Carta do editor A relação social entre os indivíduos é um eterno aprendizado sobre quem somos e o que representamos na sociedade. Convivemos com outros indivíduos semelhantes a nós, e aprendemos como devemos nos comportar de uma forma que muito se assemelha a imitação. Assim, aprendemos a falar, a andar, e muitos hábitos culturais se tornam parte de nós. A assimilação de determinados conceitos é tão intrínseca à nossa criação que temos dificuldade em perceber como a maioria das coisas ao nosso redor se tratam de construções sociais e não de verdades que acreditamos serem irrefutáveis. Ter a mulher negra como sujeito de pesquisa, nos faz perpassar pelos diversos âmbitos da sociedade e nos faz questionar tantas construções em que estamos imbuídos; como gênero, raça, classe e papéis sociais. E poder entender as diversas realidades deste grupo é uma forma de fortalecimento de identidade e de desconstrução de normas e padrões que já não nos cabem mais. Abra a mente e o coração para receber a realidade em forma de arte. Esteja convidado a explorar vidas que representam tantas outras. Talvez, até mesmo a sua.
Amanda Aramaki 2018
´ Creditos Design gráfico Produção fotografia
styling
Maquiagem e cabelo assistente de produção
Amanda Aramaki Amanda Aramaki Cazumbá Coletivo Amanda Aramaki Pedro Bezerra Tatiana Soares Jannes de Carvalho Daniela Lopes Lucas Fonseca Johnathan Mendes Igor Ribeiro Amanda Aramaki Laila Marques Bruno Max Brenda Maciel Igor Ribeiro Bruno Max Ricardo Pereira Jorge Ferreira
Entrevista
Josy Dominice
TRANSCRIÇÃO
Yandra Santana Brenda Maciel Thalita Borba
Modelos
Daniele Ramaiane Laila Marques Maria Clara Viana Bruno Max Elane Moreira Kellen Lopes Sofia Lopes
Colunas
Juliana Ribeiro Flaviana Lopes Vanessa Fonseca Haide Sousa Ana Raissa Rodrigues
´INDICE página 6
A mulher negra ´ e a midia Juliana Ribeiro página 12
Sou negra,, . Sou gente! Daniele Ramaianne página 22
Nasce uma estrela Laila Marques página 34
Josy Dominici
Entrevista página 42
A liberdade de ser quem sou Vanessa Fonseca página 46
Pensei sobre o uso do turbante Maria Clara Viana página 56
Vamos falar sobre racismo. Flaviana Lopes página 60
Deus ´e uma mulher preta Kellen e Sofia Lopes página 74
Elane Moreira página 78
Bruno Max
página 82
Estar Mulher. página 84
Seja antiracista Ana Raíssa Rodrigues
Haide Sousa
Escrevendo histórias vivendo cada segundo Nomes do passado que ainda percorrem o mundo, orgulhando envergonhando. Muitas se sentem sobrando Sem estímulos na vida algumas seguem se enganando Sempre existirá aquelas que fazem a diferença Não pensam em recompensa Que tem caráter presença Sempre te ganham licença Chegam com classe decência Tem argumentos propensos Medem suas conseqüências Milhares já muito mais querem sempre um pouco mais Enquanto outras milhares não sonham nem correm atrás Caem no comodismo qualquer coisinha já satisfaz Falta de realismo acredita que aqui ninguém faz No país rico de beleza misturado com pobreza Meninas se fantasiam negando suas naturezas Cobertas de incertezas com medo se sentem presas Escondem a esperteza sonhando com a realeza Karol Conká - Marias
A mulher negra ´ e a midia Por Juliana Ribeiro
Foto: Daniela Lopes
Após séculos de um passado sombrio calcado na escravidão, inexistência de direitos e o ainda presente racismo institucional, a população negra – sobretudo de mulheres – ainda luta por espaço em um dos principais meios responsáveis pela perpetuação do preconceito: a mídia
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O Brasil é um grande balaio de traços, cores e etnias. Tamanho foi o processo de miscigenação ao longo da história – não tão cor-de-rosa como prega o senso comum –, que, até hoje, são inúmeras as denominações usadas popularmente em referência às pessoas negras, grupo que se constitui daqueles que se identificam como pretos e partos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre “morenas” e “mulatas”, a sensação que fica é de que há, ainda, a tentativa de apagar ou amenizar a negritude presente no Brasil, processo cultural que flerta com o movimento eugenista do passado.
que, apesar de se identificar com um grupo seleto de mulheres negras que estão na mídia, ainda não vê uma representação ideal do grupo.“Eu não vejo a mulher negra sendo representada e eu não acho que é um padrão exaltado. Acho que continua sendo vista como aquela mulher que é feita pra cumprir com os desejos sexuais dos homens, e que está ali sendo um símbolo sexual, e não é um padrão que as pessoas querem alcançar. Eu acho que a mídia usa mais as mulheres negras pra cumprir um papel social do que porque a mulher negra é um padrão a ser representado”, argumenta.
Apesar da incerteza que paira sobre a constituição racial brasileira no campo das ideias, quem é preto no – pasme – segundo país mais negro do mundo, sente o racismo na pele. Quando o que está em jogo é o papel de protagonista na novela, a vaga de emprego para recepcionista ou a abordagem policial, a distinção é clara e feita de forma automática: quanto mais negroides os traços, escura a cor da pele e crespo o cabelo, mais impactante a exclusão e o preconceito.
Por falar em padrão, quem aponta a presença de um arquétipo predominante na mídia é a professora universitária e jornalista Li Chang Shuen. “Na televisão, nas revistas de moda, nada na mídia faz muita referência à beleza negra. Existe um padrão, que é a branca, alta, loira e de cabelo liso”, enumera. Li cita como exemplo o concurso Miss Brasil, que recebeu críticas após eleger duas vezes seguidas candidatas negras, e deu a coroa este ano a uma amazonense: “Todo mundo reclamou porque ela não parecia com a Gisele Bündchen, porque a Miss Santa Catarina [e outras misses] eram mais bonitas. E o que essas misses tinham em comum? Elas eram loiras e tinham olhos azuis. Existe todo um padrão que é exaltado, e esse padrão vem desde quando a televisão brasileira é televisão brasileira”, explica, trazendo à tona um passado recente, quando atores brancos faziam papéis de negros com o polêmico e racista blackface (quando o rosto de alguém é pintado para satirizar os traços negros), e ressaltando que até hoje a população negra é representada na mídia em situações sociais subalternas.
Mídia, racismo e representação Se o racismo no Brasil se sustenta institucionalmente, com o punho de ferro e a burocracia dos aparelhos públicos, por fora se traveste de brasileiro de bem, que não vê cor e não percebe o preconceito, tanto que “até já ficou com uma pretinha linda e tem amigos negros” (caso não tenha notado nada errado nesta frase, volte duas casas). Não é à toa: quem está ali para dar conta de nutrir e manter a figura da mulata sambista, da cor do pecado, da mãe-preta empregada da casa, do negro trabalhador braçal ou aviãozinho do tráfico é a própria mídia, que trata de sub-representar a população negra para milhões de brasileiros (pretos e pardos, em sua maioria).
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EU ACHO QUE A MÍDIA USA MAIS AS MULHERES NEGRAS PRA CUMPRIR UM PAPEL SOCIAL DO QUE PORQUE A MULHER NEGRA E UM PADRÃO A SER REPRESENTADO.
“A minha percepção sobre o que é ser negro e como é ser negra na sociedade mudou muito com o passar do tempo. Hoje em dia eu tenho uma noção comple tamente diferente do que eu tinha antes, e muito mais política”, comenta a estudante Beatriz Benetti,
Beatriz Benetti, estudante de Rádio e Televisão
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A perspectiva é compartilhada por milhares (e, por que não, milhões) de mulheres negras ao redor do Brasil, que, além de estarem mais propensas a sofrer violência doméstica e feminicídio em relação às brancas (59,4 e 68,8%, respectivamente), conforme divulgado no Dossiê Violência Contra as Mulheres, da Agência Patrícia Galvão, têm de lidar com estereótipos racistas difundidos em produtos midiáticos, e, portanto, ter trabalho dobrado para administrar a autoestima. “Não vejo minha beleza exaltada de uma forma saudável ou como eu gostaria que fosse. A mulher negra no Brasil sempre é colocada em papeis possíveis específicos, e, em relação à beleza, a mulher negra só é exaltada de forma a hiperssexualizar e objetificar. Ou, mesmo, se a mulher for negra e estiver em outros padrões mais aceitáveis, for magra, tiver a pele mais clara, cabelo longe de ser crespo e traços finos”, pontua a estudante de Rádio e Televisão Maria Clara Cardoso.
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A MULHER NEGRA NO BRASIL SEM PRE É COLOCADA EM PAPÉIS POSSÍ VEIS ESPECÍFICOS, E, EM RELAÇÃO A BELEZA, A MULHER NEGRA SÓ É EXALTADA DE FORMA A HIPERSSE XUALIZAR E OBJETIFICAR.
Apesar disso, estas mulheres já celebram pequenas vitórias e criam, com o passar dos anos, redes de acolhimento e empoderamento. “[A mulher negra] começou a ganhar visibilidade atualmente, com o surgimento dos movimentos sociais e empoderamento crescente. Ainda não ocorre uma visibilidade da forma que deveria ser passada, a sociedade brasileira ainda tem alguns preconceitos instaurados, e são tabus que diariamente lutamos para serem quebrados. Posso dizer que a mudança ocorre em passos lentos, ainda há muito o que ser feito no que diz respeito ao modo como somos representados”, avalia Yara Mendes, estudante de jornalismo.
