EU naO SOU O MEU CORPO
O DESRESPEITO
A IDENTIDADE
DE GENERO NO JORNALISMO
BRASILEIRO JULIANNA MOTTER
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Trabalho apresentado como requisito de Bacharel ao curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Faculdade de Tecnologia e Ciências Sociais Aplicadas do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Orientadora: Dra. Flor Marlene E. Lopes.
EU naO SOU O MEU CORPO
O DESRESPEITO
A IDENTIDADE
DE GENERO NO JORNALISMO
BRASILEIRO
JULIANNA MOTTER
AGRADECIMENTOS Eu sempre me perguntei: “por que meus amores incitam o ódio alheio?”. Mas, primeiro, me vi instigada a buscar respostas para outras questões prementes que podem oferecer a chave para decifrar a precedente: até que ponto sou o que amo? Até que ponto algo que sou ocupa o lugar daquilo que me classifica? Até que ponto eu sou o meu corpo, na medida em que ele responde a certos apelos sexuais, aos meus desejos, expressões, identidades? Até que ponto alguém pode ser reduzido ao seu corpo? Em que lógica essa relação entre corpo e sociedade opera? Eu ainda não sei exatamente e estive, desde o começo até a conclusão do presente trabalho, procurando responder algumas das perguntas mais insistentes. Porém obtive, no máximo, alguns insights e respostas parciais, que remetem a outros questionamentos e exigem desenvolvimento de mais pesquisas e reflexões. Por outro lado, as respostas das pessoas ao meu redor me preencheram de uma força de vontade para seguir elaborando perguntas e para seguir adiante, mesmo sem encontrá-las. As respostas dessas pessoas me lembraram que o importante é, acima de tudo, o percurso intelectual, que se torna mais fascinante quando há engajamento em relação ao tema do projeto de pesquisa. E, não necessariamente, um resultado exato, compartimentalizado, inquestionável. Exatamente, não. É a isso que me propus e a isso que espero me propor nas próximas etapas da minha formação profissional e acadêmica: contribuir para quebrar a lógica dominante, suscitar novas perguntas e questionamentos
– mais do que respostas. Devo essa descoberta de minha capacidade inquietante e inquietadora à minha orientadora e grande incentivadora, Dra. Flor Marlene Lopes. Um encontro de importância decisiva para a minha vida acadêmica e pessoal, a quem confiei algumas de minhas maiores questões e suspeitas e sempre obtive as melhores respostas – em forma de perguntas. E também a outros professores, mestres nessa arte de não satisfazer-se com pouco: Sérgio Euclides, Luiz Claudio Ferreira, Vivaldo de Sousa, Renata Bittencourt e tantos outros. Quero agradecer também aos meus colegas discentes pelo companheirismo ao longo desses quase quatro anos e ao Centro Universitário de Brasília (UniCeub), pela estrutura, pelo acolhimento, pelas oportunidades e pelas partes discordantes, é claro. Um agradecimento especial aos meus fiéis amigos e companheiros, Fernanda Roza, Pedro Lins e Rafaela Soares, por todos os aprendizados, atrasos, pressas, abraços, confissões e, especialmente, por termos partilhado dos altos e baixos da rotina acadêmica com tanto amor, respeito e companheirismo. Vou levá-los no meu coração porque, juntos, somos imbatíveis. Vocês me ensinaram a ser uma pessoa melhor. Quero agradecer ao meu pai, Paulino, e à minha tia Sonia. Eles foram meus dois orientadores extracurriculares, sem os quais este trabalho não seria possível. Obrigada pelas críticas, pelo apoio e pelas novas perguntas. Vocês me inspiram a crescer cada vez mais, a ir cada vez mais alto, sem nunca me deixar esquecer a importância dos pés para o chão – ou o contrário. Espero, um dia, poder retribuir todas as
apostas de vocês em mim. “Amor” não definiria o que sinto por vocês. Não posso deixar de fora dois presentes: minha “boadrasta” e grande amiga, Fernanda e minha irmã caçula, Helena. Vocês fizeram e fazem nossas vidas mais bonitas. Meus irmãos, Paula e Otávio, meus grandes companheiros, fundamentais em minha formação como pessoa. Quero agradecer também à minha avó, à prima Dani, à tia Simone e ao meu “bomdrasto” Laélio pelo acolhimento, a companhia e o carinho. Este agradecimento se estende a todos os meus amigos e familiares, que sempre me serviram de inspiração – não vou correr o risco de esquecer o nome de alguém. Amo todos vocês. Quero agradecer, especialmente, à minha mãe, Silvana, que, de algum lugar, deve estar se perguntando que loucura foi essa na qual me meti. Obrigada por ter me ensinado a ter forças para chegar até aqui. Sei que você está muito orgulhosa por esta conquista. Eu sempre imaginei que você estaria aqui para celebrar comigo e, de alguma forma, está. E agradeço, do fundo do meu coração, a quem me ensinou que o amor é o motor de tantas coisas boas, a confiar em mim mesma e a continuar remando, mesmo quando a maré não ajuda. Obrigada, Alyssa, por ter suportado minha ansiedade, meu estresse, nervosismo, mau humor. Obrigada por ter me ajudado a organizar as ideias, a diagramar, a respirar fundo e a tornar este trabalho realidade. É impossível saber o que está por vir, mas com você eu não tenho medo. Por fim, eu dedico este projeto a todas as pessoas que aceitaram participar e que abriram um pouco de suas vidas e corações para mim. Aria, Roxelle, Gabriel, Sabrina, Daniela, Ariel e Renata continuem
enchendo o mundo de esperança. Sou imensamente grata por ter tido a chance de ouvir a história de cada um. Vocês, com certeza, mudaram minha vida e mudarão a de várias pessoas ao longo do caminho. E que ninguém esqueça que amor também é resistência. “ O corpo não é parede nem pedra que nada penetra: Não. O corpo aceita perdão e se perde pela pele ou pensamento dissipa-se, escapa: esquece a ponta do pé o toque o tato o contato. O corpo quando dorme sonha com coisas concretas que nunca poderá tocar. O corpo é o cais e o barco e o mar.” (Laura Liuzzi)
SUMÁRIO
12 15 INTRODUÇÃO 25 TEMA RESUMO
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ESCOLHA DO TEMA
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OBJETO
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OBJETIVOS gerais e específicos
JUSTIFICATIVA
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REFERENCIAL TEÓRICO GÊNERO, SEXUALIDADE IDENTIDADE E EXPRESSÕES OS SABERES SUBALTERNOS OU UMA GENEALOGIA DA TEORIA QUEER CISGENERIDADE E TRANSGENERIDADE E O MOVIMENTO LGBT DIFERENÇAS ENTRE TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E TRANSGÊNEROS EU NÃO SOU O MEU CORPO E O JORNALISMO BRASILEIRO
65 METODOLOGIA
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MEMORIAL DESCRITIVO ANALÍTICO
83 85
SABRINA ARIA GABRIEL DANIELA ROXELLE ARIEL 133 DANIELA
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ENTREVISTAS E NARRATIVAS
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FOTOGRAFIAS
101 ARIA
151 ROXELLE
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INTERVENÇÕES
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167 ARIEL E RENATA
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IDENTIDADE VISUAL
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
SABRINA
GABRIEL
181 REFERÊNCIAS 197 BIBLIOGRÁFICAS
CONTRA CORPO O APRENDIZADO QUEER
RESUMO Este Trabalho de Conclusão de Curso – TCC – é um projeto experimental que consiste na produção de um livro-reportagem, intitulado “Eu Não Sou o Meu Corpo – O Desrespeito à Identidade de Gênero no Jornalismo Brasileiro”. A obra se fundamenta em uma experimentação, mesclando elementos jornalísticos das reportagens e do new journalism, contando, com um viés narrativo e literário, a história de diferentes travestis, transexuais e transgêneros brasileiros. Sua fundamentação teórica utiliza elementos oriundos das pesquisas de teoria Queer, análise do discurso e análise da mídia, bem como de estudos do campo da Filosofia, da Sociologia e da Psicologia. Este instrumental teórico permite abordar as áreas temáticas de gênero e sexualidade; com fotografias, colagens e intervenções poéticas para explorar a questão da identidade de gênero no jornalismo brasileiro e dar visibilidade a pessoas que permanecem à margem da sociedade e da grande mídia. Gênero no Jornalismo Brasileiro e dar visibilidade a pessoas que permanecem à margem da sociedade e da grande mídia.
PALAVRAS-CHAVE: LIVRO-REPORTAGEM; TEORIA QUEER; TRANSEXUALIDADE; TRANSGENERIDADE; TRAVESTIS; IDENTIDADE DE GÊNERO; ANÁLISE DE MÍDIA; INTERVENÇÃO.
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IN TRO DU ÇÃO 15
INTRODUÇÃO Há alguns anos, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais vêm ganhando, de maneira genérica e desigual, mais espaço na mídia brasileira. Essa visibilidade, no entanto, nem sempre é isenta de juízos de valor, especialmente ao tratar da população “T” ou “trans”. Mesmo com alguns avanços recentes trazidos por inovações legislativas, políticas públicas e práticas sociais que estimulam a inclusão, a exposição de celebridades trans na mídia e a presença de pessoas com manifestações diversas de gênero e sexualidade nos mais variados espaços midiáticos e acadêmicos, é comum deparar-se ainda com a utilização de termos, formas de tratamento e expressões que reforçam preconceitos e estigmas. Ao abordarem a diversidade sexual e de gênero em seus conteúdos noticiosos, mesmo havendo a intenção de promover a inclusão e a igualdade, muitos veículos jornalísticos acabam revelando desconhecimento ou até mesmo preconceitos, prestando um desserviço à comunidade LGBTQIA (lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersex e assexuais) e à sociedade como um todo.
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Os materiais noticiosos desses veículos acabam reduzindo esses indivíduos “queer” às suas identidades contra-hegemônicas e, portanto, a seus corpos. Esse enquadramento prevalente faz com que suas identidades como indivíduos e cidadãos estejam subordinadas às suas identidades diversas de sexualidade e de gênero, negando-lhes, assim, a multidimensionalidade humana, composta por outras características – como a história, a genealogia, a profissão, os hobbies e as preferências. Dessa forma, a mídia contribui para reforçar estigmas, preconceito e discriminação. Cabe aos acadêmicos e comunicadores, criticamente, perguntar-se até que ponto uma única característica, ou parte de um corpo, como reforçou Bento (2015, p. 14) poderia ser capaz de definir toda a complexidade de um ser. Jesus (2012) ressalta a necessidade de respeitar a identidade da pessoa, ou grupo, a partir de sua auto-identificação, ou seja, a partir de seu próprio vocabulário, mediante a apropriação dos termos que esse indivíduo, ou grupo, emprega sobre si mesmo, desfazendo-se de rótulos. Dessa forma, ao assumir uma atitude eticamente correta, torna-se possível contribuir para o respeito à sua integridade e seus direitos.
UM DELES LEVA ALGUNS A ESQUECER QUE A PESSOA TRANSGÊNERO VIVENCIA OUTROS ASPECTOS DE SUA HUMANIDADE ALÉM DOS RELACIONADOS À SUA IDENTIDADE DE GÊNERO, QUE NÃO A DE SER UMA PESSOA TRANSEXUAL (...) ELA TEM RAÇA, CLASSE, ORIGEM GEOGRÁFICA, RELIGIÃO, IDADE, UMA RICA HISTÓRIA DE VIDA, PARA ALÉM DA TRANSEXUALIDADE (JESUS, 2012, P. 7).
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ESCREVER OU FALAR CONFORME UM VOCABULÁRIO RECONHECIDO PELAS PESSOAS REPRESENTADAS É ESSENCIAL PARA VALORIZAR A CIDADANIA. COM RELAÇÃO A TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, É COMUM O USO DE EXPRESSÕES QUE LEVAM A CONCEPÇÕES ERRÔNEAS SOBRE A VIVÊNCIA E OS DESAFIOS DESSAS PESSOAS (JESUS, 2015, P. 13). No caso específico do tratamento dispensado às pessoas transgênero, aquelas cujo sexo biológico não é correspondente ao gênero com o qual se identificam – psicologicamente, socialmente ou culturalmente –, alguns veículos assumem uma atitude que poderia ser classificada como “transfóbica”. O termo “transfobia”, como esclarece Jesus (2012), tem sido utilizado para “se referir a preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas transgênero, de forma geral” (JESUS, 2012, p. 7). O framing prevalente na mídia aborda a diversidade sob o prisma do exotismo, ressaltando o que considera como um comportamento “desviante”. Dessa forma, demonstrando uma despreocupação com os indivíduos diversos e reforçando sua capacidade de engendrar padrões de normalidade. A mídia promove, assim, a subalternidade – garantindo a hegemonia – e dissemina o preconceito institucionalizado, comandado por uma cultura de heterossexualidade e cisgeneridade compulsórias, em que a binariedade de gênero acaba sendo reforçada em um regime epistemológico incontestável (BUTLER, 2015).
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“Explicar as categorias fundicionais de sexo, gênero e desejo como efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação crítica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de ‘genealogia’. A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. A tarefa dessa investigação é centrar-se – e desencentrar-se – nessas instituições definidoras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2015, p. 9). Ainda que sejam publicadas, quase diariamente e nas mais variadas plataformas midiáticas brasileiras, reportagens que abordam, direta ou indiretamente, a diversidade das orientações sexuais e das identidades de gêneros, presentes na sociedade, a visibilidade dada a esses sujeitos “desviantes” parece não dar conta da gramática da diversidade. Frequentemente, as abordagens jornalísticas entram em desacordo com as diversas representações, especialmente no que diz respeito ao leque plural de identidades de gênero. Tanto nos veículos tradicionais, como os jornais e as revistas impressos, quanto nas novas mídias – que englobam portais noticiosos, blogs, páginas e perfis nas redes sociais –, é possível encontrar facilmente o emprego das identidades de gênero como marcadores de diferença.
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Na maior parte das vezes, essas categorias são utilizadas na tentativa de diferenciar os indivíduos, de limitá-los aos seus corpos, como se as pessoas trans não tivessem qualquer outra identidade que não seja a do gênero – socialmente construído e expresso e performado em seu corpo físico. Ou seja, a mídia acaba contribuindo para que “os ‘marcadores biológicos’”, conforme observa Bento (2015, p.13), sejam transformados em “marcadores sociais da desigualdade”. Essa desigualdade, regulamentada pela mídia, contribui para o genocídio da população trans que, além de sofrer com a carência de políticas públicas e de medidas de saúde voltadas para suas necessidades específicas, lida diariamente com uma violência institucionalizada e sistemática.
De acordo com a ONG internacional Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e transexuais. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013, foram registradas 486 mortes, número quatro
vezes maior do que no México, que ocupa a segunda posição da lista. Essa cifra engloba apenas os assassinatos rastreados por organizações atuantes em cada país, como é o caso do Grupo Gay da Bahia (GGB), no Brasil. Os marcadores de diferença – uma forma de tratamento que não ocorre com indivíduos cisgêneros – estabelecem um flagrante desacordo com a Constituição Federal que, em seu artigo quinto, determina que todos os cidadãos e cidadãs são iguais e, portanto, devem receber o mesmo tratamento, e que a Dignidade Humana é um bem imensurável
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e deve ser protegido pelo Estado e garantido pela Sociedade (Constituição, 1988) O presente trabalho de conclusão de curso parte da premissa de que os profissionais de comunicação formam, diariamente, a opinião pública de milhões de brasileiros e brasileiras por meio dos diversos veículos, e que, portanto, a mídia pode servir de instrumento para auxiliar na transformação social. “Eu Não Sou o Meu Corpo – O Desrespeito à Identidade de Gênero no Jornalismo Brasileiro” pretende seguir à risca os preceitos fixados pelo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, notadamente o previsto em seu artigo 6o, o qual estabelece que é dever do jornalista “combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza” (FENAJ, 2007). O pressuposto adotado neste trabalho coincide com a conclusão dos estudos realizados por Leite Júnior (2011, p. 25), segundo os quais “definições únicas e definitivas sobre corpos e identidade sexuais e seus limites entre masculinidades e feminilidades nunca existiram, variando conforme os grupos e os discursos (médicos, religiosos, políticos) mesmo em uma época específica”. O formato de livro-reportagem experimental foi escolhido para cumprir com o objetivo de respeitar a singularidade e a autoidentificação de indivíduos da comunidade trans. Realizei seis entrevistas em profundidade com travestis e
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transexuais, outras entrevistas online com pessoas trans de diversas cidades do país, além de leituras teóricas, cobrindo, entre outros campos de saberes, os seguintes temas: estudos da teoria Queer; análise de mídia; análise do discurso. Para compor o livro-reportagem experimental, também elaborei dois tipos de intervenções artísticas: a colagem e a coleta de fotos e ensaios fotográficos com pessoas trans e apoiadores da causa. O estudo realizado pretende contribuir para a construção de uma sociedade desengessada e diversa. Neste sentido, propõe uma reconstrução do discurso de gênero dentro do jornalismo brasileiro, questionando a hegemonia da binariedade de gênero e da heterossexualidade como padrões normativos dentro da sociedade e da própria mídia.
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TE MA 25
ESCOLHA DO TEMA A escolha do tema “Eu Não Sou o Meu Corpo – O Desrespeito à Identidade de Gênero no Jornalismo Brasileiro” deu-se a partir de um grande interesse pessoal pelos assuntos que tangem as questões de identidade de gênero, diversidade sexual e direitos humanos; e, em particular, como um reflexo da observação de uma dificuldade ou incapacidade que diferentes veículos jornalísticos demonstram na abordagem de temas referentes à comunidade LGBTQIA em materiais noticiosos, especialmente ao se tratar da população trans. A partir da conciliação de aportes teóricos advindos da teoria Queer, da análise da mídia e da análise do discurso, o livro-reportagem pretende trazer, primeiro, reflexões relevantes para a construção de um jornalismo mais humano e ético, sensível às causas das minorias e, segundo, suscitar reflexões em torno do papel da grande mídia na formação ideológica de massa e nas consequências dos discursos guiados pela heteronomartização da mídia e da própria sociedade, que estimulam o preconceito, a intolerância e – na suas manifestações mais extremadas – o ódio. O livro-reportagem experimental foi o formato escolhido por ser o mais apropriado para conciliar as entrevistas em profundidade, as bases teóricas e as intervenções artísticas (fotografias, colagens e intervenções).
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OBJETO Este TCC possui como objetivo a produção de um livro-reportagem, de caráter experimental, acadêmico e sem fins lucrativos, que aborda a realidade de pessoas trans no Brasil, suas representações na mídia brasileira e apresenta reflexões artísticas, poéticas e teóricas acerca da conduta jornalística.
OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS Este livro-reportagem tem como objetivo principal chamar a atenção da comunidade acadêmica, dos profissionais da área de comunicação e da sociedade em geral para o desrespeito diário à identidade de gênero no jornalismo brasileiro, trazendo as histórias de pessoas por trás dos “marcadores de diferença” e refletindo sobre a forma como as questões da diversidade sexual e de gênero têm sido tratadas na mídia e quais os reflexos dessas abordagens na formação da sociedade. Além do objetivo principal, pretende-se: • Demonstrar como a questão da identidade de gênero é pouco conhecida e respeitada pela mídia; • Dar visibilidade às pessoas trans; • Aliar a profundidade de um livro-reportagem com a teoria e com a experimentação política das intervenções artísticas (colagens, fotografias e intervenções); • Questionar a hegemonia do sistema de binarismos de gênero na grande mídia;
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JUSTIFICATIVA A escolha do tema “Eu Não Sou o Meu Corpo – O Desrespeito à Identidade de Gênero no Jornalismo Brasileiro” se deu a partir de uma vontade pessoal de promover debates em torno das questões da diversidade sexual e de gênero especialmente voltadas à realidade contemporânea brasileira, bem como de seus espaços dentro da mídia. Conforme tem sido observado por vários analistas e militantes sociais, o país tem hoje a composição mais conservadora do Congresso Nacional desde 1964. Este cenário torna-se mais preocupante diante de grandes retrocessos recentes, como a exclusão das questões de gênero e sexualidade do Plano Nacional de Educação (PNE) e dos Planos Estaduais e Municipais. O clima crescentemente hostil às questões de diversidade sexual e de gênero, que se reflete no tratamento dado pela mídia e na sociedade como um todo, torna esse debate ainda mais urgente e necessário. O recorte adotado com foco nas pessoas trans é resultado de uma observação sistemática da representação desses indivíduos em diferentes veículos jornalísticos. Os dados da violência contra pessoas transexuais, a falta de oportunidades para essas pessoas no mercado de trabalho e a discriminação institucionalizada, reflexos da patologização da transexualidade – que encontra sua reprodução na mídia –, foram todos os aspectos que despertaram maior interesse pelo tema. O livro-reportagem experimental foi a alternativa encontrada para cumprir com os objetivos do projeto: por meio da narrativa da reporta-
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gem ecoar a voz de pessoas trans, contando suas histórias e experiências, dando a elas o protagonismo e o devido lugar de fala, trazendo, também, reflexões teóricas advindas da teoria Queer e da análise crítica da mídia, além das intervenções artísticas anteriormente citadas. O título “Eu Não Sou o Meu Corpo” faz referência a uma reflexão de Bento (2015) sobre a frequente redução das pessoas trans às suas identidades de gênero, limitando suas identidades como seres humanos à transexualidade, situação que ocorre principalmente na mídia, como o exemplo: “Keanu Reeves é visto beijando atriz transexual” . O projeto experimental parte da premissa de que o fundamental é, acima de tudo, trazer para o público reflexões relevantes para a construção de um jornalismo mais humano e ético, interessado e sensível às demandas das minorias, com ênfase no papel da grande mídia na formação ideológica de massa e nas consequências dos discursos guiados pela binariedade compulsória dentro da própria sociedade. Fonte:R7
; o r e n ê e g s i c r o t a o d n a j i e b a t s i v é e n o t y a Jamie isCtl a ao video ass 29
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REFE REN CIAL TEÓ RICO
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GÊNERO, SEXUALIDADE, IDENTIDADE E EXPRESSÕES Para pensar as questões de gênero, sexualidade e identidade é necessário pensar, primeiro, no sujeito. Quem é o indivíduo, sua identidade e o papel que ele assume, ou melhor, que lhes são atribuídos no âmbito social. Fazendo-se necessária então a desconexão dessas categorias – de sujeito e de indivíduo - do âmbito familiar, entendendo que o corpo é, acima tudo, um ser político – como são políticas todas as suas ações e manifestações. Um dos autores que deu início às reflexões sobre a sexualidade humana a partir de uma análise das situações de poder envolvidas foi Foucault (1988). A provocação do filósofo francês sobre os discursos de poder embutidos no prazer e na sexualidade abriu leque para aquilo que viria a ser, no futuro, a teoria Queer: uma gama de estudos voltados para a diversidade de identidades, de gênero e de sexualidade que se apropriou daquilo que seu próprio nome enuncia – o “queer”, o estranho, o desviante.
POR QUE SE FALOU DA SEXUALIDADE, E O QUE SE DISSE? QUAIS OS EFEITOS DE PODER INDUZIDOS PELO QUE SE DIZIA? QUAIS AS RELAÇÕES ENTRE ESSES DISCURSOS, ESSES EFEITOS DE PRAZER E OS PRAZERES NOS QUAIS SE INVESTIAM? QUE SABER SE FORMAVA A PARTIR DAÍ? EM SUMA, TRATA-SE DE DETERMINAR, EM SEU FUNCIONAMENTO E EM SUAS RAZÕES DE SER, O REGIME DE PODERSABER-PRAZER QUE SUSTENTA, ENTRE NÓS, O DISCURSO SOBRE A SEXUALIDADE HUMANA (FOUCAULT, 1988, P. 16). 32
A teoria Queer, portanto, centra seus objetos de interesse nos sujeitos que se desviam das normas de gênero e sexualidade. Normas essas que, ditadas pelo poder, construíram a binariedade de gênero e a heterossexualidade compulsória e trabalham para mantê-las como experiências hegemônicas e incontestáveis (BUTLER, 2015). Mas, para melhor entender os conceitos de gênero e sexualidade, é preciso compreender que, embora os dois termos sejam, frequentemente, confundidos e utilizados como equivalentes e intercambiáveis pelo senso comum, eles dizem respeito, na verdade, a categorias diferentes da experiência humana. É frequente, inclusive na mídia, deparar-se com esse tipo de erro primário. Como o exemplo: “Cantora transexual sofre agressão homofóbica em Porto Alegre ”. A transexualidade não colocada adequadamente como objeto da homofobia, porque os dois termos não dizem respeito a um mesmo aspecto. Fonte:G1
dO: a r o m a n ia r o a r u m g i o f c n o tava e nao se c bia. s e a i r e l a V taqu vez heterofo a o , a j e Ou s omofobia. Tal a! como h rteza transfobi Com ce
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A transgeneridade diz respeito à identidade de gênero e não está necessariamente relacionada com a orientação sexual – expressa no título da matéria a partir do termo “homofobia”. A agressão citada na matéria pode ter sido motivada por transfobia e só seria uma agressão de teor homofóbico se a cantora agredida se relacionasse com outras mulheres – afinal, ela é uma mulher transexual – e essa fosse a motivação para a agressão. O gênero não é determinado pelo sexo biológico. Ele não é, portanto, uma condição natural, que nasce em concomitância com cada indivíduo. Muito pelo contrário, é uma característica condicionada, uma construção social que impõe regras de comportamento e reforça hierarquias. Os gêneros, masculino e feminino, são constituídos por normas de enquadramento social, ditadas pela binarismo, em que, por exemplo, o “azul é para meninos” e o “rosa é para meninas”. E é percebida transgressão dessa lógica de gênero o principal fator de exclusão social de travestis e transexuais.
SEXO É BIOLÓGICO, GÊNERO É SOCIAL. E O GÊNERO VAI ALÉM DO SEXO: O QUE IMPORTA, NA DEFINIÇÃO DO QUE É SER HOMEM OU MULHER, NÃO SÃO OS CROMOSSOMOS OU A CONFORMAÇÃO GENITAL, MAS A AUTO-PERCEPÇÃO E A FORMA COMO A PESSOA SE EXPRESSA SOCIALMENTE (JESUS, 2012, P. 6).
