. Cecília Cotrim (2003, p.58) nos apresenta o relato do pintor alemão Gustav Carus, que havia levado seu caderno de notas para desenhar o mar. Mas ao deparar-se com uma ressaca, o pintor lança longe o seu caderno, pois estava convencido da impotência de seu traço diante da força daquele fenômeno natural. Permaneceu ali, com o olhar fixo na cena, gravando-a em sua alma. No ano seguinte, fez uma pintura de memória daquele momento. Esta interessantíssima passagem nos faz comparar o gesto do artista romântico de lançar o caderno para longe, com a colocação de Valéry, sobre o lápis como definidor de uma intenção gráfica. Lançar ou segurar? Por um lado, o abandono e a confiança na memória que unirá, com sua prega, a lacuna de um ano sem a pintura produzida; por outro, a confiança no instrumento, ou mesmo o dedo que aponta e fere a superfície transparente entre nós e o visto. E que depois desliza, acompanhando os contornos e caminhos da cena. Ambos os gestos ativam faces distintas da memória. Pois bem, ao ver os “desenhos” do projeto “O fim do desenho”, ocorreu-me esses diálogos do Desenho com a Paisagem não no sentido de suas categorias, mas como operadores de um modo de olhar e também operadores de um modo de se situar no mundo. Edson Macalini, Alisson Nogueira, Ariel Farfan, Barbara Martins, Carina Lacerda, Fredson Adjar, João Pedro Rodriguês, Sirlene Fernandes, Tacylla Oliveira e Zé Santana produzem trabalhos explorando gestos (traçar, escrever, bordar, vestir, fragmentar, respingar, perfurar, colar, queimar, pintar, tecer, cortar, inscrever, imergir, manchar, montar, devolver), atos organizacionais (gradação, alternância, sobreposição, justaposição, mistura, tensão, sensibilização de superfície, contraste, padronagem) e pesquisa de suportes (tecidos, papeis, troncos de árvores, ossos, pedras, ladrilhos, madeiras, papelões). Neste vasto campo de ações, atos mentais e suportes, repousa o espírito experimental que nomeia “Desenho Contemporâneo” a fuga dos cânones que aprisionaram a prática à maestria técnica voltada à mimese. Essas são algumas das marcas da produção em arte contemporânea: as constantes experimentações com a diversidade de materiais e suportes disponibilizados, as novas tecnologias de produção de imagens, a perda de limites precisos entre as linguagens artísticas. Pergunto-me se no início das produções do grupo não estaria o sentido exploratório do lugar, seja do cotidiano e sua intimidade, seja do lugar-fronteira entre o conhecido e o desconhecido. Nesses limiares, o olhar se surpreende, mas é o corpo quem intensifica a dinâmica. Trata-se de um compósito entre ver e caminhar, não ainda em deriva, mas reconhecendo nessas zonas fronteiriças, o esgarçamento dos limites entre ver e não ver, andar e parar, prosseguir e retornar. Entrar e sair. Ao produzirem “lugares demarcados” (Krauss, referindo-se aos trabalhos que constroem uma marca em meio à paisagem), experimentam níveis de presença de si no meio:desde uma simples coleta de pedras e talvez ossos e carcaças, até a construção de pequenos


abrigos para uma intervenção. Do banheiro ao bastidor como reduto último de privacidade e silêncio. Considero tais ações compósitas como exercícios de Paisagem. Há um desejo de conhecimento do território, e nesse conhecer, o olho compreende a distância; a totalidade do corpo vem para ter, na sinestesia, a totalidade da experiência. Não no arrebatamento de Carus, mas percebo neles a dispensa do lápis. Não creio que o tenham arremessado longe, com o caderno de notas; mas o [caderno+lápis] talvez esquecido, potencializou outros modos de conhecimento e presença, outras traduções. Em uns, o trabalho consistiu em uma certa presentidade na elaboração dessa marca; fazer o trabalho implicava fazê-lo ali. Em outros, o retorno à casa ou ao atelier. Página virada, o trabalho se faz no alhures. Em outros mais, o trabalho faz do corpo o território para nele “paisar”. E, de igual maneira, afasta-se do corpo-paisagem, para a interferência no corpo tornado imagem. Como dizer então, se as imagens são Desenho (de observação)? É possível afirmar isso? Agrupálos no ampliado campo do Desenho Contemporâneo, não seria isso a alternativa mais fácil? Creio que em todos, há uma dupla ação: a elaboração dos trabalhos, propriamente. Penso que são mais experiências materializadas a partir da vivência de algum território; paisagens como gênero e como operações de entrega do olhar e do corpo. Já o Desenho de observação acontece após os trabalhos realizados, por meio da Fotografia. É interessante perceber como as tomadas fotográficas não são panorâmicas, não nos informam o onde, não lançam no olhar para o longínquo. Os enquadramentos são incisivos. O foco imita o olhar que quer discernir, dissecar, separar o contorno das coisas. A mão não segura o lápis, segura a câmera. E o que quer conhecer é a própria produção tornada objeto de conhecimento, de autoconhecimento. Tenho consciência de que o texto aqui tramado possui suas voltas. Mas é porque insisto na busca de que há uma porção ou lugar irredutível, onde o atemporal + tempo presente do Desenho permanece. Mesmo que ele não permaneça mais na mimese, ele permanece no desejo de representar. Lembremos que representar é também reapresentar. Mesmo que ele não se faça por meio de seus materiais convencionais, ainda temos a mão que empunha um gesto sobre um suporte. Mesmo que o olhar seja o simples intermediário entre mim e o entorno, ainda temos o olhar tátil fornecido pela lente, correlato do olhar incisivo que segura um lápis. O olhar tátil quer alcançar o objeto de tal maneira que a nova fronteira que se insinua está entre ver e não mais ver. Na cegueira resultante, resta tocar. Cláudia França Vitória, abril de 2019 Referências BERGER, John. Sobre el dibujo. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014.