Maria Clara Cardoso, estudante de Rádio e Televisão
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“Queria ser paquita” Temos hoje, no Brasil, uma legião de mulheres negras que cresceram sem referências midiáticas, assistindo na televisão Xuxas, Elianas e Angélicas – o oposto da negritude. “Quando eu era criança eu queria ser Paquita, mas era impossível porque eu não era loira, meu cabelo não era liso. Eu era uma menina de cabelo pixaim. Minha mãe prendia meu cabelo com duas xuxinhas, pra imitar o penteado da Xuxa, e aí na escola as crianças faziam motoca do meu cabelo, porque era duro”, relata Li Chang Shuen. Ela aponta que, apesar de a autonomia em relação à própria aparência chegar tímida na adolescência, não se tem para onde correr: “essa autonomia é limitada porque é circunstanciada pelo que você vê. Se eu só vejo mulher de cabelo liso na televisão, obviamente eu vou querer também que meu cabelo seja liso”, explica.
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A MUDANÇA OCORRE EM PASSOS LENTOS, AINDA HÁ MUITO O QUE SER FEITO NO QUE DIZ RESPEITO AO MODO COMO SOMOS REPRESENTADOS. Yara Mendes, estudante de jornalismo
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QUANDO EU ERA CRIANÇA EU QUERIA SER PAQUITA, MAS ERA IMPOSSÍVEL PORQUE EU NÃO ERA LOIRA, MEU CABELO NÃO ERA LISO. EU ERA UMA MENINA DE CABELO PIXAIM.
São estas mesmas mulheres, no entanto, que criam atualmente espaço para atributos que não estão necessariamente apenas associados à estética negra, entre talento, profissionalismo e inteligência. O processo é refletido na exaltação de personalidades na música, cinema, televisão e artes. Entre as figuras, destacam-se as atrizes Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Angela Basset e Thaís Araújo e as cantoras Whitney Houston, Beyoncé, Rihanna e Iza. Li cita o exemplo da queniano-mexicana Nyong’o, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante e eleita a mulher mais bonita do ano em 2014, que estrelou recentemente o filme Pantera Negra. “Eu descobri que o penteado que a Lupita usa se chama Nós Bantu [Bantu Knots ou Coquinho], eu achei bem interessante, porque na hora que eu vi na tela eu pensei ‘meu cabelo está bem ali, em uma das personagens principais de um dos maiores filmes dos últimos tempos que tem o cabelo igual o meu”, lembra.
Li Chang Shuen, jornalista e professora universitária
A professora e jornalista revela que, apesar da crescente representatividade midiática, acompanha sobretudo mulheres anônimas no que diz respeito às dicas de beleza. “As anônimas têm soluções mais parecidas com as nossas, porque uma coisa é uma Maju Coutinho ou a Thaís. Elas vão pra um salão muito chique, muito caro no Leblon. Mas eu não posso, então eu preciso ter soluções que sejam acessíveis pra mim”, completa.
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Sou negra.
Sou gente! por Daniele Ramaianne
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xisto não só em corpo, mas em mente, [emoção] e espírito. Tinha oito anos quando as primeiras curvas do meu corpo começaram a se mostrar. E logo as “vantagens físicas”, a “abundância da ‘morena/mulata’” se tornaram um dos meus maiores pesadelos... E posteriormente, meus maiores complexos. Sempre atraindo olhares. Não só das pessoas dispostas a me elogiar: haviam os inescrupulosos homens que me secavam, babavam, [na pior das expressões] tocavam e faziam eu me sentir como se fosse um pedaço de carne. Repudiava-os por se acharem tão proprietários de mim.
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Abraços que por vezes (muitas) se tornaram apalpamento. Cumprimentos de bochecha que por vezes (muitas) se alongavam como se fossem íntimos a mim. Apertos de mãos que por vezes (muitas) se transformavam em um “”carinho”” desmedido. Nojo, era o que eu sentia, deles. Culpa, era o que atribuía a mim. “Não sorri com homem”, “Não seja simpática demais, homem confunde as coisas”... Da intensidade da infância, vi as manifestações mais espontâneas da minha simpatia se transformando em desconfiança, aversão, ... Aversão ao meu corpo inclusive. “Quando eu crescer, vou fazer uma cirurgia pra tirar minha bunda”, era o que mais falava... Quem era contra o pensamento, argumentava dizendo “Pra quê?! Uma preta tão bonita sem bunda?!”, como se minha beleza estivesse só no meu corpo. E “”estranhamente”” conectado com minha identidade política de raça. “Que nada, menina, homem gosta é de carne”... Reforçando o açougue o qual pertencia...
O que me fazia querer tirar mais ainda. “Não quero ser notada pelo tamanho da minha bunda”. “Não quero que meu corpo seja o valor da minha existência”. Mas sem mais referências que reconhecessem a “minha” beleza para além do meu corpo, passei a fugi do mesmo, por muito tempo e de forma doentia, em busca das outras belezas que me habitavam. A preta que não queria a bunda/curvas que tinha. A preta que não percebia as “vantagens” do fenótipo. Depois ainda tive de confrontar a construção social que deixa as pretas só, que faz das pretas objeto de prazer, que vangloria as pretas nos carnavais das nossas curvas, que nos vulgariza. Adoeci nessa fuga. Vestia roupas em cima de roupas pra não me permitir lembrar o corpo que tenho, da atenção que ele recebe. Roupas cada vez mais largas pra “não marcar meu corpo”. Espelho? Só em caso de necessidade... Tantas atividades deixei de fazer pra evitar essa exposição que me machucava.
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“ Não quero que meu corpo seja o valor da minha existência.”
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Paralelamente a isso, a vida foi mostrando caminhos e me apresentando pessoas que conversaram comigo estes complexos. De um processo tão complexo quanto a construção negativa do entendimento sobre mim, porém positiva. Que me deram forças a questionar os juízos aos quais me acometeram, as amarras que me envolviam. Fizeram-me entender a intensidade que foi viver isso ainda criança, na construção das minhas forças e por isso tirando muito delas de mim. Dessas conversas e seres que me viram enquanto ser, reconstruí minhas forças aprendendo sobre: Amor: nos “vendem” e mostram o amor como sendo quase exclusivamente romântico, impedindo que nós entendamos as outras formas de manifestação amorosa e fazendo com que busquemos implacavelmente por esse romance, pelos “príncipes”, que nos promete “complitudes”. Conhecer o amor nx amigx, nx irmã(o), nos familiares e principalmente em nós mesmxs nos permite construir valores muito mais amplos e caridosos, nos libertando e nos ensinando a respeitar quem nós somos, e assim impedindo que caiamos em armadilhas como “a felicidade está no outro romântico”, nos submetendo a falta de escrúpulo de comportamentos masculinos. Questionamento: usar a desconfiança para enriquecimento político-social e intelectual, se questionando sobre o porquê tais coisas acontecem e tais outras não, refletindo as relações
e com isso as construções que nos oferecem/impõe. [Um dos nossos maiores aliados: a pergunta; o debate ideológico; a argumentação. Tudo que doutrina não quer ser questionado]. Voz: Se disser “não”, expresse o não; se disser “sim”, expresse o sim. A voz é fala; e fala é expressão. Nós temos voz, mas querem
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nos tirar o direito a ela, querem nos convencer que não a temos. Algumas vozes vão somente reproduzir o que as construções pejorativas falam, e com isso entender que para ter voz é preciso ouvir, em atenção, questionando, refletindo, a partir daí ignorando as falas/vozes que destroem nossa dignidade de ser.
“ Conhecer o amor, principalmente em nós mesmxs, nos permite construir valores muito mais amplos e caridosos.”
Produção: Cazumbá Styling: Johnathan Mendes Assistente de produção: Igor Ribeiro Beleza: Bruno Max Fotografia: Amanda Aramaki
Nasce uma estrela por Laila Marques
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u acho que a primeira vez que me achei verdadeiramente bonita eu tinha uns 19 anos. Assim como a maioria das meninas negras, cresci ouvindo várias coisas a respeito do meu corpo e do meu cabelo a todo momento. Minha mãe é cabeleireira e a casa da nossa família ficava atrás do salão de
particular e a única que era questionada sobre o peso e quando ia retocar a raiz do cabelo -apesar de ser uma negra com a pele clara, na família materna, eu tinha a pele mais retinta. Minha amiga de infância era uma prima branca, loira e com olhos verdes e meu sonho era pintar o cabelo, poder usar lentes e ter o nariz um pouco mais fino (o que me levava a colocar prendendor de roupa no nariz na esperança
beleza, não foi sempre assim mas foi onde passei a maior parte da infância e adolescência, então, todos os dias eu sabia que iria ouvir algo, pelo menos, sobre o cabelo (acho que por isso ele se tornou tão importante e tem um peso muito grande pra mim falar sobre isso). Eu sempre fui a priminha mais inteligente da família, a única que teve acesso a educação em escola
de afinar). Eu lembro também da minha avó falar que quando meu irmão nasceu, ela tratou logo de fazer um furinho de sinal da beleza (nunca entendi muito bem isso) e também de afinar o nariz dele enquanto ele ainda estava "molinho" pra não correr o risco de ficar achatado que nem o meu. Isso doía, cara. Uma vez, uma das manicures falou que antigamente as pessoas passavam limão na pele pra fica-
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rem um pouco mais clarinhas. Eu caí nessa conversa e tenho algumas manchas na pele até hoje. Agora o que mais me irrita atualmente era a cobrança extremamente exagerada a cerca do meu peso. Sempre, sempre, SEMPRE me falavam que eu estava gorda, que eu precisava fazer um esporte, que eu tinha que comer menos, mas aí, hoje eu pego as fotos da infância e adolescência e vejo que não tinha nada disso tudo que apontavam! Eu fui uma criança com um peso normal, que amava se exercitar e que não comia tanto assim porque queria muito perder esse "buchinho" que todos apontavam. Eu acho que vivi muito tempo querendo aprovação de todos e nunca me questionei sobre o que eu gostava ou sobre como eu gostaria de viver.