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O gênero é, portanto, uma construção social alheia aos órgãos genitais e ao sexo que nos é designado a partir deles. É possível pensarmos as categorias de gênero a partir do conceito de performatividade (BUTLER, 2015). Os indivíduos “performam” características, comportamentos, atitudes, corpos que foram designados a um gênero ou outro: “Mulher senta de pernas cruzadas, usa saia e batom”. Neste momento, é possível recorrer a Simone de Beauvoir (1949): “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Por trabalhar com a subjetivação, O FATO DE A GENITÁLIA o conceito de gênero está sempre em NÃO SER RESPONSÁVEL movimento. Ele diz respeito à maneira PELA DEFINIÇÃO DO pela qual o indivíduo se percebe no QUE É SER HOMEM mundo, e não o contrário. OU O QUE É SER Inclusive, é preciso ter em mente MULHER, REFORÇA que o binarismo não só abre espaço A “NECESSIDADE para transgressões das expressões DE SE CRITICAR O de gênero, mas das próprias SEXO BIOLÓGICO identidades. Além da cisgeneridade e COMO ELEMENTO da transexualidade, existem sujeitos ORIENTADOR DOS de gêneros que subvertem a identidade DISCURSOS SOCAIS, binária, não se apresentando nem INCLUINDO OS como mulher ou homem trans, nem CIENTÍFICOS, E DAS como mulher ou homem cis, mas como POLÍTICAS PÚBLICAS sujeitos não-binários. (JESUS, 2012, P. 5).
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A questão do gênero difere do sexo. Este, conforme já foi dito, é uma determinação biológica, enquanto aquele é uma construção social. A biologia não é o destino de um indivíduo subjetivo e complexo. “Sexo é entendido como sendo uma característica invariável, definida anatomicamente e de aspectos factuais” (BUTLER, 1986, p. 35). Por outro lado, o gênero é um processo que varia em diferentes contextos sociais, culturais e históricos. A questão da sexualidade está associada à vontade do sujeito, com o gênero com o qual a pessoa se relaciona afetivo-sexualmente. Um homem cisgênero que se relaciona com uma mulher cisgênero é heterossexual, da mesma forma como um homem cisgênero que se relaciona com uma mulher transexual – e vice-versa. Um homem transgênero que se relaciona com uma mulher transgênero é heterossexual, dois homens cisgêneros que se relacionam são homossexuais, duas mulheres transexuais que se relacionam são homossexuais. Mulheres cisgêneros que se relacionam com mulheres e homens cisgêneros são bissexuais. Pessoas que se relacionam com pessoas independente do gênero – masculino, feminino ou não-binário – e independente da identidade de gênero – cisgênero ou transgênero – é pansexual. Conclue-se, portanto, que a orientação sexual não tem, necessariamente, relação com a identidade de gênero, embora pessoas trans constem e sejam identificadas em grupos sócio-políticos LBTQIA. Pessoas trans podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais ou mesmo assexuadas. É necessário ter claro que todas as manifestações, expressões e
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identidades de gênero e sexualidade passam por práticas reguladoras ditadas pela binariedade, pelo cisnomartivismo e pela heterossexualidade compulsória. Isso quer dizer que só é possível ter uma identidade na medida em que ela é culturalmente inteligível.
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Os indivíduos só são reconhecidos como sujeitos a partir do momento em que são compreendidos pelos outros. Portanto, afirmar a construção social dos gêneros e sexualidades como um processo subjetivo não significa confundir esse caráter com uma abstração total, mas como materialidade. Como reforça Butler (2015), “Declarar que o gênero é construído não é afirmar sua ilusão ou artificialidade” (BUTLER, 2015, p. 69).
OS SABERES SUBALTERNOS OU UMA GENEALOGIA DA TEORIA QUEER Para traçar, minimamente, uma genealogia da teoria Queer é preciso buscar, nas produções teóricas do passado e mesmo nas paralelas, alguns termos e categorias necessárias. Entre os conceitos fundamentais estão: identidade; diferença; normatização; hegemonia; cultura e a diferença entre gênero, sexo e sexualidade. Ao contrário do imaginado inicialmente, a teoria Queer tem uma origem global, pulverizada e múltipla – como são seus objetos de observação e análise. Embora a autora mais conhecida dessa corrente de estudos seja a norte-americana Judith Butler, e o próprio termo em inglês “queer” remeta para o subcontinente como centro irradiador, uma pesquisa aprofundada sobre a sua genealogia não aponta somentepara aquele cenário intelectual e produtivo.
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Esta teoria também encontra suas origens em lutas e produções teóricas realizadas em outras regiões do globo, tendo, inclusive, como um de seus pioneiros o antropólogo argentino Néstor Perlongher (MISKOLCI, 2015), além de inegáveis influências e legados de estudos anteriores. Mais do que uma nova teoria em si, o Queer é uma junção de estudos voltados para as diferentes identidades e expressões – tanto de gênero quanto de sexualidade –, além de uma profunda crítica à hegemonia heterossexual e às normas reguladoras das identidades e expressões (MISKOLCI, 2015). No Brasil, este novo campo de pesquisa encontrou maior espaço a partir dos anos 1980. Quando o país passava pelo processo de redemocratização e engolia, com o restante do mundo, os anos de revolução sexual e a explosão da epidemia da AIDS, que serviu para reanimar o discurso conservador que levaria a um retrocesso nos países centrais - Reagan sobre o comando dos EUA e Tatcher na Inglaterra. Essa vertente, hoje, ainda está restrita às áreas acadêmicas das Ciências Humanas, Comunicação e Artes, e vem sendo base para o ativismo e a militância fora dos muros – e dos armários.
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QUEER É TUDO ISSO: É ESTRANHO, RARO, ESQUISITO. QUEER É, TAMBÉM, O SUJEITO DA SEXUALIDADE DESVIANTE – HOMOSSEXUAIS, BISSEXUAIS, TRANSEXUAIS, TRAVESTIS, DRAGS. É O EXCÊNTRICO QUE NÃO DESEJA SER “INTEGRADO” E MUITO MENOS “TOLERADO”. QUEER É UM JEITO DE PENSAR E DE SER QUE NÃO ASPIRA O CENTRO NEM O QUER COMO REFERÊNCIA; UM JEITO DE PENSAR E DE SER QUE DESAFIA AS NORMAS REGULATÓRIAS DA SOCIEDADE, QUE ASSUME O DESCONFORTO DA AMBIGÜIDADE, DO ‘ENTRE LUGARES’, DO INDECIDÍVEL. QUEER É UM CORPO ESTRANHO, QUE INCOMODA, PERTURBA, PROVOCA E FASCINA (LOURO, 2013, P. 7). 40
Para uma genealogia da teoria Queer, fazse necessário buscar a origem de determinadas normas, as quais, antes de serem transgredidas, precisaram ser instituídas e asseguradas. Afinal, para que existam as margens, é necessário que sejam criados, antes, os centros e outros lugares que possibilitem esses deslocamentos (LOURO, 2013). A normatização da família como uma microestrutura constituída por um homem e uma mulher, ambos cisgêneros, heterossexuais e brancos, consolidada no século XIX a partir da família nuclear da burguesia francesa, instituiu espaços para os discursos reguladores do comportamento sexualafetivo. Discursos dirigidos pela religião, pelo Estado, pelas instituições acadêmicas e legais, pelo meio científico e pela própria medicina (MISKOLCI, 2005, p. 13). Ao analisar o surgimento de novas tecnologias “humanas” na Inglaterra e na França durante o século XVII, quando dados sobre o índice de mortalidade, natalidade e o número populacional começaram a ser sistematicamente coletados para constituir aquilo que seriam os primeiros censos demográficos, Foucault (1988) desenvolve o conceito do biopoder.
Este conceito refere-se a uma forma específica de controle do Estado moderno sobre o seu povo a partir de suas condições enquanto seres viventes e, ainda, sobre suas mortes. Isto é, o surgimento de um sistema de dominação do governo sobre a população a partir do seu conhecimento quantitativo e estatístico que, para ele, permitiria uma total primazia sobre seus destinos. “É como administradores da vida e da sobrevivência, dos corpos e da raça, que tais regimes têm sido capazes de declarar tantas guerras, fazendo com que tantos homens sejam mortos” (Foucault, 1976, p. 137). O biopoder se desenvolve a partir de duas frentes distintas. A primeira delas, a anátamo-política disciplinar, que voltou seus interesses para o corpo singular e sua importância política, social e econômica. Esse olhar para o corpo, como máquina produtora a ser governada, abriu espaço também para investigações científicas acerca de seu funcionamento, de sua regulação – a transformação desses corpos em corpos “dóceis” e adequados - e, com isso, para estudos acerca da sexualidade humana. A segunda forma é a biopolítica normativa, que reúne, por meio das informações coletadas, um conjunto de medidas regulatórias da população, dentre elas, o controle da própria sexualidade. A partir disso, teriam sido construídas as hierarquias de sexualidades, sexos e raças. Nessa lógica normativa, o lugar do superior e do “adequado”, é o do homem branco e heterossexual, e as gradações variam a partir da tríade sexo-raça-sexualidade – a identidade de gênero surge depois.
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Para Foucault (1976), é no século XVII que nascem os discursos institucionalizados normatizantes e excludentes de poder, dando início às primeiras demarcações da identidade a partir da diferença – e a construção desse conceito como um marcador social. É a partir desse mesmo momento que começam a ser traçados os caminhos para a fixação de um modelo tradicional de família. No pós-estruturalismo francês, que reúne nomes como Derrida, Deleuze e o próprio Foucault – que é considerado parte dessa corrente do pensamento e, ao mesmo tempo, do estruturalismo e do pósmodernismo –, são elaboradas as primeiras noções de um sujeito que não é pré-existente e que, muito pelo contrário, é um sujeito criado e ordenado pelas instituições de poder. As investigações pósestruturalistas buscam não uma reconstrução lógica e empírica, que entende a sociedade a partir do homem, mas uma desconstrução dos sujeitos a partir de sua existência na sociedade. Do ponto de vista epistemológico, o pós-estruturalismo rompe com a noção antropológica de cultura do estruturalismo, representada por Lévi-Strauss. A corrente que advoga a desconstrução do sujeito e das estruturas, deu origem a uma nova formulação para as questões de identidade, destituindo a posição das diferenças – étnicas, nacionais, de gênero e raciais – como concebidas por si sós, e entendendo-as como produzidas socialmente. Miskolci (2009) reforça que as duas principais obras filosóficas que forneceram base para a teoria foram a “História da Sexualidade I: A Vontade de Saber” (1976), de Michel Foucault, e “Gramatologia” (1967),
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de Jacques Derrida. A obra de Foucault abordou o domínio científico da sexualidade e a produção social das identidades, a partir da análise da homossexualidade. Para o autor, a contribuição de Jacques Derrida pode ser resumida à criação de dois conceitos: o de suplementaridade e a “perspectiva metodológica da desconstrução” (MISKOLCI, 2009, p. 153). O conceito de suplementaridade diz respeito à linguagem, ao processo de interpretação da formação de signos desde uma relação de presença e ausência. “O que parece estar fora de um sistema já está dentro dele e o que parece natural é histórico” (MISKOLCI, 2009, p. 153). Por exemplo, a heterossexualidade precisaria da homossexualidade para existir, e a definição de uma coisa dependeria da outra. Dentro dessa lógica binária estaria a desconstução, um processo de explicitação entre os dois pólos significantes. Para Miskolci (2009), a significação, considerando esse funcionamento binário de si mesma, reinscreveria sempre as mesmas bases. “A Teoria Queer e os Estudos Pós-Coloniais são parte de um conjunto que podemos chamar de teorias subalternas” (MISKOLCI, 2009, p. 158). A proposta desse conjunto de estudos e pesquisas é fazer uma crítica e propor algo além dos saberes hegemônicos ocidentais. “As teorias subalternas ganharam seu título de uma terminologia criada por Antonio Gramsci para referir-se àqueles cuja voz não é audível no sistema capitalista” (MISKOLCI, 2009, p. 158).
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É preciso ter em mente que os estudos Queer reúnem e refutam uma confluência de outros saberes. Para D’Alleva (2005), é preciso levar todas as correntes de pensamento que não agem em exclusividade, mas que se interseccionam a partir de um mesmo interesse, “fazendo perguntas sobre raça, classe, nacionalidade, gênero e orientação sexual” (D’ALLEVA, 2005, p. 46). Além do pós-estruturalismo, é preciso retomar a relevância de produções intelectuais nas quais o Queer pôde encontrar algumas de suas raízes e vertentes teóricas: a teoria das ideias no século XX, o marxismo crítico, o materialismo, nas produções teóricas feministas, nos estudos LGBT, nos estudos culturais norte-americanos e nas teorias pós-coloniais. Para o marxismo crítico, as expressões culturais e artísticas eram expressões ideológicas de dominação ou subversão. D’Avella (2005) retoma, então, Gramsci para entender o conceito de hegemonia e cultura hegemônica: “Gramsci desenvolveu uma teoria de hegemonia cultural, que é influência ou autoridade conquistada a partir de práticas culturais ao invés do uso de leis ou da força” (D’ALLEVA, 2005, p. 50). Segundo a autora, Gramsci descobriu na cultura um instrumento de poder das classes dominantes para controlar a sociedade de massa, utilizando-se do prestígio para garantir a hegemonia de seus “valores morais, políticos e culturais” (D’ALLEVA, 2005, p. 51).
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Quando Simone de Beauvoir, com a publicação do ensaio filosófico O Segundo Sexo (1949), traçou a primeira linha que distanciaria os conceitos de gênero e sexo biológico e colocou a questão, com a definitiva a proposição “não se nasce mulher, torna-se”, o feminismo precisou abrir espaço para aquilo que viria a se constituir como os “problemas de gênero” (BUTLER, 2015). A dissociação entre gênero e sexo e a possibilidade de uma desconstrução do gênero – conceito no qual estava apoiada a maior parte das teorias e reinvindicações feministas – assustou o feminismo radical. E o Queer não encontrou nas premissas de igualdade do feminismo aquilo que procurava: o Queer não quer assimilação a qualquer custo, ele procura a transformação social, a partir da crítica do diferente (MISKOLCI, 2015) . Hoje, é possível encontrar no transfeminismo ou no feminismo transgênero as ausências e lacunas que o próprio feminismo deixou ao se tratar das questões de gêneros (JESUS, 2014).
MAIS RARAMENTE CONHECIDO COMO FEMINISMO TRANSGÊNERO, O TRANSFEMINISMO PODE SER DEFINIDO COMO UMA LINHA DE PENSAMENTO E DE PRÁTICA FEMINISTA QUE, EM SÍNTESE, REDISCUTE A SUBORDINAÇÃO MORFOLÓGICA DO GÊNERO (COMO CONSTRUÇÃO PSICOSSOCIAL) AO SEXO (COMO BIOLOGIA), CONDICIONADA POR PROCESSOS HISTÓRICOS, CRITICANDO-A COMO UMA PRÁTICA SOCIAL QUE TEM SERVIDO COMO JUSTIFICATIVA PARA A OPRESSÃO SOBRE QUAISQUER PESSOAS CUJOS CORPOS NÃO ESTÃO CONFORMES À NORMA BINÁRIA (JESUS, 2014, P. 243). 45
CISGENERIDADE E TRANSGENERIDADE E O MOVIMENTO LGBT Cisgêneros são todos os indivíduos em acordo com o sexo que lhes é atribuído em seu nascimento e socialmente, ou seja, pessoas cuja identidade de gênero é correspondente ao sexo biológico. A identidade de gênero nem sempre tem a ver com HÁ VÁRIAS DEFINIÇÕES o papel ou a expresão de gênero, que funcionam CLÍNICAS QUE DESCREVEM A a partir do binarismo masculino/feminino, CONDIÇÃO. SERIA EXAUSTIVO em que são designados – em cada cultura – os CITÁ- LAS. SE PUDER comportamentos e a aparência mais adequados SIMPLIFICAR BASTANTE, DIRIA para cada gênero (JESUS, 2012). QUE AS PESSOAS TRANSEXUAIS Bagagli (2014) retoma a falta de identificação LIDAM DE FORMAS de indivíduos cisgêneros com a questão de DIFERENTES, E EM DIFERENTES identidade de gênero, por não sentirem a GRAUS, COM O GÊNERO AO necessidade de se designarem enquanto pessoas QUAL SE IDENTIFICAM (JESUS, de gênero, mas ainda da associação biológica. 2012, P. 6). São as pessoas trans que estão apontando e apontaram esta necessidade, e possibilitando, por exemplo, não apenas pensar formas emancipatórias e descolonizadas de se entender a transgeneridade, mas também como meio de se criticar as formas como foram representados os sujeitos “homem” e “mulher” na antropologia, nos estudos de gênero/feminismo e em qualquer outra materialidade
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discursiva (BAGAGLI, 2014). Para a autora, reconhecer o termo “cisgeneridade” desestabiliza a forma como as relações de sentido nas categorias “homem” e “mulher” foram estabelecidas. Possibilitando que, a partir da linguagem, as identidades trans se tornem “hipônimos nestas categorias” (BAGAGLI, 2014). Alguns autores discordam da categoria cisgênero para comportar os indivíduos que se identificam com os gêneros que lhes foi imputado socialmente. Miskolci (2015) acredita que se apoiar na cisgeneridade para fazer essa distinção cria um vocabulário que reforça a patologização que criou a transgeneridade. “A normalidade não precisa de um conceito” (MISKOLCI, 2015) . “As pessoas não-trans não percebiam que também tinham identidade de gênero; e que detinham privilégios em função disso” (JESUS, 2015). Utilizar-se da cisgeneridade, como um instrumento da própria linguagem que questiona o limite de determinadas categorias, também serve para rechaçar a necessidade de diferenciação das identidades de gênero para esclarecer a disparidade na decodificação – e, ainda, assimilação – dessas identidades, que são, acima de tudo, sociais. “Trans significa além. Logo, sabendo-se que o seu antônimo ‘cis’ significa ‘deste lado’, criou-se, por contraposição, a palavra ‘cisgênero’” (JESUS, 2015). A diferença não é semântica. Essas denominações podem servir como base para criticar o tratamento dispensado aos indivíduos trans, especialmente no que diz respeito à carência de políticas públicas
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específicas, programas de inclusão social e abertura no mercado de trabalho. A diferença, por si só, já existe, e utilizá-la como um marcador de fronteiras entre um e outro serve para desvelar os abismos sociais que estão embutidos, quando existe um “normal” que não precisa ser nominado e um “desviante” ao qual é negado reconhecimento. As pessoas trans estão no alfabeto da diversidade e são, normalmente, associadas ao movimento político LGBT, mas a transgeneridade, como já foi abordada anteriormente, não diz respeito à sexualidade. É mais do que claro que gênero e sexualidade se relacionam em determinada dimensão, no grau do corpo existente que expressa e contém em si desejos, mas esses dois aspectos costumam ser confundidos por pessoas alheias ao movimento. A priori, o núcleo LGB está separado da letra T, na medida em que a pessoa T não participa efetivamente das conquistas desse grupo político que, muitas vezes, se ampara em termos de direitos iguais, reconhecimento civil e outros aparatos legislativos que, por vezes, evidenciam outras normas de adequação. A falta de reconhecimento de demandas específicas para pessoas trans acaba marginalizandoas dentro de um movimento ao qual estão, supostamente, integradas. Ávila e Grossi apresentam o seguinte inventário:
A LUTA CONTRA A MEDICALIZAÇÃO E PATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE, E REIVINDICAÇÃO DE POLÍTICAS QUE PERMITAM O AMPLO ACESSO A SERVIÇOS DE SAÚDE SEM SEREM DISCRIMINADOS PELOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE E A MUDANÇA DE NOME, CONDIZENTE COM SUA IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO, ENTRE OUTRAS (ÁVILA; GROSSI, 2010, P. 2). 48
Vale ressaltar que o próprio movimento LGBT permite, muitas vezes, que sejam esquecidas outras letras de seu alfabeto: o Q, dos indivíduos queer, o I, dos intersex ou hermafroditas e o A dos assexuais, além de outras manifestações diversas de gênero e sexualidade. A dificuldade, dentro do movimento LGBT, de reconhecer a cisgeneridade é um exemplo dessa omissão com seu próprio alfabeto. Para Miskolci (2015), a comunidade LGBT é uma comunidade imaginária que perde seu caráter político quando trabalha com exclusão. Para o autor, não é possível existir uma só luta dentro da luta emancipatória e, ainda, os tipos de direitos negociados pelo movimento são direitos que podem criar novas margens e normatizações, enquanto, na verdade, a luta emancipatória deveria ser pela desnormalização geral das expressões de gênero e sexualidade e pela ampliação de todas as relações. Miskolci (2015) afirma que “toda luta Queer é uma luta contra a discriminação”, justamente por tentar romper com os canônes vigentes. Para Leandro Colling (2015), ocultar as diferenças também é uma forma de discriminação, e enquanto o movimento LGBT “mainstream” procura a institucionalização e os marcos legais, o “Ativismo queer ou de dissidência sexual sinfonada”, é uma possibilidade de fazer política além de uma crítica cultural .
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DIFERENÇAS ENTRE TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E TRANSGÊNEROS COMO O DISCURSO SOBRE A TRANSEXUALIDADE POSSUI UMA AURA MAIS “HIGIÊNICA”, FORJADO NOS LABORATÓRIOS E CONSULTÓRIOS DA EUROPA E DOS ESTADOS UNIDOS E AINDA POUCO DISSEMINADO POPULARMENTE EM SUAS ESPECIFICIDADES TEÓRICAS, PODE-SE AFIRMAR QUE O TERMO “TRANSEXUAL” POSSUI UM CAPITAL LINGUÍSTICO MAIS VALORIZADO QUE O TERMO “TRAVESTI”, PODENDO SER MAIS FACILMENTE CONVERTIDO EM CAPITAL SOCIAL E, DESTA FORMA, SENDO CAPAZ DE ABRIR OU FECHAR PORTAS SEGUNDO A MANEIRA COMO A PESSOA SE AUTOIDENTIFICA OU É IDENTIFICADA (LEITE JR., 2011, P. 214). 50
Diante das entrevistas com pessoas trans, cheguei à conclusão de que a autoidentificação é uma parte fundamental da vida desses indivíduos. Para a maior parte deles, as categorizações não abrangem a amplitude das identidades e vivências de gênero. No entanto, acredito que seja necessário recorrer a teóricos e pesquisadores para entender um pouco do que caracteriza cada uma dessas distinções e como utilizá-las – especialmente na mídia. Leite Júnior (2011), em Nossos Corpos Também Mudam – A Invenção das Categorias “Travesti” e “Transexual” no Discurso Científico, traça uma cartografia histórica para encontrar o surgimento desses termos. Atravessando desde a Antiguidade – em que surgem as categorias “hermafrodita” e “intersexo” –, em que se transformam, até serem consolidadas no século XIX. O autor conta que, quanto mais aprofundava o
estudo sobre travestis, mais se entrelaçava nas questões das pessoas transexuais. “Identificar-se como travesti ou como transexual era muitas vezes uma questão situacional” (LEITE JR., 2011, p. 24). O autor relata que a proximidade com essas duas categorias foi levando-o a uma outra diversidade de identidades e expressões, como drag queens e kings, crossdressers, homens homossexuais e heterossexuais feminilizados, mulheres homossexuais e heterossexuais masculinizadas. “E assim, num crescendo de pessoas, desejos e situações que questionavam alguns limites e, ao mesmo tempo, faziam questão de demarcar outros” (LEITE JR., 2011, p. 24). Leite Júnior (2011) enfrentou a dificuldade no recorte de pesquisa e chegou a uma mesma pergunta: “a quem (e a quê) interessam os claros e precisos limites entre tais identidades?”. Para o autor, o campo científico foi descoberto como o pano de fundo das questões políticas e da “espetacularização do mundo do entretenimento” (LEITE JR., 2011, p. 25). Ao longo das pesquisas, ele pôde comprovar como as normatizações sociais influenciam os discursos científicos e como “definições únicas entre corpos e identidades sexuais e seus limites entre masculinidade e feminilidade nunca existiram” (LEITE JR., 2011, p. 25)
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A travestilidade vem desde, pelo menos, a Grécia Antiga, onde, nas festas e rituais, era comum as mulheres utilizarem roupas e adornos “de homens” e vice-versa. Mas a transexualidade, segundo Leite Júnior (2011), começou a ter esse nome a partir de uma publicação científica do doutor D. O. Cauldwell, em que ele relatava “o caso de uma mulher ‘biológica’ que queria se masculinizar” (LEITE JR., 2011, p. 141). Vale ressaltar que a notoriedade deste estudo veio a partir de um destaque na primeira página do jornal The New York Daily, em 1º de dezembro de 1952, que relatava a readequação de gênero – que ainda não tinha esse nome – de um soldado norte-americano. Sendo possível inferir, portanto, que a mídia agendou o a transexualidade entre os assuntos de interessa da sociedade. O militar, George William Jorgensen Jr., fez seu tratamento cirúrgico e hormonal na Dinamarca. Depois dos procedimentos, todos experimentais, Jorgensen retornou aos Estados Unidos e adotou o nome de Christine. Altamente assediada pela mídia – a impressa, pois estava fora das premissas da televisão abordar a “sexualização” na época –, Christine tornou-se uma celebridade. “Os jornalistas procuravam ‘falhas’ na sua feminilidade, enquanto buscavam descobrir seus traços masculinos” (LEITE JR., 2011, p. 142). A espetacularização em torno do caso de readequação de Christine abriu espaço para que a mídia questionasse outros aspectos de sua humanidade ou os colocasse por terra, já que era comum, por exemplo, tratá-la no masculino ou perguntar ao público se alguma pessoa poderia se interessar afetivo-sexualmente por ela (LEITE JR., 2011). “É
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impossível pensar o desenvolvimento do conceito de ‘transexualidade’ sem a influência da mídia e da tecnologia médica” (LEITE JR., 2011, p. 143). Em 1954, o médico Herry Benjamin cria os termos “transexual” e “transexualismo”, sempre associando-os a distúrbios e transtornos. No período, as cirurgias e os tratamentos para readequação ainda eram comumente referidos como “troca de sexo” . A permanência do sexo biológico como único determinante do gênero e a crença de que qualquer desvio dessa norma evidenciava um distúrbio mental foram o caminho necessário para a patologização da transexualidade – transexualismo, no CID (Classificação Internacional de Doenças). Fonte:BBC
e. m o n m e t . “ A o t L s E a , r o d r Primei ao e mais “pa SEXO!!!! E L A n se TROCA DE E nao 53
Benjamin ainda fez as primeiras diferenciações entre travestis e transexuais, colocando o segundo como um caso agravado de dissonância de gênero – conceito que só aparecerá em 1955, com John Money, que questionará os papéis sociais e suas relações com as diferenças sexuais (LEITE JR., 2011).
