Regras de poesia usadas pelos poetas populares

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Excerto extraído do festejado livro ‘Cantadores, Repentistas e Poetas Populares’(Editora Bagagem, 2003), de autoria do saudoso poeta, escritor e extraordinário repentista José Alves Sobrinho.

REGRAS DE POESIA USADAS PELOS POETAS POPULARES

As regras de poesia usadas pelos poetas populares (cordelistas) são: ABC, quadra, sextilha, setilha, oitava, décima corrida e décima glosa. A décima corrida é aquela que não obedece motes. Há duas formas de décimas setissilábicas: a portuguesa ou recitativa e a espinela ou espanhola, esta a mais usada pelos cantadores. Vejamos as duas regras de décimas. A portuguesa ou recitativa: (sequência de rimas: a-b-a-b-c-c-d-e-e-d) Eu venho lá do abismo Das regiões siderais, Trago na fronte o batismo Das águas celestiais, Conheci todos os mundos, Entrei nos mares profundos, Sondei os gelos polares. Minha vida é um mistério Mais triste que o cemitério Mais agitada que os mares. A espanhola ou espinela: (sequência de rimas: a-b-b-a-a-c-c-d-d-c) Neste mundão enganoso Cheio de dificuldade Quem mais conhece a verdade É quem é mais mentiroso, Quem é mais jactancioso


É quem melhor aparece, Quem mais as coisas conhece É quem menos coisas tem, Viva mal ou viva bem Quem mais faz menos merece. Os poetas populares e cantadores também usam a parcela ou carretilha, estrofe de dez pés com cinco ou quatro sílabas. Veja-se: Morro e não esqueço De tudo que encerra Minha santa terra, Meu sagrado berço, Meu sertão de apreço, Solo abençoado, Hoje desterrado Me vejo proscrito Arrancando grito De um peito cansado. Na cantoria é bem maior o número de regras. Além da sextilha, setilha, oitava, décima, martelo agalopado, martelo de seis pés e parcela, temos o galope à beira-mar, à meia quadra, quadrão grande, dez de queixo caído, gabinete repetido, dez de adivinhação, coqueiro da Bahia, oitava em quadrão, quadrão perguntado, gemedeira, dez pés em quadrão, Brasil de pai Tomás, Brasil de pai João etc. Martelo de seis pés: (sequência de rimas: a-b-c-b-d-b) Josué o que isto amansa mano, Eu só creio numa coisa quando vejo, Elefante pra mim é um gafanhoto, Um leão para mim, um percevejo, Enfrentar uma onça maçaroca É merenda de bolo, doce e queijo.


Martelo agalopado: De um grito que eu dei no Cariri Abalei Cariri e Seridó, Carnaúbas, Parelhas, Caicó, Araruna, Cuité e Picuí, Currais Novos, Jardim e Acari, Soledade, Juazeirinho, Santo André, Brejo do Cruz, São Bento, Catolé, Patos, Sousa, Pombal e Cajazeiras, Só de um grito abalei estas fronteiras Avalie quando eu der um pontapé. Galope à beira-mar: A onda é bonita naquele vaivém, Tem onda pequena e que também cresce, Tem onda que sobe, tem onda que desce, Tem onda que vai, tem onda que vem, Tem onda cansada porque não mais tem Talento no corpo de se levantar, Mas sente outra onda por trás a empurrar E ela se ergue depois de empurrada, A onda que empurra cai também cansada E as duas se abraçam na beira do mar. Meia quadra: Se eu disser que dente é boca, Você diz que boca é dente, Se eu disser que pente é chifre Você diz que chifre é pente, Se eu disser que quente é morno Você diz que morno é quente, Se eu disser que pão é massa


Você diz que massa é pão Se eu disser que chão é areia Você diz que areia é chão, Se eu disser que areia é chão Você diz que chão é areia, Se eu disser que é meia quadra Você diz que é quadra e meia, Se eu disser que é quadra e meia Você diz que é meio quadrão. Quadrão grande: (sequência de rimas: a-a-a-b-b-c-c-b) É o campo, é a roça, é o mato, é o bredo É o susto, é a ação, é a fraqueza, é o medo, É o punho, é a palma, é a mão, é o dedo, É o dedo, é o punho, é a palma, é a mão, É a terra, é o ar, é o espaço, é o chão, É o chão, é o espaço, é o ar, é a terra, É a arma, é a luta, é a briga, é a guerra, É quadrado, é a quadra, a quadrilha, o quadrão. Os dez de queixo caído: Cai Manoel, cai Joaquim, Cai o rico, cai o pobre, Cai o plebeu, cai o nobre, Cai o bom, cai o ruim, Cai quem vier contra mim Porque está iludido, Cai esposa, cai marido, Cai quem tem, cai quem não tem, Só não cai quem canta bem O dez de queixo caído. Gabinete repetido: (sequência de rimas: a-b-b-a-a-c-d-c-d-c-e-c-f-c-g-c-h-h-c)