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Além da cobrança normal dos pais em ter que estudar e me comportar, os discursos sempre vinham no tom de por quê eu sou preta eu não posso dar a chance de ninguém falar nada de mim, que era obrigação minha ser sempre a melhor em todos os espaços e que deveria me comportar e perder peso pra um dia ter um casamento muito abençoado com um homem de Deus. Aí chegou uma hora que eu só cansei dos planos dos outros pra mim e comecei a me questionar sobre o que queria e a perceber várias questões que foram aparecendo ao longo da vida mas que eu acabei abandonando porque esse não era o plano dos outros pra mim.
O primeiro passo foi não escolher um "curso que dá dinheiro" pra cursar na Universidade. Foi um choque pra família, mas eles já superaram. Depois de uns 2 anos, finalmente aprenderam o nome do curso que eu fazia rs. Depois, a homoafetividade. Foi um pouco complicado ter que explicar para uma família religiosa, mas foi especialmente difícil entender que eu simplesmente estava apaixonada pela minha melhor amiga e que não tinha problema algum nisso. Depois de alguns meses em terapia, muito choro e muito "se deixar permitir" tive coragem de conversar com as pessoas que eu amo sobre meu relacionamento. Continua difícil ser uma mulher lésbica e não poder andar de mãos dadas com minha namorada por medo da violência, mas agora eu finalmente sinto que não estou escondendo nada de ninguém (que me ama, no caso). Por fim, vem a relação com o meu cabelo. Eu já fiz diversas formas de alisamento, já pintei de loiro, de
ruivo, já coloquei alongamento, já fiz uns 10 tipos de tranças mas eu sabia que não dava pra continuar a não aceitar meu cabelo natural. Não tive apoio da minha mãe porque ela, inicialmente, não acreditava que eu fosse gostar ou me adaptar ao volume do meu cabelo. Após 1 ano e 6 meses de transição, finalmente fiz o famoso BC e quando eu me olhei no espelho, eu apenas amei o que vi. Me senti bem, feliz, parecia que um peso saía das minhas costas. Cara, eu passei a vida toda ouvindo no salão da minha mãe que eu precisava alisar o cabelo nao so porque ele não era bonito mas porque também não combinava com o meu rosto. Agora eu me pergunto como foi que eu acreditei que meu próprio cabelo não seria maravilhoso em mim! Hoje eu tenho 24 anos, vou me formar, estou feliz e ansiosa pelo futuro que tenho com base nas escolhas que fiz. Todo dia tenho um luta diferente porque por mais que eu me ame, faça coisas que eu gosto e fique perto das pessoas que eu gosto, o racismo
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Agora eu me pergunto como foi que eu acreditei que meu pró prio cabelo não seria maravilhoso em mim!
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O racismo sempre vai tentar destruir um pouquinho da minha autoestima.
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sempre vai tentar destruir um pouquinho da minha auto estima porque é isso que as mulheres negras sofrem todos os dias. Algumas são atingidas de forma muito violenta, outras só querem ter um pouco de liberdade pra fazer suas próprias escolhas, como eu, mas todas nós somos pressionadas e temos um pouco da nossa sanidade mental roubada, todos os dias, de todos os cantos. Mas nós temos força e esperança, eu acredito que consigo caminhar um pouco mais com essa força e com esperança.
Beleza: Brenda Maciel Styling: Laila Marques e AmandaAramaki Fotografia: Amanda Aramaki
Josy Dominice Entrevista
Josy Dominice, 35 anos, psicóloga, funcionária pública e empresária, proprietária do Salão Cachearte, hoje referência em cabelos cacheados na cidade de São Luís, conta, em meio a muitas risadas e simpatia, um pouco de sua trajetória como profissional e como inspiração para tantas cacheadas.
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Eu acho que foi mais ou menos com 14/15 que eu fiz a primeira química, e a primeira química veio não no sentido de alisar o cabelo, eu nunca quis alisar o cabelo, eu só queria diminuir aquele volume que eu achava demais. Comecei a fazer o que na época a gente chamava de relaxamento e amaciamento que era só para baixar um pouquinho a raiz. Só que a medida que a raiz foi baixando a ponta foi ficando esticada e a raiz ia ficando inchada. Aí eu fazia de novo, chegou num momento que toda essa raiz que era constantemente relaxada esticou, ficou aquela coisa que não era liso nem cacheado. Passei a fazer permanente afro, aí pronto, acabou de ficar uma loucura. Pra completar, eu ainda pintava de ruivo, agravava ainda mais. Quando eu engravidei que foi aproximadamente com uns 24/25 anos eu tava com cabelo relaxado, com cabelo com permanente afro, com cabelo ruivo e com lente azul, diga-se de passagem. [Risos]. 25 kg a menos e lente azul e verde. Ixe, mermã! Era outra pessoa. O engraçado é que tem amigo meu que diz assim: Quer acabar com teu trabalho é mostrar uma foto tua branca de cabelo liso, ruivo e olho verde. Outra pessoa. Eu tive que parar a química por conta da gravidez e não aguentava mais olhar no espelho e “Meu Deus o que que é isso?”. Na época eu ainda não tinha muito o entendimento de toda a consequência daquele processo de transição, inclusive na minha identidade como mulher e principalmente como negra. E durante todo esse momento eu busquei informações sobre produtos, sobre salões, eu ia em todos os salões aqui e todos sugeriam a mesma coisa: pra fazer uma escova, uma chapinha, uma química, e eu não tinha absolutamente referência nenhuma. E foi mais ou menos em 2008, por aí, que eu conheci o Deva, e 1/2 anos depois eu fui pra são Paulo, um passeio com umas amigas, e fiz de tudo pra ir num salão lá, que trabalhasse com o Deva, e fui. Fiquei encantada, maravilhada. Nunca tinham me tratado da forma que eu fui tratada nesse salão.
Todo salão que eu ia aqui e que eram profissionais que infelizmente não sabiam como cuidar do nosso cabelo, faziam uma carinha assim meio assustada, sabe? Quando eu chegava com o cabelo natural. E lá não, lá meu cabelo foi super elogiado, meu cabelo ficou muito mais bonito do que entrou, então não foi só o produto, foi todo aquele ambiente de fato de reconhecimento, de você saber “bom, pera aí, meu cabelo é bonito, meu cabelo não é tão detonado quanto eu achei que seria”. Isso foi depois de eu ter feito meu BC, que eu fiz aqui, com um cabelereiro que já cuidava do meu cabelo e eu cheguei pra ele e falei: Corta. Não sabia o que era BC, não sabia o que era nada, eu só falei “tira tudo que eu não aguento mais”, foi uma semana antes da minha filha nascer e aí: “você tá preparada? Teu cabelo vai ficar muito curto”. Eu falei: não quero nem saber, eu sei que vou ficar em casa mesmo, são seis meses pós do parto. Então eu fico em casa, não vou me incomodar com cabelo curto. E meu cabelo ficou bem curtinho, cortei com 9 meses, uma semana antes da minha filha nascer e foi maravilhoso, porque depois que minha filha nasceu eu não queria ter preocupação com absolutamente nada, muito menos com cabelo. A questão pra mim naquele momento era: me livrei da química e praticidade, era isso que me motivava a me libertar da química, não era ainda construção de uma identidade, não era ainda a valorização da estética afro, foi um movimento que foi acontecendo, isso há dez anos atrás, e aí foi que logo depois eu conheci o Deva
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e fui entrando em contato com outras meninas que passavam pela mesma situação. Aquilo não era uma coisa só minha, várias outras pessoas sentem a mesma dificuldade e especialmente mulheres negras e especialmente mulheres de cabelo crespo. O cabelo de mamãe é 4c. Mamãe a vida toda fazendo química e eu sempre dizendo pra ela, antes mesmo de pensar em ter salão: Mãe como será seu cabelo natural? “Horrível minha filha, meu cabelo é ruim!.” Era só o que ela sabia dizer. Meu cabelo é ruim meu cabelo não presta, meu cabelo não tem como ficar natural de forma nenhuma. Foi isso que ela aprendeu a vida toda e é isso que ainda, infelizmente é repassado pra muitas crianças. De “Ah não, teu cabelo não é tão bom, teu cabelo é ruim.” Quando foi mais ou menos em 2012/2013, eu passei de fato a pesquisar, porque aquilo tava começando a mexer muito comigo, mas eu ainda não via aquilo a nível profissional. Só que quando eu conheci o Deva, quando eu fiz pela primeira vez o tratamento nesse salão, eu comprei um kit profissional, e trouxe, fiz o cabelo de algumas amigas, fiquei maravilhada, elas ficaram maravilhadas e aquilo ali foi de alguma forma mexendo, e eu pensei, bom, num dado momento eu vou levar esse produto pra São Luís para trabalhar com a representação. A minha intenção primeira não era ter um salão. Até porque eu pensava, eu, funcioária pública, me formando em psicologia, como que vou abrir um salão? Não tem muito a ver comigo, né. Então, de repente, a questão da venda poderia valer mais a pena. O certo é que eu acabei fazendo um curso no Deva, que foi um divisor de águas na minha vida. Nesse curso, eu era a única que não tinha salão, eu era a única cacheada, todas as outras eram cabeleiras já de anos de formação e que tinham cabelo liso.