EM 1987, A TRANSEXUALIDADE, CHAMADA DE TRANSEXUALISMO, FOI INCLUÍDA NO DIAGNOSTIC AND STATISTICAL MANUAL OF MENTAL DISORDERS – DSM III (MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DAS DESORDENS MENTAIS) PARA OS INDIVÍDUOS COM “DISFORIA DE GÊNERO” QUE DEMONSTRASSEM DURANTE, PELO MENOS, DOIS ANOS, UM INTERESSE CONTÍNUO EM TRANSFORMAR O SEXO DO SEU CORPO E O STATUS DO SEU GÊNERO SOCIAL” (CASTEL, 2001 APUD ÁVILA; ROSSI, 2010). Desde 1993, podem ser encontradas no CID-10, dentro da seção “Transtornos da personalidade e do comportamento adulto”, as categorias: “Transexualismo”, “Travestismo bivalente” e “Transtorno sexual na infância”. Na seção “Transtornos da preferência sexual” pode ser encontrado o “Travestismo fetichista” (LEITE, JR., 2011, p. 184 e 185). Essa última seção inclui, ainda, as “Parafilias”, ou as perversões sexuais (RUSSO, 2004 apud LEITE JR. 2011). A patologização da transexualidade é benéfica do ponto de vista das políticas públicas de saúde, fazendo com que determinadas demandas sejam sanadas pelo próprio Estado. Por exemplo, desde o
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dia 1º de outubro de 2015, a Prefeitura do Estado de São Paulo passou a oferecer hormonioterapia gratuitamente em postos de saúde da cidade . Hospitais credenciados em diversas cidades do país atendem, pelo Sistema Único de Saúde, pessoas trans, em especialidades como o acompanhamento psicológico, endocrinologia, dermatologia e cirurgias plásticas e de readequação. Fonte:Rede Mobilizadores
No entanto, a presença da transexualidade – como transexualismo – no CID carrega, ainda, os estigmas dos distúrbios psicológicos, sustentados pela mídia de massa, pelo senso comum e pela normatização dos corpos, sexualidades e desejos. A quebra do binarismo de gênero, acredito, pode ser o principal fator de exclusão social de travestis e transexuais. Jesus (2012) retoma a associação entre sexo biológico – ou genitálias – e gênero, atribuída a indivíduos desde seu nascimento ou mesmo antes, na descoberta do “sexo do bebê”, ainda na barriga da mãe. Pessoas trans são as pessoas que desviam a normatização dessa dualidade entre sexo e gênero, e a auto-percepção do papel de gênero assumido por um
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indivíduo é fundamental para que seu gênero seja determinado. O ideal seria que essas normas de sexo, gênero e adequação nunca tivessem sido estabelecidas – e tão bem preservadas por políticas e poderes –, mas enquanto elas existirem, deve caber a cada indivíduo a sua própria (in)definição. As “dissidências de gênero” (MISKOLCI, 2015) interrogam a necessidade de identidades fixas e a própria binariedade. Abrindo um leque muito maior entre as dicotomias homem/mulher. Dentro da transexualidade, existem as pessoas trans não-binárias, os queers e outras demandas de corpos, desejos e vontades que não se sujeitam às definições binárias, não se identificando nem com um gênero, nem com o outro, mas com os dois simultaneamente ou com nenhum dos dois. “A lógica binária vai se revelar insuficiente para os corpos que não se ajustam, sujeitos que transitam entre as polaridades” (LOURO, 2015) . Para ater-me à questão trans, procurei perguntar aos próprios indivíduos trans que expressões de transgeneridade deveriam ser abordadas. Dessa forma, escolhi tratar a partir do binarismo de gênero, não incluindo o não-binarismo para as esferas de análise e leitura. Acredito que pessoas que vivenciam os dois gêneros em si – e, com isso, não me refiro ao hermafroditismo –, nem sempre enfrentem os mesmos abismos sociais que as pessoas trans binárias. “A transexualidade é uma questão de identidade. Não é uma doença mental, não é uma perversão sexual, nem é uma doença debilitante ou contagiosa” (JESUS, 2012, p. 7). Jesus separa as pessoas transgênero em duas vivências de gênero: a identidade e a funcionalidade. A primeira
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se aplica aos travestis e transexuais, enquanto a segunda abarca os cross dressers, drag queens e kings e transformistas. A autora ainda faz referência aos indivíduos que não se enquadram na binariedade, chamando-os de queer, ou andróginos ou mesmo transgêneros. “Se puder simplificar bastante, diria que as pessoas transexuais lidam de formas diferentes, e em diferentes graus, com o gênero ao qual se identificam” (JESUS, 2012, p. 8). A autora reforça que a identificação de cada pessoa não diz respeito às alterações cirúrgicas ou aos tratamentos que ela venha fazer em seu próprio corpo, até porque esse tipo de medida exige acesso, além das próprias escolhas pessoais. Por exemplo, um número alto de pessoas trans desiste de fazer a cirurgia de readequação por não aguentar enfrentar o tempo nas filas do SUS . Fonte:Metrópoles
spera e e d O temapo cirurgia noanos. para chega a 1o SUS
das Segundo a ANTRA, cerca de 9o% cado al pessoas trans estao fora do mer tituiform de trabalho e sobrevivem com a pros çao. 57
Pessoas transexuais – ou transgêneros – são pessoas cujo gênero não é correspondente ao sexo biológico. O diagnóstico pode vir tardiamente, mas essas pessoas vivem com a disforia de gênero desde o começo de sua vida social. Mulheres transexuais querem ser reconhecidas como mulheres, homens trans querem ser reconhecidos como homens e travestis querem ser reconhecidas como mulheres – o uso correto do artigo é, inclusive, “a travesti” (JESUS, 2012). As travestis são estigmatizadas dentro da sociedade, sendo, frequentemente, associadas à prostituição. Alguns apontam essa vivência do gênero como uma identidade cultural, e o termo só diz respeito à mulheres transexuais. Jesus (2012) conceitua como travestis as mulheres que não se vêem vivendo esse papel integralmente, elas “não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero” (JESUS, 2012, p. 9). Outras mulheres transexuais assumem a identidade de travesti como uma forma de fazer política e ter autonomia sobre seus próprios corpos. Pois, por meio dessa auto-identificação, elas questionam os estigmas em torno da palavra e da vivência travesti.
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“EU NÃO SOU O MEU CORPO” E O JORNALISMO BRASILEIRO Para Butler (2015), o gênero não é um substantivo, mas também não é algo secundário. Inclusive, esse efeito substantivo do gênero é uma imposição das práticas reguladoras, que pretendem revestir essa categoria de uma noção permanente de substância. Essa criação fictícia do que é ser “homem” ou ser “mulher” desmorona a partir do momento em que existem sujeitos que não são totalmente assimilados como sendo uma coisa ou outra. Afinal, em que medida é possível ser de um sexo ou desse gênero? O gênero não é substantivo, porque o ser de alguém tem a ver com sua identidade, com uma substância de si, que é sua própria substância, a essência (BUTLER, 2015). “Convenções culturais dominantes […] supõem que a verdade de nós mesmos estaria em algum lugar do corpo” (Bento, 2015, p. 12). Retomo, portanto, Jesus (2012), que reafirma a forma como a complexidade humana está muito além da identidade de gênero. Tão além que a identidade de gênero de pessoas que se mantém na normatização, no que não precisa ser nominado (MISKOLCI, 2015), não é compartimentalizada em suas identidades de gênero. As pessoas cisgêneras não são apontadas pela sociedade, nem pela própria mídia, a partir de seus gêneros, não precisando de formas de tratamento específicas, por exemplo .
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RA R E a estar a s n e impmr naoada paidruos e epar indiv pr atar com tr ans O trESPEIT R O gênero é performativo e, dessa forma, constitui uma identidade Fonte:NLucon
do que ele supostamente é. Mas essa performatividade dos corpos é concebida como uma materialidade, não é abstração. Nós, os corpos estranhos e desviantes, vivemos a materialização das normas em nossos corpos (BUTLER, 2015). Mas essas normas não são a materialização da complexidade imbuída em nós mesmos. Para a autora (BUTLER, 2015) , existem leis que governam nossos corpos, e só é possível ter uma identidade na medida em que ela é culturalmente inteligível. Isso se refere a todas as esferas da experiência humana. Mas essas leis que tentam nos governar, não são capazes de conformar nossos corpos diversos (BUTLER, 2015). “Embora participantes ativos dessa construção, os sujeitos não a exercitam livres de constrangimentos. Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se fazem não apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem” (LOURO, p. 17). Butler (2015) reforça que andar na rua, no gênero que os indvíduos Queer representam, não pode ser um exercício de suas liberdades. A
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liberdade deve ser maior do que isso. “Para um corpo se mover, ele precisa ter um suporte. O próprio chão é esse ambiente, para exercitar nossos direitos básicos” (BUTLER, 2015). Com isso, a autora tenta deixar claro que os indivíduos precisam ter o direito de ir e vir da forma que quiserem, sem que isso os entregue para a vulnerabilidade. Butler (2015) trata a forma como cada corpo é um corpo e como os corpos, vistos em suas singularidades, são distintos uns dos outros, além da maneira como essas distinções tornam certos corpos vulneráveis a partir das fronteiras criadas desde um imaginário de diferenças. A hierarquização dos corpos supõe uma outra norma que dita quais corpos devem ou não ser vistos como corpos visíveis e viventes, corpos complexos e corpos de direitos. “O corpo humano é feito de infraestrutra, ambiente social, econômico e igualdade” (BUTLER, 2015). “Todos têm um nome pelo qual devem ser chamados. Eu sou aquele nome?” (BUTLER, 2015). Jesus (2012) responde: “para a pessoa transexual, é imprescindível viver integralmente como ela é por dentro, seja na aceitação social e profissional do nome pelo qual ela se identifica”. A importância do nome social, adotado pelas pessoas trans para que esteja em acordo com sua identidade, é pouco levada em conta pela mídia, que insiste em fazer referências ao registro civil em algumas matérias
nome gidstero re
NAeOssa
inter Fonte:G1
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Fischer reafirma a mídia como um lugar de transmissão e trocas de valores simbólicos:
SE CONSIDERARMOS QUE A MÍDIA, HOJE, É RESPONSÁVEL POR UM IMENSO VOLUME DE TROCAS SIMBÓLICAS E MATERIAIS EM DIMENSÕES GLOBAIS, ABRE-SE PARA A EDUCAÇÃO UM NOVO CONJUNTO DE PROBLEMAS, NUMA DINÂMICA SOCIAL QUE EXIGE NÃO SÓ MEDIDAS URGENTES POR PARTE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS, MAS IGUALMENTE UMA REFLEXÃO MAIS ACURADA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA (FISCHER, 1999 P. 18). Fiorin (2003) reforça a dinâmica entre os conceitos de ideologia e representação, considerando que qualquer produção midiática carrega em si um conjunto de códigos simbólicos representados por textos e recursos multímidia, e cujo desdobramento é fundamental para compreensão da mensagem. Partindo do pressuposto de que toda representação – ou símbolo – contém uma unidade ideológica, é necessário refletir sobre as consequências das escolhas comunicacionais. Cada maneira de comunicar e cada lugar de comunicação refletem de uma determinada forma em uma sociedade ou grupo. Faz-se necessário, como comunicadores, fazermos essas perguntas: em que canais a comunicação se realiza? Quem comunica? O que é comunicado? Quem é afetado pela
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comunicação e de que forma? (LASWELL, 2002 apud MELO, 2002 p. 12). “Nós precisamos da linguagem para expressar a nós mesmos” (BUTLER, 2015). A gramática do gênero é a gramática do ser. E deve ser adotada em toda a sua complexidade pela própria sociedade. E, como disse Butler (2015), o corpo é uma forma de resistência, mas não podemos pensar nossos corpos fora das relações sociais que impõem suas normas sobre eles.
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METODOLOGIA A pesquisa bibliográfica, a análise documental e as entrevistas em profundidade foram as metodologias escolhidas para realizar este trabalho. Tendo em vista que o projeto se deteve sobre as questões da diversidade de gênero e sexual e sua repercussão na mídia, fez-se necessário encontrar um acervo bibliográfico que buscasse nortear as pesquisas sobre o tema. Pela condição dialética do A PESQUISA BIBLIOGRÁFICA, conhecimento científico, em NUM SENTIDO AMPLO, É O que só se obtém resultado – ou PLANEJAMENTO GLOBAL INICIAL DE avanços – a partir da refutação e QUALQUER TRABALHO DE PESQUISA do aprimoramento de uma tese QUE VAI DESDE A IDENTIFICAÇÃO, anterior, torna-se necessário que LOCALIZAÇÃO E OBTENÇÃO DA uma pesquisa seja pautada nas BIBLIOGRAFIA PERTINENTE SOBRE heranças teóricas e referências O ASSUNTO, ATÉ A APRESENTAÇÃO anteriores (STUMPF, 2005). É DE UM TEXTO SISTEMATIZADO, partindo desse pressuposto que, ONDE É APRESENTADA TODA dentre os procedimentos escolhidos A LITERATURA QUE O ALUNO para o andamento do projeto, está a EXAMINOU, DE FORMA A Revisão Bibliográfica. EVIDENCIAR O ENTENDIMENTO O paradigma qualitativo DO PENSAMENTO DOS AUTORES, escolhido demonstra o cunho ACRESCIDO DE SUAS PRÓPRIAS interpretativo do qual tornou-se IDEIAS E OPINIÕES (STUMPF, 2005, possível extrair a multiplicidade
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das construções sociais da realidade, percebendo a subjetividade no processo de construção de significação e decodificação dos indivíduos na sociedade e nos próprios meios de comunicação. Dadas a complexidade e a fluidez do tema escolhido, a pesquisa bibliográfica se demonstrou insuficiente, funcionando como uma base teórica firme, mas trazendo ainda mais questionamentos que, às vezes, escapavam às delimitações do trabalho.
ENQUANTO A PESQUISA BIBLIOGRÁFICA SE UTILIZA FUNDAMENTALMENTE DAS CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES SOBRE DETERMINADO ASSUNTO, A PESQUISA DOCUMENTAL VALE-SE DE MATERIAIS QUE NÃO RECEBEM AINDA UM TRATAMENTO ANALÍTICO, OU QUE AINDA PODEM SER REELABORADOS DE ACORDO COM OS OBJETOS DA PESQUISA (GIL, 2002, P. 45). Publicações alternativas, como em blogs e outras plataformas, palestras presenciais e vídeos no Youtube foram caminhos encontrados para completar, ou até atualizar, as bases já adiantadas. Por tratar-se de uma pesquisa exploratória que visa, entre outras coisas, a compreender a relevância dos discursos midiáticos na formação de uma consciência coletiva no que diz respeito à diversidade de gênero e sexual, a combinação das duas técnicas de pesquisa pôde referenciar os dois lados da temática: o lado do ativismo e o lado teórico.
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MEMO RIAL ANALÍTICO DESCRI TÍVO
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ENTREVISTAS E NARRATIVAS Todas as entrevistas foram agendadas a partir de um anúncio no Facebook, em que forneci algumas informações sobre o projeto e descrevi o perfil dos candidatos a entrevistados. Um número razoável de pessoas se dispôs a responder um questionário à distância, por e-mail ou pelo Facebook, mas nem todas foram utilizadas no livro devido à relevância das respostas. Seis pessoas foram entrevistadas pessoalmente. Estas entrevistas aprofundadas duraram aproximadamente duas horas. Apenas as entrevistas online tiveram questões pré-estabelecidas, pelo teor restrito da interação. As entrevistas presenciais foram todas realizadas sem perguntas pré-estabelecidas. Algumas perguntas-chave foram repetidas, mas para manter o aspecto etnográfico do trabalho, deixei que as entrevistas seguissem de acordo com as histórias de vida de cada entrevistado. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio pelo celular e transcritas para texto depois. A partir das transcrições, foram escritas as reportagens sobre cada personagem entrevistado. Tentei aproximar os textos daquilo que propõe o jornalismo literário, que pretende ser informativo, mas adotando uma estrutura narrativa mais próxima da literatura e privlegiando um aprofundamento do conteúdo abordado.
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FOTOGRAFIAS Através da divulgação no Facebook, um número relevante de pessoas se dispôs a participar tirando fotos com a frase que norteia o livro, “Eu Não Sou o Meu Corpo”. Outras foram fotografadas por mim mesma com uma câmera Canon Rebel EOS T5i. O número de voluntários foi inferior ao esperado e a qualidade das imagens enviadas variou muito, fazendo com que algumas pudessem ser melhor aproveitadas do que outras. Todos os entrevistados aceitaram ser fotografados, tendo a liberdade para usar ou não a frase em seus retratos. Optei por utilizar uma foto de cada um no livro para deixar clara a proposta de dar mais atenção às suas histórias do que a aparência física de cada um.
COLAGENS, ILUSTRAÇÕES, INFOGRÁFICOS E INTERVENÇÕES Todas as intervenções foram planejadas como facilitadores tanto para demonstração, quanto para explanação, das teorias e hipóteses levantadas. As colagens pretendem demonstrar como certos veículos seguem usando as identidades de gênero como marcadores de diferença e como o tratamento dado por esses veículos a indivíduos “desviantes” não se preocupa em utilizar termos errôneos ou negligenciar outros aspectos da identidade humana desses indivíduos. As ilustrações e os infográficos surgiram como uma alternativa
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para esclarecer determinados conceitos que suscitam certas confusões e concepções erradas. Estes recursos também podem ajudar outros comunicadores ou estudantes de comunicação a pensar e compreender o vocabulário diverso que abrange as questões de diversidade de gênero e sexual. As intervenções textuais servem como anexos que não encontraram espaço nos referenciais teóricos, e que considerei importantes para o trabalho.
IDENTIDADE VISUAL Toda a identidade visual foi pensada para se aproximar à tabela de cores da Bandeira do Orgulho Transgênero, idealizada por Mônica Helms, que simboliza “Azul para meninos, rosa para meninas, branco para quem está em transição e para quem não se sente pertencente a qualquer gênero”(HELMS, apud JESUS, 2012, p. 4). O livro foi diagramado no Adobe InDesign CC, as colagens, ilustrações, fotografias e intervenções foram todas trabalhadas no Adobe Illustrator CC ou no Abobe Photoshop CC. Tanto a diagramação quanto o tratamento das peças visuais foram realizadas em parceria com Alyssa Volpini. A fonte Lucida Fax foi escolhida para ser utilizada no texto corrido e nas citações de destaque, tamanho 10 na primeira e 13 na segunda, por ter os tipos serifados, sendo estes os mais recomendados para a leitura de textos extensos. A fonte Haettenschweiler foi aplicada, no tamanho
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20, para o título dos tópicos e a partir do tamanho 127 para as divisórias de cada parte integrante do livro. A fonte Sloppy Hand foi utilizada nas intervenções das colagens pela semelhança com a caligrafia, o tamanho variou em cada uma das peças. O fonte With My Woes tamanho 100 foi escolhida para compôr a capa e a contracapa também pela semelhança à caligrafia, para acompanhá-la, optei pela fonte Travelling Typewritter tamanho 51, fazendo referência aos métodos tradicionais de escrita em máquinas datilográficas.
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CONSI DERA ÇÕES FI NAIS
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram necessárias muitas reflexões e ideias premilinares para finalmente chegar à definição do tema do trabalho e, especialmente, a abordagem que seria adotada. Desde o início, eu sabia que queria tratar da questão da “diversidade”. Primeiro, considerei pesquisar as questões de diversidade sexual, o que me era muito mais próximo e familiar. Mas acabei optando pelo que me era mais inquietante a mais urgente: o desrespeito à identidade de gênero no jornalismo brasileiro, que se reflete em toda uma sociedade. Um trabalho teórico não seria suficiente, e nem um trabalho analítico, onde eu passaria de notícia em notícia comprovando meus pressupostos e fazendo indicações para um jornalismo que, do meu ponto de vista, poderia ser muito melhor e mais ético. Mas de nada parecem adiantar os manuais, que existem e estão aí, disponíveis para o acesso de qualquer tipo de público na internet. A partir dessa minha constatação, tornou-se fundamental, para um exercício mais humano de uma profissão que lida diretamente com seres humanos, relembrar do fator indivíduo, que é muito mais complexo que qualquer aporte teórico ou conceitual. Como pesquisadora cisgênera, eu ainda precisaria enfrentar realidades que eram completamente distantes da minha experiência de vida. Para tratar da questão da identidade de gênero, eu precisei entender, primeiro, o meu lugar de fala. E ter em mente que esse lugar só poderia existir a partir do momento em que eu deixasse um espaço, em
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minhas pesquisas, para que as pessoas que lidam com isso diariamente falassem diretamente. A questão, embora de meu interesse, diz mais respeito a elas do que a mim, embora eu acredite que o respeito ao próximo deveria constar na agenda de todos os membros de uma sociedade, por mais privilegiadas que sejam. Foi quando cheguei ao projeto de um livro-reportagem que mesclasse os fundamentos teóricos de estudos anteriores, com intervenções artísticas e com a devida atenção às vivências dessas pessoas. O livro “Eu Não Sou o Meu Corpo – O Desrespeito à Identidade de Gênero no Jornalismo Brasileiro” foi um projeto arriscado, mas bastante enriquecedor. Como estudante de jornalismo prestes a concluir o curso, eu pude entrar em contato com realidades muito específicas. E colocar em prática técnicas de entrevistas que eu continuo acreditando que só existem mesmo na teoria. Optei por deixar as entrevistas fluírem naturalmente, tendo em mente uma série de perguntas-padrão, mas seguindo de acordo com as histórias dos entrevistados. Durante as leituras teóricas e a construção dos argumentos que sustentassem meu objeto de estudo, acabei seguindo com a desconstrução. Para compreender cada conceito, precisei apurar ainda mais o meu olhar crítico e entender toda uma estrutura de papéis e representações construída socialmente. Foi fundamental entender a maneira como as questões de diferença e identidade não surgiram naturalmente – ou biologicamente, como muitos ainda preferem acreditar – e isso significou ter muito mais dúvidas do que respostas ao
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longo do projeto. Gênero é uma a construção social, histórica e cultural das diferenças baseadas em argumentos biológicos. Um conceito que criou termos como “masculinidade”, “feminilidade” e, mais à frente, os “desvios”. Um, seguido do outro, foi criando e naturalizando, cada vez mais, as hierarquias e as relações de poder, legitimando relações de dominação, subordinação e opressão. A norte-americana Phyllis Chesler foi autora de uma expressão que se tornou, para mim, o epicentro desse trabalho: “o apartheid de gênero” . A expressão ganhou diversas versões nas redes sociais, dentre elas, uma cuja autoria tem sido creditada à Janaína Ribeiro, “o Gênero é um sistema de apartheid. Não existem dois gêneros, mas apenas um: as mulheres. O homem é humano. A mulher é não-humana”. O que, como feminista interseccional, me leva a pensar nos erros que cometemos quando engatamos lutas que ainda sustentam o binarismo como a única lógica possível e que, com isso, descartam tudo que está no centro dessas polaridades enraizadas no nosso imaginário social – e que repercutem em pessoas reais, com vidas reais e abismos latentes. A transgeneridade precisa ser pensada pois, na escala de subalternidade, ela fugiria, inclusive, a esse não-humano apontado por Janaína Ribeiro. E o que viria depois disso? Ao contrário do que sustenta uma parte do feminismo radical, o gênero não deve ser anulado. Não agora que ele está aqui como um conceito que, há tanto tempo, sustenta essas hierarquizações. O gênero deve estar aqui para ser confrontado do ponto de vista queer, como algo
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a ser transgredido e desafiado pela desconstrução do binário, do ponto de vista do determinismo biológico. O gênero é, de fato, um sistema de apartheid, mas é preciso pensá-lo com a interseccionalidade que não pode ser esquecida. É preciso pensá-lo em todos os graus e tendo como principal causa aqueles que tornam-se mais vulneráveis em uma sociedade que pensa o pênis e a vagina como órgãos complementares, como determinadores de papéis sociais e identidades. O transfeminismo é fundamental a uma mídia que se pretende mais humana e ética. Porque a humanidade dos indivíduos trans já lhes é negada diariamente, pela carência de políticas públicas de saúde, de inclusão, de acesso ao mercado de trabalho e à educação, e diversas outras medidas que os tornam corpos abjetos. Ou seja, não-cidadãos. Para o futuro, espero estar escrevendo outro livro sobre essas mesmas pessoas e outras que venha a conhecer, mas não porque quero tomar o lugar de fala delas, mas porque é necessário que mais pessoas falem juntas e que essas vozes ecoem em cada vez mais meios de comunicação. Principalmente no que diz respeito a nós, estudantes e comunicadores, faço coro às palavas de Silverstone (2014),
“PODEMOS CONCLUIR QUE NÓS, ESTUDIOSOS DA MÍDIA, TEMOS A RESPONSABILIDADE DE NOS ENGAJAR COM O MUNDO QUE FOI O OBJETO DE NOSSA ATENÇÃO” (SILVERSTONE, 2014, P. 267). Existe um impasse real entre o meio acadêmico e o ativismo,
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entre a teoria e a vivência prática. A participação ativa das pessoas que vivenciam esse apartheid diariamente foi fundamental para que eu descobrisse continuamente o meu lugar no mundo. E é como disse a militante Indianara Siqueira,
“A [JUDITH] BUTLER FAZ A TEORIA, MAS A GENTE DESTRÓI O GÊNERO É NA PRÁTICA” .