Eu estando no Pilar Quis ir de trem ao sertão, Dirigi-me a estação Para a passagem comprar, Era preciso tirar Uma passagem de trem, Sem cartão ninguém vai, Sem cartão ninguém vem, E cartão ninguém dá, E cartão ninguém tem, Nem é cem nem é dez Nem é dez nem é cem, Quem não tem dinheiro Não vai muito bem Se tiver com medo Faça assim também, Ou então vá de paquete Quem não canta gabinete Não é cantor pra ninguém. Os dez de adivinhação (dialogado) Cantador A

Era um feliz casal

Cantador B

Porém um dia chegou

A

Que o marido viajou

B

Pelas bandas do litoral

A

A esposa passou mal

B

Depois dele ter saído

A

Era um mal desconhecido

B

Grande doença era a dela

A

E o que faltava a ela

AeB

A presença do marido.


Coqueiro da Bahia: (repete os dois últimos versos) Preciso neste momento Fazer a minha viagem, Vou arrumar a bagagem Que está passando da hora, Não posso mais ter demora... Adeus até outro dia Quero ver meu bem agora, Quer ir mais eu vamos Quer ir mais eu vam’bora. Oitava em quadrão: Um dia em cima do serro Ouviu-se um estranho berro Era o grande trem de ferro Que chegava a estação Conduzindo um cidadão, Um cantador de repente Que cantava alegremente Uma oitava em quadrão. Quebra cabeça: Eu vou mas você não vai Você não vai mas eu vou Você não é mas eu sou Eu saio mas você não sai Eu não caio mas você cai Este segredo é pra mim Coisa boa no festim Eu faço e você não faz Sou eu ou você que traz? Quebra cabeça é assim.


Quadrão mineiro: Sou poeta repentista Em todo ponto de vista, Eu possuo o dom de artista, Sou cantador violeiro, Sou sonhador verdadeiro, Minha vida é sonho eterno No meu estilo moderno Cantando quadrão mineiro. Quadrão perguntado: (Dialogado) Cantador A

Para que serve a batina?

Cantador B

Para vestir o vigário,

A

Para que serve o rosário?

B

Para rezar a doutrina,

A

Para que serve uma esquina?

B

Para indicar quarteirão,

A

Para que serve o perdão?

B

Para perdoar pecado,

AeB

Isto é quadrão perguntado

AeB

Isto é responder quadrão.

Mourão dialogado: Cantador A

Vamos cantar um mourão Mas de mim não tenha dó,

Cantador B

Vou entrar na sua boca Vou sair no mocotó.

Cantador A

Mas vai sair diferente Porque entra como gente E vai sair merda só.


Dez pés em quadrão: (dialogado) Cantador A

Aí vem chegando um sapo

Cantador B

Ou por outra um cururu

A

Não vem vestido nem nu

B

Porém vem batendo o papo

A

É bom dar nele um sopapo

B

Ou por outro um empurrão

A

Retirá-lo do salão

B

Pegá-lo e jogar no mato

A

O guaxinim come o fato

AeB

Isto é dez pés em quadrão.

Gemedeira é uma sextilha com um “relaxo” (ai ai ui ui) entre a quinta e a sexta linhas. Veja-se: Hoje todo o mundo geme Do litoral ao sertão Sem terra pra trabalhar, Casa para habitação, Fernando Henrique sorrindo Ai ai ui ui Que pobre não tem razão. Brasil de pai Tomás: Curavam ventre caído E nervo desconjuntado, Enxaqueca, mal de olhado, Azia, pé desmentido, Mal-de-monte, dor de ouvido, Suor frio, corpo quente, Panarício, dor-de-dente Cobreiro, coceira, antraz Levavam pra pai Tomás,


Preto velho e pai Vicente. Brasil de caboco, de mãe preta e pai João. Brasil do caracaxá, Do quengo, do cacareco Do fole, do reco-reco, Do pandeiro, do ganzá, Do chibé, do aluá, Baião de dois, rubacão, Da farofa, do pirão, Da tapioca de coco, Este é Brasil de caboco, De mãe preta e pai João. Martelo alagoano é um martelo decassílabo que termina com uma mira: Nos dez pés de martelo alagoano. Martelo miudinho é um decassílabo igual ao martelo alagoano, só muda a mira de martelo alagoano para martelo miudinho. Mourão de cinco pés: uma estrofe de cinco pés cantada em diálogo: Cantador A

Sou poeta preparado

Cantador B

Eu também sou estudado

A

No campo do improviso Eu me responsabilizo De não fazer verso errado.