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Eu nunca tinha pego numa tesoura pra cortar um cabelo nem nada, porque não tinha formação de cabelereira. A minha intenção ali era aprender pra poder vender os produtos, porque eu estava fechando a distribuição e representação aqui no estado. E me encantei. E vi assim: “Meu Deus! como essas cabelereiras não têm a menor noção do que fazer com nosso cabelo”. No curso você via que eles não entendiam como que o efeito da hidratação, de uma boa hidratação, de um bom enluvamento, de uma boa fitagem, dava aquele resultado. Pra eles era tudo muito surpreendente. E eu ficava: “Minha gente, nosso cabelo não é um bixo de sete cabeças, sabe”. Parecia que era uma coisa de outro mundo. E aí um dos diretores do Deva na época, no final do curso, me chamou e falou: Qual era teu objetivo? Eu falei: Tô aprendendo, e vou trabalhar com a representação e a distribuição. Ele falou: E por que que tu não bota um salão? Eu falei: Salão? Mas não sei se vou me sentir segura. Ele falou: Josy, tu acabou desenvolvendo um trabalho aqui melhor do que qualquer profissional que já tem anos de estrada, justamente porque tu já tem a vivência do teu cabelo cacheado e tu já conhece os produtos há um certo tempo. Isso foi em São Paulo? Foi em São Paulo.. acho que foi em 2014, o começo de 2014. E aí foi que começou. Começou ainda de uma forma muito... sem eu saber exatamente o quê que iria virar, como que ia ser. Naquela época eu não tava vislumbrando ainda a questão do mercado, eu tava naquela de “bom, eu quero oferecer pras outras meninas o que eu não tive”. Da consultoria que eu não tive, das informações que eu não tive e a coisa foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo... Daí a criação do salão tornou-se uma urgência mesmo, que eu vi que eu me apropriei de fato dessa responsabilidade de “não, peraí! Eu passei por isso mas eu não
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quero que outras pessoas passem por isso também”, tipo, que não quero que minha filha cresça, (minha filha tem o cabelo entre o ondulado e cacheado) e só ache bonito um cabelo que tem chapinha, um cabelo que tem uma escova. E isso foi se tornando cada vez mais forte, e o salão, graças a Deus, a gente tá com 4 anos de funcionamento. Eu comecei a trabalhar a domicílio um pouquinho antes de de fato desenvolver e criar o salão, e a cada dia é um novo aprendizado, e sou totalmente apaixonada pelo o que eu faço. Minha vida de serviço público ficou meio de lado, eu tô com uma licença sem vencimento, inclusive, e continuamente eu fico naquela: “peço exoneração ou não peço exoneração?” porque não mexe mais comigo, o que mexe comigo é essa vida louca. É uma correira, sempre uma correria. Tá exigindo muito de mim porque, afinal de contas, a questão de você ser empresário e pequeno empresário é muito complicada. Você ser mulher, você ser empresária, você ter que dar conta de várias coisas ao mesmo tempo e pra gente ser mulher é ainda mais complicado, né? Porque, tipo, eu tava falando contigo mais cedo “não vou nem bater foto, que nem deu tempo deu me arrumar”. Olha a cobrança que a gente tem com a gente. Se fosse um empresário homem ia fazer diferença ele não ter feito a unha? Ia fazer diferença ele não ter feito a sobrancelha? Entendeu? Então a gente tem muito essa cobrança com a gente. Tudo isso: eu ter passado a trabalhar com a autoestima das pessoas, com a questão do empoderamento, com a questão do fortalecimento de uma identidade negra, isso mudou muito mais a mim do que eu imaginava. A minha prioridade na escolha de colaboradores é trabalhar com mulheres negras. Porque? Porque eu sei que elas sabem exatamente o que elas passaram, a questão do cabelo que elas vivenciaram, e também o quanto o mercado de trabalho exclui, de certa forma, infelizmente, mulheres negras.
UMA MULHER NEGRA LEVANTANDO A AUTO ESTIMA DE UMA OUTRA MULHER NEGRA, ISSO FAZ UM BEM PRA ELAS IMPRESSIONANTE.
Uma mulher negra levantando a auto estima de uma outra mulher negra, isso faz um bem pra elas impressionante. Não só como profissional, mas como pessoa. Da mesma forma, uma cliente que vem, que é negra, que passou a vida toda ouvindo que o cabelo não era bacana, ela ser atendida por uma mulher negra que tá muito bem resolvida com o seu cabelo e com a sua autoestima, aquilo cria uma outra coisa. Então, pra quem não teve a vivência de ter um cabelo crespo, cacheado, ou pra quem não tem a historia negra - eu sou negra, mas sou privilegiada, minha pele é clara - eu jamais vou conseguir entender o preconceito e as situações de racismo que digamos, algumas das minhas colaboradoras viveram, que são negras e têm a pele mais escura. Da mesma forma, eu, de pele mais clara, cabelo com cacho mais aberto, conversando com uma cliente que é negra do cabelo crespo, por mais que eu tente levantar a autoestima dela eu não vou ter passado exatamente pelo que ela passou. Então, a concepção dela do quanto o cabelo dela é ruim, é uma construção histórica que não é só dela; vem da mãe, vem da vó, vem da falta de paciência que tiveram ao longo de todo tempo pra cuidar daquele cabelo. É muito doido isso, porque não é só estética. Sempre que eu tenho a oportunidade de falar sobre o meu trabalho, às vezes eu ouço “ah, cabelo cacheado tá na moda”. Gente, pelo amor de Deus, não tem nada a ver com a moda. A coisa é muito além do que a gente pode, do que a gente consegue expressar.
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É um fortalecimento de autoestima, é o empoderamento que a gente tá passando pra uma outra pessoa, que tá passando pra uma outra pessoa e essa pessoa sai daqui, e sai daqui bem depois de ter feito um bc, depois de ter feito um tratamento, ela sai bem com o cabelo que ela renegou a vida toda, ela serve de representatividade pra uma outra que olha ela passando na rua e pensa: “meu cabelo não é tão feio quanto eu imaginava”, porque é isso que elas tem em mente: que o cabelo é feio, que o cabelo é ruim, que o cabelo dá trabalho. Então eu sou perdidamente apaixonada pelo o que eu faço, apesar de todo o trabalho que tem envolvido, e não é fácil, porque afinal de contas a gente vem de um entendimento de que o cabelo crespo, de que o cabelo cacheado precisa de uma química. Os profissionais às vezes questionam o nosso trabalho do tipo “será que não tem uma química aí mesmo?”. Quando a gente começou tinham vários clientes que vinham e diziam: “meu cabeleleiro disse pra eu não vir aqui de jeito nenhum porque era mentira, que aqui vocês faziam química da mesma forma”. Ou então, até pessoas quem vem e questionam: “não, mas não tem química mesmo?”, tem dificuldade de entender que a textura do seu cabelo natural não precisa de química.
E querendo ou não, isso pra mim também é um ato político. Eu não preciso tá com meu cabelo definidinho, fitadinho, pra dizer “olha, esse aqui é o perfil de cabelo cacheado esperado”. Nada disso! Não tem padrão de absolutamente nada. A gente trabalha estimulando a questão de uma definição? Trabalha. Só que pra cliente que QUER definição. Você não quer definição? Massa! Vamo só te dar aqui uns toques pra tu conseguir manter o teu cabelo hidratado sem necessariamente ele estar definido, entendeu? Enquanto, na verdade, o que a mídia passa, e infelizmente, o que a grande maioria das blogueiras passam, é isso: é do cabelo cacheadinho perfeitinho. Qual o perfil? Compridão, com cacho aberto, né? E aquele é o cabelo esperado.
Tudo tem os dois lados da história. Ao mesmo tempo esse movimento crescente, da aceitação, do amor pelo cabelo natural, acaba também levando a um outro caminho que é o da “perfeição”. O cachinho perfeito, aquele cachinho esperado da blogueira, sabe, aquele cacho que não tem absolutamente nenhum frizz. Então a possibilidade que a gente tem de dizer “ei! o nosso cabelo faz frizz, sim! Isso não quer dizer que ele é ruim por causa disso”, o nosso cabelo perde a definição muito rápido, sim! Isso também não quer dizer que ele é um cabelo que tá maltratado, não necessariamente. Eu particulamente não gosto de andar com meu cabelo muito definido, eu gosto dele sem muita definição.