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SABRINA ARIA GABRIEL DANIELA ROXELLE ARIEL E RENATA 83
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SABRINA Aos 36 anos, Sabrina Moraes responde sem nem hesitar: “está tudo tão bom que, se eu morresse hoje, eu morreria feliz”. Está tão feliz com a vida que diz, sem titubear, que já não depende de mais nada para isso, e demonstra pelo jeito que vai contando suas histórias. Mesmo os momentos mais difíceis lhe dão algum motivo para achar graça. É uma mulher otimista, como ela mesma diz, e está certa de ser assim. Especialmente quando os tempos são como esses, cada vez mais difíceis para mulheres e minorias, com o Congresso mais conservador desde 1964 e a bancada fundamentalista procurando maneiras de controlar, cada vez mais, os corpos que subvertem as normas. Desde o início da conversa, Sabrina deixa bem claro sua inimizade com as instituições religiosas, quaisquer que sejam, mas especialmente os segmentos cristãos e com ainda maior ênfase no catolicismo. “Respeito todas as religiões, só não acredito” Sabrina nasceu em Brasília, cidade em que o pai mineiro e a mãe cearense se conheceram, casaram, tiveram e criaram os três filhos. Bem a família tradicional brasileira, ri Sabrina, que conta ser sido criada no “seio religioso, católico”. Até os 27 anos, costumava frequentar as missas com a família, acreditar na condenação dos pecados e ter medo de ir para o inferno. Só com essa idade, conta, decidiu pensar um pouco mais com a sua cabeça e menos com a do Papa. “Hoje eu não acredito mais em Deus. Eu não gosto do cristianismo, em especial, por causa do que ele me fez passar em minha vida”. Depois de tantas recusas, os
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pais, finalmente, pararam de insistir e hoje não a chamam mais para ir à igreja com eles. Desde os quatro anos de idade Sabrina se percebia diferente da maior parte das pessoas. Mas permaneceu por anos de sua vida tentando se adequar. Ela não sabia o que significava ser transexual. O mais próximo disso que tinha conhecimento era a imagem estigmatizada das travestis, sempre associadas a fazer ponto na esquina e a ter como única alternativa de sobrevivência trabalhar com prostituição. “Nunca gostei de sexo. Não que odeie sexo, mas não me faz falta. Eu pensava: como é que eu vou ser uma prostituta se eu não gosto de sexo? Não tem como”. Na época, Sabrina já sabia que vivemos em uma sociedade em que as pessoas trans não encontram muitas oportunidades no mercado de trabalho e são empurradas para a prostituição, somando cerca de 90% hoje. A preocupação com o futuro foi um dos motivos pelos quais ela adiou a transição: “não queria ter um futuro ruim, eu queria ter um futuro confortável”, e o medo do posicionamento das pessoas. Hoje, ela que tinha muita dificuldade nessa questão, em saber quando a pessoa é travesti e quando a pessoa é transexual, tem muito clara para si que “a diferença entre uma e outra é só a preferência que ela tem de ser chamada”. Formada em Sistema de Informações, cursando uma pós-graduação em Serviço Social e o sexto semestre de Psicologia no Centro Universitário de Brasília, Sabrina passou em um concurso da Caixa em 2004 – ela só assumiu o cargo no banco três anos depois -, mesmo ano em que se casou e saiu da casa dos pais. Sabrina foi casada durante cinco anos
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com Juliana, isso antes da transição. Hoje, as duas são amigas. Uns dias antes da entrevista, Juliana tinha enviado para Sabrina o trailer do filme A Garota Dinarmaquesa, cujo roteiro aborda a história de uma mulher trans com sua esposa. Disse ter chorado ao assistir, lembrado das duas e lamentado não ter conseguido ficar ao seu lado durante a transição. Em 2006, com ajuda da internet, Sabrina começou a ter um contato maior e menos estigmatizado com a transexualidade. E no ano seguinte decidiu contar para Juliana que era trans. A conversa não foi das mais tranquilas. O casamento já não estava dando muito certo: “eu não sentia atração por ela, era uma coisa meio que para me esconder, uma maquiagem pra sociedade”. Em comum acordo, decidiram contar juntas aos pais de Sabrina sobre a separação e os motivos. No início 2008, conversaram com a mãe de Sabrina, cuja reação, já esperada, foi negativa. A mãe disse que tinha tido uma filha mulher e dois homens, e não o contrário. Ficou acordado de não contarem para o pai de Sabrina. Um cara bem católico, bem mineiro, muito moralista e que tem sempre muito medo do que os vizinhos possam falar. No dia seguinte, ele convidou Sabrina para tomar uma cerveja, na mesma hora, ela teve certeza de que a mãe havia contado para ele o que estava acontecendo. Quando o encontrou, a preocupação inicial era com sua orientação sexual: não se sentir atraída por mulheres e não lhe dar um neto, pois até então, sua irmã e seu irmão, mais novos, ainda não tinham filhos.
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“Eu falei que me casei porque eu tinha ilusão de que Deus ia me curar, e eu tinha medo de assumir, e esse medo acabou. E como Deus não me curou, então foda-se Deus”. Em um certo momento, seu pai disse que vida de homem era muito melhor, que ele deveria largar essa ideia se ser mulher e tentar mais uma vez. Atendendo aos pedidos insistentes de seu pai, sua mãe e de Juliana, Sabrina decidiu dar mais uma chance. “Tentei vinte e oito anos anos, ia tentar mais um pouco. Aí tentei o ano de 2008 inteiro ser macho, não rolou. Quando foi em agosto, eu e a Ju entramos em um processo de despedida já”. Juliana gradativamente levou as coisas para a casa da mãe dela e, no início de 2009, já havia realizado toda a mudança. Sabrina acha que, no fundo, ela ainda esperava que ela desistisse da transição e voltasse atrás. “Eu não desisti, lógico. Doeu pra caramba? Doeu, porque eu gostava dela. Ela é uma pessoa sensacional, maravilhosa”. Elas venderam a casa que tinham juntas e Sabrina passou três meses na casa dos pais até se mudar para o apartamento em que vive hoje. 2009 foi um ano fundamental para Sabrina. Viajou para o Rio de Janeiro para conhecer pessoalmente Marta, uma cross dresser com a qual conversava pela internet, e por seu intermédio, conheceu diversas outras pessoas trans, travestis e cross dressers que foram abrindo um pouco mais sua cabeça. Apesar de fazer parte de um clube de cross dressers que abrange pessoas de todo o Brasil e, ao longo das conversas e trocas
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de experiências com outros integrantes, foi depois da viagem, que percebeu que realmente não se tratava disso, não era uma coisa à parte de sua vida, mas que dizia respeito a sua identidade como um todo. No mesmo ano transou pela primeira vez com um homem, o Rodrigo. E se encontram até hoje. “Como eu não sou muito fã de sexo, a gente se vê, em média, a cada oito meses, que é o dia que eu transo”, ela conta rindo. Às vezes, eles chegam a combinar que ele vá até sua casa, arruma-se, aguarda-o, coloca a mão no queixo, pensa um pouco e fala “até que se ele não viesse seria uma boa”, e acaba desmarcando meia-hora antes. Mas ela deixa claro que, quando os dois se encontram, é sempre muito bom, eles têm química, o cara “é gostosão” e tudo mais. Rodrigo e Marta foram duas pessoas fundamentais para que Sabrina assumisse sua identidade, porque os dois reforçaram o que ela já sabia há anos, mas que continuava com receio de assumir: que era uma mulher transexual e que precisava fazer algo a respeito. Foi Rodrigo quem incentivou Sabrina a dar início à hormonização. Um dia, depois de transarem, “é claro” – ela enfatiza essa parte, já que eles só conversavam depois -, ele mostrou uma série de sites onde mulheres trans compartilhavam suas experiências com hormonização. Ela foi amadurecendo a ideia, mas não queria tomar o que a maior parte das mulheres recomendava, o Perlutan, já que era injetável e ela morria de medo de agulhas. Os dois combinaram que se ela decidisse tomar, Rodrigo iria até a casa dela aplicar a injeção. O que ocorreu um mês depois, levando-a a decidir que não mais cortaria os cabelos. A maioria das pessoas utilizava o Perlutan de quinze em quinze
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dias, mas devido ao histório de doenças na família, Sabrina resolveu usar de trinta em trinta dias. Como a farmácia não aplicava sem receita e não dava para chamar o Rodrigo toda vez, ela decidiu aprender a aplicar em si mesma.
“A maioria esmagadora das pessoas trans toma hormônio por conta própria” Ela conta, trazendo à tona a ausência de profissionais especializados no tratamento hormonal, e também psicológico e cirúrgico, de pessoas trans. “Um mês depois meus peitos já estavam bicudões”, o que a levou a disfarçar os seios com uma faixa, pintar o cabelo, que era grisalho, deixando-o crescer. Após seis meses de tratamento hormonal, continuou usando o banheiro masculino, até o ponto em que os homens entravam e saíam constrangidos. “Sempre levei super na esportiva, até me divertia com essas situações. Tem muita gente que passa por problemas, eu nunca passei”. Na época, ela trabalhava na agência da Caixa na Câmara dos Deputados, em seguida foi transferida para uma agência interna, sem atendimento ao público. Alguns clientes evangélicos chegaram a abordá-la para dizer que “ficaria tudo bem e que Jesus tinha um plano” para ela. Após quase cinco meses, aproveitando uma “deixa”, mandou um e-mail para todos os colegas do setor contando que era transexual. “Todo mundo super me abraçou”, no entanto, continuou usando
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o banheiro masculino, e só “quando a bexiga estava para explodir”, esperando um “aval das outras mulheres” para ter acesso ao banheiro feminino. Um dia, foi surpreendida com um comunicado do resultado de um plebiscito feito entre as colegas, que permitiam o uso do banheiro feminino. “Isso foi em 2013, que eu me assumi totalmente. Aí de lá para cá foi só felicidade, consegui uma promoção no trabalho. Meu trabalho é super reconhecido, todos me chamam de Sabrina”. “Não tem o nome do falecido lá, apesar do meu nome lá na Caixa ainda estar com o nome masculino, porque eu ainda não consegui mudar lá na justiça. Eu entrei na justiça em agosto de 2014, só que meu advogado entrou na Vara de Família, pedindo alteração do nome e do sexo, aí o juiz só quer mudar depois que eu fizer a cirurgia. Eu vou fazer a cirurgia em dezembro, então eu acredito que até meu aniversário de 2016 eu já esteja com o nome correto”. Na faculdade as pessoas desconheciam sua transgeneridade, achavam que ela tinha ginecomastia por conta da faixa. Após um ano e meio de curso, assumiu-se, solicitando que a chamassem de Sabrina e não pelo “nome do falecido”. Os colegas, talvez por serem do curso de Psicologia, ela diz, foram acolhedores. Uma ou outra pessoa torceu o nariz, mas isso não a incomodou. Em seguida, mudou seu perfil nas redes sociais. Foi tudo um processo, mas a partir de 2013 ela pôde, finalmente, viver plenamente a pessoa que é. A mãe, que de início foi bem resistente, passou a gostar da ideia, aceitando-a. Com os irmãos foi tranquilo. “Eu fui convidada pra ser madrinha de casamento da minha irmã, ela é a mais católica de todas
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lá, mas me chamou para ser madrinha”, conta, bastante feliz, até mudar de tom, “para você ver, eu conversei com eles em 2008, me assumi inteiramente pra sociedade em 2013, e até hoje eles ainda estão labutando para me tratar no feminino. Eu entendo que é difícil, mas eu falei para minha irmã: olha, você tem ate o dia do seu casamento pra incorporar que eu não sou mais o ‘falecido’. Aí ela está trabalhando nisso, eu não pressiono mais também não”. O pai é a parte mais difícil da história, mas nem assim Sabrina perde o humor. Em 2011, quando começou a hormonização, ele novamente a chamou para uma conversa e perguntou se ela estava tomando hormônios, mas ela não quis admitir. Ele voltou a questioná-la sobre ter ou não atração por mulheres. Sabrina falou logo que não tinha atração por nada, que achava mulheres bonitas, homens nem tanto, mas que atração não tinha por nenhum dos dois. Ela relembra rindo, “ele disse: ‘mas não é muito estranho?’ e eu ‘pois é, é estranho mesmo. Mas é isso aí que eu sou’. Aí ele me perguntou porque que eu não virava padre e eu ‘você acha que é facil assim?’. Eu não sinto tesão por ninguém, vou ser padre? O Fulano que é padre porque quer ser padre, eu não quero ser padre”. “Meu pai é super conservador, ele chega a ser racista”. Em 2013, eles tiveram outra conversa complicada. Quando ela se assumiu completamente, seu pai mudou e passou a fingir que ela não exista. Ela resolveu se sentar com ele explicar tudo o que estava acontecendo da forma mais sincera possível. “Eu disse, o senhor não sabe o quão é importante para uma pessoa ser ela mesma, porque para você é normal
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ser você. Para mim, a conquista de ser quem eu sou é que nem um cego voltar a enxergar. Eu não estou me transformando pra dar o que falar pro vizinho, o vizinho que se foda”. A situação foi piorando. Especialmente depois que, no dia dos pais, ela foi no sítio que os pais dela têm em Alexânia e deixou um texto que tinha estudado com um professor de Antropologia sobre o engessamento hetenormativo. Na noite seguinte, ele ligou pedindo para que ela fosse naquele dia mesmo até a casa deles e “vomitou um monte de merda na minha cara, um monte de besteira, dizendo ‘ah, porque até as árvores sabem o papel delas na natureza’, totalmente ignorante. Eu falei ‘pai, se lá em 2030 a sociedade me aceitar, o senhor vai parar de pegar no meu pé?’. Ele disse que não estaria vivo até lá, baixou a cabeça e chorou mais do que no dia da morte do pai dele. Depois, secou o rosto e falou ‘é, não tem mais jeito, vamos trabalhar, né?’”. Com nítida tristeza, Sabrina conta que a relação dos dois nunca mais foi a mesma. “A gente tinha uma amizade legal, a gente brincava de videogame sempre. A gente ainda brinca de vez em quando, mas a relação mudou. Quando tem festa, evento, alguma coisa assim, ele tem vergonha, sabe? De ficar perto de mim, de me apresentar. Eu nem imagino isso do meu pai nunca. Ele não vai me aceitar, mas...ele me engole”. Os amigos de antigamente, da época de cursinho, foram outro destaque. Ela precisou refazer praticamente todas as amizades. A maioria deles, evangélicos ou católicos, não souberam lidar com a transição. Em um episódio, ela saiu para beber com a mulher de um
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dos amigos e depois dormiu na casa deles sem que ele estivesse lá. Isso deu uma confusão muito grande, já que o amigo, muito ciumento, não gostou da ideia de a esposa ter dormido com outro homem em casa. Ela já sabia da transexualidade de Sabrina, que ainda estava começando a transição, e pediu para que ela contasse e aliviasse a situação. Depois de uma conversa, o amigo entendeu e ficou tudo bem, mas tudo foi tão engraçado e ela ri até hoje, “porque todo mundo pensa que homem é bicho, né, homem não tem preceito moral não, é só instinto, que o pinto subiu e aí tem que comer alguma coisa”. Um outro amigo saiu perguntando para todos as pessoas em comum sobre o que estava acontecendo com ela. Depois, iniciou uma provocação no Facebook e ela desfez a amizade. Quando ele veio tirar satisfação, Sabrina, que não tem papas na língua, já disse logo: “fica tranquilo que eu não vou na sua casa contaminar seus filhos com o vírus da transexualidade”. Ela nunca sofreu nenhum episódio de transfobia. No máximo, alguns olhares, mas sempre tentou ser discreta, especialmente antes de fazer a cirurgia de feminilização facial, em outubro de 2014. “Vez ou outra uma pessoa passava e ficava reparando em mim e eu ficava reparando na pessoa também para ver se ela gostava”. Antes do procedimento, em ônibus e no metrô, por exemplo, tentava ficar nas áreas menos iluminadas. Como tinha a barba muito aparente, precisou passar por diversas sessões de depilação a laser para evitar que aparecesse. Ela lembra de um episódio em que lidou, com muito bom-humor, com uma situação extremamente desagradável. Estava em um vagão
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do metrô, retornando para casa, quando um rapaz a sua frente, que conversava com uma menina, parou e começou a encará-la. “Eu fiquei sem graça, fiquei olhando para lá, olhando para cá [ela reproduz o movimento] e ele estava olhando ainda, aí eu pensei ‘quer saber? Vou encarar!’ e encarei o cara fiquei olhando assim [ela arregala os olhos e inclina a cabeça para frente]. Ele ainda segurou o olhar por uns dez segundos, depois ficou muito sem graça”. A maioria de seus amigos, relata Sabrina, são cisgêneros, mas também tem muitas amigas e amigos trans e considera importante participar de grupos que dão apoio e coletivizem esses indivíduos, como o que se reúne toda terça-feira no Hospital Universitário de Brasília. Para ela, esse tipo de união permite que as pessoas construam uma rede de apoio. “E é tudo muito fascinante, porque cada um tem sua história de superação”. Olhando para todos os lados do café, Sabrina falou: “Porque voce vê, em um ambiente desses aqui, só eu sou trans e aí a pessoa meio que se sente um ET, não se sente pertencente a esse mundo”. É preciso estar ao lado de outras pessoas que entendam e possam conversar sobre essa sensação. Sobre a patologização, Sabrina diz que tem muito transexual que apóia, porque traz benefícios do governo, como a cirurgia de redesignização oferecida pelo Sistema Único de Saúde, “justamente porque a pessoa trans é doente, entre aspas para caramba. Eu não acho que a pessoa trans é doente, assim como não acho que a pessoa homossexual é, ou a bissexual é. As condições são diferentes, mas
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acho que a raiz é meio que a mesma”. E lamenta a falta de tratamento especializado:
“o que falta são pessoas que entendam, que tenham essa vontade”. Sabrina acha que um mundo melhor está por vir, mais inclusivo, com mais oportunidade para que as pessoas trans possam ir atrás do que elas querem, e terem a liberdade de fazerem o que quiser, tanto no mercado de trabalho, quanto nas escolas e nas academias.
“Não é identidade de gênero que vai definir a competência e a capacidade de uma pessoa, falta a sociedade dar oportunidades mesmo”. Sobre a participação de pessoas cisgêneras da luta trans, Sabrina é bem receptiva: “Você nunca vai saber como é ser uma pessoa trans, mas você vai ter empatia, e o que falta na sociedade é isso. Apesar de a pessoa estar em uma posição de privilégio, ela se incomoda com quem está do lado e gostaria de incomodar outras pessoas também, cutucar e falar ‘olha, esse assunto é importante, vamos parar um pouco de jogar videogame, né, porque a gente já tem nossos direitos, mas a outra pessoa precisa ter também’”. A alteridade parece ser algo fundamental para Sabrina. A vontade de cursar Psicologia, por exemplo, veio a partir do contato com o programa Médicos Sem Fronteiras, onde escutou o depoimento de uma
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psicóloga que participava do projeto. “Mas isso é um plano mais para frente, porque tem que ter um curso de línguas, inglês ou francês, e eu entendo quando a pessoa fala inglês, mas falar mesmo eu não falo nada”. Clinicar também está entre as alternativas para o futuro. “O que eu mais desejo acho que é encontrar alguém. Não para transar, mas ter companhia para ir ao shopping, fazer compras no mercado, porque eu sou sozinha tem seis anos e eu estava gostando da ideia de poder fazer o que eu quisesse, de pedalar até Luziânia. Eu adoro pedalar, esqueci de falar. Amo, tenho duas bicicletas, uma mountain bike e uma speed. Para transar não falta, se eu quisesse transar com um cara por dia, eu transava, só que um cara para segurar na minha mão e andar comigo na rua, ele tem que ser três vezes homem, e esse homem está em falta no mercado”. Para isso, Sabrina esclarece, ele estaria, de alguma forma, abrindo mão de sua posição de conforto e comprando “a briga” dela.
“Eu tenho um pouquinho desse medo de não encontrar alguém”. Em busca de uma companhia que exista de fato, ela considera a possibilidade se relacionar com um homem trans, “não pela curiosidade, mas é porque temos uma identificação, uma história em comum”. Recentemente, até conheceu um cara e ficou encantada, mas como ele tinha namorada, precisou deixar para trás. “Eu acho essencial manter a identidade trans, porque a gente é o que a gente é desde sempre. Esse peso [de tentar apagar o passado] eu
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não quero carregar. Pelo que eu passei, eu enganei a Ju, eu meio que fiz uma promessa e eu não engano mais ninguém, ninguém, ninguém. Eu enganava que eu era cristã, porque eu nunca fui”. Hoje, Sabrina se conhece muito mais do que antes. É uma mulher segura, que não se sente ameaçada por quase nada. Ficou mais chorona e com os sentimentos à flor da pele, precisando de alguns dias de isolamento, especialmente no início da hormonização. Depois, foi se acalmando e se adaptando. Sobre sua sexualidade, ela mantém o mesmo “desinteresse” pelo sexo: “se aparece um cara bonito querendo, eu vou lá e transo, mas eu estava lendo sobre pessoas assexuais, eu cogito a possibilidade de paticipar desse grupo. De ser uma mulher trans assexual...radical, né?”. Sabrina, relata tudo com muita naturalidade, surpreendeu-me diversas vezes pela forma como é sincera com sua intimidade, contando tudo nos mínimos detalhes sem se preocupar. Não tem papas na língua, é bem-humorada, educadíssima. Não demorei muito para reconhecê-la quando cheguei no café combinado para o início da noite do dia 11 de setembro de 2015, na Asa Norte, em Brasília. Quando cheguei, estacionei do outro lado da rua e, mesmo já estando escuro, vi uma moça muito sorridente, de cabelos loiros, apoiada no guarda-corpo, olhando para mim. Nos sentamos do lado de dentro do café e ela estava super empolgada. Pediu um chocolate gelado e eu um café, e começamos a conversar. Combinamos de trocar uns textos depois, de sairmos para pedalar juntas e ela ficou de me passar alguns contatos para mais entrevistas.
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“Eu não tenho vergonha de ser uma mulher trans, às vezes eu tenho até orgulho, bato no peito e falo: ‘sou mulher trans, fodase’. Eu gosto” Ela tem, não só materialmente, tudo. Fanática por carros “velhos”, tem seu fusquinha 78, que é seu “xodó”; seu apartamento; as duas bicicletas. É uma pessoa respeitada enquanto mulher trans e enquanto profissional, coisa que para ela era fundamental desde sempre. “Estou feliz, não dependo de nada”, ela repete. Aproveita a vida pedalando, passeando com o fusca, saindo com as amigas, lendo, estudando, vendo muita palestra do professor Clóvis de Barros no Youtube – que recomenda altamente - e sorrindo, sorrindo muito.
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ARIA Conforme combinado, encontrei Aria para uma conversa no meio da tarde do dia 28 de agosto de 2015, em uma torteria do Sudoeste, em Brasília. Foi minha primeira entrevista para o livro e quando pude ter a certeza de que não adiantaria nada levar uma lista de perguntas pré-elaboradas. Aria, como as outras pessoas que estavam por vir, precisavam ser não apenas fontes de reportagens, mas personagens narrando suas próprias histórias. A entrevista ocorreu de maneira tão espontânea que eu poderia ter ficado sentada ouvindo seus relatos e opiniões pelo dobro de horas. Era uma sexta-feira, e a maneira mais lógica de agradecê-la pela disponibilidade e companhia seria deixando-a em casa a tempo de aproveitar o começo do fim de semana. Ela reforça não ter muito o que fazer em Brasília, mas sempre que a agenda cultural ajuda, gosta de aproveitar para ir em festas e happy hours da Universidade de Brasília. Naquele dia, ela ainda iria trabalhar em uma festa, na boate La Ursa, no Setor Bancário Norte, centro da cidade, mas reservou algum tempo para conversarmos. Eu não conhecia Aria, a não ser por fotos, mas não demorei muito a reconhecê-la dentro da torteria, pedindo um sorvete de menta com chocolate para a garçonete. Alta, com cabelos loiros abaixo dos ombros, olhos claros e lábios extremamente rosados, ela, claramente, chamava atenção das outras pessoas que estavam no lugar, coisa que repara com frequência e sobre a qual falaria depois.
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“Não sei se é porque eu sou uma pessoa diferente, que chama atenção e que as pessoas olham, não sei se estão me olhando porque eu sou bonita, não sei se estão me olhando porque sou travesti”. O “ser travesti” é fundamental em sua identidade. Militante dentro e fora dos ambientes virtuais, Aria é seguida por diversas pessoas, especialmente jovens trans, com as quais compartilha experiências nas redes sociais. Quando pedi para que se apresentasse, apenas para registro, Aria respondeu imediatamente: “Meu nome é Aria Rita Weingärtner, eu sou travesti, tenho 18 anos, sou graduanda em Música pela UnB e também sou drag queen...que mais?”. Nascida em algum canto do Rio Grande do Sul, sobre o qual não se preocupou em falar muito, até por se considerar brasiliense de coração, a jovem tem como uma das suas maiores paixões a música. Começou a tocar violão clássico e erudito quando tinha seus onze anos de idade, e ainda morava no sul do país. Quando chegou à capital, um pouco depois, descobriu que a Escola de Música oferecia aulas de alaúde, instrumento que sonhava em aprender, e foi atrás de uma vaga no curso. O gosto pela linguagem musical sempre foi tão presente que, durante os anos do Ensino Médio, enquanto muitos se preocupavam em seguir os cursos e profissões mais bem cotados dos rankings de revistas especializadas e dos cursinhos preparatórios, ela percebeu que “não conseguiria fazer nenhuma outra coisa que não fosse relacionada a música” e decidiu ir atrás de sua autorrealização.
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Entrou na universidade com 16 anos já está no quarto semestre do curso. Além dos instrumentos de corda, Aria também toca piano e canta. Ela chegou a aproveitar a aptidão para dar aulas, mas precisou parar depois que iniciou a transição. Atualmente, Aria é colaboradora no site Fast Food Cultural e na revista online Capitolina. Nos sites, voltados para um público jovem e plural, ela tenta passar um pouco de suas vivências pessoais para os leitores, além de escrever sobre música. Apaixonada por gatos, flores, comida e pela cultura pop – especialmente a música -, e predileção pela cor vermelha, deixa bem claro, desde o começo, que é uma pessoa muito crítica a respeito de tudo. “Eu sou aquariana, sou um saco”. Na vida acadêmica, esse semestre tem sido o mais complicado, já que sentiu a necessidade de fugir do fluxo de disciplinas e pegar matérias de outras graduações para atrasar em quase um ano seu curso devido aos constrangimentos provocados por colegas de seu semestre, que não souberam lidar com sua transição.
“Uma pessoa trans ao invés de formar em quatro anos se forma em sete”. Quando era criança, com uns três, quatro, anos de idade, gostava muito de se fantasiar. Vestia-se de Batman, Robin, Tarzan, mas tinha como opções preferidas as das personagens Xena e Anastasia. Como ela mesma disse rindo, “já era empoderada desde cedo”. Mas as fantasias
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de princesa não faziam o mesmo sucesso com seu pai, que ficava tão louco com a situação, que ela lembra, até hoje, dos olhares de repressão que recebia toda vez que se vestia fora das normas. Sua memória mais nítida de uma dessas vezes é de quando tinha por volta de quatro anos e seu pai queria levá-la com ele para comprar frutas em uma feira, e ela queria ir desde que fosse vestida de Anastasia, mas ele não deixou e a levou mesmo assim. Aria foi chorando até que chegassem ao lugar. E conta que seu pai, impaciente, pegou o boné que estava usando e colocou na cabeça dela e falou: “pronto, agora você é o Dimitri” - o par de Anastasia no filme. O que só a fez chorar ainda mais. Dentre todas as lembranças, Aria acha que foi naquele o momento em que percebeu que alguma coisa dentro dela não agradava nem ao pai, e nem à sociedade. Quando estava um pouco mais velha, Aria percebeu que vinha sendo “lida” pelas outras pessoas como uma garota, na maior parte dos espaços que frequentava. Começou a deixar o cabelo crescer quando tinha nove anos, o que a deixava com um visual ainda mais andrógino. A primeira vez que foi confundida com uma menina foi cerca de um ano depois, e foram se tornando cada vez mais frequentes as situações em que se referiam a Aria como “moça” ou outras formas no feminino. Esse tipo de situação irritava seu pai, mas para ela parecia uma coisa totalmente indiferente. No começo, não se importava se a chamavam no masculino ou no feminino, mas depois de um tempo percebeu que existia sim um incômodo: quando era tratada no masculino e chamada pelo nome de registro.
