Real e de Viés
DE ÁLVARO DE AZEVEDO DIAZ
Real e de Viés DE ÁLVARO DE AZEVEDO DIAZ
A travessia do horizonte pelo buraco da agulha Como pensar o mundo através de fotografias que não correspondem com a imagem que temos dele? Diante das paisagens capturadas pela curiosa câmera de Álvaro de Azevedo Diaz, somos surpreendidos com horizontes curvos, objetos distorcidos, cores de intensidade inesperada: a fotografia não coincide com as imagens do mundo e não o “reflete”. Um ponto importante a ser considerado na análise das imagens produzidas por Álvaro é a natureza do equipamento elegido por ele: a câmera pinhole. Este equipamento pode ser construído artesanalmente e constitui-se de um ambiente oco e escuro (uma lata, uma caixa de sapatos, etc.), um pequeno furo em uma das faces e material fotossensível (filmes ou papéis fotográficos). Duas de suas características são determinantes para o método de trabalho do fotógrafo e para a leitura das imagens produzidas com esta técnica: a ausência de objetiva e de visor.
A objetiva (presente nas câmeras fotográficas comuns) ameniza o contraste entre o visto e o fotografado, nos induzindo algumas vezes a pensar a fotografia como um resultado da extensão do nosso olhar. Este elemento regulador institui uma aparente neutralidade sobre o objeto da fotografia. Nas câmeras pinhole o embate entre a luz e o material fotossensível é direto, fazendo com que a intensidade luminosa e suas bruscas variações sejam registradas sem atenuantes – fato que confere certa estranheza às imagens. Ao abrir mão de um visor, o fotógrafo aceita o desafio de produzir imagens sem vê-las de antemão. O enquadramento da cena a ser registrada (e por conseqüência a idéia convencional de composição) é uma etapa inexistente neste método de trabalho. O resultado são fotografias construídas a partir da cumplicidade entre o equipamento e seu operador. A idéia do gesto automático do “clique”, implícita no manejo da câmera fotografia convencional, está ausente na técnica da pinhole. O que está sempre em jogo é a eficiência do gesto de descobrir o pequeno orifício da câmera para permitir que a luz o atravesse e grave a imagem.
No ambiente oco e escuro da câmera pinhole, a paisagem escolhida por Álvaro vai atravessando o pequeno furo e se impregnando no material fotossensível a sua espera. Após a travessia, o horizonte é parcialmente restituído ao acomodar-se na tira de filme 35mm. Agora ele já é outro horizonte. As marcas do esforço da passagem da luz pelo ponto estreito, somadas aos rastros do ato fotográfico (traços de luz, sobreposições, deformações e sombras densas), se tornaram elementos constitutivos da fotografia modificando a paisagem. Os panoramas presentes nesta exposição, ao serem “contaminados” por rastros do procedimento fotográfico, testemunham o seu próprio processo de construção na superfície da imagem. O resultado dessa contaminação é a fabricação de paisagens nunca vistas no mundo. A dúvida sobre o que está em jogo nos panoramas de Real e de viés nos coloca em confronto com a natureza indicial da fotografia . Uma paisagem azul que vai longe, frutas de cera, guarda-sóis na praia num dia muito azul, melancias, prendedores de roupa vistos de perto, um “cisne prateado”, bicicleta e barcos na praia: paisagens imprevisíveis que nos perguntam sobre o mundo e a fotografia*. Que lugares são estes onde as coisas se organizam de forma estranha e o
fabricante do filme está sempre lá? Que dimensão atribuir à paisagem que acaba e começa numa tira de filme? Que tipo de operação é essa que torce, estica, infla e rompe as coisas de forma tão brutal? O vazio, a sobreposição, a saturação de cores e a fantasmagoria desconcertam a ordem das coisas: as paisagens produzidas por Álvaro não representam o mundo em sua aparente neutralidade objetiva e nos colocam em constante confronto com a natureza da fotografia. Fabiana Wielewicki Artista plástica, Bacharel em Artes Plásticas (UDESC, 2001) e Mestre em Artes Visuais (UFRGS, 2005). Atualmente realiza assessorias em Artes Plásticas para o SESC-SC e dirige o Centro Cultural Arquipélago com a artista Letícia Cardoso. Vive e trabalha em Florianópolis.
* É curioso pensar Real e de Viés no contexto atual, onde muitos programas de manipulação de imagens estão sendo aprimorados e largamente utilizados na criação de efeitos impactantes que distanciam a fotografia de sua relação objetiva com o mundo. A tecnologia desenvolve infinitas ferramentas que possibilitam o distanciamento do real através da manipulação digital de imagens. Um mundo de efeitos promete surpreender-nos. Diante dele, nós passamos habitualmente a ver as imagens a partir da lógica da manipulação digital. Mundo novo, efeito novo. A câmera pinhole está na contramão dessa corrida em busca novas ferramentas. Está situada na pré-história da fotografia e não deixa de surpreender-nos. Mas afinal, o que vemos nas fotografias de Real e de Viés? Muitas perguntas.