Cabelo esperado é o que você tem na sua cabeça. O que a gente quer é fazer com que tu tenha uma boa relação com o cabelo que é teu, entendeu? É esse o objetivo do nosso trabalho. Às vezes, é complicado quando a gente tenta passar isso pra algumas cliente, por que elas já vem de um histórico de ao longo de tantos anos terem aquele cabelo renegado, terem a estética de alguma forma deixada de lado, a estética afro deixada de lado, então parece papo de vendedor, né? Tipo: “Não, tá querendo dizer que o meu cabelo é bonito? Meu, não...” Isso é muito questionado, é um trabalho diário, é um trabalho, uma luta de formiguinha, e é muito além do que simplesmente um salão que faz cabelo cacheado.
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ISSO PRA MIM TAMBÉM É UM ATO POLÍTICO. EU NÃO PRECISO TÁ COM MEU CABELO DEFINIDINHO, FITADINHO, PRA DIZER “OLHA, ESSE AQUI É O PERFIL DE CABELO CACHEADO ESPERADO”. NADA DISSO! NÃO TEM PADRÃO DE ABSOLUTAMENTE NADA.
Não é simplesmente você tá lidando com estética. A gente lida com uma parada que é muito mais forte. E às vezes a gente acaba não tendo a dimensão disso, e vira e mexe acontecem situações... Essa semana mesmo veio uma cliente comentando que ela falou pro marido que ia deixar o cabelo natural e ele deu um grito “DE JEITO NENHUM!”. Outra que uma vez veio chorando, por que como que ela ia cortar o cabelo curto se na igreja não era permitido que a mulher usasse cabelo curto? Outra que às vezes vem chorando porque ta tendo apoio das amigas mas não tá tendo apoio em casa da mãe, porque a família toda tem o cabelo com a textura mais aberta, e ela tem o cabelo crespo cacheado. Outras que falam do trabalho: “eu queria poder deixar o meu cabelo natural mas no meu trabalho...”
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Hoje em dia, infelizmente, eu não posso mais atender tanto. Confesso que eu até sinto falta de poder ter esse momento de conversar mais com as pessoas que vem aqui, e às vezes vem só pra fazer uma avaliação, porque querem conversar. Muitas delas chegam aqui e se sentem em casa. Por que? Porque você olha pra um lado, olha pro outro e só tem crespa, chacheada e ondulada. Então você se sente em casa, você se sente acolhido, você não vai ter vergonha de soltar o cabelo e a coisa mais linda que tem é às vezes vir criança aqui e, PÁ! Solta o cabelo e fica de boa e a mãe fica impressiona: “ela não solta o cabelo dela em lugar nenhum”. Por que? Porque ela tá se sentindo à vontade, ela tá se sentindo acolhida, ela tá ali entre os iguais.
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E uma das coisas que a gente friza muito pra cliente que tá em transição e de alguma forma não se sente segura por uma questão familiar, por uma questão no relacionamento, por uma questão no trabalho é: se tu não te impor, se tu não te fortalecer, se nenhuma mulher de alguma forma, por questões sociais, por questões trabalhistas, não se impuser e disser: “Ei, a estética, a minha estética, é essa. A minha natureza é essa. Eu sou negra, eu tenho o cabelo dessa textura e pronto”. Se você não se impuser você não vai ser aceita. E aí, você não vai servir, de fato, como referência pra nenhuma outra e aquilo fica o tempo todo nesse mesmo padrão que é o que a sociedade espera, que a gente se encaixe naquele padrão do liso, loiro, cabelo comprido. Entendeu?
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SE TU NÃO TE IMPOR, SE TU NÃO TE FORTALECER, SE NENHUMA MULHER DE ALGUMA FORMA, POR QUESTÕES SOCIAIS, POR QUESTÕES TRABALHISTAS, NÃO SE IMPUSER E DISSER: “EI, A ESTÉTICA, A MINHA ESTÉTICA, É ESSA. A MINHA NATUREZA É ESSA. EU SOU NEGRA, EU TENHO O CABELO DESSA TEXTURA E PRONTO”. SE VOCÊ NÃO SE IMPUSER VOCÊ NÃO VAI SER ACEITA.
A gente recebeu uma cliente semana passada, que “tava” meio na defensiva, e inclusive ela comentou que ela não precisava ter o cabelo natural para se entender como negra. Eu falei: “eu concordo, só que quantas mulheres negras gostariam de usar seu cabelo natural não podem, justamente... Não podem, não: não se sentem à vontade, justamente porque há esse outro padrão?” Então, eu preciso deixar o meu cabelo de uma outra forma, antinatural, porque o cabelo crespo é associado a uma pessoa que tem menos condição financeira. E se tiver, que diferença faz? “Pessoas empoderadas geram pessoas empoderadas”, porque é isso que acontece. E isso é o que eu passo, por exemplo, pra minha filha. E é uma coisa que as vezes ela vem da escola, me dizendo: “Mãe, eu tava conversando com uma amiga minha, que o cabelo dela é crespo, o cabelo dela é tão bonito, pra mae dela deixar o cabelo dela mais solto, e não sei o que...” sabe? Então é uma coisa que, querendo ou não, você acaba “contaminando”. E essa questão que as vezes a gente fala e parece tão da boca pra fora, da questão da sororidade, da questão do entendimento, da empatia... Gente, às vezes eu fico de cara com o quanto mulheres são criticas umas das outras. A gente não precisa disso, pelo contrario: as oportunidades que a gente tiver pra “ei, bora lá, tô contigo, olha a tua autoestima, sabe? Te cuida, te valoriza, te empodera, te aceita, te ama.” O que a gente tiver a oportunidade de fazer isso, é ideal que a gente faça. A gente já ta tao massacrado com as nossas coisas e a gente acaba querendo jogar isso nos outros. Então o que a gente faz aqui é bem esse movimento de “cara, tu é linda!”. E as vezes a pessoa só precisa ouvir isso e a gente ta falando isso nao é porque a gente quer vender, nao, é porque a gente de fato olha pra aquele cabelo, a gente olha pra aquela pessoa e diz “Bicho, te entende como negra”. Eu lembro de ter atendido uma cliente que tava em transição. E aí quando eu virei pra ela e falei “eu entendo que a
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PESSOAS EMPODERADAS GERAM PESSOAS EMPODERADAS. QUERENDO OU NÃO, VOCÊ ACABA CONTAMINANDO.
transição é um negócio difícil, especialmente pra quem é negra e...” Ela me olhou super séria, super séria. E aí sabe aquela coisa de você inconscientemente não se entender como mulher negra, sabe? Ou então assim... Uma coisa talvez seja chamar-se de “morena”, talvez ela se sentisse menos ofendida, como se chamar de “ negra” fosse ofensa, entendeu? As pessoas têm dificuldade disso, de se assumir como negra e de assumir pro outro que é negro, como se isso fosse ofensivo. Tipo: ah, tem uma pessoa, sei lá... Vamos falar como referência: “tá perto ali daquela morena”. E a morena é negra. Qual a dificuldade que eu tenho de dizer isso, sabe? Como que, o que, na construção da linguagem faz com que a gente tenha essa palavra com um certo peso? Então, assim, por isso que eu faço questão, em determinados momentos, quando a cliente tem uma pele mais escura de reafirmar... Eu entendo o quanto pra ti ainda é difícil, na verdade eu ainda não tenho como imaginar porque a minha pele é um pouco mais clara, eu não tenho como passar o que tu passou. Mas olha a importância de tu te afirmar como uma mulher negra, de tu te afirmar como uma mulher empoderada, ainda que tu decida continuar com química no teu cabelo. Mas tu vai saber que aquilo é uma escolha tua? Será que é uma escolha tua ou será que é uma escolha que veio de uma outra construção?