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Foi em dezembro de 2014 que Aria decidiu assumir sua identidade de gênero e começar a transicionar. Em janeiro, começou a sair na rua como mulher, usando roupas, maquiagem e acessórios, designadas para o gênero feminino e, em março, deu início à hormonização por conta própria. Aria deixa claro que, para ela, a transição é uma coisa muito mais ampla e complexa do que tratamentos hormonais e cirúrgicos, por envolver outras mudanças e transformações, como a troca do guardaroupa, o uso do nome social e principalmente a mudança dos hábitos e costumes.
“É o processo de você assumir sua identidade e se aproximar do ideal do que é aquela identidade”. Aria tem o costume de dizer que sua trajetória, desde o início da adolescência, foi de identidades, indo da menos para a mais estigmatizada. Isso porque sua primeira saída do armário foi como bissexual. Na época, lhe parecia uma identidade mais comum e aceitável, e conta, achando graça das lembranças, que era uma identificação frequente em seus grupos de amigos e círculos sociais. Mas como sempre sentiu mais atração por homens, não demorou muito para, com quatorze, quinze anos, se assumir como homossexual. A partir de uma observação pessoal, e ao longo das histórias que pude ouvir, pude perceber que são frequentes os casos em que esse tipo de desentendimento, entre identidade de gênero e orientação sexual
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diversa, acontecem. Para mim que, o exotismo e o tabu atribuídos, quando não a invisibilidade – pela sociedade e, em grande parte, pela própria mídia -, à transexualidade e aos indivíduos trans podem ocasionar esse tipo de desentendimento, responsável por uma espécie de atraso ou procura incessante por adequação dessas pessoas nos “compartimentos” criados pela sociedade. Depois de ter saído do armário como gay, Aria começou a ter um contato com maior com transgeneridade acessando o Tumblr. Aproximando-se da não-binariedade, seguindo pessoas que eram nãobinárias, acompanhando os relatos sobre suas vivências e rotinas, que começou a se questionar e se identificar com a identidade trans. Aria passou um ano se reconhecendo como não-binária até perceber que era, na realidade, uma mulher transexual. O não-binarismo foi, por um tempo, uma maneira que ela encontrou para “higienizar um pouco” sua condição, porque “de longe, não tem o mesmo peso de travesti”. Para Aria, o grande desconhecimento sobre indivíduos não-binários faz com que não existam muitos estereótipos desses indivíduos e deixa a sociedade um pouco mais receptiva. No período, ela começou a usar batom e flexibilizar no vestuário, e quando alguém se aproximava com uma postura agressiva em relação a sua expressão de gênero, ela usava a não-binariedade como um escudo, transformando-a em uma coisa interessante, nova, a ser pensada. Isso de que “pode ser uma coisa entre os dois [gêneros], uma completamente diferente dos dois, pode se identificar como sendo de gênero algum” dava-lhe um pouco mais de segurança do que sente hoje
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ao andar na rua, por exemplo. Aria é doce, e ao mesmo tempo em que fala extremamente rápido, tem a voz macia. É claramente uma mulher combativa, porque dispara uma frase atrás da outra sem nenhum recuo por estar sendo gravada. Isso deve ser característica de uma garota que se envolveu com a militância cedo, desde que “saiu do armário pela primeira vez” e que, desde então, sempre esteve engajada em lutas e demandas da população LGBT. E que é, assumidamente, transfeminista. Como acredita, todas deveriam ser, mas cada uma com seus ideais de vida. A identidade travesti veio com força algum tempo depois de se identificar e assumir como mulher transexual, de conviver com a militância trans e de ver tantas mulheres levantando a bandeira da travestilidade, especialmente uma de suas amigas, a estudante de pedagogia Maria Clara Araújo. Depois de algumas conversas entre as duas, percebeu o quão forte é e deve ser a palavra “travesti” e o quão importante é se definir como tal. Desde então, se apresenta assim. Antes, ela mesma admite a confusão entre os termos, já que costumava utilizar “travesti” e “mulher transexual” como sinônimos, apropriando-se dos dois. Hoje, ela entende a relevância política de se apossar de uma identidade tão estigmatizada. Para ela, existem muitas definições diferentes e o mais importante é a auto-identificação, mas tentou me explicar a forma como costuma diferenciar cada um. Transgênero é a pessoa que não se identifica pelo gênero designado, transexual é o transgênero que tem disforia de gênero, ou seja, sente necessidade de modificar o corpo, seja através de hormônios, seja
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através de cirurgias, para adequar seu corpo físico ao seu gênero psicológico. “E que mais...travesti, né? Travesti é o mais complicado um pouco”. Para Aria, na América Latina esse termo foi mudando e deixando de significar o verbete dos dicionários, de pessoas de um gênero que se travestem de outro, para designar “quase uma identidade de gênero cultural”, própria dessa região do globo. Aria acredita que o termo “transexual” ainda seja estranho a muitas pessoas, até porque, para ela, o conceito médico, de origem eurocêntrica, da transexualidade demorou a chegar até aqui. Algumas dessas pessoas que desconhecem são, inclusive, pessoas trans que viveram a vida inteira ouvindo os ecos dos verbetes de dicionários, achando que eram mesmo “veados vestidos de mulher” e, portanto, se identificam assim, como travesti, “traveco”.
“É como se fosse um terceiro gênero. Se você perguntar se ela é homem ou mulher, ela vai falar nenhum dos dois, sou travesti”. O termo, que persiste carregado de estigmas e discriminações, passou a ter uma grande importância sócio-política e cultural para a conquistas dos direitos e visibilidade trans e, por isso, tantas mulheres transexuais, principalmente ativistas e acadêmicas, vêm assumindo a bandeira da travestilidade como uma forma de empoderamento e autonomia de seus corpos e identidades, a partir de uma expressão, até então, pejorativa e discriminatória.
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Aria prefere se identificar assim, como travesti, por mais que se identifique como mulher, e saiba que, em termos médicos, a designação é transexualidade. E é enfática quando expressa sua indignação fazendo referência ao Código Internacional de Doenças e sua repercussão na sociedade: “Eu acho o transexual patologizante, sabe?”. “Se a gente for ver todo o estigma, eu ainda prefiro conviver com o estigma de travesti do que com o estigma de transexual, porque o estereótipo de travesti é o da prostituta, da promíscua, da marginalizada. Enquanto o estereótipo da mulher transexual é o estereótipo da coitadinha, que sofreu a vida inteira com disforia de gênero e se automutilou e teve crises de depressão e tal. Eu não gosto disso, sabe? Eu gosto de ser vista mais de uma maneira dona de si, sabe? Que quando eu penso no travesti, eu penso em uma mulher transexual que é livre, que é dona da sua sexualidade, que é dona de seu corpo”. Aria deixa claro, desde o primeiro momento, que tem muito presente em sua personalidade, como ela mesma diz, uma “noção de desconstruir padrões”. Isso é uma coisa que ela conta com certo vigor, veio desde a sua infância e adolescência, com seus próprios exemplos de mulher, completamente diferentes dos estereótipos femininos. Sua mãe foi mãe solteira, trabalhava e se formou no Doutorado quando Aria ainda era pequena, nunca usou maquiagem e não depilava o axila. Isso, para Aria, sempre foi o normal. Tanto que, quando criança, achava muito estranho quando via na televisão mulheres que fugiam dos seus modelos, e ficava se questionando que pessoas eram aquelas e pensando ”nunca vi uma mulher dessas na escola, nenhuma professora
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minha é assim, ninguém da minha família é assim”. Aria contou para sua mãe sobre a transexualidade quando questionada sobre os hormônios que estava usando. “Eu desabafei tudo”. Foram quase quatro meses transicionando sem que sua mãe soubesse e vendo sua vida tomar outros rumos. É nítida a forma como Aria queria ter contado antes, mas teve receio. Durante esse período, participou de mesas-redondas, manifestações, palestras, “queria chegar em casa e falar: ‘participei de uma reunião da Unicef. A gente definiu propostas para a juventude LGBT’”, mas não podia dizer que estava representando as pessoas trans. Estimulada a contar, o fez sem reservas e a reação da mãe foi bem tranquila. Ajudou na hora de doar as roupas e, para felicidade de Aria, deu um “dinheirinho” para que ela comprasse roupas femininas e rapidamente passou a chamá-la pelo nome social e a se referir no feminino. Aria conta que, em brigas, de vez em quando ainda escapa um “Fulano”, mas brinca “na raiva a gente entende”. Sobre os demais membros da família, prefere não falar nada e não insisto, “melhor nem falar, na verdade, ainda é um pouco fechada”. Sobre o apoio que recebe das pessoas ao seu redor, Aria cita seus amigos, mas deixa bem claro que, por mais que estejam sempre ao seu lado, eles não entendem quando ela aborda algumas questões. Além disso, recebe um apoio inesperado de pessoas que a acompanham nas redes sociais, nas palestras que dá. “É muito engraçado, porque as pessoas que mais me apoiam são pessoas desconhecidas, não são pessoas muito próximas”. Mas enfatiza a presença materna: “meu apoio
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mesmo é minha mãe”, e brinca; “ela só, às vezes, acha que sou meio louca” por conta das paranóias que desenvolveu desde o início da transição. “Paranóica” e “neurótica” são dois termos que Aria utiliza bastante para se definir. E não é culpa dela, e sim do machismo e da transfobia que mata todo dia e, como ela mesma faz questão de reforçar, provoca um genocídio de pessoas trans, com especial força no Brasil. Bem séria, ela faz questão de me relembrar dos dados que não podem mesmo ficar de fora da conversa. Mas depois volta, um pouco mais leve, contando dos medos que desenvolveu com mais força quando começou a sair na rua com a “expressão feminina”. “Se eu estou de um lado da rua, pode ser até de dia, mas se eu vejo um cara se aproximando, eu já penso assim, vou pegar a chave e deixála como uma arma improvisada. Eu parei de usar rabo de cavalo porque, eu não sei porque, mas eu sempre tenho medo de alguém puxar, sei lá. É, eu fiquei muito paranóica”. Para Aria, a violência contra pessoas trans não está limitada a agressões físicas, insultos, porque ela existe de um ponto de vista estrutural também.
“Está muito associado à falta de informação, absolutamente ligado. As pessoas não sabem lidar com a diferença”. A situação atual é extremamente preocupante, mas Aria aproveita para rir um pouco de suas paranóias. “Influencia tanto assim essa
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sensação de que a gente está sendo perseguida que, às vezes, eu penso que sei lá, tem alguém me olhando ali com um sniper, sabe?” Aria reforça ainda que goza de um certo privilégio quanto a sua segurança em relação a algumas pessoas trans. “De boca fechada eu sou passável, muita gente não chega realmente a reconhecer que eu sou travesti”. Além disso, ela deixa bem claro que Brasília, e especialmente o Plano Piloto, parece uma bolha se comparada com outras regiões do país, “a gente quase não ouve sobre transfobia aqui”. Mas o medo persiste, e a forma como Aria desabafa sobre as dificuldades na rotina de uma pessoa trans demonstra o despreparo de nossa sociedade. Em todos os lugares ela se sente completamente assistida, e só tem sossego quando chega em casa, mas ainda assim, encontra dificuldades na hora de descansar. “O nosso corpo fica muito em alerta, são muitas horas por dia em estresse”. Outra questão que mudou completamente e que, esclarece, a deixa muito indignada, é a forma como o assédio começou a fazer parte do seu dia a dia. Antes, nunca tinha sido assediada na rua, “assim, nunca, nunca, nunca, nunca”. Agora, todo dia ela precisa encarar uma “cantada nojenta, uma mão no ônibus, algum comentariozinho machista”. A cultura machista reflete em outros aspectos de sua vida, inclusive nos relacionamentos. Ela lembra como são frequentes os linchamentos de caras cis que se relacionam com mulheres trans ou travestis. “Isso é muito foda, porque quer dizer que a gente não merece ser amada, né. Que se um cara está com a gente é porque não é digno de qualquer coisa e que deve ser ridicularizado por estar com a gente”.
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Em um tom bastante triste, Aria relata com são frequente as situações em que é desvalorizada por homens por ser trans. Aconteceu mais de uma vez, de estar em algum lugar e um cara chega puxando papo e a convidando para sair, chamando para um jantar, uma ida ao cinema, elogiando, “ah, como você é linda, que cabelo bonito”, e logo que descobre, ou quando ela fala que é travesti, toda a situação muda, “nossa, não ir no banheiro?” ou “vamos para um motel”. Aria mencionou a carta de suicídio de Leelah Alcorn, uma menina trans de dezessete anos que se matou nos Estados Unidos, onde em uma linha dizia: “Eu nunca vou ser amada por um homem”. E disse, com a voz um pouco alterada:
“tem pessoas trans se suicidando porque elas acham que não merecem ser amadas”. Desde o início da transição, Aria não tem se envolvido muito com homens, e muito por conta da paranóia. Toda vez que aparece um cara com uma cantada, ela acha muito fetichista. No Tinder, se cansou e deletou, pois era comum que homens dessem match com ela e iniciassem a conversa indagando se ela fazia programa. Quando isso não ocorria, marcava de sair e, muitos deles, não queriam estar com ela em um lugar público. Outros dois, não se importaram com isso, mas acabou não indo em frente. “Eu costumo falar o clichêzinho: que um gerente do McDonald’s não quer pagar quatro reais a hora pra uma travesti servir hamburguer,
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mas paga quatrocentos reais por um boquete”. Aria brinca, mas sabe e deixa bem claro que, para as mulhers trans, a maior parte das oportunidades que se abrem são no mercado de prostituição. “Sei que se eu for ser qualquer coisa no mercado privado, vou passar por dificuldades, constrangimentos”. Seus planos são se formar e passar em um concurso público: “porque aí eu não posso ser demitida sem justa causa”.
“A gente é violentada, a gente é antagonizada, porque a gente é vista como uma coisa bizarra e fora do normal, como se a gente não tivesse direito de existir. Como se eu não tivesse o direito de estar aqui, comendo um sorvete na torteria, como se eu não tivesse o direito de estar na universidade”. Fundamental, para Aria, é que as pessoas trans, e a questão trans, ocupem espaços e lutem por representatividade. Para isso, ela acha que indivíduos trans ainda precisam de “de aliados cis que amplifiquem nossas vozes, nunca falar por nós, entende?”. “Pessoas trans não estão servindo cafézinho na lanchonte, não tão limpando o chão. Enfim, nem para ser faxineira, as pessoas querem travesti, entendeu?”. Aria reforça que ainda existem poucas pessoas trans na academia, produzindo trabalhos, pesquisas, e isso por ser uma das razões pelas quais pessoas trans são tão marginalizadas. “A farmacêutica não está nem aí pra gente, os hormônios, por exemplo, na bula não dizem nada sobre transexualidade, não existe
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hormônio que é feito para as pessoas trans. O hormônio que eu tomo é contraceptivo, anti-concepcional, ou seja, vai aparecer na bula tudo o que acontece no corpo de uma pessoa que tem útero, que tem ovários, que menstrua, que pode engravidar”. A mídia é um outro setor que, para ela, não se preocupa com a integridade de pessoas trans. No Brasil Aria costuma dizer, inclusive, que ela só vai representar esses indivíduos sob três óticas: “de um ponto de vista de um show de horrores, ou seja, a pessoa trans ou a comunidade trans num geral é exótica, por exemplo ‘olha só o Buck Angel, é um cara todo bombado com uma vagina, olha como isso é bizarro’; ou pelo stand-up comedy, ou seja, a pessoa tá falando sobre a transexualidade, mas sempre com aquele arzinho satírico, parece que dá pra ouvir umas risadinhas nas entrelinhas; e a outra ótica é o que eu chamei de colação de grau, que é tipo notícia que fala como uma pessoa trans, ou a comunidade trans como um todo, conseguiu um grande feito, uma vitória, aí é aquela coisa: ‘nossa, tipo, uau, uma pessoa trans’”.
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GABRIEL Combinei de encontrar Gabriel Graça de Oliveira no dia 7 de outubro de 2015, uma quarta-feira, às 18 horas, em seu apartamento na Colina, uma área destinada a servidores da Universidade de Brasília, dentro do campus principal, Darcy Ribeiro. O contato foi realizado através de meu padrinho que, sabendo do meu trabalho, perguntou a Gabriel, seu amigo, se teria interesse em participar. Recebendo a afirmativa, ligou-me imediatamente e me passou seu número de telefone. Foram muitas ligações cruzadas em duas semanas até que, finalmente, conseguimos conversar e agendar um horário para a entrevista. Minhas expectativas eram extremamente altas. Primeiro, por ter sido Gabriel o único homem a participar do projeto; segundo, pela recomendação já citada; e terceiro, a primeira pessoa a convidar-me à sua residência para entrevista. Cheguei em seu prédio pontualmente. Embora muito presentes no cenário e no imaginário brasiliense e, especialmente, daqueles que trabalham, estudam, ou mesmo circulam pela UnB, eu, que sou estudante da universidade há cinco anos, nunca tinha estado em um dos prédios da moradia. E sua estrutura, que me surpreendeu pelo aspecto envelhecido, tanto no exterior - na área do pilotis; como no interior - o barulho enferrujado do elevador, contrastou fortemente com o apartamento de Gabriel. O hall de entrada, que me causou uma certa confusão pelo número
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de portas, e que me fez apertar insistentemente o interruptor da lâmpada – que não acendia porque estava queimada -, achando que tocava a campainha, mudou de aspecto tão logo Gabriel abriu a porta que dava para sua sala, ampla e iluminada. O ambiente, tão organizado, adiantava a pessoa serena, de voz macia e extremamente elegante, com a qual eu passaria ali as próximas horas. Aos 49 anos – agora, aos 50, já que ele fez aniversário duas semanas depois da entrevista -, Gabriel é especializado em Psiquiatria e, além de clinicar, é docente na Faculdade de Medicina da UnB, onde também já foi coordenador do curso de graduação. Nascido em Brasília, Gabriel é solteiro e mora com o filho. Como ele mesmo diz, gosta de coisas muito comuns – que, na verdade, são muito especiais -, é fascinado por literatura, especialmente a latino-americana, com clara preferência pela brasileira. Uma predileção que se repete quando o assunto é música. Sempre que sobra um tempo livre, aproveita para ir ao cinema, gosta muito de ver filmes, de encontrar com os amigos, de viajar, “mesmo viagens curtas de carro para mim são muito prazerosas”. Uma atividade que não lhe é muito atrativa é a física, mas ele sabe que é beneficiado a fazer e até se rende, “depois que a gente faz é sempre confortável, dá uma sensação agradável”. Conforto, aliás, é uma palavra a qual Gabriel se refere muito. Uma sensação que parece ser de fundamental importância para ele, para sua vida. O que lhe é confortável tem essa qualidade repetida diversas vezes, e o que é prazeroso também. Ambos adjetivos foram se repetindo durante a conversa, em que, sentado no sofá, muito bem vestido,
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muito bem resolvido, ele respondia calmamente às minhas perguntas, parecendo que escolhia muito bem as palavras a serem usadas. Gabriel escolheu cursar Medicina porque, na época, parecia uma profissão que lhe daria o senso de valor pessoal, prestígio, além dos benefícios econômicos e sociais, e pelo fato de sempre ter sido uma pessoa que “gosta muito de gente” e de lidar com pessoas. A especialização em Psiquiatria foi uma decisão tomada no último ano do curso. Até então, ele não tinha certeza da área em que queria seguir e estava indeciso entre algumas possibilidades. Pensou em Pediatria, em Gastroclínica, mas quando foi a hora de se perguntar o que realmente mais gostava de fazer quando estava lidando com os pacientes, percebeu que a parte mais agradável era conversar com o paciente, “entender sua história de vida, como a doença se instalou naquela história, naquela vida”. “Quando me dei conta disso, deduzi que a Psiquiatria seria mais interessante para mim”. Gabriel ainda era coordenador do curso de graduação em Medicina na UnB quando começou a transição e ainda surpreende com a tranquilidade com que a notícia foi recebida, tanto pelos alunos, que são “super respeitosos, educados, afetivos”, quanto pelos colegas docentes, o diretor e a vice-diretora da faculdade, “colegas que sempre me trataram também com muito respeito, solidariedade, companheirismo”. “Quando souberam, todos prontamente passaram a me chamar de Gabriel”, relembra. Ele teve medo da reação dos alunos, professores e, é claro, dos pacientes, para os quais foi contando aos poucos, respeitando o tempo
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de cada um. “Na medida em que eles estavam bem, em uma situação clínica melhor”. Todos reagiram de forma muito tranquila, aceitaram muito bem e foram se adaptando a sua nova expressão. Por conta do nome de batismo, Gabriel manteve o Graça, que foi sempre seu apelido. “Eu quis manter exatamente porque tem muita gente que sempre me chamou assim. E eu sempre aprendi, desde criança, a responder, a olhar quando me chamam de Graça, aí eu falei ‘vai ficar estranho quando sumir com ele da minha vida’”. São dois nomes que Gabriel diz, abertamente, que reconhece como seus e com os quais se sente bastante confortável, nunca tendo sofrido qualquer episódio de desrespeito, nem nos ambientes de trabalho, nem em lugares onde precisa apresentar seus documentos, que ainda estão com o nome de registro. “As pessoas de um modo geral tentaram sempre ser muito delicadas, educadas”, Gabriel explica que é um transgênero em fase de transição e a maior parte das pessoas acaba pedindo desculpas. Em algumas situações, precisou lidar com pessoas de “cara mais fechada, cara de poucos amigos”, mas afirma não saber dizer se isso aconteceu devido à sua identidade de gênero ou por algum problema da pessoa.
“Mas de um modo geral, o mundo tem me tratado muito bem”. Gabriel sabe que é uma pessoa de sorte, com uma experiência pessoal realmente distinta, se comparada com a maior parte da população trans, que enfrenta o desamparo estrutural cotidianamente. “Já li muitas histórias de pessoas que tiveram vidas muito difíceis
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porque resolveram fazer a transição, pessoas que tiveram uma rejeição social, até familiar”.
“As pessoas não conseguem compreender o que é essa questão da disforia de gênero”. Para ele, a ignorância, a falta de um olhar mais médico, mais acadêmico para a questão é um dos problemas que mais influencia a relação da sociedade com esses indivíduos. “Acho que as pessoas acabam vendo como uma questão de caráter, ligada ao sexo, sexualidade, prostituição. E ignoram que esse é um problema de saúde. Porque, na minha opinião, é um problema de saúde. Pelo menos na forma como está constituída a nossa sociedade, porque vivemos em um mundo onde você tem que ser homem ou mulher, ou uma coisa ou outra. Então você ser, ter um corpo de um gênero, mas se sentir de outro, ter uma expressão distinta do seu corpo, de como as pessoas te identificam, isso cria um sofrimento pessoal, restrições para a vida, é por isso que eu vejo como um problema de saúde. Eu acho que se as pessoas enxergassem dessa forma, como uma questão de natureza mais psicológica, acho que esse preconceito iria embora, sabe?” Para corroborar sua opinião, Gabriel relembra, ainda, a definição de transtorno psiquiátrico ou transtorno mental: “é uma condição emocional, cognitiva ou comportamental que traz sofrimento pessoal e, ou restrições para o desenvolvimento, para a qualidade de vida. E
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se você olhar pra situação da disforia de gênero, é isso que acontece mesmo. Ha um sofrimento pessoal grande, bastante grande e há uma série de restrições pra vida desse indivíduo. Então, por causa disso, eu acho que é um problema de saúde. Eu vejo assim, eu me considero como uma pessoa que tem um problema de saúde. O fato de eu ter nascido com o aparelho reprodutor feminino e com uma identidade psíquica masculina, eu considero esse desencontro como um problema de saúde”. Começou a transição em dezembro de 2013, fazendo uso do hormônio predominantemente masculino, a testosterona. No início, eram doses mais baixas, ou mais cuidadosas, como ele mesmo disse. E desde julho do ano passado, ele está tomando doses mais altas, “mais virilizantes”. Percebeu que era trans quando ainda era criança, e se lembra, até hoje, do dia, do momento, em que descobriu que as pessoas o viam como menina. Até então, ele achava que era um menino e que todas as pessoas a seu redor o enxergavam dessa maneira. É claro que, na infância, ele não sabia que essa forma como ele se sentia tinha um nome.
“O que eu sentia é que eu era um menino, eu me sentia um menino no corpo de uma menina. Como se eu tivesse realmente no corpo errado, sendo identificado como alguém que não sentia ser”. Só quando ele foi fazer residência em Psiquiatria é que ele foi
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entender que pessoas que possuem essa “identidade de gênero cruzada” recebem o nome de transgênero. Por volta dos onze, doze anos de idade, Gabriel teve um quadro depressivo. Foi na época que seus seios começaram a crescer e que passou a ser vítima de bullying na escola. Até então, ele passava por um menino. Era colocado na fila dos meninos nas atividades escolares, chegou a ser advertido quando tentava utilizar o banheiro feminino. Precisava sempre se explicar. Nesse período, para evitar que o bullying persistisse, ele se viu forçado a trabalhar um pouco sua feminilidade. Começou a observar o jeito que sua mãe, as amigas delas e tias falavam, gesticulavam, sentavam, andavam e passou a imitá-las.
“Eu me sentia uma espécie de ator, um pequeno ator tentando imitar. O que, no fim, acabou sendo até interessante porque acho que conferiu uma certa elegância a minha personalidade, né” Ele gargalhou bastante, acredito que por ter a certeza de que é, de fato, um cara extremamente elegante. Alguns aspectos que, como ele deixa claro, não quer perder. Mas foram 48 anos tentando se acomodar, se adaptar, se conformar. Um problema de que ele muito se recorda era na questão das roupas. Toda vez que entrava em uma loja, procurava comprar uma roupa feminina, mas que tivesse um caimento mais masculino. “E a vida inteira foi assim, então as pessoas sempre olharam para mim e
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viram, na expressão da minha personalidade, uma manifestação mais masculina”. Gabriel, durante todo esse tempo, vivia e era visto como uma mulher homossexual com um jeito mais masculino. “Esse papel não se adequa ao transgênero masculino, sabe? O caso da mulher homossexual, ela se sente bem com seu corpo, ela é mulher, ela gosta de ser, ela se sente confortável, se sente feliz com seu corpo. Na intimidade sexual, ela oferece seu corpo, desfruta do prazer que a sua companheira tem, na exploração do corpo mesmo. E no caso do transgênero isso não acontece”. Gabriel se relacionou com algumas mulheres homossexuais. Namorou uma por quatro anos, chegou a ser casado por doze, e ao se relacionar com elas, intimamente, não conseguia desfrutar daquelas relações, nem de sua própria sexualidade.