Achados e perdidos As imagens de Álvaro de Azevedo Diaz que compõem esta exposição provocam certo desconforto no observador – sentimento que se agrava quando se é amigo do autor, como no meu caso. Entender as razões desse desconforto, contudo, talvez ajude a formular uma interpretação sobre o sentido do trabalho do fotógrafo, no contexto da convergência digital. Como se sabe, a digitalização multiplicou o ato fotográfico, radicalizando a popularização iniciada pelas máquinas portáteis. Hoje, quase tudo fotografa: telefones, computadores, players – e até câmeras. E, com isso, tudo se fotografa, ampliando ao infinito o repertório dos temas clássicos dessa arte. “Vulgarização”, apontam os apocalípticos; “democratização”, reputam os integrados. Além disso, tudo se publica, à margem de filtros técnicos, hierárquicos ou de mérito. A proliferação de fotografias que têm como tema o ato sexual é um exemplo cheio de significado: essa peculiar combinação de narcisismo e vontade de potência estende o gozo para além das fronteiras em que estava limitado.
Talvez para protestar contra essa overdose, talvez apenas para reiterar a observação do fenômeno, não há paisagens especiais ou retratos de personalidade nas imagens desta exposição. Sequer se pode afirmar que são cenas do cotidiano – há empenho em desconstruir a relação do fotógrafo com o objeto, em minimizar as influências de um e de outro sobre a foto. É como se as paisagens ou naturezas-mortas entrassem espontaneamente pelo buraco da lata; como se o negativo fosse dotado de autonomia para escolher seu tema. Tudo é fotografável, nos diz cada imagem. Agrego-as em duplas: melancias e frutas de cera são naturezas-mortas; prendedores e guardas-sóis são artifícios; as vistas de prédios são molduras, janelas; bicicletas e barcos compõem um retrato do passado; automóveis e cidades longínquas são paisagens de um road-movie. Há todo um contraste aí, típico da modernidade tardia – sociedade de risco, traços de colonialismo, novo-riquismo. De viés, o irreal se insinua em cada imagem. Esse discurso sem palavras é reforçado e ressignificado pelos ângulos inusitados do enquadramento. A curvatura da linha do horizonte nos lembra que estamos novamente diante de uma representação cujo sentido é dado pela força da luz – não pela vontade de retratar o “real”, ou seja, de reproduzir tecnicamente a imagem do mundo, como se fosse pelo olhar do homem. O desequilíbrio entre céu e paisagem – ao menos, para os critérios da composição clássica -– reitera: não importa para onde olhamos.
Em formato ultra-wide-screen, o filme se expõe (em ambos os sentidos: depois de exposto à luz, revela na cópia a sua própria estrutura). Marcas da manipulação produzem uma imagem irrepetível. Nem o auxílio do mais completo software é suficiente para que um editor de fotografia imite os sinais incontroláveis desse processo. Há infiltrações de luz, manchas de fitas adesivas, superexposições, subexposições, sujeira, danos no negativo, marcas deixadas pelo fabricante do filme ou pelo laboratório. Álvaro Diaz nos diz: tudo isso é parte da foto. Qualquer tentativa de reproduzir digitalmente a riqueza pictórica típica dessa técnica analógica resultaria em pastiche. Há algo, portanto, em vias de se perder com a popularização do digital. Os exemplos estão em toda parte. Este texto foi concluído no dia em que Fidel Castro anunciou sua renúncia. As imagens que ilustraram a cobertura jornalística, olhares recentes sobre o político mais icônico de nosso tempo, eram límpidas, harmônicas, quase translúcidas de tão eloqüentes. Numa palavra: digitais. Terá a digitalização dado à fotografia ainda maior artificialidade? Terá a transformado num bastardo – digamos – da publicidade, retratando um mundo edulcorado, asséptico, retocado? O que a recepção acrítica do digital como “progresso” ou “evolução” deixa de lado? Técnicas analógicas contrariam a pasteurização digital do mundo?
Não se entenda, a partir dessas questões, que o fotógrafo rejeita a digitalização, como um ludista pós-moderno. Longe disso: os negativos foram escaneados e o contraste, ajustado, o que deu às cores a firmeza que ostentam. Sem tal procedimento, as imagens não poderiam ter sido ampliadas até as grandes dimensões que mereceram. Aqui, portanto, a digitalização não é um fim em si. Contemplar criticamente a paisagem tecnológica que nos cerca parece, de fato, o objeto principal das câmeras sem lentes de Álvaro de Azevedo Diaz.
Jacques Mick Jornalista, doutor em Sociologia Política, professor da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, de Joinville (SC)
Álvaro de Azevedo Diaz mora em Florianópolis e começou a fotografar em 1979. É fotógrafo, professor, artista plástico e curador. Participou de diversas exposições, individuais e coletivas, em salões, museus e galerias no Brasil e no exterior. Destacam-se o V Salão Nacional Victor Meirelles de Artes Plásticas em 1997, o 7º Salão de Artes do Museu de Arte Moderna da Bahia em 2001, a participação no 27º Panorama da Arte Brasileira em 2002 ao lado de Fernanda Magalhães e a exposição coletiva itinerante Moments of Intimacy, Laughter and Kinship Photographic Competition que percorreu a Europa, Japão, Austrália, Estados Unidos e Canadá. Atualmente é professor de fotografia do Curso de Comunicação Social da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, em Joinville, Santa Catarina.
Real e de Viés DE ÁLVARO DE AZEVEDO DIAZ
PRESIDÊNCIA DO SISTEMA FECOMÉRCIO/SC Antônio Edmundo Pacheco
COORDENAÇÃO SETOR DE CULTURA Maria Teresa Piccoli e Valdemir Klamt
DIRETOR REGIONAL DO SESC Roberto Anastácio Martins
CURADORIA Fabiana Wielewicki
DIRETORA DE PROGRAMAÇÃO SOCIAL Leila Echer
PROJETO GRÁFICO Vanessa Schultz [Traça Editorial]
REALIZAÇÃO
REALIZAÇÃO