Foto: Tatiana Soares
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a LIBERDADE DE SER
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Alisar o cabelo não foi uma decisão própria. Eu tinha 11 anos quando fiz o procedimento pela primeira vez, decisão tomada por minha mãe por considerar que cabelo crespo – o meu é o tipo 4C, considerado o mais crespo de todos, aquele que as pessoas comparavam a palha de aço - dava muito trabalho. Não a culpo por nada, na época (2004), a indústria cosmética não dava importância a cabelos cacheados e crespos, a ditadura eram cabelos lisos. Não tínhamos informações de como cuidar, que produtos usar, bastava pentear ou entrançar. Não vou mentir que não gostei da decisão, estava mudando de escola, iniciando a minha adolescência, queria fazer parte do padrão de beleza estipulado para poder me sentir bonita e confortável na sociedade – cabeça de criança sempre passa muitas coisas. Um ano após alisar, tive que cortar o cabelo por não ter tido os cuidados necessários para quem utiliza química. Voltei ao meu cabelo crespo, usei trança afro para auxiliar o crescimento, inclusive, esse foi motivo o qual sofri bullying na escola. Dois anos se passaram e voltei a alisar. Um alívio. Retornei aos padrões da sociedade. Foram quase 10 anos me intoxicando com químicas no cabelo. Passei por vários salões, cada um possuía um método para realizar o procedimento. Lembro que em um desses espaços, um determinado produto utilizado pela cabeleireira continha um alto teor de alguma substância muito forte, e acreditem, sempre que a profissional passava tal produto no meu cabelo eu sentia um gosto de sangue na boca. Meu coro cabeludo começava a arder, parecia está em chamas, tanto que quando esse produto era passado eu tinha que está perto de um ventilador para amenizar a ardência, bem como usar um pano para tapar a boca e nariz, pois ele exalava por todo o salão. Era horrível! Fiquei nessa angústia
QUEM SOU Por Vanessa Fonseca por quase um ano, fazendo o procedimento de dois em dois meses até não aguentar mais e mudar de salão. Com o passar do tempo os resultados das progressivas e alisamentos não estavam mais satisfatórios. Queda de cabelo, fragilidade, opacidade, aparência cada vez mais rala, foram esses alguns dos motivos que me fizeram parar com a química. O empoderamento crescente de mulheres em assumir seus cabelos naturais, também foi fator importante para tomar minha decisão. Iniciei minha transição capilar em março de 2017, pretendia passar no mínimo um ano em transição, pois não queria que ao cortar ele estivesse muito curto. Passar por transição capilar é muito agoniante, é preciso muita paciência e manter a auto-estima em cima. O cabelo fica com vários centímetros de raiz natural, duas texturas. É preciso usar produtos para fortalecimento, pois os fios ficam fragilizados. Eu não tinha opções de penteados, usava apenas rabo de cavalo para qualquer lugar que eu fosse. Se pensei em desistir? Várias vezes, mas ao lembrar da química me dava medo e ao mesmo tempo força para continuar. Tudo ocorria bem até que um descuido mudou muitas coisas. Esqueci de citar, sou jornalista e modelo, e em um dos trabalhos de moda toda a produção estava sendo feita por um salão. Era necessário fazer um penteado e portanto usei o meu aplique que havia comprado anos atrás. Solicitei que fosse feito apenas escova no meu cabelo devido à transição capilar que estava passando – já havia feito escova durante outro trabalho e ocorreu tudo bem, sem danos ao meu cabelo. No entanto a cabeleireira insistiu na chapinha e fez. O problema é que a chapinha foi feita com meu cabelo ainda úmido. Ou seja, uma grande fonte de calor diretamente nos fios ainda frios.
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O resultado não podia ter sido pior, ganhei um “buraco” na cabeça. Ao lavar os fios no dia posterior, maços de cabelo começaram a cair, parte do que já estava crespo havia esticado, um pesadelo. Não me lembro de ter chorado antes tanto quanto chorei nesse dia. No meio de tanta angústia, uma única pessoa veio na minha cabeça para literalmente me salvar. Josy Dominice, proprietária do espaço Cachearte, primeiro salão especializado em cabelos crespos e cacheados de São Luís. Até hoje tenho os áudios que enviei para ela desesperada, soluçando como uma criança – quando ouço para relembrar penso que foi um vexame. Josy me auxiliou, viu que o estrago no meu cabelo foi grande e me orienotu da melhor forma possível. Foi realista, disse que eu precisava cortar, tirar todos os fios alisados que restaram, mas como a parte mais prejudicada estava extremamente curta, se eu cortasse naquele momento o meu couro cabeludo ficaria visível, por isso me deu um tempo e passou produtos para estimular o crescimento. Produtos estes sem química pesada, feitos a base de ingredientes naturais, tudo para que, além do crescimento, recuperasse a saúde dos fios. Quase um mês depois voltei a Cachearte e optei por cortar o cabelo, fazer o tão falado big chop, não dava mais para aguentar os restos e deteriorados fios de cabelos.
Cortei. A minha vontade de passar doze meses em transição foi reduzida a oito. Mas passar por tudo isso agregou aprendizado e me deu lições. Aprendi a me amar, entender que o único padrão de beleza existente é aquele somos naturalmente. Olho para trás e vejo a imaturidade de uma criança achando que só seria feliz se estivesse de cabelo liso. Percebo o quanto um senso comum é capaz de transformar a vida de alguém. Se pudesse voltar atrás jamais teria alisado os meus fios, mas como não tenho essa capacidade de voltar ao tempo, aproveito o meu presente, desfruto de cada momento com meu cabelo, aprendo com ele e principalmente, encorajo outras mulheres a assumirem seus cabelos naturais, libertassem de algo que as angustiam, enxergarem a beleza no que elas são de verdade. Cada comentário que recebo, cada pessoa que decide tirar uma dúvida sobre cabelo comigo, tudo isso respondo com alegria e entusiasmo, pois não há nada mais libertador que decidir ser você mesmo.
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APRENDI A ME AMAR, ENTENDER QUE O ÚNICO PADRÃO DE BELEZA EXISTENTE É AQUELE QUE SOMOS NATURALMENTE.
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Pensei sobre o uso do
turbante
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N
essa semana, recebi um “pedido mandatório” da diretoria da escola privada na qual estudo. Me pediram, de forma indireta, mascarada de mera formalidade, que eu esquecesse que estou entre os poucos alunos negros da escola; que estou entre as poucas meninas negras; que estou entre as poucas meninas negras que não alisaram o cabelo; entre as poucas meninas negras que não alisaram o cabelo e tiveram a sorte de ter pais que apresentaram o orgulho que deve existir de sua cor; entre as poucas que, em uma escola onde o padrão é a branquitude, têm orgulho de ser o que são e sabem a necessidade de representar essa luta diária. Pediram-me que pensasse sobre o uso do turbante.
MARIA CLARA VIANA
Pois bem, pensei: o uso do turbante é bem mais que um simples pano enrolado na cabeça; é resistência, luta e consciência da ancestralidade e da identidade negra. No período da escravidão, o turbante era usado para diferenciar grupos e tribos e deixar viva uma cultura oprimida até então; hoje, significa orgulho da cultura, religião e da memória ancestrais. Sempre lutei contra o racismo, mas fui privilegiada
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de nascer classe média (acho que é aí que me encaixo, não sei muito bem dessas coisas, mas sei que nada nunca me faltou, pelo contrário, sempre tive tudo). Tive sorte de conseguir meia bolsa em uma das melhores escolas da cidade. Tive sorte de ter uma família estruturada: tive pai, mãe e familiares que funcionaram e funcionam como segundos e terceiros pais. Tive “sorte”, coloco isso bem entre aspas
O USO DO TURBANTE É RESISTÊNCIA, LUTA E CONSCIÊNCIA DA ANCESTRALIDADE E DA IDENTIDADE NEGRA.
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(por favor), de nascer negra de pele clara. Isso só pode ser considerado sorte, porque é perceptível a maior aceitação social dessa parte dos negros. Enfim, fui muito privilegiada e tenho noção disso. Todo tipo de racismo que tinha tido contato eram histórias dos outros, eram histórias vividas pelo meu pai, pelo meu tio, por amigos distantes e era algo que achava que qualquer negro deveria saber como era o
sentimento mesmo sem viver de fato. Mas não é bem assim. O racismo está enraizado em tudo, sim. E eu pensava que esse racismo velado não machucava tanto quanto qualquer outra expressão desse preconceito. Estava errada. Nunca pensei que um “pedido mandatório” vindo de uma escola pela qual nunca desenvolvi sentimento de real pertencimento fosse me abalar tanto.
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SE SUA IDENTIDADE LHES É NEGADA PELOS OUTROS AO SEU REDOR, COMO TER ORGULHO DE SER NEGRO?
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Nunca pensei que a frase sobre o uso do turbante como descaracterização do uniforme fosse mexer tanto comigo. Mas foi difícil; muito! Porque esse pedido pode ser a formalidade que for, mas nenhuma formalidade deveria estar acima do significado, da representatividade, da luta, da força que um turbante traz.
Infelizmente, estou em uma instituição privada, então dizer apenas que não vou me submeter ao pedido/ordem não é possível. Não posso viver no surrealismo e fingir que a escola é minha página do facebook. Mas me restam apenas dois meses nessa escola; posso até ser obrigada a guardar o turbante por um tempo, mas todo o seu significado ainda fica em mim e uma coisa eu digo, serão dois meses de luta constante (como sempre foi), mas agora com um acontecimento me dando mais motivos, mais força, mais objetivos. “Ah! Mas você nem é negra, é moreninha”- ouvi muitas vezes essa negação identitária como se fosse elogio. Se sua identidade lhes é negada pelos outros ao seu redor, como ter orgulho de ser negro? Então, o que mais me preocupa em toda essa situação desconfortável que estou vivendo agora não é o meu estado emocional, porque o que eu acredito não vai mudar e isso vai servir pra me fortalecer. Porém, principalmente sendo em uma escola como essa, onde eu não sou o padrão e existem tantas meninas negras que precisam aprender o que é representatividade, as crianças negras que logo estarão no meu lugar, com a proibição do turbante, estarão perdendo uma das formas possíveis de se descobrir negro, de se aceitar negro, de se sentir confortável ao ostentar seus cachos ou seu black. Eu não posso baixar a cabeça e simplesmente aceitar me esconder. Mas tenho medo, porque todas as crianças pretas dessa escola poderão, quando estiverem em meu lugar, baixar a cabeça e se esconder por medo de não serem aceitas, por medo de estarem fora da formalidade do uniforme, por estarem descaracterizando o uniforme.