“O que elas buscavam em mim era exatamente aquilo que me constrangia, que me deixava sem graça”. Isso, Gabriel reforça, era bastante complicado. Hoje, Gabriel se sente mais confortável consigo mesmo e com as outras pessoas. O maior ganho é ter essa possibilidade de se expressar mais livremente, poder vestir as roupas que estiverem de acordo com a forma como ele se sente, ser reconhecido na rua da forma que quer ser reconhecido. “Isso realmente aumenta muito o conforto, aí dá vontade de viver nesse mundo, vamos dizer assim”, ele sorri de uma ponta a outra.
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Gabriel faz acompanhamento endocrinológico no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Fez a cirurgia de retirada das mamas e vai fazer a histerectomia, a primeira etapa para a cirurgia de transgenitalização. Agora, Gabriel se vê “às voltas com questões” sobre a funcionalidade da cirurgia. “Será se essa cirurgia vai ficar boa? Será que eu vou ter mesmo um pênis que permita um relacionamento com uma mulher heterossexual?”, ele desabafa rindo, não tanto de constrangimento, mas pela felicidade de poder externalizar questões que, antes, lhe eram bem distantes. “Eu estou descobrindo agora, na minha terapia, que essa é uma questão muito masculina mesmo, essa questão do tamanho, se vai funcionar bem”. E ele continua contando e rindo ainda mais: “engraçado que eu sempre critiquei, junto com amigas, que quem se preocupa com tamanho de pênis é homem, que mulher não se preocupa. E eu estou descobrindo agora que é verdade, né. Não que eu tenha vontade de ter um pênis grande, não é isso, mas eu gostaria de ter um pênis que funcionasse para uma relação normal, heterossexual. Então é um pouco de insegurança [...] eu gostaria muito de poder me relacionar normalmente assim”. Depois do início da transição, Gabriel acabou se apaixonando e se envolvendo com uma colega, uma professora do curso de Medicina. Os dois ficaram juntos algumas vezes, mas se afastaram por uma dificuldade que ela tem de entabular com um homem transgênero que não “concluiu seu tratamento completamente”. “A gente está em um momento assim, mais amigos mesmo do que ficantes”, ele ri da própria
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palavra que demora um a escolher. “Exatamente em respeito a essa situação de certa confusão, de dúvidas e inseguranças dela”. Gabriel conta que essa relação foi completamente diferente para ele.
“É uma vivência muito mais confortável e prazerosa, mas por que? Porque pela primeira vez eu estou sendo visto como homem por uma mulher, pela primeira vez eu me senti atraente como homem para uma mulher”. Mas ele também não pode e nem se deixa esquecer que está tomando testosterona em níveis masculinos, o que faz com que sua libido esteja muito maior do que quando não estava usando. “Apesar da insegurança pela falta do pênis, o que eu noto nitidamente, é que, agora, o relacionamento é mais sintônico”. Quando ficou muito claro para Gabriel que ele era transgênero, procurou um colega psiquiatra, especializado na área de sexualidade humana, relatou toda sua história e o diagnóstico foi feito de maneira bem categórica. “Ele me disse que não tinha dúvidas, que era uma história bem típica, e me levou à seguinte pergunta ‘eu sou um transgênero, e existe uma proposta de tratamento para trazer mais conforto, bemestar, por que não fazer esse tratamento?’. E a resposta que me vinha à cabeça era assim ‘bom, se eu não me tratar é por medo, se eu não fizer a transição, é por puro medo’. No meu coração, eu tinha essa resposta muito claramente”.
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Medo de não ser aceito, medo de ser rejeitado socialmente, medo de prejuízos profissionais, medo de ser julgado, medo da reação da família, dos colegas, dos amigos, dos alunos. Mas ele pensou até concluir que seria “muito injusto ficar refém do medo” e não se desse a “oportunidade de fazer a transição”. Primeiro, ele conversou com a mãe, os irmãos, tios e as pessoas que lhe são mais importantes, sobre o diagnóstico e a resolução em fazer a transição. E ele diz sem sequer titubear: “foi a melhor coisa que eu fiz”. Ele não se lembra de ter a mesma liberdade hoje desde que era criança, de sentar em um lugar sem ter que ficar regulando seus gestos, a forma como fala, anda, senta, ri. Além da liberdade de expressão, “outro ganho fundamental foi ter falado para as pessoas que eu amo e que me amam que eu sou transgênero”. Gabriel achava que as pessoas não iriam aceitar, muito menos compreender. Ele brinca que precisou dizer “olha, quando eu saí do armário, eu saí do armário errado, então é agora que eu vou sair mesmo”.
“Isso, para mim, foi muito curativo, porque bonito ou feio, alegre ou triste, simpático ou antipático, esquisito ou não, essa é a minha realidade, essa é a minha verdade, essa é a minha circunstância de vida, essa é a minha contingência de vida. E é muito bom você poder falar quem você realmente é e se sentir amado a partir dessa revelação. Quer dizer, na verdade, o amor, se a
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gente pensar um pouco, é um acontecimento metapsíquico, metafísico, entre duas pessoas que se encontram e se revelam. Como eu não tinha coragem de me revelar para as pessoas, a minha entrega sempre foi parcial, porque eu não contava exatamente quem eu era [...] Ao falar, as pessoas queridas e importantes pra mim se colocaram ao meu lado e ainda mais próximas. Hoje, posso dizer que a minha mãe é mais próxima de mim do que antes, meus irmãos também. Na verdade, acho que eu fiquei mais próximo deles. Então hoje eu posso dizer que realmente me sinto amado exatamente como a pessoa que sou. E isso pra mim foi muito curativo e já valeu. Se me dissessem ‘por problemas de saúde, você vai ter que parar aqui, não vai poder continuar seu tratamento’, eu diria ‘já valeu, já foi bom’, sabe?”. Gabriel teve muitos medos, mas quando percebeu a família ao seu lado, teve muito mais coragem, muito mais força para seguir com o tratamento. Antes de comunicar à sua família, manteve uma série de frases prediletas em mente, que compartilhou comigo. Primeiro, uma bem popular: “vai, e se tiver medo, vai com medo mesmo”, depois disse que se lembrou muito de uma frase que Jesus repete trezentas e sessenta e cinco vezes no Novo Testamento: “não temais”. “Outra frase que me toca muito é ‘a verdade vos libertará’ e uma outra também importante para mim é aquela que diz assim ‘a verdade não se impõe de outro modo se não pela força da própria vontade’. Então, esse ideal de viver minha vida a partir da verdade de quem eu sou, me pareceu e parece um ideal fundamental para a construção de uma vida feliz, uma vida que vale a pena ser vivida”, desabafou, relembrando como as
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questões existencialistas se fizeram presentes na hora de tomar uma decisão que mudaria sua vida definitivamente. Para aliviar, contou, aos risos, de uma secretária que teve em São Paulo, de quem se lembrava muito durante o processo de decisão e o início do tratamento, que dizia “escândalo só dura quinze dias, depois passa, depois já tem outro ponto na pauta”. Quando eu questionei se Gabriel achava importante se apresentar, se identificar enquanto homem trans, ele foi direto: “o que me parece mais normal e mais saudável é eu poder me identificar como aquilo que eu me sinto, né, eu sou um homem”. Enquanto ainda precisar explicar o nome feminino em seus documentos, vai continuar se apresentando como um homem transgênero em transição. Mas depois que eles estiverem com o nome social, não vê motivo para ficar repetindo “olha, sou um homem trans”. Não vê motivo para isso. Mas, como ele mesmo disse, não dá para sepultar um passado, você conhece pessoas, faz novos amigos, onde normalmente contamos da infância, da adolescência, dos relacionamentos.
“Não tenho a intenção de passar uma borracha no meu passado e não falar das coisas que eu vivi, até porque eu tenho muito orgulho da minha história, não tenho vergonha. Não tenho vontade nenhuma de inventar que sempre fui menino, que eu fui um garoto menino, depois fui um menino adolescente, um rapazinho”.
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Quando contei para ele da manchete “Keanu Reeves namora atriz transexual” e pedi para que me falasse sua opinião sobre matérias noticiosas que ignoram toda a humanidade de indivíduos trans e as limitam a suas identidades de gênero, Gabriel respondeu imediatamente que, para ele, são materiais que reforçam estigmas, preconceitos. “É como se dissesse assim, uma mulher trans nunca será uma mulher, né, ela é uma mulher trans”, ele aumentou o tom de voz na hora de falar “trans” para demonstrar o peso, o juízo de valor imbuído na matéria, e prosseguiu, “quando, na verdade, se você perguntar o que faz uma pessoa ser uma mulher ou um homem, o que é ser um homem? O que é ser uma mulher? O que faz de você uma mulher, são seus cromossomos, é o seu aparelho reprodutor, são seus caracteres sexuais secundários, é a sua orientação sexual? O quê que faz de você uma mulher? Essa é uma questão importante. Se você pega uma mulher trans, que completou seu tratamento, ela tem seios, tem vagina, tem um corpo feminino, uma cabeça feminina, o quê que a distancia, a diferencia, de uma mulher que nasceu com um corpo feminino, né? É uma pergunta...”. Perguntei o que ele pensava sobre a frase “Eu não sou o meu corpo” e Gabriel compartilhou o que veio a sua cabeça e que, para mim, completa a lacuna, o incômodo, que o título do livro pretendia causar:
“eu sou mais do que o meu corpo [...] o que eu sou está para além do meu corpo”. Despedi-me de Gabriel depois de quase duas horas, quando
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finalizou nossa entrevista deixando muito claro que está muito feliz por estar nesse caminho tão esperado e por me deixar saber que, daqui a pouco, quando ele completar toda a transição, ele achar que, finalmente, vai poder se “sentir plenamente” ele.
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DANIELA Encontrei Daniela Auriema às 16 horas, do dia 17 de outubro de 2015, no Parque Ecológico de Águas Claras, em Brasília. Era um dia ensolarado e as áreas pavimentadas do parque recebiam um grande número de participantes de um evento de corrida. A entrevista com Daniela tinha sido combinada pelo Facebook, o que facilitou o reconhecimento. Estava me esperando na área sombreada de um quiosque roxo, e assim que me viu, prontamente se levantou para que eu pudesse localizá-la. Muito simpática, me perguntou se preferia que sentássemos em uma mesa mais isolada, e mudamos de lugar. Daniela tem 33 anos, é natural de São José do Rio Preto, município de São Paulo. Formada em Engenharia da Computação, trabalha na área de Tecnologia há sete anos. É funcionária concursada de um banco desde 2007, onde trabalha como analista de sistemas. Disse-me ser leonina, embora não seja muito fã de signos. Fez um curso de fotografia e adora fotografar, fato exposto ao final da conversa, quando me ajudou a tirar um retrato dela da maneira mais correta. Um pouco tímida, Daniela foi me contando sua história gradualmente, às vezes interrompida pelo sol e pelo barulho das crianças no parquinho próximo, que nos fizeram mudar de lugar algumas vezes ao longo da conversa. Sempre gostou da área de tecnologia. Quando criança, gostava muito de jogar videogames, além de ter tido grande influência de seu avô, que era técnico de eletrônica e estava sempre às voltas com coisas
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do tipo, o que aumentou muito seu interesse e curiosidade pela área. Na época que escolheu o curso, ainda não tinha dado início à transição, mas sempre soube que era um predominantemente do gênero masculino. Sua turma era composta majoritariamente por homens. Na época, as cinco mulheres da turma tentaram trabalhar na área industrial, fortemente presente na região onde nascera. Com várias usinas de açúcar e álcool em Rio Preto, foram alvo de muito preconceito:
“o que falaram para elas foi ‘a gente não contrata mulher porque o ambiente industrial é um ambiente muito pesado’”. Nesse período, Daniela já tinha a intenção de, em futuro próximo, iniciar o processo de transição e, assustada com a rejeição das colegas, decidiu procurar áreas que não estivessem voltadas para a indústria, mas para área de programação, software, tecnologia. “Acho que eu poderia ser tão competente atuando com Controlador Lógico Programável (CLP) quanto eu atuo com Linguagem Comum Orientada para os Negócios (Cobol) atualmente. Mas, por ser um ramo mais machista e mais preconceituoso, acabei indo mais para a área de software”. Ao longo de sua vida, Daniela fez diversas escolhas profissionais e pessoais pensando em formas de poder viver livremente e, ao mesmo tempo, poder se poupar da discriminação que ela sabia existir. Daniela me disse que São José do Rio Preto é uma cidade que tem
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uma peculiaridade, “que a primeira cirurgia de mudança de sexo foi feita lá”, no Hospital de Base, pelos doutores Carlos Cury e Jalma Jurado. Esclareço, não consegui verificar sobre essa cirurgia especificamente. Mas ambos os médicos são especialistas em cirurgia de redesignação sexual e pioneiros no procedimento no Brasil, e atuavam na região do estado de São Paulo. Então creio que tenha sido a primeira cirurgia devidamente permitida e assegurada legalmente no país. Mas não é isso que realmente importa, o que ela quis trazer com isso é que, na época, em meados dos anos noventa, Daniela relembra que, tinha seus doze, treze anos e não tinha muito contato com travestis e transexuais, já que a internet também não era muito difundida e o assunto da transexualidade não costumava estar na pauta do dia. Mas quando aconteceu essa cirurgia ela começou a ouvir mais sobre “esses casos”. Inclusive, a Guta Silveira, que foi a paciente, e a atriz Roberta Close começaram a aparecer nos jornais.
“Aí que eu comecei a ter um pouco mais de noção [...] então eu não sabia exatamente o que era, mas eu sempre soube que eu era diferente”. Desde a segunda, terceira série, por volta dos sete, oito anos, Daniela já se perguntava por que algumas coisas eram “de meninos” e outras “de meninas” e especialmente por quê “as meninas podem ter um estojo cor de rosa, os cadernos bonitos e eu não?”. Daniela diz não ter tido muito contato com o universo feminino, já
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que foi criada junto com um irmão. Mas, sempre que podia e durante sua infância, usava as roupas e sapatos de sua mãe. “Mas como não tinha uma referência sobre o que estava acontecendo, acaba que não sabia o que estava se passando”. Isso quando tinha por volta de oito, nove anos e foi perceber que não podia ter essas coisas porque era lida como um menino, mesmo que não se sentisse assim. Daniela tinha absoluta certeza de que sua família nunca iria aceitar. Hoje, olhando para trás, acha que, se no período em que era adolescente, tivesse o mesmo conhecimento que é possível acessar hoje sobre hormônios e antiandrógenos, talvez tivesse usado alguma coisa. E ri, “por exemplo, a voz engrossa na puberdade, uma série de coisas que não se tem mais como evitar”. Mesmo sem ter transicionado já ali, a adolescência foi um momento em que ela começou a manifestar mais abertamente seus desejos, pelo menos para si mesma e a planejar a transição para o futuro. Chegou a ter o cabelo comprido e aos dezesseis, dezessete anos, ao começar um curso técnico de informática, conheceu um grupo de meninos homossexuais que a assustaram um pouco, “eles não tinham uma história de vida feliz, foram expulsos de casa e eu achava que se me assumisse nessa fase, não ia ter uma boa aceitação”. Por conta da família, sempre muito católica e mais conservadora, Daniela acabou optando por prosseguir nos estudos, se formar na área de tecnologia e tentar encontrar uma forma de ir para a capital. “No começo, até tinha a intenção de ficar em Rio Preto, mas o fato de as mulheres já não serem muito aceitas no interior por preconceito,
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imagine ainda uma mulher transexual”. Em 2007, Daniela passou em um concurso em São Paulo. Em 2008 já tinha se mudado para lá e ao se instalar, se assumiu e iniciou a transição. “Então foi um negócio assim, meio que planejado. Eu preferi adiar um pouco essa mudança que, na minha opinião foi algo muito positivo”, ela ri de felicidade, “e fiz uma mudança mais tardia”. Quando se mudou, seus pais estavam em processo de divórcio, e ao decidir contar para sua mãe, eles já estavam separados. Com o pai, mais conservador, tem pouco contato. Na realidade, eles não se vêem há anos e nunca contou para ele da transexualidade, não sabe se ele tem conhecimento disso, se aceita, se rejeita e parece não estar muito preocupada com isso. “Ele sempre teve uma relação difícil com tudo mundo assim, com meu irmão, com minha mãe, comigo”. Para a mãe, ela falou, primeiro, que era homossexual, e só depois se assumiu como trans. No começo, foi um pouco tenso, como ela mesma define. A mãe ficou “um pouco deprimida, chorou, falou que não sabia onde tinha errado”. Como Daniela ajudava a mãe e a avó financeiramente, chegou a dizer que, caso se sentissem constrangidas, não voltaria a Rio Preto, sem, claro, haver interrupção do auxílio. Temia que comentários desagradáveis “‘seu filho virou mulher porque você não deu educação’, que é o que geralmente muitas pessoas falam, e minha mãe frequentava muito a igreja católica, que não é muito aberta a esse tipo de coisa. E aí ela falou ‘não, você pode vir e se alguém falar alguma coisa, eu vou enfrentar a situação’”. As duas acabaram virando grandes amigas depois disso. O irmão de Daniela, no começo, não
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soube muito como lidar, mas hoje toda a família tem uma boa relação. “No começo só foi um pouco turbulento”.
“Mesmo trabalhando em um órgão público passei por alguns problemas” Utilizar livremente o banheiro feminino e ter o nome social respeitado foram duas das questões pelas quais ela conta que teve que batalhar. No período, procurou ajuda no Centro de Apoio à Diversidade de São Paulo e conversou com um advogado que foi até a empresa para expor casos de outras instituições que já estabeleciam normas de prevenção de assédio moral e medidas mais inclusivas. “Depois dessa conversa eles chegaram à conclusão de que seria melhor apoiar, né. Eu ainda não tinha mudado o nome oficialmente, mas a empresa forneceu todas as credenciais com o nome de Daniela, crachá, e-mail, trocou todos os meus acessos com ajuda desse advogado. Aí a convivência ficou um pouco mais tranquila. Porque é desconfortável, como eu trabalho com tecnologia, os programas geralmente levam o meu nome e, no trabalho, criava-se uma situação extremamente desagradável”. Com isso resolvido, ela pôde passar por um período mais tranquilo. No final de 2009, a empresa foi comprada por uma outra, com sede em Brasília. “Fizeram muita pressão nos funcionários pra que a gente viesse, aí acabei optando por vir”, pois as chances de receber uma promoção ou de se destacar profissionalmente eram, afinal, maiores na
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sede do que em alguma filial. Apesar de não estar em seus planos, mudou-se para Brasília em 2010, “foi um choque cultural, a cidade é muito diferente”. Aqui, Daniela relata ter sofrido muito preconceito no início. Não chegou a sofrer “agressão direta”, mas aquilo que ela gosta de chamar de “preconceito velado”.
“As pessoas não querem trabalhar com você, fazem piadas pelas costas, você é motivo de chacota em diversas situações”, desabafa. “Por trabalhar em uma empresa que é do Governo Federal, você acha que isso nunca vai acontecer, mas infelizmente, acontece em todos os setores”. Batalhou por cerca de dois anos com a nova empresa para que dispensassem o nome registro e utilizassem seu nome social, e só conseguiu porque, em 2012, o processo judiciário de mudança de nome foi concluído e ela se tornou, para fins de registro legais, Daniela.
“Foi meio que um regresso de algumas coisas [...] Passei por muitas situações desagradáveis, uma delas é ter sido promovida e sair uma lista com meu nome de registro”, ela ri pelo desconcerto da situação. Por sorte, como ela diz, as pessoas que trabalhavam diretamente
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com ela sempre a chamaram de Daniela e respeitaram isso. “Mas as pessoas que não estão diretamente ligadas acabam fazendo piada com essas situações, né”. Daniela fez a cirurgia em 2010, em Jundiaí, quando já tinha dado entrada no processo para alteração do nome, em São Paulo, que não avançava. Quando anexou o laudo da cirurgia, transcorreu um ano até a saída da sentença favorável. Foi quando enfrentou um problema com o cartório de sua cidade, que estava se recusando a emitir a certidão e enrolou durante seis meses, até que a juíza teve que intimar o escrivão que, caso não cumprisse a ordem judicial, teria que responder judicialmente. Para Daniela, a principal importância do nome está no fato de que ele pode evitar diversas situações constrangedoras. “Sempre que alguém começava a demonstrar alguma coisa, que iria questionar se o documento era verdadeiro, falso, eu já preferia falar ‘sou travesti, tem algum problema?’, preferia intimidar as pessoas do que ser intimidada”, ela conta rindo. “Como tenho a voz um pouco mais grossa, já engrossava mais a voz para não deixar dúvidas de que eu era travesti [...] Como é um termo mais conhecido, preferia falar na lata. Para não passar por situações constrangedoras, apesar de que já é constrangedor você chegar em um lugar e ter que falar isso, se eu fosse qualquer outra pessoa não precisaria estar falando da minha intimidade. Mas acho que é um modo de sofrer menos”. Novamente, o importante é estar em situações onde você possa se sentir confortável e “o nome traz um conforto muito grande para a pessoa”.
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Quando eu questionei de que forma ela se identificava e a forma como ela via cada um dos termos, Daniela foi bem categórica. Para ela, tanto travestis, quanto transexuais, cross dressers e drag queens são “o designado queer”, embora não todos sejam transgêneros. E travestis e transexuais têm “ideais diferentes”.
“A travesti não tem problema com o órgão genital, então quer passar por uma transformação sem mexer nele. Além disso, consegue usá-lo sem se sentir mal. Algumas pessoas transexuais não querem operar por medo, ou uma série de outras coisas, mas mesmo assim elas não se sentem bem com o genital, não sentem vontade em utilizá-lo. Quando a pessoa sente prazer com o órgão dela do jeito que ela veio ao mundo e quer fazer toda a transformação, menos essa, ela é travesti”. Quando estava em transição e morava em São Paulo, Daniela preferia se chamar de travesti para sofrer menos preconceito. Ela conta que lá, o termo está mais ligado à prostituição e em cada ponto de prostituição lá, existe uma cafetina, “que em geral são pessoas, digamos assim, barra pesada”, ela ri. E se identificar enquanto travesti era, praticamente, dizer que se mexessem com ela, estariam mexendo com uma pessoa protegida.
“O medo que o termo travesti causava em algumas pessoas, para mim, sempre funcionou, nunca fui agredida”.
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“Já aconteceu de gente na rua vir conversar, chamar para ir em festa, para fazer programa, que na festa ia estar cheia de gente rica, mas nunca me envolvi, nunca fiz programa. Geralmente, a pessoa que faz programa, se ela for transexual, ela não sobrevive no meio, porque a maioria dos clientes procuram travesti [...]. Uma transexual, que é uma pessoa que não gosta e não usa [do órgão genital], digamos que não faz sucesso na rua. Porque o atrativo é realmente usá-lo”. Para Daniela, seguindo essas caracterizações, existem pessoas que, para ela, são travestis, mas que não querem se assumir como tais porque “transexual é algo mais limpo”, enquanto travesti carrega os estigmas e preconceitos que fazem as pessoas serem “enquadradas no ramo da prostituição e outras coisas”. Para ela, acaba se tornando um processo de autoidentificação que pode resultar em um problema geral e muito mais complexo, a partir do momento em que poderiam existir pessoas transexuais – Daniela leva em conta que dentro da categoria transgênero, estariam as travestis e os transexuais – que não sentissem a necessidade de fazer a transgenitalização, podendo abrir espaço para a depreciação desse processo cirúrgico, “ela é transexual, mas não quer operar, por que você quer operar?”, correndo o risco de, no futuro, cessar ou interromper a obrigatoriedade do Estado em arcar com esse tipo de cirurgia. “Transexuais que atuam desse lado, acabam corroborando com a ideia de que a cirurgia não é necessária. Eu acho que a luta das categorias é diferente. Ninguém quer ser discriminado, apanhar na rua, não conseguir um emprego comum. Em parte da luta, as pessoas tinham
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que se unir, mas acabam se dividindo nessas questões”. Os assuntos pertinentes ao acompanhamento médico são uma problemática na qual Daniela bate muito a tecla. “Geralmente, quando você começa [a transição] e não conhece pessoas que são do meio [médico], acaba sofrendo discriminação até da própria comunidade médica. Porque alguns não aceitam esse tipo de comportamento, de modificação corporal que a gente faz”. Ela relembra que os primeiros hormônios que utilizados foram por iniciativa própria, valendo-se de dicas que pegava de pessoas que conhecia. Ao iniciar o tratamento, tentou, primeiro, utilizar o convênio médico do trabalho para agendar com especialistas. Relembrando a primeira tentativa, com uma endocrinologista, chega a rir: “disse que não entendia esse tipo de caso, porque isso é errado”. Daniela conta que, mesmo quando tem convênio, a maior parte das pessoas trans faz diversas tentativas até encontrar um profissional que “aceite fazer o tratamento”. Em Brasília, encontrou um ginecologista que atende outra paciente trans, e vai sempre nele. “Aqui em Brasília, depois que eu fiz a mudança de nome, eu achei que acabou sendo mais fácil para procurar, e porque eu já sou operada também e, por isso os médicos não têm muita opção, né, é um negócio que não vai voltar atrás. Se ele falar que não pode, já foi”, ela diz rindo. Mas talvez esse tenha sido o único ponto mais fácil, ou positivo, em Brasília, Daniela é bem direta quando fala sobre a cidade, “Aqui, na verdade, tudo foi mais difícil para mim. Ainda não me adaptei e, na
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verdade, pretendo ir embora em breve”. No início da transição, precisou lidar com a decepção em relação a uns “supostos amigos” que, quando viram que estava saindo às ruas consoante com sua identidade de gênero, pararam de sair com ela, “porque não queriam ser vistos na rua andando com uma travesti. Você não pode ser amigo de um transgênero, ou você está pegando, ou você é veado, ou você quer virar um”. “A minha briga atualmente é com esse tipo de preconceito, porque ele não é tão direto, mas mesmo assim machuca bastante. Principalmente no trabalho, no começo, por exemplo, algumas mulheres, digamos assim, o clube da Luluzinha, saíam de vez em quando para tomar cerveja, se encontrar, e não me convidavam porque não me consideravam mulher. Então é um tipo de preconceito que dói, né, apesar de não ser uma agressão física é algo que dói, você saber que não é bem vinda naquele grupo por você ser transexual”. Nesse momento, Daniela me pareceu bem triste. Em São Paulo, por meio do Orkut, ela conheceu um grupo de pessoas trans que começou a se reunir, não como um grupo de apoio, terapia, mas para sair juntos, ir ao cinema, bares, boliche, baladas, fazer churrascos,
“atividades normais onde as pessoas não convidariam a gente” Quando Daniela foi ao Hospital Universitário de Brasília, participar de uma das reuniões de pessoas trans que acontece às terças-feiras, foi
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objetivando fazer contates e amizades, contudo teve impressão de que as pessoas daqui são muito fechadas. “Tentei mandar mensagem para algumas pessoas que conheci lá para tentar sair, tomar um chopp, mas nunca tive uma resposta. Umas nunca podiam, aí teve um dia que fui numa boate, não sei se era a Blue Space ou a Oficina e encontrei uma das pessoas lá. E fiquei pensando ‘sempre chamo para sair comigo e ela nunca pode, e aí quando ela vai, também não me convida’, dá a impressão de que a pessoa não quer te ver. Acabei ficando um bom tempo sozinha, com poucos amigos aqui”. Em São Paulo, as pessoas lhe parecem mais receptivas. Era comum, por exemplo, conhecer nas redes sociais pessoas com gostos em comum e combinar de irem juntos para lugares.