COTRIM, Cecilia. “Fluxos poéticos: arte e vida”. O que nos faz pensar. Caderno do Departamento de Filosofia, PUC-Rio, Rio de Janeiro, nov.2003. p.53-61. KRAUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado”. ARTE&ENSAIOS, Rio de Janeiro, UFRJ, ano XV, n.º 17, dez 2009.p.128-137. VALERY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Cosac&Naify, 2003




MEDO DO OUTRO

FREDSON ADJAR




SEM TÍTULO

JOÃO PEDRO RODRIGUES






RUÍNAS SIRLENE FERNANDES




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CAATINGUÊLEJO TACYLLA OLIVEIRA






MÁCULA

ZÉ SANTANA





Um segredo Há pouco encontrei um texto pouco conhecido de Mario de Andrade intitulado “Do desenho”. Nele, nosso “turista aprendiz” faz algumas considerações sobre essa linguagem que surpreendem e aquecem o coração de quem se dedica a essa prática. Ele diz: “É como que uma arte intermediária entre as artes do espaço e as do tempo, tanto como a dança.” Mais adiante ele acrescenta: “O verdadeiro limite do desenho não implica de forma alguma o limite do papel, nem mesmo pressupondo margens.” Para quem desenha, é um momento de grande libertação, como um brotamento, que tem também sua dose de medo - como uma puberdade - descobrir que não se desenha com a mão. Isso é um segredo que cada pessoa descobre sozinha, nenhum professor ensina. Parece que é uma arte manual no começo. Mas, com o tempo, a gente percebe que o desenho é feito com o corpo inteiro. Corpo mesmo. Deixemos a “alma” de lado (seja o que isso signifique). A mão, cheia de ossinhos, segura o lápis/ pincel/ agulha, que, pelos tendões, se unem ao braço e suas centenas de músculos e é articulado pelo ombro. O pescoço acompanha o olho que não para de se agitar dentro das órbitas. A respiração acelera e subitamente pára entre uma linha e outra. O entrar e sair de ar move o peito, que reverbera nas costas e essa onda move o ombro novamente, que transmite às mãos o fluxo desse circuito. Isso é só uma coreografia possível. É mais do que natural que o desenho transborde. O gesto de escapulir é sempre iminente. Os desenhos que compõem essa mostra realizam plenamente seu movimento de liberdade. O que é visível é só uma parte deles, como a ponta de um iceberg. O resto vive nos corpos de seus autores e autoras e se transforma. Desenho é dança. Desenho é rastro de um corpo. Retrato do fim de um gesto que foi. Celebremos, então, cada fim que se apresenta diante de nós, que gesta em si, sempre, recomeços.

Vânia Medeiros

ref: ANDRADE, Mario de. Do desenho. In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. 2ª. Ed, São Paulo : Martins, 1975.p. 69-77



Ficha Técnica

Alisson Nogueira - CAMA DÁGUA/2018. Bordado s/ tecido/ Instalação. Dimensões: 218 cm x 158 cm. Instagram: @nxgueira_ Ariel Farfan - VIOLÊNCIAS SUTIS/2019. Bordado s/ fotografia/ Instalação de Dimensões variadas. Instagram: @ariel.gfarfan Barbara Martins – DENDIMIM/2018. Desenho e intervenções s/ papel vegetal. Dimensões variadas. Instagram: @c.aracol Carina Lacerda – DEVASTAÇÃO/2018. Instalação com madeira coletada em área de desmatamentos. Instagram: @carina_escultora Edson Macalini - CHÃO DO MAR/2018. Desenhos em pedras / Instalação - dimensões 3mx3m. Ig.: edsonmacalini Fredson Adjar - MEDO DO OUTRO/2018. Tecnica Mista. Dimensões: altura 260 cm, largura 70 cm, profundidade 70 cm. Instagram: @fredsonadjar João Pedro Rodrigues - SEM TÍTULO/2018. Bordado s/ tecido Dimensões: 250cm x 60cm. Instagram; @jpr.teixeira Sirlene Fernandes – RUÍNAS /2018. Fotografia / Instalação – Dimensões: 2m x 3m. Tacylla Oliveira – CAATINGUELEJOS/2019. Desenho s/ azulejo. Instalação de dimensões variadas. Instagram: @t.a.k.a.o Zé Santana - MÁCULA/2019. Técnica mista/Roupa de Artista. Dimensões: 87cm x 77cm. Ano: 2019. Instagram: @adeusblack


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