Por fim, quero dizer que não condeno as pessoas que regem a escola, todas elas fazem parte dessa sociedade racista e intolerante e são, de certa forma, vítimas do determinismo social, mesmo acreditando fielmente que todos podemos mudar e ir contra, por exemplo, uma criação muito tradicional. Porém, condeno atitudes como essa, analisando a escola como forma de criar cidadãos. Porque, repito, formalidade alguma deveria colocar-se acima do poder de transformação que um simples turbante pode ter. O uso do turbante não machuca ninguém; já a sua proibição, pode gerar uma onda de falta de representatividade, dificultando o empoderamento negro e alimentando a normatividade branca; consequentemente, uma nova geração de cidadãos, replicando a ideia racista de segregação, é criada. Isso sim, num futuro provável, vai machucar negros, vai marginalizar negros, vai matar negros. Então, como já disse, repito: o uso do turbante é bem mais que um simples pano enrolado na cabeça.
Produção: Cazumbá Fotografia: Amanda Aramaki Styling: Amanda Aramaki e Igor Ribeiro Assistente de produção e de styling: Johnathan Mendes Beleza: Bruno Max
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Vamos falar de racismo Por Flaviana Lopes
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É estranho pensar que em um país onde mais da metade da população é negra ou parda, ainda existam casos de racismo. Alguns casos, velados, em outros escancarados mesmo. Eu nunca me senti atingida pelo racismo, ou talvez tenha criado um bloqueio para não ser atingida. Mas de uns tempos pra cá, refletindo sobre o assunto, percebi que eu vivi casos de racismo, talvez na escola e em outros meios.
Hoje, parece que assumir seu cabelo natural também virou modinha, muitas blogueiras estão ficando ricas ensinando em seus canais no youtube como cuidar e deixar os cabelos cacheados e crespos mais bonitos. Mas mais do que moda, assumir os cabelos naturais é resistência, é mostrar que não precisamos nos adaptar aos padrões brancos de beleza, mas sim podemos valorizar os padrões negros.
Minha mãe é branca e meu pai é mestiço, filho de mãe negra e pai branco. Ou seja, meu tom de pele é singular, mas ainda assim, já me perguntaram se minha mãe era minha mãe de fato. Enfim, pequenos casos de racismo que eu acredito não terem me atingido, mas que serve como alerta de que ele existe e está mais perto do que pensamos. Infelizmente não temos como proteger as crianças desse mal, elas crescem se sentindo inferiores por comentários e agressões racistas que sofrem na escola. Para amenizar isso, a saída é o empoderamento, uma palavra que está na moda, mas que significa muito mais do que um mero modismo. Empoderar uma criança negra é mostrar para ela que ela é como qualquer outra pessoa e que não precisa se sentir inferior por ser negra, pelo contrário, deve usar essa característica para se sobressair. Muitas meninas cresceram tentando controlar seus cabelos cacheados ou crespos, alisavam, prendiam, usavam milhões de estratégias para deixarem seus cabelos mais parecidos com os cabelos lisos.
Hoje em dia, recebo vários elogios sobre como meus cabelos são bonitos, mas nem sempre foi assim, quando eu era criança, minha mãe, não por preconceito, mas por falta de conhecimento, ou por querer que eu e minha irmã ficássemos mais próximas dos padrões, sempre manteve nosso cabelo preso, com bastante creme para reduzir o volume, já que o volume representava desleixo ou falta de cuidado. Hoje, exibir o volume no cabelo é sinal de estilo, mas mais do que isso, é respeitar quem eu sou e como sou.
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EMPODERAR UMA CRIANÇA NEGRA É MOSTRAR PARA ELA QUE NÃO PRECISA SE SENTIR INFERIOR POR SER NEGRA.
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O BRASIL, UM PAÍS MAJORI TARIAMENTE COMPOSTO POR PESSOAS PARDAS E NEGRAS AINDA NÃO CONSEGUIU ABOLIR A ESCRAVIDÃO DA CABEÇA DAS PESSOAS.
As estatísticas de segurança também revelam uma triste realidade da nossa herança escravocrata: a população parda e negra é a que mais sofre com a violência, os jovens negros são as principais vítimas de homicídios e representam o maior percentual dentro das penitenciárias.
Em 2017, o IBGE divulgou uma pesquisa que mostrou que a população que se autodeclara negra ou parda cresceu 14,9%, enquanto a população que se autodeclara branca diminuiu. Os especialistas disseram que esse crescimento se deu por que, para muitas pessoas, ser negro não é mais uma vergonha, mas sim motivo de orgulho e porque as pessoas também começaram a entender como nosso país é mestiço e que em algum momento da vida teve um ascendente negro ou pardo.
Os casos de racismo, mesmo em pleno século XXI, ainda são frequentes e estão cada vez mais escancarados, não só no Brasil, mas nos outros países. Podemos lembrar o caso que aconteceu dentro de um estádio de futebol, em 2014, onde a torcida do Grêmio fez várias ofensas racistas contra o goleiro do Santos, o Aranha. Nem atrizes famosas como Taís Araújo, ou jornalistas como Maria Júlia Coutinho, estão livres dos ataques racistas, que agora ocorrem inclusive nas redes sociais. Isso só mostra como o racismo atinge todas as classes sociais, por mais bem sucedido, famoso que você seja, a cor da sua pele sempre vai ser mais importante do que sua carreira ou sua história de vida. Esses casos mostram o quanto ainda precisamos evoluir como seres humanos, como o Brasil, um país majoritariamente composto por pessoas pardas e negras ainda não conseguiu abolir a escravidão da cabeça das pessoas.
Lutar pelo direito dos negros não é frescura, cota não é frescura, é um método criado para tentar diminuir a distância entre bancos e negros, um problema social que se arrasta há séculos por causa da escravidão. Mesmo livres, os negros não tinham como ter as mesmas oportunidades que os brancos, não tinham ensino. Hoje em dia já é possível encontrar negros em cargos de chefia, ricos, bem sucedidos, mas o percentual de pessoas negras que ocupam as classes A e B ainda é mínimo. O sistema de cotas não é suficiente para recuperar essa perda histórica. A polêmica sobre o assunto ainda coloca em discussão a capacidade intelectual do povo negro. Ou seja, o negro precisa estar o tempo todo tentando provar que é capaz, que é competente e que tem a mesma capacidade intelectual que as outras raças.
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Deus é uma
mulher
PRETA Kellen Lopes e Sofia Lopes
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omo quase toda menina negra da minha geração, fui levada cedo ao salão para “arrumar” o cabelo, nesse contexto entenda-se: alisar! Minha vó era totalmente contra, mas minha mãe temia um natural bullying que eu sofreria caso mantivesse ser quem minha natureza realmente ratificava quem eu era, uma menina de cabelo cacheado! Quando criança, enquanto brincava com vizinhas, com meu despretensioso cabelo natural ao vento, escutava do pai das minhas coleguinhas que quando eu crescesse seria empregada doméstica (o que na época foi usada como uma alusão à escravidão e não o devido respeito que a profissão merece)! Meu destino estava traçado: menina preta da periferia, deveria ter cabelo alisado e não sairia do eixo definido pelo destino dos seus antepassados escravizados! Isso me incomodou, então com o apoio incansável e inestimável da minha mãe e minha vó, dediquei-me aos estudos! Para fugir do estereótipo e para fazer com que eu fosse aceita, meu cabelo foi alisado e eu gostei! Dizia que era escolha minha, não compreendia que era uma forma de fugir do racismo! Passei de primeira nas duas universidades públicas do meu estado, a estadual e a federal, que na época não tinha cota para negros! Aos 20 anos já era funcionária pública! Já tinha orgulho de mostrar ao vizinho que ele estava equivocado!
Aos 23 engravidei e casei! Então pude finalmente entender, qual o real sentido da minha existência: minha filha, minha menina! Ao nascer, escutei comentários como: ela é linda, nasceu branquinha como o pai! Então vi cachinhos nascerem na minha cria, eles eram lindos, eram muitos, eram nossa raiz... Assim que minha filha começou a desenvolver o processo de opiniões, começou a dizer que queria ser como eu, sentia orgulho disso! Então um dia, ela entrou no quarto enquanto eu fazia chapinha no meu cabelo e começou a me imitar com brinquedos, disse que queria o cabelo igual ao meu! Susto! Eu amava cada cachinho daquele! O cabelo ratificava que ela era minha! Mas eu não era eu! Fugindo do racismo alisei-me do cabelo para dentro da minha essência! Tentei explicar que ela era toda linda, mas com 5 aninhos, minha filha entendia o que via! Então sem delongas fui ao salão, tirei o megahair liso que usava, tirei toda química do meu cabelo, não aguardei transição capilar, cortei o mais curto que pude (o pejorativo corte que leva o nome de “Joãozinho”). Passei pelas ruas, na família, no trabalho, em casa e pude ver o susto de todos com meu big chop, apresentei para minha filha quem nós duas éramos e ela amou!
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Lutei e aprendi muitas coisas até chegar nesse dia, mas foi minha filha que me ensinou que eu não deveria fugir do racismo e sim lutar contra ele! Ela me deu forças para uma das maiores conquistas da minha vida: amar quem eu sou em toda minha totalidade, meu cabelo, meus traços e acima de tudo minha ancestralidade! Meu cabelo virou luta, resistência e ratificação de força! Hoje em dia ela tem 9 anos! E ela sempre me olha mudando o cabelo, amo mudar e aprendi que posso variar sem deixar de ser quem eu sou, sem deixar minha história, uso turbantes, apliques crespos, laces, tranças, tudo! Minha filha revelou-me um espelho e nele eu quero ver coragem e luta, assim como nossos ancestrais! Amo nos amar como somos!