“Aqui, se você for num show as pessoas não se olham, não conversam e se puderem, ainda fazem de tudo para você não ir no próximo, para você não entrar no grupo”. “O caso mais dramático” pelo qual passou foi assim que começou a transição, na capital paulista. Daniela, que toca teclado desde cedo, quando morava em São José do Rio Preto tocava na igreja, em casamentos. Ao se mudar para São Paulo, quis continuar tocando, e procurou espaço em festas, bares, até que encontrou um grupo, pela internet, que tocaria em uma festa de casamento. O grupo não quis ensaiar antes do evento e só lhe passou a lista de músicas. “Eu já tinha uma aparência bem feminina na época, porque eu já usava hormônios,
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e aí o comentário do vocalista depois da festa foi de que o som tinha ficado muito legal, mas que não dava para tocar com um traveco. Então assim, não fui agredida, fui bem tratada na festa por todo mundo, mas o vocalista não se sentia bem por estar tocando com um traveco. Esse tipo de preconceito que dói bastante, você é excluída de alguns grupos por ser transexual”. Ao contrário de várias de suas amigas, Daniela nunca sofreu violência na rua. “Eu acho que eu não sofro muito nesse sentido por ter uma aparência mais feminina, então acho que eu não sofro tanta violência na rua porque as pessoas que me olham de longe, de relance, acabam me identificando como uma mulher”. Inclusive, ela costuma ter que encarar algumas cantadas na rua, ser chamada “gostosa”, “morena”, coisa assim, e acha isso bom, porque quando é identificada como travesti, “o tipo de coisas que as pessoas te falam é muito desagradável”. “Quando eu converso com as pessoas, por ter a voz um pouco mais grave, as pessoas acabam desconfiando ou percebendo que sou transexual [...] Quando um homem te vê e te identifica como mulher, ele chega carinhoso, tentando te paquerar. Quando você fala que é transexual, a cantada já muda ‘ah, você é muito gostosa, eu te chuparia’ ou ‘você quer me chupar?’, o nível da cantada muda, despenca [...] Conversando, falam sobre a voz grave, acabam perguntando se sou travesti e a partir do momento que eu falo que eu sou, porque eu prefiro me assumir [...] por mais que eu consiga enrolar a pessoa, tipo, falar que tenho a voz grave porque tenho problema na laringe, eu tenho
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medo porque eu não sei as reações das pessoas, eu tenho medo de ser agredida posteriormente”.
“Eu tenho uma situação um pouco menos comum, eu gosto de mulher, mas eu não me identifico como homem”, ela conta, rindo um pouco, sem graça. Até os vinte, vinte e dois anos, isso causava uma certa confusão, porque, até então, entendia que mulheres trans e travestis só se relacionavam com homens. E só depois, ao ler o livro Transexuais, do psicólogo Gerald Ramsey, que Daniela entendeu que sua identidade de gênero não tinha nada a ver com sua orientação sexual.
“Passei a ter uma visão diferente do que é ser transexual, que eu sou, mas que ao mesmo tempo eu tenho uma orientação sexual, digamos, lésbica”, ela revela desconcertada. Para ela, isso acaba sendo um problema, porque além do preconceito que sofre por ser transexual, isso a coloca em uma situação mais complicada. “Quando as pessoas descobriram que eu ficava com mulher, digamos que foi outro baque, alguns próprios amigos falaram ‘ah, por que você faz isso? É só para chamar atenção?’, eu falo ‘não, é porque quero ser eu, não vou ficar com pessoas que eu não gosto só para sociedade achar que é normal’”. Daniela conta que até chegou a ficar com homens depois que se assumiu, mas a conclusão foi bem
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clara “não gosto, não me sinto excitada, envolvida assim com homens”. “Já me interessei por mulheres que cheguei a ficar várias vezes e quando eu assumi que era transexual elas não quiseram mais nada e ainda disseram ‘ah, se você fosse mulher, eu ficaria com você’. E quanto mais você ficou com a pessoa, mais você sofre”, hoje, prefere já dizer objetivamente que é trans, para que a pessoa decida se tem interesse ou não. Para ela, mesmo com todo o preconceito, existe uma fetichização de grande parte da sociedade com essas pessoas:
“a pessoa quer ter um relacionamento com você, mas ao mesmo tempo ela não quer sair com você para a rua, ir ao shopping, ao mercado. Ela quer te ver só à noite, na sua casa, na casa dela, no motel. A pessoa diz que te aceita, mas no fundo ela não quer ser vista contigo”. “Eu gostaria de não ter que falar [que sou transexual]. Eu queria poder conhecer uma pessoa na balada e dizer ‘oi, eu sou a Daniela, se você gostou, vamos ficar juntas’, mas a experiência tem sido tão traumática, que hoje prefiro sair de casa falando que sou transexual porque aí quem tiver alguma coisa contra já se manifesta e não entra na minha vida”. Daniela é enfática quando diz que já sofreu muito preconceito ao longo de sua vida. Hoje, segue do jeito que se sente melhor, estando
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com pessoas que a respeitam por quem ela é. “A Daniela hoje é uma construção de tudo que eu passei até aqui. Se você me perguntar se hoje eu me sinto feliz, me sinto realizada com meu corpo [...] Estou feliz com a cirurgias que fiz, mas gostaria de fazer mais algumas modificações, e mesmo assim, ninguém garante que passando por todo esse processo o preconceito vai acabar, ele ainda vai existir por um longo tempo, né [...] Digamos que minha vida está evoluindo ainda. Hoje, já tem uma série de situações em que me sinto bem: fazer compras, ir ao mercado, pegar um ônibus, usar biquíni. Coisas que são normais para todo mundo e que para a gente é um problema. Dizem que quando uma coisa muda, demora pelo menos duas gerações para mudar. Como a transexualidade começou a ser vista a partir dos anos noventa e começou a ficar mais comum nos anos 2000. Talvez nos anos 2040 as pessoas já estejam mais acostumadas. [...] Me sinto bem do jeito que estou, mas ainda me sinto em transformação.
“Acho que a luta ainda não acabou”.
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ROXELLE Combinei de encontrar Roxelle Lamour de Oliveira-Sass no dia 4 de setembro de 2015, no Shopping Paulista, em São Paulo. Era um dia chuvoso e o número de acidentes no trânsito fizeram com que ela demorasse cerca de 3 horas para chegar onde marcamos. Quando combinamos a entrevista, pelo Facebook, ela me disse:
“na hora que você ver uma loira bonita, sou eu”. Não foi difícil encontrá-la, embora o shopping seja extremamente grande e eu estivesse um pouco perdida, consegui, de longe, localizála. Ficamos uns minutos procurando um lugar vazio para que nos sentássemos e pudéssemos conversar tranquilamente, mas como ela não conhecia bem o lugar, e eu menos ainda, acabamos nos sentando no McDonald’s. Aparentemente nervosa, Roxelle foi se acalmando ao longo da entrevista e ficando cada vez mais confortável com a conversa. Infelizmente, o barulho das pessoas que circulavam pelo shopping danificou algumas partes da gravação da entrevista, mas nada que viesse a prejudicar o texto. Roxelle nasceu em São Paulo, no bairro do Ipiranga, um dos mais antigos da cidade. Estudante de Radiologia, tinha acabado de ser contratada em uma empresa de pesquisa de mercado. Atualmente separada, foi casada duas vezes e tem um filho de 5 anos, que mora
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em Manaus. Como ela tinha se atrasado e iria se atrasar para a aula, tivemos que ser bem rápidas na entrevista. Roxelle sempre teve um conflito muito grande consigo mesma, em se aceitar. E só no dia 21 de setembro de 2013 – ela é bem certa quanto a data -, ela descobriu “quem realmente era”.
“Era uma coisa que me incomodava muito. Era um segredo e eu queria morrer com aquilo. Só eu e Deus sabíamos”. Roxelle abriu uma parte de sua história da qual não se orgulha e que, depois que nos despedimos, pediu para que eu retirasse. Depois de conversarmos mais um pouco, concordou com a importância de relatar sua história e demonstrar a necessidade humana em viver de acordo com quem se é.
“Eu tive muitos problemas com alcoolismo, cheguei a usar drogas também, para mascarar esse eu verdadeiro. Eu pintava uma imagem que eu era homem, mas no fundo eu sabia que não era”, desabafou. “Eu precisava assumir esse lado para ter minha vida no meu controle, porque eu vivia um dia de cada vez Ia deixando, sabe? Isso não era bom. Eu tinha sonhos e isso era necessário para minha sobrevivência. Porque eu cheguei ao ponto de querer me suicidar. Tentei, por 3 vezes, e foi nessa época que se manifestou”.
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Roxelle “meio que” não tem uma religião, mas tem uma fé em algo, um poder superior. Tanto que, nessa época, ela pediu ajuda para essa “coisa maior”. E no dia seguinte, disparou a estudar, pesquisar sobre transexualidade. “Foi aterrorizador”, ela conta. Ao mesmo tempo que sentia euforia por entender o que se passava, ficou assustada, “ria e chorava ao mesmo tempo. Falei ‘e agora, o que eu vou fazer?’”. Não teve dúvidas de que teria que seguir em frente, era uma mulher transexual e tinha convicção disso. “Tinha 39 anos na ocasião. Foi mais um dos vários casos tardios”. Ela percebeu que faltava um “elemento x” que era a solução para seus problemas, para uma série de coisas que estavam erradas em sua vida. “Era uma equação que eu não conseguia resolver. Eu vivia andando em círculos, não conseguia ter um foco”, relata. A partir de conversas e pesquisas, Roxelle conta que descobriu que isso é uma coisa comum na vida de várias pessoas trans. Quando finalmente se descobriu, Roxelle ainda estava casada e morava com a mãe de seu filho. Uma pessoa que, ela esclarece, amava e com a qual teve um relacionamento real. No entanto, Roxelle sabia que lhe faltava alguma coisa,
“que alguma coisa estava errada e eu não conseguia viver de uma maneira, comigo mesma”. Roxelle viveu anos de sua vida em conflito. Desde os 8 anos de idade, ela sabia e se sentia uma menina. Era 1982, “naquela época
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não tínhamos um pingo de informação, não tinha internet. Como uma criança de 8 anos iria buscar informações sobre transgêneros na biblioteca da escola? Não tinha como curar e nem como falar sobre isso porque eu não sabia o que era. Mas eu sentia desejos e me sentia uma menina, mas fui empurrando com a barriga, fui vivendo, né, tinha o papel de hominho da casa, era o único filho. Era eu, minha irmã, minha tia, várias tias, minha avó”. Durante um período, pensou que poderia ter a ver com a sexualidade, mas tinha absoluta certeza de que não era isso, que não era gay, mas sim heterossexual, e de que tinha uma outra questão a ser resolvida. Hoje, ela conta, com um sorriso tímido, que “antes gostava de mulher, hoje, eu gosto de homem”. Atualmente, ela faz parte do programa para transgêneros no Hospital das Clínicas e, com a ajuda de especialistas, está procurando respostas para algumas perguntas que ainda tem sobre si mesma. “Hoje eu sou tranquila, sou feliz, normal, mas aí que está, para falar disso [da transexualidade] para a família foi uma luta”. Morando em Manaus, Roxelle contou primeiro para a mãe de seu filho, que sempre a apoiou, sempre disse a ela para ir buscar aquilo que a fizesse bem. “Mesmo que ela não concordasse, ela sempre respeitou, sempre foi muito amiga minha”. Roxelle não nega, a ex demorou um pouco a entender, mas hoje ela aceita, as duas se falam e ela a ajudou muito em todo o processo. O filho mora com ela e faz um ano que Roxelle não o vê. Os dois se falam ao telefone, mas ele “tem uma personalidade muito forte, virginiano,
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né?”. Ela vai visita-lo no final do ano, “estou com muita saudade”. Como ele ainda é pequeno, Roxelle acha importante se considerar pai, “quero que ele tenha essa imagem”. A questão familiar não foi tranquila. Quando Roxelle voltou para São Paulo para morar com sua mãe, há cerca de oito meses atrás, a aceitação não foi fácil e nem imediata. Roxelle só tem uma irmã, então a mãe reagiu de maneira pouco receptiva, “eu roubei aquele filhinho dela, que ela dava as coisas, fazia tudo, então e agora? Entrou essa mulher?”. Sua mãe chegou a dizer que ela não poderia ficar na casa dela de jeito nenhum, mas Roxelle insistiu, e desabafou com ela. “Depois que ela viu, que eu olhei nos olhos dela e falei ‘olha, mãe’ e abri meu coração, ela falou ‘não, tudo bem’”.
“Era um filho meio fraco e agora estrou uma filha forte, né, de personalidade. Então isso deixou ela mais feliz, que eu comecei a retomar projetos, estudos” Hoje, a mãe a aceita e as duas moram juntas. Hoje, Roxelle conta feliz, que sua mãe até compra bijuterias e maquiagens quando ela precisa. Sua irmã e sua sobrinha lidaram tranquilamente com a transição que, inclusive, as deixou mais próximas. “Hoje somos mais amigas”. Roxelle fala que a “única luta” que está tendo agora é com seu filho, “mas tenho que ter muita calma ainda, né, fazer ele entender que o pai dele é um pai diferente”.
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Ela não fala muito sobre o pai, mas conta que ele ficou doente e foi vê-lo. “Falei ‘sou assim’. Meu pai sempre foi muito legal, nunca teve problema com isso”. O apoio familiar foi fundamental para que Roxelle seguisse firme e forte na transição.
“Parei de lutar contra uma coisa dentro de mim mesma, porque eu carregava esse conflito comigo e isso se dissipou”, ela explica. Roxelle saiu de Manaus e voltou para São Paulo porque sentiu a necessidade de procurar ajuda especializada. “Veja bem, lá no Amazonas eu tive consulta com psiquiatra, endócrino, mas eles não eram especialistas. O psiquiatra me encaminhou, me diagnosticou. Tenho, inclusive, o atestado, o documento, fiz alguns testes, mas tudo muito básico”. Ela reforça que, embora lá exista uma legislação muito boa, “perfeita, assim, de nome social e direitos. Nossa, eu era muito bem acolhida lá, mas no âmbito da saúde mesmo, da saúde mental, lá não tinha estrutura ainda”. Ela faz tratamento normal desde, mais ou menos, março de 2014. Começou, como a maioria das pessoas trans, fazendo por conta própria. “Fui corrigindo, perguntando dali, daqui”, como conheceu diversas meninas trans pelo Facebook, foi pegando dicas. Um endócrino chegou a passar uma dieta inicial, que ela está seguindo e dando uma “complementada com o que pesquisei”. Agora, ela está esperando para passar com o endocrinologista no Hospital das Clínicas para receber a
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dieta hormonal adequada às suas necessidades. No programa, ela já passou pela triagem e teve a primeira consulta com um psiquiatra. Foi em uma sala com outras pessoas transgêneros, ele a entrevistou lá mesmo e ela ficou “super surpresa”. “Acho que era bem para me desarmar mesmo, saber se eu não estava inventando história, vamos supor”, ela brinca. Ela foi “aprovada” para continuar o tratamento. Os passos seguintes, ela supõe, serão com um outro psiquiatra, psicólogos, grupos de terapia. Roxelle pensa muito em fazer a cirurgia de transgenitalização, “penso muito em fazer, para mim não teria problemas, em relação à minha sexualidade também” e alguns outros procedimentos. Antes da transição, ela trabalhou na Nokia, na Electrolux, na fábrica mesmo. E também chegou a ter pequeno negócio com a mãe de seu filho, que acabou não dando certo. Ela ficou um bom tempo desempregada, dedicando-se apenas aos estudos. Quando começou a transição, estava trabalhando no comitê do governador eleito de Amazonas, José Melo de Oliveira. No meio das eleições, ela já estava trabalhando lá e eles precisavam dela na equipe “E agora? Comecei a ir com presilha, com coisinhas assim, sabe, mudando a minha roupa, aí minhas mamas começaram a aparecer, não tinha como esconder, tive que usar sutiã, senão eu ficava ali, com mãos ao alto, não dava”, ela conta, rindo. Nesse período, ela conta que estava com uma aparência “meio andrógina, digamos assim”. Ela já estava fazendo tratamento a laser para retirada dos pelos que, segundo ela, é um problema sério, “é meu
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inferno astral, está sendo isso agora”, conta, rindo, “mas devagarzinho vou acertando”. Roxelle conta que sempre teve um corpo meio andrógino. Depois da transição, descobriu que é estrogênio dominante. Antes, fazia natação, atividades físicas, tudo para ganhar músculo, mas nunca conseguia; “Eu era toda”, ela coloca os ombros para trás e tensiona a expressão facial, “de fazer força para andar assim, fazer cara de mau, de bravo”, e começa a rir. Foi muito natural para ela desenvolver sua feminilidade. A cada dia que passava, ela se via mais na direção daquilo que sempre tinha sido, mas que vivia oculto.
“É como se eu tivesse fora do meu natural, eu estava fora do meu natural e fui voltando devagarzinho. Não copiei ninguém, não fiquei fazendo estudos, nem nada”. Roxelle não hesita em dizer que tudo em sua vida mudou desde o início da transição. Mas ela diz com muita felicidade, satisfação: “quem você está vendo hoje não é a mesma pessoa de antes, não é mesmo... meu jeito, minha personalidade, minha maneira de pensar, agir, de entender, mudou tudo”. Além das alterações hormonais, ela também sente uma grande diferença em sua espiritualidade, além do bem-estar mental. “Sou mais tranquila hoje, muito mais, sem dúvida alguma, muito mais de bem comigo, com a vida”, sorri, e brinca me dizendo que consegue identificar
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quando tem TPM, “crises assim, todo final de mês eu tenho, por mais incrível que pareça. Não sei se tem a ver com a lua, alguma coisa a ver com astrologia, eu acho que influencia muito nossos humores, das mulheres”, e completa imediatamente, “e nós não estamos fora disso também, a gente está sujeita a isso”.
“Por mais que eu me sinta mulher, não posso negar o fato de que sou uma trans, né, também não estou louca assim. Eu sei que, por mais que eu me sinta uma, tenho que encarar a realidade da minha condição, né”. Ela desabafa a respeito da forma como é lida pelas pessoas. Em Manaus, ela fazia trabalho voluntário, ajudava outras mulheres que tinham problemas com drogas e outras coisas. Lá, ela foi muito bem acolhida por mulheres cis, “em nenhum momento alguém virou e falou ‘você não pertence a gente, você não é’. Porque eu me trato com respeito, sou muito natural. Muitas, inclusive, falam ‘você é trans? Não acredito!’, eu fico ‘será que ela está falando isso para me deixar melhor? [...] Eu não faço alarde, sou muito tranquila, se alguém vai notar ou não, não sei, não me preocupo com isso”. Roxelle tinha muito medo no início da transição, mas nunca teve nenhum confronto ou conflito. Aprendeu a ter mais paciência e respeitar mais as opiniões alheias, por mais discordantes, ou “fanáticas radicais” que possam ser. “Não sei se é porque eu me imponho, assim, eu chego, ando, vou para os lugares com educação, naturalidade. Sempre sou
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muito ‘gentileza gera gentileza’”. Ela nunca teve nenhum problema do tipo. Exceto quando precisa se apresentar em alguma empresa, em algum órgão, porque “aí sim eles separam o joio do trigo, aí eles me segregam, já tive muitos problemas com isso. Estou brigando, estou na luta, dei entrada no processo de retificação do meu nome, não vejo a hora disso acontecer, porque eu me sinto muito desconfortável com isso”. Recentemente, acabou perdendo o cartão do banco, que continuava com o nome de registro, e precisou ir até um caixa da agência pedir uma outra via e resolver algumas pendências. “Quando mostrei meu RG, ele olhou e disse ‘mas sua conta não é essa, esse RG não é seu’, mas aí ele olhou a foto e entendeu. Então ainda bem que ele teve jogo de cintura”. Nunca passou por uma situação de preconceito ou discriminação explícita, “só se foi preconceito velado”. Ela relembra um dia em que estava no metrô e que uma mãe cochichou alguma coisa no ouvido da filha, as duas olharam para ela e balançaram a cabeça. “Eu supus que era comigo, mas o que eu posso fazer? Não ficou claro. Posso pegar para mim, ou não. Eu entendo assim, só vou deixar uma coisa dessas me atacar se eu permitir, entende?”. Em uma outra vez, estava andando com uma amiga, em Manaus, quando tinha acabado de iniciar a transição. Passaram dois carros com pessoas gritando “não sei o que, veado”. “Gozado, pode ter sido para mim, mas eu não percebi. Ela falou que isso acontecia sempre com ela e que tinha que ter paciência. Isso gera uma revolta tão grande...”. Roxelle não é militante, não se considera uma. Embora quisesse
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estar envolvida com o ativismo. No início da transição, ela queria “fazer acontecer”. Mas viu que existia muita “incoerência, divergência nesse meio”. “No momento, não estou psicologicamente e emocionalmente preparada para entrar nesse confronto. Estou precisando resolver outras questões, mas na hora certa, eu vou estar mais ativa nesse sentido”. Roxelle acredita que não exista uma “cultura de aceitação” que abranja as pessoas trans. As pessoas podem até estar sendo forçadas a aceitar, mas não existe uma mentalidade aberta que impeça os olhares e risadas discriminadores.
“A sociedade entende que aquela pessoa se tornou assim, não nasceu assim, aquela coisa de ‘aquela pessoa virou mulher’, não é por aí. Não entende que aquela pessoa tem uma história, que ela sempre foi aquilo, mas que, de repente, só descobriu depois”. A relação da mídia com a transexualidade é uma das coisas que mais a deixa indignada. Ela é enfática quando afirma não existir um veículo “comprometido com isso”. “Não coloca o nome social, pelo qual a pessoa quer ser chamada, sequer respeita isso e ainda coloca o nome de batismo”. No caso de Roxelle, “foi um nome que serviu para mim, meus pais me deram, gostei e tal, só que no momento não serve mais. Esse é o momento que interessa, o hoje. Com aquele nome eu não me identifico mais, porque aquele nome não era só um nome no papel, era um conjunto de comportamento, de hábitos que aquela pessoa tinha, que
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eu resolvi mudar para poder ser uma pessoa melhor. E eu procuro ser uma pessoa melhor a cada dia, essa é minha busca, minha meta”, ela explica, com muita paciência. Como ela mesma diz, está em um processo de redescoberta. As mudanças que tinham para fazer em sua personalidade, foram acontecendo espontaneamente. Algumas das coisas que a incomodam, ela não pode mudar, “a mão, as dimensões, meu pé...meu Deus, que dificuldade para arrumar um sapato 42...42! É mole? Aí vejo cada coisa linda, mas não posso, não cabe, mas está bom, né?”, conta, achando graça e colocando as mãos no rosto de vergonha. Ela ainda quer fazer algumas readequações físicas para se sentir mais confortável. E sonha em se desfazer do problema com a grande quantidade de pelos, “é horrível”. “São conquistas que só vou poder fazer com dinheiro. Tem coisas que o dinheiro compra e dá para fazer. Tem coisas que não como, por exemplo, conquistar o respeito de alguém. Uma transexual é bem tratada em um lugar quando ela entra para gastar para comprar, para consumir. O pessoal pode olhar assim, mas ela vai ser bem tratada porque querem o dinheiro dela. Fora desse âmbito, o que falta é as pessoas entenderem que isso está aqui, viemos, estamos cada vez mais evidentes e entender que não se trata de uma brincadeira”. Nesse momento, ela cita o caso dos cross dressers, que vem “digamos, duas vidas assim”, e reforça que, no caso das pessoas trans, existe realmente uma “extrema necessidade de ser assim, então é muito difícil para as pessoas entenderem isso. Gostaria que houvesse mais
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informação. Desde a educação, na verdade, que tem que vir desde a escola”. Roxelle é aquariana e descobri, ao final da entrevista, que é astróloga. É uma mulher que gosta muito de tudo e de tudo, muito. “Dou o meu melhor e quero o melhor também. Não quero ‘miguelagem’, não em termo de relacionamento. Quero beijar muito, abraçar muito, dou muito carinho. Sou uma pessoa intensa”, ela conta, muito empolgada. Mas em um momento da entrevista, sua energia, que é bem forte e presente, e que demonstra pelo sorriso sempre bem colocado, é tomada por um ar mais duro. Foi quando lhe perguntei sobre seu relacionamento consigo mesma e sobre seus relacionamentos amorosos.