Oitavão rebatido: estrofe de oito pés de sete sílabas sendo as três primeiras com rimas cruzadas e as três seguintes com rimas emparelhadas e a última é um refrão. No oitavão rebatido (sequência de rimas: a-b-a-bc-c-c-b) a rima b sempre será em ido por causa do último verso. Meu verso é foco de luz É filho do bom sentido, Muito segredo traduz


No seu compasso medido. Tenho voz, tenho toada Tenho rima preparada Só canto nesta pisada No oitavão rebatido. Oitava corrida: estrofe de oito pés de sete sílabas com rimas na sequência a-b-a-b-a-b-a-b: Cantor pra cantar comigo Precisa muito segredo: Conhecer tudo que eu digo, Saber entrar no enredo, Ser versado em todo artigo, Pisar na ponta do dedo Senão entra no castigo E vai dormir muito cedo. Nonilha ou toada alagoana é uma estrofe de nove pés, sendo seis de sete sílabas (1°, 3°, 4°, 6°, 7° e 9°) e três de três sílabas (2°, 5°, 8°), com rimas assim distribuídas: a-a-b-c-c-b-d-d-b. Lá vou cantando contente No ambiente, O meu verso desta vez, Porque com todo o cuidado Tenho dado Prazer a vossas mercês, Vou cantando neste rumo Com aprumo Nove palavras por seis. Esta regra de cantoria é também chamada toada “Nove palavras por seis”.


Modalidades de mote Há quatro modalidades de motes a saber: mote de um, de dois, de três e de quatro pés. Cada modalidade tem uma maneira ou forma de ser glosada. O mote de um pé é chamado mira e glosa-se no final da estrofe. Mote: Jesus Filho de Maria. Deus é Onipotente Supremo que tudo cria: Céu e terra, noite e dia, Tudo que vemos presente, Ele é o Onisciente Com toda a soberania, Resolveu nascer um dia Para redimir o mundo. É mestre e Sábio Profundo Jesus Filho de Maria. No mote de dois pés há duas formas: ou se coloca os dois pés no final da estrofe -- forma mais usada – ou o primeiro pé é colocado no quarto verso e o segundo no derradeiro. No primeiro caso vejamos o mote: Eu aqui não sou querido/ Mas na minha terra eu sou. Vou-me embora, vou-me embora Pra minha boa terrinha, Porque lá a sorte é minha, O povo de lá me adora, Não quero mais ter demora, O momento já chegou, Preparado já estou, Antes já tivesse ido Eu aqui não sou querido Mas na minha terra eu sou.


Esta glosa de Moisés Sesiom enquadra-se no segundo caso: Escorei Nossa Senhora/ Com bacamarte na mão. Eu sem querer, muito embora Estava lendo um breviário Vi tombar um santuário Escorei Nossa Senhora E naquela mesma hora Travou-se grande questão, Transformei-me num leão Ao lado do padre cura Defendi a Virgem pura Com bacamarte na mão. No mote de três pés, coloca-se o primeiro na quarta linha da estrofe e os dois últimos no final: Já que aguardente é de Vênus,/ Eu sou de Vênus também/ Devo beber qualquer uma. Bebo alguns goles pequenos Da aguardente gloriosa, Acho sempre saborosa Já que aguardente é de Vênus, O meu pulmão mais ou menos Vai queimando e se acostuma, Então aquela que escuma Nunca ofendeu a ninguém, Eu sou de Vênus também Devo beber qualquer uma. No mote de quatro pés, coloca-se os dois primeiros na terceira e quarta linhas da estrofe e os dois últimos no final: Sei que chorando nasci./ E cantando hei de morrer,/ Cantando hei de encontrar/ Tudo que perdi chorando.


Cantando sempre vivi, O cantar me dá prazer, Cantando hei de morrer Porque chorando nasci. Chorando sempre perdi, Quero cantar até quando Deus quiser, sempre sonhando Sem gemer e sem chorar, Cantando hei de encontrar Tudo que perdi chorando. Estas modalidades de mote de três e quatro pés, por sua grande dificuldade em ser glosadas, estão praticamente em desuso. FIM


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