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Fotografia: Amanda Aramaki Beleza: Bruno Max Produção: Igor Ribeiro e Johnathan Mendes
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ELANE A Às vezes nós procuramos a felicidade com todas as nossas forças, procuramos o sentido das nossas vidas, nos questionamos sobre o por que disso ou daquilo e nos esquecemos...
Eu sempre lutei pra sobreviver, eu sempre lutei pra nunca desistir e pra nunca transparecer o que eu sentia, eu chorei sozinha no meu quarto, eu quis voltar pra casa, já disse pro tempo “eu quero a minha mãe”, e ele insistia que eu aguentava e que eu era forte. Ele estava certo, vivi muitos altos e baixos, já tive muitas dores e já superei isso por que eu sou mais do que qualquer coisa que queira me abalar, eu acredito no meu potêncial e acredito em quem eu sou, em quem me tornei e o que eu quero ser e principalmente o que eu não quero ser, já tive muitas dores assim como muitas alegrias e por ambas eu sou grata, pelo fato de hoje eu ser exatamente alguém de quem eu possa me orgulhar... Esquecemos que nem tudo é como a gente quer, e sim como tem que ser, eu acredito que não estou sozinha e que nunca vou estar e que nunca estive mesmo nos momentos que pensei estar, olho pra mulher preta e maravilhosa que sou e me amo, me respeito e me aceito, peço pra mim a benção de todas as forças desse universo, em especial da minha mãe Oxum pra que me cultive cada dia a ser uma pessoa melhor e que ela nunca me deixe desistir por que além de mulher eu sou guerreira filha das águas doces e de um moço de chapéu eu sou todo amor que posso transparecer e muito mais, eu sou verdade eu sou de ancestralidade. Mulher bonita é mulher que luta. Acredite em você.
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bruno A
A arte de se transformar e o fato de estar montado utilizando o corpo, a voz , texturas e elementos presentes e vivos na composição, me leva pra um estado de espírito no qual eu me vejo tomado de energia bruta. O meu corpo é uma arma e uma ameaça social! Cada elemento presente na composição tem uma voz e um peso que eu mesmo desconheço. Utilizo do que tenho de mais bruto e singular pra expressar minha poesia de ser drag.
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Foto: Pedro Bezerra
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Estar mulher Por Haide Sousa
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Somos muitas pessoas ao mesmo tempo. Eu sou um menino do Jardim América, estudante universitário, youtuber, convivendo no mesmo corpo que uma Drag Queen, que é DJ nos fins de semana e E.T. de vez em quando. Sou tudo num só, e apenas ressalto uma parte de cada vez, sem deixar de ser todo o resto. Quando coloco meus cílios postiços Dalilah está completamente em mim, e sinceramente? Eu sou uma Lady e devo ser tratado como tal! Uma vez, Manila Luzon, uma das minhas inspirações drag, disse algo que me marcou bastante: “Não tenho vergonha de parecer uma mulher, pois não há nada de vergonhoso em ser uma mulher”. É nisso que acredito. O mundo fica muito mais bonito quando podemos ser tudo que quisermos ser.
A drag tem alma feminina, e essa alma surge de repente. No meu caso, não foi na primeira, nem na segunda vez que me montei. O “estar mulher” foi me aparecendo nos detalhes. Nas pinceladas da maquiagem, na dor do salto no fim da festa, nos pronomes de tratamento. A sensação de se olhar no espelho e não se reconhecer é incrível, atormentadora e hilária, desencadeando uma descoberta de cada vez: os melhores ângulos pra fotos, uma nova voz, postura, um novo nome. De repente Dalilah tinha nascido e já tinha sua própria identidade. Ser homem é um privilégio e abrir mão disso é ir de encontro ao machismo, ao patriarcado, a uma injusta superioridade masculina instaurada na nossa sociedade. A drag ri na cara dessa sociedade e mostra através da arte como descontruir padrões e construir liberdade. Nossa arte nasceu da supressão de direitos e é nossa obrigação continuar essa caminhada, na luta por igualdade.
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SER HOMEM É UM PRIVILÉGIO E ABRIR MÃO DISSO É IR DE ENCONTRO AO MACHISMO, AO PATRIARCADO, A UMA INJUSTA SUPERIORIDADE MASCULINA INSTAURADA NA NOSSA SOCIEDADE.
Mesmo dentro dessa arte feita da desconstrução existem padrões. A indústria da beleza também dita regras sobre parte de nós, então sim, existe um padrão de drags “barbies”, com maquiagens “Tumblr” e perucas lisas, como tantas “digital inflencers” do Instagram, mas não vou desmerecer quem tem essas referências. Apesar dessa maior “facilidade”, não deixam de ser artistas lutando por espaço. Eu mesma sigo essa linha quando não dá tempo de inovar (risos).
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Foto: Jannes de carvalho
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seja antiracista
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Por Ana Raissa Rodrigues
Temos visto a questão racial mais debatida nos últimos anos, graças a muito esforço de uma população que se cansou de sofrer calada, que tem se recusado a aceitar o lugar que nos é imposto. É um esforço que é militante, que é acadêmico, que é político e que de alguma maneira tem se espelhado nos passos de Zumbi, Dandara, e tantos outros quilombolas e lutadores que resistiram e resistem até hoje, pelo direito à liberdade, à vida, e tantos outros que por séculos tentaram nos negar.
O que interna- mente para mim é doloroso/decepcionante, mas que não posso esboçar estranheza, visto que é algo auto declaratório e confirma a ideologia racista vivenciada. Há aquela máxima muito difundida que ser negro é ruim, é ser inferior. Portanto, ninguém quer chamar uns aos outros de pretos, negros. Aí comentam, “sabe aquela menina bem moreninha”, ou “hoje veio aqui aquele senhor moreno”. É quase um exercício de paciência, mas daí vem a necessidade da mediação, e de propor situações, ainda que de cunho profissional por meio da política de assistência social, que possibilitem uma reação de identificação e orgulho em ser negro, de admirar o continente africano, de não admitir o racismo – seja de que maneira ele se apresentar. Exemplo disso, é não deixar de comemorar/refletir sobre o dia da consciência negra; de evidenciar a importância dos nossos antepassados africanos; de trabalhar a questão racial através de temas como bullying, preconceito e intolerância; entre outros.
No meu exercício profissional, como assistente social num CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), a questão do racismo é vislumbrada e diversas formas. No meu dia-a-dia costumo atender àquele setor da sociedade mais vulnerabilizado no que tange o acesso às políticas públicas, os mais pobres de recursos materiais, e de conhecimento. Percebemos que a maioria das famílias em situação de extrema pobreza são compostas por pessoas negras e pardas. Comumente chefiada por mulheres. Daí, confirmamos a exclusão social vivenciada por negros e negras no país, que no decorrer de toda história brasileira tem se camuflado, mas com índices ainda constrangedores para uma nação que se vende por possuir um povo plural, que acolhe a diversidade – a partir do chamado “mito da democracia racial”.
Ser “antirracista” como propôs a filósofa e militante norte-americana Angela Davis, está muito além de possuir um posicionamento bem definido contra a opressão de raça. Está em levar a discussão seja em que ambiente for, em não aceitar a piadas com “preto”, de desnaturalizar o racismo que oprime, que exclui, que maltrata; em lembrar que a auto estima de nosso povo precisa ser trabalhada, em não aceitar que haja um predomínio branco em todo e qualquer grupo, entre outros; em lembrar que a história do povo preto, é a nossa história.
O fetiche pelo padrão eurocêntrico é muito recorrente, juntamente com a não identificação do pertencimento a raça (aqui entendida não como raça humana, mas como uma palavra que historicamente identifica um povo) e a opressão e exploração sofrida. Quando estamos preenchendo formulários junto às famílias atendidas na instituição, no momento em que perguntados qual sua raça, eles sempre respondem pardos, mesmo aqueles com a pele visivelmente negra, e com traços negroides.
Por mais que conte a história Não te esqueço meu povo Se Palmares não vive mais Faremos Palmares de novo. (José Carlos Limeira – Quilombos)
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Cazumbá
Johnathan Mendes
Bruno Max Costa
Igor Ribeiro
A galera do Cazumbá esteve comigo durante toda a jornada de construção dos editoriais pra revista. Um Coletivo formado por um monte de gente boa no que faz, com desejo de sempre realizar o melhor possível! Muita sorte cruzar com eles e orgulho de saber que são da mesma terra que eu. Agradeço muito a cada um deles que se dispôs a ajudar com suas habilidades incríveis, pela vontade e esforço. Espero que seja só o início de muitas parcerias.
Agradecimentos Jocy Dominici, Juliana Ribeiro, Flaviana Lopes, Ana Raíssa Rodrigues, Vanessa Fonseca, Haide Sousa, Daniele Ramaianne, Laila Marques, Maria Clara Viana, Kellen Lopes, Elane Moreira, Bruno Max, Johnathan Mendes, Igor Ribeiro, Taylaine Lobato, Brenda Maciel, Yandra Santana, Thalita Borba, Renata Meneses, Simone Gratz, Chris Gratz, Lucas Pinheiro, Ricardo Pereira, Jorge Ferreira, e minha mestra Raquel Noronha.
FOTO: LUCAS FONSECA
10/08/1992. Fotógrafa, designer e outras coisas incompletas. @aramakimandy pOR: aMANDA aRAMAKI