“Tenho momentos comigo mesma, às vezes, crises de depressão ainda, porque ainda não estou como gostaria, na situação que gostaria, estou passando por um processo. Que é muito trabalhoso, doloroso”, ela desabafa. Tira um momento para respirar e continua: “Muitas não aguentam, principalmente as mais novas. Acabam se suicidando, por desilusões amorosas. Isso é o pior, se você puder colocar isso, isso é o pior, é o que me deixa assim...”, nessa hora, ela abaixou um pouco a cabeça. “Eu, inclusive passei por uma. Sei que está difícil para todo mundo, mulheres cis e trans, mas acabei ouvindo de um ex-namorado que eu tive que a gente só iria se encontrar às escondidas, no motel e tal”. Ele não queria ser visto a beijando, e nem andando de mãos dadas. E ela é
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bem sincera e diz “gostava muito dele. Nossa, eu gostava muito dele, estava apaixonada, apaixonei, assim...quando ele disse isso, eu falei ‘é porque eu sou trans, né?’, pressionei e ele acabou falando que era por causa disso”. Foram mais de cinco meses de relacionamento. Hoje, eles continuam se falando. Ela retorna a suas características, do carinho em excesso e emenda, “um homem não vai querer isso de uma trans, imagine...”. Roxelle acredita que os homens acabam pulando todas as “etapas” com as mulheres trans. Não querem cortejar, levar para jantar, vão direto para o sexo, “sou muito assediada nesse sentido, infelizmente”. É um medo que ela acredita compartilhar, o de não ser amada por quem ela é. “É um temor que eu tenho, mas é uma realidade com a qual tenho que aprender a conviver. Se você não tem medo, você não arrisca. Eu preciso me expêr a isso, sendo amada ou não, preciso me expor. Eu preciso botar a mão fogo, não preciso ficar só medo dele, porque senão, não vou sentir o que é não ser amada. Se algum dia eu fui....”. Quando pergunto qual a importância que ela vê em se identificar como uma mulher trans, ela diz que sai por aí sem medo de ser quem é. E que, é claro, tem coisas que gostaria de esquecer, mas não dá para deixar o passado para trás. Atualmente, ela está
“trabalhando muito nessa transfobia pessoal, não das outras pessoas. Eu me aceito como sou. Agora, eu já quero ser assim, Roxelle e pronto, acabou e que todo resto seja esquecido”
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Mas sabe que tem todo um histórico de vida. “Por que eu teria que falar? Por que eu não teria? É uma coisa que eu tenho que trabalhar’. Nos despedimos com pressa. Algum tempo depois, enviou-me uma mensagem pedindo para que sua foto não aparecesse no trabalho. Depois, pediu para que alterasse seu nome fictício. Depois de uma longa conversa, concordou em deixar tudo na íntegra. Caso o trabalho tenha um alcance maior, ficamos acordadas de rever essa escolha. Ela tem muito medo do que o filho possa a vir enfrentar, com isso, no futuro. Por hora, parte da vida dela está exposta aqui. E eu só desejo que o futuro os receba da forma que Roxelle recebe o mundo: com muita compreensão, paciência e um sorriso enorme.
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ARIEL E RENATA Combinei de encontrar Ariel e sua noiva, Renata, na casa da mãe de Ariel, no Lago Sul, em Brasília, onde as duas moram provisoriamente, enquanto se preparam para mudar para o sítio de Ariel, nos arredores da cidade. A entrevista foi combinada para o 22 de outubro de 2015, às 19 horas. A casa estava cheia e eu cheguei pontualmente. Fiquei um tempo esperando na cozinha enquanto Renata adiantava a massa para as pizzas que se preparava para fazer. Em seguida, fomos nós três para o quarto delas, conversar em um lugar mais tranquilo. Ariel Benso de Lima Tavolucci tem 34 anos. Brasiliense, é formada em Biologia pela Universidade de Brasília, instituição onde, atualmente, cursa Arquitetura e Urbanismo. Autônoma, trabalha com permacultura:
“gosto muito de mexer com terra. Sou uma mulher roots, digamos assim, bem roots”. “Renata Afonso é ótimo porque meu nome é gigantesco”, aos 24 anos, é estudante de Arquivologia, também na UnB. “Eu falo que estudo, mas é mentira. Só estou matriculada no curso e vou lá”. Sua verdadeira área de interesse é gastronomia, e pretende trabalhar com isso no futuro. As duas falam sobre o relacionamento cheias de sorrisos, sem nem conseguir disfarçar. Conheceram-se no início desse ano, no dia 29 de
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janeiro, Dia da Visibilidade Trans, durante uma atividade que acontecia no Balaio Café, no início da Asa Norte. Renata foi porque, na época, namorava um garoto trans, que insistiu para que ela fosse, mesmo contrariada. A ida fez sentido quando ela conheceu Ariel. “De todas as pessoas que já tinha encontrado na vida, a energia que eu senti vindo dela era uma energia diferente. Aí eu quis conhecê-la. Não foi uma parada sexual, eu não estava querendo conhecê-la para pegar, ficar, só gostei da energia e falei ‘cara, preciso ficar perto dessa pessoa’”, conta Renata. Ariel relembra uma atividade de biodança que aconteceu durante o evento. Em um dos momentos, um grupo ficava de olhos fechados enquanto o outro grupo fazia massagem no ritmo da dança. “Eu estava lá, de olhos fechados, relaxando, aí chegou uma pessoa e começou a tocar em mim de um jeito que eu falei ‘uau, que coisa boa esse toque’, aí no final, a pessoa dava um beijo no rosto e você podia abrir os olhos para ver quem era. Ela me deu um beijo tão gostoso que eu falei ‘nossa, podia ser minha namorada, né’, aí abri os olhos e ela estava lá sorrindo aquele sorriso mais bonito”. Como Ariel viu que Renata estava com outra pessoa, ela decidiu deixar para trás. As duas sequer trocaram contatos. Um tempo depois Ariel recebeu uma solicitação de amizade no Facebook e quando foi ver quem era, reconheceu Renata do dia no Balaio. As duas começaram a conversar e combinaram de se encontrar no mesmo dia – já era madrugada. Desde então, não se desgrudaram mais. Renata, que estava em um relacionamento poliamoroso e que não
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acreditava muito em monogamia, viu tudo virar de cabeça para baixo, “porque ela [Ariel] foi a única pessoa que eu quis beijar e beijar de novo e ver e estar todo dia perto”. Renata ama musculação e gostava de ir para a academia cedo. Ariel aproveitava sempre que podia para dormir até tarde, mas começou a dispensar as horas a mais de sono para acompanhar Renata nos treinos. Quando viram, estavam malhando, almoçando, passando as tardes e as noites juntas. Renata saiu dos relacionamentos poliamorosos e quando deram por si, já estavam namorando. Do namoro, partiram para o noivado e estavam se preparando para, na semana seguinte à entrevista, marcar o casamento. Ariel sempre se sentiu atraída por mulheres. Chegou a ter relações sexuais com homens e a ter relações sexuais e afetivas com outras mulheres trans – mesmo antes da transição. “Mas eu sempre me senti mais à vontade, confortável, na presença de uma mulher cis [...] Eu nunca namorei um homem, então não sei como é, mas não me atraem sexualmente, mentalmente então, puta que pariu, aí que cria uma barreira imensa entre nós”. Ariel é categórica ao falar sobre como o relacionamento com Renata foge de todas as experiências anteriores à transição.
“Eu era uma outra pessoa, que tinha muitas frustrações, muitos segredos, era uma vida complicada para cuidar de mim e compartilhar com outra pessoa”.
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Agora, ela pode ser quem ela é e compartilhar isso com alguém, “eu me sinto muito bem, nunca me senti assim na vida, com ninguém. Tipo ‘essa aqui é minha companheira e a gente vai juntas até o inferno se for preciso’”. Ariel conta que é difícil, para uma mulher trans, encontrar uma garota cis que queira namorar, ter um relacionamento sério. “Com a Renata me sinto completamente livre, sabe? Não sei se por essa questão de estar me reprimindo, minha identidade, que eu não conseguia querer estar com uma pessoa só todo o tempo. Minhas namoradas todas foram traídas muitas vezes, e eu também fui”, desabafa. Antes de se assumir, Ariel sequer sabia que existiam mulheres trans lésbicas. Até então, achava que todas eram heterossexuais.
“Isso sempre foi muito conflitante dentro de mim, tanto que quando me assumi, eu achei que passaria a gostar de homens”, ela conta rindo. Quando começou a transição, percebeu que isso era uma coisa que não mudaria. E ao mesmo tempo em que se espelhava nas mulheres, “buscava sua estética”, elas lhe continuavam sendo muito atraentes. Assim que se assumiu, Ariel começou a frequentar as reuniões do grupo de pessoas trans no Hospital Universitário de Brasília e, lá, ela percebeu que existiam sim diversas mulheres trans lésbicas. “Pensei ‘me encontrei, me achei, eu sou uma mulher trans e sou lésbica, agora eu sei quem sou’, isso me deu uma paz de espírito”.
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Por muito tempo Ariel manteve na cabeça que se “tinha nascido de um jeito, tinha que continuar daquele jeito”, e se assumiu apenas em julho de 2014. Mas a questão veio à tona pela primeira vez quando estava entre a segunda e a terceira série, em um sonho. “Eu me vi uma menina com o corpo de uma menina, cabelo grande, toda linda, maravilhosa, loira, vestida de noiva, casando com meu amiguinho, mas na hora que a gente ia para a lua de mel, que eu ficava peladinha, era o corpo de uma menina com um pintinho e aquilo me intrigou bastante. E eu gostei muito daquela sensação, de me sentir mulher, e aquilo ficou na minha cabeça, ‘será que existem pessoas assim? Será que existem mulheres com pintinho?’”. Às vezes, durante a adolescência, Ariel escondia seu pênis e tentava imaginar como seu corpo ficaria sem ele. Mas desde que viu, pela primeira vez, o corpo nu de uma travesti uma revista pornô, achou aquilo uma “coisa tão exótica, tão diferente e tão bonita que queria ser assim”, ela conta rindo. “Nasci com uma genitália e não tenho necessidade de me desfazer dela, de transformá-la para ser uma mulher. Porque, de fato, ela só interessa em dois momentos da nossa vida: no banheiro e quando se está na cama com alguém. Fora isso, ninguém sai na rua mostrando seu pau, sua pepeca, seus seios. [...] A genitália é só um órgão que você tem, ela não define quem você é. E eu não vejo nenhum motivo para que não existam mulheres com pau e homens com pepeca”. Foram 32 anos vivendo em uma família bastante conservadora, sem entender direito de onde vinha sua inquietação. Tentou se forçar a
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acreditar que era gay, mas sabia que não era isso. E ao mesmo tempo, achava que não podia ser uma mulher, por gostar de mulheres e por ter uma boa relação com sua genitália.
“Não sou da geração da internet, eu fui ter internet quando era adolescente, aí eu comecei a descobrir muitas coisas, mas eu já tinha uma vivência toda, já tinha construído minha personalidade masculina. Isso gerava mais conflitos, muitos”. Ariel relata que acordava assustada todos os dias, pensando que queria ser uma mulher, que era uma mulher e precisava viver como tal. “Aquilo foi começando a me incomodar e eu achando que era um fetiche sexual [...] A vontade não ia embora, não conseguia me abrir com ninguém até que eu pensei que precisava muito de um psicólogo. Já estava ficando sem vontade de viver”. Ariel ficava pensando em seu filho, hoje com 11 anos, e em sua mãe. Ficava pensando que não queria decepcioná-los e foi postergando a transição. Ao iniciar a terapia, a questão de sua identidade de gênero foi ficando cada vez mais clara e ela começou a se montar. “Passei pela fase de cross dresser que, para mim, são as verdadeiras travestis, o que chamam de travestis para mim são mulheres trans, é uma questão de conceitos, né, mas tem gente que defende a travestilidade então tem espaço para todo mundo”. Assim que terminou seu último relacionamento sério, antes da Renata e da transição, Ariel entrou em contato com uma menina trans
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que conhecia e disse para ela que queria desenvolver sua feminilidade, que já não aguentava mais viver como homem. As duas combinaram de se encontrar para que ela ajudasse Ariel a se montar e ver como ficaria. Rindo, Ariel conta que gastou inúmeros refis de lâminas de barbear para tirar todo o pelo do corpo e foi encontrar a amiga. Maquiou-se, colocou uma roupa, e a peruca de cabelos longos e ruivos que a amiga tinha levado. Quando se olhou no espelho, se sentiu realizada, “falei, ‘estou linda’, você vai ser minha madrinha. Qual vai ser meu nome? Aí ela disse que eu estava parecendo a sereia Ariel. E eu adorei, sempre quis ser ruiva. É o nome de uma sereia, um ser híbrido, metade peixe, metade mulher”. Embora trouxesse uma felicidade enorme para Ariel, ser cross dresser não era exatamente o que ela queria. Rapidamente, os momentos em que ela se montava deixaram de ser o suficiente. Quando começou a tirar os pelos com tratamento a laser, foi percebendo que seu corpo tinha “claramente uma silhueta feminina”, e que era aquilo que queria: ter o corpo feminino e ser aquele corpo feminino.
“Comecei a querer viver aquilo o dia inteiro, todos os dias, aquilo sim era quem eu era. Até o dia que eu tomei coragem e falei pra uma amiga minha que era cross dresser, que também não sabia se se assumia, que eu também tinha vontade de ser uma mulher”. As duas combinaram de sair juntas para uma festa em Ceilândia, onde não conheciam ninguém e poderiam estar do jeito que quisessem
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sem se preocupar. A amiga teve um imprevisto e não pôde ir. Ariel se montou no carro e foi mesmo assim.
“Pude estar maquiada, bonita, de salto, rebolar, dançar, desmunhecar e pensei ‘quero poder estar assim todo dia’”. Quando chegou em casa, de madrugada, sequer tirou a maquiagem ou o esmalte. No dia seguinte, já era mais de meio-dia e ela não queria levantar e ter que se desmontar para sair do quarto. “Eu chorava ‘caralho, por que eu não posso sair e mostrar para minha família quem eu sou? Por que eu não posso estar com essas unhas lindas, maravilhosas?” Por volta das 16, 17 horas, recebeu uma ligação de seu primo, dizendo que estava chegando com a esposa em sua casa para conversar. Precisou se limpar e foi recebê-los. Como nem a maquiagem, nem o esmalte tinham saído totalmente, percebeu que eles a olhavam de maneira diferente. Em um outro dia, conversando com a mulher de seu primo, Ariel perguntou como ela pensava que a família reagiria se soubesse que existia uma pessoa trans na família. Ela respondeu que, naquele dia em que os recebeu com os resquícios de maquiagem, seu primo comentou “porra, coitado do meu primo, deve ser muito ruim viver escondido”. Ariel percebeu que era hora de se “libertar”. Que se não fizesse isso, passaria “uma vida inteira pensando como teria sido a vida que eu não tive coragem de assumir”. Concluiu que sua mãe e seu filho eram as duas únicas pessoas que precisavam saber, os demais só iriam conhecer
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Ariel. “Só tinham que respeitar, não precisavam entender, nada”. “Minha mãe ficou surpresa, chocadíssima, porque ela achava que mulheres trans eram afeminadas, gostavam de homem, não sei o que. E eu nunca fui assim, sempre fui lutador, bravo, jogava bola, aquele típico homem machista”. Para o filho, contou depois que já tinha deixado o cabelo e as unhas crescerem, que já tinha tirado a barba.
“Ele me surpreendeu, eu falei ‘seu pai está passando por uma transformação’ e ele ‘eu sei, você está virando uma mulher’, mas depois ele não aceitou tão bem assim, agora que ele está começando a entender melhor, criança, né”. No início, a mãe pediu para não conhecer a Ariel e, quando fosse visitá-la, o fizesse como o “filho dela”. Ariel respeitou isso por um tempo, até perceber que não dava mais para parar na frente da casa de sua mãe, trocar de roupa, se desmontar. E questionou a mãe: “eu vou para a UnB como Ariel, vou a todos os lugares como a mulher que eu sou e ter que chegar aqui, na porta da sua casa, e disfarçar? Não dá”. A mãe aceitou e Ariel pôde, finalmente, ser ela plenamente, durante todas as horas do dia e todos os dias da semana. No começo, relata que foi meio turbulento. Foi um processo de redescoberta e autoconhecimento, “principalmente para uma pessoa como eu, que era um homenzarrão, machão, pegador, comedor, não sei o que. Tive que reaprender tudo”. Guerreira, Ariel deixa claro que é super feminista e que, além disso,
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vive batalhando para que ela e outras pessoas trans estejam sempre conquistando mais direitos e respeito. Já conseguiu mudar todos os seus documentos para seu nome. E agora, está tentando despertar “nas meninas que não é preciso operar para ter sua identidade de gênero reconhecida [...] Você não precisa fazer uma coisa, uma mutilação, uma cirurgia muito agressiva no seu corpo para se sentir quem você é, e você tem o direito de ter sua identidade reconhecida judicialmente, porque é muito constrangedor você ser uma mulher, viver socialmente como uma mulher, ser reconhecida como mulher e [...] ter obrigações de homens”. Para Ariel, a vivência trans precisa ter visibilidade. As pessoas precisam ser educadas, ter acesso a informações a respeito das pessoas trans, porque existem muitos dogmas e estereótipos que são lançados para esses indivíduos sem que exista, sequer, um conhecimento prévio.
“A vivência trans é muito diferente e é muito diferente de uma vivencia cis. Você, por exemplo, nunca teve necessidade de ir em uma junta médica multidisciplinar para dizer que você é uma mulher. Você nasceu, enxergaram o que você tinha entre suas pernas, falaram que você era uma mulher, você ficou confortável com aquilo, nunca questionou, nunca se sentiu diferente, nunca achou que era outra pessoa e ninguém nunca te perguntou se você realmente era, nunca te analisaram para dizer ‘não, você realmente é quem você está falando”.
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Sem papas na língua, demonstra sua indignação a respeito da patologização da transexualidade e da necessidade que impõem aos indivíduos trans para que se adequem às compartimentações.
“Acho que todo mundo tem direito à saúde, você vai lá precisando de um certo atendimento, você não precisa ser doente, categorizado como tal para que tenha a isso. As pessoas que vão ao hospital elas estão saudáveis na maior parte da vida dela, elas vão quando estão atrás disso”. Para ela, as pessoas trans precisam sim de acompanhamento psicológico, endocrinológico, e de diversos outros tipos, mas como várias outras pessoas têm esse acesso gratuito sem, para isso, serem categorizadas como “doentes mentais”. Além disso, repudia a obrigatoriedade que certas pessoas trans e mesmo a comunidade médica parecem impor na questão da cirurgia de transgenitalização. Ariel, na verdade, parece-me uma pessoa extremamente crítica. Mas no sentido de ponderar criticamente todas as coisas ao seu redor e de tentar entendê-las. O sítio de Ariel foi atingido pelas últimas queimadas, e agora ela vai ter que se dedicar a reconstruí-lo. De lá, ela pretende tirar seu “ganha pão”, com a permacultura, os plantios, talvez iniciar piscicultura, um viveiro, ter uma marcenaria para fazer móveis, dar cursos, aulas, oficinas. Sobre unir Arquitetura à Biologia, Ariel demonstra ter uma
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preocupação urgente para os tempos que vivemos hoje. “A maneira como as cidades são construídas, sem capacidade nenhuma de suportarem intempéries naturais, grandes chuvas, grandes secas, não têm capacidade para recolher água pluvial, para produzir alimentos, que vem todos de fora, a energia vem de fora, nada é produzido dentro da cidade hoje em dia. Nada que realmente interesse, alimento, energia e água. Tudo vem de fora. Isso me preocupa, acho que não é coerente com nossa capacidade intelectual, de modelar o ambiente a nosso favor, mas sem esquecer que existem outros seres, e que a gente depende deles também, apesar de termos essa prepotência de achar que somos melhores que todos”. Ariel é bastante séria e enfática ao expor suas opiniões e, ao mesmo tempo, uma pessoa muito bem-humorada e que, no começo da entrevista, onde pedi para que se apresentasse, apontou para o celular que registrava o áudio e falou animada:
“adoro o Flamengo, que fique registrado aí: mengão!”. Praticante de Capoeira Angola há anos, Ariel trabalha muito de sua espiritualidade nas rodas:
“o que me encanta, o que me atrai e o que me mantém viva dentro da capoeira é justamente a espiritualidade, que é muito exacerbada”.
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Ariel e Renata, convidaram-me para comer me sentar Ă mesa e comer pizza com elas, abriram a porta de casa e deixaram que eu entrasse, ainda que brevemente, em suas vidas. Duas mulheres muito fortes, prontas para encarar o que estiver por vir, de peito aberto.
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CON TRA COR PO O APRENDIZADO QUEER
CONTRA CORPO O APRENDIZADO QUEER Em uma mesa de bar, na esquina entre a Peixoto Gomide e a Frei Caneca, em São Paulo, expliquei meu projeto para as três pessoas sentadas comigo, ao redor de uma garrafa de cerveja. Uma delas, a que eu tinha acabado de conhecer, causou-me um certo incômodo por, ao invés de me escutar, estar mexendo no telefone enquanto eu falava. De repente, esticou o celular em minha direção, mostrando uma foto, e disse: “meu irmão é trans”. Quando olhei para a imagem na tela, estavam duas pessoas, a que me exibia o celular e uma outra mulher. Pensei: o problema é exatamente esse. Uma coisa que deveria ser tão simples, tão clara, não é. Eu não sou o meu corpo. Portanto, ela também não deveria ser. Ela não era. Não é. Ninguém deve ser. Mesmo tendo escolhido não fazer a cirurgia de transgenitalização, como sua irmã me contou depois, ela era a irmã e não o irmão que me havia sido apresentado. O determinismo biológico persiste em nosso imaginário coletivo. E com ele, a criação de supostas diferenças, pautadas por características físicas, responsáveis por criar os abismos entre os corpos: machos e fêmeas, homens e mulheres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais, os que oprimem e os que são oprimidos. Essa diferença, pautada, outra vez, em uma suposta verdade biológica, é quem cria a polaridade, as relações binárias e, com isso, a hierarquia dos corpos,
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em uma lógica que determina quais vidas são mais ou menos dignas de serem vividas. Dentro desse sistema, normas de gênero e sexualidade foram criadas e manutenidas para estabelecer e preservar gradações daquilo que é mais ou menos humano e digno de humanidade. A heteronormatividade e a cisgeneridade compulsórias não são criações da mente de indivíduos ociosos, mas realidades que impõem e regulam quais espaços – físicos, sociais, econômicos – e de que formas nossos corpos podem ocupá-los de acordo com sua sujeição a essas regras. Subverter as normas e os modelos é uma forma de sobreviver a um mundo em que a compartimentalização é a ordem do dia. O Queer busca exatamente isso: a desconstrução dos rótulos e embalagens pré-determinados. Mas não para aparecer com outros, mas sim para dissipar com essa estrutura. O Queer não quer ser assimilado, não quer se adequar e, acima de tudo, não quer ser tolerado. Porque a tolerância não apenas estimula essa noção de diferença, mas ajuda a criar uma estrutura hierárquica dos corpos toleráveis e, portanto, uma ordenação de corpos mais ou menos aptos à solidariedade. Pela experiência pessoal e a estreita relação com a questão, aproximei-me, inicialmente, da temática da diversidade sexual. “Por que um beijo gay não é só beijo?”, foi minha primeira pergunta, e pensei em seguir por esse caminho. Contudo, analisando essas hierarquias e gradações construídas socialmente, pude perceber que, de fato, certos corpos se colocam à frente e mesmo acima de outros. Fazendo com que nosso olhar se limite, de maneira viciosa, à nossa própria realidade.
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Nessa escala, alguns corpos, supostamente próximos – afinal, a letra L aparece um pouco antes da T -, fizeram-me perceber que algumas questões são inadiáveis e precisam, na linguagem jornalística mesmo, ser pautadas imediatamente. Afinal, se existe um “problema de gênero”, como demonstrou Butler, ele ultrapassa os campos teóricos e acadêmicos. E não diz respeito apenas aos que ultrapassam essas prescrições diariamente, porque ele nos acorda para a ignorância acerca de uma questão social e extremamente complexa. Porque o gênero em si não é um problema, como grande parte do feminismo radical insiste em dizer, mas é a falta de inteligibilidade do gênero que cria o problema e que representa toda uma estrutura de identidades pautadas na diferença. Gênero, ao contrário do que muitos pensam, não é apenas um problema da sexualidade. É um problema político e ontológico. E como disse Marie-Hélène/Sam Bourcier, “é impossível fazer política queer sem combater o neoliberalismo”. Dessa forma, tornou-se impossível, para mim, pensar o queer fora do sistema de mercadologização e regulação dos corpos, de valoração das vidas. Entender o gênero, o que ele representa, as normas que estabelecem seus papéis, expressões, vivências e a forma como determinados indivíduos as subvertem, é uma coisa que eu considero fundamental para o exercício da cidadania e da alteridade. Existe uma história da transexualidade. O trânsito dos gêneros não é uma urgência do século XX e nem do século XXI. As fronteiras identitárias parecem ter sido criadas junto com a própria sociedade e,
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desde muito cedo, foram cruzadas. Ou melhor, as fronteiras existem enquanto passagem, portanto, o trânsito ou a transgressão não são apenas acréscimos às restrições territoriais, geográficas, de gênero ou sexualidade, mas condições para sua existência. O trânsito é inerente à fronteira e vice-versa. E isso porque os corpos não existem para serem conformados. Infelizmente, essas transgressões têm servido como argumento do discurso hegemônico para criar fronteiras, atrás de fronteiras, abismos e mais abismos, até chegar à margem para a qual leva, e faz de tudo para manter, esses corpos subversivos. Para além da teoria, o desrespeito à identidade de gênero no jornalismo brasileiro foi uma coisa que me sensibilizou profundamente, porque eu, como mulher cisgênera, nunca tive meu corpo violado e questionado da forma como indivíduos trans têm. Nunca vou ter. Nunca precisei ter meu eu, meu corpo, exposto. Eu nunca precisei lutar para ter meu nome reconhecido. Eu não sei o que é estar em desacordo com meu próprio corpo. Eu não precisei me submeter a uma junta médica para comprovar ser quem eu sou. Disseram-me que eu era uma coisa e, de certa forma, eu me senti confortável com aquilo. Eu não precisei lutar para ir atrás da minha verdade porque ela já estava ali, por mais que eu nunca tenha cumprido exatamente com o papel de gênero esperado. Nunca tive minha identidade questionada. Ao final das entrevistas eu tive a absoluta certeza de que tinha cumprido, ao menos minimamente, com aquilo a que tinha me proposto. Um trabalho teórico não daria conta de tratar de uma questão
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tão delicada. Como uma estudante cisgênera, baseando-me apenas em referências bibliográficas e documentais, eu nunca teria sequer a capacidade – e muito menos o direito – de tratar da transexualidade. A vivência trans supera todas as suposições e impressões que nós, pessoas cis, podemos construir em nossos imaginários. E cada vivência é tão singular que, ao final, reuni um mosaico de histórias e experiências completamente distintas e, ao mesmo tempo, quase complementares. Nunca bastaria analisar matéria por matéria que tratasse da transexualidade, que trouxesse pessoas trans. Nunca bastaria classificálas como corretas ou incorretas. Nunca bastaria somente isso. Porque eu estaria, justamente, seguindo aquilo que tanto critico no jornalismo: a supressão da humanidade dessas pessoas, a redução de suas identidades – tão complexas quanto de qualquer outra pessoa – a suas identidades de gênero. Esse trabalho não faria o menor sentido sem que Aria, Roxelle, Daniela, Gabriel, Sabrina e Ariel abrissem suas vidas e dividissem comigo algumas de suas experiências pessoais, histórias e seus olhares sobre o mundo. Elas só demonstram como nós precisamos falar sobre coisas que foram, por muito tempo, silenciadas, e a aprender a escutar quem tanto luta para ter sua própria voz.
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